A placenta e o caixão - Deonísio da Silva

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ANTONIO CANDIDO DEFINIU a crônica como o gênero no qual encontramos “a grandeza do miúdo”. Nos textos reunidos neste volume, originalmente publicados em jornais, revistas e sites, Deonísio da Silva atesta a definição do crítico. Tendo por mote uma notícia, certa lembrança ou um mero hífen, o escritor concebe crônicas que, embora breves, abrem fendas na banalidade, descortinando horizontes.

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a placenta e o caixão

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deonísio da silvaa placenta e o caixão

1ª edição

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Copyright © 2010, Deonísio da Silva

Preparação Beatriz de Freitas MoreiraMichele Roberta da Rosa

Revisão Gabriela GhettiDébora Tamayose Lopes

Capa, projeto gráfico e diagramação máquina estúdioKiko Farkas Thiago Lacaz

Todos os direitos desta edição reservados à texto editores ltda.

[Uma editora do grupo Leya] Av. Angélica, 2.163 – Conjunto 175 01227-200 – Santa Cecília – São Paulo – sp – Brasil www.leya.com

Dados internacionais de catalogação na publicação (cip-Brasil)

Ficha catalográfica elaborada por Oficina Miríade, rj, Brasil.

s586 Silva, Deonísio da, 1948-

A placenta e o caixão / Deonísio da Silva. – São Paulo :

Leya, 2010. 456 p.

isbn 978-85-62936-54-8

1. Literatura brasileira. 2. Crônicas brasileiras. i. Título.

10-0033 cdd b869.8

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Sumário

Ninguém aguenta uma semana no jn 13

Elogio do método bunda-cadeira-hora 16

O futebol em nossas letras 19

Santo Antônio, tenente-coronel e almirante 22

Roberto Drummond fez-se por si mesmo 24

Jornalismo e literatura 26

O santo que sangrava 29

A morte de R. D. em Belo Horizonte 32

A língua do jornalismo econômico 35

Reflexões de internautas 38

Como escreviam os antigos fiscais 42

Escrever bem é escrever difícil? 45

Intenções de voto: a voz do povo? 48

Paulo Coelho na Academia 51

O que veem e leem os presidenciáveis 54

O prazer das pequenas coisas 57

A une é uma velhinha simpática 60

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De santo e louco, todos têm um pouco 63

No campus de concentração de nossas universidades 66

Lendas universitárias 69

Assim chegam as celebridades 72

Lula e a cavalaria vermelha 74

A placenta e o caixão 76

Antigamente eram assim 79

Quando fhc passou a faixa a Lula 81

Adesista, hoje. Quinta-coluna, ontem 84

O longo reinado do pepino 86

Jesus, homem do ano 89

Frei Betto, Richelieu de Lula 92

O julgamento de Nero 95

A Previdência e o rei Salomão 98

Escritos de guerra 101

Inativos? Somente alguns vulcões 104

O Brasil tem uma irmã gêmea 106

Fidel Castro e Tancredo: mistérios... 109

Nada sem alegria 112

Carta ao cnpq do b 115

Como julgar um corrupto 118

Geografia da Fome Zero 121

Herói morto, herói posto 124

Urtigas no próprio jardim 127

O escravo Lula da Silva 130

Carta ao presidente da República 133

Velhos pepinos brasileiros 136

O mst e seus atalhos rumo à utopia 139

Sem vacina para a ignorância 142

Na Fiocruz, entre cientistas e carrapatos 145

Multai-vos uns aos outros 148

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Passo Fundo e a literatura brasileira 151

