Sete palmos de terra e um caixão - Josué De Castro

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JOSUÉ DE CASTRO SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO ENSAIO SOBRE O NORDESTE, ÁREA EXPLOSIVA 2.ª EDIÇÃO EDITORA BRASILIENSE SÃO PAULO 1 9 6 7

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JOSUÉ DE CASTRO

SETE PALMOS DE TERRA E UM CAIXÃO

ENSAIO SOBRE O NORDESTE, ÁREA EXPLOSIVA

2.ª EDIÇÃO

EDITORA BRASILIENSE

SÃO PAULO

1 9 6 7

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Das abas do livro: JOSUÉ DE CASTRO era o representante do Brasil na Conferência

do Desarmamento de Genebra quando foi surpreendido com o decreto da cassação de seus direitos políticos. Não sendo um político de grande projeção no Governo passado ou que nele tivesse exercido Uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía sobre ele a ira das forças que subiram ao poder com o movimento de Abril de 1964 — esta mesma obra que, traduzida em 19 idiomas e divulgada no mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de exemplares, fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção internacional. Os seus trabalhos foram considerados, no campo da alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio da astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga fabricada pelo homem e não como um fenômeno natural, mostrando a inconsistência e o falso das teorias neomalthusianas, que visam apenas a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo subdesenvolvido.

Escritor, cientista e professor universitário foi ele o pioneiro no Brasil dos estudos científicos sobre alimentação, tendo realizado em 1933 o primeiro inquérito levado a efeito para apurar as condições de vida de nosso povo. Natural de Recife, impressionou-se com a miséria em que vivia a maioria de sua população, atormentada pela fome. A princípio deu expansão à sua sensibilidade em obras de ficção, contos hoje reunidos em seu livro "Documentários do Nordeste" nos quais retratou com impressionante vigor literário a tragédia daquele povo.

A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando sua conhecida obra "Geografia da Fome"; para, em seguida aplicando o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal, apresentar o seu livro "Geopolítica da Fome", que teria imensa repercussão internacional. Seu livro foi laureado pela Academia Americana de Ciências Políticas com o prêmio Franklin D. Roosevelt e ao mesmo tempo pelo Conselho Mundial da Paz com o prêmio

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Internacional da Paz, evidenciando assim tratar-se de uma obra profundamente humana elaborada acima das posições partidárias e das intolerâncias políticas. A Associação Brasileira de Escritores e a Academia Brasileira de Letras também laurearam a obra de Josué de Castro com os prêmios Pandiá Calogeras e José Veríssimo.

Mas Josué de Castro não se limitou a publicar o seu grande livro "Geopolítica da Fome". Dedicou toda sua vida ao estudo deste flagelo, publicando os trabalhos nos seus outros volumes de ensaios — o de Biologia Social e o de Geografia Humana, trabalhos que lhe valeram ser eleito em 1951 para o alto cargo de Presidente da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (F.A.O.), e acaba de publicar seu último ensaio sobre o Nordeste, "Sete Palmos de Terra e um Caixão". É a lista de seus livros que vêm chamando a atenção de nosso povo sobre um grave problema do nosso país que parece não merecer a devida atenção dos nossos governantes, o da situação de miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente no Nordeste do nosso país.

Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro; o de chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não comporta mais delongas.

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OBRAS COMPLETAS DE

Josué de Castro A OBRA CULTURAL BRASILEIRA MAIS DIFUNDIDA E COMENTADA

NO MUNDO INTEIRO Publicada no mundo num total de mais de 400.000 exemplares. Premiada nos E.U.A. com o Prêmio Franklin Delano Roosevelt — 1952. Traduzida em 19 idiomas. Consagrada com o Prêmio Internacional da Paz — 1954. Selecionada nos E.U.A. pela organização do livro do mês, do Book Find Club. Distinguido um dos seus livros — a Geopolítica da Fome — pela Associação Americana de Bibliotecas, como um dos "livros notáveis" de 1952, Condensada a obra pelas publicações "Colliers" e "Reader's Digest Catholic", nos E.U.A. e por "Constellation", na França. Prefaciada em suas edições estrangeiras por personalidades invulgares, tais como Lorde Boyd Orr, Pearl Buck, de André Mayer, Max Sorre, Cario Levi e Pedro Escudero. Obra distinguida pela Associação Brasileira de Escritores com o Prêmio Pandiá Calogeras. Obra consagrada pela Academia Brasileira de Letras com o Prêmio José Veríssimo. Constituem as suas Obras Completas os seguintes volumes: I VOL. — Geografia da Fome II VOL. — Geopolítica da Fome (I parte) III VOL. — Geopolítica da Fome (II parte) IV VOL. — Documentário do Nordeste V VOL. — Ensaios de Geografia Humana VI VOL. — Ensaios de Biologia Social VII VOL. — O Livro Negro da Fome VIII VOL. — Sete Palmos de Terra e um Caixão Um aspecto da realidade brasileira e o grande drama do Mundo — a Fome — estudados por um cientista e divulgados por um escritor de invulgar mérito literário. A coleção que todo brasileiro deve possuir em sua estante. EDITORA BRASILIENSE EM TODAS AS LIVRARIAS OU PELO REEMBOLSO POSTAL Rua Barão de Itapetininga, 93 - 12º andar . Caixa Postal 30.644 - São Paulo

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Convém notar, de logo, que a ciência tem um ponto de partida e que este ponto de partida é o senso comum. JEAN WAHL Pensamos que a obra do sociólogo será sempre uma intervenção e que será enganar aos outros e iludir a si mesmo, se não tomamos em consideração esta verdade e a responsabilidade que ela comporta. CAMILLO PELLIZI

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DON FERNANDO DE OLIVEIRA: Vous ovibliez que des milliers, des millions, d'Indiens brûleraient pour l'éternité en enfer, si les Espagnols ne leur apportaient pas la foi. DON ÁLVARO DABO: Mais des milliers d'Espagnols brûleront pour 1'éternité en enfer, parce qu'ils seront allés au Nouveau Monde. DON BERNAL DE LA ENCINA: Comme si, bien avant Grenade, on n’aimait pas 1'or! DON ÁLVARO DABO: On aimait For parece qu'il donnait le pouvoir et qu'avec 1e pouvoir on faisait de grandes choses. Maintenant on aime le pouvoir parce qu'il donne l'or et qu'avec cet or on en fait de petites. Henry de Montherlant dans la pièce "Le Maître de Santiago"

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ÍNDICE EXPLICAÇÕES .................................................................................. 11 INTRODUÇÃO ................................................................................... 13 CAPÍTULO I A Reivindicação dos Mortos ........................................................... 23 CAPÍTULO II Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento ........................... 37 CAPÍTULO III A Primeira Descoberta: O Feudalismo Português do Século XVI ........................................ 95 CAPÍTULO IV O Brasil Colonial: A Ausência do Povo ou a Luta Contra o Progresso ...................... 115 CAPÍTULO V A Segunda Descoberta ou a Conscientização do Povo Nordestino 142 CAPÍTULO VI O Nordeste e a América Latina ...................................................... 165 CAPÍTULO VII Anos Decisivos .............................................................................. 183 Biografia do autor ......................................................................... 216

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EXPLICAÇÕES Este livro foi escrito entre outubro de 1962 e fevereiro de 1964.

Quando a 1.° de abril deste ano um movimento militar depôs o Presidente Goulart, estabelecendo um novo governo no Brasil, os originais deste livro já se encontravam nas mãos do tradutor, que terminava a sua versão inglesa. O primeiro impulso do autor foi o de pedir a devolução destes originais para acrescentar ao livro um novo capítulo, concernente a este recente episódio, tão ligado em suas origens e em sua expressão política à luta que se vem travando com intensidade crescente no Brasil, entre as forças de emancipação nacional e as forças de contenção do desenvolvimento econômico-social do país. Mas, melhor refletindo, resolveu o autor deixar que o livro fosse publicado tal como fora concebido e redigido, antes do golpe militar de 1.° de abril: Pesou sobremodo nesta sua decisão a convicção de que nada poderia ele acrescentar ao livro que explicasse melhor os fatos recentemente ocorridos, do que o conhecimento dos antecedentes históricos desta região explosiva e da sua interpretação sociológica, como tentara o autor apresentar neste livro, antes de saber quando e como poderia ocorrer a explosão. Acrescentar qualquer coisa depois que suas previsões já começam a se realizar seria tirar o possível valor do livro como diagnóstico e como prognóstico de uma situação histórico-cultural. Seria reduzi-lo a um simples inventário das calamidades que o Brasil atravessa. Preferimos, pois, publicar o diagnóstico, ou seja, uma interpretação e não um inventário.

Devemos também explicar, que na elaboração deste livro, contou o autor com a colaboração do sociólogo brasileiro Alberto Passos Guimarães, a quem se deve a fundamentação dos capítulos dedicados ao estudo do feudalismo agrário brasileiro e da sua evolução sociológica. Contou, também, com a cooperação de vários amigos e colegas do Nordeste, que lhe enviaram informações e dados recentes

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da situação econômico--social da região durante o período de preparação deste ensaio, pensado e escrito na Europa. A todos que prestaram generosamente sua contribuição à realização deste livro, desejamos apresentar nossos sinceros agradecimentos.

Genebra, maio de 1964. J. C.

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INTRODUÇÃO O Nordeste do Brasil foi descoberto pelos portugueses no ano de

1500 e pelos norte-americanos no de 1960. As duas descobertas foram feitas por engano. Em 1500 graças a um erro de navegação; em 1960 graças a um erro de interpretação. Os aportugueses erraram na geografia; os norte-americanos na história. Mas, nos dois casos, os desvios de rota — a distorção da rota oceânica ou da rota sociológica — contam decisivamente na História. Sobre o primeiro engano — a descoberta casual feita por Pedro Álvares Cabral há quase cinco séculos — existe hoje uma literatura abundante. Sobre a segunda descoberta, ainda tão recente, a literatura é pobre.

Este livro pretende representar um documento desta segunda descoberta: uma modesta contribuição à história da redescoberta do Nordeste brasileiro. Uma espécie, mal comparando, de carta de Fero Vaz Caminha (1) dos nossos dias, na qual as coisas sejam mostradas como as coisas são, em sua dura e crua realidade. Mostrando-se sempre as duas faces da medalha: a face boa e a face má. A que nos enche de orgulho e a que nos mata de vergonha, Evitaremos desta forma que aconteça com o Nordeste o que costuma acontecer em seguida às grandes descobertas: a tendência à disseminação pelos quatro cantos da Terra de um mundo de lendas, em lugar de fatos, servindo à formação de uma falsa imagem da terra e do povo descobertos. Isto é hoje tanto mais perigoso quando vivemos numa era de slogans. Dos slogans jornalísticos, que tentam reduzir toda a terra esquematicamente a um tabuleiro de xadrez, com os seus quadrados exatos e com os exatos limites das suas diferentes colorações.

Como todo livro significa, em última análise, uma explicação, pretende começar por explicar este livro, por explicar o seu como e o seu porquê. Como o autor o concebeu e porque assim o concebeu. Talvez esta explicação preliminar, na qual o autor procura se explicar como autor, facilite ao leitor a tarefa de aceitar as explicações do livro. Isto seria uma grande coisa. Seria alcançar praticamente todos os nossos objetivos que não são outros senão o de obter aliados conscientes para defender certas idéias que, a nosso

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ver, merecem ser ardorosamente defendidas. Uma das primeiras coisas que me parece necessário explicar é que este livro foi especialmente escrito a pedido de uma editora dos Estados Unidos da América para o público norte-americano. E que desta forma não se deve admirar o leitor brasileiro de nele encontrar muitas coisas que lhe parecerão por demais sabidas, desde que ele as conhece como se fossem traços da palma de sua mão, mas que, no entanto, são coisas totalmente ignoradas pelo leitor médio dos Estados Unidos, como se fossem traços da outra face da Lua. Escrevendo para um mundo tão diferente do nosso, tão distante de nossa realidade social, era preciso dar uma idéia precisa da região estudada, caracterizando-a com o que ela tem de mais típico, e, portanto, de mais conhecido no seu contexto social. Não podia, pois, fugir o autor a esta enumeração de muita coisa que pode parecer demasiado terra a terra aos olhos dos habitantes da Terra ou dos estudiosos e dos eruditos, dos seus hábitos e costumes tradicionais.

Mas, desta tela de fundo bem conhecida em seu conjunto, o autor procura destacar numa perspectiva, que ele julga até certo ponto diferente, alguns traços fundamentais já conhecidos e outros, que até hoje tinham passado desapercebidos da maioria, e desta forma, o retrato que ele pretende traçar do Nordeste talvez apresente alguma coisa do novo. Pelo menos naquilo que no próprio Nordeste também é novo, como é o caso da revolução social que aí se processa em nossos dias.

Arrisca-se deste modo o autor a ser julgado por uns como um repetidor maçante de coisas já ditas e por outros como um grande fantasista, que pinta uma realidade da qual os outros autores nunca se tinham dado conta. Tínhamos consciência destes riscos, quando empreendemos nosso projeto, e estamos preparados para correr estes riscos. Eles constituem mesmo, a nosso ver, parte integrante da nossa tarefa. É que não tencionamos escrever um livro neutro. Um livro com pretensões a ser uma fria e rigorosa análise científica da realidade social do Nordeste. Não. Não é este um ensaio de sociologia clássica. De uma sociologia acadêmica, espartilhada na camisa de força de uma metodologia que sempre tentou separar, no sociólogo, o investigador do homem, c limitando sempre a função do

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sociólogo, a de um simples inventariante de tudo aquilo que se apresenta aos seus olhos, teleguiados por métodos de trabalho consagrados. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de ensaio. É um estudo de sociologia participante ou comprometida(2). De uma sociologia que não teme interferir no processo da mudança social com os seus achados e, por isto mesmo, não tem o menor interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes dominantes. De uma sociologia que estudando cientificamente a formação, a organização e a transformação de uma sociedade em vias de desenvolvimento, compreende e admite que os valores mais desejáveis por esta sociedade são os ligados à mudança e não à estabilidade, e, por isto mesmo, se aplica em aprofundar ao máximo o seu conhecimento científico do mecanismo destas mudanças. Digo o conhecimento científico, porque, a meu ver, a sociologia comprometida com o processo social não deixa de ser científica, por este seu engajamento. Ao contrário, ela é bem mais cientifica do que a antiga sociologia, que se presumia científica, mas não passava em seu falso cientificismo de um instrumento de inconsciente mistificação da realidade social, cujo contado direto ela sempre evitava, preocupada pela fragilidade dos sistemas em vigor e pelo receio de que ao menor contado tudo pudesse vir abaixo. No fundo, a antiga sociologia era mais utópica do que científica, e a sua utopia consistia exatamente no seu inconsciente desejo de que o processo social se imobilizasse, para ser melhor fotografado. Desta forma, a antiga sociologia era bem mais comprometida do que a sociologia nova, cuja validade científica defendemos. Mas era comprometida com uma ideologia do imobilismo, de uma imagem, estática da sociedade, considerada como uma coisa já feita, definitiva e perfeita, enquanto a nova sociologia considera a estrutura social como um processo em constante e rápida transformação. Ademais, a verdadeira sociologia científica, como qualquer outro ramo da ciência contemporânea, é bem menos arrogante acerca de suas verdades do que a sociologia clássica, desde que hoje se sabe muito bem como todas as verdades são relativas. E que o que chamamos de realidades científicas, não só no mundo da sociologia, mas mesmo no terreno mais sólido da natureza

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física, são sempre produtos da interação entre os próprios fatos e o ato de observar do pesquisador, e que na verdade não existem realidades fora do campo de nossa observação. Há apenas possibilidades. A transição do possível ao real tem lugar sempre durante o ato de observar, como afirmou Heisenberg, pondo uma nota de prudência na atitude um tanto imprudente de certos tipos de cientistas intolerantes(3). As verdades científicas são, pois, sempre relativas, desde que estão sempre na estrita dependência do momento da observação e da perspectiva em que se coloca o observador. Não é outro o sentido mais geral da teoria da relatividade de Einstein, através da qual se chega à conclusão inapelável de que o que nós descrevemos, em verdade, não é a Natureza tal qual ela é, mas tal qual ela se mostra na perspectiva dos nossos métodos de observação. É esta inserção inevitável do observador sociológico dentro do processo social que, a nosso ver, torna impossível a sua não participação nos fenômenos que ele observa, invalidando a sua pretensão de obter uma imagem do real que não seja deformada, já não digo por sua ideologia, mas por sua idealização, isto é, pelas imagens preconcebidas do seu conhecimento existencial(4). Se a reprodução das imagens do mundo natural é sempre eivada de certas deformações, imagine-se como não crescem estas deformações, quando se observa o mundo dos fenômenos sociais: da vida humana associativa, à qual o observador está ligado por laços de solidariedade ou de antagonismo, dos quais a própria estrutura do seu pensamento lógico não poderá jamais se libertar inteiramente(5).

Aí estão as razões porque não acreditamos no que se chama de sociologia independente, de sociologia neutra sem outras ligações com os aspectos sociais que os de sua fria e distante observação. É este o nosso conceito de sociologia, e é esta a perspectiva sociológica em que levaremos a efeito este ensaio. Os fatos nele expostos deverão ser tomados sempre como a cristalização do que se está passando no Nordeste do Brasil, na perspectiva de um estudioso destes problemas, mas que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de corpo e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente. Que embora este estudioso tenha vivido em vários países do mundo, nunca se libertou inteiramente da crosta telúrica que recobre até hoje a sua

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pele e a sua alma, e que dele faz, um eterno regionalista, embora com pretensões de ser um espírito universal, mas que põe sempre como termo de comparação ao seu universalismo os valores regionais da terra onde nasceu e onde formou a sua mentalidade. Na verdade o que queremos impor ao mundo, com este livro, é um retrato do Nordeste como o vê um homem desta região, embora extremamente interessado pelo espetáculo do mundo. Retrato que, a nosso ver, representa a realidade com menores deformações do que os retratos do Nordeste, traçados com o maior rigor e probidade cientifica pela maioria dos estudiosos dos problemas sociais, habitantes de outras terras ou continentes. E isto porque as perspectivas desses estudiosos, longe de ajudá-los, os conduzem Irremediavelmente às grandes deformações. Deformações tanto maiores quanto mais eles tentam penetrar nossa realidade, para superpô-la, através do método comparativo, às realidades sociais com que estão familiarizados em seus países, transformando-se perigosamente naquilo que um sociólogo brasileiro chamou com muita propriedade de "transferidores de cultura".

Na verdade, foi nesta direção que partimos. Na busca de um retrato sociológico do Nordeste. Mas no caminho verificamos que o retrato assim pintado arriscava a apresentar-se um tanto incompleto: ser muito estilizado ou muito fotográfico. Duas deformações que desejávamos evitar. Já demos a entender que o nosso objetivo fundamental é o de mostrar o processo de transformação social acelerado que o Nordeste está vivendo. E mostrá-lo, no contexto integral de suas trágicas contradições e dos dilacerantes antagonismos de suas forças sociais. São as mudanças, os traços cambiantes de sua paisagem humana, que desejamos apreender e retratar: o complexo problema do seu desenvolvimento econômico e social. Processo de uma tal complexidade, pelo jogo dos múltiplos fatores que deles participam, que torna difícil o seu approach através de um ataque unilateral por meio das indagações válidas que lhe possa fazer qualquer disciplina científica isolada, mesmo quando esta disciplina é a sociologia habituada a lidar com sistemas complexos. A verdade é que os especialistas, se sentem submersos diante do mundo de variáveis que encobrem todo o seu horizonte de observação,

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quando procuram analisar o processo de desenvolvimento. Como a característica essencial da ciência sempre foi a da simplificação e da eliminação das variáveis em busca de leis gerais, esta tentativa no campo do desenvolvimento social jamais poderá ser levada a efeito por um só setor de especialistas: sejam eles geógrafos ou antropólogos, sociólogos ou economistas.

