A PEDAGOGIA DE CLARA - Cópia

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A PEDAGOGIA DE CLARA Marco Bartoli Para falar da Pedagogia de Clara, é necessário antes disso deparar-se com um problema de termos, enquanto a pedagogia entendida como ciência da educação, ciência da formação da pessoa, é palavra moderna. Não que a pedagogia não existisse também antes do século XIII: Santo Agostinho, por exemplo fala dela. Mas pedagogia como nós a entendemos hoje, é ciência moderna. Por conseguinte, não se pode fazer um discurso sobre a pedagogia de Santa Clara senão em sentido lato; nem se pode atribuir a Clara um “projeto pedagógico” no sentido moderno do termo.. Aquilo que ao invés se pode fazer, é examinar alguns termos que são semelhantes ao conceito que hoje exprimimos com a palavra pedagogia, que havia no tempo de Clara, o valor, o significado, semelhante àquele que hoje vem atribuido à esta palavra. PENITÊNCIA O termo no qual refletiremos, aparentemente mais distante da “pedagogia de Clara” é o termo “penitência.” É um termo fundamental para Clara e para Francisco, que sabemos, o prefere no lugar da palavra “conversão .” Introduzindo o Testamento dirá: “ O Senhor deu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado parecia-me deveras insuportável ver leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E quando me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me convertia em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei bem pouco e abandonei o mundo.” Para Francisco, penitência é sinônimo de conversão: “começar a fazer penitência” coincide perfeitamente com o inicio da conversão. “Sair do mundo” é termo técnico com o qual na literatura hagiográfica se descreve o momento do abandono da vida secular e ingresso no mosteiro ou de qualquer modo em uma vida monástica. Experimentemos agora dar mais um passo adiante. O que era a penitência no tempo de Francisco e Clara? Porque Francisco escolheu este termo? No Novo Testamento, conversão quer dizer mudança de vida, de mentalidade, de coração. No Evangelho de São Marcos, as primeiras palavras que Jesus pronunciou foram: “Convertei-vos e crede no Evangelho, porque o Reino de Deus está próximo.”(Mc 1,15). “Metanóia” é o termo para dizer conversão, mudança. Um primeiro alargamento do significado foi quando a primeira geração cristã começo a voltar-se para os gentios. “Convertei-vos”, isto é, mudai as vossas atitudes, trocai vosso coração, porque o Reino de Deus está próximo, dito aos pagãos queria dizer: “mudai de religião, crede no anúncio do Evangelho.” Um segundo momento de mudança de significado foi quando toda a sociedade tornada cristã – no sentido que, com Constantino, o cristianismo se torna religião tolerada e, com Teodósio, religião do Estado - começou-se a batizar as crianças em vez dos adultos. Neste ponto, o que era conversão? São Jerônimo quis conservar este sentido do convite de Jesus a mudar de vida, e naquela época traduziu “metanóia”, “metanoiete” com a expressão “poenitentiam ágite”, isto é, “fazei penitência” (lá onde a moderna versão traduz como: “converte-te”; foi a tradução da Vulgata, a que ficou canônica durante toda a época medieval. Neste sentido, portanto, os dois termos “conversão” e “fazei penitência” eram, no tempo de São Francisco, absolutamente sinônimos. Para explicar melhor, necessita-se dizer

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A PEDAGOGIA DE CLARA Marco Bartoli

Para falar da Pedagogia de Clara, é necessário antes disso deparar-se com um problema de termos, enquanto a pedagogia entendida como ciência da educação, ciência da formação da pessoa, é palavra moderna. Não que a pedagogia não existisse também antes do século XIII: Santo Agostinho, por exemplo fala dela. Mas pedagogia como nós a entendemos hoje, é ciência moderna. Por conseguinte, não se pode fazer um discurso sobre a pedagogia de Santa Clara senão em sentido lato; nem se pode atribuir a Clara um “projeto pedagógico” no sentido moderno do termo.. Aquilo que ao invés se pode fazer, é examinar alguns termos que são semelhantes ao conceito que hoje exprimimos com a palavra pedagogia, que havia no tempo de Clara, o valor, o significado, semelhante àquele que hoje vem atribuido à esta palavra. PENITÊNCIA O termo no qual refletiremos, aparentemente mais distante da “pedagogia de Clara” é o termo “penitência.” É um termo fundamental para Clara e para Francisco, que sabemos, o prefere no lugar da palavra “conversão .” Introduzindo o Testamento dirá: “ O Senhor deu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência: como estivesse em pecado parecia-me deveras insuportável ver leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive misericórdia com eles. E quando me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me convertia em doçura da alma e do corpo. E depois disto demorei bem pouco e abandonei o mundo.” Para Francisco, penitência é sinônimo de conversão: “começar a fazer penitência” coincide perfeitamente com o inicio da conversão. “Sair do mundo” é termo técnico com o qual na literatura hagiográfica se descreve o momento do abandono da vida secular e ingresso no mosteiro ou de qualquer modo em uma vida monástica. Experimentemos agora dar mais um passo adiante. O que era a penitência no tempo de Francisco e Clara? Porque Francisco escolheu este termo? No Novo Testamento, conversão quer dizer mudança de vida, de mentalidade, de coração. No Evangelho de São Marcos, as primeiras palavras que Jesus pronunciou foram: “Convertei-vos e crede no Evangelho, porque o Reino de Deus está próximo.”(Mc 1,15). “Metanóia” é o termo para dizer conversão, mudança. Um primeiro alargamento do significado foi quando a primeira geração cristã começo a voltar-se para os gentios. “Convertei-vos”, isto é, mudai as vossas atitudes, trocai vosso coração, porque o Reino de Deus está próximo, dito aos pagãos queria dizer: “mudai de religião, crede no anúncio do Evangelho.” Um segundo momento de mudança de significado foi quando toda a sociedade tornada cristã – no sentido que, com Constantino, o cristianismo se torna religião tolerada e, com Teodósio, religião do Estado - começou-se a batizar as crianças em vez dos adultos. Neste ponto, o que era conversão? São Jerônimo quis conservar este sentido do convite de Jesus a mudar de vida, e naquela época traduziu “metanóia”, “metanoiete” com a expressão “poenitentiam ágite”, isto é, “fazei penitência” (lá onde a moderna versão traduz como: “converte-te”; foi a tradução da Vulgata, a que ficou canônica durante toda a época medieval. Neste sentido, portanto, os dois termos “conversão” e “fazei penitência” eram, no tempo de São Francisco, absolutamente sinônimos. Para explicar melhor, necessita-se dizer

