A PESSOA E OS VALORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER

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Revista Reflexão, Campinas, n os 85/86, p. 41-55, jan./dez., 2004 ARTIGO A PESSO A PESSO A PESSO A PESSO A PESSOA E OS V A E OS V A E OS V A E OS V A E OS VAL AL AL AL ALORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER ORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER ORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER ORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER ORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER LA PERSONNE ET LES VALENRS, DES ASPECTS DE LA PENSÉE DE MAX SCHELER Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de SOUZA NETO SOUZA NETO SOUZA NETO SOUZA NETO SOUZA NETO Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas RESUMO RESUMO RESUMO RESUMO RESUMO Este artigo oferece uma interpretação da obra Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Gesammelte Werke, de Max Scheler, analisando conceitos fundamentais como os de valor, pessoa, hierarquia dos valores. Aborda as influências fenomenológicas de Scheler e esclarece em que medida a axiologia possui uma dimensão antropocêntrica. Palavras-chave: valor, pessoa, amor, fenomenologia. ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT ABSTRACT This paper offers an interpretation of the Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Gesammelte Werke, of Max Scheler, analyzing basic concepts as value, person, hierarchy of the values. It approaches the phenomenological influences of Scheler and clarifies in degree that the axiollogy has an anthropocentric dimension. Key-words: value, person, love, phenomenology. (1) MAX FERDINAND SCHELER, (Munique, 1874 – Frankfurt, 1928), autor de vasta obra filosófica, ainda pouco traduzida para a língua portuguesa, sendo um dos mais expressivos nomes da Fenomenologia, e fundamental para a Axiologia. Através de sua principal obra desenvolvemos este trabalho, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Gesammelte Werke, Band 2 A. Francke, Bern 1954. Atualmente há um questionamento rela- cionado aos valores, ao que realmente seria valioso para o ser humano. Apresentamos uma análise do pensamento do filósofo Max Scheler 1 , que apesar de ter vivido poucos anos, apenas 54, este filósofo de origem germânica ainda não muito conhecido no Brasil, que a partir de sua obra principal, O Formalismo na Ética e a Ética Material dos Valores, propõe uma ética funda- mentada nos valores, apreendida na intuição, possibilitada pela fenomenologia.Uma ética fundamentada em valores materiais a priori, ou seja, objetivamente existentes fora da experiência humana e apreendidos por um ato emocional, com importância dada à emoção, em especial ao amor.

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ARTIGO

A PESSOA PESSOA PESSOA PESSOA PESSOA E OS VA E OS VA E OS VA E OS VA E OS VALALALALALORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELERORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELERORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELERORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELERORES, ASPECTOS DO PENSAMENTO DE MAX SCHELER

LA PERSONNE ET LES VALENRS, DES ASPECTS DE LA PENSÉE DE MAX SCHELER

Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de Cézar Cardoso de SOUZA NETOSOUZA NETOSOUZA NETOSOUZA NETOSOUZA NETOMestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de CampinasMestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de CampinasMestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de CampinasMestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de CampinasMestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas

RESUMORESUMORESUMORESUMORESUMO

Este artigo oferece uma interpretação da obra Der Formalismus in der Ethik und diemateriale Wertethik: Gesammelte Werke, de Max Scheler, analisando conceitosfundamentais como os de valor, pessoa, hierarquia dos valores. Aborda as influênciasfenomenológicas de Scheler e esclarece em que medida a axiologia possui umadimensão antropocêntrica.Palavras-chave: valor, pessoa, amor, fenomenologia.

ABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACTABSTRACT

This paper offers an interpretation of the Der Formalismus in der Ethik und diemateriale Wertethik: Gesammelte Werke, of Max Scheler, analyzing basic concepts asvalue, person, hierarchy of the values. It approaches the phenomenological influencesof Scheler and clarifies in degree that the axiollogy has an anthropocentric dimension.Key-words: value, person, love, phenomenology.

(1) MAX FERDINAND SCHELER, (Munique, 1874 – Frankfurt, 1928), autor de vasta obra filosófica, ainda pouco traduzida para a línguaportuguesa, sendo um dos mais expressivos nomes da Fenomenologia, e fundamental para a Axiologia. Através de sua principal obradesenvolvemos este trabalho, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Gesammelte Werke, Band 2 A. Francke, Bern1954.

Atualmente há um questionamento rela-cionado aos valores, ao que realmente seriavalioso para o ser humano. Apresentamos umaanálise do pensamento do filósofo Max Scheler1,que apesar de ter vivido poucos anos, apenas 54,este filósofo de origem germânica ainda nãomuito conhecido no Brasil, que a partir de sua

obra principal, O Formalismo na Ética e a ÉticaMaterial dos Valores, propõe uma ética funda-mentada nos valores, apreendida na intuição,possibilitada pela fenomenologia.Uma éticafundamentada em valores materiais a priori, ouseja, objetivamente existentes fora da experiênciahumana e apreendidos por um ato emocional, comimportância dada à emoção, em especial ao amor.

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O objetivo principal de Scheler é resgataro valor da pessoa humana, pois o ser humano éo valor fonte. Considera o amor como o valorcentral da pessoa, que a move, impulsiona eatrai, pois todos os seus sentimentos são regidospelo amor. Para Scheler, o amor culmina novalor da pessoa e é o único caminho que conduzao descobrimento dos valores. Fundamenta aética dentro da axiologia como expressãoplenamente humana, buscando centralizar todasas questões éticas no conceito de valor.

Sua concepção filosófica, é profunda-mente marcada por sua influência cristã,especialmente agostiniana, que se vê refletidano trabalhar a dignidade humana, vivenciandoos valores supremos, torna-se imagem esemelhança de Deus. Esta visão do ser humano,desde os valores que configuram sua dignidade,é um dos e ixos centra is do pensamentoscheleriano, onde encontramos os instrumentosnecessários para estudar o tema do amor e suarelação com a pessoa, nosso objetivo primordial.

Qual seria a importância do amor naconstrução dos valores éticos? Uma aparenteliberdade, baseada na democracia e na busca dapaz, do bem estar e do progresso, se apresenta àpessoa, que ao mesmo tempo se depara com guerrashorríveis, devastação, perseguições raciais ereligiosas, a miséria e a fome, sem conseguirvislumbrar sinais de um futuro que desperte maioresesperanças. Esta relação com o mundo no qualestamos inseridos é muito importante, poiscaptamos o valor com uma apreensão imediata,com um ato do sentimento, que se dirige à realidade,e nela podemos ver revelados os valores. SegundoScheler, os valores são captados por meio dasvivências emocionais, pela intuição emocional.Descobrir valores é incumbência da percepçãoafetiva humana, já que o ser humano é o protagonistados valores. Mas como isso seria possível? Há umainversão total de valores, que coloca seus abominá-veis anti-valores no lugar dos valores realmentehumanos, vivenciados por séculos e solidificadospelo cristianismo. Atualmente assistimos umacultuada exaltação humana, que na realidade étotalmente falsa e artificial, promovendo os instintosmais vulgares, que verdadeiramente não passa damais radical negação do ser humano. Nesse atual

contexto nos deparamos não somente com adegradação e a destruição da civilização ocidental,mas com a proliferação da cultura da morte.2

Temos como ponto inicial para nossaanálise de aspectos do pensamento de MaxScheler, a pessoa e sua afetividade, relacionadaaos valores éticos, à intuição emocional quepossibilita o conhe-cimento dos valores e osintegra à sua personalidade, da grande impor-tância da pessoa e sua afetividade, ou seja, oamor, centro do pensamento scheleriano.

