A Parte Geral do Código Civil - Moreira Alves

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PROJETO DO CDIGO CIVIL

A parte geral do Projeto do Cdigo CivilMoreira AlvesRESUMO Inicia com uma reconstituio das origens histricas da Parte Geral do Cdigo Civil e em seguida procede ao relato das principais inovaes feitas na Parte Geral do Projeto de Cdigo Civil. Salienta que, no Livro I, as principais inovaes referem-se capacidade, principalmente polmica diminuio da idade para obteno da capacidade de fato, de 21 para 18 anos. Enquanto no Livro II houve poucas modificaes, o Livro III foi o que mais apresentou alteraes, sobretudo no que diz respeito aos atos jurdicos lcitos negociais e no-negociais, distino entre decadncia e prescrio e obteno de prova extrajudicial. ABSTRACT The text reconstitutes the historical origins of the General Part of the Civil Code and reports the main innovations made by the General Part of the Civil Code Project. It also stresses that, in Book I, the main innovations are related to the capacity, principally the polemic reduction of age from 21 years old to 18 years old to obtain the capacity in fact. While in Book II there was few modifications, Book III was the one which presented more alterations, specially concerning the negotiable and the non-negotiable judicial licit acts, to the distinction between decadence and expiration and the obtainment of extra-judicial evidence. A Parte Geral do hoje Projeto do Cdigo Civil brasileiro completa quase 24 anos de tramitao no Congresso Nacional; tramitao longa, mas que tem sido quase uma constante com relao a projetos de Cdigo Civil. O Projeto de Cdigo Civil portugus, de 1967, para chegar a se transformar em Cdigo Civil, demorou 22 anos; o nosso j est com 24. Mas, de qualquer forma, h uma expectativa de que a Cmara dos Deputados, para a qual foi remetido o Projeto aprovado pelo Senado Federal da Repblica, no tarde demasiado em examinar as emendas que fizeram naquela Casa. Procurarei dar uma idia do porqu de a comisso elaboradora do anteprojeto ter resolvido manter as linhas estruturais do Cdigo Civil atual, um dos grandes monumentos da nossa legislao. Em seguida, darei uma idia sumria das principais modificaes que essa Parte Geral apresenta. Em 1969 constituiu-se a comisso para elaborar o anteprojeto do Cdigo Civil brasileiro que substituiria o Projeto encaminhado na dcada de 1960 ao Congresso Nacional e em seguida retirado, Projeto este da lavra do Prof. Orlando Gomes, no que dizia respeito ao Direito das Coisas, das Sucesses e de Famlia, j que havia o desdobramento de um Projeto de Cdigo das Obrigaes e de um Projeto de Cdigo Civil. A misso conferida foi a de elaborar um novo Projeto que seguisse as linhas estruturais do Cdigo Civil brasileiro e que no tivesse a veleidade de inovar por inovar, mas procurasse introduzir dentro dele tudo aquilo que julgasse merecer ser disciplinado em um Cdigo Civil, e que apenas nele se integrassem aqueles institutos que j tivessem estratificao necessria para figurar em uma codificao como a do Cdigo Civil, conseqentemente, em uma legislao com uma certa permanncia. Por isso mesmo, muitas vezes, ainda hoje, critica-se esse Projeto, salientando-se que vrios institutos que comeam a tomar relevo nos tempos atuais nele no constam. H quem diga que haveria a necessidade de se incluir no Projeto dispositivos relativos Engenharia Gentica, a problemas de fertilidade in vitro, de transexualismo, de discriminao com relao a sexo. Essas pessoas se esquecem de que todas essas matrias, que tomaram muito relevo nos tempos mais recentes, ainda esto, em matria legislativa, em um terreno verdadeiramente experimental, no qual no se deve situar uma codificao como a o Cdigo Civil.