que o termo “conversão” (convertio) é encontrado no latim medieval com dois significados: o primeiro ainda, naturalmente aquele de mudar de religião, porque, por exemplo, passavam do hebraismo ao cristianismo; o segundo, ao invés, é a entrada em religião, vida religiosa, a saída do mundo, o inicio da vida monástica. A vida de Santo Antão escrita por Santo Atanásio é o protótipo deste modelo. No momento no qual não se falava mais de conversão, para todos se tornou escolha de vida mais radical e evangélica. No Testamento, como vimos, coloca-se em relação os termos “fazer penitência “ e “sair do mundo”. O problema é que São Francisco não deixou o mundo neste sentido, jamais entrou em mosteiro, não se tornou monge ou sacerdote. No caso de São Bernardo, que antes era um senhor feudal depois mudou de vida, é evidente uma mudança de status – exatamente a conversão,- muito precisa. Para Francisco, ao invés, o discurso é um pouco mais complicado do que para os outros santos. Os biógrafos enfrentam dificuldades, porque devendo se tratar de “vida”, “conversão”, não arriscam mais a dizer quando é a conversão de São Francisco, o momento exato da mudança. Pode-se dizer que a conversão de São Francisco dura toda a vida. Possuímos aquela perícope muito bela de Francisco que depois dos Estígmas disse que quer recomeçar: “Comecemos, irmãos a servir ao Senhor, porque até agora pouco ou nada fizemos” (1 Cel 103). E queria retornar aos leprosos. Isto nos faz perceber como Francisco não pensava ter concluído o próprio caminho de conversão, antes o mantivesse um caminho aberto. Em todo o caso Francisco não usa o termo “conversão”; será Clara no seu Testamento a dizer: “Pouco tempo depois de sua conversão...” Francisco preferiu o termo “fazer penitência” que é um termo mais leigo, se assim podemos dizer; explica melhor a sua condição, que é aquela de um homem que se torna um penitente e não um monge. Também não se tem dúvida que o significado do termo é uma mudança interior derivada do encontro com o Senhor. Neste sentido, Francisco de Assis é típicamente o homem da penitência; pode-se dizer que por toda a vida, quis fazer penitência, entendendo por penitência exatamente o empenho a uma profunda renovação pessoal em vista de uma plena realização . E aqui começamos a nos aproximar do nosso caminho, sobre o qual está a PEDAGOGIA. De pedagogia, não se fala somente dos problemas da criança, mas da formação da pessoa em todas as idades, em vista de uma realização plena. Ora, não há dúvidas que a penitência é um modo no qual Francisco pensou viver esta busca pessoal. Há exegese rabínica do trecho do Gênesis que diz: “E Deus disse: façamos o homem à nossa imagem; à nossa semelhança...” Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; “macho e fêmea os criou.” (Gn 1,26-27) O rabino tinha claro de que, na Bíblia, não há nenhuma palavra a mais nem a menos se perguntava por que na primeira vez é escrito: “à imagem e semelhança” e logo depois: “à sua imagem” e respondia: porque o homem já é imagem de Deus, mas deve tornar-se sua semelhança. É bela esta idéia! A imagem é um dado ontológico, um dado constitutivo do ser do homem, mas tornar-se semelhança de Deus é fruto de uma escolha interior e de uma mudança de caminho. O QUE É ENTÃO A PENITÊNCIA PARA FRANCISCO? É um caminho que conduz à liberdade para tornar-se à semelhança de Deus, para construir a própria vida à semelhança de Deus. Possuímos aquele famosíssimo texto da Rnb, com o convite de que os irmãos possam voltar-se aos outros:

“E estas palavras de exortação e louvor, com a bênção de Deus, sempre que quiserem, a todos os homens: Temei e honrai, louvai e bendizei, agradecei e adorai ao Senhor Deus onipotente, em sua Trindade e unidade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Criador do Universo. Convertei-vos e fazei dignos frutos de penitência pois sabeis que em breve morrereis.”(Rnb 21,1-3) E no capítulo seguinte, número 22, inicia com o convite: “Amai os vossos inimigos” e depois continua: “odiemos nosso corpo com seus vícios e pecados, porque quando vivemos segundo a carne , o diabo quer privar-nos assim do amor de Nosso Senhor Jesus Cristo e da vida Eterna e consigo arrastar a todos para o inferno. Pois por nossa culpa somos asquerosos, míseros e contrários ao bem mas dispostos ao mal, porque como diz o Evangelho: “É do coração do homem que provém os maus pensamentos, adultérios, fornicações, homicídios, furtos e cobiças, maldades, fraudes, devassidão, maus olhares, falsos testemunhos, blasfêmias, orgulho, insensatez. Todas estas maldades procedem do interior e mancham o homem.” (Mc 7,21-23). Para Francisco a exortação à penitência é mesmo um convite a construir um caminho de libertação da escravidão, antes de tudo de si mesmo, porque a verdadeira escravidão é aquela do coração, a escravidão de viver só para satisfações imediatas. A sociedade em que vivemos não faz mais do que proporcionar isso. Somos todos consumistas, uns mais outros menos. No mundo ao nosso redor se repete constantemente: “tu necessitas disso ou daquilo” e “a felicidade é satisfazer todas as tuas necessidades” Demonstra-se facilmente que a felicidade própria que se busca na satisfações imediatas não rende, não conduz à liberdade porque esta felicidade não é mais do que um átimo que passa. Com a satisfação imediata de uma necessidade nasce uma segunda, e assim por diante. Vivemos numa sociedade insatisfeita, por isso triste, vitimista, problemática. Homens e mulheres não sabem ser felizes e não sabem dar felicidade porque o caminho da felicidade que vem das coisas é comumente problemático. A idéia de penitência, ao contrário, é na liberdade das necessidades, isto é, o oposto da busca das satisfações a todo o custo. Em outras palavras, a penitência é a estrada da liberdade. Francisco cita também o famoso texto da Carta de São Paulo aos Gálatas: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” ( Gl 5,1). Sobretudo o problema é o chamado à liberdade e esta para Francisco é, antes de tudo, liberdade de si mesmo.. Ora, este caminho é estritamente pedagógico: o problema da liberdade e da penitência. A liberdade de sair de si sozinha, não basta. São Paulo o disse claramente: tudo isso é para viver a caridade, porque se alguém fosse totalmente desapegado mas lhe faltasse a caridade, não serviria para nada. O desapego é uma estrada para a liberdade, é um caminho. Neste ponto se coloca um problema: Dada a escolha de um caminho de penitência como via, para chegar à liberdade, a fim de realizar a vocação de ser a semelhança de Deus além da sua imagem, qual a relação que pode ou deve haver entre a escolha pessoal e a guia espiritual, a presença ao lado de qualquer um que faça papel de guia, de sustentação, como irmãos ou irmãs maiores? Vemos claramente confrontando Francisco e Clara: Francisco no Testamento continuamente repete: O Senhor mesmo me revelou... Depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o mesmo Altíssimo me revelou que eu devia viver segundo a Forma do Santo Evangelho (Test 14). O Senhor me revelou que disséssemos esta saudação: O Senhor te dê a paz (Test 23). Para Francisco, pois, a escolha pessoal está em primeiro plano. Na sua escolha de vida de penitência, a referência é uma relação direta de toda a pessoa com o Senhor. Também para Clara a referência é evidentemente o Senhor. “Francisco, que era coluna e nossa única consolação depois de Deus,” ela teve o cuidado de sublinhar no Testamento