Scheler ainda é pouco estudado e poucasobras suas foram traduzidas no Brasil, o que, emparte, justifica esta pesquisa, que apóia-seprincipalmente na leitura do Formalismo, comouma introdução a alguns aspectos da relaçãoentre a pessoa, sua afetividade e sua importânciacom os valores na concepção scheleriana.

OS VALORES E A PESSOAOS VALORES E A PESSOAOS VALORES E A PESSOAOS VALORES E A PESSOAOS VALORES E A PESSOA

A seus olhos os valores da pessoa figuramcomo fonte, da qual se origina a captação ecompreensão dos valores supremos, pois osvalores, sem o ser humano, seriam como umamassa sem forma. Somente a partir da concepçãodo ser humano redimensionado como centro dasatenções é que se tornaria possível entender ovalor que Scheler atribui à intuição. Ele põe emrelevo a supremacia da pessoa como valor fonteem toda trama interna dos valores, a intuição dapessoa ao descobrimento dos valores. imprescin-díveis ao estudo da pessoa e de sua dignidade emrelação com os valores.

A HIERARQUIA DOS VALORESA HIERARQUIA DOS VALORESA HIERARQUIA DOS VALORESA HIERARQUIA DOS VALORESA HIERARQUIA DOS VALORES

Scheler descreve valores com o termo quali-dades, que possuem consistência em si mesmas,independente das diversas mudanças culturaisatravessadas pelo ser humano através da História.

O mundo histórico-cultural atua como ummodificador dos bens, de maneira que aquilo quese considerava um bem numa época determinada,pode resultar irrelevante numa outra época; contu-do, o valor que está presente nesse ou naquele bem

(2) Cf. Marcial Maciel LC., A Caridade Evangélica, São Paulo, Nova Evangelização, pág. 4.

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permanece inalterável. Por exemplo, o valor dacultura artística, ou seja, a estética, será sempreum valor, independente de suas concepçõeshistórico – culturais, que mudam a maneira deconceber e expressar a beleza em determinadasépocas. Uma coisa seria o conteúdo do valor esté-tico, e outra muito diversa sua expressão ao mundoexterior. Esta expressão se encontra sujeita àsmudanças culturais e às faculdades avaliativashumanas de acordo com os padrões estéticosvigentes.

Para Scheler, seria como que desfigurar osvalores pretender classificá-los num mesmopatamar que os bens, confundindo os possíveisdepositários dos bens com os valores mesmos.3

Assim, estabelece uma distinção entre bens evalores, sendo os valores eternos e imutáveis, graçasà sua objetividade:

“É seguro, por exemplo, que os valoresestéticos correspondentes às palavrasamáveis: sublime, belo, não são merostermos conceituais. Pois eles têm sua sedenas propriedades comuns das realidades,em qualidade de depositárias dessesvalores. O demonstra o fato que se tenta-mos nos apoderar de tais propriedadesnão ficamos com nada nas mãos.”4

Os valores para Scheler seriam entãoontológicos, ou seja, algo de tal modo fundamentalque o ser passa a ocupar sua forma:

“Todos os valores são qualidades materiaisque têm uma determinada ordenação mútua,com independência da forma na qual seinclua. Assim, por exemplo, um homemresulta desagradável ou repulsivo, ouagradável e simpático, sem que possamosindicar no que consiste isso.”5

Os valores são referidos por Scheler comorealidades, e ratifica isso buscando a verdadedos valores, pois pretende ampliar a ótica com aqual contempla a verdade.

Ao se fazer referência à verdade, sob a óticade nossa cultura ocidental, entende-se verdade no

sentido intelectual. Scheler concorda com essareferência, porém a maior parte das definiçõessobre a verdade a reduzem exclusivamente aoracional, produzindo com isso um reducionismoda verdade, segundo Scheler.

Na opinião de Scheler, o aumento doprisma através do qual se pode contemplar averdade seria produzido quando se tem em contaque o ser humano é o único ser que pode sesintonizar com a verdade, tanto num nívelindividual, quanto social, e no mundo que nosrodeia. A racionalidade monopolizou a verdadede tal forma que por isso, e diante disso, Schelerpropõe outra visão. Contempla o ser humano emsua totalidade, não que este seja o árbitro daverdade, mas sim que a pessoa é a única capaz decaptar a verdade dos valores.

Deixa claro o sentido do a priori dos valores;o a priori de Scheler são as essências e não asformas transcendentais kantianas, que são funçõesdo intelecto. Com isso descarta o conceptualismoidealista, assim como o empirismo e o positivismo,pois graças à fenomenologia integra o caráteremotivo, como um valor. Essa integração dosentimento, do emocional feita por Scheler nãoseria a consideração de seu caráter subjetivo, comoaté então se havia feito. Ele não concorda com oreducionismo do valor ao puramente subjetivo,sabendo que tem um alcance muito mais profundo.Sob este aspecto, os sentimentos da pessoa têm umconteúdo objetivo. Por serem qualidades autênticase verdadeiras, os valores são objetivos assim comoo são também independentes de seus suportes:

“Os valores são independentes em seu serde seus depositários.”6

Ademais, existem diferenças entre osvalores, pois eles não são iguais. Por isso se faznecessária uma distinção entre eles, o que nospossibilita demonstrar diversos graus de valores.

O termo hierarquia é evocado por Schelerporque tem duas conotações. A primeira seria aprimazia de uns valores em relação a outros, porqueexistem valores que se encontram no ápice enquantooutros valores se encontram num lugar secundário.A ordenação de uns valores em relação a outros, o

(3) Cf. MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, op. cit., pág. 36.(4) Ibid., pág. 40.(5) Ibid., pág. 40.(6) Ibid., pág. 41.

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que significa que os valores se correspondemreciprocamente, sem solução de continuidade.Os valores, com efeito, não operam como peçassoltas, mas como um conjunto unitário emharmonia com o esse do ser humano.Schelerhierarquiza os valores em escala, procedendo deníveis inferiores até o superior. Existe umagrande diferença entre os valores: alguns sãotransitórios, efêmeros, outros são perenes,eternos, em uma clara contraposição àquelespassageiros. Assim temos:

a) Valores Sensíveisa) Valores Sensíveisa) Valores Sensíveisa) Valores Sensíveisa) Valores Sensíveis

Os valores sensíveis seriam aqueles queestão localizados na base da escala de valoresschelerianos.

Entre eles se destacam os valores do agra-dável e do desagradável, do útil e do inútil. Schelerrestringe o valor do agradável e do desagradável àfunção sentimental, sensível, do ser humano.7 Oestímulo sensitivo motiva a resposta a tais valores.Estes, por sua vez, procedem da sensibilidadehumana, justificando a situação inferior na qualeles se encontram delimitados. Scheler situa essesvalores na escala inferior da hierarquia.

b) Valores Vitaisb) Valores Vitaisb) Valores Vitaisb) Valores Vitaisb) Valores Vitais

Servem de passagem entre o último e omais elevado na hierarquia dos valores. Trata-sedo valor vital. Os valores vitais são contempladospor Scheler sob uma dupla perspectiva. Aprimeira faz referência ao valor da vida de modomais amplo; a outra concerne à percepção decaráter emotivo humano em relação a esse valor.8 Ambas convergem no mesmo ponto focal: ovalor vital. É precisamente nesta interseção decaminhos que Scheler se distancia da posturakantiana, pois julga que nem todos os valoressão redutíveis ao plano hedonista, como Kantparece supor. O valor por si mesmo do vitalmentenobre, por exemplo, não se encaixa na classi-ficação kantiana.9

A oposição de Scheler ao formalismokantiano obedece, em última instância, à sua

resistência a que os valores sejam enfocados peloracionalismo, ficando assim sem fundamento.

c) Valores Espirituaisc) Valores Espirituaisc) Valores Espirituaisc) Valores Espirituaisc) Valores Espirituais

Essa terceira esfera da hierarquia de valoresscheleriana nos coloca como no alto de um monte,donde podemos contemplar os demais valores.Denomina-os valores espirituais porque estãoseparados do somático e do mundo que envolveessa realidade. Diferenciam-se totalmente dosvalores vitais. Essa diferenciação entre valoresvitais e espirituais Scheler a faz com grandeatenção, ao descrever quais são os valoresespirituais.