"Na prática, a complexidade do processo do desenvolvimento, torna os especialistas ou o técnico auto-suficiente extremamente perigosos, e isto porque nenhuma mentalidade isolada é capaz de compreender, em sua totalidade, todas as nuances de uma sociedade em transição", afirmou um editoria-lista do New Scientist(6). O assunto realmente extrapola os limites de qualquer disciplina e este tem sido um dos principais motivos dos seguidos fracassos dos planos de desenvolvimento elaborados no papel, por economistas renomados, que dispunham, entretanto, apenas de uma visão puramente econômica do problema. Para evitar o fracasso irremediável do retrato que tínhamos em. mente traçar do Nordeste, fomos conduzidos à necessidade de não limitarmos o nosso ensaio às fronteiras convencionais da sociologia, mesmo de uma sociologia libertada das peias do convencionalismo clássico(7). Adiamos que, para dar ao retrato um colorido que não se distancie muito das nuances vivas de sua realidade, tínhamos que usar tintas de várias origens, molhando aqui e acolá o nosso pincel no campo da geografia, da economia, da antropologia, da etnografia e de várias outras disciplinas, que tentam surpreender aspectos parciais da vida coletiva. Foi desta forma que chegamos à conclusão que o nosso ensaio não podia rigorosamente ser considerado como um ensaio sociológico. É apenas um ensaio, tomando-se a palavra na acepção de tentativa: tentativa de penetrar o por-dentro das coisas. É esta uma tentativa de interpretação desta região, considerada uma das áreas explosivas do mundo de nossos dias. Isto é, como uma área onde as tensões sociais, estão alcançando os limites do tolerável — limite em que os conflitos latentes entram em combustão violenta, provocando a explosão social. É esta uma das poucas observações válidas no contexto das lendas que hoje circulam no mundo sobre o Nordeste brasileiro. O Nordeste é realmente uma área explosiva, como

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procuraremos mostrar neste ensaio, com uma carga explosiva bem maior do que as cargas existentes na maioria das supostas áreas explosivas da África e do Oriente: no Congo, na África do Sul, na Índia, no Vietnam. E se nessas zonas da África e da Ásia os sintomas de explosão se tem manifestado com maior insistência, é que os fatores capazes de detonar o processo têm sido aí bem mais ativo, e continuamente postas em ação a propaganda ideológica e a liderança revolucionária. Bem mais ativos do que no Nordeste do Brasil, onde a tensão social explosiva nunca foi habilmente canalizada para o caminho da revolução. Foi, quando muito, estimulada como instrumento de demagogia política ou como arma de luta de um grupo contra outro grupo de poderosos, nunca como autêntica força de libertação através da explosão popular. Mas força explosiva não falta. O que tem faltado é o estopim, ou quem acenda o estopim. A análise elucidativa desta situação de suspense social, na qual poderá de repente se cristalizar uma nova força detonante, capaz de se propagar rapidamente por toda a. massa explosiva mantida até hoje sob pressão, constitui um objetivo da mais alta importância para o Nordeste e para o mundo. Para o Nordeste, porque o conhecimento exato da situação poderá permitir que sejam essas forças ou tensões sociais convenientemente dirigidas num sentido construtivo e criador. E para o mundo, porque o problema das tensões sociais do Nordeste é, com algumas nuances que o singulariza, o mesmo problema das tensões sociais reinantes em todo o mundo subdesenvolvido, que representa em seu conjunto um dos pólos explosivos do mundo atual. É claro que no esquema geral de nossos objetivos, no que diz respeito ao próprio Nordeste, não acreditamos que qualquer interpretação de sua realidade, por mais lúcida que ela seja, possa ter a virtude mágica de mudar a direção da História e de resolver da noite para o dia os angustiantes problemas da região. Mas estamos certos de que a análise acurada dos fatores subterrâneos desse drama sociológico e a sua revelação à consciência coletiva ajudarão o processo de conscientização(8) das massas nordestinas, que é o fenômeno mais característico da dinâmica social desta área nos nossos dias, e através da qual essas massas tomam hoje consciência de seus angustiantes problemas e procuram acelerar por todos os meios as

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reações sociais, necessárias à sua libertação do círculo angustiante das privações que criaram a sua angústia ou neurose coletiva. A psicanálise desta neurose, causada por inúmeros complexos de frustração de um povo espoliado e oprimido há vários séculos, deve ser levada a afeito com acuidade e com probidade. Não apenas para resolver os conflitos psicológicos que geram a própria neurose e que, desmontados, poderão curá-la, provocando no entanto com a cura o esvaziamento de toda a energia criadora, indispensável à vida, tanto dos indivíduos como da coletividade. Não apenas para realizar esta espécie de castração, que c em certos casos o processo analítico redutivo, quando em sua cura aparente extermina também a vitalidade que dá sentido à própria vida, mas sim para revelar tanto a natureza exata dos problemas, como os caminhos possíveis que poderão ser encontrados, para se transpor os obstáculos aparentemente intransponíveis. É dentro destes princípios da técnica construtiva prescrita por Jung(9), que julgo útil levar a efeito uma análise da alma coletiva do Nordeste, para que possa o seu povo consumar o processo de sua revolução social, com o mínimo de sofrimento e com o mínimo de violência. E para levá-la a efeito com a necessária convicção que é este o único remédio para os seus males e que este remédio está ao seu alcance. E, quanto ao mundo, qual a sua atitude diante deste drama regional? Que interesse poderá ter para o mundo a sorte destes nordestinos, devorados por seu complexo de frustração e colocados à margem da História, da qual praticamente nunca participaram? A nosso ver, o interesse do mundo por esta área já hoje é bem grande c tende a crescer cada vez mais. E isto por várias razões. As elites dirigentes dos países líderes começam hoje a se aperceber que um grande número de seus erros de julgamento, de desastrosas conseqüências para os seus interesses, foram produtos de sua quase que total ignorância da carta do mundo (10). Da carta do grande mundo e não do pequeno mundo das suas preocupações mais imediatas, no qual se concentrara até a primeira guerra mundial todo o interesse dos povos bem desenvolvidos: o chamado Mundo Ocidental. Até então era como se só o Ocidente existisse (e o Ocidente era apenas o conjunto dos países colocados dos dois lados do Atlântico Norte), e como se o resto do mundo fosse apenas uma vaga

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massa de terra sem maior interesse nem significação. Esta a imagem que nos evoca Toynbee(11) quando nos fala do Mundo e do Ocidente: o Ocidente sujeito fabricante da História, e o mundo, isto é, o resto, apenas como objeto desta História. Esta é a história das agressões do Ocidente contra o mundo, que Toynbee descreve com tanta lucidez. Mas, do próprio encontro do Ocidente com o mundo, que o mesmo Toynbee considera como o mais significativo acontecimento da história moderna, nasceu uma nova consciência política mundial — a consciência de que o mundo já não é apenas o Ocidente. Que não há apenas um centro de gravitação no mundo, que, de acordo com os historiadores do começo do nosso século, estava colocado no centro da Europa, considerado como o coração da terra — the heartland — sendo o resto uma espécie de ilha. A ilha do mundo, de que nos deixou um mapa expressivo o criador desta teoria do heartland, Halford Mackinder(12). Hoje, o centro do mundo está por toda parte e a ilha do mundo passou a fazer parte do continente da História, porque por toda parte hoje se faz história, e essa história repercute em toda parte do mundo. Daí a preocupação mundial em nossos dias de conhecer melhor terras como estas do Nordeste, que até ontem pareciam sem qualquer significação para o mundo, mas que hoje se apresentam como um foco de grande interesse internacional, pela carga de explosão social que encerram, podendo se converter, de repente, no cenário de profundas transformações históricas.

É constatando hoje a profunda verdade contida na frase de um estadista do império britânico, quando diz que "o custo da ignorância geográfica tem sido incomensurável", e não querendo ser tomado de surpresa pelos fatos históricos em seu acelerado suceder que os dirigentes do mundo de hoje estão tão interessados em atualizar a sua carta do inundo e em precisar nela os traços mais significativos destas áreas de maior tensão social onde as forças de transformação ameaçam romper os diques das forças de contenção, alterando os desenhos da carta atual. O Nordeste brasileiro, é sem nenhuma dúvida, uma destas áreas. Daí o interesse do mundo em obter uma imagem mais exata de sua realidade social, uma imagem isenta de preconceitos e de falsas noções. Em obter, numa palavra, uma carta atualizada da região.

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Um dos objetivos deste livro ó o de fornecer elementos informativos seguros para o levantamento desta carta. E de fornecê-los principalmente aos Estados Unidos e a certos países da Europa onde hoje tanto se fala do Nordeste, sem se dizer quase nada do verdadeiro Nordeste e dos seus autênticos problemas humanos. Foi esta a razão principal que nos levou a aceitar a proposta de uma editora norte-americana para escrever este pequeno livro. Livro no qual tentaremos dar uma imagem mais nítida da realidade social dessa região onde vinte e três milhões de seres vivos lutam para abrir o caminho de sua emancipação, através do denso cipoal trançado pelas circunstâncias históricas adversas, produtos de erros e omissões, tanto da política nacional como da política internacional. É este o nosso principal objetivo, ao escrevermos este livro; o de fazer penetrar um pouco de luz neste cipoal escuro, embora esteja o autor, certo de que esta luz só chegará aos olhos daqueles que realmente querem enxergá-la, porque os outros, aqueles que se negam a ver a evidência, diante de livros como este, ficarão ainda mais cegos — cegos de raiva ou cegos de medo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Introdução

1 - VAZ DE CAMINHA, PERO, Carta a El-Rei D. Manuel, 1500. 2 - FERRAROTE, FRANCO, La Sociologia come Partecipazione, Turim, 1961. 3 - HEISENBERG, W., Physique et Philosophie, Paris, 1951. 4 - WAHL, JEAN, Science et Philosophie, in "Civiltà delle Macchine", Roma, n.° 2, 1963. 5 - MERTON, ROBERT K., Social Theory and Social Structure, Glencol, 1957. 6 — Editorial World of Opportunity, in "New Scientist", n.° 326, 14 de fevereiro de 1953. 7 — MACCLUNG LEE, A., Partecipazione ed Analise Nella Recerca Sociológica, in "Rassegna Italiana di Sociologia", janeiro-março de 1961. 8 - ÁVILA, FERNANDO BASTOS de, A Realidade Brasileira em sua Dimensão Sociológica, in "Síntese Política, Econômica, Social", Rio de Janeiro, n.° 14, 1962, 9 - MARTIN, P. W., Experiment in Depth, Londres, 1955. 10 - MENDE, TIBOR, Regards sur 1'Histoire de Demain, Paris, 1954. 11 - TOYNBEE, ARNOLD, The World and the West, Oxford, 1953. 12 - MACKINDER, HALFORD, Our Evolving Civilization, an Introduction to Geopolitics, Toronto, 1947.

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CAPITULO I A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão. Portanto eles não se enterram são derramados no chão. JOÃO CABRAL DE MELLO NETO em "Cemitérios Pernambucanos" EM 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a

primeira das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro. Não fora seu objetivo principal, como muita gente pensa, o de melhorar as condições de vida dos camponeses da região açucareira, ou de defender os interesses desses bagaços humanas, esmagados pela roda do destino, como a cana é esmagada pela moenda dos engenhos de açúcar. O objetivo inicial das Ligas fora o de defender os interesses e os direitos dos mortos, não os dos vivos. Os interesses dos mortos de fome e de misérias; os direitos dos camponeses mortos na extrema miséria da bagaceira. E para lhes dar o direito de dispor de sete palmos de terra onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o seu corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do morto, para com ele apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para isto é que foram fundadas as Ligas Camponesas. De início, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo porque com a vida não havia muito o que fazer... Só mesmo a resignação. A resignação à fome, ao sofrimento e à humilhação. Mas,

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se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida — em lutar por uma vida melhor e mais decente, por que este obstinado empenho em reivindicar direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca tiveram direito em vida! Por que esta desvairada aspiração de possuir, depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem na vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos, aos imensos batalhões dos sem--terra que povoam o Nordeste brasileiro? E por que este desespero em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca foram proprietários de nada — nem de terra, nem de casa, nem mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos senhores da terra? Por que esta conduta aparentemente tão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, a resignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta, não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da doença. Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o seu direito de escapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida. Tudo mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. "Aos pobres de espírito pertence o reino dos céus", dizem as Escrituras Sagradas. Palavra consoladora para aqueles que há muito já tinham perdido toda a esperança de conquistar um lugar decente nos reinos da Terra.

A larga experiência de mais de quatro séculos de um regime agrário de tipo feudal — ali implantado pelos colonos portugueses sob a forma do latifúndio escravocrata, produtor de açúcar (1) — e a resistência invencível deste regime em ceder a qualquer exigência ou reivindicação dos camponeses para melhorar um pouco suas trágicas condições de vida acabaram por dar a esta gente o sentimento da inutilidade de qualquer esforço para sair do atoleiro de sua miséria. A poesia popular, os a-bê-cês dos cantadores, a tradição e a História sempre se referiram às antigas revoltas camponesas como a

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"Balaiada", "A República de Palmares", "Canudos", nas quais camponeses desesperados lutaram inutilmente contra os senhores prepotentes.

É verdade que, para sermos justos, não podemos esquecer que os escravos descendentes dos negros trazidos da África pelos portugueses tinham obtido em 1888 a sua libertação. A libertação de sua "galé perpétua" de que falava Castro Alves, o poeta da Abolição. Mas, ter-se-ia mesmo libertado, os escravos, da escravidão? Ou apenas se tinham libertado do opróbrio de serem chamados escravos, para continuarem os mesmos escravos com o nome de moradores — de servos de seus antigos senhores feudais? A verdade é que, escravos ou servos, moradores ou foreiros, o que lhes tocara até hoje fora sempre a mesma cota de sacrifícios, de trabalhos forçados, de fome e de miséria: a mesma herança que lhes havia legado a escravidão. Deixando de serem escravos de um dono, para serem escravos de um sistema: escravos do latifúndio açucareiro.

Para serem triturados como bagaço pela engrenagem deste sistema econômico, dos mais desumanos que ainda perduram na superfície da Terra. Mas que foi, sem nenhuma dúvida, há quatro séculos, o sistema que deu consistência política e base econômica ao país em formação. Que permitiu que se implantasse neste Nordeste a primeira organização econômica de além-mar, que daria no século XVI à metrópole portuguesa o monopólio de um produto nos mercados europeus: o monopólio da plantação da cana, da indústria e do comércio açucareiros. Tudo isto feito à base do trabalho escravo. Da total escravidão do homem e da terra, submetidos incondicionalmente a serviço da ambição dos grandes senhores feudais de enriquecerem depressa, plantando sempre mais cana e produzindo sempre mais açúcar. E entregando-se de corpo e alma a esta audaciosa aventura açucareira, sem medir suas conseqüências e sem atender a qualquer sentimentalismo, obedecendo apenas ao insaciável apetite do ouro e ao desadorado apetite da cana, objeto de sua adoração. Ao feroz apetite desta planta, de dispor sempre de novas terras para serem engolidas pelos canaviais e de dispor sempre de mais braços humanos para serem quebrados ou esgotados, no eito, plantando, limpando e colhendo cana, ou, nas estradas, puxando e empurrando os carros de

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cana, ou nas moendas, ou na esteira das usinas, ou nos cais, carregando e descarregando os sacos de açúcar. Se com o tempo a paisagem da região parece ter mudado um pouco — a grande usina moderna tomando o lugar do velho engenho de água ou de lenha, o palacete do dono da usina se erguendo no lugar da casa-grande do engenho — a paisagem humana permaneceu quase que a mesma. Os antigos escravos, que então viviam na senzala, agora espalhados pelas choças e pelos casebres no campo e nas aldeias, ou amontoados nas favelas dos mocambos das cidades, verdadeiras senzalas remanescentes, fraccionadas em torno das novas casas-grandes, os palacetes dos novos senhores da terra. Nenhuma força fora capaz de quebrar o sistema opressor do latifúndio, que vem pesando há séculos, como uma fatalidade sobre a vida do camponês.

Os cantadores de feira, sempre exaltaram a coragem indômita dos líderes populares, sacrificados nas ondas violentas da repressão. Mas de que serviu todo este esforço, toda esta violência? Não serviu para nada. Nem a força da bala dos cangaceiros, nem a força da fé dos místicos e dos beatos deram fim ao sofrimento e à opressão, de que até hoje padecem os camponeses. Nem Antônio Silvino e Lampião, heróis do banditismo, cantados pela poesia popular, nem o Padre Cícero de Juazeiro e seus místicos adoradores, puderam mudar o rumo do destino dessa pobre gente, condenada por seu destino histórico a permanecer sempre no fundo do abismo. A se sentirem impotentes, como se o carro de seus destinos se tivesse atolado até o eixo no barro mole das estradas da cana, no massapê fofo e pegajoso onde se atolam os carros de boi. E quanto mais força se faz, mais o carro se atola, como se o diabo ou o destino, ou os dois juntos, agarrassem, de dentro do barro, os raios da roda do carro. Ou como se todos os companheiros de infortúnio tivessem sido empurrados pelo mesmo destino, para dentro de um redemoinho, que fosse como um inferno d'água, com a força da miséria puxando sempre, como a correnteza, mais para o fundo, O atoleiro da vida ou o redemoinho da fatalidade são imagens populares com que a gente do Nordeste exprime, em seu linguajar simples, a sua revelação de um fenômeno social, que os cientistas de hoje, chamaram com Winslow de "processo circular cumulativo" (2). Processo social no qual uma constelação de fatores

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negativos atuam de tal forma imbricados, que os grupos pobres ficam sempre cada vez mais pobres, enquanto os ricos cada vez enriquecem mais. É a mesma noção do chamado "círculo vicioso da pobreza" de Nurkse (3), no qual a fome e a pobreza, agindo e reagindo como dois fatores de ação cumulativa, fazem com que os famintos não possam comer porque não são capazes de produzir e não produzem porque são famintos. O homem do Nordeste ignora estas sutilezas dos sociólogos, estes brilhantes jogos de palavras nos quais se fala de fatores negativos agindo como causa e efeito dentro do processo social, mas sente na sua carne a realidade da miséria estagnante e vê sempre crescer diante dos seus olhos a riqueza descomunal dos que enriquecem cada vez mais à custa de sua fome. E é esta revelação que lhe faz dizer, sem exteriorizar a sua revolta, que é assim mesmo, que a água só corre para o mar. E correndo sempre para o mar, a água deixa na miséria a terra seca do sertão, e na angústia, a alma ressequida do homem do Nordeste. Tão ressequida que, de vez em quando, esta alma vira pedra — a alma e o coração de pedra dos cangaceiros. Na sua visão fatalista do mundo, estes seres primitivos chegam à conclusão de que não há barragens que possam estancar esta tendência inevitável do destino, que leva sempre a água para o mar, onde menos falta ela faz. Um sentimento de total impotência e da própria desvalia ,se apoderou da alma do camponês nordestino. Daí a sua humildade e o seu aparente conformismo diante dessa conspiração invencível das forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmagarem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de condições de vida?

Não foi, portanto, pensando em reivindicações dos direitos espoliados, nem com o desejo de se organizarem para lutar contra a exploração do regime agrário reinante, que os humildes camponeses do Engenho Galiléia fundaram as Ligas Camponesas. Não se chamava o seu engenho Galiléia? O mesmo nome da Terra Santa, onde o doce Jesus pregou pela primeira vez a doutrina da igualdade e da fraternidade humanas, doutrina revolucionária, que, durante dois mil anos, ainda não conseguiu penetrar de verdade na alma empedernida dos falsos cristãos, que dominam uma grande parte do mundo? Portanto, quem melhor armado para entender o profeta da Galiléia do

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que essa pobre gente do Engenho Galiléia, nesse Nordeste do Brasil? Pobres como os amou Cristo, que por eles se deixou crucificar para que o reino dos céus se estabelecesse na Terra. Quem melhor para sentir os ensinamentos e as lições de amor do grande profeta da Galiléia do que esta gente destituída de tudo, sem maiores ambições neste mundo? Apenas ambicionando um dia se apresentarem bem diante dos olhos de Deus. E foi neste ponto que as suas aspirações pareceram um tanto excessivas aos olhos dos outros cristãos, os cristãos proprietários de terras, donos de engenho, senhores do Nordeste. A aspiração dos associados da Liga era de se prepararem para sua apresentação no juízo final, em condições que não lhes fossem totalmente desvantajosas, de forma a serem ouvidos pela Autoridade Suprema. A primeira condição seria, sem dúvida, a de se apresentarem diante de Deus com as mãos limpas de crimes e com a alma limpa de vícios. E isto não seria difícil para a maioria deles. Mas no seu entender simplista, seria também necessário se apresentarem com um mínimo de decência, numa hora de tamanha importância e de tanta solenidade: a hora do juízo final. E é aí que a sua extrema miséria não lhes permitia este mínimo de decência. É um hábito nessas terras miseráveis que os pobres lavradores, no termo de suas vidas de miséria, sejam levados ao cemitério num caixão "de caridade", que a Prefeitura empresta, mas que tem que ser restituído na boca da cova, para servir outros defuntos. Ora, ser enterrado desta forma, constitui a humilhação suprema para essa pobre gente, cuja vida não passa de um rosário de humilhações. Mas esta é a maior de todas, porque é uma humilhação que passará para o outro lado da vida — uma humilhação que durará toda a eternidade. A Liga foi criada para evitar esta suprema humilhação.

Quando em 1960 um jornalista entrevistou um dos principais dirigentes da Liga, o velho José Francisco de Souza, e lhe perguntou o que tinha a Liga feito em benefício dos pobres camponeses, ele respondeu tranqüilamente: "Veja, moço. Antes da Liga, quando um de nós morria, o caixão era emprestado pela Prefeitura. Depois que o corpo era levado à vala comum, o caixão voltava para o depósito municipal. Hoje a Liga paga o enterro e o caixão desce com o morto".

