A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE...

115
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO DA AIDS CONSTRUÍDOS PELA MÍDIA IMPRESSA NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU. SÃO PAULO 2008

Transcript of A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE...

Page 1: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA

A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO DA AIDS CONSTRUÍDOS PELA MÍDIA

IMPRESSA NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.

SÃO PAULO 2008

Page 2: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA

A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO DA AIDS CRIADOS PELA MÍDIA IMPRESSA

NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ignês Carlos Magno.

SÃO PAULO 2008

Page 3: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

MARA LIGIA DINELLI GAMBÔA

A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO DA AIDS CRIADOS PELA MÍDIA IMPRESSA

NOS FILMES CAZUZA E CARANDIRU.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob orientação da Profa. Dra. Maria Ignês Carlos Magno.

Aprovado em ___/___/____

Profa. Dra. Maria Ignês Carlos Magno

Profa. Dra. Rosana de Lima Soares

Prof. Dr. Vicente Gosciola

Page 4: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

DEDICATÓRIA

Para Celso Augusto Gambôa

Page 5: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

AGRADECIMENTOS

Ao meu marido, Celso, pelo amor, compreensão, apoio e confiança.

Ao Programa de Mestrado em Comunicação Contemporânea da UAM, pela rica convivência com mestres e colegas.

A Marcos Aleksander Brandão, pela gentil e solícita atenção.

Ao amigo Eddie Louis Jacob, pelas longas, inúmeras e elucidativas conversas e pela compreensão da espera.

À amiga Victoria Daniela Bousso, pela única e breve conversa, igualmente elucidativa.

À Profa. Dra. Rosana de Lima Soares e ao Prof. Dr. Vicente Gosciola, que na etapa de qualificação contribuíram para o

aprimoramento desta pesquisa.

À Marilda Perez Viana, pelas leituras e tradução do resumo.

E para todos os demais que acreditaram em mim.

Page 6: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

À Profa.Dra. Maria Ignês Carlos Magno, por ter ido além dos limites da orientação e pelo incentivo e estímulo para

que eu continue na vida acadêmica.

Page 7: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

HOMENAGEM

Ao Prof. Dr. Antonio Fausto Neto que, embora ainda que não me conheça, foi minha fonte de inspiração

Page 8: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

Resumo:

A AIDS, como qualquer fenômeno social, tornou-se visível e obteve face

própria, a partir do momento em que as práticas midiáticas revelaram-na ao

público. Os meios de comunicação massivos (inclusive o cinema e, sobretudo a

mídia impressa), não só auxiliaram na visibilidade da AIDS e na construção dos

seus efeitos de sentido, como também participaram da construção das

representações sociais desse fenômeno. No entanto, devido à urgência em se

comunicar sobre a AIDS, houve a elaboração do conhecimento comum. Esse

conhecimento foi produzido pela sociedade, pela opinião pública e pelas mídias

e aconteceu paralelamente com a decodificação médica. Daí talvez tenha

originado as representações apoiadas em idéias estereotipadas. No cinema a

AIDS influenciou e continua influenciando diversas produções

cinematográficas. Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande

destaque na mídia.

Pressupondo-se que, como qualquer outra produção simbólica, os filmes são

máquinas geradoras de significados. Considerando-se também que por causa

dessa polissemia um filme pode ser lido em contextos distintos do original, o

presente estudo tem como objetivo discutir e verificar a permanência e a

manutenção dos efeitos de sentido da AIDS, que foram construídos pela mídia

impressa, nos filmes Cazuza e Carandiru.

Para isso, abordamos o cinema como uma prática social para

compreendermos a sua capacidade de gerar significados dentro de uma

determinada cultura e elucidamos ao leitor sobre a retomada do cinema

brasileiro na década de 90 e o seu papel na reflexão dos assuntos

contemporâneos que estão tão enraizados no imaginário nacional.

Considerando que um deles é a AIDS, fazemos um breve histórico sobre ela no

Brasil e no mundo trazendo os dados da epidemia para a atualidade;

estudamos as representações sociais da AIDS para elucidar ao leitor sobre

como a doença tem sido representada nos diversos segmentos sociais;

desenvolvemos uma reflexão teórica a respeito dos efeitos de sentido;

abordamos as estratégias de produção e de efeitos de sentido gerados pela

mídia impressa; e, finalmente, propomos discutir, analisar ou verificar a

Page 9: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

permanência, a transformação e a manutenção dos efeitos de sentido da AIDS

criados pela mídia impressa nos filmes Cazuza e Carandiru e como aconteceu

a aparição desses efeitos de sentido em cada um dos filmes.

Palavras-chave: AIDS; discurso; efeitos de sentido; mídia impressa; cinema

nacional; filmes Carandiru e Cazuza.

Page 10: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

ABSTRACT

As any social phenomenon, the AIDS had its own feature visible when the

massive media revealed it to the public. This includes the cinema, but mainly

the press that has not only helped with the visibility of the AIDS and in the

building of its sense of effect, as well as taking part in the building of the

representation of these social phenomenon. Because of the necessity in

communicating about the AIDS, the society, the public opinion and the media

produced a common knowledge between them. This happened at the same

time as the medicine was decoding the AIDS. It was probably where the

representations based on stereotyped ideas started. Concerning the cinema,

some productions were AIDS influenced. All these films related to the AIDS

became popular with the media.

If we consider that films, as any other symbolic production generate meanings.

Considering that because of these differences in word meanings, a film can be

read in different context from its original one, the aim of this essay is to discuss

and check the stay and keeping of the sense of effect, caused by the AIDS but

built by the media, in the films Cazuza and Carandiru.

To do this we considered the cinema as a social activity, so that we could

understand its capability of generating meanings within a certain culture and we

clarify to the reader about the re-start of the Brazilian cinema in the 1990´s and

its contribution to the reflection about contemporary subjects that are deeply

inside the national imagination. Considering that the AIDS is one of them, we

made a brief story about it in Brazil and round the world. We showed

information about the AIDS up to these days. We studied the social

representation about the AIDS to clarify to the reader about how the disease

has been represented in different social classes. We developed a theoretical

reflection about the sense of effects. We mentioned the strategies for producing

sense of effects generated by the media press and finally, we propose to

discuss, analyse or verify the staying, the transformation and the keeping of the

sense of effects cause by the AIDS. They were created by the press media

with the films Cazuza and Carandiru and how these senses of effects has

appeared in each film.

Page 11: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

Key Words: AIDS; Speech; Sense of Effects; Press Media; National Cinema;

The films Cazuza and Carandiru.

Page 12: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

“É preciso deter uma epidemia que atinge a todos nós,

pois seu impacto não se resume à dimensão biológica:

vai além ao colocar-nos, frente a frente com questões sociais e

comportamentais, como o preconceito, o estigma e o abandono”.

José Gomes Temporão Ministro de Saúde

Relatório UNAIDS – 2007/2008

Page 13: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

13

SUMÁRIO

Page 14: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

14

SUMÁRIO

A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO DA AIDS CRIADOS PELA MÍDIA IMPRESSA NOS FILMES CAZUZA

E CARANDIRU.

INTRODUÇÃO [17] CAPÍTULO 1 – A IMERSÃO SOCIAL DO CINEMA [21] 1.1 Os estudos culturais: política e ideologia [21] 1.2 Ideologia e discriminação [24] 1.3 O cinema na agenda social de um país [26] 1.4 O renascimento do cinema brasileiro [28] CAPÍTULO 2 – HISTORICIZANDO A AIDS [35] 2.1 O surgimento de uma nova doença [35] 2.2 O relatório mundial de 2007: um panorama atual [36] 2.2.1 A visão global da AIDS [37] 2.2.2 Os números da AIDS no Brasil [40] CAPÍTULO 3 – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA AIDS [44] CAPÍTULO 4 – EFEITOS DE SENTIDO UMA REFLEXÃO TEÓRICA [57] 4.1 O surgimento da Análise do Discurso [57] 4.2 Os estudos da AD no Brasil [59]

4.2.1 A Construção Social dos Sentidos [59] 4.2.2 O sentido e a memória discursiva [63]

4.3 As enunciações discursivas na construção dos sentidos [65] 4.4 Memória e produção de sentido [64] 4.5 Os efeitos de sentido da AIDS na mídia impressa [68] 4.5.1 A construção da morte [71] 4.5.2 A AIDS e a construção na mídia impressa [75] CAPÍTULO 5 – A AIDS no cinema: Os filmes Cazuza e Carandiru – duas abordagens para o mesmo problema. [81] 5.1 Cazuza - um objeto a parte [81] 5.2 Carandiru - uma outra história [86] CONCLUSÃO [94]

Page 15: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

15

REFERÊNCIAS [97] ANEXOS [102]

Page 16: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

16

INTRODUÇÃO

Page 17: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

17

INTRODUÇÃO

Nos quase 30 anos desde o descobrimento do vírus HIV como o causador da

AIDS, a doença tomou corpo no tecido social e não só tornou-se um fenômeno

de ordem biológica como também um problema social e discursivo. Qualquer

coisa que fosse referente à AIDS ganhava espaço nos jornais, nas rádios e na

televisão. Desta forma a AIDS tornou-se uma doença da mídia.

Como qualquer novo fenômeno social a AIDS tornou-se visível quando foi

revelada ao público, por meio das práticas midiáticas – as mídias não só lhe

conferiu visibilidade como também auxiliou na construção dos seus efeitos de

sentido. A mídia disseminou e tornou a AIDS comum e inteligível.

Entretanto, não foi só a mídia a responsável por noticiar seus primeiros

impactos. Outros meios de comunicação massivos começaram a falar da

doença: livros, peças de teatro, movimentos culturais e cinema.

É verdade que, devido à urgência de se comunicar a respeito da AIDS, a

elaboração do conhecimento comum produzido pela sociedade, pela opinião

pública e pelas mídias, aconteceu paralelamente à codificação médica, dando

origem, talvez, às representações apoiadas em idéias marginalizadas,

excludentes e discriminatórias.

A construção dos efeitos de sentido da AIDS passa por diferentes falas que

acontecem em espaço público. Cada fala é construída de acordo com as

próprias regras e estratégias discursivas de cada instituição com poder de fala.

Desta forma, temos a fala da medicina que procura diagnosticar e buscar

alternativas para o tratamento clínico; temos a fala da indústria farmacêutica,

ofertando medicamentos e terapias; a fala da administração pública que cria

mecanismos de controle e prevenção; a fala das instituições religiosas,

opinando sobre a ação de suas vítimas e não vítimas; a fala dos pacientes que,

além de sofrerem com as doenças desencadeadas pelo HIV, também sofrem

com a discriminação: do preconceito e da exclusão. Assim como sofrem com a

fala das mídias que, ao dar vozes a essas tantas falas, o faz em meio às

Page 18: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

18

transações com outras situações e com outros regimes de falas das suas

próprias regras privadas.

Em meio a essas tantas falas as mídias assumem um papel estratégico, não só

no sentido de ofertar espaço para que essas falas possam se manifestar,

como também em auxiliar na construção de um código comum para que a

AIDS possa ser entendida por todos. É a polifonia dos discursos.

A divulgação de que pessoas famosas, no Brasil e no mundo, tinham assumido

que eram portadores do vírus HIV, contribuiu para a conscientização da

população em geral, de que a doença não discrimina raça, cor, sexo,

condições sociais e econômicas e nacionalidade. Qualquer um,

independentemente da sua condição social pode contrair a doença: cantores,

desportistas, artistas, médicos, o filho do vizinho, o colega do escritório, a

pessoa mais perto de você.

No Brasil, tanto o cantor Cazuza (que foi o primeiro artista a assumir

publicamente que estava com a doença) quanto o cartunista Encheu (que era

hemofílico por ter sido contaminado por transfusões em Bancos de Sangue),

tiveram um papel muito importante como símbolo da luta contra a doença.

A AIDS continua, sem dúvida, sendo um tema de grande impacto nas artes e

na cultura de diversos povos. No cinema a AIDS influenciou e influencia

diversas produções cinematográficas.

Assim sendo, propomos discutir nesse trabalho e dissertação, como os efeitos

de sentido da AIDS, construídos pela mídia impressa, foram narrados nos

filmes Cazuza e Carandiru e se esses efeitos de sentido se mantêm ou são

modificados.

Julgamos que esse trabalho tenha relevância para a área da comunicação

massiva, visto que analisamos um movimento que não se fecha

exclusivamente na área do cinema e conectamos suas questões específicas ao

contexto social. Ele aborda o diálogo entre a mídia impressa e o cinema, no

que se refere à construção dos efeitos de sentido sobre um determinado

Page 19: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

19

assunto e promove o deslocamento das obras analisadas, incluindo-as em

contextos distintos dos originais.

A proposta da abordagem estratégica desse estudo segue o seguinte roteiro:

no primeiro capítulo abordamos o cinema como uma prática social e

elucidamos ao leitor a “retomada” do cinema brasileiro na década de 90; no

segundo capítulo fizemos um breve histórico sobre a AIDS no Brasil e no

mundo; no terceiro capítulo estudamos as representações sociais da AIDS; no

quarto capítulo desenvolvemos uma reflexão teórica a respeito dos efeitos de

sentido e abordamos as estratégias de produção e de efeitos de sentido

gerados pela mídia impressa; finalmente, no quinto e último capítulo

propusemos discutir, analisar ou verificar a permanência, a transformação e a

manutenção dos efeitos de sentido da AIDS, que foram criados pela mídia

impressa através dos filmes Cazuza e Carandiru e como surgiram esses efeitos

de sentido em cada um deles.

Assim sendo, a presente pesquisa corresponde às exigências de originalidade

do tema, densidade em seu desenvolvimento e deslocamento em sua

conclusão.

Page 20: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

20

CAPÍTULO1

Page 21: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

21

O cinema ainda é capaz de nos mostrar a verdade (eu me sinto mais confortável dizendo “uma” verdade). Por isso o cinema é tão urgente hoje, e é por isso que cineastas têm

uma responsabilidade inteiramente nova. É como se todas as outras mídias, especialmente a TV, tivessem desistido

de mostrar o mundo sem preconceitos.

WIM WENDERS (18/08/2008 em entrevista à Folha de S.Paulo).

CAPÍTULO 1:

O objetivo desse capítulo é o de compreendermos a capacidade do cinema em

gerar significados dentro de uma determina da cultura, para isso abordaremos

o cinema como uma prática social. Temos também como objetivo elucidar ao

leitor a retomada do cinema brasileiro na década de 90 e o seu papel na

reflexão sobre os assuntos contemporâneos que estão tão enraizados no

imaginário nacional, dentre eles a AIDS. Nota-se que a retomada do cinema

nacional aconteceu, de certa forma, uma década depois do descobrimento da

AIDS e no auge da pandemia.

1. A imersão social do cinema

1.1 Os estudos culturais: política e ideologia

Os estudos culturais são considerados um campo em processo de construção

e, por isto está sujeito a intervenções que são capazes de criar novas

perspectivas e análises.

Desta forma, os estudos culturais sofrem influências de novos grupos, sendo

que nos últimos anos, tem-se evidenciado as teorias feministas e multiculturais

conforme a raça, etnia, nacionalidade, subalternidade e preferência sexual

que, em seu conjunto, expressam as teorias de resistência e críticas à

opressão.

Para Douglas Kelper (2001) esses grupos trouxeram contribuições importantes

aos estudos culturais, visto que suas teorias estão enraizadas nas lutas dos

Page 22: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

22

oprimidos. Esse fato amplia não só os próprios estudos culturais, como

também expandem o conceito sobre a crítica à ideologia – com a inclusão de

dimensões de raça, sexo, sexualidade, etnia e classe.

No que se refere a este ponto, as formas da cultura da mídia tornaram-se

extremamente políticas e ideológicas, por isto, para aqueles que desejam saber

como ela incorpora posições políticas e exerce efeitos políticos, é preciso

aprender a ler a cultura da mídia politicamente. Para Kellner:

Ler politicamente a cultura também significa ver como as produções culturais da mídia reproduzem as lutas sociais existentes em suas imagens, seus espetáculos e sua narrativa. (KELLNER, 2001:76).

Em sua obra, conjunta com Michel Ryan, intitulada Câmera Política: The

Politics and Ideology of Contemporary Hollywood Film de 1988, os

autores indicaram como é que o estilo de vida e as lutas diárias, assim como o

mundo das lutas sociais e políticas, se expressaram no cinema popular. Eles

apontaram como alguns dos filmes e dos gêneros mais populares de

Hollywood, no período de 1960 a 1980, “transcodificaram” discursos sociais e

políticos opostos e representaram posições políticas específicas. Eles tomaram

como base, os debates sobre a Guerra do Vietnã, bem como outras questões

que preocupavam a sociedade americana daquela época.

Assim, explicou-nos Kellner (2001) que a cultura da mídia tem sido um campo

de batalha, no qual alguns grupos sociais assumem posições liberais ou

radicais, e outros assumem posições conservadoras. Todavia suas produções

refletem, automaticamente, nas suas posições. Da mesma forma que alguns

textos da cultura da mídia assumiram posições e representações progressistas

sobre assuntos como: sexo, preferência sexual, raça ou etnia, enquanto que

outros, ao contrário, expressam posições reacionárias. E Kellner exemplificou:

...alguns filmes sobre os anos 1960 apresentavam discursos ambientalistas e defendiam posições da contracultura daqueles (por exemplo, Vietnam: The Year of the Pig), enquanto outros como Os boinas-verdes (The Green Berets, 1967)

Page 23: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

23

representavam positivamente a intervenção americana no Vietnã e atacavam a contracultura... (Kellner, 2001:76/77).

O marxismo clássico de Marx e Engels caracterizava a ideologia como as

idéias da classe dominante que predominaram em determinada época

histórica. Para eles a classe dominante lutava por idéias e interesses

particulares, porém sob o disfarce de lutarem pelos interesses gerais. Desta

forma, justificavam ou encobriam o domínio de classe, servindo aos seus

interesses que era de dominá-las. Suas idéias tendiam a dar ênfase à primazia

da economia e da política e nenhuma atenção à cultura e à ideologia.

Por volta de 1920 surgiram novos pensadores que ressaltaram a importância

da cultura e da ideologia, assim como outras escolas e outras versões do

marxismo ocidental também evidenciaram a crítica à ideologia como importante

elemento à crítica da dominação. O conceito de ideologia foi o tema central

para os estudos culturais britânicos, tanto no que se refere à cultura quanto à

sociedade.

No entanto, estes conceitos ainda reduziam a ideologia à defesa de interesses

de classe e, dentro desta concepção, ela se restringe ao conjunto de idéias que

promovem os interesses econômicos da classe capitalista (Kellner, 2001).

Porém, nas últimas décadas, este conceito tem sido contestado por vários

críticos que propõem adicionar a ele, o conceito de ideologia, das idéias, das

teorias, dos textos e das representações que tornem legítimos os interesses

das forças dominantes, no que ser refere a sexo, raça e classe. Para Kellner:

Dessa perspectiva, fazer crítica à ideologia implica criticar ideologias sexistas, heterossexistas e racistas tanto quanto a ideologia da classe burguesa capitalista. Tal crítica da ideologia é multicultural, discernindo um espectro de formas de opressão de pessoas de diferentes raças, etnias, sexo e preferência sexual e traçando os modos como as formas de opressão de pessoas de diferentes etnias, raças, sexo e preferência sexual e traçando os modos como as formas e os discursos culturais

Page 24: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

24

ideológicos perpetuam a opressão. (KELLNER, 2001:79).

Como podemos observar, a crítica multicultural de ideologia abrange a todas

as camadas sociais e, não só as classes capitalistas dominantes. Assim sendo,

é preciso considerar todas as lutas de todas as camadas sociais e não

somente os conflitos de classe.

Por conseguinte, Kellner (2001) sugeriu que a sociedade é um grande campo

de batalha e acrescentou que essas lutas heterogêneas são retratadas nas

telas e nos textos da cultura da mídia.

Além disso, ele propôs a expansão do conceito de ideologia para explorar o

modo como as imagens, as figuras, as narrativas e as formas simbólicas

tornam-se parte das representações ideológicas de sexo, sexualidade, raça e

classe, no cinema e na cultura popular.

Numa cultura da imagem dos meios de comunicação de massa, são as representações que ajudam a constituir a visão de mundo do indivíduo, o senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida, bem como pensamentos e ações sociopolíticas. (KELLNER, 2001:82)

Essa condição posiciona a ideologia não só num processo de representação,

figuração, imagem e retórica como também num processo de discursos e

idéias.

1.2 Ideologia e Discriminação

Para Kellner, a ideologia pressupõe que “eu” seja a norma e aqueles que não

forem como eu sou, são anormais. No entanto, a posição da qual a ideologia

fala, geralmente é a do branco masculino, ocidental de classe média ou alta e

isto representa posições superiores: de raças, classes, grupos e sexos,

diferentes daquelas que são consideradas como secundárias, derivativas,

inferiores e subservientes. Desta forma a ideologia:

Page 25: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

25

...diferencia e separa grupos em dominantes/dominados e superiores/ inferiores, produzindo hierarquias e classificações que servem aos interesses das forças e das elites do poder. (KELLNER, 2001:83)

Quando a ideologia diferencia e separa as classes, ela passa a fazer parte de

um sistema de dominação, abstração e distinção entre: sexo, raça, etnia e

classe, portanto constrói divisões ideológicas entre homens e mulheres, ricos e

pobres, brancos e negros, enfim dentre aqueles que essa ideologia considera

os “melhores” e os “piores”. Além disso, ela separa o comportamento próprio

do impróprio e cria em cada um desses domínios uma hierarquia para justificar

a dominação de um sexo, uma raça, uma classe sobre outras, em virtude de

sua superioridade ou da ordem natural das coisas.