O senador e o procurador 154

A leve sabedoria dos almanaques 157

Espanto bovino 160

Talvez, a felicidade 163

Triste amor à honestidade 166

Petrônio Gontijo no teatro 169

Os políticos e o nepotismo 172

Padres que cantam e dançam 174

Nossos outros Garrinchas 177

De Paris, um amante brasileiro 180

O holofote de Elio Gaspari 183

À sombra de Giovanni Ricciardi 186

A estrela de Rubem Fonseca 189

Alegria a quem chora 192

Antevéspera da noite feliz 195

Unção dos enfermos para o ano que vai 198

Jesus nasceu no ano 5 a.C. 201

Ilha do mst 204

Todos nós moramos na Rocinha 207

O Ceará esteve na Batalha de Waterloo 210

Vidas passadas... a limpo 213

Pavana para um ovo de minhoca 216

Efemérides de agosto 219

A força invencível das palavras 221

Lolita, a louca da casa 223

Memorial de agosto 226

Meia palavra basta 229

O ministro e o diplomata 232

Celebrações de Neide Archanjo 235

A pátria é a nossa casa 238

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Vítimas do espetáculo 241

O ipê que não floriu 244

O Brasil esquecido pelo Brasil 247

Sonhos e pesadelos de Carlos Lessa 250

Faltou Ewaldo Dantas 252

A briga dos imortais 255

Drummond sequestrou Guilhermino César 258

Portinari num livro imperdível 260

Lá se vai mais um ano 263

No réveillon, com Tônia Carrero 266

Meninos imortais 269

Um hífen entre português e inglês 272

O diabo abandonou o varejo 275

Desfolhando a folhinha 278

O brasileiro e os animais domésticos 281

O ato de prometer e não cumprir 284

Sem ladrões de cavalo 287

Avaliação do mundo 290

A língua do presidente Lula 293

De olho no Vaticano 296

Livros do além 298

Os sete mistérios do universo 301

João Garcia, novo Anhanguera 304

As tentações de Frei Betto 307

Gauchadas e baianadas 310

Polêmica na África 313

A tentação do poder absoluto 316

Fumaça branca, amor! 319

Livros recusados: Dante, Proust, a Bíblia 322

A liberdade faz sessenta anos 325

As pombas, os golfinhos e os políticos 328

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Semana de escritores 331

A batalha das versões 334

José Dirceu, personagem literário 337

Orgasmo e corrupção 340

Dilema de um jornalista bem-humorado 344

Marina Colasanti em alto-mar 347

Pirro na cpi 350

O silêncio dos intelectuais 353

Incidente nas cpis 356

O jagunço Fernando Gabeira 359

O sol nas livrarias 362

Juiz ladrão 365

A cidade e o livro 368

Outras urucubacas 371

Anistia para os brasileiros 374

Daniela Mercury proibida no Vaticano 377

A bengala cantou em Brasília 380

Sherlock Holmes nas cpis 383

A solidão segundo Salim Miguel 386

Fofocas de jornalistas 389

A mosca azul de Frei Betto 392

Plínio Cabral e a falência do Estado 395

O exemplo de Nelson Rodrigues 398

A redenção do portunhol no carnaval 401

A Copa é nossa? Ainda não! 404

jk literário: cinquenta anos em cinco 407

Nietzsche para entender o Brasil 410

O mercador de Brasília 413

Quem foi Silvestre Philippi 416

Judas: a vez dos traidores 419

Gerente de banco preso por escritor 422

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Luares, pores de sol, coisas breves 424

A dor imaterial que magoa o teu riso 428

E se o próximo papa for brasileiro? 431

A voz do dono 433

Natal: a fantasia e a riqueza das versões 435

O cidadão brasileiro está na creche 437

José Bové, de novo 439

Teresa D’Ávila e a volta dos espanhóis 442

Livros que dão prazer 444

Ainda há juízes no Brasil 446

O topete do Itamar 449

Roberto Podval, o Advogado do Diabo 451

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A Michele Roberta da Rosa, que me ajudou a selecionar estas crônicas;

a Augusto Nunes, que as publicou na revista Época, no Jornal

do Brasil e em Zero Hora; a Marcos Santos, que há mais de trinta anos

publica minhas crônicas no Primeira Página, em São Carlos (sp);

e a Mary Chirnev, que cuidou de tantas delas no portal eptv.com.

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Ninguém aguenta uma semana no jn

Jesus Cristo não aguentaria uma semana de noticiário adverso no Jornal

Nacional. Seria transformado no Demônio. Quando, depois de contratar

advogados, apresentasse sua defesa, os desmentidos não teriam nem um

por cento da divulgação que teriam tido as acusações. Sem contar outros

dois agravantes: ele teria de provar a sua inocência, porque o ônus da

prova não teria cabido aos acusadores; os desmentidos seriam dados em

quinze segundos, se tantos.

Os jornais publicariam um “erramos” simplório. Pensam que o cronista

está brincando? Há alguns anos, na Semana Santa, naquela correria e falta

de matérias, um jornalista escreveu em conhecido diário que Jesus morre-

ra enforcado. No outro dia, a correção: “Diferentemente do que foi infor-

mado ontem, Jesus Cristo não morreu enforcado, Ele morreu crucificado”.

O jornalista foi demitido. Não sei se foi deslize dele ou boicote de quem fez

a edição final da matéria. O certo é que o erro absurdo foi publicado.

Vejamos as vulnerabilidades de Jesus, à luz das notícias surgidas en-

volvendo políticos. Aos exemplos.