Ali estava o primeiro resultado patente da iniciativa que haviam

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tomado João Firmino e seus companheiros do Engenho Galiléia, ao fundarem nessas terras de tanta pobreza, uma sociedade civil beneficente, de auxílio-mútuo, para ajudar seus moradores a morrer com decência: com uma vela na mão, com os olhos fitos na chama desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranqüilo o juízo final. Esta instituição beneficente foi denominada "Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco". Mas o nome não pegou. O que pegou foi o apelido. É que logo em seguida à sua criação, começaram a chamar a sociedade de Liga. De Liga Camponesa. O apelido foi botado para desfazer dela. Para dar-lhe uma origem considerada suspeita pelos conservadores, com ocultas ligações com o movimento revolucionário iniciado há muitos anos noutros pontos do Nordeste, sob a forma de organizações camponesas, visando reunir os trabalhadores da cana numa espécie de sindicato que lhes desse força política suficiente para reclamar e para reivindicar. E estas primeiras tentativas tinham sido chamadas de Ligas Camponesas, provavelmente sob a remota inspiração das Ligas Camponesas da Idade Média, criadas pelo campesinato europeu como instrumento de luta dos servos da gleba contra a opressão intolerável dos príncipes e dos barões feudais. Não se pode esquecer que a colonização brasileira se iniciou no Nordeste sob o signo do medievalismo feudal, no qual se inspirou Portugal, para introduzir nestas terras o regime das Capitanias Hereditárias, entregues de mão beijada aos Donos dos Feudos, os barões do Novo Mundo. É que, embora no começo do século XVI, quando o Brasil foi colonizado, já estivéssemos em plena Renascença européia, a Península Ibérica, desviada da sua rota histórica por sua interminável luta com o Islã, e isolada geograficamente do resto da Europa pela barreira dos Pirineus, continuava encastelada no seu feudalismo agrário, caracteristicamente medieval(4). E Portugal, ainda mais do que a Espanha, separado do grande mundo por toda a espessa muralha da Meseta Castelhana. Este secular retardamento histórico fez com que a colonização ibérica no Novo Mundo se constituísse como uma empresa de tipo medieval, como uma sobrevivência das Cruzadas, impregnada de um espírito ao

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mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça. Sob este aspecto bem diferente da colonização inglesa da América, mais de índole burguesa e de espírito moderno, pós--renascentista e pós-luterano. Dentro do patrimônio medieval trazido pelos colonos portugueses, com seus hábitos arraigados no complexo do latifúndio feudal, é bem possível que tenham os camponeses do Nordeste, também, herdado a tradição das Ligas Camponesas do Medievo europeu, que um dia iria repontar com inesperada violência no processo da evolução social do Nordeste. Como herdeiros presumíveis desta tradição secular as 140 famílias que habitavam as terras do Engenho Galiléia, criaram a sua Liga Camponesa e depois de elegerem sua primeira diretoria, convidaram, num gesto de tradicional humildade do servo para com o senhor, o próprio senhor do engenho para ser seu presidente de honra. E ele aceitou. E fez-se a sua posse com solenidade, com festas e com foguetes. E registrou-se o estatuto da sociedade, no qual, além da ajuda funerária, figuravam como objetivos mais remotos, a aquisição de sementes e de instrumentos agrícolas e a possível obtenção de uma ajuda governamental. Mas não durou muito esta lua de mel do senhor das terras com os seus servos, associados da Liga. É que outros latifundiários da redondeza, senhores de engenho como ele, se apressaram em alertá-lo da loucura que ele tinha feito em se deixar envolver por esta perigosa aventura. Em ter consentido a instalação em suas terras deste perigoso instrumento de agitação social. Desta espécie de cavalo de Tróia, introduzido disfarçadamente dentro dos seus domínios de porteiras fechadas, para abrir na calada da noite todas as porteiras ao comunismo. E o homem assombrou-se e não quis mais ser o presidente da sociedade. E exigiu mesmo o seu fechamento imediato. Foi aí que a história mudou de rumo. A maioria dos camponeses resistiu ao fechamento, e a partir deste momento, sob a pressão dos acontecimentos, a .sociedade mutualista funerária virou mesmo uma Liga Camponesa para lutar pelos direitos dos camponeses contra a opressão dos mortos, ela iria agora se constituir como instrumento de reivindicação dos direitos dos vivos. Mas, não é mesmo morrendo que melhor se aprende a viver? Pelo menos no Nordeste brasileiro. Foi tratando dos problemas da morte que os camponeses do Engenho Galiléia abriram seus olhos

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para a vida. E viram melhor, e melhor compreenderam as injustiças da vida e quais eram os autores destas injustiças. Era a tomada de consciência da sua realidade social, fenômeno que vem ocorrendo em nossos dias por todo o mundo chamado subdesenvolvido — mundo escravizado e espoliado — e que naquele dia se cristalizava como uma força nova na sociedade fechada e primitiva dos moradores do Engenho Galiléia. E com esta força eles enfrentaram o patrão. Não se submeteram como faziam até então, com sua costumeira docilidade, às suas ordens absurdas. Contam que o senhor do engenho, como revide à obstinação do grupo em não querer fechar a Liga, determinou a suspensão de uma ordem que tinha dado para que fosse retirada de suas matas a madeira necessária à construção de uma capela. Os camponeses protestaram contra esta suspensão e o patrão os ameaçou com a polícia, sob o pretexto de que eles pretendiam devastar as suas matas. Seguem-se as intimações, as chamadas à Delegacia e as ameaças dos capangas. Mas, diante de tudo isto, aumentou cada vez mais a hostilidade dos camponeses. Surgem então os processos judiciários contra os mais responsáveis, responsabilizados como agitadores e terroristas. E finalmente apareceram as ações de despejo, a expulsão sumária dos camponeses da terra onde sempre viveram, feita em nome da lei. Nesta altura da luta, os camponeses fincaram o pé. Não sairiam em paz da terra onde nasceram, onde sofreram todas as agruras da vida e onde esperavam ver enterrados os seus ossos. É que nenhum povo do mundo se mostra mais enraizado à terra, mais profundamente ligado ao seu solo natal do que o povo do Nordeste. Sondando a alma complexa e singular do povo chinês, o qual, embora sofrendo há milênios as agruras periódicas de todos os tipos de cataclismos naturais, com que lhes brinda sua terra martirizante — as secas, as inundações, os terremotos, as nuvens de gafanhotos — se mostram sempre tão indissolüvelmente ligados a esta terra, Keyserling(5) escreveu as seguintes palavras: "Não há outro camponês no mundo que dê tal impressão de identificação total com a terra. De participar tão intensamente da vida da terra. Tudo na China — toda a vida e toda a morte — se desenrola na terra herdada. É o homem que pertence à terra, não a terra que pertence ao homem". Mas há. Há outro camponês no mundo, tão identificado com a terra quanto o

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chinês: é o camponês do Nordeste brasileiro, que Keyserling nunca conheceu e do qual o mundo inteiro sempre teve bem pouco conhecimento, vivendo o Nordeste à margem do mundo, relegado em sua obscuridade e em sua solidão. Mas por isto mesmo, por sua solidão forçada, o homem do Nordeste, abandonado do resto do país e do mundo, se voltou para a sua paisagem circundante e nela fincou as raízes de sua alma. Mesmo o homem do sertão semi-árido, que vive uma vida de semi-nômade, escorraçado de vez em quando pelo cataclismo das secas, é extremamente apegado à sua terra e a ela aspira voltar, .sempre que o cataclismo passa. Até os seus nomes são nomes da terra — dos lugares, das aldeias, dos povoados, onde nasceram: Antônio Pedro do Juazeiro, Jucá da Serra Talhada, Manoel João da Lagoa Grande... nomes de homens e de terra, como na Idade Média, afirma com certo orgulho o escritor sertanejo Luís da Câmara Cascudo(6). Este desadorado amor à terra que sempre lhe fez sofrer, faz com que o homem do Nordeste a defenda sempre, até o extremo limite de suas forças e tenha sempre desta terra um ciúme tão intenso, como se ela fosse uma mulher. É como se ele não pudesse viver longe dela, exilado deste amor. E se agora, no meio desta luta intensa, queriam expulsar de suas terras os moradores do Engenho Galiléia em nome da lei, usando contra eles os subterfúgios da lei, que eles candidamente ignoravam, era necessário, para que eles pudessem ,se defender e resistir, que fosse consultado um advogado, versado na lei. Mas advogado custa muito dinheiro e a caixa da Liga estava bem pouco provida de recursos. Pressionados pelas circunstâncias, procuraram os dirigentes da Liga um advogado modesto, até então obscuro, mas que já havia aceito defender outras causas de camponeses escorraçados pelos donos de latifúndios noutras terras: este advogado se chamava Francisco Julião. Aceitando patrocinar a sua causa, Julião deu início à luta judiciária pela permanência dos camponeses na Galiléia. Seu instrumento de luta era o Código Civil, que ele cedo verificou ser uma arma de pouca serventia para defender os direitos dos pobres, tendo sido elaborada para defender os interesses dos ricos, enquanto o Código é que fora concebido para ser aplicado aos pobres(7). Perdendo terreno na arena judiciária, Julião apelou para outro campo de luta, usando, ao lado da tribuna do Foro, a

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tribuna política, aproveitando a circunstância de dispor de um mandato de Deputado Estadual na Assembléia do Estado de Pernambuco. E foi assim que o advogado Julião se foi transformando pouco a pouco em agitador social. Em denunciador público dos crimes hediondos do latifundiarismo. E foi assim que as Ligas Camponesas começaram a se espalhar por toda a região, com a criação de novos núcleos, que se constituíram sob a pressão das circunstâncias — da violência e da opressão desbragadas do latifundiarismo — num instrumento de ação política libertadora, esgrimindo a ideologia, o proseletismo, a doutrinação. Nesta fase de acesa luta, a imprensa começou a tomar conhecimento das escaramuças mais importantes, relatadas sempre com violentos ataques aos "terroristas" na página policial dos jornais. Depois o assunto passou para a página política, fornecendo matéria para os artigos de fundo. E as Ligas camponesas foram assim tomando corpo e ganhando nova alma. Começaram a assustar seriamente o Nordeste inteiro, como se fossem uma espécie de dragão ameaçando engolir toda a terra dos grandes proprietários do Nordeste e destruir a paz, a ordem e a riqueza de que sempre gozaram esses proprietários tão amantes da ordem. Nessa onda de violências, de mistificações e de falsas interpretações no choque entre as aspirações populares e as resistências conservadoras, ambas radicalizadas ao extremo, as Ligas foram criando raízes, projetando a sombra de suas verdes esperanças e de suas negras ameaças, pelo país inteiro. Falava-se delas como se fosse o próprio Apocalipse e de Julião, como se fosse o anticristo. Foi neste momento que os Estados Unidos da América redescobriram o Nordeste. E esta descoberta se deve em grande parte ao obscuro e incipiente movimento das Ligas Camponesas. Em fins de 1960, com o seu povo extremamente sensível aos perigos da revolução comunista de Fidel Castro em Cuba e à sua possível propagação para o continente, a imprensa norte-americana se lançou com um dramático interesse sobre o Nordeste brasileiro explosivo e ameaçador. E os Estados Unidos que tinham descoberto vagamente o Nordeste brasileiro durante a segunda guerra mundial, quando os aviões de transporte, em viagem para a África e a Europa faziam pouso na região, principalmente no aeroporto de Natal, que se transformou na época no maior aeroporto do mundo, voltaram a

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descobrir, desta vez com atônita e perplexa curiosidade, essa terra ignota. Esse estranho mundo que parecia uma nova Cuba em formação: a Cuba continental. Como Cuba, miserável e revoltado. Como Cuba possuindo um líder considerado um marxista, conduzindo à revolução, essa massa de deserdados e fanatizados, dispostos a tudo, como foi mostrado em várias reportagens, publicadas nos grandes jornais dos Estados Unidos, e mostrado em imagens de um colorido impressionante, num filme apresentado numa grande cadeia de televisão. Era o Nordeste na ordem do dia como vedete, como uma espécie de novo far-west, a acender a imaginação de milhões de indivíduos que poucos dias antes ignoravam mesmo a sua existência geográfica (8).

Esta inesperada revelação de um mundo tão estranho à mentalidade do norte-americano médio, levada pela imprensa sem a menor preparação ou apresentação ao seu público, criou uma grande perplexidade e certa confusão nos Estados Unidos. De um lado, um sentimento de pânico pelos perigos desta nova explosão social tão ameaçadora, e de outro lado, um grande desejo de ajudar, de fazer alguma coisa para evitar explosão. Mas a falta de uma serena visão dos fatos, o desconhecimento total da realidade social do Nordeste e das raízes históricas que tinham dado origem a essa aberração social, tornavam bem difícil um approach razoável e deformante, ou o da fantasmagoria histórica das manchetes apocalípticas. E assim, o Nordeste, descoberto quando ajudava os Estados Unidos na última guerra e agora redescoberto, quando parecia ajudar os inimigos dos Estados Unidos no continente, continuou, na verdade, como um desconhecido dos Estados Unidos. E por que não dizer a verdade como um desconhecido do mundo. Embora no cartaz, o que dele se apresenta por toda parte é, em geral, uma falsa imagem do seu papel histórico, tanto no passado como no futuro. Falsa imagem tanto das suas possibilidades, como das suas deficiências e dificuldades. Do que é possível se fazer de bem pelo Nordeste, como do que é possível que o Nordeste venha a fazer de mal ao mundo: à sua segurança e à sua tranqüilidade.

Se dedicamos ao estudo das Ligas Camponesas o primeiro capítulo deste livro, foi com a premeditada intenção de mostrar, como uma

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iniciativa brotada das tradições do feudalismo agrário, aí reinante, com objetivos humanitários e pacíficos, pode-se transformar num instrumento revolucionário, de explosiva agitação social, em face da cega incompreensão e da obstinada resistência da própria estrutura feudal. E mostrar, também como pode um fenômeno social ser totalmente distorcido em sua realidade pelas falsas interpretações do jornalismo tendencioso ou sensacionalista. De fato, a imagem das Ligas Camponesas difundida pela imprensa de certos países, como sendo um instrumento do comunismo internacional, fabricado em Moscou e implantado no Nordeste brasileiro, para repetir nessa área o episódio de Cuba e comunizar o continente inteiro, é uma imagem totalmente falsa, que não resiste a uma análise fria dos fatos. Uma análise que ponha em linha de conta, como estamos tentando fazer, os principais personagens e os episódios centrais das origens desse movimento.

Criadas dentro do espírito do cristianismo primitivo, que até hoje impregna a alma coletiva da população nordestina, as Ligas Camponesas foram mesmo, em certa fase, mal vistas e tenazmente combatidas pelos líderes marxistas da região. E, se posteriormente se aliaram as Ligas aos comunistas, na luta comum pela emancipação da massa camponesa, não quer isto dizer que a sua inspiração brotara da doutrina de Marx ou da ação política de Lenine ou de Fidel Castro, mas na experiência vivida e sofrida por essa massa humana em sua luta desigual por um mínimo de aspirações, em face ao máximo de resistência dos seus opressores feudais. Tem toda razão o jornalista Robert Coughlan da revista Life, quando afirma com excepcional lucidez que atribuir o descontentamento social da América Latina "a um complot forjado em Moscou, como fazem muitos, é ser perigosamente ingênuo. Suas raízes mergulham fundo no seu passado, que conta, como ingredientes, a conquista, a exploração, a fome e a extrema miséria".

Outra razão da prioridade dada às Ligas Camponesas no plano deste livro deriva do fato incontestável de que foram elas que projetaram o Nordeste na imprensa norte--americana, provocando a redescoberta desta região e determinando em grande parte a criação da "Aliança para o Progresso" como uma tentativa dos E.U.A. de evitar a

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suposta bolchevização do continente. Antes de terminar este capítulo, julgamos indispensável deixar

bem claro que, a nosso ver, as Ligas Camponesas nunca alcançaram uma importância política destacada: uma estruturação funcional e uma liderança suficientemente vigorosa para desencadearem um verdadeiro processo revolucionário. Longe disto. Sempre foram, como instrumento revolucionário, uma arma quase infantil. E se esta arma de brinquedo assustou tanto aos grandes senhores feudais e seus associados, é que eles se encontram há muito tempo num estado de pavor permanente. Pavor que os leva a ver no menor gesto ou atitude de inconformismo das massas espoliadas, um perigo tremendo para a manutenção dos seus privilégios. O perigo das líricas Ligas Camponesas sempre fora pequeno, o medo delas é que era grande e continua crescendo cada vez mais.

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CAPITULO II

SEISCENTAS MIL MILHAS QUADRADAS DE

SOFRIMENTO O TRAÇO mais marcante da carta ou fisionomia do Nordeste é o

sofrimento. E não apenas o sofrimento do homem, mas também o sofrimento da terra. Terra e homem, martirizados há séculos por uma espécie de complot de forças adversas: de forças naturais e de forças culturais. O sofrimento, ou melhor, as marcas da sua presença, são tão constantes na paisagem nordestina, que dão a impressão à gente de que toda a terra do Nordeste não passa de um cenário especialmente montado para nele ser representada uma grande tragédia. E no fundo, é isto que é o Nordeste: um imenso cenário de cerca de 600 mil milhas quadradas de superfície, exibindo, por toda parte, os sinais inconfundíveis de seu sofrimento cósmico.

Terra de sofrimento, o Nordeste se estende do Estado do Maranhão ao Estado de Alagoas, compreendendo uma tal variedade de paisagem que, na verdade, dentro do conceito científico da área geográfica, não se pode falar de uma área do Nordeste, mas de várias áreas naturais diferentes, compondo a região do Nordeste. Áreas distintas por seu clima, seu tipo de solo, seu revestimento vegetal e mesmo por sua

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organização econômico-social. Procurando esquematizar ao máximo estas nuances geográficas, podemos considerar o grande Nordeste como composto pelo menos de dois nordestes: O Nordeste Oriental ou Marítimo e o Nordeste Ocidental ou Central. São estes dois nordestes tradicionalmente mais conhecidos como o Nordeste do açúcar e o Nordeste das secas, porque se num deles tudo sempre girou em torno da economia da cana, noutro o que sempre marcou sua existência foi o tremendo drama de suas secas periódicas, a trágica história do seu clima incerto e inclemente. A verdade é que foi realmente o clima que delimitou os dois nordestes. Enquanto no Nordeste Oriental, próximo da costa marítima, o clima é úmido, com uma grande abundância e regularidade de chuvas, no Nordeste Central, o clima é seco, as chuvas são escassas e, principalmente, muito irregulares, imprimindo um facies semi-árido à região. Foi esta marcante diferença dos dois climas que determinou o marcante contraste entre as paisagens naturais das suas áreas: uma área toda ela recoberta de verde — outrora o verde das suas matas, e hoje o verde dos infindos canaviais — e outra área toda em tons acinzentados, com a sua terra seca, quase sempre nua de vegetação, ou apenas revestida em pontos limitados por tufos isolados de uma vegetação rasteira, coberta de poeira e eriçada de espinhos: vegetação formada de bromeliáceas e de cactáceas, plantas adaptadas ao extremo à condição de secura do meio ambiente. Uma área de solo espesso, poroso, permeável, embebido da água das chuvas abundantes — o famoso massapê de extrema fertilidade — e a outra área, de solo duro, de tipo arenoso, rico em seixos rolados e pobre em elementos nutritivos, quase mais pedra do que solo. O Nordeste é este contraste vivo estampado nas duas paisagens: na paisagem acolhedora, envolvente, da área da mata, com sua gradação de verdes, as suas manchas d'água, as suas sombras frescas, e na paisagem ríspida, seca, do sertão, com as suas planícies descampadas, o seu solo pedregoso, o seu céu sempre sem nuvens e o seu sol de fogo. Nestes dois quadros naturais tão diferentes se formaram também duas sociedades distintas, embora complementares, tanto em sua economia como em sua história. E a história econômico-social dessas duas comunidades contíguas representa o patrimônio histórico de toda a região do Nordeste.

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Embora o passado tivesse acumulado nessa região uma grande reserva de tradições e uma apreciável riqueza cultural de sabor típico e original, o que mais se acumulou entretanto nesta zona, como já afirmamos, foi mesmo o sofrimento. É o sofrimento a grande herança cultural do Nordeste. Realmente que terra poderá dar maior impressão de sofrimento do que essa terra do sertão nordestino, com seu solo curtido e roí do pelos rigores do clima? Com a pele do seu solo magro, mal encobrindo o seu esqueleto de granito e de calcáreo, dilacerada em vários pontos, rompida pelas pontas das rochas mais duras que irrompem no meio da paisagem em brancos blocos escarpados, como se fossem mesmo os ossos da terra descarnada. E como se revela como uma dor pungente, como uma expressão de desolador sofrimento, essa terra toda aberta de fundas feridas, de grandes brechas, rompidas no seu corpo pela violência das grandes torrentes erosivas! Outro traço do sofrimento telúrico da paisagem, que nos chama a atenção e que oprime o nosso espírito, é o da própria secura da terra em certas épocas do ano. Da terra toda crestada, toda rachada, como se fosse um pedaço de couro velho deixado ao Sol. Não é menor o sofrimento da terra que foi devorada pela cana. Da terra que a monocultura da cana-de-açúcar, introduzida nessa região, devorou em poucos anos, com um apetite insaciável, consumindo todo o seu húmus, engolindo todo o seu solo. Mas a história dessa cultura autofágica da cana-de-açúcar, que acaba por devorar sua própria economia, é uma história que merece ser analisada mais adiante, em maiores detalhes, para bem mostrar como ocorreu o processo dessa aventura mercantil, que deu origem à sociedade do Nordeste: a exploração monocultora e latifundiária da cana-de-açúcar.