A “norma” da ideologia em geral é branca, masculina e da classe superior, servindo para denegrir e dominar os não brancos, as mulheres e os trabalhadores. (KELLNER, 2001:84).

Para Kellner, uma das funções da cultura da mídia dominante é justamente a

manutenção desse estado de coisas, é conservar fronteiras e legitimar o

domínio da classe, da raça e do sexo hegemônico (Kellner, 2001:85).

E assim, a mídia dominante auxilia na manutenção de estigmas e preconceitos.

As mulheres são consideradas submissas, domésticas e passivas, portanto

pertencem à esfera privada - muito embora esta “classificação” tenha mudado

bastante em determinadas culturas, em conseqüência das condições do

capitalismo atual. À esfera pública pertencem os homens – mais seguros,

combativos e racionais. Aqui no Brasil, diz-se com freqüência que os negros e

nordestinos são preguiçosos e indolentes, portanto inferiores aos brancos que

vivem no “sul maravilha”.

1.3 O cinema na agenda social de um país

Page 26: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

26

Na opinião de Graeme Turner (1977), o cinema poderia ser considerado um

reflexo das crenças e valores de uma cultura. Entretanto esta afirmação seria

demasiadamente reducionista, uma vez que entre a sociedade e este meio de

expressão há um conjunto de determinantes culturais, subculturais, industriais

e institucionais, que como vimos anteriormente, concorrem e conflitam entre si.

De acordo com Turner (1977), assim como qualquer outro meio de

representação o cinema constrói e “re-apresenta” a realidade por meio de

códigos, convenções, mitos e ideologias de sua cultura, bem como por meio

de suas próprias práticas significadoras. Assim sendo, o cinema tanto atua

sobre os meios de significação de uma determinada cultura, como também é

produzido por eles. E, ao atuar sobre os meios de significação cultural o

cinema tem o poder de renová-los, reproduzi-los e analisá-los.

O cineasta usa os repertórios e convenções representacionais disponíveis na cultura a fim de fazer algo diferente, mas familiar, novo, mas genérico, individual, mas representativo. (TURNER, 1997:129)

Ainda segundo Turner (1997), o resultado das abordagens culturais do cinema,

como representação, é ter em foco as relações de representação entre o

cinema e a ideologia.

Vale acrescentar que os conceitos de ideologia desenvolvidos por Turner

(1997), são muito semelhantes aos de Kellner (2001), porém ele também utiliza

o termo para descrever as atividades da linguagem e da representação na

cultura.

Como foi afirmado anteriormente, o sistema ideológico da cultura é composto

de classes, interesses conflitantes e concorrentes. Este processo, num certo

sentido, é reproduzido em nossas narrativas, tendo em vista que elas atuam

simbolicamente na resolução destas contradições sociais. Assim sendo, os

filmes, os sistemas de representação e as estruturas de narrativas, podem ser

utilizados muito apropriadamente nas análises ideológicas.

Retornamos a Kellner (2001), para explicitar melhor o que foi exposto acima:

Page 27: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

27

O exame do cinema de Hollywood de 1967 até hoje, por exemplo, revela que a sociedade e a cultura americanas foram dilaceradas por uma série de debates em torno do legado dos anos 1960, de questões de sexo e sexualidade da guerra, do militarismo, do intervencionismo e de várias outras questões. (KELLNER, 2001:134).

Ao mencionar isso, Kellner (2001) nos revelou que filmes como Rambo,

Amanhecer Sangrento (Red Dawn), Missing in Action (Supercomando) Invasion

USA, Top Gun e outros do mesmo gênero, representam posições direitistas

sobre a guerra. O militarismo e o comunismo, prestando serviço à propaganda

implícita e explícita do reaganismo, assim como a um programa

intervencionista e militarista de direita. Enquanto que outros filmes, como

Missing (O desaparecido, 1982) e Under Fire (Sob fogo cerrado, 1983), para

citar apenas alguns, contestaram veementemente a visão direitista da América

Central e o intervencionismo americano na região. Eles retrataram os

americanos e a burguesia dirigente como “malvados” e foram solidários aos

rebeldes e aos que lutam contra o imperialismo americano.

Assim como os filmes podem ser um terreno fértil para as análises ideológicas,

podemos afirmar que as instituições cinematográficas também são

estruturadas pelas ideologias, já que elas têm seus próprios interesses

políticos. Portanto determinam quais os filmes que serão feitos e, por

conseguinte, quais os que serão vistos pelo público.

Alguns países reconhecem o poderio da indústria cinematográfica na geração

de significados e no desempenho de suas funções culturais. Além disso,

reconhecem a importância de se controlar a agenda representacional de uma

nação. Esse fato demonstra enorme preocupação com o domínio de produção

e distribuição de filmes por parte dos Estados Unidos. Sabe-se que o cinema

desempenha funções culturais importantes e os países que montaram suas

próprias industriais cinematográficas, tinham como objetivo a retomada do

controle dessas funções.

Page 28: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

28

Para Turner (1977), quando os filmes agem como representantes ou

representações de uma nação no exterior, eles passam por um regime

diferente de inspeção, podendo ser avaliados, por exemplo, pela sua

adequação como propagandas turísticas ou por sua “tipicidade” como imagens

de uma nação.

Tanto isto é verdadeiro que uma revista de negócios, ao apontar a “Marca-país”

como um ativo estrategicamente importante para alavancar o crescimento de

uma nação. Ela questionou o porquê de haver mais turistas que visitam a

Grécia do que a Turquia, uma vez que os turcos alegam ter um litoral mais

extenso, suas águas menos poluídas e seus sítios arqueológicos excepcionais.

Ou seja: a Turquia tem tudo para agradar aos turistas.

No entanto, um número consideravelmente maior de pessoas prefere a Grécia,

porque a Turquia tem uma imagem problemática, que viola os direitos

humanos. Essa imagem foi difundida para o mundo todo, no filme Expresso da

Meia-Noite (1978) – uma produção que teve origem nos Estados Unidos/Reino

Unido. As imagens deste filme foram tão contundentes na criação de uma

imagem ruim para a nação Turca, que o governo daquele país foi obrigado a

lançar uma grande campanha publicitária para convencer aos turistas de que a

Turquia é tão democrática quanto ao seu vizinho mediterrâneo1. Com este

exemplo, voltamos a questionar a importância da produção cinematográfica

dentro do contexto da produção da cultura nacional. Também consideramos

relevante olharmos para o exemplo da retomada do cinema brasileiro, através

da recuperação da sua crise de produção, na década de1990.

1.4 O renascimento do Cinema Brasileiro

A Embrafilme foi criada em 1969, pelo governo militar, para gerenciar a

produção cinematográfica brasileira. Ela foi extinta em 1990, pelo então

presidente Fernando Collor de Mello. Com a falta de outro órgão para substituí-

la, a produção de filmes nacionais diminuiu drasticamente. Consequentemente 1 (HSM Management, 44, vol.3, maio-junho 2004: 68).

Page 29: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

29

o público afastou-se do cinema e elegeu a televisão como meio audiovisual de

sua preferência.

O autor Ismail Xavier (2001), descreveu dois momentos contrastantes do

cinema nacional. O primeiro foi em 1964, quando aconteceu o golpe militar. O

cinema estava em ascensão, em plena explosão criativa, com filmes de

Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, 1963), Glauber Rocha (Deus e o

Diabo na Terra do Sol, 1964) e Ruy Guerra (Os Fuzis, 1964). Este foi o apogeu

do Cinema Novo, que apresentava filmes em estilos diferentes e

demonstravam a solução encontrada pelo “cinema de autor” para afirmar sua

posição na luta política e ideológica, que estavam em curso no país e na

sociedade (XAVIER, 2001:47).

O segundo período foi o de 1984, quando o país encontrava-se em plena

abertura política, com a luta pelas “Diretas Já”. A sociedade vivia um clima

intenso de transição, porém a produção cinematográfica era quase inexistente.

O quadro cinematográfico que se apresentava era de morte e havia a

necessidade de se promover uma reformulação da Embrafilme (XAVIER,

2001:48), a qual foi extinta anos mais tarde durante o governo de Collor de

Mello.

Segundo Xavier (2001), o cinema não conseguiu se renovar, apesar de que o

país vivenciava novos valores e havia uma rápida ascensão de novos talentos.

Porém, tal como ocorreu nos anos de 1960, ela foi prejudicada por uma crise

geracional. Assim, a produção mais visível do mercado, foi a de cineastas

veteranos que realizaram projetos antigos, aproveitando o clima social e

político que já tinham vivido: Memórias do Cárcere (Nelson Pereira, 1984) e

Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984).

Em consequência disso, conclui-se que a extinção da Embrafilme em 1990,

assim como a de outros órgãos: o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro,

tenha sido somente a gota d´água para a quase extinção da produção

cinematográfica nacional. A Embrafilme tinha um modelo de produção

esgotado e estava em franca decadência. O problema com a sua extinção é

que nada foi criado para substituí-la, deixando o cinema ao sabor do mercado.

Page 30: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

30

Assim, cinema e cultura passaram a ser considerados mercadorias como

qualquer outra (ORICCHIO, 2003:25).

Durante esse período de decadência do cinema nacional, alguns filmes ainda

foram lançados, porém em condições muito precárias. No período de 1990 a

1994 foram produzidos apenas 30 títulos nacionais.

Para que o cinema nacional pudesse se reerguer e contar com algum tipo de

financiamento público, foi preciso reestruturar as leis e os órgãos de incentivo à

produção. Desta forma, em 1991, foi sancionada a Lei Rouanet e

posteriormente, em 1993, a Lei do Audiovisual.

Com estes incentivos, a realização de filmes nacionais voltou a crescer e

iniciou-se uma nova fase do cinema no Brasil. Ela foi denominada Retomada,

porque a atividade cinematográfica daquele período era muito baixa e começou

a se re-erguer. Aquele período foi caracterizado pela: reestruturação dos meios

de produção, inserção da iniciativa privada no financiamento e distribuição dos

filmes, renovação profissional da categoria e reconquista do público.

Segundo Oricchio (2001), a partir de 1995 vários títulos foram lançados, dentre

eles, Carlota Joaquina de Carla Camurati, cuja qualidade estética não foi

comentada. Porém, ele foi considerado uma espécie de marco zero da

Retomada do cinema Nacional, pelo seguinte motivo:

A resposta do público, principalmente. Se antes do filme de Carla outros tiveram repercussão e espaço na mídia, este falou diretamente ao expectador. (ORICCHIO, 2001:26).

Apesar de ter sido produzido com um orçamento baixo e com apenas 4 cópias

lançadas no mercado, o filme Carlota Joaquina atraiu 1.286.000 expectadores.

Esse fato o posicionou como o primeiro filme da Retomada nacional a atrair

mais de 1 milhão de expectadores.

Para Oricchio (2001), o mais importante foi que, após a exibição do filme

Carlota, a população voltou a conversar sobre o cinema nacional.

Depois disso, outros filmes também alcançaram sucesso de público,

Page 31: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

31

principalmente as produções de Renato Aragão e Xuxa, mostrando que o

sucesso desses artistas na TV, também encontrava resposta de público nas

telas do cinema.

A aplicação da Lei do Audiovisual propiciou o crescimento e a estabilização da

produção cinematográfica nacional. Foi produzido por volta de 20 a 30 títulos

por ano e, segundo dados da Secretaria do Audiovisual, entre 1995 e 2001 o

país produziu 167 longas-metragens e se contarmos até o final de

2002, chega-se a aproximadamente 200 filmes de longa metragem rodados e

distribuídos durante o período da Retomada (ORICCHIO apud Folha de

S.Paulo, 24/05/2002).

No entanto, para Oricchio (2001), já se notava alguma limitação na produção

dessa modalidade, no final da década. Uma das queixas mais freqüentes era

de que a lei outorgava muito poder aos diretores de marketing das empresas.

Afinal, eles eram quem decidiam a que tipo de produção cultural associar a

marca da empresa e, conseqüentemente, controlavam a produção de filme no

país.

Mas, felizmente, nem tudo ficou atrelado à lei, por isso alguns filmes de longa-

metragem puderam ser produzidos por meio de outras fontes: concursos

organizados pelo governo federal e governos estaduais, assim como a entrada

da Warner e da Columbia na produção e distribuição dos filmes brasileiros e a

criação da empresa Globo Filmes.

Aqui não podemos afirmar se feliz ou infelizmente, pois ao contrário do que

acontece em outros países, como: França, Espanha e Inglaterra; a televisão

brasileira não produz muitos filmes e a Globo Filmes investe mais na produção

de filmes comerciais. Os filmes da apresentadora Xuxa tiveram 39% da fatia do

mercado e, outros filmes cujo elenco foi composto por atores da emissora,

tiveram quase 70% da taxa de ocupação das salas. Para Oricchio:

Isto significa dizer que o filme mais crítico, menos associado ao entretenimento imediato, tem encontrado dificuldades, o que não chega a ser novidade nem representa uma característica específica do Brasil. Com

Page 32: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

32

as diferenças de praxe, este tipo de concentração de público em produtos descompromissados e repetitivos parece dominante em todo o mundo, incluindo-se aí os centros mais desenvolvidos. (ORICCHIO, 2003: 28).

Porém, há uma questão importante a ser considerada: se por um lado o

desmanche da era Collor produziu um sentido de degradação do cinema

nacional, por outro, não se pode negar que o cinema renasceu, quando teve

sua produção atrelada à renúncia fiscal e, por conseguinte, controlada, ao

menos em parte, pelo departamento de marketing das empresas.

Mas para Oricchio (2003), esse fator não representa uma camisa de força ao

cinema nacional, haja vista que muitos filmes foram feitos de maneira radical,

sem muitas concessões. Na opinião do autor, a maioria dos longas-metragens

produzidos, é o resultado do desejo de fazê-lo por parte de seus

diretores. Todavia mesmo aqueles que foram produzidos por razões

mercadológicas, para aproveitar o sucesso de alguma estrela de novela, por

exemplo, não deixam de abordar o país onde são feitos.

É importante destacar que a produção cinematográfica brasileira dos últimos

anos, não deixou de considerar as condições do país. Ela abordou temas

sociais relevantes da nossa cultura, ao mostrar a enorme diferença entre

classes existente na nossa sociedade, para tentar compreender a história do

país e examinar os impasses causados pela modernidade na estrutura das

grandes cidades.

Fazendo um balanço geral, Oricchio aponta que, grande parte dos filmes

produzidos no Brasil, durante estes anos, considerou as condições do país:

Bem ou mal, debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do país e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi do sertão às favelas e reinterpretou estes espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional.., Como pôde, examinou o caráter das novas relações

Page 33: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

33

amorosas surgidas com a modernização, ensaiou a volta ao regionalismo e ao metacinema e refletiu sobre temas difíceis e tão enraizados no imaginário nacional) como o relacionamento do brasileiro com o Outro – o estrangeiro, aquele que não faz parte de “nós” – e no encontro com quem, paradoxalmente, buscamos nos reconhecer.(ORICCHIO, 2003: 32)

Dentre tantas outras coisas, ousamos acrescentar, pontualmente, o

relacionamento do brasileiro com ele mesmo e com a doença, com vista em

que o cinema auxiliou na representação e na re-apresentação de um difícil e

delicado problema, que também está enraizado no imaginário nacional: o

surgimento de uma nova pandemia denominada AIDS.

Dentro desse contexto, propusemos, neste estudo e dissertação, a discussão

dos filmes Carandiru e Cazuza que, apesar de não terem a AIDS como tema

central, de certa forma, eles retrataram a convergência e/ou divergência dos

seus efeitos de sentido, que foi criado pela mídia impressa desde o seu

surgimento.

Page 34: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

34

CAPÍTULO2

Page 35: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

35

CAPÍTULO 2

Este capítulo destina-se a elucidar ao leitor, de forma sucinta, sobre a

existência da doença.

Não se pretende aqui discutir a doença sobre o ponto de vista médico-

científico, sócio-político ou cultural. Pretende-se somente apresentar os

principais avanços na área científica, a partir da época de sua detecção,

assim como apresentar um panorama mundial sobre a situação da epidemia,

sem esboçar quaisquer comentários de ordem pessoal, científica ou social. O

presente capítulo foi baseado nos últimos estudos realizados pelo UNAIDS –

Joint United Nations Programme on HIV/Aids2, em dezembro de 2007, e nos

registros oficiais do Ministério da Saúde sobre a doença no Brasil. O resultado

desta análise foi, um resumo das estimativas mais recentes sobre o

alastramento da epidemia no mundo.

2. Historicizando a Aids

2.1 O surgimento de uma nova doença

Em 1981, o Centro de Controle de Doenças CDC (Center for Disease Control)

em Atlanta (Sul dos Estados Unidos), revelou, através de seu boletim semanal,

o diagnóstico de cinco homossexuais com uma forma rara de pneumonia, o

que normalmente afeta pacientes imunodeprimidos, e que dois deles morreram

deste mal. Naquele mesmo ano, o CDC anunciou a detecção de sarcoma de

Kaposi, um câncer raro que, normalmente afeta idosos, em 26 homossexuais

(dos quais oito morreram) e dez novos casos de pneumonia, o que alertou as

autoridades americanas para o aparecimento de uma nova doença.

Em 1982, a nova doença foi batizada com o nome de AIDS, sigla que em inglês

significa - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.

2 Programa conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids – UNAIDS, criado em 1996 e co-patrocinado por dez agências

do Sistema das Nações Unidas.

Page 36: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

36

O agente causador da doença foi isolado pela primeira vez em 1983. Os

cientistas deram-lhe o nome de LAV (sigla que em inglês significa

Lympadenopathy-associated vírus).

Em novembro daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS)

estabeleceu uma vigilância global. O número conhecido de casos de AIDS (só

nos Estados Unidos) era de 3.064. Também foram registrados os primeiros

casos de AIDS no Brasil. Em conseqüência disso, foi implantado o primeiro

programa oficial de controle da doença, no Estado de São Paulo e depois no

Estado do Rio de Janeiro.

Em 1985, surgiram os primeiros testes comerciais para detectar a doença e

aconteceu a primeira Conferência Internacional sobre a AIDS, em Atlanta nos

Estados Unidos. No ano subseqüente foi criado, no Brasil o Programa Nacional

de DST (Doenças Sexualmente Transmissíveis) e AIDS.

Em 1987, surge a primeira droga anti-HIV, a zidovudina (AZT), que foi

aprovada após a realização de testes que demonstraram sua eficácia na

redução da progressão do vírus, mas não na sua cura. Finalmente, em 1988, a

Organização Mundial da Saúde instituiu o dia 1º de dezembro como o Dia

Internacional de Combate à AIDS.

2.2 O relatório mundial de 2007: um panorama atual

Segundo o boletim, atualizado em 2007, emitido pela OMS e o UNAIDS, a

prevalência o alastramento do HIV permanece estável em todo o mundo, após

entrar na sua terceira década de existência. N o entanto, segundo o mesmo

boletim, a AIDS continua entre as principais causas de morte em todo o mundo

– são 5.700 óbitos e mais de 6.800 novas infecções por dia.

Em 2007, o Grupo de Referência do UNAIDS sobre Estimativas, Modelagem e

Projeções (UNAIDS Reference Group on Estimates, Modelling and Projections)

recomendou à OMS e ao UNAIDS que se revisasse o número estimado de

pessoas que vivem com HIV atualmente. Essas revisões foram feitas,

Page 37: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

37

principalmente por causa: da revisão das metodologias de estimativas3,

aprimoramento da vigilância4 em alguns países e mudanças nas suposições

epidemiológicas chaves5 utilizadas para o cálculo das estimativas.

O resultado foi de uma redução no número total de 39,5 milhões de casos em

2006 para 33,2 milhões em 2007, sendo que a maioria das estimativas é mais

baixa do que aquelas publicadas em relatórios anteriores, tanto em relação a

2007 como também em relação aos outros anos.

2.2.1 A visão global da AIDS.

Conforme já foi mencionado, o número de pessoas que vivem com o HIV

parece estar estabilizado. Porém nos últimos seis anos a prevalência do HIV

aumentou para 33,2 milhões (30,6-36,2 milhões) em 2007. Em 2001, a

prevalência era de 29,0 milhões (26,9-32,4 milhões) em 2001.

3 Revisão da metodologia: A revisão da metodologia deu-se como parte do processo contínuo de aprimoramento das

estimativas de HIV com base nas mais recentes descobertas científicas. No mês de novembro/07 o UNAIDS e a OMS

promoveu uma consulta internacional sobre estimativas em HIV que reuniu mais de 30 especialistas em todo o mundo

com o objetivo de revisar os processos, as metodologias e as ferramentas utilizadas para produzir as estimativas sobre

HIV.