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no se conhece o pai de jesus

De nosso correspondente em Belém

Informações obtidas por este jornal junto a um ancião aposentado do

Templo de Jerusalém dão conta de que o pai de Jesus é ignorado. “Eu

estava ajudando Zacarias (o outro ancião, colega do inconfidente, que a

esse tempo trabalhava revezando os turnos) quando o casal chegou com

o menino e um casal de pombinhas para oferecer.” “Era um casal?” “As

pombinhas?” “Não, os que foram ao templo.” “Ah, sim, eram. Pensei que

o senhor estivesse se referindo às aves. Ninguém olhou o sexo delas. Pa-

rece que no futuro, no Brasil, criadores de aves vão contratar um japonês

que descobre o sexo de qualquer ave, apenas apalpando os traseirinhos,

sob as penas.” “Mas o menino levado ao templo era parecido com quem?”

“Nem com o pai, nem com a mãe.” “Com quem, então?” “O escritor brasi-

leiro Sílvio Fiorani escreverá num romance intitulado Evangelho de Judas

que o menino era filho de um soldado romano chamado Pantera.”

Outro exemplo: a fuga para o Egito.

jesus em cativeiro na marginal do nilo

De nosso correspondente no Egito

A Sagrada Família, que todos pensavam ter fugido do rei Herodes, foi na ver-

dade sequestrada e há indícios de que o pai, a mãe e o menino estejam em ca-

tiveiro construído numa das marginais do Nilo, para onde teria sido levada

por um bando chefiado por Barrabás, movido pelo interesse em pedir resga-

te a Herodes. As negociações fracassaram porque o monarca mandou matar

o menino. Agora o bando de Barrabás não sabe o que fazer com a criança.

empresa de jos estava irregular

De nosso correspondente na Galileia

Segundo apurou a nossa reportagem, a microempresa de José, Casa,

Enxó & Plaina Ltda., não recolheu os impostos no último ano, devido às

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dificuldades com a baixa demanda. Ninguém mais está casando, não se

encomendam camas, mesas, nem cadeiras. A empresa está no nome da

esposa, porque o cpf de José estava na Serasa. E com isso ele não podia

obter o cnpj. Há também suspeitas de ter vendido móveis para o próprio

Sinédrio, sem licitação. Por absurdo que pareça, Caifás pediu uma csi

(Comissão Sinedriana de Inquérito), mas Anás vetou, sob o argumento

de que investigariam a si mesmos. A fuga para o Egito, sob a desculpa de

perseguição ao filho, pode ter sido desculpa para driblar o fisco, estabe-

lecer-se no estrangeiro e exportar os móveis para a Judeia e a Samaria,

onde as demandas por móveis caseiros e artesanais continuam altas.

Quanto à suposta e incompreensível virgindade de Maria, há rumo-

res de que José, muito angustiado com as dívidas, não dormia direito

nos últimos anos, tinha pesadelos e certa manhã disse que um anjo lhe

revelara em sonhos que ele não seria o pai da criança. O ginecologista da

esposa, alegando código de ética e medo de punição no Conselho Galileu

de Medicina, não quis se manifestar. Também o jumento utilizado na tra-

vessia do deserto morreu no caminho. A Sociedade Protetora dos Muares

já abriu inquérito. A pena é carregar o presidente da spm do serviço para

casa, nas costas, durante dois anos.

Mais ou menos assim, sabem? Ou, de acordo com um dos títulos do

escritor italiano Luigi Pirandello: “Assim é, se lhe parece”.

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Elogio do método bunda-cadeira-hora

Nós, ex-seminaristas, compomos uma confraria informal. E, talvez por

termos tido uma dieta de leitura mais diversificada do que os outros, não

discriminamos ninguém por motivos ideológicos. Assim, gostamos de lem-

brar que é do ex-seminarista Roberto Campos, já falecido, a autoria de um

de nossos mais sintéticos diagnósticos: “No Brasil, a burrice tem um passa-

do glorioso e um futuro promissor”. Infelizmente, aquele nosso colega, de

tantos méritos intelectuais, contribuiu decisivamente para a construção

de um modelo de país que só faz aumentar nossa reserva analfabética.

Quando menino, minha mãe teve vocação para eu ser padre. Enten-

dimentos familiares com o padre local fizeram de mim um presidiário

infantil. Morei recluso na Casa Paroquial enquanto concluía o curso pri-

mário no Grupo Escolar Jacinto Machado, no litoral catarinense.

Quem, além de ler, também escreve tem suas obsessões, manias e

estranhezas nas navegações que faz pela Galáxia de Gutenberg. Pas-

so a confessar algumas das minhas. Não cheguei às letras. Foram elas

que chegaram a mim. Primeiro, pelo maravilhoso exemplo de meu pai,

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operário da Companhia Siderúrgica Nacional (csn) nas minas de carvão

catarinenses. Meu pai lia todos os sábados e domingos.