Os valores estéticos ocupam um patamarinicial, o valor da beleza e seu antivalor, a feiúra,por exemplo; pois segundo o sistema scheleriano,um valor não é devidamente cotado se nãocontraposto a seu contrário. O valor do belo, emsuas mais variadas formas, pressupõe o antivalordo feio, enquanto este carece de unidade e proporçãodas devidas formas. Por outro lado, e em íntimarelação com o precedente, encontra-se o valor dajustiça, trazendo consigo seu antivalor da injustiça.Graças à justiça, Scheler expressa o conceito doque é justo, especificando que o valor da justiçaestá intimamente referido ao ser humano, poisbrota de sua condição. Mas o valor determinantedessa esfera seria a verdade. Ele diferencia a verdadedo conhecimento humano de todo outro conhe-cimento. Segundo a concepção scheleriana, oobjetivo da ciência é descobrir o fenômeno,enquanto que o conhecimento é a busca da verdadeem sua própria essência.10

A diferença entre uma e outra especifica asegunda área do valor da verdade, ou seja, aidentificação desse valor com a própria verdade doser humano. Perguntamos qual seria o significadodessa identificação da verdade com o ser humano,justamente nessa área? Não há nenhuma negaçãodo valor da ciência, que Scheler reconhece comológico.

Porém, este valor da verdade humana, emtodas as suas vertentes, está muito além de toda

(7) Cf. Ibid., pág. 126.(8) Cf. Ibid., pág. 127.(9) Cf. Ibid., idem.(10) Ibid., pág. 128.

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técnica. A amizade e a convivência humanarepresentam o ponto mais importante na comunica-ção interpessoal humana, já que é a verdade humana,porque o ser humano é antes de tudo um ser viventeque se auto – realiza ao realizar todas asvirtualidades de sua verdade como pessoa, tanto nonível individual quanto no social.11

d) Valores Religiososd) Valores Religiososd) Valores Religiososd) Valores Religiososd) Valores Religiosos

Vinculados à esfera dos valores espirituais,porém diversos deles, são compreendidos porScheler os valores do sagrado e do profano, que naverdade seriam os valores religiosos, ou, valoresda santidade, tendo como antivalor o profano e adescrença. Diz o filósofo:

“O santo é essencialmente um valor dapessoa.”12

Scheler parece não querer de modo algumsignificar que o ser humano sofra uma perda desua identidade pessoal ao identificar-se com osanto, pois o ser humano está aberto ao valor deuma verdade sempre maior, que coincide com osanto como sua plenitude mesma. A pessoa quese identifica com os valores da santidade atingeo grau super ior da exis tência humana,desenvolvendo suas virtudes no grau máximo deseu ser, redescobrindo a profundidade de seuvalor humano transcendente.

Segundo Scheler, o valor pessoal do santoé como ápice de todos os outros valores:

“Os valores do nobre e o vulgar são umasérie de valores mais elevados que os doagradável e o desagradável; os valoresespirituais formam, por sua vez, umagraduação de valores mais superiores queos valores vitais; e, finalmente, os valoresdo santo constituem uma categoria devalores aos espirituais.”13

Percebemos aqui a dignidade da pessoa. Apessoa, é um valor por si mesma, essencialmentemais elevado que outros valores, incluídos ovalor da ciência, da arte, da cultura, pois estesvalores espirituais somente existem em relação ao

ser humano. A pessoa, segundo a concepção deScheler, seria portadora de valores em seus atos.

Os atos humanos são como que os suportesdesse valores, os depositários desses valores.Têm um valor primacial em relação com osvalores derivados do comportamento espontâneoe de reações próprios do ser humano.

O sentimento preferencial seria então aintuição que sentimos, uma simpatia que sematerializa nas preferências ou oposições adeterminados valores. Esta simpatia é específicado ser humano, enquanto sentimento profun-damente humano, porém está ao mesmo tempomotivada por cada um dos valores na medida emque é intrínseca aos mesmos. Não é somentesubjetiva, mas também objetiva, enquadrando-secom a questão do a priori, própria não daintencionalidade sentimental do ser humano,mas também dos valores. A elevação dos valoresà região superior, num sentido hierárquico, atéalcançar os valores de santidade, mostra queScheler tem como ápice da vivência estes valoresreligiosos.

Os valores superiores para Scheler sãoaqueles que apresentam uma maior duração, esão menos divisíveis.

A hierarquia axiológica de Scheler estáorganizada efetivamente desde seu interior, poisas relações recíprocas entre os valores, sob oamparo da ordem superior ou inferior que cadaum ocupa na escala hierárquica, obedecem à suaprópria essência, à margem do conhecimentohumano.

É incumbência exclusiva humana desco-brir o fato da situação concreta de cada valor,em virtude de sua capacidade de preferir um aoutro.14

Todo o sentido da realidade axiológica ehierárquica reside na presença do ser humano,pois as reações da pessoa aos valores se dão deuma forma dinâmica, em virtude da intuição:

“A relação recíproca dos valores superiorese inferiores unicamente se pode percebergraças à capacidade do homem de preferirou excluir.”15

(11) Cf. Ibid., id.(12) Ibid., pág. 129.(13) Ibid., pág. 130.(14) Ibid., pág. 107.(15) Ibid., pág. 109.

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Quanto mais permaneça naquilo que é,tanto maior será sua superioridade, assim aduração seria um elemento essencial dos valoressuperiores. Dessa forma, notamos que os valoressuperiores se disti-guem dos inferiores, que sãoconhecidos fenomenologicamente como efême-ros e transitórios. Os valores superiores tambémse diferenciam em relação aos bens, os quais sãoseus suportes:

“amamos uma pessoa em virtude de seuvalor de pessoa. O fenômeno de duração einclusive de perduração desses valores deamar a outra pessoa, enquanto ato de amar,está orientado ao valor da pessoa. É daessência do ato de amor o ser sub speciequandam aeterni.”16

O valor superior é aquele que apresentamenor relatividade, e, por conseguinte, um valorserá mais elevado na escala hierárquica quantomenos for relativo, graças à sua proximidade como valor absoluto.