Partindo da diretriz no sentido de se seguir a estrutura do Cdigo Civil, manteve-se a Parte Geral, a qual, das partes que o integram, aquela que lhe d unidade, inclusive filosfica, convicta a comisso de que essa Parte Geral era absolutamente imprescindvel dentro da nossa tradio jurdica para dar unidade ao Cdigo Civil. Por isso mesmo, no havia por que fazer aquela diviso, j na dcada de 1940, na primeira tentativa de reformulao do Cdigo Civil, com a comisso constituda por Orozimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimares, de se retirar do Cdigo Civil o Cdigo das Obrigaes, reduzindo-o aos terrenos outros desse ramo do Direito. Entendeu-se que no havia razo para isso, at porque o modelo que se invocava para tanto o Cdigo Civil suo decorreu de um problema de competncia legislativa, em que se elaborou primeiro um Cdigo Civil e depois um Cdigo das Obrigaes que, em ltima anlise, integra-se a esse Cdigo Civil. J naquela poca, na dcada de 1960, voltava-se a discutir a necessidade ou no de uma Parte Geral no Cdigo Civil. No Brasil, havia quem sustentasse que a comisso de 1940 principalmente com a figura de Hahnemann Guimares e Orozimbo Nonato havia feito essa Parte Geral baseada, precipuamente, em idias vindas da Alemanha, pas onde, no final do sculo XVIII, na obra de Dabelow, posteriormente copiada por Hugo e Heise, haviam-se fixado as linhas estruturadoras do BGB (Cdigo Civil alemo) no final do sculo XIX. Na ptria mesmo dessa estrutura que, de certa forma, fora seguida pelo Cdigo Civil brasileiro, encontravam-se crticas a essa Parte Geral e, por isso mesmo, vrios cdigos modernos no a haviam acolhido e, conseqentemente, no a apresentavam. Entendeu a comisso que essas crticas tinham decorrido ou de uma tendncia filosfica da Escola Sociolgica do Direito cujo artfice maior nesse terreno tinha sido a figura de Hermes, no comeo do sculo ou do combate que se fizera unidade do BGB, por fora de idias advindas do Partido Nacional Socialista que dominara a Alemanha, a partir da dcada de 1930. A Escola Sociolgica de Hermes havia atacado a Parte Geral do Cdigo Civil alemo, salientando que era uma parte demasiadamente abstrata, que fugia, portanto, da realidade sociolgica, razo pela qual deveria ser escoimada de um Cdigo Civil, bem como aqueles institutos que a integravam j disciplinados em outras partes do Cdigo, que no numa Parte Geral. J o Nacional Socialismo Alemo partia de uma idia completamente diferente: a de que, embora o Direito de Famlia, o Direito das Sucesses, o direito das pessoas em geral, integrassem o Direito Privado, deveriam publicizar-se no sentido de atender a problemas de ordem ideolgica, com relao at a problemas eugnicos. Da a razo pela qual, na dcada de 1930, quando Nipperdey elaborou as linhas estruturais daquilo que seria um sistema para o novo Cdigo Civil da Alemanha naquela poca, deixou de lado a Parte Geral, o Direito de Famlia, o Direito das Sucesses, considerando que eles deveriam ser disciplinados por leis extravagantes e apenas estruturou o sistema do futuro Cdigo Civil alemo, baseado nos direitos reais, no Direito das Obrigaes e no Direito das Associaes. Mais tarde, j na dcada de 1940, quando se comeou a elaborao desse Projeto que no foi avante, encontramos como Parte Geral dele o que, na realidade, no era uma Parte Geral, mas uma tomada de princpios, quase todos de natureza poltica. O primeiro deles dizia que a misso de um Cdigo Civil era a do bem do povo alemo, o que, evidentemente, no um princpio para figurar em um Cdigo Civil, pois de natureza poltico-retrica. Na elaborao do anteprojeto, que perdurou de 1969 a 1975, manteve-se, portanto, a Parte Geral. Na Parte Especial, seguiu-se afastando da seqncia da Parte Geral a sistemtica alem em que vinha, em primeiro lugar, o Direito das Obrigaes. Em seguida, incluiu-se na Parte Especial do anteprojeto o Direito das Empresas, considerando-se que, por determinao governamental, deveria-se fazer uma unificao parcial do Direito Privado; depois, o Direito das Coisas; em seguida, o Direito de Famlia; posteriormente, o Direito das Sucesses; e, finalmente, um sexto livro com as disposies transitrias, que nada mais so do que aquelas