Nesse fundo cinzento do sofrimento da terra — da terra traída pelo clima, ofendida pela seca, degradada ao extremo pela exploração colonial — se destaca gritante a permanência invariável do sofrimento do homem.

No Nordeste, as marcas mais fundas da presença do homem parecem não ser as marcas de sua vida, mas as marcas de sua morte. A presença da morte se manifesta com uma tal força que parece sobrepujar na região à própria força da vida. A morte é uma tal constante, um fator social de tamanha importância na vida da região,

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que em certas cidades do interior, parece que o que mais prospera são os cemitérios, apresentando-se como os recantos mais florescentes dessas pequenas cidades: sempre murados, ajardinados e urbanizados. Enquanto as cidades ao seu lado são às vezes simples enovelados de sórdidas ruelas, sem ordem sem higiene, sem o mínimo conforto. É como se os vivos não existissem na paisagem. Só existissem mesmo, a reclamar cuidados, os mortos. E foi talvez por isto que um poeta do Nordeste, num poema em que fala destes cemitérios, se inquietou diante dos muros que os separam das cidades, que isolam esses cemitérios do resto da paisagem que é também tão morta, que ele a chama de paisagem defunta:

"Por que iodo este muro? Por que isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem defunta?"(1) A paisagem defunta é esta paisagem impregnada da presença

constante da morte, da expectativa da morte, da fraternal promiscuidade dessa gente com a morte. É que os índices de mortalidade nestas terras ,são extremamente altos, dos mais altos do mundo, principalmente os da mortalidade infantil. Morre tanta criança no Nordeste que chega a parecer que morre mais gente do que nasce, e isto principalmente porque se nasce discretamente, enquanto a morte implica sempre na cerimônia pública do enterro, que chama tanto a atenção. De fato, o enterro é um dos traços mais vivos e mais presentes na paisagem social do Nordeste, como ocorre na Sicília, como ocorre na China, enfim, em todos os povos muito ligados à terra, que fazem um grande alvoroço ao voltarem ao seio dessa terra. É verdade que a maior parte deles volta cedo, logo nos primeiros meses de vida, como se se tivesse arrependido de ter nascido numa terra tão pobre, ou como se não tivessem vindo preparados para uma viagem mais longa. O fato é que as crianças nascem mais para morrer do que para viver. Mais para povoar os céus como anjos, na consola-

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clora crença dos seus pais, do que para povoar a terra como homens. Há cidades do Nordeste onde a mortalidade infantil alcança a casa de 500 por 1000, o que quer dizer que metade dos que nascem apenas espiam a vida um breve instante e antes de um ano já se foram para debaixo da terra. É este um dos traços mais característicos das áreas de geografia da fome, como é o caso desta área do Nordeste — desta estranha geografia, onde não é a terra que dá de-comer ao homem, é antes o homem que nasce apenas para dar de-comer à terra. Para alimentar esta terra-cemitério, que engorda com a sua matéria orgânica. E que, quando acontecer escapar, é para sobreviver sempre assustado desta presença da morte, sentindo sempre o seu bafo frio como uma constante ameaça. Qual a causa desta tão desadorada mortalidade do Nordeste? A explicação está no fato de ,ser o Nordeste realmente uma área subdesenvolvida. E que o subdesenvolvimento impõe sempre a existência de altos índices de mortalidade, como também de altos índices de natalidade. Os do Nordeste são os mais elevados do Brasil. Esse tipo de evolução demográfica, chamado de antieconômico porque nele nasce muita gente e também morre muita gente, constitui uma das características fundamentais do subdesenvolvimento, o que explica, aliás, que apesar de toda esta mortalidade terrível, as regiões subdesenvolvidas mantenham suas populações num ritmo de crescimento explosivo, ameaçando explodir a sua miséria. Há quem acredite que esta explosão da capacidade reprodutora seja uma forma de defesa da espécie ameaçada, que, para lutar contra a força impiedosa da morte, joga na arena da luta os seus excessos de crianças, para serem sacrificadas, dizimadas, em sua maioria, mas sobrando sempre algumas para manterem a sobrevivência da espécie. Na verdade, é através de um complexo mecanismo bio-social que o subdesenvolvimento entretém estes tão altos índices de natalidade e de mortalidade. No que diz respeito à alta natalidade nas regiões de fome e de miséria, já tentei explicar o fenômeno em outro livro e não pretendo voltar ao assunto neste ensaio, porque o julgo aqui supérfluo. Desnecessária a explicação tanto para os estudiosos do assunto, como para os habitantes do Nordeste. Para os estudiosos basta o fato indiscutível, evidenciado através da eloqüência dos números. Dos extraordinários, índices de

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natalidade das regiões subdesenvolvidas. Para os habitantes do Nordeste, não há necessidade de explicações, porque, na verdade, muito antes de nós, eles já se tinham apercebido do fenômeno quando repetiam o ditado popular: "A mesa do pobre é escassa, mas o leito da miséria é fecundo". Se não vamos insistir em explicar porque são tão altos os coeficientes de natalidade, desejamos entretanto explicar em detalhes porque são também tão altos os coeficientes de mortalidade. De que morre tanta gente no Nordeste? Morre-se de tudo, mas principalmente de fome. É a fome em seus variados e múltiplos disfarces, o mais ativo dos cavaleiros do Apocalipse que arrasa as populações nordestinas. Em sua faina destruidora, a fome mata como doença — como a mais grave e generalizada das doenças de massa das regiões subdesenvolvidas — e como fator preparatório do terreno para a ação nefasta de outras doenças. Principalmente das doenças infectuosas, parasitárias, que atuam endemicamente nessas áreas, em combinação com a fome, tendo a mesma preparado o terreno para a sua ação deletéria. Não encontramos em toda a área do Nordeste um só e mesmo tipo de fome dizimando as suas populações! Enquanto na área do Nordeste açucareiro, grassa um tipo de fome crônica e endêmica, o que nós encontramos no sertão são as epidemias de fome aguda, que aparecem nos períodos de seca. Mas, para que se compreenda bem como se instalou no Nordeste o reino da fome, como essas diferentes manifestações da doença se apresentam nas duas áreas nordestinas, é preciso que se conheça melhor a estrutura econômico-social destas áreas, determinante, em última análise, deste estado de fome.

Quando se estudam as condições de alimentação da área do açúcar, o que logo surpreende o investigador é o contraste marcante entre as possibilidades geográficas existentes e a extrema exigüidade dos recursos alimentares da região. Que uma região árida como o Saara seja uma zona de fome, que a região amazônica com suas florestas impenetráveis sofra também o flagelo da fome, ,são fenômenos que se explicam naturalmente. A fome nessas zonas pode decorrer principalmente de fatores naturais, da pobreza natural do meio ambiente. Já no Nordeste, o fenômeno da fome é bem mais chocante, porque não se pode explicá-lo à base de razões naturais. Tanto as

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condições de solo, como as do clima regional, sempre foram das mais propícias ao cultivo certo e rendoso de uma infinidade de produtos alimentares, que poderiam permitir a organização de uma dieta alimentar satisfatória. O solo desta área, em sua maior parte do tipo massapê — terra escura, gorda e pegajosa, que recobre em espessa camada porosa os xistos argilosos e os calcáreos do cretáceo — é de uma magnífica fertilidade. É um solo de qualidades físico-químicas privilegiadas, com grande riqueza de húmus e sais minerais. O clima tropical, sem o excesso de água de outras regiões tropicais, com um regime de chuva de estações bem definidas, também contribui favoravelmente para o cultivo fácil e seguro de uma grande variedade de cereais, frutas, legumes e de verduras. A própria floresta nativa dispunha de excepcional abundância de árvores frutíferas, e outras árvores, transplantadas de continentes distantes, se aclimataram tão bem no Nordeste como se estivessem em suas áreas naturais. É o caso da fruta-pão, trazida das distantes ilhas da Oceania, do coco, da manga e da jaca, trazidos pelos colonizadores do Oriente longínquo. Todas essas plantas, integradas na paisagem nordestina, produziam frutos excepcionalmente valiosos para a alimentação humana. Tudo brotava com tamanho ímpeto e produzia com tanta exuberância nessas manchas de terra gorda do Nordeste, que não se pode acusar de descabido exagero a famosa frase do escritor Pero Vaz de Caminha, autor da primeira carta sobre estas terras do Brasil, de que "a terra é em tal maneira dadivosa, que, em se querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo" (2). Infelizmente, não se quis. Não o quis o colonizador português. De nada valeram as grandes possibilidades naturais que a terra oferecia, pois que foram malbaratadas e inteiramente desaproveitadas em sua capacidade potencial de fornecer alimentos às populações regionais.

Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as outras possibilidades da terra ao exclusivo cultivo dessa planta. Aos interesses de sua monocultura intempestiva, destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando, por todos os meios, quaisquer tentativas de

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cultivo de outras plantas alimentares, degradando desta forma ao máximo, os recursos alimentares da região. Esta influência nefasta da cana sobre as condições da alimentação regional não se fez principalmente pela ação direta da cana sobre o solo, mas sim, por sua ação indireta, através do sistema de exploração da terra, que a economia açucareira impôs: o sistema da exploração monocultora e latifundiária. Trazendo a cana-de-açúcar para as terras do Brasil, já o português conhecia bem esta planta, com as suas exigências específicas, desde que havia utilizado as ilhas atlânticas da Madeira e do Cabo Verde, como verdadeiras estações experimentais para o ,seu cultivo. E conhecia também os segredos do comércio açucareiro, que se apresentava no momento o mais promissor do mundo. Com esta experiência da agricultura e do comércio do açúcar o português sabia que este produto só se poderia constituir como uma atividade econômica compensadora, se produzido em grande escala, com terra suficiente para o cultivo extensivo da planta com mão de obra abundante e barata para o trabalho agrícola e com capitais suficientes para o estabelecimento de sua indústria, em bases de um verdadeiro monopólio do produto. Por isso organizou ele a sua empresa com os mais abundantes capitais até então trazidos para estas bandas e impulsionou a vinda dos escravos da costa da África e se assenhoreou de terra boa e suficiente ao empreendimento ousado. Lançado na aventura açucareira, o colonizador português sabia que se tinha que entregar de corpo e alma à cana-de-açúcar, sob pena de fracassar em sua empresa E a cana se mostrou realmente capaz de dar muito lucro, mas de exigir também muita coisa em compensação. De exigir, como já dissemos, uma escravidão tremendamente dura, não só do homem mas também da terra ao seu serviço. Homem e terra que tiveram de se despojar de inúmeras prerrogativas para satisfazer o apetite desadorado da cana: o seu apetite insaciável de boas terras, bem preparadas e bem drenadas para o crescimento da planta. Já afirmou alguém, com razão, que a exploração da cana-de-açúcar se processa sempre num regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano que serviu de base à sua vida. E é a pura verdade. A história da

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economia canavieira no Nordeste, como em outras zonas de monocultura da cana, no mundo, tem sido sempre uma demonstração categórica desta capacidade que tem a cana de dar muito no princípio, para devorar tudo depois autofàgicamente. Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas do açúcar, com seu ciclo econômico típico, com uma rápida fase de ascensão e de esplendor transitório, e uma fase seguinte de irremediável decadência. Ciclo, este, que se processa tanto mais rapidamente quanto menores forem os recursos de terra disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre as diferentes áreas geográficas do açúcar no mundo, entre esta área do Nordeste do Brasil e Cuba, Haiti, Java, Porto Rico, Barbados. A ilha de Barbados, por sua limitada extensão, representou uma espécie de laboratório de sociologia experimental, onde se processaram com impressionante nitidez as sucessivas fases do ciclo da economia monocultora da cana, permitindo ao investigador analisar a fundo as reações-sociais intempestivas, que a introdução do cultivo da cana provocou na sociedade local. Vincent Harlow(3), que estudou a fundo a história desta ilha, mostra-nos como a princípio a colonização de Barbados se fizera à base da policultura, dividindo as suas terras em pequenas propriedades produtoras de algodão, tabaco, frutas cítricas, gado vacum e suíno e outros produtos de sustentação. Que, nessa primeira fase da sua história, compreendida entre 1625 e 1645, as condições de vida eram bem favoráveis na ilha, e a população de raça inglesa crescera bastante, subindo nas seguintes proporções: 1.400 habitantes em 1628, 6.000 em 1636 e 37.000 em 1643. Com o desenvolvimento da cana-de-açúcar, que se processou a partir dos meados do século XVII, aí transplantada pelos holandeses fugidos do Nordeste do Brasil, a policultura foi sendo asfixiada, as pequenas propriedades agrícolas engolidas pelo latifúndio açucareiro e as reservas alimentares da ilha ficando cada vez mais limitadas. Esta evolução econômica, tão desfavorável, provocou o êxodo em massa para outras terras, dos habitantes da raça branca. Começou então a descida da curva demográfica: em 1667 só havia 20.000 brancos na ilha, em 1786, 16.000, em 1807, 15.500, e atualmente cerca de 15.000. O braço escravo veio substituir o do branco, passando a constituir a base do trabalho agrário. Assim se desenvolveu em Barbados esta

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economia latifundiária, escravocrata, com esplendor fugaz, que durou de 1650 a 1685, entrando logo a seguir em decadência. Já nesta época, estava a ilha praticamente esgotada. Suas florestas, que a princípio eram tão densas que fora difícil achar espaço para a fundação da colônia(4), estavam inteiramente devastadas, com todas as culturas de sustentação estagnadas e o açúcar economicamente arruinado, por não ser mais possível produzi-lo a preços capazes de agüentar a terrível concorrência internacional.

Esta é a história do transitório ciclo do açúcar em Barbados, contada por Harlow e confirmada em seus traços mais característicos por outros historiadores idôneos. Em Jamaica, em Trinidad, em Cuba, e noutras antilhas açucareiras, o processo seguiu as mesmas diretrizes, apenas num ritmo menos acelerado, como se pode verificar através estudos dos historiadores da colonização inglesa e espanhola do Mar das Caraíbas(5).

Fizemos esta digressão acerca do processo evolutivo da economia açucareira em outras zonas, para pôr em evidência o fato de que a fraqueza do colono português diante do ímpeto avassalador da cana do Nordeste brasileiro não foi específica deste colonizador. Nenhum outro colono, nem o inglês de Barbados, nem o francês do Haiti, nem o espanhol de Cuba, pôde escapar à sua esmagadora prepotência. Ao contrário, deixaram-se todos dominar, sob certos aspectos, mais ainda do que o português do Nordeste. Porque, se na luta para adaptar-se ao meio tropical, o português cedeu com bastante plasticidade às contingências de certas forças naturais, soube também, por outro lado, escapar tecnicamente a muitas delas, através do uso inteligente de certos fatores de aclimatação, que os colonos de outras raças e de outras culturas não souberam manejar com tanta precisão, fracassando por isso em suas tentativas de levar a feito uma colonização de enraizamento em terras tropicais(8).

Deve-se, sem nenhuma dúvida, ao desenvolvimento da cana-de-açúcar, com todos os seus nocivos exageros de planta individualista, com sua hostilidade quase mórbida por outras espécies vegetais, uma grande parte do trabalho de enraizamento e de consolidação da colonização portuguesa nos trópicos, a qual já há cerca de um século, vinha ensaiando outros processos menos frutíferos, sem conseguir

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estabelecer nada de mais firme do que simples feitorias comerciais nas costas da África, da América e do Extremo Oriente.

O processo de transformação e de desvalorização que a cana realizou no Nordeste, começou pela destruição da floresta, que recobria praticamente toda a chamada Região da Mata, abrindo, com as queimadas, as clareiras para o seu cultivo e alargando depois essas clareiras par estender os seus canaviais sem fim. A destruição da floresta alcançou tal intensidade, e se processou em tal extensão, que nesta região, outrora chamada da mata do Nordeste, hoje restam apenas pequenos retalhos esfarrapados deste primitivo manto florestal. Com a destruição da floresta, contribuiu também a monocultura para o empobrecimento rápido e o esgotamento violento do solo, diminuindo de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da matéria orgânica vegetal, e de outro lado facilitando ao extremo, os processos de lavagem do solo e sua conseqüente erosão. Ward Shepard, antigo especialista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos(6), estudando o fenômeno da erosão no continente americano, aponta a área do Nordeste do Brasil como uma das mais sacrificadas, e sacrificada, principalmente, pelo cultivo intempestivo da cana-de-açúcar. De fato, despida do seu manto florestal, estas terras se deixaram facilmente arrastar pela ação erosiva das águas, desde que os pequenos rios que atravessam a região nordestina e que a princípio se haviam mostrado tão dóceis e serviçais, ajudando o colono a conquistar a terra e aí desenvolver a economia agrária da cana, logo que sentiram as suas margens desprotegidas de árvores pelo desflorestamento abusivo e despido de vegetação os seus vales, se transformaram da noite para o dia em rios devastadores, rios ladrões de terra, arrasando o solo úmido das planícies e levando com as águas das enxurradas, os elementos minerais e o húmus dissolvidos, transformando-se, enfim, num bárbaro fator de degradação da riqueza do solo. Não foi apenas degradando a riqueza do solo, fazendo minguar os recursos vegetais, que o desflorestamento se constitui num fator negativo para a região, mas também destruindo praticamente os recursos da fauna regional, cuja vida estava tão intimamente ligada à própria vida da floresta(7). Os recursos representados pelas caças que aí existiam em grande abundância nos primeiros tempos da

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colonização, praticamente desapareceram, desde que os animais foram afugentados pelas coivaras, se escondendo nas nesgas de mata cada vez mais ralas, mais limitadas, até quase se extinguirem de vez. O que é mais grave nesse complexo da cultura da cana em relação à alimentação regional, é que não foi apenas destruindo o que havia de aproveitável como alimento-riqueza da fauna, da flora e do próprio solo — que a cana foi prejudicial, mas também, e principalmente, dificultando e hostilizando em extremo a introdução de quaisquer outros recursos de subsistência que encontrariam nessas terras condições das mais propícias ao seu desenvolvimento.

Com estes dados que apresentamos, já não pode haver nenhuma dúvida de que foi realmente a monocultura da cana-de-açúcar, o principal fator de degradação do tipo de alimentação desta região. Tipo de alimentação que seria bem melhor se fosse possível aos colonos portugueses, que aportaram às costas do Nordeste brasileiro, manterem nessa área a tradição do regime alimentar das terras onde nasceram, do tipo de alimentação de Portugal, caracterizado, principalmente, por uma relativa riqueza e variedade de vegetais — de frutas, legumes e verduras — produtos do cultivo intensivo, fino e delicado da horta e do pomar, cultivo introduzido há séculos na Península Ibérica pelos invasores árabes e aí transmitido a portugueses e espanhóis. Infelizmente, esse tipo ibérico de alimentação, equilibrado e bem adaptado às condições da vida tropical, constituindo até certo ponto um verdadeiro fator técnico de aclimatação, não se pôde manter nas terras do Brasil.

O primeiro obstáculo à sua fixação nestas novas terras foi a impossibilidade de aí se encontrar ou se produzir o alimento básico da área alimentar do Mediterrâneo europeu de clima temperado, que é o trigo. Não dispondo do trigo, o português teve que substituí-lo no regime alimentar pela farinha de mandioca, alimento bem inferior sob o ponto de vista nutritivo, com um teor de proteína, de sais minerais e vitaminas, bem inferior ao do cereal europeu. Procurando-se ajustar às novas contingências naturais, o colonizador português, de início, incentivou não só o cultivo da mandioca, mas de outras plantas nativas que o índio cultivava, tais como o aipim, o amendoim, o ananás, e procurou introduzir no Nordeste outras plantas que sua experiência de

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conquistador de terras tropicais lhe fazia saber propícias ao novo quadro geográfico. Assim se fez no Nordeste uma tentativa de policultura, que deveria dar de sobra para manter num regime sadio, os primeiros colonos da terra de Santa Cruz. Mas como ocorreu em Barbados, a policultura iniciada tão promissoramente fora logo estancada pelo furor da monocultura da cana, as roças de mandioca abandonadas praticamente aos cuidados primitivos do indígena, sem o amparo e o interesse do colono; as plantações de frutas limitadas aos pequenos pomares, para uso exclusivo da família do senhor de engenho, e assim se desfez toda a influência benéfica que a cultura peninsular poderia ter trazido ao tipo de dieta do Nordeste do Brasil.

É verdade que o índio nativo procurou reagir a essa limitação, negando-se a colaborar na agricultura do açúcar, no plantio da cana para a fabricação deste produto de exportação. Mas faltava-lhe força para influenciar a formação da nova sociedade. A sua influência se limitou a esta resistência à pressão da monocultura, fugindo para a floresta e fazendo dela o seu reduto, e defendendo-a com arcos e flechas, moderando desta forma enquanto pôde, a expansão monocultora e suas funestas conseqüências.

Já os negros, trazidos da África e sentindo na sua própria carne os efeitos terríveis da fome, desde que já nos barcos negreiros em que eram conduzidos morriam em grande número de fome, procuraram reagir com mais eficácia contra a monotonia alimentar instituída na região pelos portugueses. Como povo de tradição agrícola, de um tipo de agricultura de sustentação, o negro trazido da África reagia contra a monocultura de forma bem mais efetiva do que o índio.

Desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas o seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho, sujando aqui e acolá o verde monótono dos canaviais com pequenas manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras da monotonia alimentar da região. Que o negro nunca perdeu este instinto policultor, este amor à terra e à agricultura de sustentação, apesar da brutalidade com que fora arrastado de sua terra, com todas as suas raízes culturais violentamente arrancadas, é o que podemos verificar através do estudo da organização econômico-social dos quilombos, isto é, dos núcleos de negros fugidos e escondidos no

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mato. Palmares, que foi o mais significativo dos núcleos de libertação negra da tirania monocultora, se apresenta como uma demonstração decisiva da absoluta integração do negro à natureza regional, aproveitando integralmente os seus recursos naturais, e desenvolvendo, a favor de suas possibilidades, novos recursos.

Na paisagem cultural de Palmares, com os traços naturais da terra tão bem ajustados às necessidades do homem, vamos encontrar um regime de policultura sistemática(8). Uma das principais atividades dos negros de Palmares era a agricultura de sustentação: agricultura de milho, de batata-doce, de mandioca, de banana, de feijão, e de outras plantas alimentares. Infelizmente, essa ação restauradora do negro também foi limitada, não adquirindo consistência e extensão, capazes de atuar decisivamente na economia alimentar da região, como aconteceu na ilha de Jamaica, por exemplo, onde o negro, rebelado contra a ganância dos plantadores, contribui para melhorar sensivelmente o regime alimentar da ilha.

No Brasil, a resistência dos índios abstencionistas e dos negros rebeldes dos quilombos, e mesmo a dos colonos brancos e mestiços, mais pobres, desprovidos de terra e desejosos de cultivá-la a seu modo, não deu para vencer a força opressiva do latifundiarismo, para vencer as proibições contra a agricultura de outras utilidades e a criação de qualquer espécie, contra as interdições estabelecidas nas cartas regias(9), e reforçadas ao máximo pela autoridade ilimitada dos senhores de engenho, onipotentes em seu regime de vida escravocrata e patriarcal. Homens com ciúme de suas terras maior do que de suas mulheres e horrorizados com o perigo de que essas terras se rebaixassem devassamente a produzir qualquer outra coisa que não fosse cana, qualquer coisa menos nobre, seja de origem índia, seja de origem negra: mandioca, milho, amendoim, feijão. Assim, subjugados pela forte pressão dos fatores de natureza econômica, cederam todos à influência da cana, e o complexo alimentar da região se fixou em torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, sem grandes exigências nem de solo, nem de clima, nem de mão de obra. Complexo da alimentação terrivelmente pobre, que arrastou a área do Nordeste açucareiro à condição de uma das zonas de mais acentuada subalimentação do país, mais do que isto, de zona realmente de fome e

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de fome crônica e endêmica. Em todos os tempos, os viajantes que por essas regiões passaram,

sempre se referiram à pobreza e à monotonia de sua alimentação. Através de escritos como o do Padre Fernão Cardim, das cartas do Padre Vieira, das impressões de viagem de ingleses e franceses, dos estudos com certo ar científico dos doutores da época e de outros documentos históricos, verifica-se a constante precariedade da alimentação regional, podendo-se concluir que, desde quase o início da colonização brasileira até hoje, a alimentação dessa área do Nordeste sempre fora de má qualidade.

O que não se sabia com exatidão era até que ponto essa alimentação defeituosa influía na saúde dos habitantes da região. Procurando esclarecer o assunto, levamos a efeito em 1932, um inquérito sobre as condições alimentares do povo dessa área, e seus resultados, confirmados por outros vários inquéritos posteriormente realizados, vieram provar que o regime alimentar do Nordeste açucareiro, era um regime de fome e era de fome que mais se morria no Nordeste: das conseqüências da fome crônica em que vivem há séculos as populações regionais. Sofre-se nessa região de todas as variedades de fomes específicas, de fomes parciais, de fomes ocultas. De fome de proteínas, de fome de sais minerais, de fome de vitaminas. Enumerar as várias espécies de fomes aí reinantes, seria um desfilar de contas de um interminável rosário, seria um nunca--acabar de doenças, de males, a serem exibidos. Por isso, apenas apresentamos algumas das formas de fome existentes na região: as formas mais graves, as mais extensas, as mais generalizadas. A primeira manifestação de fome nessa região é a deficiência ou insuficiência calórica da dieta.

Por sua conta decorre em grande parte a reduzida capacidade de trabalho dessa gente e, portanto, a sua limitada capacidade produtiva, desde que essa gente se cansa ao menor esforço, não sendo capaz de acompanhar o ritmo de trabalho do operário de outras regiões, de melhor tipo de alimentação, do sul do país, ou mesmo dos habitantes da zona do sertão. O sertanejo sempre se sentiu superior ao habitante do brejo, isto é, da área do açúcar, tachando-o de preguiçoso por sua menor capacidade de trabalho. Outra deficiência específica, e esta a

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mais grave de todas da dieta regional, é a sua carência permanente em proteínas — a falta de ácidos aminados em quantidades adequadas ao perfeito desenvolvimento e equilíbrio funcional do indivíduo. Não se poderia mesmo esperar a obtenção de um regime equilibrado em proteínas com uma alimentação quase que exclusivamente vegetal, à base de feijão e farinha. Com as proteínas incompletas do feijão e da farinha, que entram na composição do regime local. A primeira manifestação clara da carência protéica é o crescimento lento e precário do homem da bagaceira dos engenhos. São populações inteiras formadas de indivíduos de estatura abaixo do normal, evidenciando em sua constituição a carência crônica de proteínas no seu regime alimentar. Mas não se limitam apenas a uma estatura insuficiente as conseqüências das carências protéicas sobre essas populações esfomeadas. Todas as outras manifestações, até o próprio edema de fome, surgem na região, principalmente entre as crianças dessa zona do país. Das carências minerais, sem nenhuma dúvida, a mais generalizada e patente, é a carência de ferro que se manifesta sobre a forma de anemia alimentar. Anemia que faz dos habitantes dessa área uns tipos pálidos, chamados pejorativamente de amarelos pelos habitantes de outras zonas, principalmente pelos sertanejos de sangue mais rico, com melhores cores na cara, e que constitui um característico antropológico do homem da área do açúcar, com sua pobreza de hemoglobina por falta de ferro, e com seu sangue já ralo, espoliado também pela verminose e por outras parasitoses que são endêmicas nessa região. Para se ter uma idéia da freqüência desse tipo de anemia, basta referir os resultados de uma pesquisa levada a efeito entre os escolares numa capital do Nordeste e na qual foi encontrada uma percentagem de 40% das crianças com anemia declarada (10). Confirmando a origem alimentar dessa anemia estão os exames hematológicos realizados após o uso, durante quatro meses, de um complemento alimentar contendo ferro. A proporção dos anêmicos havia baixado de 40^ para 3%, apresentando-se a taxa de hemoglobina em 90% dos casos com um teor de 90-100%. Como conseqüência dessa fome crônica em ferro e certamente de outros elementos minerais, decorre a grande incidência nessa zona do fenômeno da geofagia, isto é, do hábito de comer terra, generalizado entre os

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meninos de engenho. Das avitaminoses, as mais comuns no Nordeste são a avitaminose A, sob a forma de xeroftalmias, que até hoje cega muita gente, e as avitaminoses do grupo B, entre as quais se destaca a pelagra.

Junte-se a estas manifestações específicas de fome, que são doenças típicas de carência, os estados lavrados, discretos, dissimulados de fome, e todas as suas conseqüências sobre a saúde física e mental dessas populações, e tem--se um balanço bem negativo da economia do açúcar nessa região. Porque a verdade é que a fome de que sofrem os habitantes dessa região do Nordeste não é produto de fatores naturais, mas exclusivamente de causas artificiais, todas oriundas do complexo econômico do latifúndio açucareiro, desse complexo econômico, introduzido no Brasil em 1534 com o regime das grandes capitanias de tipo feudal, instituídas por Dom João III de Portugal, e que se mantém neste país até hoje, como uma espécie de sobrevivência social. Não se pode negar que foram bem poucas as tentativas empreendidas para lutar contra esta situação de penúria alimentar da região.

A primeira destas tentativas foi feita pelos holandeses durante a sua ocupação nesta área, que durou do ano de 1629 ao de 1654. Os dirigentes holandeses da nova colônia — entre eles principalmente o Conde Maurício de Nassau, que aí chegou em 1637 — impressionou com a carestia dos gêneros alimentícios, baixou, um edital determinando o plantio obrigatório da mandioca em todos os engenhos de açúcar, lutando, assim, contra a monocultura avassalante da cana. Mas esse edital não teve maior significação social porque, em verdade, os holandeses nunca penetraram no interior do território brasileiro, permanecendo apenas nos centros urbanos do litoral, nos portos fortificados, de onde exportavam o açúcar a cargo da Companhia das índias Ocidentais, para a Europa. E não podiam desta forma influir grandemente na economia agrícola da região, fazendo mudar os hábitos e as regras da exportação do açúcar, conforme os haviam ditado sempre os senhores da terra. A ocupação holandesa passou e a fome continuou soberanamente plantada nas terras do Nordeste.

Outras tentativas de luta contra o regime de utilização das terras no

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Nordeste foram ainda mais efêmeras, porque não passaram da tentativas de revoluções, que fracassaram em suas origens, e o quadro da miséria alimentar perdurou até os nossos dias, apesar dos enormes progressos realizados na indústria do açúcar com a instalação das grandes usinas modernamente equipadas e apesar de todos os esforços do Governo Federal em ajudar a economia da região. Esta rápida análise das expressões e manifestações de fome do Nordeste serve para comprovar que Sorokin (11) tinha razão ao afirmar que a fome, como expressão de calamidade social, é raramente um produto de fatores naturais, sendo via de regra provocada por circunstâncias sócio-culturais que tornam a sociedade incapaz de obter com seu trabalho os necessários recursos alimentares. O que se verifica no Nordeste açucareiro é que a fome de que sofrem suas populações é produto exclusivo do seu tipo de organização econômica, da exploração econômica de tipo colonial, estabelecido sob o signo do feudalismo agrário em torno da monocultura do açúcar. A fome aparecendo como uma espécie de subproduto da economia da cana, e os famintos como uma forma de bagaço de sua estrutura social : o bagaço humano do latifúndio açucareiro.

Na área do sertão a fome se apresenta com características bem diferentes, refletindo outro complexo geo-econômico distinto do complexo do Nordeste açucareiro. Não se trata da fome atuando de maneira permanente, condicionada pelos hábitos da vida cotidiana, mas da fome apresentando-se episòdicamente em surtos epidêmicos. Surtos agudos de fome que surgem com as secas, intercalados ciclicamente com os períodos de relativa abundância que caracterizam a vida do sertanejo nas épocas de normalidade. As epidemias de fome dessas quadras calamitosas não se limitam, no entanto, aos aspectos discretos e toleráveis das fomes parciais, das carências específicas, encontradas nas outras áreas até agora estudadas. São epidemias de fome global quantitativa e qualitativa, alcançando com incrível violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e atingindo indistintamente a todos: ricos e pobres, fazendeiros abastados e trabalhadores do eito. Homens, mulheres e crianças, todos açoitados de maneira impiedosa pelo terrível flagelo das secas.

Na extensa zona semi-árida, que constitui o chamado "polígono

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das secas", vivem cerca de oito milhões de habitantes, num regime que tem como alimento básico o milho. É esta zona das secas uma área alimentar do milho. Do milho associado a outros produtos regionais, em combinações as mais das vezes felizes, permitindo que, fora das quadras dolorosas das secas, viva essa gente em perfeito equilíbrio alimentar, num estado de nutrição bastante satisfatório, e que nas épocas de calamidade possua energia e vigor suficientes para sobreviver em parte ao flagelo, evitando o despovoamento total da região.

Constitui a área do sertão do Nordeste um caso verdadeiramente excepcional, entre as diversas zonas de alimentação à base do milho, no mundo, todas elas áreas de fome, de graves deficiências alimentares, tais como a da América Central(12), com suas alarmantes carências de toda categoria, a do Sul dos Estados Unidos da América, com .suas populações negras assoladas pela pelagra, as da Itália e da Rumânia, grandes focos pelagrosos condicionados pela alimentação à base do milho. Verifica-se, assim, que, no mundo inteiro, as áreas do milho são áreas de miséria alimentar, à exceção da do sertão nordestino. É que, nesta área, o gênero de vida local, com seus hábitos tradicionais, condicionou nesta zona, um complexo alimentar em que as graves deficiências protéicas e vitamínicas do milho, são compensadas por outros componentes habituais da dieta.

Se o sertão do Nordeste não fosse exposto às secas periódicas, ou mesmo sofrendo esse flagelo, se a sua economia se tivesse consolidado de forma a garantir à sua população um poder aquisitivo razoável, estou certo que o .sertão do Nordeste não figuraria entre as áreas de fome do continente americano.

Infelizmente, as secas periódicas, desorganizando por completo a economia primaria da região, extinguindo as fontes naturais de vida, crestando as pastagens, dizimando o gado e arrasando as lavouras, reduzem o sertão a uma paisagem desértica, e seus habitantes, sempre desprovidos de reservas, ao estado de inanição. Morrendo de fome aguda ou escapando esfomeados, aos magotes, para outras zonas, fugindo atemorizados à morte que os dizimaria de vez, na terra devastada.

O característico fundamental desta extensa área geográfica é, como

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já vimos, o seu clima semi-árido. Clima tropical, seco, com chuvas escassas e principalmente irregulares. Toda a paisagem natural, a sua topografia, as características do seu solo, a fisionomia vegetal, a fauna, a economia e a vida social da região, tudo traz marcado, com uma nitidez inconfundível, a influência da falta d'água, da inconstância da água nessa região semidesértica. O solo arenoso, pouco espesso, quase sempre pobre em elementos nutritivos e rico em seixos rolados, é um produto dos extremos climáticos, dos largos períodos de exagerada insolação e dos aguaceiros intempestivos, desagregando as rochas areníticas e acelerando todos os processos de demolição que nelas se realizam. Mas, não é só deste tipo de solo de decomposição de arenito que é formada toda a capa agrológica da região. Em certos pontos, principalmente nas depressões e nos baixios, surgem manchas bem mais férteis de solos argilosos, mais ou menos vermelhos, ou mesmo de barro escuro, formando os tabuleiros aluvionais e as várzeas de tabuleiros (13). Nestes pontos, não só a composição mas as qualidades físico-químicas do solo são bem diferentes, tornando-os humíferos e férteis. São, porém, pequenas manchas limitadas.

Nos solos do sertão, desenvolvem-se tipos de vegetação que permitem aos geógrafos a caracterização de três subáreas climato-botânicas: a agreste, a caatinga e o alto sertão.

O agreste constitui uma faixa de transição entre o Nordeste semi-árido e espinhento e o outro Nordeste úmido e verdejante dos canaviais. Há sempre na paisagem dessa subárea a presença da água. Rios que não chegam a secar inteiramente no verão, mantendo sempre um magro filete de água ou empoçados em certos pontos do seu leito. A vegetação se organiza sob a forma de florestas espinhentas — scrub forests, —prolongando no solo semi-árido do sertão a mata da região úmida. Já a caatinga é o reino das cactáceas. No solo ríspido e seco estouram as coroas-de-frade e os mandacarus eriçados de espinhos. As árvores acocoradas em arbustos e as formações herbáceas completam a paisagem adusta da caatinga. É a zona de maior aridez do Nordeste, com seus rios transformados nas épocas secas em faixas de areia seca, os leitos ardentes expostos ao Sol. No alto sertão, o clima se ameniza levemente, a vegetação, do tipo de savana, se enfeita, em certas zonas,

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com as fitas verdes dos carnaubais, enlaçando os vales férteis da região. Rareiam um pouco as espécies espinhentas e as secas são menos impiedosas. Verifica-se, assim, que a caatinga é o verdadeiro coração do deserto. Aí se localizam os principais centros de aridez da região. Aí se apresenta a vegetação no máximo de sua agressividade e no máximo de sua convergente adaptação ao rigor climático, à extrema secura ambiente. O agreste e o alto sertão são formas atenuadas da caatinga(14).

Embora nas características de seu revestimento vivo, e mesmo em certos aspectos de sua geografia econômica, cada uma dessas subáreas apresente traços que lhes dão individualidade e impõe num estudo de geografia humana, uma análise particularizada, para os objetivos deste livro é perfeitamente dispensável a caracterização detalhada de cada uma dessas subáreas, desde que em todas elas o regime alimentar mantém a mesma unidade de hábitos e de composição, apenas com pequenas nuances locais, variações de amplitudes semelhantes às de quaisquer outras áreas alimentares de certa extensão. Sob o ponto de vista alimentar, podemos pois englobar, as três subáreas numa só: a área do milho do sertão nordestino.

A flora de toda a região é do tipo xerófito, adaptada aos rigores da secura ambiente: à falta d'água no solo e do vapor d'água se atmosfera. As espécies arbóreas reduzem seu porte, se arbustizam em postura nanicas para sobreviver. O frondoso cajueiro da praia — Anacardium occidentale — na caatinga adusta se inferioriza em arbusto, o cajuí do sertão — Anacardium humilis,— em cajueiro anão das chapadas arenosas. As folhas se reduzem ao mínimo para evitar a evaporação, os caules se impermeabilizam, as raízes se espalham em todas as direções para sugar a umidade escassa. Todos os órgãos da planta se aprestam nesta luta incessante contra a falta d'água. Às espécies que sobrevivem o fazem, ou à custa de uma economia rigorosa em seus gastos, ou à custa da formação de reservas aquosas nos bulbos, raízes e caules.

Entre as famílias que compõem a flora xerófita destacam-se as cactáceas, tais como as palmatórias, os mandacarus, os xiquexiques e os facheiros. Plantas dum valor inestimável na época das secas, ajudando a gente e o gado a escapar aos seus rigores mortíferos. Ao

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lado das ríspidas cactáceas, dando cor e característica à flora do sertão, estão as resistentes bromeliáceas, — as suas macambiras, croás e croatás, exibindo as lâminas recurvas e afiadas de suas folhas em sabre. Pertencem as cactáceas e as bromeliáceas a uma categoria especial de plantas chamadas, por Saint-Hilaire, de fontes-vegetais e por Bernardin de Saint-Pierre, de mananciais vegetais do deserto.

Nas zonas de solo mais espesso e menos árido surgem, ao lado das cactáceas, as leguminosas como as juremas e os angicos, as bignoniáceas e as anacardiáceas. Nas depressões úmidas, nas vargens viçosas crescem certas espécies de grande porte, como o juazeiro — Zizifus juazeiro — e o umbuzeiro — Spondias tuberosa, — que se levantam frondosos e altaneiros no meio da paisagem acachapada da savana adusta. São os correspondentes na caatinga brasileira dos baobabs e das acácias da savana africana (15).

Recobre o solo, nas épocas que se seguem às chuvas, o manto, em certas zonas contínuo e espesso, noutras um tanto ralo e esfarrapado, dos pastos naturais. É a babugem, formada pela associação de várias plantas, principalmente gramíneas, de ciclo vegetativo extremamente rápido, nascendo, crescendo e dando flor e sementes num abrir e fechar dos olhos. É esta vegetação rasteira que dá ao fenômeno da ressurreição da natureza nordestina após as chuvas, um signo de transformação sobrenatural, mudando a cor de toda a paisagem em alguns dias, assustando o viajante que um dia atravessou o deserto e poucos dias depois, voltando pelo mesmo caminho, se embevece em meio à verdura. A babugem é uma vegetação semelhante ao acheb saariano. Vegetação das regiões estepárias do Norte da África que Gauthier assim descreve: "o acheb não é uma planta determinada, é uma categoria de vegetais que possuem sua tática própria de luta contra a seca. Vegetais que sobrevivem por suas sementes cuja resistência à seca é de duração quase infinita. Quando cai a chuva o grão de acheb a utiliza com energia admirável. Em poucos dias ele germina, lança sua haste, cobre-se de flores e lança suas sementes. Ele sabe que não tem tempo a perder, está organizando para tirar todo partido da dádiva excepcional, pois o acheb morre depois de uma breve existência. Mas sua semente carregada pelo vento e recoberta pela areia, guardada nas anfractuosidades da rocha, esperará, se for

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preciso, dez anos por novas chuvas. São vegetais que sacrificam tudo pela reprodução, são verdadeiros buquês de flores. Este é o pasto que dá pena ver-se deglutido pela garganta dos camelos" (16).

A babugem do Nordeste é uma espécie de acheb, por conta do qual correm "as mutações de apoteose da paisagem", na linguagem sempre intensamente colorida de Euclides da Cunha.

Tais são, em síntese rápida, as características da flora sertaneja na peneplanície cristalina e nos chapados de pouca altitude. Nas montanhas mais altas, a maior pluviosidade e principalmente a estrutura diferente do solo dão origem a uma vegetação de aspecto doce, com tons de verde mais úmido e carregado. Vegetação higrófila, semelhante à das zonas do brejo(17). Nestas áreas, onde a altitude subverte o quadro climato-botânico da região, alteiam-se em capões outras espécies arbóreas, algumas delas frutíferas, como a mangaba — Hancornia speciosa, — o araçá — Psidium araçá, — cambuí — Myrciaria sphacrocarpa — espécie de uva silvestre, constituindo verdadeiros oásis de alta significação na vida econômico-social do sertão semi-deserto. São os oásis de verdura dos flancos das serras do Araripe, de Baturité, da Borborema, algumas delas com plantas européias bem aclimatadas na zona, produzindo uvas, pêssegos, melões e outros frutos de clima temperado, em plena área tropical.