4 Aprimoramento da vigilância: Nos últimos anos vários países, principalmente os da África Subsaariana e da Ásia

realizaram estudos novos e mais precisos para aprimorar seus sistemas de vigilância do HIV. Em alguns países houve

um aumento de sítios de vigilância sentinela, tanto em quantidade quanto em cobertura geográfica. Além disso, 30

países, a maioria na África, realizaram pesquisas domiciliares representativas com base em populações.

Consequentemente, as novas informações auxiliaram no ajuste dos dados de outros países com epidemias

parecidas,mas que ainda não realizaram pesquisas.

5 Mudanças nas suposições epidemiológicas chaves: foram incorporadas às ferramentas de software utilizadas

pelo UNAIDS e pela OMS para as estimativas de 2007 várias suposições novas, dentre elas: a. adaptação da forma

como os dados de clínicas de pré-natal são utilizados para auxiliar no cálculo da prevalência do HIV. Estes dados

foram ajustados para baixo utilizando em média um fator de 0,8, nos países que não realizaram uma pesquisa nacional

com base em populações. b. aumento do número estimado de anos de sobrevida de pessoas vivendo com HIV, mas

sem tratamento, de 9 para 11 anos - o que resultou em estimativas mais baixas de novas infecções por HIV e óbitos

por Aids.

Page 38: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

38

Segundo o boletim da AIDS, atualizado em 2007, estimava-se havia 2,5

milhões de pessoas infectadas pelo vírus pela primeira vez, naquele ano. E que

2,1 milhões de pessoas morreram de doenças relacionadas à AIDS.

2.2.1.1 Os fatos chaves por Região no Mundo

Estima-se que, na África Subsaariana, 1,7 milhão de pessoas foram infectados

pelo vírus da AIDS em 2007, totalizando 22,5 milhões de pessoas vivendo com

o vírus, sendo que a maioria são mulheres (61% dos infectados). Daquela

região, a África Meridional é a mais afetada, sendo que em oito6 países, a

prevalência do HIV ultrapassou a marca dos 15% da população em 2005.

A África do Sul é o país onde existem mais pessoas vivendo com o HIV no

mundo. Porém, a prevalência de HIV, entre os adultos, está estabilizada e

mostra sinais de diminuição, nota-se também, evidências de mudanças

comportamentais para comportamentos mais seguros.

Estima-se que, na Ásia, 4,9 milhões de pessoas viviam com HIV em 2007,

sendo que 440.000 pessoas foram infectadas no ano antecedente. O número

de pessoas que morreram por causa de doenças relacionadas à AIDS em 2007

foi de aproximadamente 300.000.

Na Ásia oriental, o número de infecções por HIV foi quase 20% maior do que

em 2001 e no Sudeste da Ásia concentra-se a maior prevalência de HIV.

Naquela região, há uma grande variação quanto às tendências epidemiológicas

entre os diversos países – queda em alguns países e ritmo acelerado de

crescimento em outros.

Estima-se que na Índia, apesar da queda nos números de infecções estimados

anteriormente, a epidemia continua a afetar 2,5 milhões de pessoas.

O Caribe é considerado a segunda região mais afetada do mundo, sendo que a

prevalência do HIV atingiu 1% da população de adultos em 2007, com 230.000

pessoas infectadas.

6 Botsuana, Lesoto, Moçambique, Namíbia, África do Sul, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue.

Page 39: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

39

Na Europa do Leste e na Ásia Central a estimativa é de que aumente o

número de pessoas infectadas pelo vírus do HIV em 2007, desde 2001 o

número cresceu em mais de 150%. Estima-se que haja 1,6 milhões de

pessoas infectadas naquela região. Foi detecta cerca de 150.000 novas

infecções por HIV, sendo que quase 90% dos novos casos notificados deram-

se na Federação Russa e na Ucrânia.

O uso de drogas injetáveis é um fator significativo para o aumento do número

de casos.

Na América Latina as epidemias permanecem estáveis. O número estimado de

novas infecções em 2007, foi de 100.000 casos, totalizando 1,6 milhões de

pessoas infectadas. A transmissão do HIV continua relacionada ao

comportamento de risco, que se agrava com a exposição ao sexo, ou seja: a

maior incidência continua entre os profissionais de sexo e homens que têm

relacionamento sexual com outros homens.

O estigma e a discriminação generalizados dificultam os esforços para se levar

o acesso universal à prevenção, ao tratamento, à atenção e ao apoio em

relação ao HIV, na região. Além disso, por falta de investimentos em alguns

países, a vigilância continua inadequada.

Na América do Norte, Europa Ocidental e Central, um total aproximado de 2,1

milhões de pessoas vivia com o HIV em 2007, incluindo as 78.000 pessoas que

se infectaram no ano anterior. Estima-se que 32.000 pessoas morreram de

doenças relacionadas à AIDS em 2007. Este número relativamente baixo de

óbitos está relacionado ao amplo acesso ao tratamento anti-retroviral naquela

região.

No Oriente Médio e na África do Norte a vigilância e a coleta de dados ainda

continuam inadequados. Estima-se, entretanto, que houve 35.000 novas

infecções em 2007, sendo que a maioria ocorreu em homens e em áreas

urbanas, com exceção do Sudão, onde a relação heterossexual desprotegida

é o maior fator de risco. O uso de drogas injetáveis é a principal via de

transmissão do HIV nessas regiões.

Page 40: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

40

Na Oceania a AIDS atinge cerca de 75.000 pessoas, a estimativa é de que

14.000 pessoas contraíram o vírus em 2007.

2.2.2 Os números da AIDS no Brasil

No Brasil, dados publicados no Boletim Epidemiológico do Ministério da

Saúde7 sobre AIDS/DST, registraram, desde 1980 até junho de 2007, o total

de 474.273 casos de AIDS notificados. Destes, 66,27% correspondem ao sexo

masculino e 33,73% ao feminino. Na última década, vimos crescer

vertiginosamente o número de mulheres infectadas, tendo em vista que se

analisarmos o período de 1985-1995 as taxas de infecção estavam na

proporção de 79,13% para homens e 20,87% para as mulheres, ou seja: uma

mulher infectada para cada quatro homens em média8.

Na categoria por exposição, o Boletim demonstrou que, do número total de

infectados do sexo masculino 31,7% correspondia à categoria

“homo/bissexual”, 30,1% à “heterossexual” e 19,7% a “usuários de drogas

injetáveis”. O número de mulheres infectadas por “uso de drogas injetáveis”

correspondia a 9,1% da população. Em menores de 12 anos, a transmissão

vertical (vírus da mãe para o filho) corresponde a 83,4% dos casos notificados.

Aproximadamente 42% das pessoas infectadas morreram, no Brasil. Quanto

ao número de óbitos, segundo o critério raça/cor, observamos um crescimento

persistente nas categorias “preto/pardo”, em ambos os sexos, entre 2000 e

2006, enquanto que na categoria “branca” observamos uma queda de mais de

10 pontos percentuais (Tabela XIV do Boletim Epidemiológico Aids/DST 2006).

Segundo o Relatório UNGASS – Resposta Brasileira 2005-2007 Relatório de

Progresso do País do Ministério da Saúde9, houve o “empobrecimento” da

7 www.datasus.gov.br no menu > Informações em Saúde, acessado em 09/11/2007.

8 www.Aids.gov.br no menu > Área técnica > Epidemiológico > Boletim epidemiológico, acessado em 09/11/2007.

9 www.aids.gov.br - Ministério da Saúde do Brasil - Secretaria de Vigilância em Saúde Programa Nacional de DST e Aids - Metas e

Compromissos Assumidos pelos Estados-Membros na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em HIV/Aids -

UNGASS – HIV/Aids – acessado em 16/02/2008.

Page 41: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

41

doença nos últimos anos. Pois, o perfil da epidemia aponta para o aumento

proporcional e do número absoluto de casos, entre indivíduos com menor

inserção social, notadamente aqueles com menor grau de instrução, com

ocupação que exige menor qualificação e residentes nas periferias dos centros

urbanos. Para essa população, a presença de uma doença, especialmente da

AIDS, significa um aumento considerável no seu grau de vulnerabilidade social,

contribuindo para o aumento do nível de pobreza no País.

Os estudos realizados neste sentido mostraram as dificuldades dessa

população, em manter o seguimento adequado do tratamento, assim como em

encontrar as condições necessárias para a inserção social e para o mercado

trabalho. Essas circunstâncias relevam a importância de políticas sociais, para

levar apoio a essa população, o que reduziria o potencial impacto da epidemia.

Em uma publicação muito recente10, a Agência Brasil anunciou que quase

metade dos brasileiros portadores do vírus HIV demora a começar o tratamento

à base de coquetéis anti-retrovirais. A informação é do relatório UNGASS:

Resposta Brasileira à Epidemia de AIDS 2005-2007, divulgado pelo Ministério

da Saúde.

Nessa reportagem, a Agência Brasil afirma que, entre 2003 e 2006, 43,7% dos

brasileiros infectados, com idade acima de 15 anos, já chegaram aos serviços

de saúde com algum tipo de deficiência imunológica ou com sintomas da AIDS.

De um total de 115.441 pessoas infectadas, 14.462 (28,7%) morreram no início

do tratamento, em decorrência de quadros clínicos mais graves. Na região

Centro-Oeste, 47,4% dos infectados procuraram tratamento tardiamente.

Segundo Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional DST/AIDS do

Ministério da Saúde, “O perfil da epidemia mudou radicalmente no Brasil. Hoje,

ela é uma epidemia predominantemente heterossexual, ou seja, pessoas que

praticam sexo desprotegidamente, com pessoas do sexo oposto. Todos

aqueles que têm uma vida sexualmente ativa, precisam pensar na qualidade de

suas relações”.

10 Boletim da Aids – [email protected] – acessado em 23/02/2008.

Page 42: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

42

O relatório UNGASS aponta também que 94,8% das pessoas infectadas no

país estão em tratamento – ainda que tardiamente. O documento destacou que

a AIDS no Brasil aumentou entre a população acima de 50 anos e, sobretudo,

acima dos 60. Isso porque esse grupo populacional não foi habituado a usar

preservativo. Portanto, hoje, não percebe o risco a que se expõe. Enquanto o

jovem aumentou o uso do preservativo, esse hábito cai radicalmente conforme

o aumento da idade.

Page 43: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

43

CAPÍTULO3

Page 44: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

44

CAPÍTULO 3

Em 1987, o médico Jonathan Mann que era o responsável pelo programa de

controle da AIDS na Organização Mundial da Saúde (OMS), indicou pelo

menos três fases da epidemia da AIDS numa dada comunidade: a primeira é a

epidemia pelo HIV que penetra a comunidade silenciosamente e, muitas vezes,

nem é notada. A segunda epidemia ocorre alguns anos mais tarde, é a

epidemia da própria AIDS: a síndrome de doenças infecciosas que se instalam

em decorrência da imunodeficiência provocada pela infecção do HIV e,

finalmente, a terceira (e talvez a mais explosiva) epidemia que é a de reações

sociais, culturais, econômicas e políticas11.

Considerando a “terceira epidemia” cunhada por Mann, este capítulo pretende

elucidar ao leitor sobre como a AIDS tem sido representada, desde o seu

surgimento, pelos diversos grupos sociais: ciência, poder público, imprensa e

movimentos autônomos organizados de luta contra a AIDS.

3. A construção social da Aids

A síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) é a manifestação clínica (de

sinais, sintomas e/ou resultados laboratoriais que indiquem deficiência

imunológica) da infecção pelo vírus HIV, que demora em média, oito anos para

se manifestar.

Em junho de 1981, o Centro de Controle de Doenças CDC (Center for

Diesease Control) em Atlanta (Sul dos Estados Unidos), revelou, em seu

boletim semanal, o diagnóstico de cinco jovens homossexuais do sexo

masculino. Eles apresentavam uma forma de pneumonia atribuída ao

microorganismo Pneumocystis carinii (PPC), o qual normalmente afeta

pacientes imunodeprimidos, dois deles morreram deste mal.

11 www.somos.org.br – acessado em 26/02/2008.

Page 45: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

45

A edição do mês subseqüente desse mesmo boletim apresentou a ocorrência

de sarcoma de Kaposi (SK) em homossexuais jovens, em hospitais de Nova

Iorque e da Califórnia. A nota editorial desse boletim sinalizava para a

freqüência e malignidade pouco usual do sarcoma de Kaposi12 e novamente

recomendou à comunidade médica que ficasse atenta à ocorrência de PPC, SK

ou outras doenças oportunistas, em homossexuais (Nascimento, 2005: 82).

Realmente tratava-se de uma nova doença e por causa disso, surgiram várias

especulações para tentar explicá-la, elas variavam desde: punição divina pela

transgressão da ordem sexual ou promiscuidade, até a criação do vírus em

laboratórios.

Segundo Nascimento (2005), os equívocos médicos geraram denominações

carregadas de moralismo, como: “síndrome gay”, “câncer gay”, “pneumonia

gay” e até imunodeficiência ligada ao homossexualismo.

O público leigo tomou conhecimento sobre a misteriosa doença, em julho de

1981, por meio de um artigo publicado por um cronista de medicina no New

York Times. Ao referir-se à AIIDS, o cronista relatou o surgimento de um

“fenômeno patológico curioso que intrigava aos especialistas e que começava

a assustar os gays de Nova York” (Nascimento: 2005, apud Grmeck).

A partir de então, a divulgação dessa nova ameaça aos homossexuais tornou-

se notícia constante nos grandes jornais e na mídia em geral, o que resultou

em uma crescente organização de grupos gays, não só nos EUA como

também em outras partes do mundo.

Os meios de comunicação usaram a Aids como notícia cotidiana. Os médicos tinham espaço para divulgar suas opiniões e seus conhecimentos, ao mesmo tempo em que grupos de porta-vozes de interesses específicos ameaçados pela vigilância também o tinham. Especialmente grupos de defesa da liberdade de orientação sexual se expressaram (LIMA, 2006:28).

12 Trata-se de um tipo raro de câncer de pele, de causa desconhecida e pouca malignidade, que acomete, preferencialmente, homens

com mais de 50 anos de idade.

Page 46: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

46

Em 1982, a doença foi batizada com o nome de AIDS, sigla em inglês para -

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Ela foi inicialmente identificada como

síndrome que acomete indivíduos do sexo masculino e os homossexuais, que

foram categorizados como “grupo de risco”13. No entanto, não demorou muito

para se constatar a doença em usuários de drogas injetáveis e hemofílicos,

conseqüentemente ampliando os grupos de risco. A AIDS permanecia, assim,

como uma doença “estranha” que acometia pessoas consideradas “estranhas”

(Nascimento, 2005:83).

Em 1983, cientistas do Instituto Pasteur, na França, liderados por Luc

Montagnier, isolaram o vírus que invade os leucócitos e provoca a AIDS. Eles

lhe deram o nome de LAV (sigla em Inglês para - Lympadenopathy-associated

vírus) e esclareceram os mecanismos de transmissão da doença, que ocorre

por via sexual e sangüínea. No mesmo ano, Robert Gallo do National Câncer

Institute, também isolou o vírus e nomeou-o HTLV-III.

A descoberta do vírus e sua associação ao grupo HTLV gerou grande

controvérsia no meio científico. Em 1986, finalmente, o nome do vírus foi

universalizado como HIV por uma Comissão Internacional de Nomenclatura em

Virologia. Em 1992 ficou provado que Gallo aproveitou-se das investigações de

Montagnier e por isso ele perdeu os direitos sobre o retrovírus e sua imagem

acadêmica ficou bastante abalada.

O anúncio da descoberta do vírus apareceu rapidamente, o que provocou uma

sensação de que tudo seria resolvido num curto espaço de tempo. Pensou-se

que a descoberta da cura para a doença também pudesse ser rápida. Mais

uma vez a comunidade científica se enganou e a mídia deixou-se levar.

A autora Rosana de Lima Soares, citou Mello em sua dissertação de

mestrado14, e afirma que: do HIV pode-se dizer que seu aspecto mais

significante seja a sua singularidade biológica (SOARES, 2001:81): ”Ele

13 Denominam-se grupos de risco aqueles indivíduos onde a prevalência da doença é maior, em comparação com a população em

geral.

14 Soares, Rosana de Lima. Imagens veladas: Aids, imprensa e linguagem – São Paulo: Annablume, 2001. Originalmente apresentada

como dissertação (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1997) sob o título: Imagens veladas, imagens

reveladas: narrativas da Aids no Jornal Folha de S.Paulo.

Page 47: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

47

reproduz-se dentro da estrutura das células, do sistema imunológico

denominado T-4 (ou linfócitos auxiliares), de maneira bem diferente da dos

vírus causadores das viroses mais conhecidas (...) permanecendo lá por toda a

existência dessas células” (MELLO, 1994:23). Daí a dificuldade em aprisioná-

lo. O vírus tinha múltiplas formas de aparição, o que reforçou, no imaginário

social, perspectivas aterrorizantes de algo inapreensível (NASCIMENTO,

2005:119).

Dráuzio Varella, em depoimento gravado15, revelou à Nascimento essa

“inapreensão”, ao explicar o mecanismo de replicação do vírus que só possui

RNA:

Ele tem que se transformar em DNA e utiliza a transcriptase reversa para fazer isso. Só que este mecanismo é muito arcaico. Muito velho. Foi abandonado lá atrás, ao longo do processo evolutivo. Trata-se de um mecanismo arcaico e que produz erros com muita freqüência! Esse conjunto de erros é o segredo da mutação do HIV. O HIV não é inteligente. Agente fala: ‘Ah, o vírus é esperto! ’ Isso é uma figura de linguagem na qual agente acaba acreditando: o vírus é esperto, ele é aquilo ele muda. Nada! Ele comete tantos erros nessa passagem, que a maioria de suas cópias é inútil, não serve para nada. Mas alguns servem. E essas que servem não são iguaiszinhas a que lhes deu origem. Nessas diferenças (...) aquelas que são sensíveis ao AZT, por exemplo, vão morrendo. Vão morrendo, vão morrendo (...). As que não são sensíveis começam a competir mais e aí ele vem com tudo (NASCIMENTO: 2005, apud Varella).

Apesar de tantos avanços e descobertas na área científica, em tão curto

espaço de tempo, criou-se preconceito e discriminação de soropositivos ou

doentes porque esses fatos foram alardeados pela imprensa, o que também

contribuiu para a sua rápida expansão mundial, dando origem a uma

15 A Representação Social da Aids (arquivo Sonoro, COC/Fiocruz, fita 4, lado A, 1998).

Page 48: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

48

pandemia16. A esse respeito, Nascimento (2005:84) diz o seguinte: “Há que se

observar que o pensamento da comunidade científica realmente não esteve

isento de concepções morais no seu processo de construção de um modelo

adequado de evolução do vírus”.

E Soares (2001) conclui:

Há muitas crenças ocultas em torno da Aids. Muitas delas cristalizadas nos discursos médico e científico, especialmente no início da epidemia. A forma como a Aids foi se caracterizando ao longo da história indica esse percurso: primeiramente o advento social da doença, no início dos anos 80, deu-se em torno da categoria “grupo de risco”. A imprensa assumiu o discurso da “peste gay”... e a ciência, num primeiro momento, foi responsável pela formação dessa imagem... (SOARES, 2001:81).

Desta forma, a AIDS que a princípio estava aprisionada a guetos americanos

de homossexuais, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis, chega ao Brasil.

Quando os primeiros casos de AIDS surgiram no Brasil, a comunidade

científica brasileira usou a mesma classificação norte-americana: tratava-se de

uma síndrome de imunodeficiência adquirida, causada por um vírus

denominado HIV, transmitida por via sexual ou sanguínea, e que acometia

homossexuais masculinos, usuários de drogas e hemofílicos.

Notícias sobre essa nova doença já circulavam por aqui, tanto no meio

científico quanto na imprensa. O primeiro jornal de grande circulação a abordar

a AIDS, foi o Jornal do Brasil, em setembro de 1981, seguido pelo O Globo. Em

ambos os jornais a AIDS foi fortemente vinculada ao homossexualismo

masculino e nos três anos subseqüentes, a mídia insistiu em trazer ao público

essa vinculação através de notícias pouco esclarecedoras, sobre o ponto de

vista científico, carregadas de contradições, “espelhando a perturbação

causada por esse novo evento no campo científico” (NASCIMENTO, 2005:86).

16 Aumento inesperado do número de casos de uma doença em vários lugares ao mesmo tempo.

Page 49: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

49

Além da vinculação a homossexuais, a imprensa brasileira também vinculava a

AIDS a estrangeiros, ou seja, uma doença que veio de fora e que só existia lá

fora. Em 1983, com a notícia da morte do famoso costureiro brasileiro, o

Markito, que fazia muitas viagens aos EUA, este vínculo ficou ainda mais

evidente. Segundo Nascimento (2005), a morte de um costureiro famoso, rico,

branco, jovem e homossexual, que viajava muito aos EUA reforçava ainda mais

a idéia de que a AIDS estaria longe do brasileiro comum e restrita aos

homossexuais de classe média alta, que realizavam muitas viagens ao exterior.