que dizem respeito ao direito intertemporal para a aplicao do anteprojeto depois de contravertido em projeto e, posteriormente, convertido em Cdigo Civil brasileiro. Quando se examina o que de novo se apresenta nessa Parte Geral, verifica-se que no h originalidade alguma no sentido de se criarem princpios dentro do sistema jurdico privado, at porque um Cdigo Civil no campo de experimentao para que se lancem princpios absolutamente novos, a fim de que se colham os seus resultados, os quais, se mal sucedidos, sejam modificados. Mas muita coisa h de novo, tendo em vista que o Projeto de Cdigo Civil o nosso Cdigo Civil atual , na realidade, vem do sculo passado, elaborado que foi em 1899, com inspirao nos projetos anteriores, tirando a maior parte de suas originalidades do trabalho de Teixeira de Freitas a ponto de Pontes de Miranda dizer que praticamente tudo que o ento Projeto de Cdigo Civil e posteriormente o Cdigo Civil brasileiro apresentava decorria das idias que vinham de Teixeira de Freitas. Em face disso, tendo em vista o avano da Teoria Geral do Direito Privado, no era de se esperar que a Parte Geral do Cdigo Civil brasileiro trouxesse vrios princpios que pouco a pouco se foram consolidando e se estratificando nessa teoria geral e demandaram, por isso mesmo, que viesse a doutrina, a jurisprudncia e paulatinamente fossem suprindo as lacunas do Cdigo. Alis, j dizia Arcangeli com relao aos cdigos novos que sofrem sempre atrozes crticas daqueles a quem se dirigem que os cdigos geralmente no surgem muito bons, mas, pouco a pouco, com o trabalho da doutrina e da jurisprudncia, vo-se lendo o que neles no est escrito, deixando-se de ler, muitas vezes, o que nele est e, no final de certo tempo, por fora da sua utilizao, da comutao dessas lacunas, da eliminao de certos princpios da sua literalidade, o cdigo vai melhorando e, no final de certo tempo, j se considera que um bom cdigo. E mais: toda vez que se fala em mudanas, comea-se a pensar se valer ou no a pena, se no dar trabalho ter de estudar novamente o Direito Civil ou, queles que j escreveram manuais e tratados de Direito Civil, rev-los. Em suma, haver o problema de se estar diante daquilo que o homem mais teme, que de certa forma decorre do desconhecimento dos efeitos daquilo que de novo apresenta-se, principalmente em uma legislao dessa grandeza, que um Cdigo Civil a constituio da vida comum dos homens, que nos disciplina desde antes do nosso nascimento at depois de nossa morte. Procurarei dar uma viso geral das inovaes mais salientes que se apresentam na Parte Geral do hoje Projeto de Cdigo Civil, que demanda apenas a reviso, por parte da Cmara dos Deputados, das emendas que se lhe fizeram no Senado da Repblica; emendas estas que, com referncia Parte Geral, foram bastante parcimoniosas. Essas emendas se fizeram mais intensamente no terreno do Direito de Famlia, tendo em vista a verdadeira revoluo que a Constituio brasileira fez nesse campo, revoluo essa que ainda hoje no est analisada em sua profundidade e nas suas conseqncias mais profundas. O Projeto de Cdigo Civil, na sua Parte Geral, segue a estrutura do Cdigo Civil atual no que diz respeito sua diviso em trs livros: o primeiro, Das pessoas; o segundo, Dos bens; e o terceiro, Dos fatos e atos jurdicos. Com relao ao Livro Das pessoas, encontramos algumas inovaes dignas de nota: em primeiro lugar, a reformulao de alguns dispositivos concernentes ao problema da capacidade por exemplo, no art. 3, que trata dos absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, afasta-se aquele problema dos loucos de todo o gnero, que, j no comeo do sculo, dava margem s crticas que lhe dirigiam, principalmente os especialistas em Medicina, dentre os quais se situava um mdico jurista, Nina Rodrigues. Alterou-se a denominao de loucos de todo gnero para os que, por enfermidade ou deficincia mental no tiverem o necessrio discernimento para a prtica desses atos. No inciso seguinte, estabeleceu-se que, ainda que por motivo transitrio, aqueles sem condies de exprimir a sua vontade so tambm considerados absolutamente incapazes, para atender os casos em que h a paralisia total, embora temporria e, conseqentemente, para permitir que haja curatela nesses casos em que a transitoriedade no