Não exagerando a importância destes pequenos oásis, devemos concluir que a flora do sertão é bastante pobre em espécies que forneçam bons alimentos. Está longe de possuir uma riqueza tão espetacular em frutas como a do outro Nordeste, o Nordeste da mata tropical. Afora o umbuzeiro e o piquizeiro — sobre os quais voltaremos a falar com mais vagar — as plantas nativas do sertão produzem frutos de segunda classe, que nos tempos normais quase não despertam interesse ao apetite do sertanejo. As quixabas, os juás, os frutos dos cactos, dos xiquexiques, dos cardeiros, quase só são aproveitados nas terríveis épocas de seca, quando ,se come de tudo, tudo quanto é alimento brabo, sementes venenosas, cascas de árvores e até solado de alpercatas. As próprias palmeiras estão longe de apresentar uma riqueza nutritiva semelhante às da bacia amazônica. A carnaubeira — Copernicia cerífera, — que constitui a espécie de palmácea mais abundante no alto sertão, fornece tudo em abundância,

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menos alimento ao homem. Só nos maus tempos, a medula da planta nova, o palmito, é usado como recurso alimentar. É verdade que, conforme refere Euclides da Cunha, "com estrépitos da palmeira ouricuri — Cocus mucronata, — ralados e cozinhados, prepara-se nas épocas secas, uma espécie de pão, infelizmente de má qualidade, "pão sinistro", "o bró", que incha o ventre num enfarte ilusório, empanzinando o faminto" (18).

Também a fauna do sertão fornece poucos recursos alimentares. Os rios e os próprios açudes, hoje bastante disseminados na região, têm as suas águas bem mais pobres em peixes do que as da zona da mata. É que a evaporação violenta neste clima abrasador e a irregularidade das chuvas, fazendo variar com certa rapidez e em graus extremos a salinidade das águas, torna-as pouco propícias à vida das espécies aquáticas. Só os rios perenes como o São Francisco, mantêm apreciável riqueza piscícola em suas águas. A fauna terrestre está também longe de fornecer grande auxílio alimentar. Se não possui carnívoros de grande porte, que ponham em perigo a vida humana na região, possui, no entanto, alguns animais de rapina, como raposas, gaviões, caracarás, que disputam ao homem alguns dos recursos mais importantes da fauna comestível desta zona. Não só da selvagem, mas também da doméstica, das suas criações de galinha, cabras e ovelhas.

As aves são relativamente numerosas, principalmente os psitacídeos — periquitos, jandaias e papagaios — e certos tipos de pombas, das quais devemos destacar, por seu valor econômico, as aves de arribação, que viajam em enormes bandos em migrações periódicas, fornecendo ao sertanejo, em certas quadras, valioso subsídio alimentar.

A riqueza em aves desta região de poucos recursos alimentares se explica por esta capacidade migratória de todas elas, capacidade que se desenvolveu como fenômeno de convergência, permitindo a sua adaptação num meio de exigüidade alimentar através da intensiva mobilidade do animal.

Diante destas parcas reservas e das condições pouco atrativas da paisagem, que possibilidades viram nessa região os seus primeiros desbravadores? Foi o espírito de aventura, o instinto de liberdade, de que nos fala Capistrano de Abreu, e a ambição do ouro e das pedras

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preciosas que levaram os primeiros aventureiros europeus a terras tão distantes do litoral. Verificada, porém, a inexistência das minas no sertão nordestino e a pouca serventia das suas terras para uma agricultura de grande rendimento, como se praticava na zona da mata, cedo se desviou a atividade do colono sertanejo para a pecuária. Para a criação do gado vindo de Portugal ou do Arquipélago do Cabo Verde, o qual se aclimatava muito bem neste ar seco e saudável e se desenvolvia maravilhosamente nas suas pastagens naturais, formadas de variadas espécies de gramíneas.

Loreto Couto, nos Desagrados do Brasil, assim nos informa: "Treze gêneros se contam de erva que servem de pasto aos animais, por cuja bondade é em Pernambuco tão grande a cota de gado vacum e cavalar, que destes consumindo-se infinitos nos serviços destas Capitanias, saem para fora todos os anos mais de 40.000, são ligeiros na carreira, dóceis ao ensino e tão forte no trabalho que saindo de Pernambuco para Minas Gerais com a carga de 6 arrobas andam 600 léguas desferrados e chegam sem diminuição nos alentos". Vê-se, assim, que as condições propícias à criação desenvolveram no Nordeste as fazendas, não só de gado vacum, mas de cavalos e mulas que constituíam o meio de transporte único através da selva inóspita. Entrando por Pernambuco, o gado se espalhou em currais pelo sertão do Nordeste, fazendo-se as entradas pelas estradas naturais dos rios, principalmente através do São Francisco, a grande artéria viva do ciclo econômico do couro no Nordeste (19).

O grande mercado de bois em que cedo se constitui a zona da mata, tão necessitada de sua força de tração para os trabalhos dos engenhos e, bem assim, de sua carne apetitosa para alimentação de populações cada vez mais densas e mais absorvidas no exclusivo trabalho do açúcar, foi um dos motivos impulsionadores da pecuária no alto sertão. Outro impulso decisivo lhe foi dado a seguir pelo surto de mineração dos estados centrais. Vinham do Nordeste pelos caminhos dos currais, os bois que deveriam alimentar as populações repentinamente concentradas nos campos de mineração do Sul. Nessas zonas de mineração faltava tudo e importava-se de outras áreas os recursos alimentares de toda ordem. "A não ser o porco, que vive intimamente legado à cozinha ou à couve, que cresce abandonado no

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quintal atrás da casa, compra-se fora tudo o que é necessário à economia doméstica. A família mineira não vive na fartura. Os comerciantes a exploram vendendo gêneros a preços exorbitantes e o senhor da lavra, absorvido inteiramente pelas minerações, imaginando que o ouro dá de sobra para tudo, submete-se às exigências dos mascates." — assim nos informa Miran Latif, em As Minas Gerais. Completando este quadro da falta de recursos alimentares nas zonas mineradoras, escreve Paulo Prado: "No,s primeiros tempos das descobertas um boi chegou a valer 100 oitavas de ouro em pó, um alqueire de farinha, 40. A situação só melhorou quando chegaram as boiadas de Curitiba e ao Rio das Velhas o rebanho dos campos baianos." (20) Tal miséria alimentar, com preços tão exorbitantes dos alimentos na zona de mineração, documenta mais uma vez as graves conseqüências a que foram arrastadas as coletividades brasileiras pelas diferentes formas de exploração econômica que sucessivamente foram estabelecidas no país, todas elas indiferentes ao amparo e ao desenvolvimento sistemático dos cultivos de subsistência. Como no drama da Califórnia, o pioneiro Sutter(12), possuidor de riquíssimas terras, cobertas de lavoura e de cabeças de gado, se arruinara por completo ao encontrar nos seus domínios riquíssima mina de ouro, também no Brasil o ouro empobrecia o país e "morria-se de inanição ao lado de montes de ouro pelo abandono da cultura e da criação." Com dois mercados — o Nordeste açucareiro e o Sul minerador — a disputarem com avidez o produto, o sertão nordestino prosperou à custa dos ótimos preços encontrados para o gado. E não foi só para o gado vacum a que se mostrou tão propício o meio ambiente, mas também, e principalmente, para o gado caprino, mais resistente aos assaltos da seca e muito menos exigente de bons pastos, se acomodando a qualquer vegetação de serrotes e de lajedos, formada de duras gramíneas, ou mesmo à vegetação arbórea a arbustiva, da qual ele come as cascas e os caules ou as folhas. Esta a razão que fez do Nordeste o grande centro de criação de cabras, concentrando-se nos Estados de Pernambuco e da Bahia mais de 50 dos rebanhos caprinos de todo o país.

De tal forma as cabras se desenvolveram e se integraram no quadro ecológico da região, que vêm contribuindo como um

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verdadeiro fator geográfico para modificar a fisionomia botânica da mesma. O botânico Loefgren, estudando a devastação das árvores e das matas nas terras do Ceará, atribui papel importante nesta degradação vegetal às cabras soltas na região: "Um outro fator não desprezível na devastação das matas, ou pelo menos para conservar a vegetação em estado de capoeiras são as cabras. Sabe-se como este animal é daninho para a vegetação arborescente e arbustiva e como a criação de cabras soltas no Ceará é, talvez maior que o do gado, sendo fácil imaginar-se o dano que causa à vegetação alta" (22). Desfavorável à vegetação, foi a criação de cabras, no entanto, muito favorável à alimentação regional, pois tanto a sua carne como o seu leite são consumidos, na quase totalidade nos mercados locais.

Na contínua expansão dos seus currais, da qual nos legaram preciosa documentação Fernão Cardim e Antonil, não se deixou o sertanejo absorver numa atividade exclusivista que seria extremamente nociva à sua vida econômica: na pura criação. Não encontrando na Zona da Mata, para onde enviava a maior parte dos seus bois, possibilidades de abastecimento adequado e seguro para suas necessidades alimentares, e sendo distantes e difíceis os caminhos noutra direção, ele teve que se dedicar um pouco ao plantio de certos gêneros de sustentação para o seu auto-abastecimento. Fez-se, assim numa saudável atuação colonizadora, vaqueiro e agricultor ao mesmo tempo.

Não se constituiu o sertanejo, de início, num agricultor de produtos de exportação, para fins comerciais, como se praticava nas terras do litoral, mas um plantador de produtos de sustentação para seu próprio consumo. Um semeador, em pequena escala, de milho, feijão, fava, mandioca, batata-doce, abóbora e maxixe, plantados nos vales mais humosos, nos baixios, nos terrenos de vazante, como culturas de horta e jardim. Pequenas boladas de verdura que os senhores de engenho do brejo, plantadores de extensíssimos canaviais sempre olharam com desdém, chamando depreciativamente a este tipo de policultura do sertanejo, de "roça de matuto". Roças de matuto diante das quais o homem do açúcar torcia o nariz de grande senhor agrário, e que, entretanto, vieram a constituir um magnífico elemento de valorização das condições de vida regional, de diversificação do regime alimentar

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do sertanejo, bem superior em épocas normais, ao da área da cana. À base da criação de gado e da agricultura de sustentação e de

certos recursos um tanto escassos do meio ambiente — da caça e da pesca — o sertanejo, usando métodos de preparo e de cozinha aprendidos de outro continente, adaptando, até certo ponto, criou um tipo de alimentação característico. Alimentação sóbria, porém bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades básicas de sua vida.

Vejamos quais as características desse regime de alimentação. Não dispomos de documentação abundante acerca dos hábitos alimentares do sertanejo, principalmente documentação com rigor científico, encarando o problema à luz dos atuais conhecimentos da nutrologia. Os inquéritos alimentares levados a feito na região são pouco numerosos e quase que se limitam ao de Orlando Parahim (23), realizados em 1939 no município de Salgueiro, no alto sertão de Pernambuco, bem no centro geográfico da grande área assolada pelas secas, ao de José Guimarães Duque(24), realizado em 1936, entre famílias do posto agrícola de São Gonçalo e ao de Trajano Pires da Nóbrega (25), que estudou em 1941 as condições econômico-sociais dos municípios de Itaparica e Floresta, às margens do São Francisco.

O estudo da cozinha, da elaboração culinária no sertão, também não tem atraído a atenção dos comentaristas, desde que ela tem sido ofuscada em seus gostos moderados e em seu paladar comedido pelo esplendor tão comentado e tão exaltado da cozinha do litoral. Afora alguns comentários inteligentes deste incansável esquadrinhador do folclore nordestino, Luís da Câmara Cascudo (26), existe muito pouca coisa de valor com referência às tradições culinárias e ao estilo da cozinha da região.

Baseados nos resultados dos inquéritos mencionados e nas referências encontradas na bibliografia sobre os sertões nordestinos e em observações diretas que fizemos em viagens pelo interior de Pernambuco e da Paraíba, vamos tentar um levantamento do mapa alimentar do sertão, dos hábitos tradicionais da alimentação da gente sertaneja.

Já vimos que o componente fundamental de sua dieta é o milho,

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alimento muito incompleto, com falhas graves por seu baixo teor protéico, com deficiências desta sua proteína em ácidos aminados indispensáveis, com sua pobreza relativa de sais minerais e de certas vitaminas. Enfim, alimento tão pobre, que nas zonas ricas, onde o homem dispõe de outros recursos nutritivos, é ele abandonado à alimentação do gado. É o caso do corn-belt norte-americano, onde a maior produção de milho do mundo é em 90% do seu consumo total utilizada na alimentação animal, reservando-se apenas 10% para a alimentação humana (27). Em áreas mais pobres, nas quais o milho é usado como fornecedor de proteínas e vitaminas, seja quase puro, com um exclusivismo de conseqüências funestas como no México(28), seja misturado com outros alimentos incompletos como em Cuba (29), associado ao feijão, surgem sempre manifestações carenciais entre as populações assim alimentadas, evidenciando sérias deficiências do seu equilíbrio nutritivo.

No sertão nordestino escapam as populações a esta sorte porque o milho, embora seja o alimento básico, consumido quase que pela totalidade de seus habitantes e em quantidades relativamente altas (204 g diárias per capita, na cidade de Salgueiro, segundo inquérito de O. Parahim) e mais ainda em plena zona rural, não constitui no entanto, a fonte obrigatória nem de proteínas, nem de vitaminas, nem de sais minerais do sertanejo. Mas apenas a sua base calórica, o fornecedor do grosso do total energético de sua ração, ficando o fornecimento dos outros princípios alimentares a cargo de outras substâncias.

Usado sob as mais variadas formas, como angu, canjica, cuscuz(30), o milho é quase sempre consumido juntamente com o leite, numa combinação muito feliz, completando a caseína do leite as deficiências em aminoácidos da zeína do milho.

O cuscuz é um prato típico da cozinha sertaneja, cuja técnica de preparo constitui uma simples variante dos processos árabes de fabricação de seu prato nacional — o kous-kous. Apenas, em lugar do grão de trigo, usa-se o de milho pilado, no Nordeste como na Arábia, num pilão especial. Para se ver até que ponto o milho pilado em casa representa um traço definitivamente integrado no complexo cultural da região, basta dizer que o sertanejo, mesmo dispondo das farinhas e

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xeréns de milho já preparados, não abre mão dos seus métodos tradicionais de preparo caseiro do grão. Conta Orlando Parahim que, tendo um industrial de Salgueiro, aberto uma refinaria de milho para preparo de variados tipos de farinha, teve que fechar sua indústria "porque o caatingueiro preferiu sempre fazer o cuscuz com milho batido no ,seu pilão em domicílio" (31). Felizmente, na preparação do milho, para pilá-lo não usa o nordestino o nocivo processo de acrescentar-lhe cal, como na área do México, destruindo esse meio alcalino a maior parte da riqueza vitamínica que o milho possa conter.

Em experiências que levamos a efeito no Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, acerca do valor nutritivo da mistura do milho com leite, ficou demonstrado de maneira categórica o fato surpreendente de que ratos alimentados com esta mistura apresentavam um desenvolvimento superior aos dos animais que dispunham de uma dieta cuja fonte de proteínas era exclusivamente o leite. Demonstraram, assim, estas experiências que as proteínas do milho e do leite em conjunto possuem um valor biológico superior ao do próprio leite(32).

E não é só com milho que se consome leite em abundância no sertão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturado com café de manhãzinha, ou como coalhada fresca ou escorrida, ou sob a forma de derivados, manteiga ou queijo. Principalmente manteiga fresca e requeijão, tipo de queijo gordo de que os sertanejos fazem largo uso, cru ou assado. Em nenhuma outra zona do país, mesmo no Sul e no Centro-Oeste, onde os rebanhos de gado são bem mais abundantes, o leite constitui um alimento tão constante da dieta, entrando em preparo de tantas combinações alimentares, como no Nordeste pastoril. É que nas zonas de criação do Sul, o leite, produzido em muito maior escala, constitui um produto comercial para o abastecimento das cidades populosas, ligadas às áreas de criação por fáceis meios de transporte.

Já no Nordeste, a quase inexistência de comunicações práticas com as grandes cidades do litoral afastou sempre o leite sertanejo dos mercados urbanos. O leite, a manteiga e o queijo do sertão ficaram sendo até hoje produtos de consumo local, elementos integrantes da dieta do sertanejo. Das duas refeições matinais, de angu e cuscuz com

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leite; dos seus pratos de fôlego — carne com abóbora e leite — e até de suas sobremesas, como a sua célebre umbuzada, preparada com leite e umbus bem maduros numa combinação de excepcional valor nutritivo, extraordinariamente rica em proteínas e vitaminas, lembrando a associação admirável de leite e tâmaras de que fazem uso os nômades do deserto saariano, os quais se apresentam, por conta de sua dieta, com uma compleição superior a todos os povos da Europa(33).

Além do leite, tem o sertanejo uma fonte liberal de proteínas na carne. Carne de boi, carne de carneiro e, principalmente, carne de cabrito, que constitui o grosso do consumo da região. Abatendo o seu gado para alimentar-se, o sertanejo come, no dia da matança, as vísceras e partes mais perecíveis em famosas buchadas(34) e paneladas, reservando para outros dias a carne dos músculos, fresca ou seca como charque ou secada ao sol e ao vento. Este último processo de preparação constitui o método mais usual no sertão, para conservação da carne: o preparo da carne-de-sol ou de-vento. Da carne secada ao sol no mais primitivo dos processos de desidratação, o qual só dá resultado satisfatório em climas de pouca umidade atmosférica. Processo importado do reino e também aprendido dos habitantes do deserto. Esta carne-de-sol e o charque são usados de várias maneiras, sendo a mais comum pelos vaqueiros nas suas lidas, sob a forma de paçoca, ou seja, de carne moída, pilada e misturada com farinha de mandioca torrada e temperada. Constitui este prato um dos poucos traços da influência nitidamente indígena na cozinha do matuto. Se o índio contribuiu com uma boa dose de sangue para formação da raça sertaneja, pouco trouxe como contribuição aos hábitos alimentares dessa zona.

Embora a quantidade de carne consumida pelo vaqueiro do Nordeste não seja muito grande, estando longe de alcançar a liberalidade e muitas vezes o exagero do uso dos vaqueiros dos pampas — do gaúcho — o seu consumo é, contudo, generalizado por todas as populações do sertão.

Além do milho, do leite e da carne, fazem habitualmente parte da alimentação do sertanejo, o feijão, a farinha, a batata-doce, o inhame, a rapadura e o café. O feijão, embora em menor proporção do que o

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milho, é largamente usado em suas diversas variedades — de arrancar, de rama e de corda, principalmente do tipo macassar, reforçando o total protéico da ração, embora com proteína incompleta (35). A batata-doce colabora com o milho no perfazer o total energético, .substituindo o pão, de uso muito limitado na região sertaneja(36).

Constituem falha visível da alimentação do sertanejo a pobreza e irregularidade em que as frutas participam do seu regime habitual. Já vimos como a flora nativa é exígua em frutas, e o sertanejo, sob a ameaça das secas periódicas, não se tem animado a desenvolver a pomicultura. Não que o solo e o clima sejam obstáculos realmente intransponíveis a esse gênero de agricultura. Mas porque o risco de perder o trabalho é maior neste tipo de plantação, que exige largos anos para a colheita, do que nos tipos de cultura de colheita rápida — do milho, da mandioca e do feijão.

Provando que o meio ecológico permite a fruticultura com rendimentos compensadores, estão os resultados obtidos pelas estações agrícolas experimentais da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. As tentativas de fruticultura realizadas nas terras irrigadas pelos grandes açudes têm surpreendido aos próprios técnicos encarregados deste Serviço.

Infelizmente, estes ensaios de fruticultura estão ainda limitados à escala experimental e até hoje "no sertão do Nordeste somente existe produção de cereais, verduras e frutas junto aos açudes, e sendo esta produção ainda pequena, exclusivamente as populações desses núcleos são beneficiadas", conforme afirma o antigo técnico da Inspetoria das Secas, José Guimarães Duque.

Sem cultivo de plantas frutíferas, resta ao sertanejo o recurso bem limitado das frutas silvestres — do umbu, do piqui, do quibá, da cajarana e da quixaba. A escassez de boas frutas criou, por mecanismo que já explicamos, tremendos tabus contra as mesmas, e assim se constituiu um novo obstáculo ao consumo liberal de frutas por parte do sertanejo. Frutas só de manhã, de tarde dá sezões e maleita. De noite chega a matar. O consumo de verduras é também limitado à abóbora — Cucurbita máxima — ao maxixe — Cucumis anguria — e às cebolinhas e coentros usados como tempero.