38; mas também é verdade que nos seus escritos não esconde, antes de tudo sublinha, de todos os modos que sua relação com o Senhor foi mediada históricamente, humanamente por Francisco. Coloquemos a mesma pergunta aos escritos de Clara de uma passagem do famoso Cap X da Regra: “a abadessa admoeste e visite suas irmãs e lhes corrija com humildade e caridade, não ordenando coisa alguma que seja contra a sua alma e a forma de nossa profissão.” Esta primeira frase é interessante porque retoma a RB de Francisco, à mesma letra que parece que aqui Clara se engana, porque disse: “A abadessa admoeste e visite suas irmãs.” Ora, visite se explica muito bem para o Ministro Franciscano que deve andar de convento em convento, mas a abadessa... onde vai visitar? É um verbo curioso, um pouco estranho! Talvez queira dizer que deve ser ela a ir às irmãs. “Corrija com humildade e caridade, não lhe ordenando nada que seja contra a sua alma ou contra a Forma de nossa Profissão”, aqui se retoma exatamente a RB de Francisco X, 2 (RSC X,2-6). Também nente trecho é retomada perfeitamente a Regra de Francisco Cap X,3-8: Mas Clara acrescenta outra palavra interessante para nós, porque explica o que para ela era particularmente importante. Ao lado da “solicitude deste mundo, detrações, murmurações” acrescenta “discórdia e divisão” Tinha presente esse perigo dentro da comunidade. Ainda acrescenta: “Sejam, ao invés solícitas de conservar sempre reciprocamente a unidade da mútua caridade, que é o vínculo da perfeição.” Esta é a tradução que em geral temos, mas em latim se diz: “mutuae dilectionis” e a dilectio é mesmo afeto. Caritas é uma palavra teológica, dilectio é uma palavra afetiva. O acento é posto sobre uma dupla realidade proposta por Francisco e retomada por Clara: de um lado o serviço de quem preside e, de outro, a obediência de quem é súdito. A linguagem é feudal: é a dama com suas damas de companhia, com suas servas... Sabemos que Clara era uma dama, no sentido feudal do termo, que mandava Pacífica e Bona em peregrinação por sua conta, a fazer as obras de caridade por ela (ProcC I,1-4). As tinha a seu próprio serviço. É muito interessante notar ainda que, quando Clara diz que as relações dentro do Mosteiro devem ser o oposto, isto é, que as súditas devem ter tanta familiaridade com a abadessa, de poder tratá-la como uma dama de companhia, disse uma coisa muito precisa que rompia com os conceitos sociais. São Damião é uma família, mas uma família “às avessas”, na qual deveria ser superintendente a dama, isto é, a abadessa, mas ao invés é a serva que o é. Estamos na mesma idéia da Regra de Vida para os Eremitérios, com Marta e Maria. No Processo, é retomado continuamente este presidir como serviço: (Proc VI,2). É uma atitude constante de Clara, este colocar-se à serviço de todas, incluindo as serviçais externas. SERVIÇO – OBEDIÊNCIA O certo é que este caminho do serviço total, (é importante sublinhar o total, da parte de quem preside), corresponde uma obediência igualmente total. “As irmãs que são súditas, lembrem-se de que renunciaram as próprias vontades por amor de Deus” renunciara a própria vontade por Deus é uma expressão muito forte. A obediência é ainda uma obediência total. Clara o insiste, muitas vezes, enquanto cuida de si mesma. No Testamento falará, por exemplo da obediência a Francisco: “Com quanta solicitude e disponibilidade e com quanta aplicação de espírito e de corpo devemos seguir os Mandamentos de Deus e de Nosso Pai Francisco porque com a ajuda divina podemos devolver a Ele multiplicados os talentos recebidos.” (Test 18) Toda a vida de Clara é obediência aos Mandamentos de Deus e de Francisco. Mas é também uma obediência “especial”: a obediência franciscana retoma a tradição monástica da renúncia à própria vontade, mas sublinha, com muita ênfase, o limite do