seja absolutamente fugaz, mas se prolongue ao longo de algum tempo. Com referncia incapacidade relativa, tambm se incluiu dentro do Projeto a figura dos brios habituais, dos viciados em txicos e dos que, por deficincia mental que no retirasse o discernimento total, tenham o seu discernimento reduzido. No art. 5 diminuiu-se a idade para a obteno da capacidade de fato, de 21 para 18 anos. Nesse ponto, fui vencido talvez pela pecha que me atribuem, de renitente e conservador , mas continuo com dvidas. No desconheo que a imensa maioria das legislaes modernas abaixou o limite de idade em matria de capacidade de fato, mas tambm penso que, no momento em que o mundo mais se complica e em que as relaes jurdicas se tornam complexas, no me parece que um instituto dessa natureza seja capitis deminutio, que no visa denegrir ningum, e, portanto, considerar que quem tenha 18 anos no tem um certo discernimento; no entanto, esquecem-se aqueles que se baseiam nisso de que esse um instituto de proteo e no visa seno a tutela dos interesses daquele que lanado na vida das relaes jurdicas e pode ter o seu patrimnio e as suas relaes jurdicas sem a tutela necessria, em face da complexidade da vida jurdica moderna. A fora da existncia quase universal da tendncia de se diminuir essa idade causou no Senado da Repblica a diminuio de 21 para 18 anos e, com isso, a repercusso do problema da capacidade nupcial. Os 18 anos, que supriam essa capacidade nupcial, mas no implicavam a capacidade civil, agora se situam no mesmo plano, o que corresponde a dizer que a capacidade civil para os homens obtida com a mesma idade que a sua capacidade nupcial, ao contrrio do que ainda ocorre com as mulheres que, aos 16 anos, j podem casar, mas ainda no tm capacidade de fato, e s iro adquiri-la com o casamento, desde que haja o consentimento daqueles que a assistem. Houve, portanto, a necessidade de alterao nessa disciplina, que tem conjugao com o Direito de Famlia. O art. 7 do Projeto disciplinou a morte presumida sem ausncia, naqueles casos em que so extremamente provveis hipteses de desaparecimento em estado de perigo de vida e naqueles casos de desaparecimento em campanha e, portanto, em guerra. Tambm se abriu um captulo para os direitos da personalidade, estabelecendo-se no uma disciplina completa, mas os seus princpios fundamentais. Essa disciplina no constou do Cdigo Civil brasileiro por uma razo singela: na poca em que foi elaborado, ainda se discutia se, realmente, havia direitos subjetivos da personalidade, tendo em vista que forte corrente doutrinria considerava no ser possvel que o titular do direito subjetivo fosse ao mesmo tempo objeto desse direito, pelo fato de no se distinguirem os aspectos da personalidade e de se considerarem que esses aspectos formavam uma unidade e, portanto, tratava-se sempre da personalidade una da pessoa fsica ou natural. Trouxe-se para a Parte Geral o instituto da ausncia, tendo em vista que esse instituto deve-se situar, tecnicamente, na Parte Geral e no no Direito de Famlia, j que acarreta a morte presumida, sendo um dos aspectos gerais relativos s pessoas, razo pela qual dever ser includo no Livro das pessoas da Parte Geral. Com relao s pessoas jurdicas, manteve-se, aparentemente por incoerncia, o dispositivo que trata tambm das pessoas jurdicas de Direito Pblico, pela circunstncia realstica de que no se deveria eliminar da nossa legislao, falta de uma legislao especfica a esse respeito, princpio que, a rigor, deveria constar de uma codificao de Direito Pblico. Mas se introduziu uma inovao, que foi a do pargrafo nico do art. 41, onde se estabeleceu: Salvo disposio em contrrio, as pessoas jurdicas de Direito Pblico a que se tenha dado estrutura de Direito Privado se regem, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Cdigo. E mais: admitiu-se dentre essas pessoas jurdicas de Direito Pblico, alm da Unio, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territrios, dos Municpios e das autarquias, as demais

entidades de carter pblico criadas por lei; portanto, a possibilidade de novas figuras de pessoas jurdicas de Direito Pblico. Disciplinou-se, ao contrrio do que fez o Cdigo Civil, que considera sinnimas as expresses "sociedade" e "associao", a distino ntida entre as duas. Na Parte Geral, estabeleceu-se que os princpios gerais relativos associao, no que coubessem, aplicar-se-iam tambm aos princpios concernentes aos diferentes tipos de sociedade, os quais, no Projeto, so tratados no Livro da Parte Especial concernente ao Direito das Empresas. Distinguem-se, de um lado, as sociedades sem personalidade jurdica e, de outro, as sociedades personalizadas nas suas diferentes espcies, exceto a sociedade annima, por se entender que esta ainda deveria ser, pelas modificaes que vm sendo introduzidas com o tempo, com a legislao extravagante, em decorrncia das necessidades do comrcio, mais facilmente modificvel. Com referncia ao domiclio, houve uma falha do Cdigo Civil. Todos aqueles que estudam o domiclio civil sabem que este tem dois conceitos: o conceito geral, de que a residncia com a inteno de permanncia e aquele outro apregoando que tambm