Não sei se lia durante a semana. Como se fosse filho de divorciados,

eu somente via meu pai aos sábados e domingos. Nos outros dias, era im-

possível. Quando ele ia para o trabalho, sempre de madrugada, seu filho

estava dormindo. Quando voltava, tarde da noite, nossa mãe já pusera

todos os filhos na cama outra vez, depois de uma liturgia doméstica que

incluía o pedido de bênção de cada um dos rebentos e a clássica resposta

individual “Deus te abençoe”.

Não que aquela descendente de italianos se furtasse ao ofício de nos

abençoar. Por humildade, sentindo-se instância menor, transferia a so-

licitação ao Supremo. Sempre se pode confiar no Supremo, mesmo no

Supremo aqui da Terra, pois a democracia supõe isso, o império da lei

igual para todos, com tantos recursos quantos a lei assegura.

Quando eu, todo lampeiro, já me preparava para entrar na escola,

meus pais foram aconselhados a prorrogar a matrícula para o ano se-

guinte porque, aniversariando em setembro, eu não tinha ainda chegado

à idade da razão, que para a Igreja ocorria aos sete anos.

Jamais esquecerei a segunda entrada das letras. Se antes tinha sido

pelos olhos, vendo o exemplo de meu pai, agora o gosto da leitura vi-

nha pelo nariz. A professora que me alfabetizou tinha um cheirinho bom.

Quando eu errava uma letra ou um número, vinha à minha carteira e me

abraçava para me corrigir. Aqueles momentos ficaram para sempre en-

terrados na memória, onde germinaram e brotaram muitas vezes.

Desconfiada de que eu estava apaixonado por ela, apesar da diferença

de idades − o aluno com sete, a professora com quase quarenta anos −, ela

foi abraçar um gordinho que errava com mais convicção do que eu. Quase

morri de raiva e inveja, dois dos sete pecados capitais. Foi a primeira mu-

lher amada que me desprezou, inaugurando uma lista em que o antigo

aluno jamais se emendou, sendo sempre cúmplice dos abandonos.

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Concluído o curso primário, entrei para o Seminário São Joaquim,

em São Ludgero, então reconstruído depois que um louco tocou fogo no

prédio por ter brigado com o bispo diocesano. Quase matou queimados

os seminaristas que nada tinham a ver com aquele litígio. Houve, inclu-

sive, alguns milagres, logo creditados a Santa Albertina, virgem que fora

violada nas matas de um município vizinho e cuja canonização, como nos

primórdios da Igreja, foi feita pelo próprio povo, sem aguardar a sanção

do Vaticano.

O reino das palavras é cheio de maravilhas. Vaticano tem este nome

porque a colina onde hoje está a sede pontifícia, em Roma, estava sob a

proteção do deus pagão Vaticanus, que presidia ao nascimento da lingua-

gem nas crianças. E também porque à noite eram ouvidos ali cantos de

vaticínio misturados ao farfalhar das folhas das árvores.

A preparação para o ginásio, conhecido como Admissão, duraria um

ano inteiro. Ali, aprendi a dormir com muita gente. No bom sentido, é

claro. Éramos 93. No ano seguinte, eu chegaria ao Seminário Nossa Se-

nhora de Fátima, em Tubarão, a poucos quilômetros de São Ludgero,

onde permaneceria recluso por mais alguns anos, dormindo na compa-

nhia de 262 meninos.

Meu ano letivo tinha 330 dias integrais, incluindo as leituras feitas

aos sábados e domingos. Quando cheguei ao curso de Letras, pratiquei a

mais clássica das solidariedades: espalhar cola a colegas que, ao contrário

de mim, tinham estudado por um método que dispensava a relação bun-

da-cadeira-hora. Este método jamais falhou para ninguém. Desconheço

as razões de ter sido praticado quase só por antigos seminaristas.

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O futebol em nossas letras

O futebol está para a literatura brasileira assim como o camelo para o

Alcorão. Ninguém nega a importância de cada um dos temas nos respec-

tivos domínios, mas se não encontramos o camelo em nenhuma das su-

ratas (as divisões do Alcorão), também o futebol tem sido evitado por

nossos poetas e prosadores. Isto é, até o presente quem se aventurou es-

creveu bem. Por escrever bem, entendamos mais o estilo do que o conteú-

do, ainda que tal separação seja complicada, porque a forma influencia o

conteúdo e vice-versa, mas escrever é fingir, e no mentiroso admiramos

mais o seu modo de narrar do que o narrado.

Vamos a uns poucos exemplos. Graciliano Ramos deu o pontapé ini-

cial. Escreveu um texto lindo, triste e pessimista, prevendo que o futebol,

como do cinema disseram os Irmãos Lumière, seria uma invenção sem

futuro entre nós. O ofício de prever impõe alguns tributos aos profetas,

sendo o mais devastador o erro puro e simples. Os fatos desmentiram

nosso grande ficcionista.