Em pouco tempo os jornais brasileiros começaram a noticiar vários casos da

doença. A AIDS já não era mais uma doença trazida de fora, por estrangeiros

ou por homossexuais de classe média alta que realizavam muitas viagens ao

exterior, mas continuava a ser a doença do “câncer gay”.

Não mais doença de estrangeiro, mas ainda ‘doença do outro’, pela pregnância no plano simbólico e no plano social de uma associação da Aids com homossexuais. Nesse sentido, instaura-se um debate sobre a legitimidade de se pensar a Aids como doença dos homossexuais. O número crescente de casos fez com que a doença passe a ser uma grande ameaça que pode matar, num futuro mais ou menos longínquo, cada vez mais pessoas. Desse modo os homossexuais, já estigmatizados por sua preferência sexual diversa do que se pretende predominante ou ‘normal’, passam a carregar mais um estigma, o de responsáveis pela disseminação da Aids. (NASCIMENTO, 2005:88).

Em meados da década de 80 a AIDS já tinha extrapolado o território paulista e,

em março de 85 a revista Isto É informava a existência de “219 casos no eixo

Rio - São Paulo”. Em agosto do mesmo ano, o Jornal do Brasil afirmava: “AIDS

contamina 32,4 % da população homossexual do Rio”. (NASCIMENTO, 2005:

88).

A AIDS revelou também uma grande controvérsia no meio médico, no Brasil.

Alguns médicos eram da opinião de que, era obrigação da ciência oferecer aos

Page 50: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

50

doentes: meios para prevenção, tratamento e cura sem questionar suas

preferências sexuais. Já outros renomados infectologistas, argumentavam que

a imunodepressão era uma conseqüência da própria maneira como os

homossexuais se relacionavam. Aparentemente os dados epidemiológicos da

doença confirmavam o que eles diziam, uma vez que a ocorrência da doença

ainda era restrita aos chamados: grupos de risco.

O conceito de grupo de risco, com origem na epidemiologia... fortalece a noção de que os indivíduos não são iguais perante a doença. Esse é um conceito que, por um lado, foi necessário à investigação científica no reconhecimento dessa ‘nova doença’, mas, por outro, criou no imaginário social a noção de exclusividade para a doença, isto é, de que somente alguns indivíduos ou grupos de indivíduos seriam passíveis de adoecer... (NASCIMENTO, 2005:90).

Foi justamente um desses grupos de risco, o responsável pela denúncia sobre

as mazelas dos bancos de sangue no país: os hemofílicos que, em 1985,

apareceram nas estatísticas com número expressivo de soropositividade. A

questão da qualidade do sangue nos centros de hemoterapia desperta um

grande interesse público, afinal, qualquer um e a qualquer momento, pode

precisar de uma transfusão de sangue. Assim, a questão dos bancos de

sangue não só despertou um grande debate político, como também,

finalmente, a mobilização da sociedade civil que se vê ameaçada por uma

transfusão, com sangue contaminado.

Para Nascimento (2005), nem mesmo essa constatação foi capaz de produzir

uma desconstrução da AIDS como ‘doença de gays’. Nas palavras de

Nascimento, “não só gays doam sangue, portanto, haveria de se perceber que

a ocorrência do HIV estaria indiscriminadamente disseminada e não restrita

aos, até então, chamados grupos de risco. Este elemento não foi incorporado

na luta pela qualidade do sangue” (NASCIMENTO, 2005:90).

Reforçando a afirmação de que a AIDS não deveria ser tratada como uma

doença restrita a “grupos de risco”, Soares (2001) diz o seguinte:

Page 51: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

51

Algum tempo depois, o próprio conceito de grupo de risco começou a ser questionado: se somos homens, mulheres e crianças, não estaríamos todos arriscados? A resposta a essa pergunta não tardou. De estrangeiros distantes, a imprensa passou a falar de pessoas famosas do Brasil mesmo: artistas, cantores, escritores. Vieram os Cazuzas, Lauros, Claudias. Mais alguns meses depois e já se ouvia: “Meu primo tem um amigo que tem um tio que tem um vizinho que está com Aids”... O cerco foi se fechando: minha tia tem uma vizinha, minha vizinha tem um filho, minha tia, minha amiga, meu irmão, minha filha. Eu? (SOARES, 2001:85).

Houve uma pressão social, para se melhorar a qualidade do sangue oferecido

pelos Bancos de Sangue, essa pressão foi potencializada pela morte de uma

pessoa pública, o cartunista Encheu, o que levou o governo federal a tornar

obrigatório o teste anti-AIDS na triagem do sangue17, em janeiro de 1988.

A partir daí, os grupos sociais, que de alguma forma se mobilizavam na luta

contra a AIDS no Brasil, se organizaram. Duas importantes ONG´s foram

fundadas no Rio de Janeiro: a ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar da

Aids e o Grupo pela Vidda – Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade

do Doente com Aids.

A Abia, fundada em janeiro de 1986, aglutinou cientistas, intelectuais de

diversas áreas, autoridades civis, religiosas e militantes de vários grupos

comunitários. Eles tiveram como eixo de atuação, tanto o monitoramento das

políticas públicas relacionadas ao HIV/AIDS, como a produção e disseminação

de informações atualizadas sobre a doença. A Abia, por ter conseguido

mobilizar segmentos sociais expressivos, teve grande atuação junto ao

governo no sentido de estabelecer as políticas públicas de controle da

epidemia.

17 No dia 22/02/2008 foi anunciado no Jornal Folha de S.Paulo que a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o

teste de detecção de HIV por via oral. O exame usa a saliva, sai em 20 minutos tendo 99% de confiabilidade. No entanto, o teste oral

não estará à venda nas farmácias e será usado somente em centros de saúde, hospitais, clínicas e laboratórios particulares, pois a

inclusão ou não do teste no serviço público ainda está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde. [email protected] – acessado

em 23/02/2008.

Page 52: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

52

Ao contrário da Abia, o Grupo pela Vidda formou-se basicamente de portadores

do HIV, assintomáticos ou não, por amigos e familiares. Seu objetivo era dar

voz aos portadores de HIV como forma de se contrapor ao discurso oficial, que

havia provocado medo e discriminação, alimentando reações sociais,

econômicas, ideológicas e políticas em relação à AIDS (NASCIMENTO, 2005:

95).

As ONGs/AIDS compartilhavam a idéia de que o Estado deveria

responsabilizar-se pelo estabelecimento de uma política pública para atender

aos soropositivos e doentes. Exigiam, também que se criasse mecanismos de

controle da doença, cabendo-lhes somente o papel complementar as ações do

governo.

No entanto, por ineficácia do governo brasileiro em cuidar da prevenção e da

assistência, o papel das ONG’s/AIDS foi muito além dos seus propósitos

iniciais, cabendo-lhes também uma forte atuação na disseminação de

informações e na educação referente à prevenção da doença, além de

exercerem pressão para que o governo brasileiro formulasse políticas

consistentes e eficazes na luta contra a AIDS.

Atualmente, segundo relatório do Ministério da Saúde sobre a Reposta

Brasileira às Metas e Compromissos Assumidos pelos Estados-Membros na

Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em HIV/Aids:

No contexto da gestão participativa, movimentos sociais organizados de luta contra a aids, autônomos, articulam políticas e ações estratégicas em todo o território nacional. Como exemplos: 1- Fóruns de ONG/Aids: iniciados a partir de 1996, constituem espaços importantes de representação das ONG e dos movimentos sociais que atuavam no País desde 1983. Hoje, existem fóruns nos 26 estados brasileiros, numa articulação política nacional para acompanhamento e construção das políticas publicas em HIV/aids no âmbito municipal, estadual e federal. 2- Organizações de Pessoas Vivem com HIV/Aids: a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids – RNP+Brasil - foi

Page 53: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

53

fundada em 1995, com o intuito de possibilitar aos portadores do vírus HIV/aids oportunidades para se tornarem protagonistas da luta contra a aids no País, fortalecendo conhecimentos sobre seus direitos e deveres como cidadãos e, também, acerca das políticas públicas de saúde. Possui representações em todas as esferas de controle social do Estado e é reconhecida por ser esfera mais ampliada de organização e representação das PVHA... 3- Organizações de grupos vulneráveis: essas redes e articulações atuam no território nacional na defesa de direitos humanos, visibilidade, inclusão social e no contexto do enfrentamento da epidemia de aids com suas especificidades... (RELATÓRIO UNGASS – Resposta Brasileira 2005-2007-MINISTÉRIO DA SAÚDE – 2008:21/22)

Ao contrário dos progressos médico-científicos em relação à AIDS, é possível

afirmar que os progressos referentes à relação do infectado com o meio social

foram substanciais. Nos anos 90 assistimos a um progresso crescente de

integração social por meio da criação de grupos de apoio e assistência aos

soropositivos. Na opinião de Nascimento (2005), “a organização de pessoas

comprometidas, em diversos graus, com o problema da AIDS, resultou em

avanços para uma melhor assimilação, por parte da sociedade, da idéia de

convivência com a doença”.

Mesmo o conceito de ‘grupo de risco’, que resultou em forte discriminação

daqueles aí enquadrados, foi alterado e passou-se a trabalhar com a idéia de

‘comportamento de risco’, mas, ainda assim, de responsabilidade individual em

relação à prevenção da doença. Atualmente utiliza-se o conceito de

‘vulnerabilidade’18, de forma muito mais ampla e considera-se três planos

interdependentes de determinação dela: a vulnerabilidade individual que 18 www.saude.df.gov.br. A origem do conceito de vulnerabilidade - acessado em 12/02/2008.

O conceito de vulnerabilidade nasceu na área dos Direitos Humanos, tendo sido incorporado ao campo da saúde a partir dos trabalhos

realizados na Escola de Saúde Pública de Harvard por Mann sobre a epidemia da Aids. Em seus trabalhos, Mann e colaboradores

(1993) passaram a utilizar o conceito de vulnerabilidade e a elaborar indicadores para avaliar o grau de vulnerabilidade à infecção pelo

HIV, considerando três planos interdependentes de determinação. Com base nesses estudos, pode-se dizer que o conceito de

vulnerabilidade busca avaliar a suscetibilidade de indivíduos ou grupos a um determinado agravo à saúde.

Page 54: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

54

considera, o conhecimento do indivíduo a respeito da gravidade da doença e a

existência de comportamentos que facilitam a ocorrência da infecção; a

vulnerabilidade programática que considera o acesso aos serviços de saúde,

aos programas de prevenção e os recursos sociais existentes na área de

abrangência do serviço e, por último, a vulnerabilidade social que avalia a

dimensão social da doença, utilizando-se de indicadores capazes de revelar o

perfil da população no que se refere ao acesso à informação.

No entanto, infelizmente, a adoção e o conhecimento desses conceitos

certamente não se tornaram de domínio público tanto quanto o conceito de

‘grupo de risco’. Na opinião de Soares (2001):

A trajetória da transformação do conceito de ‘risco’ em ‘vulnerabilidade’, ocorrida nos anos 90, é uma abordagem bastante interessante para se pensar a questão da Aids enquanto construção social e suas campanhas de prevenção... É interessante notar que as mídias não divulgaram os conceitos ‘comportamento de risco’ e ‘vulnerabilidade’ com a mesma intensidade com que divulgaram o conceito de ‘grupo de risco’, e nem a própria sociedade os incorporou tão largamente... (SOARES, 2001:82).

Nota-se assim que os resultados dos estudos realizados por Nascimento e

Soares revelaram como a AIDS tem sido ligada à responsabilidade e à

culpabilidade de determinados grupos sociais, denominados “outros” e sua

representação social atrelada à “condição estrangeira, aos outros e a pessoas

estranhas” como responsáveis pela disseminação da doença.

Segundo Nascimento (2005), o surgimento da AIDS colocou em xeque o

campo médico-científico, num momento em que as doenças contagiosas

encontravam-se num estágio de quase absoluto controle, ou, pelo menos, de

curabilidade. E por ter surgido em países desenvolvidos ou por ter atingido

indivíduos com maior poder de organização, a AIDS tornou-se rapidamente

uma questão pública, ao contrário da tuberculose que só perdeu seu

significado mítico, a partir do postulado de Koch em 1882. Ele passou a

orientar as ações higienistas que estavam intrinsecamente relacionadas à:

Page 55: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

55

doença, natureza e sociedade. Com isso, a saúde tornou-se uma questão de

interesse público e de competência estatal.

A rápida invasão do espaço público pela AIDS, fez com que a doença

adquirisse significados múltiplos e variados, porque apesar dela ter sido

definida sob a ótica médica, outras instituições, alinhadas às suas próprias

estratégias discursivas, participaram das diferentes construções de sentidos da

doença.

Page 56: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

56

CAPÍTULO4

Page 57: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

57

CAPÍTULO 4

Neste capítulo será feita uma reflexão teórica acerca da formação dos efeitos

de sentido e se abordará as estratégias de produção e de efeitos de sentidos,

através de um levantamento do que se falou sobre a AIDS, especificamente a

grande cobertura que foi dada pela mídia impressa ao assunto.

4. Efeitos de Sentido: uma reflexão teórica

4.1 O surgimento da Análise do Discurso

Em 1960 originou-se na França, uma disciplina chamada Análise do Discurso

(doravante denominada AD) – estruturada no espaço que há entre a lingüística

e as ciências sociais. Esta nova disciplina originou-se a partir dos estudos do

lingüista Jean Dubois, e do filósofo Michel Pêcheux, que partilhavam

convicções sobre a luta de classes e a história do movimento social.

A AD propõe um deslocamento das noções de linguagem e sujeito que se dá a

partir de um trabalho com a ideologia, permitindo-se entender a linguagem

enquanto produção social e, conseqüentemente, trabalhar em busca dos

processos de produção de sentido e de suas determinações histórico-sociais.

A análise visa a apreender esse novo objeto (discurso como processo), indagando sobre as novas condições de sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui. (GREGOLIN e BARONAS, 2003:7).

Segundo Gregolin (2003), Saussure, Max e Freud formaram o tripé das

propostas de Pêcheux, que situa o discurso em três regiões do conhecimento:

na lingüística – ele atribuiu a Saussure o lugar de fundador da Lingüística como

ciência: no materialismo histórico – com a releitura de Althusser sobre Marx

(que afirmava que o real da história não é transparente para o sujeito porque

ele é subjugado pela ideologia); e finalmente, na psicanálise, com a releitura

Page 58: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

58

lacaniana de Freud, que analisou a relação do sujeito com o simbólico, onde o

inconsciente é estruturado por uma linguagem.

Para Gregolin (2003), este triplo assentamento traz uma série de

conseqüências teóricas e metodológicas ao discurso19

Posteriormente, as idéias de Pêcheux acompanharam as mudanças teóricas e

políticas dos anos 80 e 90. Elas aproximaram-se de outros fundadores, dentre

eles, Foucault foi quem definiu que, uma ordem de discursos é um conjunto ou

uma série de tipos de discursos, que são classificados, socialmente ou

temporalmente, a partir de uma origem comum. Para Foucault, os discursos

produzidos num mesmo contexto de uma instituição ou comunidade, para

circulação interna ou externa interagem não apenas entre eles, mas também

com textos de outras ordens discursivas (Gregolin, 2003).

Foucault contextualizou os discursos como elementos relacionados em redes

sociais e determinados socialmente por regras e rituais (os saberes e os micro-

poderes), modificáveis porque lidam permanentemente com outros textos que

chegam ao emissor e o influenciam na produção de seus próprios discursos

(GREGOLIN, 2003).

De Bakhtin, Pêcheux incorporou as idéias da heterogeneidade, do dialogismo,

do discurso inscrito em uma série de traços sócio-históricos, com os quais todo

sujeito necessita situar-se. (GREGOLIN, 2003).

Ainda segundo Gregolin (2003), Pêcheux posteriormente absorveu as idéias

dos teóricos da Nova História, como Michel de Certeau, Jacques Legoff e

Pierre Nora, que propuseram: a análise dos discursos do cotidiano, a reflexão

sobre a escrita da história e a emergência das resistências. Sobre este período,

Gregolin:

19 Conseqüências Teóricas: forma material (o discurso é ao mesmo tempo lingüístico-histórico, uma vez que a sua produção de

sentido está enraizada na História); a forma sujeito do discurso é ideológica, não psicológica, não empírica; na ordem do discurso há o

sujeito na língua e na História; o sujeito é descentrado porque ele tem a ilusão de ser a fonte, mas o sentido já foi dito antes em outro

lugar e outro tempo;

Conseqüências Metodológicas: a busca de um dispositivo de análise do processo discursivo; a busca dos vestígios históricos e de

memória do discurso e a conseqüente inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do discurso.

Page 59: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

59

A análise do discurso desloca-se da primazia sobre o discurso político, sobre a materialidade escrita, para encontrar outras formas materiais, outros regimes de materialidade. Esse deslocamento levou Pêcheux, em seus últimos textos, a preferir falar em “análise de discurso” em vez da fórmula tradicional “análise do discurso”; ao mesmo tempo, o leva a intuir a fecundidade da análise da materialidade não-verbal e a nuançar a aproximação com a Semiótica (Gregolin, 2003:9).

4.2 Os estudos da AD no Brasil

Os autores Maria do Rosário Gregolin e Roberto Baronas organizaram um

seminário sobre pesquisa, com o objetivo de investigar as múltiplas

materialidades do sentido. O seminário, realizado pelo Grupo de Estudos de

Análise do Discurso da FCL-UNESP, contou com a participação de diversos

estudiosos, de onde originaram “textos que lançassem olhares sobre o

discurso, suas nervuras e complexidades” (GREGOLIN et al, 2003:9).

Com base nesses autores, e partindo da premissa de que sem discurso não há

produção de sentido, analisaremos as propostas fundadoras de análise do

discurso de Bakhtin, Pêcheux e Foucault com a finalidade de refletir

teoricamente sobre as materialidades do sentido.

4.2.1 A construção social dos sentidos

A autora Beth Brait (2003), rastreou historicamente a obra de Bakhtin para

demonstrar como o discurso era encarado por ele. Ela aponta para a dispersão

de sua obra, e também a falta de linearidade entre a publicação e a

distribuição dos textos do autor, o que dificultou suas releituras e a

interpretação delas.

No entanto, na visão da autora, há uma profunda coerência na obra do teórico

russo e seu círculo:

Page 60: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

60

Se hoje, para imaginar uma seqüência linear das reflexões, assinadas por Bakhtin ou por outros membros do círculo, teríamos de reler as obras, o que efetivamente várias pessoas estão fazendo nesse momento, encontrando uma profunda coerência para a colcha de retalhos que nos chegou, teríamos também de reconhecer que essa coerência de fato já estava metonimizada em cada trabalho, especialmente se considerarmos a concepção histórico-cultural de linguagem que orienta e se constitui como marca essencial do conjunto dos textos (BRAIT, 2003:20).

Desse conjunto de textos da obra bakhtiniana, o que nos interessa investigar

são os textos que extrapolaram a teoria literária; e que passaram a ser lidos,

segundo Brait (2003), a partir da década de 90; sob a ótica da linguagem em

geral e não exclusivamente à ótica da literatura. Aos textos de Brait fiz uma

complementação com alguns estudos de Robert Stam.

Brait (2003) afirma que, na obra Estética da comunicação verbal20, aparecem

três ensaios21 fundamentais para reflexões sobre a linguagem nas ciências

Humanas em geral.

Nestes trabalhos, Bakhtin destaca a importância e a presença do texto em

todas as Ciências Humanas. Para Bakhtin, o texto é a “única realidade” do

pensamento e da vivência, e um ponto de partida para todas as disciplinas

(BRAIT, 2003). No ensaio “Por uma metodologia das Ciências Humanas”,

Bakhtin deu continuidade às questões do “texto”, e discutiu aspectos sobre a

natureza da compreensão, da imagem, do símbolo e da compreensão dialógica

ativa. Mas é em Gêneros Discursivos que Bakhtin vai religar todos os conceitos

anteriormente citados em suas obras: “signo, enunciação, interação,

dialogismo, plurilingüismo, polifonia etc.” (BRAIT, 2003:23).

20 Estética da comunicação verbal (1979 - reunião de textos, incluindo um de 1919, até então inédito e o último publicado em vida, de

1974 - “Por uma metodologia das ciências humanas”, espanhol 1982; português 1992).

21 A questão dos gêneros discursivos” (Bajtín, 1982, p.248-93), “O problema do texto na lingüística, na filologia e outras ciências

humanas: Ensaio de análise filosófica” (Bajtín, 1982, p.294-323) e “Por uma metodologia das Ciências Humanas” (Bajtín, 1982, p.381-

96) (BRAIT, 2003:22).

Page 61: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

61

Em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” de 1929, originalmente publicado

sob o nome de Voloshinov, Bakhtin abordou o signo sob a perspectiva

dialógica, enquanto intercâmbio verbal e não simplesmente como uma entidade

abstrata para ser interpretada meramente à luz de uma organização, mas sim,

um ponto de encontro entre sujeitos, a língua e a história.

Para Robert Stam (1993), este texto é a primeira intervenção direta de Bakhtin

sobre o pensamento contemporâneo da linguagem. Ao contrário de Sausurre,

que considerava que a linguagem e a ideologia existiam somente na

consciência individual, Bakhtin aponta para a sua descentralização e classifica

a consciência como uma realidade sócio-ideológica.