Scheler situa o conteúdo do valor numaesfera diversa da do fenômeno que atua como seusuporte, susceptível de muitas variações, incapazesde esgotar sua objetividade. Por isso, é diverso ovalor em si mesmo considerado. Daí nosso filósofodiferenciar os valores superiores, que sãoperduráveis, dos valores inferiores, pois o duradourose opõe ao fugaz:

“Os valores mais inferiores de todos são porconseguinte os mais fugazes.”17

Confirma desta maneira o perdurar dosvalores superiores e sua indivisibilidade ante osinferiores, que carecem destas características,como critério de validade de sua superioridadena hierarquia axiológica. Essa indivisibilidadeé de grande u t i l idade para d is t ingui rdeterminados valores de outros, conforme sefazem presentes e detectáveis para as pessoas.Assim, Scheler diz que:

“Os valores serão mais superiores quantomenos divisíveis forem.”18

O ser humano tem suas preferências poruns ou outros valores graças à sua experiência

fenomenológica da simpatia, pois os valoresagradáveis, num nível sensível, não só têm apropriedade de extensão como são descobertoscomo tais pela intuição.19

Scheler, utilizando a indivisibilidade dovalor da bondade, coloca-o num lugar especial,privilegiando-o. Com isso pretende destacar arelevância deste valor. A pessoa é boa, pois o serhumano não foi feito para o mal e tampouco estápredeterminado a fazê-lo necessariamente, casocontrário, o ser humano seria intrinsecamentemau. A bondade é o mais atraente valor humanopois está vinculada intimamente com o amor, doqual é a expressão mais profunda. Há uma relaçãoentre o valor de bondade, o conhecimento e averdade para Scheler, porque somente o serhumano pode conhecer a verdade, o que tornapossível essa unidade.

Não se trata de dizer que os valores sejamiguais em sua qualidade de valores, mas sim demostrar que se encontram vinculados uns aos outrose hierarquizados.

Compara a objetividade de sua hierarquiaaxiológica com a estrutura do corpo humano, ondenem todos os membros ocupam a mesma categoria,ainda que sejam todos igualmente essenciais. Éclaro que os pés não têm a mesma importância queo cérebro, mas ambos são essenciais para o serhumano, ainda que possuam grandes diferenças defunção. Pode-se viver, ainda que com muitadificuldade, sem os pés, porém seria impossívelsem o cérebro. Dessa forma, existem valoresdiversos uns dos outros, cada um com sua função.Há aqueles que desempenham funções que searticulam com a de outros valores, assim como océrebro coordena as atividades de outros órgãos.

Cada valor conserva sua identidade emvirtude de sua inter-relação hierárquica com osvalores absolutos, pois um valor nunca podeconceber-se como uma peça desvinculada dasdemais, estando sempre os valores inter-relaciona-dos em suas distintas esferas.

Scheler apresenta a satisfação como umavivência intencional do valor, pois esta se encontraassociada aos valores percebidos pelo ser humano.

(16) Ibid., pág. 112.(17) Ibid., pág. 113.(18) Ibid., idem.(19) Cf. Ibid., págs. 113 – 114.

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A satisfação é mais profunda quando serealiza em presença dos valores.20 Perceber osvalores, sentir-se atraído por eles, e então viven-ciá-los, proporciona uma profunda satisfação noser humano.

Essa satisfação é diferente de qualqueroutra satisfação que há, porque quanto maiselevado for o valor dentro da escala hierárquica,mais profunda satisfação produzirá.

O ser humano vive os valores, desde osinfer iores , buscando sempre os va loressuperiores. Cada vez que ascende a valores maiselevados na hierarquia, mostra-se nesta buscaaos valores supremos, que são os valoresreligiosos. Ao contemplar e integrar-se de formarealmente profunda com os valores religiosos,pode realizar-se plenamente pois atinge o ápiceda escala de valores, atingindo assim o mais altograu da realização.

Identificar-se com estes valores requer umsentimento de admiração, uma afetividade emrelação a esses valores, pois almejamos e desejamosaquilo que cremos ser o melhor e mais necessáriopara que nos sintamos plenamente realizados. Essesentimento é apresentado por Scheler comonecessário para que nos sintamos atraídos a umvalor; desta forma, ao perceber um valor, identificar--se com ele e vivenciá-lo envolve o amor. Essesentimento possibilita uma comunicação davivência destes valores supremos, pois, ao vivenciaros valores religiosos, torna-se homo religiosus,que possibilita o sentimento de simpatia da pessoaque ao contemplar uma outra pessoa que vivenciaestes valores religiosos, interligando valores e ossentimentos.21

Somente a partir da concepção do ser humanoredimensionado como centro das atenções é que setornaria possível entender o valor que Scheleratribui à intuição. Ele põe em relevo a supremaciada pessoa como valor fonte em toda trama internados valores, a intuição da pessoa ao descobrir osvalores. Poder-se-ia dizer que a intuição fenome-nológica revela, a seu modo, o poder criador

humano em relação com a verdade dos valores.Essa verdade se encontraria oculta nos valores,porém só poderia evidenciar-se graças à intuiçãofenomenológica da pessoa. Esta, mediante aintuição, tece sua personalidade sobre o tecidodos valores, podendo dizer que estes são análogosà matéria do fio de ouro e da seda que servirãode suporte, como num bordado, à esplêndidaobra humana: a configuração de si mesmo.

A pessoa e os valoresA pessoa e os valoresA pessoa e os valoresA pessoa e os valoresA pessoa e os valores

O ser humano vai tomando consciência deseu ser pessoal conforme desce aos estratos maisprofundos de sua vida pois, como diz Scheler,

“os atos brotam da pessoa.”22

O ser humano comporta-se de tal maneira,em suas ações, que reafirma sua personalidade,pois o ser humano, para Scheler, encontra-seinstalado desde seu nascimento na direção desua realização plena.23

Mas o que seria a pessoa para Max Scheler?Ele mesmo responde - pessoa é:

“a unidade de ser concreta e essencial deatos”24

ou seja, não é um simples conjunto de atos quese unem num ponto comum, mas a autocons-c iência é a sua rea l idade pr ior i tá r ia . Aautoconsciência seria sinônimo de identidade, ecompreende todas as virtudes da pessoa, masque vínculo existe entre a pessoa, sua dignidadee os valores?

Para Scheler, o sujeito de toda atuação ésempre o ser humano, pois em cada ação ele deixasua própria marca pessoal.

Ao analisarmos as afirmações de Schelersobre o valor, verificamos que o valor da pessoaseria o mais concreto dos valores, justamente porqueé da pessoa, ser concreto, ou seja, a pessoa seria umvalor fonte, o que o leva a descrever a intenciona-lidade da pessoa até seu próprio valor.25

(20) Ibid., pág 116.(21) MAX SCHELER, Wesen und Formen der Simpathie, Die deutsche Philosophie der Gegenwart, A. Francke, Bern und München, pág. 109.(22) MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik. Neuer Versuch der Grundlegund eines ethischen

Personalismus: Gesammelte Werke, Band 2, A. Francke, Bern, pág. 180.(23) Cf. Ibid., idem.(24) Ibid., pág. 393.(25) Ibid., pág. 511.

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Sustenta que a pessoa deve tender inten-cionalmente a seu próprio valor. Essa tendênciatem um significado muito específico, de maneiraque o ser humano deve perseguir como objetivode seu fazer não seu aperfeiçoamento axiológicocomo um fim imediato, mas como horizonte dosvalores buscados por ele. O ser humano atingesua própria perfeição ao buscar o fim autênticodo valor de seu atuar.

Na descrição do vínculo da pessoa com osvalores, Max Scheler foge sempre dos finsimediatos, que impediriam a dignidade e o valorda pessoa.

Mas qual a importância de Scheler nummundo onde os anti-valores são tão exaltados?A diferença abissal entre o valor da pessoa e osoutros valores seria aquela que mostra a pessoaser o sujeito ativo dos demais valores. Schelerbusca recolocar a pessoa no centro do valor maisprofun-damente humano, naquele que lhecorresponde, por sua dignidade de ser racional elivre, pois o ser humano é o único ser capaz dedescobrir os valores, pois estes nunca fenecem,são imutáveis, absolutos e eternos.