Caracterizada em seus principais componentes a alimentação do

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sertanejo e conhecida a sua relativa abundância em certos alimentos protetores, como o leite e a carne, bem assim a sua pobreza evidente em outros, como as frutas e as verduras, passaremos agora a analisar este regime como um todo unitário, que abastece o homem do sertão nos princípios nutritivos de que ele necessita para sobreviver.

A verdade fácil de se apreender é que esta alimentação tão sóbria e tão enxuta, de tão espartana sobriedade, contrastando violentamente, na simplicidade de seus processos culinários, com a rebuscada cozinha do Nordeste açucareiro, sempre tão adocicada ou lambuzada de azeite, representa um traço de alta compreensão do colono português e do mameluco seu descendente em face das contingências especiais do meio geográfico. Colono que, sempre que a cobiça exagerada não lhe vinha turvar os propósitos de vida, se apresentava com uma aguda capacidade de compreender e de contornar as exigências mais tenazes e as necessidades mais prementes à sua boa adaptação ambiente. Sua sobriedade alimentar, no caso, longe de significar miséria e decadência, traduz uma sábia aplicação de economia biológica.

As características da alimentação sertaneja, um tanto magra e despida de qualquer excesso de tempero, harmonizam-se admiràvelmente com os traços naturais da terra também magra dos sertões nordestinos. Por outro lado, o seu preparo simples, desnaturalizando ao mínimo os alimentos, criando combinações de admirável primitivismo, como a da abóbora com leite, do queijo com rapadura, da batata-doce com café, representa um traço quase que obrigatório das cozinhas de todos os povos nômades ou seminômades(37), condenados a reduzir os seus utensílios de cozinha ao pouco que se possa enrolar dentro de uma tenda ou de uma rede, ou da matulagem do retirante, do tange-dor de gado, do bandoleiro ou do cangaceiro itinerante.

O regime alimentar do sertanejo, embora na aparência pouco abundante, alcança alto potencial energético, graças às doses liberais em que entram o milho, a batata-doce e a manteiga. É bem verdade que nem sempre obtêm estes ascéticos vaqueiros um tal teor calórico em sua ração e mais raramente ainda dispõem de um excesso de energia alimentar que se possa acumular sobre a forma de reserva, de depósito de gordura e de glicogênio, que seriam de inestimável valor

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na época difícil das "vacas magras". É esta mesma parcimônia calórica e sem margem de luxo que faz do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes enxutas, sem arredondamentos de tecidos adiposos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, à obesidade e ao diabete, doenças essas provocadas, muitas vezes, por excesso alimentar. O tipo característico do sertanejo é o atlético. Não o do atleta de capa de revista, nem de herói de fita de cinema, atraindo os olhares femininos com suas formas apolíneas, mas o do atleta fisiológico, com o seu sistema neuromuscular equilibrado, com bastante força e agilidade e com excepcional resistência, nos momentos oportunos.

Este tipo constitucional do sertanejo é característico da maioria dos povos pastores, todos de vida frugal e de grande atividade física. Veja-se a descrição que nas dá Bulnes(38) do tipo do pastor árabe: "O árabe é rude como a areia, ensimesmado como o deserto, seco e esbelto como a palmeira, amargo e nobre como o seu café e quase desprovido de gordura, por viver submetido a dois fogos: o do Sol e o do solo".

Chega-se, assim, à conclusão de que vive o sertanejo à base de um regime que se apresenta quantitativamente suficiente para suas necessidades básicas, sem sobras, sem margem para excessos. Se isto não é o ideal, constitui, contudo, nas contingências especiais do meio, uma circunstância mais favorável do que se fosse este um regime excessivo em teor energético à custa de hidrocarbonados que não se fizessem acompanhar das vitaminas necessárias à sua perfeita metabolização. A frugalidade se ajusta sabiamente dentro do equilíbrio alimentar, sendo que os excessos são muitas vezes mais prejudiciais do que as próprias deficiências.

Qualitativamente, é este um regime sem falhas graves. Já vimos que o teor de proteínas é relativamente alto e subscrito em boa parte por várias espécies de proteínas completas: da carne, do leite e do queijo. O teor protéico liberal, associado a boas doses de vitaminas fornecidas ao sertanejo pelo leite e pela manteiga, constitui um dos fatores do seu crescimento proporcional, da boa estatura da população e da polarização do biótipo numa tendência acentuada à longitipia, ao aparecimento dos tipos longilíneos, em contraste marcante com a tendência das populações do brejo para os tipos brevilíneos(39). Não queremos dizer com isto que seja a alimentação o fator único desta

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seletiva diferenciação dos longetipos no sertão nordestino. Outros fatores trabalharam no mesmo sentido, sobressaindo entre eles os de base hereditária: a influência ancestral dos colonizadores da região, que, na qualidade de desbravadores e pioneiros, devem ter sido, em acentuada maioria, desse tipo constitucional a cujo painel morfológico se associa quase sempre a psicologia do aventureiro. "Foi o longilíneo astênico que colonizou o sertão, e a ele coube a tarefa ingente de dilatar e integrar o território nacional. O brevilíneo parou na zona agrária para trabalhar; o longilíneo aventureiro e idealista varou o sertão", concluem Álvaro Ferraz e Andrade Lima Júnior, em seu bem planejado ensaio sobre a diferenciação do biótipo do Nordeste.

É alimentação bem servida de proteínas que dá ao sertanejo essa resistência um tanto impressionante para os habitantes de outras zonas do país (40). Na carne de bode, no leite e no queijo do sertão, estão em boa parte as justificativas biológicas que respaldam a hoje famosa frase de Euclides da Cunha, que "o sertanejo é, antes de tudo, um forte". Realmente, só um povo forte pode "exibir esta força, esta resistência surpreendente às fadigas e às vicissitudes mais exarcebadoras, esta disposição incansável ao trabalho, esta constituição férrea que o torna sobranceiro às intempéries, aos reveses, às endemias, e o leva com freqüência a cometimentos titânicos"(41).

O equilíbrio profético alimentar deve entrar como importante fator na maior resistência que manifesta o sertanejo em face das doenças infectuosas, principalmente em face da tuberculose, que aí se apresenta muito menos destrutiva do que nas zonas da mata e do litoral.

E assim se completa a análise da dieta do sertanejo em tempos normais. Dieta que, sem ser nenhuma maravilha de perfeição e abundância, está, no entanto, muito acima do que era de esperar de um meio aparentemente tão pobre, tão pouco dadivoso. Dieta que pelo menos se mostra eficiente para evitar o aparecimento das carências endêmicas de toda natureza e para dar ao sertanejo esta fibra desadorada de lutador, capaz de enfrentar impávido o tremendo fatalismo climático das secas.

A verdade é que, com chuvas regulares, com as águas

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transbordando das margens dos seus rios e fecundando suas terras trabalhadoras, o sertanejo vive mesmo uma época de abundância e de fartura.

Com as secas desorganiza-se completamente a economia regional e instala-se a fome no sertão. Os seus efeitos sempre desastrosos são de amplitude variável, conforme se trate de uma seca parcial, limitada à pequena área, ou uma grande seca abrangendo considerável extensão, ou, finalmente, de uma seca que excepcionalmente atinja todo o sertão em bloco.

A trágica história destes cataclismos periódicos, deste calendário de calamidades, tem sido registrada por grandes escritores brasileiros, desde um Euclides da Cunha, condensando em quadros de fulgurante beleza todos os horrores indescritíveis da seca, a um Felipe Guerra com as tétricas descrições de detalhes macabros acerca desta heróica epopéia dos nordestinos. Tomás Pompeu, Rodolfo Teófilo, Ildefonso Albano, José Américo de Almeida, Raquel de Queiroz, Alceu de Lellis, Clodomiro Pereira e tantos outros nos apresentaram em páginas de intenso realismo o excruciante espetáculo de fome e de miséria. Não vamos repisar no presente ensaio estas cenas tão bem conhecidas no país e mesmo no mundo, que a palavra Nordeste evoca quase sempre o espetáculo das secas e dos flagelados: o espetáculo de um povo sempre em fuga, em busca da terra da promissão.

Destes estudos e relatos apenas utilizaremos o essencial, para compreensão de como se instala a fome no sertão nestas épocas calamitosas. Para o estudo de suas principais manifestações e de suas conseqüências mais marcantes sobre o estado físico e mental dessa gente: sobre sua vida orgânica e sobre sua vida cultural.

Nestes sinistros períodos em que o clima se nega a regar com chuvas benfazejas o solo adusto da caatinga, toda a vida regional se vai exaurindo da superfície da terra.

O despovoamento da região resulta do fato de que, não só os animais domésticos como os que fazem parte da fauna nativa emigram, ou são em sua maior parte dizimados nas épocas de secas prolongadas. Von Spix e Von Martius(42), atravessando o sertão baiano numa destas quadras secas, admiraram-se da desolação da paisagem regional, quase isenta de vida: "a fauna parecia ter

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completamente abandonado este deserto adusto. Só observamos e movimentação nas casas de cupim, de forma cônica, tendo às vezes até cinco pés de altura. Aves e mamíferos pareciam ter emigrado para regiões mais ricas de água."

As culturas desaparecem dos roçados com as sementes enterradas na poeira esturricada, ou com as plantas tenras dessecadas pela soalheira. O pasto seco se esfarinha e é arrastado pelos ventos quentes, ficando o gado à míngua de água e de alimentos. Recorre o vaqueiro ao recurso das ramas e dos cactos, queimando os espinhos dos mandacarus e dos facheiros e picando os seus gomos a facão para evitar a extinção imediata dos rebanhos.

As próprias reses esfomeadas procuram arrancar com os cascos e com as bocas sangrando os espinhos dos cactos aquosos que lhe mitiguem por um momento a fome e a sede(43).

Não dura, porém, muito que o gado se deixe aniquilar pela morrinha, pela inanição e pelas pestes, e comece a entrevar, a cair e a morrer como moscas. Os pátios das fazendas vão ficando coalhados de cadáveres, transformando-se as campinas em pouco tempo em grandes ossários, com as carcaças alvejando na amplitude cinzenta dos chapadões descampados.

Golpeado a fundo pelo cataclismo, com suas fontes de produção estagnadas, o sertanejo quase sempre desprovido de reservas cai imediatamente num regime de subalimentação. Começa por limitar a quantidade de sua ração e a variedade de seus componentes. A sua dieta nesta fase se reduz logo a um pouco de milho, de feijão, de farinha. Mas se a seca persiste, estes poucos gêneros desaparecem do mercado, ficando o sertanejo reduzido aos recursos das "iguarias bárbaras", das "comidas brabas" — raízes, sementes e frutos silvestres de plantas incrivelmente resistentes à dessecação do meio ambiente.

Fazem parte desta dieta forçada dos flagelados pela seca inúmeras substâncias bem pouco propícias à alimentação, das quais os habitantes de outras zonas do país nunca ouviram falar que fossem alimentos. Substâncias de sabor estranho, algumas tóxicas, outras irritantes, poucas possuindo qualidades outras além da de enganar por mais algumas horas a fome devoradora, enchendo o saco do estômago com um pouco de celulose. "Esgotados os recursos naturais de

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alimentação, tangidos pela fome, esses infelizes se atiram aos últimos recursos vegetais, em geral impróprios à alimentação, ricos apenas de celulose, por vezes mesmo, tóxicos, tais como a mucunã e a macambira, que tantos casos fatais ocasionaram nas secas passadas e que agora mesmo alguns produzem", escreveu Amadeu Fialho no ,seu Relatório sobre a Seca de 1932.

Do cardápio extravagante do sertão faminto fazem parte as seguintes iguarias bárbaras: farinha de macambira, de xiquexique, de parreira brava, de macaúba e de mucunã; palmito de carnaúba nova, chamada de guandu, raízes de umbuzeiro, de pau-pedra, de serrote ou de mocó, maniçoba e maniçobinha; sementes de fava-brava, de manjerioba, de mucunã; beijus de catolé, de gravata e de macambira mansa.

Quando o sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é que o martírio da seca já vai longe e que ,sua miséria já atingiu os limites de sua resistência orgânica. É a última etapa de sua permanência na terra desolada, antes de se fazer retirante e descer aos magotes em busca de outras menos castigadas pela inclemência do clima.

Realizamos análises de vários destes alimentos bárbaros, sendo alguns deles de apreciável valor nutritivo. Mas a maioria é de difícil digestibilidade e de valor alimentício praticamente nulo. Apenas servem para enganar a fome, não para alimentar.

Embora com os conhecimentos incompletos que se têm dos alimentos bárbaros não seja possível determinar com rigor o valor nutritivo da dieta dos retirantes da seca, não resta nenhuma dúvida de que se trata de um regime extremamente carenciado, não sendo possível ao organismo manter-se por muito tempo com tal alimentação. Ademais, esses recursos silvestres são limitados e, em pouco tempo, com um exército de raizeiros à sua cata, rareiam e se esgotam por completo. Baseado em testemunhas locais, conta Ildefonso Albano, como na famosa seca de 1915, quase se acabou a macambira em certas regiões do sertão nordestino (44).

Assim, esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível êxodo. Pelas estradas poeirentas e pedregosas ondulam as

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intermináveis filas dos retirantes como se fossem uma centopéia humana. Homens, mulheres e crianças, todos esqueléticos, "deformados pelas perturbações tróficas, com a pele enegrecida colada às longas ossaturas, desfibrados e fétidos pelo efeito da autofagia" (45). Afrânio Peixoto dá-nos impressionante descrição sobre a arrancada dos retirantes, nestes trágicos momentos: "Queimam-se os espinhos e dá-se ao gado, cujos beiços se enrijecem com as cicatrizes que os acúleos lhes deixaram, sangrentos, doloridos, depois calejados... Vai-se buscar água nos poços ou cacimbas a quatro léguas de distância em lombo de burro, nos jegues incansáveis. Mas o cacimbão vai mostrando o fundo. Se o gado morre à míngua, não há mais a esperar, a retirada... Uma trouxa do que se pode salvar e levar, e com os outros que passam na estrada é a mesma amargura, o calvário de mais passos apenas... O homem esgota tudo em torno para nutrir-se: o cardo, o xiquexique, em beijus; a batata de macambira em farinha; a maniçoba como se fora mandioca; as sementes da mucunã torradas, pisadas, lavadas, relavadas em nove águas, em goma; carnaúba ou sopa; o umbu é um agrado da Providência... O palmito da carnaúba, a palmeira providencial, até ela, último recurso... Que extrair desta parca e até, às vezes nociva alimentação? Nem alento, nem esperanças... Fugir, se não se cai vencido ante esta resolução que tanto custa... Deixar a terra onde se sofre tanto..."(46).

São as sombrias caravanas de espectros caminhando centenas de léguas em busca das terras e dos brejos, das terras da promissão. Com os seus alforjes quase vazios, contendo quando muito um punhado de farinha, um pedaço de rapadura; a rede e a filharada miúda grudada às costas, o sertanejo dispara através da vastidão dos tabuleiros e chapadões descampados disposto a todos os martírios. Sem recursos de nenhuma espécie, atravessando zonas de penúria absoluta, gastando na áspera caminhada o resto de suas energias comburidas, os retirantes acentuam no seu êxodo as conseqüências funestas desta fome. Vê-los é ver em todas as suas pungentes manifestações o drama fisiológico da inanição. Nas descrições que nos legaram os cronistas e os médicos, testemunhas oculares principalmente das secas de excepcionais proporções, como as de 1744, de 1790, de 1846, de 1877, de 1915 e de 1932, encontram-se instantâneos destes retirantes em todos os

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graus e formas da penúria orgânica, caindo de fome à beira das estradas.

A fome quantitativa se exterioriza de logo pela magreza aterradora, exibindo todos faces chupadas, secos, mirrados, com os olhos embutidos dentro de órbitas fundas, as bochechas sumidas e as ossaturas desenhadas em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e enegrecida. Indivíduos que mesmo no tempo de abundância — nas épocas do verde — nunca foram de muita gordura, apresentando--se sempre com sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas épocas das secas, até 50% de seu peso.

Mas, não se vêem apenas estas esqueléticas figuras, magras e chupadas pela fome. Vêem-se também as vítimas das terríveis carências específicas nas suas mais grotescas e trágicas variedades. As deficiências qualitativas de toda ordem se associando e modelando, numa macabra riqueza de detalhes, os mais variados quadros mórbidos. São as crianças as que exibem, com características mais vivas as doenças de carência. Atingidas pela fome negra em pleno crescimento, elas param por completo seu desenvolvimento e chegam em certos casos, como a involuir a um período anterior. Refere Felipe Guerra que, segundo a tradição, na seca de 1774, a fome foi tão tremenda "que os meninos que já andavam tornaram ao estado de engatinhar"(47). Muitas destas crianças ficaram marcadas a vida toda com suas estaturas mirradas pelo nanismo alimentar, com suas deformações das osteopatias da fome e suas endocrinopatias carenciais, manchando e afeando o conjunto de homens fortes que consitui a raça sertaneja.

Além da parada do crescimento nas crianças, as carências protéicas se manifestam em larga escala pelos edemas de fome e outros distúrbios tróficos. Os edemas, sejam discretos, sejam generalizados em disformes anasarcas, constituem um dos sinais mais constantes e com maior freqüência referido em todos os relatos sobre as secas do Nordeste. Nas levas de retirantes encontram-se sempre as figuras grotescas de famintos, com suas pernas de graveto carregando enormes ventres estufados pela hidropisia, dando ironicamente uma impressão de plenitude e de saciedade.

Neste estado de penúria orgânica, os retirantes perdem toda sua

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resistência e capacidade de defesa contra os agentes mórbidos de toda categoria, principalmente os de natureza infectuosa e tornam-se presas fáceis de inúmeras doenças. Em sua incerta peregrinação, sem os menores rudimentos de higiene, comendo alimentos poluídos e poluindo tudo em torno com os seus excretas, sem água para sua limpeza, sem cuidados de espécie alguma contra o contágio que a promiscuidade intensifica, a retirada se constitui numa verdadeira marcha fúnebre em busca da morte. É por isto que o brado popular canta esta marcha com dolorosa melancolia:

Marchemos a encarar Trinta mil epidemias Frialdade, hidropisia, Que ninguém pode escapar. Os que para o brejo vão Morrem de epidemia Sofrem fome todo dia Os que ficam no sertão (48). Os que resistem às extenuantes caminhadas e chegam às terras

úmidas dos brejos são as mais das vezes atacados de graves doenças infectuosas, para as quais lhes falta a necessária imunidade, e morrem aos milhares. Em todas as grandes secas do Nordeste seguem-se sempre à fome, a calamidade das pestes para completar o quadro da tragédia nordestina. Na seca de 1877, os retirantes que desciam dos sertões cearenses e se concentravam na capital da província eram exterminados em massa pelas epidemias de varíola, de febres biliosas, de disenterias. A epidemia de varíola tomou tão tremendo vulto, que Fortaleza, com sua população de 124.000 indivíduos, assinalou a existência de 80.000 variolosos. Naquele terrível ano de 1878 "a febre biliosa, o beribéri, a anasarca, a disenteria, a varíola, haviam povoado os cemitérios", diz-nos Rodolfo Teófilo. "Na cidade de Fortaleza em doze meses sepultaram--se nos cemitérios de São João Batista e Lagoa Funda, 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma população de 124.000 almas". As pestes despovoavam a cidade, o cataclismo da

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seca se estendia em suas funestas conseqüências até a costa. Num depoimento antigo, dando um balanço das perdas na terrível

seca, depoimento transcrito por Edmar Morel no seu interessante livro-reportagem sobre o Padre Cícero do Juazeiro, encontram-se estas cifras assustadoras: "o século dezenove vê dez grandes invernos e sete grandes secas. Destas, a de 1845 tem gravíssimas conseqüências para o gado e a de 1877-1879 torna-se célebre. Ela determina a mortandade de 500.000 habitantes do Ceará e vizinhanças, ou cerca de 50% da população. Nas grandes secas em geral, porém, a média da mortandade não costuma exceder 33^. Dos mortos de 1877 a 1879, calcula-se que 150.000 faleceram de inanição indubitável, 100.000 de febres e outras doenças, 80.000 de varíola e 180.000 da alimentação venenosa ou nociva, de inanição ou mesmo exclusivamente de sede" (49).

Dos retirantes que, acossados pelo flagelo, em suas múltiplas investidas, se dirigiam para a Amazônia atraídos pela miragem do ouro branco calcula-se que meio milhão (50) foi dizimado pelas epidemias, pelo paludismo, pela verminose e pelo beribéri.

O grosso dos casos de beribéri verificados na epidemia que assolou a Amazônia, durante o ciclo da borracha, era formado por nordestinos da área da seca. Sertanejos que chegavam ao inferno verde sem nenhuma reserva de vitaminas, e que se não caíam de beribéri na sua própria terra é que lá pouco comiam, não sobrecarregando o organismo com material a metabolizar. Na Amazônia, com um novo regime alimentar quantitativamente mais abundante à custa das conservas e da farinha de mandioca, processava-se o desequilíbrio nutritivo e surgia a praga terrível das polinevrites beribéricas.

A Amazônia, ou melhor o Acre, que era seu ponto de atração mais forte, foi o grande sorvedouro de vidas sertanejas: "O Acre é como outro mundo: pode ser muito bom mas quem vai lá, não volta mais", diz em tom melancólico um personagem de A Bagaceira (51), que assim fala mas que também acaba partindo passivamente para o inferno verde.