que não é contrário à alma e a profissão. Quer dizer, a obediência não exclui a responsabilidade pessoal. Não se deve obedecer se isto, com toda a consciência, vai contra a alma... é um argumento forte já frisado na história da Igreja, mas sublinhado de modo especial por Francisco. A obediência deve ser total – Francisco foi o primeiro a usar a imagem do cadáver (cf. LM VI,4) – na mão do superior, em qualquer coisa que peça, “contanto que não seja contra a salvação da alma e a Regra que temos professado” E é quem deve obedecer que decide. Francisco deixa um senso de responsabilidade muito grande a quem deve obedecer e isto causará uma série de problemas nas gerações sucessivas, porque os franciscanos pretenderam aplicar tal princípio na vida da Igreja. (Os Franciscanos estarão entre os primeiros a elaborarem a idéia da infalibilidade do Papa, como regra fundamental, contanto que o Papa não peça nada que vá contra a alma e contra o Evangelho). Este conteúdo sobre a obediência se vê de maneira evidente em Francisco e Clara. Clara primeiramente é obedientíssima no confronto com Francisco, mas não renuncia a discutir seriamente com ele, em alguns casos. Conhecemos muito bem três episódios de sérias “dificuldades” de relacionamento entre Francisco e Clara que não podemos ignorar. O primeiro é quando depois de sua conversão, Francisco propõe a Clara de tornar-se abadessa. A Legenda diz que Clara por humildade não queria aceitar (LSC 12). Mas a objeção parece ser mais substancial: se a ascensão ao título de abadessa queria dizer também assumir a Regra de São Bento, - como é muito provável – Clara não queria que São Damião, a sua comunidade, se tornasse como aquele Mosteiro de São Paulo das Abadessas que havia deixado três anos atrás. Não é uma questão secundária! Clara “resiste” a Francisco porque é um destes casos no qual se vai contra “a nossa profissão”, que é a profissão de pobreza, enquanto as abadessas de São Paulo não tinham certamente tanta pobreza, (antes parece que o Mosteiro era o segundo proprietário em terras depois do Bispo...) Quando Clara aceitará obedecer Francisco? Como disse ela mesma, depois que obteve do Papa Inocêncio III, o Privilégio da Pobreza, isto é, quando foi salva a intenção original de sua vocação, neste momento obedeceu. Porque a objeção não é um fato em si: se Francisco disse que ela deve presidir às outras irmãs, vai bem, e por obediência se pode também ser Superior! Mas o que é difícil para Clara é, se por obediência deve fazer uma coisa que vai contra a profissão inicial de sua vocação. Neste caso Clara diz: “Não”! Outro episódio igualmente famoso considera o problema do leito. Clara faz para si um leito de sarmentos de vide, até que adoece. Francisco lhe impõe que coloque ao menos um pouco de palha (LSC 17). Temos aqui diante de nós duas idéias de penitência. Francisco é o homem da penitência no sentido mais pleno da palavra, porque é o homem do despojamento de si mesmo, do despojamento do próprio corpo, mas não chega nunca a procurar o sofrimento. Chega a não se curar, a não dormir ou a dormir pouquíssimo, a não comer ou a comer pouquíssimo, a colocar cinza para tornar repugnante aquilo que come, mas aqui se trata da mortificação da própria gula, não do alimento.. Clara chega a fazer mal a si mesma. A diferença parece sutil, mas na realidade é profunda. Em Francisco a penitência não é nunca auto-punição, é renúncia de si mesmo, mas não fazer-se mal. Enfim, em Francisco o despojamento de si o leva à situação de privação também maior do que o problema do leito de sarmento em que Clara dormia! Mas não é o problema da gravidade da coisa mas o de fato é que Clara faz mal a si mesma. Na Legenda Perusina encontramos a perícope tomada de Fioretti, do Capítulo das Esteiras no qual Francisco descobre as argolas de ferro e os cilícios que traziam os frades e se irritou tanto. (Fior XVIII)

Francisco não quer que os frades procurem males para si! Há o episódio no qual Francisco vai submeter-se à cauterização e se volta ao “irmão fogo” para que tempere seu calor e não lhe faça muito mal (2 Cel 166): É belíssimo! Na época medieval havia a corrente espiritualista dualista – pensamos na heresia dos cátaros- que sustentavam dois princípios fundamentais: o espírito e a carne, e também dois deuses, um do bem que havia criado o bem e outro do mal que havia criado a matéria. Para os cátaros a carne é portanto pecado, é mal; chegavam a fazer uma cerimônia, considerada como um martírio que se chamava o “endurecimento”, na qual se deixavam morrer de inanição e fome. Tem qualquer semelhança com a penitência, o despojamento de si, mas com a diferença fundamental que para os cátaros queria dizer dar morte a si mesmo, ao suicídio. Para Francisco nunca! Ele não é por nada dualista, antes agradece a Deus por tudo, até pelos demônios que o ajudam a avançar (LP 92). Muitas correntes cristãs, também Ortodoxas, talvez para fazer um pouco de competição com os cátaros, introduzem, em vez da formas de penitência e mortificação que eram também auto-punitivas, chegando a praticar o jejum igual ou ainda mais severo do que o dos cátaros. Nesta prospectiva as senhoras dão demais, antes de tudo porque seu corpo – como diz Celano – na introdução da Legenda de Santa Clara, reservado por natureza “pendente” ao pecado, e só andava bem punido com um maior número de penitência (são as mesma senhoras a pensá-lo !!!), e portanto as mulheres deveriam mostrar que podiam ser santas como os homens, de serem valentes na santidade, e até faziam maior esforço de penitências, Clara, com esta história dos sarmentos sobre os quais dormia, e é em perfeita consciência que resiste a Francisco, pois está convicta que estas mortificações, são boas para a sua saúde, para sua salvação e para sua alma. E Francisco tem dificuldade ao explicar que a penitência não é aquilo que Clara pensava, enquanto exteriormente Francisco era ainda mais penitente do que ela, mas não por “penitencialismo”. A esta “obstinação penitencial” de Clara pode ser anexada à escolha de carregar um cilício. Francisco muito provavelmente nunca soube que Clara tivesse um, senão dar-lhe-ia ordem de tirá-lo, como farão tirar às irmãs quando descobrem que lhe faz mal alguma coisa (ProcC II,7), e as irmãs, como se pode notar, comportam-se neste caso exatamente como Francisco, que intervém toda a qualquer vez que há perigo à saúde de Clara. O terceiro episódio refere-se ao alimento. Clara não só praticava jejum como o previsto na Regra de Hugolino, duas vezes por semana e todos os dias durante a Quaresma, mas três vezes por semana não tomava nada (ProcC 1,8). E depois caiu doente. Francisco faz então intervir o Bispo (LSC 18) não há dúvida que se se recorre a um Bispo é porque não há outro modo de convencer e dobrar Clara: um Bispo não o interpela para nada!!! E Clara se deixa convencer à obrigação de comer meia onça de pão, só pela intervenção de Francisco e do Bispo. Estamos no mesmo clima espiritual. Clara compreende o discurso da penitência pouco a pouco. Na 3CtIn 29-41, vemos que Clara se comporta contra Inês exatamente como Francisco havia feito contra ela; é belo este caminho, este crescimento espiritual! No percurso espiritual de Clara, liberdade e obediência se entrelaçam uma com a outra, fazendo progredir rumo a uma consciência mais plena da vontade de Deus. Assim, o mesmo tipo de liberdade mostrada diante de Francisco, Clara tinha também no confronto com o Papa, como se vê na Legenda, a propósito de duas questões: o problema da pobreza e o problemas das relações ou ligação com os Menores. Nestas