domiclio o centro de atividades habituais o que mereceu a crtica sarcstica de um dos grandes civilistas deste Pas, Eduardo Espnola, o qual afirmou que tambm seria domiclio do bbado aquele botequim em que todas as tardes se embebedasse. Criou-se, ento, a figura do domiclio profissional, quase que como um pendant com relao ao domiclio das agncias ou filiais das pessoas jurdicas, ou seja, um domiclio apenas para as relaes decorrentes da profisso. No Livro Segundo Dos bens as inovaes foram em menor nmero, tendo em vista que se trata de uma matria j bastante estratificada na Teoria Geral do Direito Privado, em face da distncia no tempo entre o Projeto e o Cdigo Civil. Assim, por exemplo, no art. 80, I, diz-se: No perdem o carter de imveis as edificaes que, separadas do solo, mas conservando sua unidade, forem removidas para outro local. Ou seja, essas casas de madeira que se retiram dos seus alicerces, pelo Cdigo Civil brasileiro, quando removidas de um local para outro ou depositadas para essa reposio, j retiradas de seus alicerces, transformar-se-iam em coisas mveis. Manteve-se a sua caracterstica de imvel e, conseqentemente, a sua disciplina de coisa imvel. Nos arts. 89 e 90 disciplinaram-se as universalidades de fato e de direito e nos arts. 92 e 93 introduziu-se, no Direito brasileiro legislado, a figura da "pertena", que se distingue, de certa forma, da figura do acessrio, que sempre segue o principal, enquanto aquela nem sempre, em decorrncia ou da vontade das partes ou at mesmo das circunstncias do prprio negcio. No Livro III as inovaes so mltiplas. Este o mais importante dos livros que integram a Parte Geral do Cdigo Civil. J na Alemanha, Zitelmann, um dos adversrios da Parte Geral, por volta de 1906, dizia que nela havia um livro que dela no poderia sair, justamente o relativo aos negcios jurdicos, tendo em vista as circunstncias de que esses negcios e os atos jurdicos que no so negcios se derramam e se espalham por todos os setores da Parte Especial do Cdigo Civil. Esse Livro III o que apresenta hoje o maior nmero de lacunas e imperfeies tcnicas, em face do aperfeioamento da Teoria Geral do Direito Privado. O Projeto partiu, desde logo, da distino entre os atos jurdicos lcitos no-negociais e os atos jurdicos lcitos negociais, dando-lhe a denominao clssica de negcio jurdico. Mas, no se esqueceu at para fins de natureza didtica e tambm de disciplina legislativa de estabelecer um artigo concernente aos atos jurdicos no-negociais, salientando que toda a disciplina do negcio jurdico no se aplica a esses atos jurdicos no-negociais, aos quais s se deve aplicar aquilo que couber aplicao deles. Essa distino situa-se, ainda hoje, num terreno um pouco movedio, no no sentido da existncia dela mesma, mas no sentido da caracterizao de classificaes, com relao aos chamados atos jurdicos no-negociais.

Recordo-me de que, no comeo dos meus estudos de Direito, ainda acadmicos, ficava perplexo ao ouvir o professor de Direito Civil dizer que o contrato de compra e venda nulo quando celebrado por um absolutamente incapaz. Pensava: ser nulo o contrato de compra e venda daquele guri de 4 ou 5 anos que pediu alguns vintns ao seu pai, foi ao bar da esquina comprar um sorvete e saiu chupando o seu picol? Por que os contratos celebrados pelos absolutamente incapazes eram nulos e este contrato de compra e venda no o era? Consideremos outro exemplo mais avanado: quando se falava no instituto da especificao ou nos direitos autorais sobre criao literria, artstica e cientfica, eu pensava: um louco poderia ser um grande escultor, um dia poderia pular o muro do vizinho, quando este l no estivesse at porque a sua loucura no chegaria ao ponto de se defrontar com a ira do outro e, tomando a pedra de mrmore que l estivesse, esculpir uma belssima esttua, porque a loucura no incompossvel com a genialidade de um escultor. E perguntava: ele no se torna proprietrio? Isso tambm no deveria acarretar, porque no deixa de ser um ato jurdico, a nulidade absoluta? Com o correr do tempo, aprofundaram-se pouco a pouco os conhecimentos com relao ao Direito Civil, o que significava uma srie de trabalhos que se elaboraram a partir dos meados do sculo passado, onde a idia era apenas aventada por homens como Savigny e, no final do sculo, pelos pandectistas que se lhe seguiram, como Regelsberger, Windscheid e outros, que j distinguiam o negcio jurdico daqueles atos que no eram negcios jurdicos, os quais alguns diziam que, s vezes, eram bastante dessemelhantes e, por vezes, bastante