Edilberto Coutinho arrebatou o prestigioso Prêmio Casa de las

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Américas com Maracanã, adeus, em que futebol, jogadores e domínios co-

nexos compõem os cenários dos contos.

Rubem Fonseca, em Feliz Ano Novo, o livro que a ditadura militar mais

abominou porque foi obrigada a mostrar como funcionavam as proibições

e a censura, apresenta-nos uma história de amor repleta de compaixão,

intitulada “Abril, no Rio, em 1970”. Zezinho namora Nely, que não é de

“jogar fora”, mas sonha com a ascensão social pelo futebol: “Eu tinha que

comer a bola no domingo, do Madureira para a seleção, bola com Zezinho,

é goool! A multidão gritava dentro de minha cabeça”. No campo, a derrota

anunciada é combatida assim pelo personagem: “Vamos virar esse placar,

pessoal, eu disse para os companheiros, botando a bola debaixo do braço

e correndo para o meio do campo, pra dar a saída, igual o Didi na final da

copa de sessenta e dois”. O vascaíno Rubem Fonseca enganou-se. O gesto

de Didi ocorrera na final da Copa de 1958, quando a Suécia fez 1 × 0 diante

de atônitos brasileiros que então reagiram. Em 1998, a França fez três, e

ninguém reagiu, talvez porque não houvesse nenhum Didi em campo.

Ainda nas narrativas curtas, temos certas crônicas de Fernando

Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga, mas o caso ainda mais

emblemático é de Aldyr Garcia Schlee, talentoso autor do Rio Grande do

Sul, que escreveu Contos de futebol, esplêndida coletânea de narrativas

que exalam suas conhecidas paixões por temas, problemas e personagens

situados naquele terrum todo especial: a zona fronteiriça em que o Uru-

guai é Brasil, o Brasil é Uruguai. O ficcionista ostenta em eu vitae um

distintivo muito curioso. Em 1953, a camisa amarela passou a integrar o

uniforme da seleção brasileira, daí a expressão seleção canarinho, depois

que o escritor gaúcho venceu o concurso instituído pelo Correio da Manhã

para desenho de uniforme que incluísse as cores nacionais, até então au-

sentes no antigo vestuário. Dizia-se que o Brasil perdera a final de 1950

por não termos as cores nacionais, ao contrário do Uruguai, que as tinha.

Carlos Drummond de Andrade dedicou vários poemas e crônicas ao

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futebol, provavelmente porque sua sensibilidade poética e perspicácia te-

nham sido fertilizadas pela atuação constante na imprensa. João Cabral de

Melo Neto fez uma verdadeira ode a Ademir da Guia, enaltecendo justa-

mente seu estilo. Também Affonso Romano de Sant’Anna escreveu vários

poemas e crônicas sobre futebol e é autor de uma façanha até agora insu-

perável. Na Copa de 1986, terminada cada partida do Brasil, escolhia um

lance e fazia sobre ele um poema às pressas, declamado no mesmo dia na

televisão. Antes já tivera poemas lidos no Fantástico e no Jornal Nacional.

No romance, quem mais ousou foi o fluminense Ewelson Soares

Pinto com A crônica do valente Parintins, em que as tramas passam pela

Era Vargas, pela Segunda Guerra Mundial, mas os cenários mais fasci-

nantes estão em peladas e jogos memoráveis.

Contudo, entre esses poucos exemplos, que tiveram principalmente

o mérito de evitar o alheamento a tema tão apaixonante, nenhum poeta,

contista ou romancista deu ao futebol a transcendência que lhe conferiram

os irmãos Mário Rodrigues e Nelson Rodrigues, embora seja mais conhe-

cido o segundo, autor dessas frases memoráveis: “Qualquer técnico tem a

torva e atra vaidade de uma prima-dona gagá, cheia de pelancas e varizes;

quem ganha e perde as partidas é a alma; a arbitragem normal e honesta

confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável”.

O Alcorão omite o camelo, mas inclui a vaca, as formigas, a aranha, o

elefante, o cavalo. Os escritores brasileiros, em sua maioria, têm evitado

o futebol. Tal lacuna não empobrece nossas letras, mas nos desconcerta e

sugere certas sobrenaturalidades nessa falta. Será que o vôlei, o basquete,

o beisebol, o tênis e o xadrez não oferecem as mesmas assimetrias para

quem escreve? Talvez seja porque o esporte, à semelhança da guerra e

do amor, seja tão grandioso que é simplesmente impossível aumentá-

lo. Com efeito, autor vem do latim auctor, o que aumenta, faz crescer.

Na Roma antiga, antes de designar quem escrevia, indicou os generais

conquistadores.