duas questões, respondeu com franqueza, diremos, não pouco admirável. “E quando o Pontífice replicou: “Se temes pelo voto, nós te dispensaremos”. “Santo Padre”, ela respondeu, “de nenhum modo e para sempre desejo ser dispensada do seguimento de Jesus Cristo”. (LSC 14). Estamos num momento em que a ordem do Papa vai contra a alma e a Profissão. Clara não tem problema de consciência, e responde: “Não”. Ora, isto é muito belo, no sentido que nos dá uma idéia de obediência que não é pedir permissão para coisa nenhuma. Pedir permissão para todas as pequenas coisas pode parecer Obediência, mas na realidade esconde um espírito muito pouco obediente, é como paródia da obediência, exatamente como a procura de humilhações não é humildade, mas esconde a idéia de ser sobretudo grande e deixar-se mortificar-se pelos outros que é tudo outra coisa. Clara entendeu o sentido da obediência total e da responsabilidade igualmente total, colocando-se sempre à disposição dos outros, de Francisco e do Papa., etc. Esta é a obediência verdadeira Franciscana é aquela dada por Francisco a Frei Leão (Ver Bênção a Frei Leão) Não sabemos bem o que Frei Leão pediu, mas Francisco pensa que Frei Leão saberá ele mesmo encontrar o modo de agradar ao Senhor e de seguir suas pegadas em pobreza. A obediência é obediência ao Espírito, no coração. Obediência total, mas também de boa vontade e alegre. Portanto, a abadessa na posição de serviço, as súditas em posição de obediência, com grande liberdade e se queremos, com grande responsabilidade. A responsabilidade é em sentido profundo, a liberdade não só no fim da caminhada, mas durante o itinerário. “Escuta, filho, os preceitos do Mestre, inclina o ouvido do teu coração... para que voltes, pelo labor da obediência, à Aquele de quem te afastastes pela desídia e desobediência”, assim começa o prólogo da Regra de São Bento. Parece paradoxal, mas a fadiga da obediência é uma escola de liberdade. Francisco deixa aos seus irmãos uma responsabilidade total, uma liberdade total. Numa certa altura de sua vida, como é de notar, escolhe para si mesmo de não ter nenhum trabalho senão aquele de escrever a Regra, e também isto controlado, guiado; chega a renunciar a todo o poder na Ordem (LP 76), pensando que só o exemplo contasse mais do que toda a Ordem. Não procura nem ao menos formar para si um grupo de pessoas que continue sua obra, Francisco está convicto de que sua única função na Ordem é aquela de dar exemplo. Portanto não forma mais nenhum diretamente; a sua função é dar exemplo, que resulta na mais radical das formações, porque até que vive, os irmãos não podem fazer mais do que confrontar-se com ele. Não é renunciar a um projeto formativo, não é abandono, não é atitude renunciatória a respeito da Ordem, mas é escolher aquilo que torna mais eficaz, acreditava que o exemplo tinha uma força, mesmo se é uma força que não se dispõe sobre os outros. Também em São Damião muitas coisas foram deixadas à responsabilidade das pessoas. Vê-se isso muito bem no caso das punições, nas quais Clara usa pouquíssimas palavras. É interessante notar que nesta mesma época, as mais antigas Constituições Dominicanas são extremamente detalhadas neste ponto de vista, inclusive prevê culpa, culpa grave e culpa muito grave... É uma mentalidade oposta, que pensa em todas as circunstâncias, mesmo singulares, e todas as possibilidades de faltas. Clara, ao contrário, dá confiança. A prova mais evidente é o famosíssimo acréscimo, na Regra, que prevê que à Irmã que recebeu o hábito não seja mais lícito “sair fora do mosteiro sem sua manifesta necessidade e por uma causa útil, razoável, manifesta e provada” (RSC 3). Clara não queria por certo convidar as Irmãs a andarem fora! Tinha porém a idéia e que a abadessa tem o senso de responsabilidade suficiente para entender qual seja o motivo

“razoável, útil, manifesta e provada” para sair do mosteiro. Na Regra, Clara confia em si. Não vem impostas juridicamente as coisas, pressupõe-se que quem vem a são Damião quer viver. Não se pode mais pensar em ter fechadas as pessoas com uma Regra, é inútil escrever uma Regra e casos, como fará depois Urbano IV, que chega a especificar que em caso de incêndio se pode sair (porque antes com Gregório IX, não era fato consumado!). Clara, dizendo: “útil, razoável, manifesto e provado”, manifesta um diferente sentido de confiança e respeito do outro. Amor mútuo Depois de havermos falado da penitência e do serviço-obediência, abordaremos um terceiro aspecto: o amor mútuo. Perguntemo-nos antes de tudo: qual o instrumento que muda e converte uma pessoa? Certamente algumas “armas” evangélicas, como por exemplo: a palavra, a amizade, o afeto. Mas, enfim sempre permanece o mistério da liberdade de cada. Podemos levar uma pessoa a cumprir o exercício da ascese, mas se não brota de seu coração aquela centelha pela qual se decida crer. De outro lado, que se pode fazer para converter o outro? Provar antes de tudo que eu creio, converter-me a mim mesma, querer bem aquela pessoa, em cada caso... Mas deves permanecer diante do mistério; e isto vale para a conversão como para a pequenas conversões de cada dia. Vejamos Francisco em seus dois últimos anos de silêncio: uma interrogação no coração da Ordem! Também quando vai às Clarissas está silencioso (2Cel 207). E se é obrigado a aceitar a provocação do fato de que está silencioso! Isto é formativo! Tudo isso vale também para Clara. Sim, a palavra é importante; mas é importante sobretudo o amor mútuo, o afeto recíproco, “vínculo da perfeição”. Na Sagrada Escritura, recordamos, é “a caridade que é o vínculo da perfeição”. Ora, Clara tem um gosto particular por este afeto recíproco, por este senso de amizade espiritual. Por exemplo há uma versão da Bênção a Ermentrudis de Bruges que diz: “Sê sempre minha amiga a amiga de tua alma e de todas tuas irmãs e sê solícita em observar tudo quanto prometeste a Deus”. Aqui o discurso se alarga um pouco. Num certo sentido encontramos uma diferença entre Clara e Francisco. Já dissemos anteriormente que Francisco tinha uma idéia um pouco diferente da penitência a respeito de Clara, e que Clara entendeu um pouco por vez. Mas de um certo modo, Clara parece superar também a idéia de penitência na idéia de um “corpo mais largo”, como se não se tratasse somente do sofrimento de seu próprio corpo (que era tanto, em tantos anos de doença!): ela tem uma capacidade de sofrer com suas irmãs, de com-sofrer, à letra de conceber como um corpo alargado, um corpo mais largo. Por isso, a verdadeira penitência torna-se não somente aceitar todos os sofrimentos próprios, mas aceitar e fazer próprios os sofrimentos dos outros. Também em Francisco há uma grande capacidade de sentir, “sentir” o outro, é extraordinário seu falar no feminino especialmente na Regra: o Superior a respeito ou com relação aos súbditos deve ser como uma mãe (RnB IX,11; RB VI,8). Não é porém visto sempre em comunidade, isto é, numa comunidade de encontro humano direto: a familiaridade com o corpo de irmãos e por isso menos intensa em Francisco do que em Clara. O fato mesmo de viver por tantos anos em São Damião, torna muito mais evidente o aspecto físico do encontro com as coirmãs, criando um laço muito mais direto. E por isso não esqueçamos uma diferença tipicamente feminina, em um certo sentido ineliminável: porque seja, qualquer convento de frades assemelha-se sempre um pouco mais a uma hospedaria do que uma casa, porque os homens não são habituados a viver juntos, não