semelhantes a eles. Essa distino foi feita, embora de maneira ainda bastante imprecisa, pelas figuras, principalmente de Manigk, na Alemanha, e de Peter Klein, na ustria, nas primeiras dcadas deste sculo. Uma preciso maior da diferena entre atos no-negociais e negociais culminou, em matria legislativa, com o preceito constante do Cdigo Civil portugus que, ao lado da disciplina dos negcios jurdicos, tambm colocou nesse Cdigo o preceito de que aquela disciplina s se aplicava aos atos jurdicos lcitos no-negociais naquilo que coubesse. Partiu-se do princpio de que no seria possvel se estabelecer uma teoria geral e, portanto, uma disciplina de todos esses mltiplos atos que se enquadram nessa categoria genrica dos chamados atos no-negociais, que vo desde especificao, inveno de tesouro, criao literria, artstica e cientfica, em que a lei no leva em considerao a vontade, passando por aqueles outros em que a lei leva em considerao apenas a conscincia, como o caso da ocupao, em que h o apoderamento de coisa sem dono, mas no qual preciso haver pelo menos conscincia, queles outros em que se exige uma vontade qualificada, que no atua no terreno da autonomia da vontade e, conseqentemente, no pode criar efeitos jurdicos novos que no os da lei, nem modific-los, nem tampouco afast-los, ainda que parcialmente. Na figura do casamento, h um contrato que apresenta, para essa caracterizao, vrias dificuldades, porque h pelo menos a participao de uma testemunha qualificada, a autoridade celebrante, e no h autonomia de vontade, porque o ato jurdico do casamento e os efeitos dele produzidos so estritamente os legais. No h que se falar em vontade negocial, diferena do que ocorre, por exemplo, com o contrato que se denomina "pacto nupcial", onde se estabelecem as normas convencionais e, portanto, de contedo negocial entre os futuros cnjuges, permitindo-se, inclusive, a adoo de regimes de bens diferentes do regime de bem legal e diferentes at mesmo dos regimes de bens que, embora no sejam legais por serem adotados na omisso da manifestao da vontade das partes, sejam a resultante de um entrelaamento desses regimes, ou at a criao de regimes novos, desde que no violem normas de ordem pblica. Feita essa distino, no se fala no Cdigo Civil em ato jurdico genericamente; de um lado, h os negcios jurdicos e um captulo que encerra apenas um preceito para tratar desses atos jurdicos lcitos no-negociais. Com relao aos negcios jurdicos, as inovaes e os preenchimentos de lacunas so vrios. Assim, manteve-se a concepo subjetiva de negcio jurdico, no com o absolutismo do Cdigo Civil, mas litigada, em que se leva em considerao, para efeito dos defeitos do

negcio jurdico, a responsabilidade por parte daquele que declara a sua vontade e os aspectos de confiana daquele que recebe essa vontade. Com isso, permitiu-se que vcios como o do erro pelo aspecto puramente subjetivo da parte que errou no fossem admitidos, mas somente quando h a possibilidade de a parte que no erra saber ou poder saber que a outra celebrou negcio porque havia errado. Adotou-se, dessa forma, o princpio da responsabilidade de quem declara e o da confiana de quem recebe essa declarao. Disciplinaram-se a reserva mental e o silncio. Introduziu-se na Parte Geral o conceito de boaf objetiva como clusula geral para efeito de interpretao dos negcios jurdicos e na Parte Especial com relao ao direito das obrigaes, mais especificamente com os contratos. Nesse particular, o Projeto dos mais avanados que se conhece, tendo em vista a amplitude dessas clusulas gerais. Partindo-se do princpio quase bvio, mas para o qual pouca gente se atenta de que essas clusulas gerais do flexibilidade quilo que muitos alegam como crticas s codificaes que seria a sua imobilidade , e permitem, graas a uma atuao judicial que se torna possvel medida que os tempos se modificam, uma certa flexibilidade na disciplina de determinados institutos. Disciplinou-se a representao no-convencional na Parte Geral, deixando a representao convencional na parte concernente disciplina do mandato, seguindo a nossa tradio de que este necessariamente est vinculado representao. No captulo concernente representao, disciplinou-se o contrato consigo mesmo; estabeleceu-se o problema relativo extenso de poderes para efeito de responsabilidade e o conflito entre o representante e o representado; e declarou-se que a representao convencional continuava a ser disciplinada junto ao contrato de mandato. Em seguida, afastou-se um defeito tcnico do Cdigo, que trata da condio e do termo