Para Bakhtin tanto a consciência quanto a ideologia só passam a existir depois

de alguma realização semiótica, seja sob a forma da própria “fala interior” ou

do processo de “interação verbal com outros”, seja através de processos de

mediação, como a literatura e a arte. Esta fala interna quando traduzida em fala

pública é capaz de agir sobre o mundo.

Este conceito de “translingüistica” de Bakhtin rejeita o individualismo

mentalista de Sausurre, uma vez que ele considerou que a língua não pode ser

entendida isoladamente, porque cada análise lingüística deve incluir,

necessariamente, fatores extra-lingüisticos como o contexto da fala, a relação

do falante com o ouvinte, o contexto histórico etc.

Aqui, Brait (2003) enfatizou que o conceito de interação bakhtiniano difere de

outras concepções interacionistas, cujo foco de análise para a compreensão de

sentidos está basicamente centrado na situação e não no exterior, como

propõe Bakhtin:

Ao apontar para “um contexto mais amplo”, Bakhtin já acena com a participação do interdiscurso, ou seja, da história e da memória, nem sempre explícita na situação, mas sem dúvida participantes ativas da produção de sentidos. (BRAIT, 2003:25).

Ainda neste ensaio, Bakhtin definiu a enunciação como um produto da

interação social. A fala pode ser individual, mas ela produz enunciados que

Page 62: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

62

são definitivamente sociais, uma vez que um enunciado necessita de um

falante e de um interlocutor socialmente instituídos.

Segundo Stam (1993), para Bakhtin a individualidade não se desenvolve

contra o social, mas sim através dele. O processo de construção do eu se dá

por meio da escuta e da assimilação dos discursos aos quais somos expostos:

família, amigos, instituições religiosas, educacionais, políticas etc., todos

assimilados e processados através do diálogo.

Após a definição da enunciação, Bakhtin descreveu uma série de elementos

que contribuiriam para a concepção do gênero discursivo. Para Bakhtin,

qualquer enunciado faz parte de um gênero. Porém, esta participação não se

dá de forma pura e determinante, pois ao se anunciar alguma coisa, essa é

expressa, necessariamente, num determinado gênero. Enquanto que, o

enunciado, o discurso e o texto serão sempre respostas a outros enunciados

que vieram antes e produzirão respostas futuras:

Assim, quando Homero inicia no Ocidente uma tradição genérica com sua “Odisséia”, ele está recuperando gêneros de uma tradição que o antecede... Ao mesmo tempo, ele está instaurando, motivando respostas que constituirão, na esteira da sua obra, outras epopéias. (BRAIT, 2003:26)

Para Bakhtin é impossível operacionalizar conceitos pré-estabelecidos, pois ele

não acreditava que esta fosse uma função das Ciências Humanas (BRAIT,

2003). Seu pensamento, enquanto produtor de conhecimento, de que um

contato dialógico com o corpus selecionado é inconclusivo e sem fim, por

causa da dinâmica que, permanentemente, intriga ao analista. Fato que o leva,

até mesmo a buscar conceitos e noções, em outras disciplinas, à procura de

ajuda para analisar a complexa relação que existe entre as atividades humanas

e as atividades discursivas que delas advêm. Para Brait:

...Seja qual for o lugar assumido para olhar o pensamento bakhtiniano, a idéia do diálogo, enquanto estrutura enunciativa e enquanto forma dialógica constitutiva da existência das atividades de linguagem atravessa o campo

Page 63: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

63

de visão e desdobra as possibilidades do ver, incluindo incessantemente a história e a memória na cena de produção de sentidos e de seus efeitos. (BRAIT, 2003:29)

Consequentemente é importante destacar que Bakhtin situou o sentido do uso

da linguagem e da comunicação através do enunciado, que sugere que os

sentidos são gerados e ouvidos como vozes sociais que interagem

constantemente – o dialogismo.

4.2.2 Sentido e memória discursiva

O autor Sírio Possenti (2003) propôs um aprofundamento da idéia de efeito de

sentido, a partir de um diálogo das propostas de Pêcheux com as de Freud-

Lacan. Ao confrontar as propostas e colocá-las nas formulações da AD,

derivada de Pêcheux, o autor demonstrou que o “efeito de sentido” não é

produzido no instante de sua enunciação com base em certa relação entre

significantes; mas sim que as palavras têm seu sentido num discurso, sentido

que sempre remete às ocorrências anteriores; que a qualquer enunciação

supõe-se uma posição a partir da qual recebe seu sentido e que, portanto, o

sentido implica numa memória discursiva, na qual formulações relacionam-se

historicamente.

De fato, a AD não pode aceitar que o efeito de sentido seja um efeito que se produza no instante mesmo da enunciação, com base numa certa relação entre significantes (como propõe Lacan)... Portanto, para a AD, não só não é estranho conceber a existência de um sentido anterior a uma enunciação específica, como até mesmo uma exigência... (POSSENTI, 2003:38)

Segundo Possenti (2003), para Pêcheux duas coisas são claras: a primeira é

que a matriz do sentido não é a palavra ou o enunciado e sim uma “família”

metafórica ou parafrásica, conforme o caso, ou seja: o que é metáfora na

relação palavra a palavra é paráfrase em relação ao enunciado. A segunda é

que para a AD o sentido não pode ser produzido pela enunciação de um texto

Page 64: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

64

no momento da sua enunciação. Ele somente terá sentido, na medida em que

for circunscrito num discurso que lhe é necessariamente anterior. Ou seja:

Para a AD, se o sentido não pode ser prévio ou fixo em termos de língua, pode sê-lo (mais ou menos prévio ou mais ou menos já dado) em termos de discurso. É só assim que determinadas formulações são reconhecidas como pertencendo a um certo discurso. (POSSENTI, 2003:39)

A partir dessa reflexão, podemos afirmar que Pêcheux, em resumo, quer dizer

que as palavras têm seu sentido num discurso que remete a outros discursos

anteriores. Isto é, segundo Possenti:

Qualquer enunciação supõe uma posição, e é a partir dessa posição que os enunciados (palavras) recebem seu sentido. Melhor ainda: qualquer uma dessas posições implica numa memória discursiva, de modo que as formulações não nascem de um sujeito que apenas segue as regras de uma língua, mas do interdiscurso, vale dizer, as formulações estão sempre relacionadas a outras formulações. (POSSENTI, 2003:40)

Nesse sentido compreendemos que, com relação às propostas da AD, existe

sempre uma conexão entre o que se diz e outros discursos do mesmo tipo e

que o resultado, em termos de sentido, só existe se ele também estiver

conectado a um tipo de memória.

4.3 As enunciações discursivas na construção dos sentidos

O sentido não é doado, ele é construído pelo trabalho das enunciações

discursivas (FAUSTO NETO, 1999). E como são construídos os enunciados?

Existe relação entre eles? Com essas indagações é que fizemos um

rastreamento na obra de Michel Foucault, para refletir sobre como se dá o

processo de formação de um discurso.

Michel Foucault (1969), ao decidir estudar as formações discursivas, tomou

como base três grandes grupos de enunciados que fazem parte do nosso

Page 65: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

65

cotidiano: a medicina, a economia e a gramática, questionando em que ponto

poderia se fundar a sua unidade.

Assim, ao descrever os enunciados no campo dos discursos, que estão

expostos a modificações, visualizou algumas hipóteses: para Foucault a

primeira hipótese foi achar que os enunciados, diferentes em sua forma e

dispersos no tempo, formariam um conjunto ao se referir a um mesmo objeto.

No entanto, ao rastrear a construção da doença mental, através do que foi dito

a seu respeito e ao longo da sua evolução histórica, Foucault (1969) concluiu:

se a construção foi feita pelo conjunto dos dizeres nos enunciados que a

nomearam, é impossível que esse conjunto de enunciados se relacione a um

único objeto. Isto porque o objeto, ao longo do seu processo de nomeação,

descrição, explicação, sofre alterações através dos discursos, sendo que sua

formação nunca acontece de maneira inesgotável e definitiva:

...a doença mental foi construída pelo conjunto do que foi dito no grupo de todos os enunciados que a nomeavam... O objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais; da mesma forma, todos os objetos do discurso psicopatológico foram modificados desde Pinel ou Esquirol até Bleuer: não se trata das mesmas doenças, não se trata dos mesmos loucos. (FOUCAULT, 1969:36)

Diante dessas reflexões, podemos inferir com Foucault que, ao contrário do

que parece, definir um conjunto de enunciados no que ele tem de individual

consiste em descrever a dispersão dos objetos e classificar sua divisão no

espaço social.

A segunda hipótese, levantada por Foucault (1963), é a respeito da definição

de um grupo de relações entre enunciados: sua forma e sua conexão.

Para isto, Foucault toma como exemplo a evolução da medicina, a partir o séc.

XIX. Ele reconheceu que a enunciação descritiva não passava de uma das

Page 66: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

66

formulações do discurso médico e que as outras formulações baseavam-se

numa série de elementos necessários à própria existência da medicina, sendo

que a primeira não poderia abstrair-se das outras formulações.

Foucault (1969) reconhece também que esta formulação descritiva não parou

de evoluir, conforme todos os campos da medicina também evoluíram e que

todas essas alterações foram lentamente agregando-se ao médico no decorrer

do séc. XIX. Assim, se há uma unidade, ela não está determinada numa forma

de enunciados e sim no estudo da sua evolução:

Seria preciso caracterizar e individualizar a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos; o sistema que regem a sua repartição, como se apóiam uns nos outros, a maneira pela qual se supõem ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo do seu revezamento, de sua posição e de sua substituição. (FOUCAULT, 1969:39)

Em uma terceira hipótese, Foucault questiona se não seria possível

estabelecer grupos de enunciados, a partir de um sistema de conceitos

permanentes e coerentes entre si. Ao analisar a evolução da linguagem e da

gramática concluiu que a todo objeto pressupõe-se o aparecimento de novos

conceitos, que alguns são derivados entre eles, talvez dos primeiros, mas que

outros são heterogêneos e até mesmo incompatíveis.

Para Foucault,

A noção de ordem sintática natural ou inversa, a de complemento (introduzida no decorrer do século XVIII por Beauzée) podem, sem dúvida, integrar-se ainda ao sistema conceitual da gramática de Port-Royal. Mas nem a idéia de um valor originariamente expressivo dos sons, nem a de um saber primitivo guardado nas palavras e transmitido obscuramente por elas, é compatível com o conjunto dos conceitos que Lancelot ou Duclos podiam usar. (FOUCAULT, 1969:39)

Page 67: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

67

Assim sendo, Foucault propôs que se descobrisse uma unidade discursiva não

na coerência dos conceitos, mas sim através da análise dos seus

aparecimentos e afastamentos tanto na distância que os separa quanto na sua

incompatibilidade.

E, finalmente, em uma quarta hipótese sobre as formações discursivas, às

quais, Foucault propôs uma análise da identidade e da persistência dos temas.

Para tanto, Foucault chama a atenção para as ciências econômicas e

biológicas, que são tão expostas a polêmicas e tão permeáveis a discussões

filosóficas e morais. Assim como são tão suscetíveis à utilização política, e

conseqüentemente questiona-se, se não é possível que certa temática seja

capaz de ligar e de animar um conjunto de discursos.

E conclui que a mesma temática pode ser articulada conforme a dualidade de

conceitos, análises e campos de objetos totalmente diferentes: a idéia

evolucionista do século XVIII e a do século XIX, foi desenvolvida a partir de

conceitos totalmente diferentes. Embora o tema seja o mesmo, os discursos

para descrevê-lo são diferentes.

Enquanto que na fisiocracia, um mesmo conceito pode gerar duas opções

diferentes para se explicar a mesma coisa: a formação de valor podia ser

explicada tanto através da troca quanto por meio da remuneração da jornada

de trabalho (FOUCAUL, 1963).

Assim, Foucault questionou se não seria mais apropriado, ao invés de buscar

nesses temas o princípio de individualização de um discurso, demarcar a

dispersão dos pontos de escolha e definir um campo de possibilidades

estratégicas.

A partir destas quatro hipóteses em que Foucault perguntara em que poderia

se fundar a unidade de três grandes famílias de enunciados, que foram

designada por ele de: medicina, economia e gramática.

O autor se depara com uma série de dispersões entre os enunciados, as quais

ele convencionou chamar de formação discursiva (Foucault, 1969:43).

Page 68: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

68

4.4 Memória e produção de sentido

Para a autora Edna Maria Fernandes do Nascimento (2003), ao se aplicar os

conceitos semióticos, de A.J. Greimas, para analisar os textos jornalísticos,

propõe-se que ao pensar a produção de sentido e sua articulação com a

memória, o sujeito enunciador produz um novo texto a partir do momento em

que ele se apodera de um saber já institucionalizado, tanto na língua quanto na

cultura, transcodificando-o no ato enunciativo. Isto se dá graças à capacidade

de elaborar traduções intralinguais, ou seja, de ampliar os significados daquilo

que se lê originalmente e/ou acrescentar novas nuanças de significação, a

partir de uma determinada leitura. Na opinião de Nascimento

Segundo nosso ponto de vista, é a capacidade de definir, de elaborar traduções intralinguais, ou seja, de atribuir novas diferenças específicas a uma definição-tipo de um termo, que permite a um sujeito enunciador se apoderar de um saber já institucionalizado, tanto na língua, quanto na cultura, e transcodificá-lo no ato enunciativo, produzindo um texto novo. Nessa perspectiva, todo texto é a construção de um novo saber a partir de um saber comum: memória e gênese. (NASCIMENTO, 2003:33)

Os estudos destes autores vieram ao encontro dos nossos anseios de fazer

uma breve reflexão acerca da construção dos efeitos de sentido. Pudemos

refletir sobre a relação entre sentido e memória, o papel do produtor e do leitor

na interpretação de um discurso, a constituição dos sentidos no discurso e o

papel dos sujeitos na sua construção, levando-nos a questionar de onde é que

os sentidos se constituem. Na língua, no texto, na história, na conexão com

outros discursos ou na memória discursiva?

4.5 Os efeitos de sentido da AIDS na mídia impressa

Page 69: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

69

Este capítulo apresenta um estudo, para auxiliar na compreensão da prática

comunicativa sobre um determinado tema, num determinado território: o

mapeamento da rede de produção de sentidos da AIDS nos principais jornais

do país.

Pretendemos aqui fazer um levantamento das estratégias de produção e de

sentido gerados pela mídia impressa, a partir dos diversos gêneros de

discursos oriundos das instituições que falam da AIDS, mediante as disputas

discursivas: médicos, religiosos, indústria farmacêutica, políticos, entre outros.

Aqui, vale à pena fazermos um parêntese, para conceituarmos o que é a mídia,

segundo Spink et al (2001), em consonância com as reflexões de Thompson:

... um sistema cultural complexo que envolve uma dimensão simbólica e uma dimensão contextual. A dimensão simbólica – um constante jogo entre signos e sentidos –compreende (re)construção, arma-zenamento, reprodução e circulação de produtos repletos de sentidos, tanto para quem os produziu (os media) como para quem os consome (leitores, espectadores, telespectadores etc.). A mídia compreende também uma dimensão contextual – temporal e espacial -, na medida em que esses produtos são fenômenos sociais, situados em contextos, que têm aspectos técnicos e comunicativos e propriedades estruturadas e estruturantes. (SPINK et al, 2001:854).

Como uma nova doença que ainda não tinha sido devidamente codificada pela

ciência, o discurso da AIDS foi construído pela medicina e, quase

simultaneamente, pela opinião pública - onde a mídia teve um papel

importante, o que talvez tenha dado origem às representações apoiadas em

idéias marginalizadas e discriminatórias.

É importante ressaltar que o primeiro texto oficial a respeito da AIDS, foi um

artigo publicado no Morbidity and Mortality Weekly Report (MMWR) – boletim

oficial do “Center of Disease Control (CDC)”, em 05 de junho de 1981. Apenas

um mês depois - julho de 1981, um artigo assinado por Laurence Altman,

cronista sobre medicina do New York Times, leva ao público leigo informações

Page 70: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

70

sobre o surgimento de um “fenômeno patológico curioso que intrigava os

especialistas e começava a assustar os gays de Nova York” (NASCIMENTO,

2005).

No Brasil, a primeira notícia publicada em um jornal foi no dia 12 de julho de

1983. O Jornal do Brasil publicou a 1ª notícia sobre casos de AIDS no país:

“Brasil registra dois casos de câncer gay”22.

Assim sendo, essa construção foi, pelo menos no início, obra dos meios de

comunicação, mais precisamente da mídia impressa. Foi através dos jornais

que a AIDS passou a existir para a sociedade como um todo, e a fazer parte do

cotidiano das pessoas. Foi ela quem anunciou o aparecimento de um novo

fenômeno no campo da patologia, foi ela que levou as primeiras informações

do domínio médico para o domínio social.

Segundo Spink et al (2001), este papel da mídia tem chamado a atenção de

diversos pesquisadores, cujo principal foco de atenção está voltado para as

funções da mídia como elemento importante na produção de sentidos na

sociedade contemporânea, frente aos acontecimentos novos e/ou

ameaçadores:

A mídia, nessa perspectiva, cumpre dois papéis importantes: por um lado, a imprensa anunciou o aparecimento de um novo fenômeno no campo da patologia; e, por outro, desenhou progressivamente seus contornos e, sobretudo, operou a passagem das informações sobre a doença do domínio médico e científico para o registro social. (SPINK et al, 2001:853).

No entanto, esta construção não se deu de forma isolada, pois estamos

assumindo que no campo da comunicação social, várias vozes concorrem

entre si para fazer prevalecer o seu próprio modo de perceber, analisar e

intervir sobre a realidade. Assim sendo:

Parte-se, pois, do entendimento de que o campo da comunicação social não se

22 www.ioc.fiocruz.br/AIDS20anos/linhadotempo.html - 26k. Acessado em 21/07/2008.

Page 71: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

71

constitui apenas num lugar de “acolhimento” das representações sociais, em torno das quais se estabelecem e se articulam as compreensões e os processos de interação social. Pelo contrário, este campo se destaca como agente que, dispondo de regras e poderes específicos, dá conta de operar a própria construção dos sistemas de representações. (FAUSTO NETO, 1991:13).

Ao assumirmos isto, assumimos a idéia de “polifonia”, que faz referência à

presença de múltiplas vozes, que ora se configuram em sinergia, ora

concorrem entre si (ARAÚJO, 2000) na produção, circulação e recepção de

sentido.

Assumimos também que a comunicação não é só um campo de repasse de

idéias e conteúdos, de discursos alheios, mas sim que a comunicação também

é uma produtora de realidade e conhecimento, claro que em conformidade

com os seus próprios saberes, regras de construção, e códigos de produção.

Desta forma, segundo Fausto Neto (1991),

...o campo da comunicação social não se constitui apenas num lugar de “acolhimento das representações sociais, em torno das quais se estabelecem e se articulam as compreensões e os processos de interação social. Pelo contrário, este campo se destaca como agente que, dispondo de regras e poderes específicos, dá conta de operar a própria construção dos sistemas de representações. (FAUSTO NETO, 1991).

4.5.1 A construção da morte

Um dos aspectos mais marcantes da epidemia da AIDS foi destacado, em 30

de outubro de 1985 pelo Jornal Francês Le Fígaro, com a seguinte frase: A

AIDS é a primeira doença da mídia (SPINK et al, 2001). Sim, a AIDS foi

amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e assim,

constituiu-se gradativamente um novo fenômeno social.

Page 72: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

72

Os meios de comunicação não formam um mero sistema de repasse de

conteúdos, mas sim um dispositivo de produção de realidade e conhecimento

(FAUSTO NETO, 1991:14), assim como outros campos de saberes que se

utilizam de seus próprios meios para falar do corpo, das doenças e da morte;

os meios de comunicação igualmente simbolizam estas questões.

Pessoas morrem todos os dias, em decorrência da violência urbana, de

negligências diversas, de doenças, por causa de guerras e de atentados. No

entanto, há um tipo de morte que é supervalorizada, de certa forma

hierarquizada pelos meios de comunicação – trata-se da morte de pessoas

públicas, das “superpessoas”, cujas mortes são retratadas como um

acontecimento social, pois os meios de comunicação lhe dão grande cobertura

e valorização.

Quanto a isso, Fausto Neto (1991) afirma que a conseqüência imediata é a

subordinação deste acontecimento à inteligibilidade dos próprios sistemas de

enunciação mediáticos. Assim, as diferentes mortes, das diferentes pessoas,

são convertidas em objeto de formação da noção de realidade. Cada sujeito é

objeto, no que se refere ao discurso – de processos simbólicos e singulares,

que passam a particularizar a morte do corpo, mas de sujeitos sociais

diferentes (FAUSTO NETO, 1991:15).

Para Fausto Neto (1991), nos diversos processos discursivos da comunicação

de massa, são construídos registros sobre mortes de “indivíduos”,

“desconhecidos”, “pessoas”. Essa hierarquização funciona conforme o status

ou a importância que o morto goza dentro do sistema social. Tal hierarquização

se dá porque a mídia sofre pressões quanto a diferenciação social, que marca

o sujeito na vida e na morte. Ao mesmo tempo em que ela demonstra essas

diferenciações, também cria diferenciações para tratar e demonstrar a morte de

indivíduos socialmente diferentes.