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Santo Antônio, tenente-coronel e almirante

O Brasil tem santos muito populares. E um deles é Santo Antônio, a

quem as moças casadoiras passaram a recorrer depois que uma delas, já

em desespero, jogou a imagem do santo pela janela e atingiu um moço

que passava na rua. Nem assim o santo deixou de atendê-la. O rapaz ca-

sou com a devota.

Santo Antônio nasceu em Lisboa e viveu entre os séculos xii e xiii.

Apesar de ter tido carreira militar no Brasil, nada tem que ver com os

tradicionais enlaces forçados, alguns deles feitos em delegacias de polícia.

Sua formação guerreira inicia-se no século xvii, depois de uma vitória de

católicos portugueses e brasileiros sobre luteranos franceses. O primei-

ro tempo, transcorrido em alto-mar, foi vencido pelos protestantes, que

aproveitaram para debochar da imagem do santo encontrada no navio

que assaltaram. Seguiu-se uma tormenta danada, todos naufragaram, e

os que vieram em socorro encontraram a imagem na praia, onde o santo

estava plantado, altaneiro.

Incorporado a nossas milícias, foi recebendo diversas promoções,

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chegando a tenente-coronel. Já vivíamos a era da esperteza, e outros re-

cebiam o soldo em seu lugar, até que, já na República, uma declaração

anônima, escrita em lápis azul, determinou à margem do nome do santo:

“Privado de soldo até segunda ordem”.

Nem mesmo Floriano Peixoto, quando ministro da Guerra, deixou de

honrar os soldos santos, suspensos somente a partir de 1923, depois que

o famoso jurisconsulto Rodrigo Otávio de Langard Menezes, então con-

sultor-geral da República, deu parecer contrário a futuros pagamentos.

Ainda assim, houve quem calculasse os atrasados, já que nunca tinham

sido revogados os decretos de nomeação e promoção.

Um dos recibos foi passado no Rio de Janeiro, em 15 de junho de

1846. Lê-se o seguinte: “Recebi do ilustre tenente-coronel Manoel José

Alves da Fonseca, tesoureiro e pagador-chefe das tropas desta capital, a

quantia de 80 mil-réis, importância relativa ao mês de maio último, do

glorioso Santo Antônio, como tenente-coronel do Exército”. Era soldo e

não pensão, como esclareceu em curioso despacho o então ministro da

Guerra José Antônio Saraiva.

Mas o santo, que teve carreira militar também no exterior, tendo

chegado a almirante na Espanha, não escapou a curiosas perseguições

no Brasil. Levado aos tribunais, foi condenado e perdeu todos os bens,

inclusive algumas fazendas registradas em seu nome. Um juiz entendeu

que quem deveria responder pelo crime de um escravo era seu dono. Ora,

o dono era Santo Antônio. Intimado, o santo não compareceu. Para não

ser julgado à revelia, foi arrancado do altar da igreja onde estava, no inte-

rior da Bahia, amarrado ao lombo de um burro e levado a julgamento sob

vara, devidamente escoltado. O juiz chamava-se José Dantas dos Reis.

A religiosidade brasileira é cheia de sutis complexidades. Como disse

Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.

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Roberto Drummond fez-se por si mesmo

Na versão que fazia de si mesmo, Roberto Drummond era mais novo do

que seu irmão caçula. Escondia a idade com uma inocência escandalosa.

Semelhava uma das mais antigas e invictas solteironas de um tempo em

que a solteirice não era opção, mas ameaça de encalhe no caminho do

matrimônio compulsório. Qual Michelangelo literário, esculpiu no már-

more perene das letras a própria estátua e, uma vez concluído o trabalho,

ordenou: “Fala, sô!”.

E ele falou e escreveu em abundância. O escritor não queria que o

tempo passasse. Esforçou-se para interromper os complexos caminhos

que faz sobre nossos corpos e nossas almas, espalhando geada sobre os

cabelos, arrancando boa parte deles, sulcando nossa pele como se os dias

fossem arados e o semeador não tivesse outra lavoura que não fôssemos

nós mesmos. E pontilhando nossos corações com pequenas manchas pre-

tas − os pecados veniais, como advertiam antigas catequistas – que nos

serviam de advertência para não os borrarmos com as enormes manchas

dos pecados mortais, aqueles que demandam detergentes mais complexos

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do que meia dúzia de ave-marias e a ordem, sempre desobedecida, como

sabiam previamente confessor e confitente: “Vai e não tornes a pecar”.

Ele levou a literatura a sério. Tão a sério que fazia de si mesmo lenha

para aumentar as labaredas da fogueira em que ardia todos os dias. Mui-

tas vezes, compulsando dicionários de literatura, sorria de sua vitória

sobre o tempo, enganando doutores em letras, pesquisadores que tudo

devassavam, e até um delegado de polícia que depois se tornou fonte con-

fiável da literatura brasileira para todos os autores. Menos para Roberto

Drummond. Falo de Raimundo de Menezes, a quem os PhDs da Repúbli-

ca das Letras reverenciam como bibliografia segura. O bacharel em Di-

reito nem sequer identificou com precisão o indexado no − como direi:

prontuário ou dicionário? Da consulta saímos sem saber o nome, nem a

idade, nem o lugar em que nasceu.