como modalidade de atos jurdicos, quando, na realidade, so autolimitaes da vontade e, conseqentemente, tm grande influncia nessa vontade negocial. Apresentaram-se algumas inovaes com relao condio, ao termo e ao prprio encargo, o qual, por fora da tradio, manteve-se junto ao tratamento da condio e do termo, embora no seja propriamente uma autolimitao da vontade. Com relao aos defeitos do negcio jurdico, as inovaes tambm foram vrias, algumas introduzidas com relao ao erro, onde se deu uma disciplina legislativa para o erro de direito. Afastou-se aquele defeito do Cdigo Civil de aludir a causa com relao ao erro, dizendo que a falsa causa apenas vicia a declarao de vontade quando expressa como razo determinante, enquanto, na realidade, tratava-se de motivo. O nosso Cdigo anticausalista, apenas admitindo a causa como causa de atribuio patrimonial para os negcios causais, os quais, no nosso Direito, ao contrrio do Direito germnico, so a regra, ao passo que os negcios abstratos so a grande exceo. Apresentam-se algumas inovaes em relao ao dolo e coao por parte de terceiro. Introduziu-se o instituto do estado de perigo e a leso com dolo de aproveitamento, no mais adotando critrios de leso objetiva, mas estabelecendo que h a necessidade de um desequilbrio inicial considervel, a cargo da apreciao judicial. Com relao invalidade dos negcios jurdicos, a simulao tornou-se causa de nulidade, seja ela inocente ou no, tendo em vista que a simulao nada mais do que uma aparncia que no traduz uma realidade. A simulao inocente pode ser simplesmente uma simulao sem a dissimulao do negcio verdadeiro e, portanto, uma mera aparncia, mas, as mais das vezes, criada com fins ilcitos, tendo em vista que essas aparncias criadas para fins lcitos so bastante raras na vida do comrcio das relaes jurdicas. A simulao que dissimula e camufla o negcio jurdico verdadeiro a mais importante apresenta no nosso sistema jurdico um problema: se levssemos risca o princpio, desde o momento em que os

simulantes no podem invocar um contra o outro a simulao, estaramos no paraso da usura, tendo em vista que o usurrio no poderia ter invalidado o negcio por simulao, j que o que recebera o emprstimo com usura tambm participara da simulao. Por essa razo, essa questo chegou at a ser muito debatida no Supremo Tribunal Federal, para se admitir que, nesse caso, reconhecia-se que aquele que fora levado a celebrar o negcio jurdico, obviamente contra a sua vontade, mas por estar necessitado, poderia, apesar de o Cdigo Civil dizer que o simulante no pode invocar simulao com relao ao outro, invoc-la contra o usurrio. Regulou-se a converso do negcio jurdico nulo no negcio jurdico lcito e, portanto, aproveitvel, afastado o vcio que acarretava a sua nulidade. Estabeleceu-se, para os casos de anulabilidade, que o prazo para o exerccio do direito de anular um negcio jurdico, semelhana do que ocorre com o casamento, no mais prazo de prescrio, mas de decadncia. Seguindo a orientao diretriz do Projeto, no s de diminuio de prazos, como tambm de um estabelecimento mais rigoroso disso, para que no fique durante muito tempo uma "espada de Dmocles" sobre a cabea daqueles que porventura tenham celebrado algum negcio jurdico defeituoso. Em seguida, o Projeto tratou dos atos ilcitos, que chamou de "atos jurdicos ilcitos", tendo em vista que a ilicitude no est antinomicamente colocada com relao ao adjetivo "jurdico", j que jurdico tudo aquilo que produz efeitos no campo do Direito, e at o crime um instituto jurdico. Disciplinou-se a figura do abuso de direito como ato ilcito, de maneira clara e tranqila. Tambm se afastou aquele defeito do Cdigo Civil que diz que o ato ilcito aquele que decorre de violao de direito ou causa prejuzo, tirando-se o "ou" e colocando-se a conjuno correta "e": (...) violao do direito e causa prejuzo. Aparentemente, uma questo de somenos importncia, mas de natureza tcnica, a merecer correo. Admitiu-se, ainda, antes da nossa Constituio, a figura do dano moral. Antes da Constituio, havia uma controvrsia muito grande entre a doutrina e a jurisprudncia; aquela considerando a existncia do dano moral no nosso Direito, e esta sendo muito renitente pelas dificuldades da caracterizao da natureza jurdica do dano moral e principalmente para a fixao do quantum dele decorrente. Em matria de inovaes do Projeto posteriormente acolhidas pela legislao, encontramos no apenas essa, mas tambm o regime legal de bens do casamento: o Projeto, antes da modificao do nosso regime, tambm adotava como regime legal