Segundo Max Scheler, o ser humano possuiuma intuição emocional, graças à qual não sóconhece os valores, mas os integra à sua própriapersonalidade. Isso a enlaça logicamente com ahierarquia axiológica como uma escala ascen-dente, assim como uma rampa que possibilita aoser humano a ascender aos valores supremos. Adiversidade dos valores, a partir dos sensíveis,passando pelos culturais até os espirituais ereligiosos, denota um relevo e integração totaldos valores no ser humano.

Scheler se distancia do formalismo kantiano,por isso não poupa esforços para buscarincansavelmente a verdade integral do ser humano,seriamente comprometida pela perda da segurançado conhecimento do mundo exterior, no qual seencontra inserida a pessoa. Ele formula umaconcepção que promove a unidade total do serhumano, onde a experiência intuitiva da pessoarecebeu um impulso inédito, e, longe de ignorar o

valor da racionalidade, chega a potencializá-la,desenvolvendo a correlação da intuição emotivacom o valor. Scheler tem como objetivo resgataro valor da pessoa humana, pois o ser humano emsua concepção é o valor fonte.

O amor, associado à vontade, seria o maisnobre de todos os sentimentos humanos, poisteria a primazia sobre os outros. A conexão doamor com a experiência intencional brota daprópria natureza do amor, pois este é priorita-riamente experiência, ao fazer participar a pessoade maneira ativa no próprio ato de amar. Amarsignifica comunicar-se, que é o dom de si mesmoaos demais, para que se construa uma unidadeinterpessoal. Demonstrando a importância darelação afetiva, que se faz comunitária.

Nesse particular, Scheler assegura queamar a outrem, como um amigo, denota sempreque se sai de si mesmo para participar de maneiradireta na própria realização do outro.26

Podemos responder à questão da importânciado amor na construção dos valores éticos, demons-trando que Scheler considera o amor como valorcentral da pessoa, que a move, impulsiona e atrai,e em conseqüência, encontra-se tão relacionadocom a pessoa que prima sobre qualquer outrafaculdade, pois todos os sentimentos, nos quaisculmina a intencionalidade emotiva e nos quaisqualquer valor alcança seu ponto mais elevado,estão regidos pelo amor.

O amor, axiologicamente considerado, é umato da pessoa; é de tal sorte livre que é criador,porque dá a vida ao ser que ama, conferindo assimvalor àquilo que ama. Aquele que ama tende aelevar a pessoa amada, e ao elevá-la eleva-se a simesmo.27

Por isso, Scheler especifica o que faz o amorem relação ao seu termo que é a própria pessoa. Ascoisas não podem ser o fim do amor porque sãoreassumidas na pessoa, e somente nela se desvela ovalor das coisas. A pessoa é a raiz na qual as coisasrevelam seu valor, pois o eu não pode existir senãopela afirmação do caráter pessoal do sujeitoamado.28 Segundo o sistema scheleriano aqui

(26) Cf. MAX SCHELER, Schriften aus dem Nachlass: Ordo Amoris, Band 1: Zur Ethik und Erkenntnislehre: Gesammelte Werke, Band 10,A. Francke, Bern 1957, pág. 356.

(27) Cf. Ibid., pág. 358.(28) Cf. MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, op. cit., pág. 259.

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estariam as grandes diferenças entre o amor e oentendimento humanos. O entendimento tende àrealidade tal como é apreendida. O amor adere àpessoa conforme é em si mesma. Por isso, o amorleva a um conhecimento superior da pessoa queescapa ao entendimento. A razão exige assentimen-tos incondicionais; mais ainda, pretende convencero outro. O amor, pelo contrário, não só respeita asdiferenças pessoais, como que as assume conscien-temente para que a união interpessoal seja fruto desua riqueza pluralista. Por isso, a irredutibilidadeda pessoa, marca de sua dignidade, ficariatotalmente a salvo, no exercício do amor.

O entendimento humano seria universalem todas as suas direções. O amor, de sua parte,é também universal mas é concreto em suaaplicação; sempre se refere à pessoa tal como éaqui e agora, ainda que contemplada com visãosuperior de seu valor universal.29 Esta prioridadedo amor não significaria que o amor esteja sedistanciando dos valores, pois o amor é umvalor, enquanto é a ação mais elevada da própriapessoa. Sob este aspecto, Max Scheler fundamentaa ética dentro da axiologia, como expressãoplenamente humana. É a tentativa de centralizartodas as questões éticas no conceito de valor.

Isso o coloca em desacordo com o formalismokantiano ao mesmo tempo que recusa o relativismodos valores éticos. Diz ele:

“Os valores são independentes dos bens eirredutíveis às tendências e aos estadosafetivos. Escapam a toda explicação psicoló-gica e histórica; e constituem um a priorifechado ao entendimento; porém acessível auma percepção afetiva. Pois o homem não éo fundamento dos valores, senão anterior-mente, seu sujeito. O homem, enquantohomem, não é senão o lugar e a ocasião parao nascimento dos valores.”30

Em outras palavras, os valores são certamentedo ser humano, mas não têm sua origem nele, poiso ser humano não coloca os valores na existência,não os cria, unicamente ilumina o lugar onde elesse encontram, a fim de desvendar o fenômeno queos envolve.

Podemos assim esclarecer o problema quedescobrir os valores não é da incumbência doentendimento, segundo nosso autor, mas dapercepção afetiva humana, pois a pessoa éportadora de valores ao mesmo tempo queconstitui o valor de sua personalidade, que temprimazia sobre todos os demais va loresintramundanos.

Mas como isso é possível? O ser humano é oprotagonista dos valores, não no sentido de que talvalor chegue a esgotar-se nele, mas no aspecto departicipar do valor sapiencial. O ser humano écapaz de comunicar-se de maneira interpessoal, oque é certamente um valor de caráter social, confor-me sua própria condição humana. A comunicaçãorepresenta o mais valioso do ser pessoal humano,ou seja, é sua atualização, pois a condição livre eemotiva da pessoa parece cristalizar em suacomunicação.

Somente a pessoa pode comunicar seupensamento livre e emotivo sobre si mesmo; umser dotado de entendimento não pode não serinterco-municativo, como uma luz não podedeixar de iluminar. Porém os fatos empíricosnos mostram que muitas pessoas não secomunicam, umas porque não podem, outras,porque não querem. Muito longe de negar taisfatos, como exceção à regra geral, a comunicaçãoexpressa as capacidades de raciocinar e de serlivre próprias no ser humano. Toda pessoa estádotada da faculdade da comunicação interpes-soal, por mais anti-social e agressiva que possaser.

A comunicação é um valor enquantoatualização do ser humano, ressaltando uma vezmais a dimensão comunitária da afetividadehumana, concretizando o valor de sua dignidadeintrínseca.

A comunicação interpessoal, que surge desua dignidade, encontra-se atualmente associadaao conceito dos direitos humanos, como o respeitoe a promoção da dignidade humana, e esta mençãoaos direitos humanos, no nível de sua fundamen-tação, ilumina interiormente o caráter ativo eaxiológico da ética.

O valor ético da pessoa existe graças àdignidade do ser humano. O valor da ética seria

(29) Cf. MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, op. cit., pág. 262.(30) MAX SCHELER, Die Stellung des Menschen im Kosmos, op. cit., pág.189.

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unicamente referente ao ser humano, sendo queficaria sem sentido pretender falar de ética de seresnão humanos. Unicamente o ser humano poderiaser o sujeito dos valores éticos, graças à sua própriacondição.