Drummond ironizou o próprio sobrenome em O cheiro de Deus, seu

último romance, incrustando famílias designadas por nomes de uísque

no clã Drummond no Brasil. Indaguemos com mais precisão: quem era o

autor de a morte de d. j. em paris, que atendia pelo nome de Roberto

Drummond?

Era alguém capaz de ajoelhar-se diante de certa donzela alemã em

Berlim para dizer-lhe que era a mulher mais linda do mundo, muito mais

bonita que Nossa Senhora das Dores. E a moça era protestante de cartei-

rinha e nada entendia de português! Embevecido, olhando a paisagem

fria de Frankfurt, entendeu mal o motorneiro que com uma manivela

na mão advertia o escritor de que ele estava muito perto do meio-fio, e o

espelho do bonde poderia arrancar-lhe uma das orelhas. Ignorando pala-

vras e gestos, Roberto saiu em disparada buscando abrigo entre os colegas

e dizendo que um motorneiro queria matá-lo. E o alemão, irritadíssimo,

pensando que ele estava fazendo teatro para menosprezar o aviso.

Roberto Drummond tornou-se imortal com seus livros. Imprimamos

agora as lendas. Porque também sua biografia é encantadora.

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Jornalismo e literatura

Luís Edgar de Andrade lançou um de nossos romances mais ousados,

sem nenhum minimalismo, retomando a tradição de que o romance é o

gênero literário por excelência para expressar os grandes cenários diante

dos quais se desenvolve a verdadeira vida. Bao Chi, Bao Chi, que significa

“Somos jornalistas, somos jornalistas”, tem um título que não ajuda mui-

to e pode dificultar a aproximação dos leitores. É bem escolhido, porém,

o subtítulo: um romance da guerra do Vietnam. É necessário dar o prefixo

e entrar no ar imediatamente para que o leitor identifique a estação que

acabou de sintonizar. E é o subtítulo que faz isso.

Dublês de jornalistas e escritores formam, quando bem combinados

os dois ofícios, uma via de mão dupla em que a pressa do jornalista ob-

tém a concisão e a rapidez que a ficção não pode aceitar de pronto, mas

às quais responde com muito mais laudas, devidamente acompanhadas

de reflexões mais demoradas, imunes aos desacertos e ao tormento da

pressa. Exemplos não faltam nos precursores, mas os nomes mais óbvios

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vão de Eça de Queiroz a Ernest Hemingway, mostrando que o batente de

jornalista pode fertilizar as nossas letras e em contrapartida receber no

caudaloso rio que é um jornal diário ou uma publicação semanal os pe-

quenos afluentes que lhes trazem os escritores em textos curtos, de que

são exemplos as crônicas.

A ficção, quando bem manejada, oferece uma saudável irresponsa-

bilidade. É o caso de Luís Edgar de Andrade. Não está mais cobrindo a

Guerra do Vietnã, não precisa mais alertar ninguém de que é jornalis-

ta. E pode mostrar a face mais verdadeira da guerra, porque a ficção é a

história clandestina das sociedades, as versões desautorizadas, livres de

qualquer censura ou fronteira.

Ainda na abertura somos metidos in media res, assim sem mais nem

menos, no meio da guerra, em “Visto para o inferno”. Aliás, nenhum repa-

ro aos títulos dos trinta capítulos, todos instigantes. E somos convocados

a acompanhar Miguel em seu périplo extraordinário como corresponden-

te de guerra, deixando o Brasil de Costa e Silva e rumando para o Vietnã

de Van Thieu. A paixão por Glória será o fio vermelho que atravessará

toda a narrativa. Nos momentos decisivos, prevalece o olhar armado do

jornalista, de que é exemplo a manchete antevista para dar conta do sumi-

ço da amada: “Moça brasileira desaparece no bairro chinês de Saigon”.

Embora estreante, o excelente desempenho do autor talvez possa ser

avaliado por meio de um alter ego, quando revela o norte que seguiu: “Ao

reler o manuscrito, suprima os advérbios e adjetivos supérfluos. Subs-

titua as palavras abstratas por substantivos concretos e verbos de ação.

Gosto de seu estudo seco, sem firulas. Mas, atenção: ficção e reportagem

são coisas bem distintas”.