são de fazer as coisas normais da vida juntos.! Penso que quando Francisco usava o feminino entendesse também isso! Para as senhoras isso é diferente: aspecto físico quer dizer ambiente, casa, lugar. Um grupo de senhoras que vivem juntas podem fazer uma casa. Isto dá um sentido diferente. Se Francisco no final de sua vida quer ser exemplo e nada mais, para Clara não basta ser exemplo, porque raciocina com termos comunitários: “O Senhor nos colocou como modelo, exemplo e espelho...”, dirá no Testamento 19. Não é ela pessoalmente que dá o exemplo, mas junto com suas irmãs que vivem em harmonia em São Damião. É uma profunda diferença que faz com que a idéia e “corpo alargado” seja mais de Clara do que de Francisco. Clara vive todos os dias limpando as cadeiras das enfermas, beija os pés das serviçais que vão fora do mosteiro, etc. É o ser dentro a vida quotidiana que faz a diferença. Em Clara o discurso da formação é mais coletivo: o testemunho é da comunidade de São Damião toda junta. Francisco mostra uma humanidade evangélica, aceita visivelmente ser exemplo como serviço aos irmãos, não se esconde. Clara não. Até o fim se esconde, desaparece atrás de Francisco e desaparece dentro de São Damião. Pedagogia do milagre Esta reflexão sobre “corpo alargado” introduz o discurso sobre a pedagogia do milagre. Geralmente se pensa que os milagres de Santa Clara foram feitos todos com o sinal da cruz; não é verdade! Os sinais da Cruz não eram senão uma exceção. Vejamos por exemplo, a testemunha do ProcC 7,12: “A testemunha acrescentou que ela mesma, uma noite ficou muito aflita por uma grave dor de quadril... a madre se inclinou bem encima da parte afetada, cobrindo-a com um pano que tinha na cabeça. A doença desapareceu imediatamente, por completo.” Parece-me extraordinário e belíssimo este milagre! É importante notar que Celano, o biógrafo oficial, não menciona na Legenda, considerando escandaloso que uma abadessa se lance sobre o quadril de uma irmã e chegue a tirar o véu para reaquecer a parte doente. Não o considerou escândalo, porém, a Irmã relatou no Processo. É muito belo pensar neste gesto de Clara, de noite no frio de São Damião! Irmã Balvina muito aflita por uma dor no quadril (provavelmente se tratava de uma artrose ou reumatismo) se lamente. Clara faz a única coisa para uma pessoa que sofre de artrose: tenta aquecer a parte; e não havendo fogo – porque podia acontecer que de noite em São Damião, não houvesse fogo aceso, e também não havendo recipiente quente – a única coisa que pôde fazer para aquecer a parte doente e procurar tirar a dor era aquecer com o próprio corpo. Havia, pois, uma necessidade de conservar um pouco de calor, mas em São Damião não tinha nem ao menos uma coberta a mais. Então, Clara tira o véu que era longo o suficiente e o dá a Irmã Balvina para manter aquecida a parte que já havia sido aquecida. Um gesto simplíssimo, humaníssimo e muito belo! Clara faz tudo que lhe era possível humanamente, com um grande senso de liberdade. O primado é da caridade: se para tirar a dor de uma Irmã, necessita tirar o véu, que se retire o véu! Parece-me um grande senso de liberdade também não ter medo de tocar o corpo, e não ter medo da relação física. A Irmã que narra no Processo compreende bem a grande liberdade e o seu grande afeto. É constante em Clara a procura deste afeto concreto, que se põe o problema de fazer tudo humanamente possível para o bem da Irmã. A Legenda lembrou só os milagres realizados com o sinal da cruz, mas não esqueçamos que na realidade o Sinal da Cruz é sempre o último recurso, não o primeiro. Clara recorre ao Sinal da Cruz, por exemplo, no caso do menino que foi levado ao