Somente o ser humano é capaz de sentir e deexperimentar como corresponde a um ser racional-mente livre, de modo que os sentimentos humanosnão podem equiparar-se a nenhum outro ser dacriação. São sentimentos que nascem de um serdotado de razão; mais ainda, de um ser que podeamar de um modo exclusivamente próprio graças àsua percepção afetiva da realidade.

Os valores objetivos, segundo Scheler, têmconsistência em si mesmos, independentemente dapessoa que os realize ou contemple. O valor dabeleza de uma paisagem, por exemplo, é real, sejaou não admirado pelo ser humano. Scheler afirmaque a objetividade axiológica é a peça central deseu sistema.31 A axiologia objetiva de Scheler é anovidade mais importante de seu sistema.

O conhecimento do ser humano entrariaprimeiramente pela porta de seus sentidos, quesão fidedignos; penetra depois no conhecimentodos fatos, mediante a intuição das essênciasvaliosas que são da competência dos sentimentosemotivos do ser humano. A ajuda que o serhumano recebe para conhecer não vem de algoexterno a ele mas, ao contrário, tudo provém dopróprio valor de sua pessoa.

Percebemos a grandeza e o mérito de Schelerter colocado em relevo esta realidade, ignorada , aomenos na prática, pelo idealismo, porque sua teoriasobre os valores objetivos supõe a contrapartida doconhecimento intuitivo de sua essência axiológica,por parte do ser humano. Por isso, salvar aobjetividade dos valores pressupõe reconhecer ovalor integral do ser humano, de seu conhecimento,de sua vontade e de seus sentimentos espirituais.Mais uma vez, notamos o ser humano, em suatotalidade, como protagonista dos valores.

A objetividade e a hierarquia dos valoresincidem diretamente sobre a ética enquantorepresentam sua melhor defesa, pois ao justificara coerência do próprio sistema ético se solidifi-cam, ao mesmo tempo, as bases que o sustentam.

Scheler não somente relaciona o objeto como sujeito, mas vai muito além.

Desvela o valor da pessoa, como valor fonte,protagonista de todo o processo relacional.

A FENOMENOLOGIA SCHELERIANAA FENOMENOLOGIA SCHELERIANAA FENOMENOLOGIA SCHELERIANAA FENOMENOLOGIA SCHELERIANAA FENOMENOLOGIA SCHELERIANA

Scheler abriu um novo caminho para asolução do problema do conhecimento daobjetividade, abordando a questão a partir dafenomenologia, porque o conhecimento marca todoo ser humano. Não é somente uma função de caráterintelectual, mas sobretudo maior participação ativado ser humano na transformação que implica aaquisição de todo o conhecimento. Por isso,descreverá à fenomenologia não só o conhecimentoracional, mas sobretudo o intuitivo, específico dossentimentos no que concerne aos valores.

Percebe-se claramente que Scheler tomauma direção diversa de seu mestre Husserl. Omaior ponto de d i ferenciação ent re afenomenologia scheleriana e a husserliana seriajustamente esta outra fonte de conhecimento,defendida por Scheler, com sua afirmação daobjetividade dos valores, porque estes sãounicamente descobertos graças à intuiçãoemot iva da exper iência fenomenológica .Compraz-lhe denominar a intuição das essênciascomo experiência fenomenológica. Tal intuiçãoleva a pessoa a alcançar sua própria identidade, aonível superior, porque unifica seu conhecimento darealidade, por uma parte, e porque a vincularelacionando com seu redor, por outra. Para Schelero mundo das pessoas e das coisas é parte essencialdo ser humano.32 Assim o horizonte da filosofia setorna mais amplo e abrangente na intuiçãofenomenológica, pois se converte em algo eminen-temente vital para o ser humano, deixando de seruma questão estritamente teórica e abstrata paraabarcar também o terreno da práxis.

A intuição dos sentimentos marca de talmaneira o ser humano que suas demais faculdadesficam unificadas com a forma de sentir da pessoa,e nos questionamos, existe alguma diferença naintuição?

(31) Cf. MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, op. cit., pág. 63 e pág. 202.(32) Cf. Ibid., pág. 407.

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Scheler diferencia totalmente a intuiçãoemotiva da simples intuição sensível. A primeiraé própria de toda pessoa, enquanto a segunda éparticular de seus sentidos. Para Scheler, o serhumano tende espontaneamente e naturalmenteao bem valioso, e o sujeito desta tendência sãoseus sentimentos superiores.

Scheler recoloca o ser humano num mundode valores objetivos, começando por reconhecersua pessoa, que é o valor fonte. Descobre arealidade completa do ser humano, não só comoser humano, mas vinculada ao mundo que ocerca, pois está inserido num mundo, presididopor este. A pessoa não pode dissociar o valor desua afetividade do valor de sua condição racional,porque os afetos da pessoa se encontram referidosà sua inteligência na relação de causa e efeito.Podemos usar os sentimentos de simpatia, sempredestinados a seres humanos e não a animais ou acoisas . Os sent imentos do re ino animaldiferenciam substancialmente daqueles dos sereshumanos, pois os sentimentos humanos estãoassociados com seu caráter racional e livre.

A DIMENSÃO ANTROPOCÊNTRICA DA AXIOLOGIAA DIMENSÃO ANTROPOCÊNTRICA DA AXIOLOGIAA DIMENSÃO ANTROPOCÊNTRICA DA AXIOLOGIAA DIMENSÃO ANTROPOCÊNTRICA DA AXIOLOGIAA DIMENSÃO ANTROPOCÊNTRICA DA AXIOLOGIA

Scheler não duvida em reconhecer valor aossentimentos como impulsores da atuação da pessoa,porém não se pode esquecer que todos ossentimentos humanos estão regidos por suainteligência, daí, pois, que não se pode separar ovalor dos sentimentos humanos de seu caráterracional. Existe entre a razão e os sentimentoshumanos uma total simbiose, porque ambospertencem à mesma pessoa. Porém, há umaprioridade do valor da razão da pessoa sobre ossentimentos graças à hierarquia axiológica, pois omais específico humano é precisamente suaracionalidade.

A unidade do ser humano é entendida naaxiologia scheleriana como a integração plena domesmo, no nível de sua identidade substancial e desua auto possessão pessoal, mostrando a conver-gência de todas as forças humanas no ponto focalde sua pessoa, sendo o reencontro da pessoa comela mesma na plenitude de seu ser pessoal. O ser

pessoal seria o valor fonte pois todos os valores,inclusive os mais elevados como os religiosos, têmrelação com o ser humano, porque o descobrimentode qualquer valor, incluindo aqui os espirituais,são específicos do ser humano, depois porque osvalores apontam sempre à pessoa.

Os valores vivem às expensas do ser que osmantêm como tais, por isso parece contraditóriatoda linha divisória entre ambos; não se podedesunir aquilo que está unido, senão há umadestruição dos valores ou do ser. Associar osvalores ao ser denota levar a sério os valores,enquanto objetivos. O próprio Scheler afirma:

“O valor da pessoa é o valor dos valores.”33

Todo valor se polariza no ser humano erecebe sua consistência do ser pessoal. Destamaneira se produz uma reconciliação entre o valore o ser, superando todo antagonismo entre o valorobjetivo e o ser pessoal.

O ser humano conquista sua identidadepessoal graças ao desdobramento de todos osvalores de seu ser pessoal, se auto-aperfeiçoa demaneira similar ao de seu desenvolvimentofísico, o que lhe assegura poder conseguir totalmaturidade em sua vida.