Os mais íntimos com aqueles anos e personagens poderão fazer com

que a memória brote durante a leitura. Estes saberão que personagens

como o heroico e trágico José Airton, “sem a perna no hospital de cam-

panha”, foram inspirados em profissionais que conhecemos, cujos feitos

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contribuíram para mostrar a generosidade do brasileiro, a sua coragem

diante do perigo. Sim, o jornalismo brasileiro tem páginas gloriosas, e al-

gumas delas foram escritas em territórios hostis, em campos dominados

pelo inimigo, aqui e no exterior.

A recusa ao minimalismo, porém, é apenas uma questão de método e

projeto. O olhar atento vê ao longe, mas sem deixar de observar os deta-

lhes que permitem discernir as complexas movimentações da realidade,

tornada ficção para melhor entendimento de seu processo.

O narrador de Bao Chi, Bao Chi é o oposto do militar americano que

desce do céu de helicóptero para frustrar os jornalistas: “O que ele diz, já

se sabe. O que se quer saber, ele não diz”.

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O santo que sangrava

A Igreja levou quase dois milênios para canonizar oficialmente poucas

centenas de pessoas, embora o número de indexados varie de 4.500 a 25

mil na Acta Sanctorum. Alguns já tiveram a santidade cassada, porque

atribuída indevidamente, vez que a religiosidade popular havia canoni-

zado por conta própria algumas figuras lendárias cujas existências não

puderam ser comprovadas.

João Paulo ii canonizou oficialmente 457 personalidades em 24 anos.

Algo de muito complexo está havendo nos subterrâneos do Vaticano para

esse papa canonizar tantos em tão pouco tempo! João Paulo ii, aliás, tem

deflagrado ações desconcertantes em seu pontificado, não só no âmbito

da religião católica, mas também na atuação decisiva que teve como esta-

dista desde que foi eleito, em 1978. O Sumo Pontífice tem canonizado em

média dezenove santos por ano, um a cada dezoito dias.

Desta vez foi canonizado Francesco Forgione, o padre Pio, que fa-

leceu em 1968, aos 81 anos. Nos últimos cinquenta anos, apresentara

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estigmas de cor avermelhada nas mãos e nos pés, semelhando às chagas do

Crucificado. Os ferimentos, que eram espontâneos, nunca infeccionaram

e nenhum remédio os fez desaparecer, a não ser depois de morto.

Ele previu a eleição do atual papa, que o visitou em Giovanni Rotondo,

perto de Benevento, onde vivia já famoso por seus milagres e pelos es-

tigmas em forma de cruzes nas costas, nas mãos e nos pés. Em 1962, em

carta ao religioso, o então bispo de Cracóvia Karol Wojtyla, pediu a cura

de uma amiga chamada Wanda Poltawska, mãe de quatro filhos, que pa-

decia de um tumor. Já velhinha, mas saudável, ela assistiu à canonização

do benfeitor, na Praça de São Pedro, lotada por 400 mil peregrinos, com

lugares para apenas 35 mil sentados. O preço do ingresso chegou a ser

negociado a us$ 200 no câmbio negro.

Francesco Forgione despertou muitas controvérsias em vida. Foi in-

clusive acusado de ser o autor dos ferimentos nas próprias mãos, que

ocultou durante anos em luvas que tinham o fim de absorver o sangue

que delas pingava como de uma fonte vermelha. Também os milagres que

lhe foram atribuídos ainda em vida causaram muita polêmica e levaram-

no a ser confinado numa cela, onde suas conversas eram gravadas.

O jornal inglês The Independent, conforme transcrição do Jornal do

Brasil, registrou que o santo, conquanto muito popular, continua gerando

discussões complexas e que recentemente o bispo de Como, Alessandro

Maggiolini, reprovou o “mercantilismo que tornou San Giovanni Rotondo

conhecida como a Las Vegas católica”. The Independent citava o jornal ita-

liano La Repubblica, que trazia duras palavras de Dom Alessandro: “Jesus

expulsou os mercadores do templo, mas parece que eles estão de volta”.

Foi o papa Urbano viii, na primeira metade do século xvii, quem de-

finiu as formas oficiais de canonização, com vistas a corrigir abusos e

disciplinar o processo. Um exemplo curioso das desordens havidas an-

teriormente é o de São Romualdo, nascido em 950, falecido em 1027 e

canonizado apenas em 1595. Os habitantes da Catalunha queriam que

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esse monge italiano, considerado santo em vida, permanecesse entre

eles. Como os pedidos não lograram êxito, contrataram alguns sicários

para assassiná-lo, guardar seus restos mortais e proclamá-lo padroeiro

da região. Quer dizer, não podendo ficar com o santo vivo, ficaram com

o santo morto. E cometeram um crime pavoroso em nome de uma boa

causa. Não foi a primeira nem a última vez, infelizmente, que um meio

abominável serviu para atingir um fim glorioso!

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