Mosteiro e que foi visto uma única vez (ProcC II,18). Lá onde Clara não pode fazer humanamente nada, apela para a guarda da oração ao Senhor. Mas o milagre não substitui o afeto, não é invocação de um Deus “tapa-buracos”, para pedir a Deus o que nós não temos vontade de fazer ou que não queremos fazer. Ao contrário, pede-se a Deus para intervir somente depois que se experimentou tudo o que humanamente era possível ou ao menos se está procurando fazer todo o possível, mas não como alternativa. O milagre é um complemento de um afeto, de uma solicitude pessoal, não alternativa, e muito menos magia. Recordemos também o episódio de Irmã Cecília que está doente da garganta e Clara deu-lhe um pedaço de bolo em plena sexta-feira (ProcC 4,9); e ela com tanta vergonha, mas como o deu a madre, toma-o e come. Onde está o milagre? No fato de que se dá conta que a irmã não degluti mais e é fraca e precisa de comer: a saúde é mais importante que o jejum. A liberdade de Clara, o seu cuidado faz o milagre. O que não exclui que depois disto sejam verdadeiros milagres... No discurso sobre a Pedagogia de Clara retorna também a repreensão, que Clara chama de admoestações: exortação é aquela que se destina mais genericamente a todas, a admoestação, ao invés é muito específica lembrando aquela passagem que conheceis... (RSC IX,1-6). Clara não está ausente, não renuncia a corrigir, com as disposições que se encontram, em parte, também na Regra de São Francisco: assim as duas indicações de afastar a ira e de não guardar ressentimento pessoal. Parece que no Processo, o comissário encarregado dos questionamentos, insistem muito por saber como Clara corrigia as Irmãs; e as Irmãs falam muito da correção da Madre. Por exemplo, a Irmã Inês de Opórtulo de Bernardo de Assis: (ProcC X,5). Clara intervém em segredo para não humilhar a irmã. O objetivo não é a humilhação do outro, não é colhê-lo em falta no sentido de criar-lhe situação de embaraço. Também quanto se refere à admoestação, retorna o problema do milagre. Um dos milagres mais famosos, lembrado também na Legenda, mas numa situação muito estranha é aquele de Irmã Andréia com suas escrófulas (ProcC III,6). O autor da Legenda põe este milagre no final de toda a narrativa da vida de Clara (LSC 59), sabendo que efetivamente se encontra frente a uma tentativa de suicídio: uma coisa muito grave, pesada, numa situação muito difícil. Mas aquilo que toca é a atitude de Clara. É noite, Clara no dormitório com a Irmã. Porém Clara não dorme! Provavelmente devemos imaginar que Clara, já desde a primeira hora da tarde percebera que esta Irmã estava mal psicologicamente, sofria muito... e ainda podemos imaginar Clara, também ela doente, sem poder mover-se, acordada em oração pela Irmã. Quando falo de “corpo alargado”, entendo mesmo isso, a capacidade de sentir a dor do outro, também sem poder vê-lo. Assim acontece quando há esta solicitude... O que eu mais gosto neste relatório do milagre, é mesmo o fato de que não se apresenta como milagre. Ainda uma vez, Clara não faz o sinal da Cruz, mas manda uma Irmã aquecer um ovo, que provavelmente era a única coisa que Irmã Andréia podia deglutir naquela situação, porque lhe fechava a garganta. Clara pensou naquilo que poderia fazer bem a ela. Não há nada de milagroso, num certo sentido. A coisa verdadeiramente milagrosa é o fato de Clara ter um amor assim tão grande pela Irmã, que estava acordada e rezar por ela. É isto afinal, o verdadeiro milagre. O afeto de Clara que faz o milagre, tanto que Irmã Andréia finalmente confessará o seu pecado. Como por Irmã Balvina, o afeto de uma abadessa que renuncia à própria dignidade da abadessa para aquecer a parte doente, fazendo desaparecer a dor (e certamente tem um efeito analgésico imediato no sentir assim benquista!), assim, entretanto, penso que uma

irmã desesperada, que não sabe como resistir a dor, e vê a madre que, mesmo doente, está assim atenta, pensa nela, reza por ela de noite, lhe manda um ovo... aquela Irmã se recolhe e se envergonha da sua desesperação, porque o desespero é um pecado. Pedagogia do milagre, mas são quase todos milagres “caseiros”, a bondade: com ovinho, com um véu... só por um sinal, o sinal da cruz!!! E ao lermos, percebamos sempre que, por detrás disso tudo, está a capacidade de Clara de fazer deles, delicadíssimas repreensões. Um dos mais famosos milagres de Clara, por exemplo, é certamente aquele do óleo, que releremos na versão dada pela primeira testemunha do Processo, Irmã Pacífica de Guelfúcio: ProcC I,15. Não se trata de um óleo qualquer: em São Damião o óleo servia para a iluminação. A primeira esmola de Francisco era para o óleo da lâmpada do Crucifixo de São Damião (LTS VII,24) e em São Damião se conservava particular veneração pelo Crucifixo e pela lâmpada em frente dele. Era uma coisa importante. Havemos de crer: mas não devia pensar Frei Bentevenga no óleo para a lâmpada, não devia perceber ele que havia terminado? Se não percebe, Clara o chama. E o frei o que faz? Faz aquilo que fazem os Frades e todos nós, quando não queremos obedecer: “Sim, daqui a um pouco, quando tenho tempo, no entanto, preparemo-nos...” Há um modo de não dizer que não. A Obediência, ou é pronta ou não é obediência. O frade não entendeu que Clara lhe estava dizendo uma coisa importante. Clara coloca o vaso e o vaso se enche. Imagino Clara que relata o episódio às outras Irmãs e diz: “Frei Bentevenga não pensou. O Senhor pensou...!” Como pensou o Senhor: se mandando alguém a encher o vaso; se passando por ali e vendo que estava vazio e pensou... não tem importância! O milagre extraordinário é que lá onde o homem não pensou, Deus pensou! Mas o milagre é também uma repreensão.. Se queremos e é a mesma repreensão do episódio da pregação de Francisco aos pássaros. Se lemos a primeira versão do relato, é claríssimo que Francisco prega, mas as pessoas não querem acolher, então ele se afasta e se encontra no meio de um bando de pássaros que não fogem. E Francisco delicadamente repreende os habitantes da cidade, acusando a si mesmo de haver perdido o tempo a pregar aos homens, quando são aquelas pobres criaturas de Deus que estão ouvindo mais. É claro que é uma repreensão, e como dizer, para quem quer entender, que os animais são melhores que os homens! Assim também, isto de Clara é uma delicadíssima repreensão: “Bentevenga, não te preocupaste, se não o quis fazer devido à má vontade, se devia fazê-lo mais tarde não fez, tanto pois pensou o Senhor no óleo para sua lâmpada. Não sei se Frei Bentevenga havia entendido, mas certamente entenderam as Irmãs. Um outro exemplo análogo é o famoso milagre dos pães: (ProcC VI,16): “Também disse que um dia as Irmãs só tinham meio pão, pois a outra metade tinha sido mandada aos frades que estava ali fora. A senhora mandou à testemunha que cortasse cinqüenta fatias e as levasse para as Irmãs, que tinham ido para a mesa. Então a testemunha disse a madona Clara: “Para tirar cinqüenta fatias disto seria necessário aquele milagre do Senhor, dos cinco pães e dois peixes”. Mas a senhora respondeu: “Vá fazer o que lhe disse”. E o Senhor multiplicou aquele pão de modo que rendeu cinqüenta fatias boas e grandes, como Santa Clara tinha mandado. A primeira consideração sobre esta perícope refere-se antes de tudo ao modo como Clara fazia a divisão: havia só um pão, e metade era suficiente para os 4 frades e metade para as 50 irmãs. Mas aquilo que marca é pois como a Irmã se permitisse a responder a Clara! Também neste caso não se trata de um milagre no sentido do qual poderíamos esperar: o verdadeiro milagre é que 50 irmãs pudessem viver em uma condição de penúria tal, que comer aquilo que chegava, dia após dia, vivendo de esmola. Se tinha o que comer se comia; se não tinha, se estava contente igualmente. O verdadeiro milagre é