‘A essa hierarquização pode-se juntar o registro/construção da morte de

indivíduos que exercem certa influência social, que pertencem a certo grupo,

como Fausto Neto diz - espécie de “superpessoas”, os “olimpianos”:

Page 73: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

73

(...) seres cuja vida privada é de certo modo pública, cuja vida pública de certo modo é publicizada, cuja vida real é de certo modo mítica. Referimo-nos aos chamados “olimpianos”, heróis e mitos produzidos pela cultura de massa; espécie de celebridades dos mundos do cinema, da música, da poesia, da política e, particularmente, no Brasil, da televisão. (FAUSTO NETO, 1991:15, 16).

Ainda, segundo Fausto Neto (1991), a morte dessas “superpessoas”, além de

serem acolhidas nos diferentes sistemas de comunicação, também são

construídas no seu interior conforme os seus próprios meios de referenciação.

Mas para que haja este “acolhimento” e esta “construção” a mídia necessita do

corpo do outro para transformá-lo em objeto de sua realidade, para não dizer

em sua mercadoria. Sem o outro, não há uma estória para contar, não há uma

realidade a ser construída.

No entanto, quais os tipos de mecanismos que estão por trás da construção

destas operações que tratam de “dissecar” e “esquadrinhar” o corpo dos

olimpianos? (FAUSTO NETO, 1991).

Para Fausto Neto (1991), várias operações podem dar conta desta tarefa.

Operações que ao mesmo tempo em que resvalam a morte, também criam a

sensação de imortalidade.

Aqui descreveremos as operações a que se refere o autor: Quem não se

lembra da morte do cantor Leandro, que compunha a dupla: Leandro &

Leonardo, há dez anos no Hospital São Luiz em São Paulo23 .Foi uma loucura

para conseguir satisfazer a todas as solicitações da imprensa. Links televisivos

que ficam no ar 24h por dia; plantão de repórteres dos principais jornais e

revistas do país. Todos ávidos por uma informação, por um acontecimento, por

uma estória dramática. Boletins médicos eram emitidos duas vezes ao dia –

mesmo quando não se tinha nada a dizer, somente que o paciente apresentava

um quadro estável.

23 Experiência pessoal da autora desta dissertação que, na época, ocupava o cargo de Gerente de Comunicação do Hospital São Luiz.

Page 74: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

74

Por causa da falta de notícias, de boletins médicos, de entrevistas aos outros

“olimpianos” que visitavam o cantor, as emissoras de TV veiculavam a história

da infância triste daquele cantor que trabalhava na roça, em Goiás, para

sobreviver. Suas músicas mais populares eram tocadas ininterruptamente nas

rádios, os jornais sempre apresentavam alguma história ainda não revelada.

Enfim, o cantor passou dias internado na UTI sem alteração substancial do seu

quadro clínico.

Após a sua morte, no cerimonial fúnebre, todos queriam ver seu corpo, todos

queriam participar, todos queriam ter acesso ao último adeus.

Por meio destas operações, os meios de comunicação constroem estruturas

simbólicas acerca da morte e dos processos que implicam na sua recusa

(FAUSTO NETO: 1991). E neste ponto, podemos entender como “recusa” a

criação da sensação de imortalidade.

Em se tratando de uma pessoa comum, os meios de comunicação criam outras

operações para conseguir construir suas estruturas simbólicas. Um exemplo

disso é a construção do lide – que em jornalismo significa o início de qualquer

texto. O repórter é quem tem a responsabilidade pelo lide, mas o redator pode

influenciar no conteúdo e na seqüência das matérias. O lide é construído

minuciosamente pelo repórter, porque a escolha das palavras, da estrutura do

texto e seu posicionamento têm grande importância no resultado almejado:

“Você pode abrir a matéria contando o caso, que o senhor José da Silva não encontrou AZT num lugar e tal, depois mostrar que isso acontece com 20 mil João José da Silva pelo Brasil (...) Aliás fica muito mais bonito... É muito mais bonito que você abrir que no ano passado o Brasil registrou 747 mil casos de AIDS e, destes, 385 foram de homens... dentre os quais João José da Silva. Esta é uma matéria que interessa menos ao leitor, é menos chamativa”. (SPINK ET AL apud editor, Ciência e Vida, sede do GLB: 2001).

Fausto Neto (1999) adiciona que além de todas as imposições que são

colocadas às vítimas da AIDS, como: “reclusões”, “encarceramentos” e

Page 75: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

75

“estigmatizações”, o sujeito que tem a sua vida privada permanentemente

especulada e sancionada pelo público de frente, vive uma situação ainda mais

complexa, quando o real e a ficção se fundem.

No entanto, a exemplo do que vimos acima, acreditamos ser oportuno

acrescentar que, ao julgarmos a forma de como as matérias são construídas,

há sempre uma dose de ficção na realidade daqueles que são acometidos pela

doença. Mesmo em se tratando de pessoas comuns.

4.5.2 A AIDS e a construção na mídia impressa

O surgimento da AIDS invadiu violentamente o espaço social com informações

a respeito da doença, porque as discussões em torno do controle e da

prevenção extrapolavam os campos de saberes científicos da medicina.

Essa questão, sem dúvida alguma, serve para ilustrar o funcionamento dos

mecanismos complexos de produção e de disputa de sentido entre as

instituições, que o consideraram como: um problema de natureza política e

outro de natureza simbólica(FAUSTO NETO, 1999).

Politicamente, a AIDS envolve uma série de questões: a ética, a moral, a

tecnologia e simbolicamente, segundo Fausto Neto (1999), a AIDS é um

significante que possui várias dimensões, que são resultantes das construções

de sentidos realizadas pelas estratégias de produção das instituições a ela

ligadas. São instituições médicas, políticas, religiosas, administrativas,

científicas etc.

No entanto, a AIDS só toma visibilidade à medida que é publicizada pelas

práticas midiáticas. A mídia, dentro do espaço público, é uma das instâncias

que tem o poder de construir a realidade. As demais são aquelas acima

mencionadas que também participam da produção do real.

Obviamente, as instâncias mencionadas não dependem da mídia para existir,

porém, se utilizam dela, com freqüência, para se auto-consolidarem como

portadores de saberes.

Page 76: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

76

Para Fausto Neto (1999) é justamente nesse ponto que o espaço público se

constitui, a partir das interações entre os campos das mídias e estes outros

campos, ou seja: através da mediatização.

É dentro deste espaço público que a AIDS tomou corpo social e diferentes falas

são produzidas em diferentes instituições e por meio de diferentes protocolos

discursivos, que eram usados em conformidade com suas próprias estratégias

e interesses. Assim, a AIDS se tornou um efeito de sentido dessas diferentes

falas e a mídia assumiu um papel fundamental para fazê-la chegar ao

conhecimento de todos.

Fausto Neto (1999) foi quem analisou as notícias publicadas nos jornais de

maior circulação no país, durante o período de 1983 a 1995, procurando

descrever as condições de comunicabilidade sobre AIDS e o trabalho de

produção de sentido que os jornais realizaram e concluiu que:

Os jornais estabeleceram uma relação de forças e de relações simbólicas com

os demais campos de saberes e poderes, enquanto que outras instituições não

jornalísticas exerceram um papel de coadjuvantes no processo da construção

de comunicação da AIDS na esfera do espaço público. Assim, podemos aferir

que o discurso AIDS se forma a partir de um conjunto de interações

discursivas, que são transformadas em representações sociais inteligíveis para

a sociedade.

Nestes termos, segundo Fausto Neto (1999) a AIDS só passa a existir a partir

da nossa experiência bio-histórico-ética-corporal e, particularmente, dentro de

uma diversidade própria que é a “ordem dos discursos”, se considerarmos que

várias falas participaram da sua construção.

Ainda segundo Fausto Neto (1999), apesar de várias instituições trabalharem

com o corpo na sua esfera técnico-ético-estética, a AIDS só passa a ser

compreendida através do trabalho específico que foi realizado pelos discursos

jornalísticos. É nesse lugar que a AIDS se corporifica e se realiza, é por causa

desse trabalho de construção, do qual participam várias vozes, é no trabalho

de articulação dos jornais, que a AIDS é nomeada e passa a existe para os

demais membros da sociedade.

Page 77: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

77

Entretanto, os jornais construíram o cotidiano da AIDS, de uma forma muito

peculiar e de acordo com seus próprios protocolos discursivos, conforme

aponta Fausto Neto:

Este cotidiano está estruturado em torno de agendas, tematizações, estratégias de tratamentos, hierarquização de outros discursos a partir de diferentes modalidades de políticas editoriais. (FASTO NETO, 1999:146).

Além disso, o discurso jornalístico protagoniza a AIDS de tal maneira que a

sociedade se converte “num grande paciente” e a eles são endereçados

diferentes discursos com as mais diferentes finalidades. As mídias realizaram

várias operações, sobretudo de natureza pedagógica, para, segundo Fausto

Neto (1999): criar um lugar de localização para a AIDS que, curiosamente

referia-se aos menos favorecidos - Terceiro Mundo, pessoas drogadas e

homossexuais; nomear a AIDS segundo um conjunto de metáforas de forma a

evitar que a doença vague sem sentido; aprofundar a compreensão patológica

sobre ela, como uma doença misteriosa, mas que só acontece com aqueles

que transgridem as regras sociais pré-estabelecidas, como os homossexuais e

usuários de drogas injetáveis; sublinhar o mal estar moral quanto ao

encaminhamento das terapêuticas, sobretudo daquelas que contrariavam

credos e princípios religiosos; instituir hierarquias de recepção, nomeando

aqueles que podem falar sobre a doença e aqueles que apenas podem ler o

que os jornais dizem; democratizar o acesso ao saber científico e ao mesmo

tempo apontar que ele não é o “dono da razão”; permitir que as fontes técnicas

façam as notícias, mas assumir que quem faz a sua inteligibilidade é a própria

cultura jornalística etc.

Desta maneira, as mídias cumprem a missão que lhes foi delegada pelos

outros campos de saberes, ao mesmo tempo em que assumem a existência de

suas novas funções, na construção do espaço público (Fausto Neto, 1999:148).

Apesar de entendermos que o estudo, de Fausto Neto, tenha contemplado uma

série de questões, a respeito dos efeitos de sentido da AIDS e construídos pela

mídia jornalística brasileira, achamos oportuno acrescentar as mais relevantes

Page 78: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

78

considerações elaboradas por Herzlich e Pierret, quando analisaram o tema em

seis jornais Franceses. Essa oportunidade decorre do fato de que os autores

chegaram a conclusões muito semelhantes, porém desenvolvidas sob um olhar

diferente.

Herzlich e Pierret (2005) apontaram que, para se compreender o excesso de

discurso que fez com que a AIDS se tornasse um fenômeno social, é

necessário atentar para dois aspectos importantes: o primeiro é a atribuição da

própria natureza dos grupos mais atingidos e os seus mecanismos de

transmissão, o que levou à constituição do discurso estereotipado sobre sexo,

sangue e morte. O segundo aspecto é que, pelo menos no início da doença,

as pessoas mais atingidas eram em grande número, membros da classe média

alta e pessoas com grande projeção pública, como: intelectuais, artistas etc.

Daí a afirmação de que a AIDS é uma doença da mídia.

Outro aspecto importante da doença foi o seu crescimento contínuo que, por si

só, já constituía a notícia e a informação, pois cada publicação de números,

associada a um acontecimento, adequava-se às exigências de ter sempre

alguma coisa de “novo” a dizer.

Herzlich e Pierret (2005) corroboram a idéia de que a elaboração do sentido da

doença esteve intrinsecamente ligada à progressão do saber. Em 1983, foram

publicados os primeiros trabalhos sobre o vírus colocando fim ao discurso da

ignorância. No mesmo ano começam a aparecer as primeiras reportagens

sobre a “maldição” que se abateu sobre as comunidades homossexuais

americanas, os chamados “grupos de risco”. Uma nova realidade social foi

construída a partir de fatos e noções científicas.

O discurso da AIDS foi se desenvolvendo de uma forma muito peculiar, pois foi

sempre um discurso sobre o outro, o mais distante possível de nós e o mais

estranho possível. Em 1987 o discurso da AIDS serviu de suporte para o

reaparecimento de um discurso de extrema direita, com temas racistas e

excludentes (HERZLICH e PIERRET, 2005:96).

Aliás, afirmam os autores, que este discurso sobre o outro é também um

discurso imputado ao outro, onde o sujeito enunciador não aparece. A

Page 79: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

79

imprensa foi aparentemente a responsável pela construção de uma doença

diante da opinião pública. Para HERZLICH e PIERRET (2005), os jornais

sempre acreditaram que estivessem passando informações sobre o impacto

social que a doença causou e também reproduzindo as reações coletivas a ela,

mas essas reações vinham de dentro do próprio discurso articulado pelos

jornais.

Page 80: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

80

CAPÍTUL05

Page 81: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

81

CAPÍTULO 5

Neste capítulo pretende-se discutir, analisar ou verificar a permanência, a

transformação e a manutenção dos efeitos de sentido que foram criados pela

mídia, no que se refere à AIDS, nos filmes Cazuza e Carandiru e também,

como surgiram esses efeitos de sentido em cada um deles.

5. A AIDS no cinema: Os filmes Cazuza e Carandiru – duas abordagens para o mesmo problema.

5.1 Cazuza – um objeto a parte

No capítulo 4 procuramos descrever de que maneira a AIDS foi amplamente

difundida pelos meios de comunicação de massa, principalmente pela mídia

impressa que, com essa difusão, constituiu um novo fenômeno social.

Destacamos também a hierarquização do registro/construção da morte de

pessoas comuns e dos “olimpianos” – termo utilizado pelo autor Fausto Neto

(1993) para denominar a morte das pessoas que exercem influência social.

Ao contrário da situação de muitas pessoas públicas que morreram em

conseqüência da AIDS, mas tiveram a doença sistematicamente negada, a do

cantor Cazuza foi bem diferente: sua morte foi construída através de um ritual,

como capítulos de uma novela, especialmente pela chamada “imprensa do

coração” – as revistas: Amiga, Contigo, Semanário, Manchete - que trazem,

semanalmente, fofocas da vida dos artistas e também a descrição dos

próximos capítulos da novela que está no ar.

... a doença/morte de Cazuza é inserida no circuito (social e cultural) através de um cerimonial público, cujos principais orquestradores foram o próprio compositor e a comunicação de massa, com ênfase na imprensa especializada. (FAUSTO NETO, 191:121)

Page 82: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

82

Assim a morte de Cazuza foi construída aos poucos, metaforicamente, ao

ponto de seu nome deixar de ser nome próprio e confundir-se com um outro

signo, o signo da luta contra a AIDS. Toda a construção negativa em torno da

doença e dos doentes passou ao largo desse personagem. A ele não se

atribuiu termos como “grupo de risco”, “drogado”, “viciado”, “gay” ou

“promíscuo”. Procurou-se construir uma imagem de... “A vida não pára”.

Na opinião de Fausto Neto (1991) Cazuza e a mídia selaram uma espécie de

aliança para orquestrar este cerimonial público, que de certa forma nos lembra

as antigas maneiras de morrer. Essa morte acontecia quando o paciente tinha

algum controle no trajeto que percorria em direção à morte. Ele era cercado por

amigos, familiares, agentes da medicina e da religião, ao contrário dos

cerimoniais modernos, onde o paciente é entubado e recluso ao mundo

hospitalar, deles restando apenas boletins e diagnósticos.

Desta forma, a doença e morte de Cazuza, como também a forma antiga de

morrer guardam grande semelhança, pois entre uma internação e outra, ele

orquestrava juntamente com mídia, o seu próprio cerimonial. A mídia utilizou

processos interativos e sofisticados para desenvolver ritualisticamente o

cerimonial, fazendo com que a vida privada de Cazuza retornasse ao espaço

público, para trazer ao conhecimento dos leitores, todo o trajeto da vida do

cantor, durante o período da doença,

... as construções discursivas, a partir da revelação, não mais procuraram especular sobre a doença do artista, mas desdobrá-la em várias matrizes, evocações, associações e determinações distintas, transformando-o num personagem, espécie de mártir e herói, talvez um paradigma do nosso tempo. (FAUSTO NETO, 1991:122)

É curioso observar como que dois suportes diferentes – mídia impressa e

cinema, utilizaram estratégias muito semelhantes na construção deste

cerimonial.

Page 83: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

83

A mídia impressa e o filme, em seus conjuntos de enunciados possibilitaram

agrupamentos temáticos que sugeriram construções de uma série de situações

metafóricas.

A própria estrutura do filme dá o tom: a narração em off do ator Daniel de

Oliveira oferece a sensação de que é o próprio Cazuza quem conta a história

da sua vida e fala dos momentos difíceis da doença, como se ele operasse a

sua própria identificação.

Na opinião de Fausto Neto (1991), Cazuza foi apanhado pela mídia que

mostrou como ele ocupava seu tempo e os vários lugares que freqüentava.

Assim, filme e mídia impressa procuraram mostrar minuciosamente todas as

cenas que possibilitassem aos leitores/expectadores e fãs capturarem a

intimidade deste cerimonial: Cazuza no hospital; Cazuza compondo novas

músicas; Cazuza gravando discos; Cazuza fazendo shows; Cazuza indo à

praia de cadeira de rodas; Cazuza bebendo com os amigos. Enfim, Cazuza um

doente ativo que não se deixa morrer.

Esse movimento, de não se deixar capturar pela doença e morte, foi feito pela

imprensa, já que ela garantia a fala de Cazuza por meio de entrevistas. Nelas o

cantor debate-se contra a morte e isso revela os seus projetos e seu estado

pessoal. “A Revolta de Cazuza: Estou numa cadeira de rodas, mas não estou

morrendo”; que veio acompanhada de uma foto do cantor, já de turbante; foi

matéria de capa da Revista Amiga, edição de 04/05/89 (Fausto Neto,

1991:anexo III, ilustr.A).

O mesmo movimento aconteceu com o filme, nesse suporte Cazuza não se

deixa capturar pela morte. Na última cena, o cantor (ator) aparece à beira mar

em uma cadeira de rodas, logo em seguida entra cenas de um vídeo caseiro.

Nele o próprio Cazuza aparece gozando de plena saúde, e não o ator Daniel

de Oliveira, que o interpreta no filme. Com isso tem-se a sensação de que ele

continua vivendo saudavelmente e feliz. A vida real e a ficção se embaralham.

Na cena final do filme, em off, ouve-se a voz de Cazuza (ator), enquanto na

praia: ...”A vida veio e me levou com ela. Sorte é se abandonar e aceitar essa

vaga idéia de paraíso que nos persegue. Bonita e breve, como borboletas que

Page 84: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

84

só vivem 24 horas. Morrer não dói” (Personagem “Cazuza” no filme Cazuza – o

tempo não pára – 2003).

Diante disto, retornemos à matriz de sentido de Pêcheux: o sentido não é

produzido pela enunciação de um texto no momento da sua enunciação, mas

está circunscrito num discurso anterior. Formular um discurso significa

relacioná-lo a outras formulações e isto é o interdiscurso. Podemos aferir que

mídia impressa e filme se inter-relacionam, porque o efeito de sentido

produzido na revista é mantido no filme.

A mídia especializada utilizou diversos dispositivos semânticos em momentos

diferentes da vida do cantor, para mostrar seus movimentos e ações em

relação à AIDS. Semana após semana, as revistas procuravam mostrar ao

leitor quais eram as providências terapêuticas escolhidas para o tratamento de

Cazuza (Fausto Neto, 1991). No filme aconteceu a mesma coisa, ainda que

com menor intensidade, o receptor também participou de uma viagem

imaginária até onde, supostamente, Cazuza era tratado.

Na cena 08 do filme, vemos Cazuza internado num hospital em Boston.

Quando ele chegou ao hospital, estava visivelmente debilitado e quase à beira

da morte. O sofrimento de sua mãe, sua estada na UTI respirando

artificialmente através de balão de oxigênio. O acompanhamento da família e

de seu amigo e empresário. Seu estado de saúde melhora, ele começa a

compor novas músicas. Descobriu-se um novo tratamento com AZT. Cazuza

retorna para casa. Com tudo isso, o espectador pode ter a sensação de

participar de um momento tão delicado da vida do cantor.

Segundo Fausto Neto (1991), todo suporte possui uma forma específica para

organizar o real de acordo com critérios técnico-discursivos. Assim sendo,

guardadas as devidas estratégias, cada suporte, desenvolveu, à sua maneira,

formas de captar as diferentes ações de Cazuza na luta contra a doença. O

efeito de sentido provocado foi o de que Cazuza não se deixou levar pela

AIDS, mantendo-se ativo mesmo nos piores momentos.

Page 85: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

85

Nada mais ilustrativo que fragmentos do editorial de Amiga (“A saudável irreverência na luta pela vida”), em que o “Caso Cazuza”, além de ser semantizado pelas metáforas da irreverência, heroísmo, bandeira etc., se constitui no próprio insumo com que vai sendo engendrado o discurso espetacularizado da comunicação de massa... (FAUSTO NETO, 1993:136)

Selecionamos, a seguir, mais algumas cenas do filme que ilustram a

semantização à qual Fausto Neto fez referência.