Em Scheler a axiologia reconquista suadimensão antropocêntrica pois o ser humanoaparece como o fim dos valores na área do serpessoal, sendo a pessoa essencialmente o valormais profundo, como valor fonte, através doqual todos os valores são captados e vividos. Éa experiência de caráter intuitivo emotivo, pelaqual o ser humano se faz partícipe dos valores osintegrando em sua personalidade. O ser humano,em sua condição de agente principal, toma parteativa na incorporação dos valores à sua pessoa.

A pessoa enquanto valor não vale simples-mente, ela é. Não seria como um ímã que atraivalores, mas faz muito mais, fundamenta todosos valores, no nível de seu ser pessoal; daí arelação entre o ser humano e os valores.

Diante do problema das constantes mudançasocorridas no decurso da História Humana, nãoexistiria uma mudança dos valores em cada épocahistórica distinta? Notamos que os valores éticos

(33) Ibid., pág. 513.

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recebem novas interpretações devido às mudançashistórico-culturais. A história é testemunha doprogresso de tais valores, e, por isso, uma interpre-tação adequada deles não pode fazer-se à margemdos condicionamentos históricos.

Os valores se desenvolvem na históriaestando inscritos nela, mas sem depender dela,em virtude de sua origem. É justo reconhecerque a história é o cenário onde são gerados, einclusive da aparição de valores, pois o serhumano é um ser histórico. Não cabe a menordúvida de que há encarnação dos valores nahistória, e, conseqüen-temente, que há mudançasdos mesmos no devir dos acontecimentos.

A dialética da transformação dos valoresseria comparável ao que sofre o organismo dapessoa nas sucessivas etapas de sua infância,adolescência, juventude, idade adulta e velhice.A pessoa passa de uma etapa a outra de sua vidanão só sem perda de sua identidade, mas antesaquilatando sua transformação etária ao seudesenvolvimento fisiológico. Algo de semelhan-te ocorre nas coordenadas variáveis dos valoresque são certamente históricos, já que sedesenvolvem certamente na história, porém nãosão produto de suas atividades mutáveis.

Os valores conservam sua ent idadesubstant iva, não obstante suas contínuasadaptações aos novos tempos. Porém se mantêmidênticos a si mesmos, graças à sua capacidadede adaptação.

A relação dos valores à dignidade humanaparece ficar justificada pelo mesmo significadoda dignidade de pessoa, porque esta não é só

“um ser individual e único, distinto dequalquer outro, senão que seu valor étambém individual e único”34,

porque seu ser pessoal detém essa dignidadeespecífica. Por isso Scheler desenvolve o con-teúdo do valor do modelo de uma pessoa,fundamentando este valor no ser humano emvirtude de sua dignidade, porque o ser humano é oúnico ser capaz de progredir em sua auto realização,graças ao descobrimento cada vez maior de suaprópria identidade. O ser humano tem que saltaralém do individualismo para alcançar a marca de

sua autêntica realização. O valor social do serhumano funde suas mais profundas raízes na suaidentidade pessoal.

Podemos concluir que o ser humano nãoexiste para a sociedade, mas a sociedade para o serhumano, porque a sociedade está constituída depessoas ao serviço delas. Atualmente, nota-se umamassificação da pessoa, graças ao desenvolvimentoda sociedade que parece absorver o ser humano.Estamos muito longe da verdadeira convivênciasocial, tão distante da massificação.

A dignidade é, na concepção scheleriana,um valor essencial humano, que concerne aomais profundo de seu ser pessoal, porque seriajustamente aquilo que o torna verdadeiramentepessoa, e, somente nesse sentido, a personalidadehumana é suscetível de um aumento qualitativo.Seria um fundamento dinâmico, que podeprogredir ininterruptamente até sua própriaidentificação, e somente o ser humano é capaz detomar consciência cada vez maior de seu valor e deum maior desenvolvimento de sua liberdadepessoal.

Scheler entende este valor da livre auto--realização humana através da participação do amorno núcleo pessoal, como o momento interno daauto-realização humana, pois o ser humano é ovalor fonte, a força que move os valores, tendoestes sentido em sua relação com ele. Esta novavisão do ser humano, desde os valores queconfiguram sua dignidade, é um dos eixos centraisdo pensamento scheleriano.

O objetivo principal de Scheler é resgatar ovalor da pessoa humana, se opõe energicamente aorelativismo que mede todos os valores com a mesmamedida, porque, se tudo é igual, nada é diferente, econsequentemente tudo se desfigurará ao cair nomesmo abismo do relativismo. Defende não só apersonalidade humana, como também não escapama sua atenção certo empirismo reducionista, quepretendia fazer uma leitura unicamente coisistados valores, dissolvendo assim sua hierarquia.35

O AMOR E OS VALORESO AMOR E OS VALORESO AMOR E OS VALORESO AMOR E OS VALORESO AMOR E OS VALORES

O valor da identidade do ser humano não éum conceito abstrato, mas uma realidade viva, uma

(34) Ibid., idem.(35) Cf. Ibid., pág. 85-86.

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“experiência de valores” na linha da vivência maisprofunda da pessoa. E essa experiência não se podedar sem amor, porque está estreitamente associadaao amor. A definição do amor nos justifica avinculação íntima que existe entre o amor e o valor:

“O amor é um movimento até um valorpositivo.”36

Movimento em seu duplo sentido, primeiro,enquanto um ato da pessoa, e segundo, porquecomporta a adesão do ser humano a alguém ou aalgo. A esfera deste movimento pode ser interna ouexterna, segundo seja um ato de amor interior ouque tenha alguma expressão visível; um exemplodo primeiro caso seria a estima que alguém podeexperimentar por um amigo, sem que esse cheguea sabê-lo. A exteriorização deste apreço constituio segundo caso.

Há uma diferença fundamental entreconhecer e amar, pois o conhecer capta o conteúdoda realidade de fora para dentro, porque parte dossentidos, passando pela abstração à universalizaçãodo conceito. O amar faz um caminho inverso,partindo de dentro para fora, ao aderir à realidade,seja de uma pessoa ou de um objeto. Ainda nahipótese de um ato interno de amor, o movimentoregistra o mesmo processo, porque adere a umvalor positivo, experimentado como presente. Alembrança dos pais, por exemplo, pode suscitar nofilho que vive muito longe deles um ato interno deamor, como que evocando sua presença.

O valor positivo seria concretamente a razãodo movimento do amor, diante do ódio que seria arepulsão a dito valor. O valor positivo enquanto umbem para mim, segundo Scheler, desencadeia omovimento do amor, porque todo ser humano buscanaturalmente aquilo que lhe é conveniente.37

Sem dúvida, uma dificuldade advém nestadescrição scheleriana do amor, referida ao valor,pois parece que só o amor egoísta, que seria umarremedo do verdadeiro amor. Porém, existem doisplanos os quais devemos diferenciar; um seria aatitude pessoal e outro seria o da mesma naturezado amor. O primeiro poderia bloquear o movimento

do amor, devido a suas diferenças substantivas queo anulariam. O segundo, pelo contrário, representao amor em seu dinamismo natural em posse dovalor. O objetivo desse segundo aspecto seriaresponder à questão: o quê seria o amor no sistemascheleriano, então? Com este fim, Scheler contrapõecom toda precisão o que é o autêntico amor daquiloque não o é. Por isso a característica mais específica,segundo Scheler, é sua orientação ao valor dapessoa:

“O amor se dirige integramente aos valorespessoais de caráter positivo.”38

Esse distintivo personalista do amor seencontra inscrito na natureza de seu movimentoque:

“o amor só se dirige ao bem enquanto éportador de um valor pessoal.”39

A razão dessa consangüinidade entre oamor e a pessoa, que é um valor propriamentetal, constitui a simbiose entre a pessoa, o amore o valor, formando um laço extremamente fortee que não se pode romper, próprio do amor.