como, em condições humanamente difíceis, não seja gerada uma revolta. Reinava uma harmonia, a concórdia na comunidade em torno de Clara. “Vai, faze como te digo”, é uma das respostas mais secas que Clara dá. Também neste caso o problema refere-se à obediência. É a obediência que faz o milagre, não só o amor. Recordemos na vida de São Bento aquele famoso fato que se narra em São Gregório Magno, no segundo livro dos Diálogos: Mauro, o mais antigo discípulo de Bento e Plácido, o mais jovem. Estando no lago de Subiaco, num certo momento Plácido cai na água e o homem de Deus desde a sua cela percebe imediatamente a queda. “Vai, tira-o”, ordena ao outro discípulo; e Mauro, recebida a bênção, não pensa duas vezes, desce do mosteiro, começa a correr sem dar-se conta que a terra havia acabado e iniciada a água e continua a correr... chega perto de Plácido, caminhando sobre a água, o segura, o leva para fora e então somente quando retorna de volta se dá conta de haver caminhado sobre a água e de haver tirado fora o Plácido. Estupefato pelo milagre extraordinário, volta a Bento, que atribui o prodígio não aos próprios, mas à obediência que faz milagre. Um outro milagre famoso de Clara é aquele da gata, também se não é tão citado, porque é outro milagre que Tomás de Celano não quis introduzir na sua biografia sobre Clara. (ProcC IX,8): A testemunha disse também que uma vez madona Clara não conseguia levantar-se da cama por estar doente. Pediu que lhe levasse uma certa toalhinha, mas, não havendo quem a levasse, uma gatinha que havia no mosteiro começou a puxar e arrastar para levá-la como podia. Então a senhora disse: “Bobinha, você não sabe carregar; por que a está arrastando no chão?”. Então a gata, como se tivesse entendido, pôs-se a enrolar a toalha para que não encostasse no chão. Interrogada como sabia disso, respondeu que a predita senhora tinha-o contado, ela mesma. Podemos fazer mil considerações sobre o porquê que este milagre não foi inserido na Legenda, mas o que interessa é que Clara mesma que o conta à Irmã Francisca de Messer Capitâneo de Col de Mezzo, que depôs no Processo. Devemos pensar que Clara, a Madre doente, ao leito, que desejava uma pequena toalha para poder trabalhar, como fazia todos os dias, e não havia ninguém que ouvisse a sua voz! Não é certamente belo que no mosteiro não houvesse ninguém que ouvisse a voz da Madre, doente que pedia só para trabalhar!!! Quem a ouve? A gata! E esta gata começa a trazer-lhe o trabalho e o arrasta por terra. E quando Clara diz: “Tola”, essa se esforça por erguê-la... Não é uma repreensão, uma delicadíssima repreensão de Clara, isto? Mesmo para Irmã Francisca, que bem mais do que a gata devia estar atenta à escutar a voz da madre. Obediência é prontidão a ouvir a vontade do outro, antes mesmo que o outro fale. É uma repreensão esplêndida, porque o problema principal da repreensão, sobretudo quando cuida de si mesmo, é fazer compreender que não somos presas de ressentimentos. Assim como Clara é a vítima do erro da Irmã, qualquer repreensão haveria soado como uma mágoa como sinal de um ressentimento pessoal; mas apresentando assim as coisas, como motivo não de ressentimento, porque o trabalho ela o teve assim mesmo, mas como sementeira de alegria. É claro que a repreensão é para o bem da Irmã. Livre totalmente do ressentimento, Clara sente o dever de explicar à Irmã que é bom permanecer atenta à escuta das Irmãs doentes. A repreensão tem como finalidade a edificação do outro, não a afirmação de uma norma abstrata, ou pior, reivindicação de um direito falho.

E Irmã Francisca se recorda da palavra de Clara, que lhe fez entender que ela, Francisca, era mais dura que a gata, e o testemunha no Processo como uma coisa importante que lhe disse a madre. Eis a pedagogia do milagre! E chegamos ao último milagre, mais famoso (ProcC III,30): Este testemunho, também sem considerar o modo com o qual foi depois transformado na Legenda, se apresenta uma situação delicada: estamos no último Natal de Clara. E Clara está enferma e agonizante. Sabemos que o Natal era a festa especial em São Damião, especial para São Francisco, especial para Clara. E nesta festa tão especial, tão importante, as Irmãs, à noite, deixam só a Madre! Certamente, que são as matinas, mas a caridade deve ter a primazia, sempre. Durante toda a vida, de 42 anos Clara lhes estava ensinando o que é a caridade. E o resultado é isto? É um pouco decepcionante, deixa um amargo na boca... É Clara mesma que conta o episódio às irmãs: mas o que ela conta? Que foi abandonada? Não! Conta que seguiu o Ofício, e não aquele das Irmãs de São Damião, mas aquele dos frades na Basílica de São Francisco, com todos os órgãos e responsórios. Eis uma repreensão belíssima! Clara diz a elas que não era boa ação deixar sozinha a madre doente e irem-se todas para o coro para Matinas, o disse, mas como oração que ela dirige a Deus. “Ó Senhor Deus, eis que estou só neste lugar.” Clara não está sozinha, Deus está com ela.! Não é uma mágoa pessoal, porque reconhece que não recebeu nenhum prejuízo; o que lhe dói é a falta de caridade, de sensibilidade nas coirmãs que se foram todas. Eis uma repreensão, uma admoestação de uma fina pedagogia de Clara: a repreensão é falar de Deus, é recordar a sua misericórdia e exortar a imitá-la. Entende quem quer entender, quem decide a mudar a si mesmo; os outros vêem só o extraordinário, não o milagre. É importante sublinhar que também neste caso, Clara não se impõe. Podia dizer a uma irmã que ficasse com ela, era a abadessa. Mas não. Não se impõe, porque não quer forçar ninguém, nem mesmo ao bem! Uma atitude de pleno respeito, mas nem por isso renunciatória. Clara não renuncia a denunciar o mal, não diz que tudo vai bem, mas admoesta, exorta, é uma presença verdadeira no meio de suas irmãs. Mas não impõe o bem. É um equilíbrio raríssimo e precioso: “A caridade não falta ao respeito, não busca seus próprios interesses, não se ira, não tem em conta o mal recebido. (1Cor 13,5). Marco Bartoli Revista “Forma sororum”, nº. 5-6, 1998; nº 1, 1999. Tradução: Madre Maria Francisca, OSC Mosteiro de São Damião Porto Alegre-RS