Cena 09:

Cazuza em estúdio gravando. Ao ser questionado pelo amigo Frejat se ele

queria dar um tempo, Cazuza responde “não tenho tempo prá dar Frejat”. O

efeito de sentido dessa cena é a urgência. O espectador já sabe que ele está

doente e participa dessa urgência ouvindo: “o meu prazer agora é risco de

vida”.

Corta. Cazuza está bebendo com os amigos num bar e ao mesmo tempo

tomando AZT. Cazuza, embora doente, leva uma vida normal. Ele não ficou

recluso, como acontecia nas antigas formas de morrer.

Corta. Cazuza estava escrevendo (em off): “estou escrevendo numa tarde fria.

Trabalho para espantar minha solidão e meus pensamentos. Hoje assumi em

público a minha doença. Estou mais leve, mais livre... Ganho dinheiro cantando

as minhas desgraças. ...Comprar uma fazenda e fazer filhos, talvez seja uma

maneira de ficar prá sempre na terra. Porque discos, arranham e quebram”.

Esta cena mostra um Cazuza imortal.

Corta. Cazuza canta num show: “saiba que ainda estão rolando os dados

porque o tempo, o tempo não pára... Dias sim, dias não, eu vou sobrevivendo

sem um arranhão da caridade de quem me detesta... O tempo não pára. Não

pára, não não pára”. Ele apresentou, novamente, o sentido de urgência, da

pessoa que não pára e que, embora doente, continuava trabalhando. Assim

como apresentou, novamente, o sentido de vir ao público e orquestrar a sua

Page 86: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

86

própria morte, o que levou, novamente, ao sentido da eternidade, de ficar para

sempre.

Cena 10:

Cazuza volta para casa dos pais. Cazuza conversa com o pai rememorando

cenas da infância. Cazuza e mãe cantam enquanto ela o banha. O retorno

ambíguo à antiga forma de morrer: cercado dos amigos e da família e não

enclausurado num quarto de hospital.

Corta. Cazuza rumo à praia com os amigos. Em off Cazuza canta: “Vida louca.

Vida breve. Já que eu não posso te levar quero que você me leve”. Em off

Cazuza morre. Na beira mar. Da água viemos e para a água retornamos.

As imagens da doença de Cazuza foram tratadas publicamente, tanto pela

imprensa quanto pelo filme, eles procuraram produzir junto aos receptores,

enquanto efeito de sentido, valores como tenacidade, irreverência e luta contra

um fim inexorável. Cazuza, enfim, não foi colocado num lugar passivo, de

agonizante. Mas sim daquele que luta, que enfrenta, que produz, porque ele

simplesmente não acreditava na morte.

5.2 Carandiru - uma outra história

A análise do filme Carandiru é muito mais complexa do que a do filme Cazuza.

Na análise de Cazuza, procuramos mostrar como que o cantor articulou todo o

trajeto da sua doença até a morte com a mídia. O filme nada mais é do que a

re-apresentação desta orquestração.

Carandiru é mais complexo porque é um filme que esboça um retrato do Brasil.

Seu sentido é de um Brasil caótico, multifacetado, que abre precedentes para

uma análise mais ampla e esbarra em uma ordem social e discursiva, que

amplia os limites do foco de análise.

Page 87: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

87

Ao contrário das construções discursivas do filme Cazuza, em torno da AIDS,

as do filme Carandiru se assemelham muito às construções do discurso

estereotipado sobre sexo, sangue, ignorância, morte e minorias.

Aqui desenvolvemos melhor a idéia de minorias: certamente que os discursos

sobre a AIDS não ficaram restritos somente à esfera biológica, mas também

atravessaram o corpo social através do corpo das minorias que foram e

continuam sendo objeto de análises; formulações e advertências; exploração e

estudos clínicos, enfim, campos que fornecem material para a produção de

novos discursos:

O fundamento do discurso é dizer que a AIDS “pega em qualquer um”. Se de maneira majoritária, nas minorias, porque estas erram, também nas crianças, mulheres e despossuídos, porque eles são vítimas de outros reveses. De modo geral, via tais enunciados, os jornais procuram denunciar a onda de medo, o pânico e a ameaça que a AIDS causa junto a um conjunto indeterminado de receptores, mas que de certa forma é apresentado com limitações, na medida em que esses não são todos os receptores dos jornais, mas um conjunto preciso: as minorias.

O filme Carandiru mostra isso: um filme das minorias, dos despossuídos, das

vítimas de outros reveses, pois ele narra histórias daqueles, cuja vida foi

alterada por algum convívio com a sociedade e, atravessa o corpo dessas

minorias através de formulações e advertências encenadas pelo médico.

Nesse filme o sentido surge a partir da vivência do médico na cadeia. Ele surge

em cada uma daquelas vidas, daquele ambiente. O filme visita a prisão e os

moradores de algumas daquelas celas. São muitas pessoas diferentes, com

histórias de vida diferentes, que são obrigadas a conviverem confinadas em

uma instituição mais do que falida, que procuram reinventá-la, para torná-la um

pouco mais suportável.

Page 88: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

88

Hector Babenco, ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a filmar

as histórias do Dráuzio Varella, respondeu:

... E quando esse conceito de lutar para estar vivo se associa à necessidade que o homem tem no presídio de formar alianças e respeitar os códigos de cooperação para estar vivo, e quando o Dráuzio me explica que o macaco também se organiza, me interessou muito poder explorar a possibilidade de contar as histórias de homens que estão no limite extremos que um ser bípede pode estar, tolhido de todas as suas funções básicas, quase regredido às funções de um símio, e que mesmo assim tem de lutar para estar vivo. Não adianta estar preso, não adianta estar humilhado – ele ainda tem que lutar para estar vivo. Eu achei fascinante. É uma viagem minha, isso não está no filme. No filme está o filme... (HECTOR BABENCO, 2003:101).

E em seguida, acrescentou:

...O livro ilustrava uma hipótese: a hipótese do homem socialmente excluído, vivendo em reclusão, com todos os direitos comportamentais cerceados. Qual é o modelo que esse homem escolhe para poder sobreviver sem se suicidar? ... Deve haver um processo mental de reorganização muito forte. E, depois, escrevendo o roteiro, me lembrei muito de um texto do Millôr Fernandes na época em que fiz “O Pixote”, em que ele perguntava: “O que fazer com o menor abandonado?” Ele mesmo respondia: “Deixá-lo crescer”. Estou fazendo um filme dos personagens do “Pixote” 20 anos depois. (HECTOR BABENCO, 2003:104)

Achamos importante apresentar os motivos que levaram o diretor a fazer “esse”

filme e não “aquele” filme. Isso porque Carandiru é um fenômeno específico de

público, ele fez quase 5 milhões de espectadores. Por não se tratar de um filme

da Rede Globo, daqueles de série e, também por não se modelar ao sucesso

de público para a classe média alta, Carandiru extrapolou em público de classe

Page 89: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

89

média. O público nos cinemas do Centro da Cidade e nos shoppings da

periferia era muito grande, o que despertou o interesse da classe média para

ver o filme.

Carandiru é o retorno a um episódio, um tanto recente, da história nacional,

mais precisamente, uma tragédia – a morte de 111 presos em um de seus

pavilhões, pela polícia. Porém, o interessante é que ele não se presta a buscar

as causas dessa tragédia. O filme retrata instantes da vida de seus presos.

Instantes às vezes brutais e violentos que seguem uma lei própria de

sobrevivência. O efeito de sentido mais contundente que ele encerra é a

maneira como se conduzem as coisas nesse país chamado Brasil. Na cena

final, a implosão de um dos prédios do Carandiru, evidenciou como os

assuntos delicados, tal como: o problema das instituições penitenciárias e

todos os seus desdobramentos, e a correção de indivíduos desviantes e

também a brutalidade da nossa polícia, são resolvidos. A realidade do

Carandiru ficou confinada a ele mesmo, nos dando a sensação de “ainda bem

que acabamos com mais esse problema, ele agora está derrubado”. É como

se estivéssemos, mais uma vez, empurrando a sujeira para debaixo do tapete.

Está claro que o filme Carandiru não é um filme sobre a AIDS, ela só serve de

pano de fundo para justificar a presença do médico no presídio. Sabemos que

a figura do médico é o fio condutor da narração das histórias de seus principais

personagens. Mas o médico funciona também como fio condutor para trazer à

tona o problema da AIDS dentro do presídio: o uso de drogas injetáveis, o

compartilhamento de seringas sem nenhum critério, o homossexualismo sem o

uso devido de preservativos etc., enfim, as condutas desviantes e inaceitáveis

da nossa sociedade.

Mas como dissemos anteriormente, um filme é uma obra polissêmica e diz

muitas coisas ao mesmo tempo. Portanto, um filme pode ser entendido e citado

em contextos distintos ao originalmente concebido.

Enquanto discurso, Carandiru pode ser inserido em todas as categorias

teóricas que revistamos no Capítulo 3, no entanto, achamos apropriado

retornar a apenas uma: a ordem dos discursos desenvolvida por Foucault. Para

Page 90: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

90

ele os discursos produzidos num mesmo contexto de uma instituição ou

comunidade, para circulação interna ou externa interagem não apenas entre

eles, mas também com textos de outras ordens discursivas (Gregolin, 2003).

A análise do discurso desloca-se da primazia sobre o discurso político, sobre a materialidade escrita, para encontrar outras formas materiais, outros regimes de materialidade. Esse deslocamento levou Pêcheux, em seus últimos textos, a preferir falar em “análise de discurso” em vez da fórmula tradicional “análise do discurso”; ao mesmo tempo, o leva a intuir a fecundidade da análise da materialidade não-verbal e a nuançar a aproximação com a Semiótica (Gregolin, 2003:9).

Se analisarmos Carandiru, sob a ótica da ordem dos discursos, podemos

observar a re-apresentação do discurso produzido pela mídia impressa, que

também se insere em outra ordem dos discursos na medida em que a mídia

funciona como ponto de convergência e que acolhe todos os lugares

discursivos da AIDS. Ela transforma as falas públicas e privadas num discurso

público, mas ao mesmo tempo privatizado pelas próprias regras de produção

de cada instituição que atua no campo jornalístico.

A seguir, selecionamos algumas cenas que retratam os efeitos de sentido

“transgressor” da AIDS.

Cena 3:

Após fazer uma visita exploratória ao presídio, o médico entra acompanhado

do diretor em sua sala e dispara: “Seu Pires se eles entenderem como é que se

pega AIDS para mim já é um adianto. Eles pegam a doença é aqui dentro.

Depois eles transam com a mulher... com a namorada... daí a epidemia não

pára mais...” Nesta cena ficam claras as preocupações do médico quanto a

falta de informação em relação à doença, bem como em relação à

promiscuidade.

Page 91: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

91

Nesta mesma cena o médico começa a prestar atendimento aos presidiários e

depara-se com uma série de situações de risco: viciados em drogas injetáveis,

homossexuais que não fazem uso de preservativos, soropositivos em estágios

já avançados da doença, reforçando o efeito de sentido da transgressão.

Cena 06:

Na enfermaria o doutor passa visita aos doentes. Um auxiliar fala de um

paciente que está com febre alta e que nada adianta, nem antibiótico, a seguir

dá o veredicto: prá mim isso é AIDS. O doutor vai ao doente que está muito

machucado, sem o oxigênio e pergunta quem tirou. Os auxiliares dizem que é

estuprador e que ele não tem chance de sobreviver por causa do delito

cometido. Matar para eles, tudo bem, estuprar não.

Nesta cena fica claro que há discriminação entre eles mesmos. Ora, o doente

não estava morrendo de AIDS e sim do espancamento que sofreu por ser

estuprador.

Cena 12

Esta é a famosa cena em que a ex-chacrete Rita Cadilac ensina aos presos

sobre a importância e o uso correto do preservativo.

Cena 17

Nesta cena Majestade visita Ezequiel para pedir que ele assuma a morte de

Zico. Ezequiel responde que tem só mais dois anos de pena a cumprir e se

assumir a morte do Zico pegaria mais vinte anos. Porém, Majestade responde

que para Ezequiel tanto faz dois ou vinte anos, uma vez que ele está com

AIDS. Essa cena mostra claramente o desprezo e a discriminação pelo

soropositivo.

Page 92: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

92

Cena 20

Esta cena retrata a invasão do presídio pela PM que entra gritando: volta prá

trás! Tá todo mundo aidético aqui! Vocês vão morrer! Mais uma vez desprezo e

discriminação.

Ao analisarmos sob o ponto de vista da doença, o filme Cazuza gera como

efeito de sentido, valores de tenacidade, de luta, de irreverência entre outros.

Já o filme Carandiru produz junto ao receptor, enquanto efeito de sentido,

valores como ignorância, desprezo pela própria vida e pela vida do outro,

promiscuidade, sentimento de culpa, discriminação e exclusão.

Page 93: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

93

CONCLUSÃO

Page 94: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

94

CONCLUSÃO

Este trabalho procurou verificar e analisar a manutenção e a permanência dos

efeitos de sentido gerados pela mídia impressa ao se comunicar sobre a AIDS,

nos filmes Cazuza e Carandiru. Alguns resultados aqui obtidos propiciam

possibilidades de desdobramentos para novos estudos sobre a AIDS, enquanto

discurso e seus conseqüentes efeitos de sentido, tanto em outros campos da

comunicação de massa, quanto em outros campos da produção cultural.

Achamos interessante colocar, de uma forma bastante resumida, alguns pontos

que estiveram presentes ao longo de todo esse trajeto.

A AIDS invadiu o espaço social na medida em que ela foi publicizada pelos

meios de comunicação de massa. No entanto, a mídia impressa foi o principal

fio condutor dessa invasão, porque foram os jornais os primeiros a abrirem

espaços para que todas as instituições que participaram do processo de

construção de discursos sobre a AIDS pudessem se manifestar. Assim, outras

instituições não-jornalísticas participaram do processo de construção das

diferentes modalidades de comunicação da AIDS na esfera do espaço público.

Médicos, biólogos, pesquisadores de diferentes campos, políticos, líderes

religiosos e, porque não mencionar, o próprio doente.

Mas os jornais, enquanto dispositivos do campo das mídias, foram atrelados às

suas próprias regras e estratégias discursivas. Assim, eles abriram espaço

para que todas as instituições, que participaram da formação de um discurso a

respeito da AIDS, pudessem se manifestar. Os jornais hierarquizaram esses

discursos e os colocaram em uma “ordem discursiva”.

Também é importante destacar que: em conseqüência da rápida invasão do

espaço público pela AIDS, ela adquiriu significados múltiplos e variados.

Apesar de que doença tenha sido definida sob a ótica médica, outras

instituições, alinhadas às suas próprias estratégias discursivas, também

participaram das diferentes construções de sentidos sobre ela. Retornando ao

conceito bakhtiniano, de que o diálogo com outras disciplinas, conceitos e

Page 95: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

95

noções é permanente no que se refere à análise das atividades discursivas, e

que o diálogo desdobra as possibilidades do ver. Isso sempre inclui a história e

a memória que produzem sentidos e seus efeitos. Portanto podemos aferir que

o efeito de sentido da AIDS foi tecido por várias vozes, porém articulado pelos

dispositivos jornalísticos.

Ao se pensar que o sujeito enunciador produz um novo texto, a partir do

momento em que ele se apodera de um saber já institucionalizado tanto na

língua quanto na cultura, esse saber é transcodificado no ato enunciativo e,

portanto, podemos constatar que: tanto o filme Cazuza quanto o filme

Carandiru, mantêm permanentemente os efeitos de sentido da AIDS

construídos pela mídia impressa, cada um ao seu modo.

Ao filme Cazuza coube o discurso do “olimpiano” com seus efeitos de

tenacidade, irreverência e luta contra a doença e ao filme Carandiru coube o

discurso das “minorias” com seus efeitos de ignorância,

discriminação, dependência e exclusão social..

Page 96: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

96

REFERÊNCIAS

Page 97: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

97

Referências

BARATA, Germana Fernandes. A primeira década da AIDS no Brasil: O Fantástico apresenta a doença ao publico (1983-1992). Dissertação (Mestrado)–Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de História Social. São Paulo, 2006.

BRITO, Ana Maria... [et al]. Aids e infecção pelo HIV no Brasil: uma epimedia multifacetada. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 34(2): 207-217, mar-abr, 2000.

CAETANO, Daniel (org.). Cinema Brasileiro 1995-2005 revisão de uma década. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.

CAMARGO JR, Kenneth Rachel de. Prevenções de HIV/Aids: desafios múltiplos. Divulgação em Saúde para Debate. Rio de Janeiro, n 27, pp. 70-80, agosto 2003.

FAUSTO NETO, Antônio. Comunicação & Mídia Impressa. Estudo sobre a AIDS. São Paulo: Hacker Editores, 1999.

____________________. Mortes em Derrapagem. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1991.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2007.

________________. A Ordem dos Discursos. 16 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

GREGOLIN, Maria do Rosário e BARONAS, Roberto (org.). Análise do Discurso: as materialidades do sentido. 2 ed. São Carlos,SP: Editora Claraluz, 2003.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucualt e Pêcheux na análise do discurso: diálogos & duelos. 3 ed. São Carlos, SP: Editora Claraluz, 2007.

HERZLICH, Claudine, PIERRET Janine. Uma Doença no Espaço Público. A AIDS em Seis Jornais Franceses. PHYSIS. Ver. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 15 (suplemento): 71-101, 2005.

Joint United Nations Programme on HIV/AIDS - UNAIDS. 2006 Informe sobre la epidemia mundial de SIDA: Resumen de orientación. www.onu-brasil.org.br.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LIMA MONTEIRO, Clóvis Ricardo. Aids. Uma epidemia de informações. Rio de Janeiro: e-Papers, 2006.

Page 98: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

98

MINISTÉRIO DA SAÚDE - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE - PROGRAMA NACIONAL DE DST E AIDS. Boletim Epidemiológico - Aids e DST Ano IV - nº 1 - 27ª - 52ª - semanas epidemiológicas - julho a dezembro de 2006 Ano IV - nº 1 - 01ª - 26ª - semanas epidemiológicas - janeiro a junho de 2007. Brasília: Ministério da Saúde, 2008 - www.aids.gov.br.

MINISTÉRIO DA SAÚDE DO BRASIL - SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE - PROGRAMA NACIONAL DE DST E AIDS. Metas e Compromissos Assumidos pelos Estados-Membros na Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas em HIV/Aids UNGASS – HIV/Aids. Resposta Brasileira 2005/2007 – Relatório de Progresso no País. Brasília: Ministério de Saúde, 2008 – www.aids.gov.br.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo. As pestes do século XX: tuberculose e aids no Brasil, uma história comparada. - Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

OLTRAMARI, Leandro Castro. Um Esboço sobre as Representações Sociais da Aids nos Estudos Produzidos no Brasil. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Nº 45 – setembro de 2003. http://www.cfh.ufsc.br.

ONUSIDA/07.27S / JC1322S (versión española, diciembre de 2007). Situación de la epidemia de sida. Diciembre de 2007. ISBN 978 92 9 173623 2. www.unaids.org.

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

PELLEGRINI, Tânia... [et al]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora SENAC São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.

RAMOS, Fernão Pessoa (organizador). Teoria Contemporânea do Cinema, volume II. São Paulo: Editora Senac, 2005.

SELLIGMAN, Flávia, SANTOS, Araci Koepp. A produção audiovisual brasileira contemporânea e a intertextualidade das mídias. O caso Ônibus 174. Rev. De Economia Política de lás Tecnologias de la Información Y Comunicaión. Dossiê Especial Cultura e Pensamento, Vol. II – Dinâmicas Culturais, Dec. 2006. www.epitic.com.br.

SOARES, Rosana de Lima. Imagens veladas: Aids, Imprensa e Linguagem. – São Paulo: Annablume, 2001.

SONTAG, Susan. Doença como Metáfora. AIDS e suas Metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

TURNER, GRAEME. Cinema como prática social. – São Paulo: Summus, 1997.

Page 99: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

99

VALLE, Carlos Guilherme do. Identidades, doença e organização social: um estudo das "Pessoas Vivendo com HIV e AIDS". Horiz. antropol., June 2002, vol.8, no.17, p.179-210. ISSN 0104-7183.

XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

www.aids.gov.br > Área técnica > Epidemiologia > Tabulação de Dados. Mortalidade por Aids no Brasil.

www.datasus.gov.br > Informações de Saúde > informações epidemiológicas e morbidades > doenças de notificação > Aids. Casos de Aids Identificados no Brasil.

5.1 Referências consultadas:

Agence France-Presse 2006. Cronologia dos 25 anos do surgimento da Aids. www.afp.com

BARBOSA, Marialva, ENNE Ana Lúcia Silva. O jornalismo popular, a construção narrativa e o fluxo sensacional. Revista ECO-PÓS-v. 8, n.2, agosto-dezembro2005, pp.67-87.

CARDOSO, Janine Miranda. Discurso preventivo e estratégias de Comunicação: as campanhas da Aids na TV. In: Mídia. Br. Livro da XII Compôs 2003. Porto Alegre: Sulina, 2004. pp 39-60.