o da comunho parcial de bens. Com relao prova, incluiu-se no Projeto, e depois, graas ao ento Senador Paulo Brossard, introduziu-se no Cdigo Civil o ltimo dispositivo que continuava a vigorar no Brasil decorrente ainda das Ordenaes Filipinas de 1603. Por meio de um estudo histrico, em uma discusso no Supremo Tribunal Federal, que depois completei quando fiz uma conferncia em um Congresso Internacional de Direito Notarial, ficou demonstrado todos os requisitos de escritura pblica advinham diretamente das Ordenaes Filipinas, porque em seguida havia apenas portarias, circulares e alguns decretos, mas no havia qualquer documento legislativo a respeito. O ento Senador Paulo Brossard muito me honrou no dia em que me telefonou perguntando-me se podia colocar parte de minha conferncia como justificativa dessa emenda, que foi aprovada e introduzida no Cdigo Civil brasileiro. O ponto capital de inovaes em matria de Parte Geral a distino embora reconhecendo que continua a haver controvrsia entre decadncia e prescrio, com a adoo de princpios singelos e prticos para tal. Assim, disciplinou-se, nessa Parte, o ttulo quarto, Da prescrio e da decadncia. Primeiramente, fez-se a disciplina da prescrio; adotou-se, falta de uma nomenclatura melhor, a figura da pretenso, que vem do Direito germnico. Violado o

direito, nasce para o titular a pretenso que se extingue pela prescrio dos prazos. Pelo sistema do Projeto, h direitos e poderes que do margem violao, em decorrncia da qual foi a posio doutrinria que se adotou surge esse instituto da pretenso. Surge uma pretenso material que Pontes Miranda chama de ao civil, e que ainda material porque no est no terreno processual, entre o que violou o direito e aquele que teve seu direito violado. Apenas nesse caso em que poder vir a haver necessidade da utilizao do Poder Judicirio para o efeito de essa pretenso ser satisfeita que se est diante do terreno em que ocorre a prescrio. Com relao queles poderes que so despidos de pretenso, a doutrina dos pases de lngua latina geralmente denomina direitos potestativos. O contrrio ocorre no Direito alemo, em que esses direitos so chamados de direitos formativos, onde no h pretenso justamente porque so direitos no susceptveis de violao, mas pode haver a necessidade de prazo para o exerccios deles, e mais, de prazo para o seu exerccio por via judicial, a fim de que se demonstre neles no a sua violao, mas a sua existncia para o efeito de seu exerccio, como o caso, por exemplo, da anulao de casamento e, em face do Projeto, da anulao de negcio jurdico. Nesses casos, o que ocorre a decadncia. Fez-se a disciplina: de um lado, a prescrio; de outro, a decadncia; distinguiu-se a decadncia convencional da legal; admitiu-se a renncia decadncia convencional, no, porm, decadncia legal. E mais, estabeleceu-se que, dentro do Projeto, todos os prazos de prescrio so exclusivamente aqueles que se encontram no captulo concernente prescrio, e todos os demais, quer na Parte Geral, quer na Parte Especial, e que no nesse captulo, so prazos de decadncia, alguns dos quais assim denominados; outros, com a expresso simplesmente de prazos, o que afasta qualquer dificuldade interpretativa em matria de prazos com relao ao Projeto. Com referncia prova, considerou-se que essa essencialmente se faz em juzo. Mas como tambm h a necessidade muitas vezes de prova extrajudicial, manteve-se a sua disciplina no Projeto, apresentando-se algumas inovaes nesse terreno, dentre as quais a introduo, nesse captulo, da necessidade ou importncia desse preceito, encontrado nos arts. 230 e 231: Aquele que se nega a submeter-se a exame mdico necessrio no poder aproveitar-se de sua recusa, e a recusa percia mdica ordenada pelo juiz poder suprir a prova que se pretendia obter com exame. Houve quem dissesse que no havia necessidade disso, porque bvio e ululante. No Supremo Tribunal Federal, no h muito, tivemos uma vasta discusso em habeas-corpus, em que uma juza havia determinado, debaixo de vara, a conduo de um investigando de paternidade que se recusava a extrair sangue para efeito do exame de DNA. A juza no teve dvida e disse: conduza-se, ainda que fora. Ele alegava: tenho terror e pnico at de injeo, quanto mais de tirar sangue. Depois de uma vasta discusso no Plenrio do Supremo Tribunal Federal, por 6 votos a 5, considerou-se que isso atingia um direito de personalidade dele de no querer tirar sangue, mas corria contra ele, obviamente, a presuno de que realmente fosse o pai. Moreira Alves Ministro do Supremo Tribunal Federal.