Só se pode amar às pessoas, as coisas nãopodem ser fim do amor humano, por sua condiçãode objetos de utilidade, pois o ser humano só seserve delas. Por isso, a pessoa nunca pode sercontemplada através da utilidade, porque issoequivaleria fazer dela um objeto, o que feriria suadignidade. O amor da pessoa por outra sejasusceptível de aumento incessante, porque podecrescer a claridade de seu valor, antes oculto.40 Porexemplo, o amor da amizade entre duas pessoaspode ganhar em intensidade, conforme surjam novasvirtudes que intensificam suas pessoas. O aumentodo amor, no exemplo citado, não obedece àdescoberta de qualidades ignoradas, mas aoaprofundamento do laço entre o amor e o valorpessoal, pois se produz uma personalização cadavez mais intensa do amor, até culminar no valor daunidade dos que se amam como se fossem uma sórealidade.

O amor proposto por Scheler é priorita-riamente axiológico, a associação do amor pessoal

(36) MAX SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, op. cit., pág. 146.(37) Cf. MAX SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, op. cit., pág. 257.(38) MAX SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, op. cit., pág. 145.(39) MAX SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, op. cit., pág. 146.(40) MAX SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, op. cit., pág. 146.

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ao valor significa a ratificação da verdade desteamor. Isso ocorre especialmente porque Schelerdestaca o amor como ato fundamental da pessoa emseu sistema axiológico, e bastaria evocar arelevância que atribui à intuição afetiva como peçabásica para a descoberta dos valores.41 A pessoanecessita do amor como do oxigênio para viver, eo valor seria como que a espinha dorsal do amor. Oamor é eminentemente pessoal, provém da pessoa,e é por sua vez sustentado por ela, porque todarazão de ser do movimento afetivo é precisamenteo valor pessoal.

Somente dessa maneira o amor culmina novalor da pessoa que enlaça com todos os demaisvalores que possa possuir, só assim o amor seriaplenamente pessoal, já que os valores pessoaissó são concretizados quando se encontram refe-ridos a um indivíduo. O contrário disso levaria àdesintegração de tais valores, tornando-os simplesimaginação. A verdadeira amizade, por exemplo,caminha na aceitação recíproca de ambos os amigos.É o respeito ao ser da pessoa que brota no amormútuo e verdadeiro. Isso equivale a aceitar aslimitações humanas existentes em ambos, porque omotivo da aceitação da pessoa é justamente oanseio do melhor para ela, como se tratasse de simesmo. Busca-se a promoção do outro, semimposição alguma. Assim é pensada a verdadeiraamizade.

Contudo, não está excluída a hipótese de umamor não correspondido e desprezado; porém,mesmo neste extremo, o valor e a nobreza de quemassim ama demonstram a grande dignidade humana.Ou seja, o procurar que outro logre expressar ovalor de sua identidade no maior grau possível,reverteria sobre a perfeição no que assim amasse,como a figura geométrica do círculo, cujos pontoseqüidistantes estão na mesma distância do centro,parafraseando Scheler.42 E suponhamos que o amorconsistisse em descobrir valores mais elevados dapessoa para propiciar seu desenvolvimento. O queaconteceria se tais valores não existissem? Poracaso acabaria o amor pessoal? Scheler respondeque não só não acabaria o amor pessoal, mas seredobraria sua intensidade, porque o movimento

do amor sempre se dirige ao ser valioso da pessoa.Essa concepção scheleriana proporciona coerênciasobre a fenomenologia do amor, cujas linhas funda-mentais coincidem com o valor pessoal, emplenitude, pois o valor da identidade da pessoapermanece, apesar da mutação e mesmo da perdade suas qualidades no decorrer do tempo.

Para Scheler, a plena sintonização pessoalcom o outro significa amar tanto quanto o outroama, fundir o amor com o outro na plenitude donós, num amor único.

Nesta formulação, Scheler nos mostra suasprofundas raízes agostinianas. Santo Agostinho,cujo pensamento tanto influenciou nossofilósofo, é fundamental para nosso autor quandofala que devemos amar o ser humano enquantohumano. Notamos assim que ambos convergem-nos no ponto focal do amor.43

A proposição da dignidade humana comovalor radical parece explicar a relação internaentre a pessoa e os outros valores, e justifica avalidade universal dos valores, graças ao caráteruniversal da pessoa, proporcionando umaresposta à nossa questão inicial sobre a relaçãoda dignidade da pessoa e os valores. O amorhumano nunca pode estar separado da própriafisionomia de seu valor pessoal, como a pessoanão pode estar dissociada de sua identidade.

O amor ao valor rompe, no ser humano, afonte da relatividade do ser. O amor é o valorcentral da pessoa, a move, dá-lhe impulso e exerceatração. O amor que proporciona ao ser humanosentir-se atraído pelos valores e vivenciá-los. Oque caracteriza atingir o ápice da hierarquia dosvalores é o autodomínio dos impulsos instintivosque condicionam sempre a percepção sensorialnatural. Este autodomínio destrói a concupiscêncianatural, condição moral para que o conhecimentoseja plenamente adequado.

O amor respeita as diferenças e nos atraipara uma amizade profunda e sincera onde nosaprofundamos cada vez mais. A amizade possibilitaa comunicação destes valores exercendo umaatração, pois uma das características humanas é acomunicação, que concretiza o valor de sua digni-

(41) Cf. Ibid., idem.(42) Cf. MAX SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, op. cit., pág. 167.(43) Agostinho, Santo, Confissões IV, 7, 12.

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dade. Amar é comunicar-se, pois comunicamosaquilo que sentimos, que amamos, construindouma unidade.

Percebemos que poucos filósofos descre-veram a importância do amor como Max Scheler.

Contrastando com um mundo consumista,marcado pelo egoísmo perverso, pela violência,pelo ódio, pela ambição cega, pelas paixõesdesenfreadas, onde as pessoas têm valor enquantoconsomem ou são objetos de consumo, e diante dacultura do efêmero e passageiro notamos a importân-cia e a urgência de Scheler e sua teoria dos valoresobjetivos, indicando uma nova interpretação dosverdadeiros e profundos valores, capazes detransformar.

Que o ser humano compreenda que seusanseios de felicidade não serão completados comos anti-valores, mas que devem procurar em simesmos, em seu interior, valorizando-se como sereshumanos, chamados à dignidade do amor44. Somentecompreendendo esse vínculo entre a dignidadepessoal, seu conhecimento, de seus sentimentos eo amor fará com que possam firmar suas bases, noamor, ressaltando a integridade e a dignidade doser humano, de sua vontade de atingir o ápice.

Um valor não se aprende como um dadoqualquer, se assimila, se vivencia. Scheler nosmostra que somente o exemplo de uma vida autên-tica, a verdadeira e profunda amizade, ressaltandoa dignidade humana tornam-se o caminho para quevivamos os autênticos valores e experimentemos.

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(44) Cf. Marcial Maciel LC., A Caridade Evangélica, São Paulo, Nova Evangelização, pág. 6.

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C.C. SOUZA NETO56

Revista Reflexão, Campinas, nos 85/86, p. 41-55, jan./dez., 2004

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