CARVALHO, Mário César. Carandiru: Um filme de Hector Babenco. São Paulo: Wide Publishing, 2003.

FACCHINI, REGINA. Movimento homossexual e construção de identidades cletivas em tempos de Aids. In: Construções da Sexualidade: gênero, identidade e sexualidade em tempos de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ e ABIA, 2004, pp 151-165.

GOMES, Itania Maria Mota. Os estudos dos efeitos. In: Efeito e Recepção: a interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre os media. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 19-78.

GRUPO PELA VIDDA. Aids e Imprensa. Um guia para ONG. Rio de Janeiro, Grupo pela Vidda: 2001. www.pelavidda.org.br.

HERZLICH, Claudine. Saúde e Doença no Início do Século XXI: Entre a Experiência Privada e a Esfera Pública. PHYSIS: Ver. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 14(2): 383-394, 2004.

LOPES, Orquídea Maria Mendes. Os meios de comunicação na prevenção do SIDA. Universidade de Salamanca – Faculdade de Educação – Espanha – artigo publicado no 6º HIV/Aids Virtual Congress - Congresso de Comunicação – Tema: Epidemiologia, Prevenção e Saúde Pública, 2005 – www.aidscongress.com.

Page 100: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

100

MARQUES, Francisca Ester de Sá. As interações entre os media e a cultura: a produção do fundo arcaico e as variações de sentido. In: Comunicação e corporeidades/Antonio Fausto Neto... [et al]. João Pessoa: Editora Universitária/UFBP, Compós, 2000. pp. 61-84.

MEYER, Dagmar Estermann, SANTOS, Luis Henrique Sacchi dos, OLIVEIRA, Dora Lúcia de et al. 'Shameless woman' and 'responsible traitor': problematizing gender representations in official HIV/AIDS television advertisements. Rev. Estud. Fem., May/Aug. 2004, vol.12, no.2, p.51-76. ISSN 0104-026X.

RIBEIRO, Lavinia Madeira. Considerações sobre a Origem Histórico-sociológica da Informação e sua Contemporânea Conformação Institucional. In: Comunicação e Sociedade: Cultura, Informação e Espaço Público. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 73-114

RIBEIRO, Lavinia Madeira. Teoria do Espaço Público em Jüngen Habermas. In: Comunicação e Sociedade: Cultura, Informação e Espaço Público. Rio de Janeiro: e-Papers Serviços Editoriais, 2004. pp 187-318.

TRINDADE, José Ronaldo. Construções de identidade homossexuais na era Aids. In: Construções da Sexualidade: gênero, identidade e sexualidade em tempos de Aids. Rio de Janeiro: IMS/UERJ e ABIA, 2004, pp 169-197.

UNAIDS. Os homens e o SIDA: Uma Abordagem Baseada no Gênero. Campanha Mundial contra o SIDA, 2000. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/SIDA (ONUSIDA), 2001. – www.unaids.org.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. Revista ECO/PÓS/UFRJ – Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação – Comunicação e Saúde. Vol.10, n.1 (2007) – Rio de Janeiro: ECO/UFRJ 2007 – ISSN 0104-6160.

Page 101: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

101

ANEXOS

Page 102: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

102

ANEXOS

Anexo 1: Decupagem do Filme Carandiru

Sinopse:

Carandiru conta a história de um médico que realiza um trabalho de prevenção

à AIDS no maior presídio da América Latina, o Carandiru. Lá ele vive com a

realidade atrás das grades, que inclui violência, superlotação das celas e

instalações precárias. Mas, apesar de todos os problemas, o médico percebe

logo que os presos não são figuras demoníacas, existindo dentro da prisão

solidariedade, organização e uma grande vontade de viver. Merece atenção,

sobretudo, a polêmica intervenção policial que matou 111 presos em 1992e

que ficou conhecida como “O Massacre do Carandiru”.

Carandiru foi o 4º filme mais visto no Brasil em 2003 e foi escolhido para

representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro.

Ficha Técnica Ano de Lançamento: 2002 Distribuição: Sony Pictures Classics / Columbia Tristar do Brasil

Direção: Hector Babenco

Roteiro: Hector Babenco, Fernando Bonassi e Victor Navas

Produção: HB Filmes, Globo Filmes e Columbia Tristar do Brasil

Co-produtores: Flávio R. Tambellini e Fabiano Gullane

Direção de Produção: Caio Gullane

Produtor Associado: Daniel Filho

Coordenação de pós-produção: Alessandra Casolari

Música: André Abujamra

Som direto: Romeu Quinto

Edição de som: Elisa Paley e Miriam Biderman

Fotografia: Walter Carvalho – ABC

Direção de Arte: Clóvis Bueno

Figurino: Cristina Camargo

Page 103: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

103

Edição: Mauro Alice

Principais personagens

1. Médico (Luiz Carlos Vasconcelos) – sem história pessoal, é um mais um

veículo para que as histórias dos presos sejam contadas. Ele faz a ponte

entre os presos e os telespectadores.

2. Zico (Wagner Moura) – É um preso ativo, participa da organização interna.

Começa a usar e a vender drogas e a perder seu bom senso. Recebe em

sua cela Deusdete, seu amigo de infância, cuja irmã, Francineide, é sua

paixão de anos atrás. Ela o visita quando Zico já está tomado pelas drogas.

Mata Deusdete num momento de alucinação. Morre por não pagar a conta

de drogas. Sua história fora do presídio também é encenada.

3. “Seu” Pires (Antonio Grassi) – diretor do presídio.

4. Nego Preto (Ivan de Almeida) – é uma espécie de coordenador geral das

ações dentro da prisão. Respeitadíssimo, ninguém ousa desobedecê-lo:

ninguém mata ninguém sem antes pedir licença a ele. Sua história também é

encenada.

5. “Seu” Chico (Milton Gonçalves) – Veterano na cadeia, tem 18 filhos, alguns

dos quais sequer conhece. É respeitado pelos internos.

6. Majestade (Ailton Graça) – vende drogas para sustentar as duas famílias

que tem. É casado com uma loira e outra mulata. Ama suas duas mulheres,

que se detestam. A história de como as conheceu é encenada. Na visitação

ele recebe as duas, faz sexo com ambas (separadamente) e tenta um

entendimento entre elas.

7. Dalva (Maria Luisa Mendonça) – mulher de Majestade.

8. Rosirene (Aída Lerner) – a segunda mulher de Majestade.

Page 104: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

104

9. Deusdete (Caio Blat) – irmão de Francineide, amigo de infância de Zico,

preso por matar quem violentou a irmã, usando uma arma que Zico lhe dera.

10. Francineide (Júlia Ianina) – irmã de Deusdete.

11. Lady Di (Rodrigo Santoro) – um dos muitos travestis confinados no

Carandiru. Ela se apaixona e se casa com Sem Chance, numa festa gay

dentro do presídio.

12. Sem Chance (Gero Camilo) – ajudante do doutor, ganha a liberdade, mas,

apaixonado por Lady Di casa-se com ela e fica no presídio.

13. Antonio Carlos (Floriano Peixoto) – um dos assaltantes de carros-forte.

Sua história é encenada junto com a relação com seu comparsa

Claudiomiro.

14. Claudiomiro (Ricardo Blat) – comparsa de Antonio Carlos. Seria traído

pela esposa, mas Antonio Carlos o alerta. Elimina a esposa e o policial com

quem ela o trai. Sua história é encenada junto com a de Antonio Carlos.

15. Célia (Vanessa Gerbelli) – esposa de Antonio Carlos.

16. Dina (Leona Cavalli) – esposa de Claudiomiro.

17. Ezequiel (Lázaro Ramos) – presidiário viciado.

18. Peixeira (Milhem Cortaz) – presidiário que matou muita gente e não tem

família que o espera lá fora.

Diálogos e Cenas em que a AIDS aparece:

Cena 3: Visita exploratória

Depois de andarem pelo presídio, o médico e o diretor da prisão entram na sala

do diretor, em segundo plano podemos ver alguns presos sentados em um

banco que são chamados em uma sala, entrando um por vez. Há uma pequena

Page 105: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

105

fila de presos aguardando a chamada. Parece uma triagem. Ao fundo podemos

ver um dos personagens (Deusdete) saindo da sala.

Falas:

Médico: Seu Pires se eles entenderem como é que se pega AIDS para mim já

é um adianto. Eles pegam a doença é aqui dentro. Depois eles transam com a

mulher... com a namorada... daí a epidemia não pára mais...

Seu Pires: quem vai querer ouvir seus conselhos Doutor é o malandro de

verdade... aquele que quer sair inteiro daqui prá assaltar de novo lá fora... Essa

é a vida dele!

Médico: que seja, mas agora já estão vivendo é no foco da doença seu Pires...

Estão presos aqui!

Seu Pires: Presos??? Eles são os donos da cadeia Doutor!!! Isso aqui só não

explode porque eles não querem!!!

Cena 3: Consultório

Depois de conversar com seu Pires o médico se dirige ao “consultório”

carregando uma pasta e uma caixa de isopor, onde, supõe-se que ele está

carregando material necessário para teste HIV.

Logo que entra, depara-se com Antonio Carlos dando banho em Claudiomiro

que está muito doente, tossindo muito e cuspindo sangue. Outros personagens

estão no consultório. Sem Chance está de jaleco branco, é o ajudante do

doutor.

Falas:

Médico - (entrando na enfermaria): ele não pode cuspir aí. Tuberculose. Quem

pisa espalha doença.

Antonio Carlos (amparando Claudiomiro): doutor, se a tosse fosse menos e o

fôlego mais ele procurava uma pia. Mas tá difícil...

Page 106: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

106

Médico (virando-se para Sem Chance): tem que isolar esse rapaz!

Sem Chance (olhando ao redor e fazendo e franzindo os ombros): e tem onde

doutor?

*Algumas cenas depois Claudiomiro morre em decorrência da

tuberculose, mas não fica claro se a tuberculose foi conseqüência da

AIDS.

Médico (começa a prestar atendimento, depois de perguntar por que “Barba”

está preso e ouvir suas explicações): ... escuta Barba, você tem relação sexual

aqui dentro da cadeia?

Barba: quem disse que não ta mentindo...

Médico (em tom de afirmação): usa camisinha...

Barba: quando tenho eu uso.

Médico: e droga na veia?

Barba: que é isso doutor?

Médico: eu é que pergunto Barba... qui é essa marca no braço...

O médico e seu assistente , Sem

Chance no pr imeiro d ia de v is i ta na

Peni tenciár ia .

Page 107: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

107

Barba: (olhando para as marcas, meio se jeito, estende o braço, mostra as

marcas para o Médico e não responde nada).

Médico (pegando um frasco de coleta de sangue e entregando ao “Barba” que

o pega e sai cabisbaixo): manda o próximo...

Entra o próximo amparado por dois outros presos...

Preso 1 (sem cabelos, muito magro e com aparência bastante debilitada): meu

nome é Alípio.

Médico: Alípio você usa droga?

Alípio: faz que não com a cabeça...

Médico: nada na veia?

Alípio: esquece doutor... eu peguei AIDS foi comendo bunda de cadeia... muita

bunda... Adianta fazê o teste?

Médico (não responde nada... fica olhando com uma cara meio incrédula e

corta a cena para outro personagem).

Preso 2: (homossexual travestido... unhas pintadas...jeito de mulher): eu

escuto... aconselho... faço carinho... ponho no colo... aí depois eles sempre faz

Page 108: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

108

um agrado prá nós. Sabe doutor: um maço de cigarro... um docinho... um

pedaço de queijo...

Médico: olhando incrédulo joga a caneta sobre a mesa.

Preso 2 (em tom de confidência e tentando se justificar diante da incredulidade

do médico): sabe doutor, é muito homem fechado aqui dentro, sem aquela

nossa coisa feminina de dá apoio...

Preso 3: (ao sentar-se na frente do médico pode-se ver que algumas cartelas

de medicamentos estão espalhadas sobre a mesa): To com AIDS sim doutor,

mas não peguei aqui dentro não, trouxe da rua, mas não dá nem pra reclamar

viu doutor? Porque chegar doente numa cadeia e os companheiro tratá agente

com respeito, com dignidade é a coisa mais bonita na vida de um ladrão...

Preso 4: Sou viciado e traficante... no meu negócio, se o cara num paga, num

posso pegá o que eu vendi prá ele. O desgraçado já cherô, já fumô, vai sabê,

pego tudo o que ele tivé chefe... se o cara num tivé nada, aí eu mato ele.

Preso 5: (mais um homossexual): um dia desse pedi uma banana a mais pro

moço que entrega o almoço... o safado me disse que só me dava se eu desse

um beijinho na banana dele... Fazê o quê?... Sou louca por banana...

Preso 6: (vestindo a camisa depois de ser examinado): aí doutô, no meu

barraco tá todo mundo com essa cocera... num dá prá aguentá...

Médico (lavando as mãos): é sarna... vou arranjar um remédio prá vocês...

(depois se dirigindo ao Sem Chance que está colhendo amostras de sangue): e

ai? Comé que tá indo?

Page 109: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

109

Sem Chance: Pô doutor, prá quem já injetô cocaína no escuro com agulha

sem ponta. Tirá sangue com esse material aqui é até covardia da parte nossa

doutor! É sem chance...

Cena 4: Fim do expediente do primeiro dia na penitenciária:

No final do dia, já bem escuro, o doutor vai saindo da cadeia com o isopor com

as amostras de sangue nas mãos. Antes de sair, já no portão, é indagado por

Nego Preto: doutor? O senhor volta?

O médico só olha prá ele e nada responde...

No caminho, dentro do metrô o doutor vai pensando...

Pensamento do médico: eu sabia que muitos daqueles homens não tinham

demonstrado clemência diante de suas vítimas. Mas a sociedade tinha seus

juízes, não me cabia julgar. Ao mesmo tempo o que tinha eu a ver com aquilo...

Havia duas escolhas: esquecer ou voltar...

Sem Chance (Gero Camilo) coletando sangue dos presos para fazer o teste de Aids.

Page 110: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

110

Cena 6: Lady Di se apresenta para fazer o teste de Aids:

(Lady Di é a “companheira” do Sem Chance)

Lady Di: (travesti). Com licença? Oi eu sou a Lady. Vim fazê o teste...

Médico: Por favor, sente-se... Primeiro eu gostaria de lhe fazer umas

perguntas Lady Di.

Lady Di: Eu já conheço essa missa viu doutor. Nunca precisei de transfusão de

sangue, num boto nada na veia (mostra os braços para o médico). Droga pra

mim doutor é um baseadinho só que eu fumo de vez em quando viu? Assim...

prá vê televisão ou prá namorá.

Médico: parceiros... quantos?

Lady Di: Ah... uns dois mil...

Médico: (faz um olhar do tipo:não tem jeito mesmo!)... Pega a borrachinha e

amarra no braço da Ladi e pergunta: posso? (referindo-se aos peitos da Ladi e

o aperta dentro da camisa): Lady o silicone que você usou não é prá isso...

Lady Di: e eu tinha dinheiro pra coisa melhor doutor?

Médico: e hormônio? Já tomou?

Lady Di: magina... hormônio prá que? Agente toma e não acontece nada! Tem

cliente nosso, o senhor sabe, gosta mesmo é de virá moça.

Médico: é Lady, acho mesmo que chegou a hora de você saber se tá doente...

Na enfermaria o doutor passa visita nos doentes. Um auxiliar fala de um

paciente que está com febre alta e que nada adianta, nem antibiótico, e dá o

veredicto: prá mim isso é AIDS.

O doutor vê um preso que está muito machucado, sem o oxigênio e pergunta

quem tirou. Os auxiliares dizem que é estuprador e que ele não tem chance de

sobreviver por conta do delito cometido. Matar para eles, tudo bem, estuprar

não.

Page 111: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

111

Cena 8: Sem Chance não quer fazer o teste de HIV

Sem Chance, Lady Di e o médico conversam. Sem Chance e Lady Di querem

assumir o caso e o médico fala que a Lady fez o teste e ele não faz por que.

Medo de injeção? A cena corta para a história de Zico e Deusdete.

Cena 12: O show de Rita Cadilac

Rita Cadilac: Pois bem. Eu sei que vocês... todos... namora bastante. É

verdade? Mas vocês tão se cuidando? O nosso amigo doutor... (pegando o

doutor pela mão que estava em cima do palco) veio aqui hoje e me ensinou

bastante pra eu ensiná pra vocês... não é isso? (doutor responde que sim no

microfone). Pois bem, tem uns que se cuidam e ainda se lembram. Têm outros

que não se lembram. Então eu vou ensiná como é que se faz.

Em visita à enfermaria, o Médico (Luiz Carlos Vasconcelos) e Antonio Carlos (Floriano Peixoto) amparam Claudiomiro (Ricardo Blat) na hora da morte.

Page 112: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

112

Rita Cadilac “relembra” aos detentos como que se usa a camisinha.

Um “ajudante de palco” joga camisinha para a platéia.

Cena 13: Peixeira conversa com o estuprador:

Peixeira: que cara é essa minino?

Preso estuprador (ainda todo estropiado, chorando): eu inventei que tava com

AIDS pra ninguém zuá comigo, mas não adiantô nada.O filho da puta que me

fez tá com a maldita.

Peixeira: esquece garoto. Ele mandô te dizê que mentiu. Ele também não tem

AIDS.

Preso estuprador: sorri e respira aliviado.

Cena 14: Lady Di e Sem Chance abrem o resultado do teste de AIDS.

Sem Chance: O doutor falou que tem que dar positivo.

Page 113: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

113

Lady Di: Não. Positivo é justamente a maldita no sangue. Tem que dá

negativo. HIV Negativo. Eu vou abri primeiro. Meu caso é pior mesmo.

(depois de abrir e ver o resultado): Tô limpa! Tô limpa! (chorando)...

Sem Chance (rindo): olha só... Tu já fez ponto na noite, só aqui dentro mais de

dois mil homens e... limpinha. E eu todo certinho e ó: sem chance (Lady olha

prá ele com um olhar de incredulidade). To limpo também Lady (mas continua

triste porque recebeu liberdade e não quer ir embora e deixar a Lady).

Cena 16 : o casamento de Lady e Sem Chance:

Todos os travestis do presídio se reúnem para o casamento. O Médico leva Lady Di ao altar.

Cena 17: a morte de Zico:

Ezequiel, que devia dinheiro de drogas a Zico tem sua cabeça pedida ao Nego

Preto. Ezequiel, não tendo como pagar o que deve oferece a própria irmã como

pagamento. Zico não aceita e absolve Ezequiel. Mas Nego Preto é implacável

e manda Ezequiel morar no pavilhão “amarelo”.

A cena corta para Zico, que em uma alucinação, mata seu amigo de infância,

Deusdete e é julgado e condenado por todos da cadeia, sobretudo por

Majestade que lidera a morte de Zico que morre a facadas desferidas por

vários presos. Depois da morte de Zico, Majestade vai visitar Ezequiel e induz

Page 114: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

114

ele a se responsabilizar pela morte de Zico. O que Ezequiel responde: mas eu

só tenho mais dois anos... e se eu assumir a morte do Zico eu vou amarrar

mais vinte. Ao que Majestade responde: dois anos, vinte anos, que diferença

faz pro Ezequiel? Tá com Aids! Pelo menos tu vai tê uma cela só prá ti, roupa

lavada... e é claro! Pedra prá fumá (Ezequiel era viciado em craque). Ezequiel

sorri e recebe a faca com a qual Majestade e seus comparsas haviam matado

Zico. Por fim Ezequiel assume o crime dizendo que foi ele que “fez” o Zico e

que agora não deve mais nada prá ninguém.

Cena 20: A invasão da PM:

PM (invadindo o prédio quando se depara com um bando de presos que

vinham descendo as escadas): Volta prá trás! Tá todo mundo aidético aqui!

Vocês vão tudo morrer!

Ezequiel (Lázaro Ramos), isolado e doente de Aids assume a morte de Zico (Wagner Moura) em troca de favores e drogas.

Page 115: A PERMANÊNCIA E MANUTENÇÃO DOS EFEITOS DE …periodicos.anhembi.br/arquivos/trabalhos/360792.pdf · Os filmes sobre o assunto tiveram e ainda têm grande destaque na mídia. Pressupondo-se

115

Última cena: O médico no metrô se dirige à Penitenciária para mais um dia de trabalho:

Médico (narração em off): no final dos anos 80, um trabalho de prevenção à

AIDS entre a população carcerária, me levou à Casa de Detenção de São

Paulo, no Carandiru. Ali dentro ouvi histórias, fiz amizades verdadeiras, aprendi

medicina e na convivência penetrei em alguns mistérios do cárcere,

inacessíveis se eu não fosse médico. Ainda hoje, quando o portão de ferro bate

às minhas costas sinto um aperto na garganta igual àquelas matinês no Cine

Real, quando eu assistia, eletrizado, os filmes de cadeia em preto e branco.

No dia 09 de dezembro de 2002 o Carandiru foi, finalmente, implodido.

Travesti (relata ao médico o que aconteceu no massacre): “Entraram prá matar doutor, gritaram que agente era tudo um bando de aidético, que se encostassem na gente pegava doença...”