Assim, as populações de retirantes vão sendo rarefeitas em sua peregrinação macabra, acossadas por todos estes males que se

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enxertam sobre o mal da fome. Dos que sobrevivem a estes diferentes males e passam a constituir populações adventícias das cidades do litoral, grande parte fica sempre aguardando as notícias de cima, notícias de que o flagelo passou com a queda das primeiras chuvas, para voltar à sua gleba e recomeçar o seu destino de predestindos, a lutar sem esperanças de vitória contra o eterno ciclo de calamidades.

Assim se constituíram grandes massas de populações marginais nas capitais do Nordeste. Muitas cidades do litoral nordestino mantêm permanentemente populações deste tipo. No Recife, nos mangues do Capibaribe, desenvolveu-se uma verdadeira cidade de mocambos que cresce em seguida a cada seca com os novos casebres levantados no charco por novas levas de retirantes. A maior parte dos que descem do sertão acossados pelo flagelo aí fica vivendo uma vida de inadaptados e vencidos, num regime de carência crônica que é uma continuação do martírio da fome no sertão. Numa série de contos que enfeixamos em volume, sob o título de Documentário do Nordeste já fixamos quadros da vida dessa gente que "vive atolada nos mangues, se sustentando da pesca de caranguejos e siris, chafurdando nesse charco onde tudo é, foi ou vai ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela e vive nela. E o homem que aí vive se alimenta desta lama, sob a forma de caranguejo". As populações mantidas através desse trágico ciclo do caranguejo representa um resto do monturo humano que o vento quente das secas joga nas praias do Nordeste. Em torno de Fortaleza vivem populações ainda mais miseráveis, algumas se alimentam apenas de verduras silvestres — beldroegas e manjangomes — cozinhadas com sal e comidas com os aruás (espécie de molusco), muito abundantes nas lagoas da região.

Mas, não é somente agindo sobre o corpo dos flagelados, roendo-lhes as vísceras e abrindo chagas e buracos na sua pele, que a fome aniquila a vida do sertanejo, mas também atuando sobre o seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta social. Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome quando alcança os limites da verdadeira inanição (52). Fustigados pela imperiosa

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necessidade de alimentar-se, os instintos primários se exaltam e o homem, como qualquer animal esfomeado, apresenta uma conduta mental que pode parecer a mais desconcertante(53). Muda o seu comportamento como muda o de todos os seres vivos alcançados pelo flagelo nesta mesma área geográfica.

Lê-se numa memória do Padre Joaquim José Pereira(54), vigário no Rio Grande do Norte, que na seca de 1792 apareceu na região "uma tal quantidade de morcegos que mesmo de dia atacava as pessoas e os animais". Confirma o fato Rodolfo Teófilo quando escreve que "a praga de morcegos conhecida em todas as secas, com especialidade na de 1792, começava a aparecer fazendo estragos em alguns pontos da província". Verifica-se, assim, que estes animais, comumente de vida noturna, excitados pela fome passavam a agitar-se durante o dia, atacando os próprios homens, aos quais normalmente eles temem. As pragas de serpentes, pestes de cascavéis, que surgem habitualmente após as grandes secas, traduzem a mudança de comportamento desses animais que, nas quadras de abundância, vivem quase sempre em suas tocas e que, em conseqüência da fome, nos períodos de seca passam a se agitar de maneira alarmante.

"Depois da grande seca (1877) desenvolveu-se em toda a província um mal terrível. A cascavel — Crotalos horridos — devastou os sertões de um modo assombroso. Apareciam estes terríveis répteis com tal abundância, que indivíduos havia que tinham morto mais de quinhentos em pouco tempo. A vida do sertanejo e do gado que escapou da seca corria o risco de acabar ao dente do peçonhento animal". Assim escreve Virgílio Erigido, no prefácio de A fome, de Rodolfo Teófilo. É evidente que a idéia aí desenvolvida, da assombrosa abundância de répteis, exprime, na verdade, a maior freqüência com que eles aparecem e topam com o sertanejo. Embora Roquette Pinto atribua ao calor excessivo uma mais rápida evolução nos ovos da cascavel, temos a impressão de que a peste é mais produto da mudança de hábitos do animal do que de um aumento de proliferação da espécie, mesmo porque são animais ovíparos e o calor só muito indiretamente poderia afetar o número de filhos de cada ninhada, É a fome que joga as cobras fora de suas tocas, espalhando-as famintas e furiosas pelos caminhos, pelos currais, pelos pátios e até

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pelas casas dos fazendeiros. Noutras áreas de fome do mundo, observadores avisados têm

verificado estranhas mudanças na conduta de animais tanto domésticos como selvagens, quando expostos aos rigores da fome. Conta Pedro y Pons que, durante a epidemia de fome que grassou em Barcelona com a guerra civil espanhola de 1936 a 1939, os cães vagabundos aumentaram consideravelmente, enchendo as ruas com suas tropelias.

"As imagens da rua oferecida pelos cães que buscavam com afã alimentar-se, uns secos, com as costelas salientes, outros fofos e inchados, com andar fatigado e pêlos caducos, freqüentemente com paralisia de uma pata traseira, foram contempladas por qualquer indivíduo medianamente observador", escreve Pedro y Pons, em seu livro Enfermidade por Insuficiência Alimentícia, 1940. Na descrição rápida que o autor faz destes animais logo se identificavam as várias espécies de fomes específicas de que padeciam: carências protéicas e avitaminoses. Como animais domésticos, integrados à vida dos grupos humanos, os cães se apresentam com aspectos muito semelhantes aos das populações humanas submetidas ao flagelo da fome. Contam cientistas da "Smithsonian Institution", de Washington, que na região de Waterberg, no Transvaal africano, depois da terrível seca de 1913, mudaram os costumes dos animais da região: "Muitos carnívoros noturnos caçam agora de dia e os leopardos, contrariamente aos seus hábitos, atacam de tarde os acampamentos. Os baboons, grandes monos que antigamente não se moviam no escuro, parecem não dormir mais em busca de alimentos noite e dia. Os cães selvagens passaram a ser extremamente agressivos e assim por diante". Como estes animais, voltamos a insistir, também o homem é capaz de alterar a sua conduta, quando acossado pelos martírios e estragos da fome.

Para que se possa entender a possível interferência deste fenômeno sobre o comportamento social da coletividade sertaneja, temos necessidade de fixar em rápidas linhas como atuam biològicamente a falta prolongada de alimentos sobre a organização psíquica do indivíduo.

"Quando uma calamidade desaba sobre nossa vida, nossas sensações e percepções, nossos órgãos de sentido tendem a tornar-se

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extremamente sensíveis a todos os fenômenos dessa calamidade e a todos os objetos e fatos correlatos", escreveu P. Sorokin(55). Quanto à irritabilidade nervosa, chega-se mesmo a um estado de fúria ou raiva chamada pelos navegadores dos séculos XVI e XVII, bons conhecedores das crises de alimentos, de "hidrofobia da fome". Encontramos um depoimento curioso desses estados nervosos na obra de Jean de Léry, quando conta seu regresso do Brasil à Europa em 1558, a bordo do navio Jacques. Diz o cronista: "Vindo a faltar por completo os víveres, em princípio de maio dois marinheiros morreram de hidrofobia da fome, sendo sepultados no mar como de praxe". E depois de narrar as peripécias da fome a bordo do navio desgarrado, conclui que " durante estas fomes rigorosas os corpos se extenuam, a natureza desfalece, os sentidos se alienam, o ânimo se esvai, e isso não só torna as pessoas ferozes, mas ainda provoca uma espécie de raiva, donde o acerto do dito popular: fulano enraivece de fome, para dizer que alguém está sofrendo falta de alimento" (56).

A sensação de fome não é uma sensação contínua, mas um fenômeno intermitente com exacerbações e remitências periódicas. De início, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e principalmente uma grande exaltação dos sentidos, que se acendem num ímpeto de sensibilidade, a serviço quase que exclusivo das atividades que conduzam à obtenção de alimentos e portanto, à satisfação dos instintos mortificadores da fome. Destes sentidos há um que se exalta ao extremo, alcançando uma acuidade sensorial incrível: é o sentido da visão. No faminto, enquanto tudo parece ir perecendo aos poucos em seu organismo, a visão cada vez mais se vai acendendo, vivificando-se espasmòdicamente.

Veja-se a descrição que nos faz dos flagelados um escritor do Nordeste: "Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos só no olhar. Pupilas do sol das secas. Os olhos espasmódicos de pânico como se estivessem assombrados de si próprios. Agônica concentração de vitalidade faiscante.”(57). Sob a ação desta dolorosa sensação, o homem mais do que nunca se manifesta como um animal de rapina com o olhar certeiro, varando os espaços em busca da presa que lhe aplaque a fome. O animal de rapina, assevera Spengler, "é a forma suprema da vida movediça: significa o máximo de liberdade, com

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respeito aos outros e a si mesmo, o máximo de responsabilidade própria e de solidão, o extremo da necessidade de afirmar-se lutando, vencendo e aniquilando"(58). É nestas horas que o sertanejo se torna um caçador insuperável, pressentindo no movimento leve de uma folha ou na queda quase imperceptível de um torrão de barro a vibração assustada no nambu, que se oculta numa touceira de macambira, ou da preá faminta açoitada nos serrotes. É também nesta hora que ele se faz muitas vezes cangaceiro.

Em penetrante e sutil ensaio sobre a arte da caça, que serve de prefácio ao sugestivo livro do Conde de Yebes, Veinte Años de Caça Mayor, Ortega y Gasset, analisando os motivos geradores do caçar, aponta como dos fundamentais, a escassez da própria caça, "O fato de que no Universo se cace pressupõe que exista e tenha existido sempre pouca caça. Se superabundasse, não existiria este peculiar comportamento dos animais, entre eles o homem, que distinguimos com o preciso nome da arte de caçar. Como o ar existe de sobra não há uma técnica da respiração e respirar não é caçar ar" (39). Crê, pois, o filósofo espanhol que a conduta do animal caçador se moldou sob o influxo da relativa escassez do animal presa em seu mundo circundante. Mostra, a seguir, o pensador, como o sentido que mais agudamente trabalha no caçador é a visão: "O caçador é o animal alerta. É a vida com o integral alerta, é a atitude que o animal mantém na selva. Aproxima-se o caçador do animal selvagem, vivendo com a vivacidade e a iminência da selvageria".

Nesta fase desaparecem todos os outros desejos e interesses vitais e o pensamento se concentra ativamente em descobrir o alimento por quaisquer meios e às custas de quaisquer riscos. Exploradores e pioneiros que, em suas aventuras, caíram nas garras da fome, nos deixaram uma documentação rica de detalhes desta obsessão do espírito, polarizada num só desejo, concentrada numa só aspiração — comer (60). Em seguida a esta fase de exaltação, vem a fase de apatia, de tremenda depressão, de náusea e de dificuldade de concentrar-se. Knut Hamsum descreve muito bem estas crises cíclicas de emotividade no seu herói autobiográfico da Fome, passando da irritabilidade extrema ao quietismo mórbido, ora irritado, ora manso, ora perverso, ora magnânimo, sem aparente razão de ser. Este ritmo

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psíquico que se evidencia tão caracteristicamente nas épocas calamitosas do sertão deve ter pesado nos julgamentos de alguns autores quando, procurando caracterizar o temperamento do sertanejo, vêem nele um tipo ciclotímico(61), um sintonizado com as extremas solicitações ambientes.

A verdade é que, se por algumas de suas qualidades mentais — seu realismo e seu sentido prático das coisas — o sertanejo insere sua personalidade individual na vida social, à maneira dos ciclotímicos de Kretshm&r, por outras muitas de suas características psicossomáticas lembra mais um esquizotímico acentuado. Sua tendência ao isolamento e seu exaltado sentimento de liberdade, características estas, a que Martius e depois Capistrano de Abreu (62) deram grande e justa importância, como fatores de povoamento da região e também sua constituição biotipológica de longilíneos atléticos ou displásticos, todas estas qualidades dão ao sertanejo nordestino um painel com muitos traços de uma esquizotimia típica, atingindo, em certas eventualidades, às raias da patologia individual e social, com seus esquizóides e esquizofrênicos francos: seus cangaceiros sanguinários e seus beatos fanáticos.

A nossa impressão é que este é o tipo predominante no sertão: o esquizotímico, com sua curva de temperamento instável. Estes estados de espírito extremos representam, em última análise, a exteriorização do tremendo conflito interior que se trava entre os impulsos e instintos da fome e os que levam à satisfação de outros desejos e aspirações. Entre a alma do homem e a do animal de rapina, entre o anjo e o demônio que simbolizam a ambivalência mental da condição humana.

"(Nestes limites já bem perigosos para a segurança de espírito, a personalidade se vai desagregando, se esfumaçando e apagando as suas reações normais a inúmeras outras solicitações do meio exterior, sem correlação com a fome. Nesta desintegração do eu desaparecem as atividades de autoproteção, de controle mental e dá-se, finalmente a perda dos escrúpulos e das inibições de ordem moral.

Esta total transformação da personalidade se constata facilmente nos vaqueiros, protótipo da estrutura social da região. Nos sertões do Nordeste o vaqueiro é, em geral, sério, de uma honestidade a toda prova. É gente capaz de tratar durante anos uma rês perdida, ficando

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sempre à espera do legítimo dono. É Euclides da Cunha que nos conta este velho hábito sertanejo: "Quando surge no seu logradouro um animal alheio, cuja marca conhece, restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando como aos demais. Mas não o leva à feira anual nem o aplica em trabalho algum, deixa morrer de velho. Não lhe pertence. Se é uma vaca e dá cria, ferra esta com o mesmo sinal desconhecido que reproduz com perfeição admirável e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um para si, é a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente sem juizes e sem testemunhas o estranho contrato que ninguém escreveu ou sugeriu". Fruto exclusivo de sua férrea honestidade. Também quando uma rês qualquer de ferro desconhecido dá para ladrona, derrubando cercados e devastando lavouras, conta-nos Xavier de Oliveira que os fazendeiros da redondeza se reúnem, "avaliam-na, cotizam-se entre si, fazem uma matutagem da mesma e a dividem proporcionalmente à cota de cada um, e quando o dono aparece recebe a quantia exata por que foi avaliada sua rês. É isto tão nobre e honroso como comum na velha virtude sertaneja"(63). Pois esta gente, de princípios morais tão elevados, dá na época de seca, para roubar o gado alheio, para roubar cabras, como aquele Chico Bento, personagem de O Quinze, que num delírio de fome, perdeu os escrúpulos morais e, "com as mãos trêmulas, a garganta áspera e os olhos afogueados", derrubou a cacete o animal alheio que se atravessou em seu caminho de retirante. Estes desvios das convenções morais constituem muitas vezes o começo de uma vida de bandoleiro, numa terra de princípios morais tão rígidos, onde depois da transgressão, já não é possível voltar aos caminhos honestos e esquecer o erro cometido.

Apagada assim a consciência, prossegue o conflito inconsciente entre as forças de satisfação do instinto de nutrição e as forças de outros interesses humanos, predominando um dos dois grupos, de acordo com o que Sorokin chama "a lei da diversificação e polarização dos efeitos", originando, em certos casos, as psicopatias graves, verdadeiras psicoses reacionais ou de situação. Assim se geram os bandidos e os santos — sinners and saints — das eras de

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calamidade. Contribuem, desta forma, as secas e as fomes periódicas que delas

decorrem para a cristalização desses tipos característicos da vida do sertão: o cangaceiro e o beato fanático. Tipos tão significativamente inseridos, por suas raízes culturais, na vida sertaneja, a tal ponto associados em sua atuação social, que se constituem muitas vezes como uma só personalidade — o beato-cangaceiro, como o célebre Bento da Cruz, de Juazeiro, assassino de seu pai, que "com uma cruz numa mão e um punhal na outra", distribuía justiça na povoação, ou como os truculentos Batistas, que, na campanha de Canudos, serviram de ajudantes-de-ordens a Antônio Conselheiro e que eram "capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários..." (Euclides da Cunha).

O cangaceiro, que irrompe como uma cascavel doida deste monturo social, significa, muitas vezes a vitória do instinto da fome — da fome de alimento e da fome de liberdade — sobre as barreiras materiais e morais que o meio levanta. O beato fanático traduz a vitória da exaltação moral, apelando para as forças metafísicas a fim de conjurar o instinto solto e desadorado. Em ambos, o que se vê é o uso desproporcionado e inadequado da força — da força física ou da força mental — para lutar contra a calamidade e seus trágicos efeitos. Contra o cerco que a fome estabelece em torno destas populações, levando-as a toda sorte de desesperos.

Estudando a gênesis do jagunço, os fatores que condicionam a formação de um Antônio Conselheiro, fanático cangaceiro, síntese de toda a psicologia da sociedade que o formou, Euclides da Cunha dá grande relevo ao fator alimentar, ao ascetismo forçado ou voluntário do herói: "Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas... Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, este sóbrio propagandista da eliminação lenta da matéria." Demonstrativas desta influência da fome periódica na gênesis do cangaceiro são as seguintes palavras de Gustavo Barroso: "Ribeiras houve regadas longos anos seguidos por invernos fecundos e abastecidas por colheitas abundantes. Durante o período da fartura, não surgiu um só bandido. Os enxotados das vizinhanças não

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poisavam, porque lhes davam caça. Vieram secas. Os seareiros fugiram para os povoados, emigraram para a Amazônia ou de agricultura se tornaram míseros cabreiros. As terras amaninharam-se abandonadas. O cangaceiro veio de fora e domiciliou-se ou irrompeu da própria gente arruinada"(64). O mesmo pensou Afonso Arinos quando escreveu: "Em períodos de instabilidade social, provocados por causas de natureza econômica (causas estas que evidentemente não são as mesmas, embora produzissem resultados análogos), o tipo humano a que se convencionou dar, no Nordeste, o nome de cangaceiro, aparece, se instala e domina a imaginação e até certo ponto a vida popular da região"(65).

Não se pense que, num impulso de biologismo que seria um tanto ingênuo, vamos chegar ao extremo de atribuir às fomes periódicas uma ação determinante e exclusiva na formação destes tipos sociais. Claro que não. Inúmeros outros fatores hoje bem conhecidos e estudados interferem em sua elaboração, traçando mesmo as diretivas gerais do fenômeno, esboçando em linhas um tanto imprecisas as suas tendências básicas, mas não há dúvida que o cataclismo social precipita seu aparecimento, provocando a sua cristalização definitiva.

Estribando-se em nossas concepções, Roger Bastide procurou analisar este fenômeno sociológico com mais profundidade, em dois estudos mais recentes e no qual se encontram preciosas observações (66).

Nestes estudos este ilustre sociólogo francês, que viveu durante muito tempo no Brasil afirma que é fora de dúvida a existência de um vínculo entre os fenômenos de banditismo e fanatismo religioso e o cataclismo das secas periódicas. E afirma mais ainda que este vínculo é mais visível, mais fácil de evidenciar-se no caso do fanatismo religioso.

Além desta ação direta sobre a personalidade dos sertanejos, fazendo-os uns desorientados e desajustados, age a fome periódica, desorganizando ciclicamente e economia da região e criando um meio social extremamente receptível às atividades do cangaceirismo e do beatismo. Meio social formado de massas humanas predispostas à aceitação, e à adoração desses tipos singulares que simbolizam a sua aspiração de fuga à miséria — fuga pela força do fuzil ou pela força

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da magia. A verdade é que, para o sertanejo, o cangaceiro raramente é um criminoso, um celerado, sendo cantado e louvado como um homem valente, que joga cavalheirescamente a sua vida para defender os oprimidos e alimentar os famintos, roubando dos ricos para distribuir com os pobres.

As conexões entre a fome e a adoração mística são sociologicamente tão claras e conhecidas que quase não merecem comentários. Todos sabem que os grandes líderes religiosos, Moisés, Cristo e Maomé, todos apregoavam os benefícios do jejum, tanto para permitir uma maior elevação do sentimento místico individual como para desenvolver nos crentes uma maior força de adoração mística.

Não foi por simples coincidência que a Idade Média, com suas fomes devastadoras, se tornou o grande período místico do mundo, apresentando as massas humanas, alternativamente atacadas de "uma estúpida e desesperada apatia" (67) e de um intenso furor místico, atirando-as impunemente em mortíferas guerras religiosas para acalmar a sua sede de fanatismo e seu apetite de esfomeados crônicos.

O sertão nordestino viveu até bem pouco a sua Idade Média. Os primeiros povoadores portugueses que aí se embrenharam no século XVI viviam como demonstrou Sanchez Albornoz(68) ao estudar a empresa colonizador a ibérica na América, saturados de medievalismo. Viviam dentro de um espírito caracteristicamente medieval, ao mesmo tempo religioso e guerreiro, místico e de desenfreada cobiça, contrastando com o espírito burguês e heterodoxo de signo moderno, pós-renascentista e pós-luterano, que presidiu a colonização inglesa na América. Se, como afirma aquele historiador, a luta contra o Islã desviou a rota da Península Ibérica e lhe deu um atraso secular em seu medievalismo, maior ainda foi esse atraso histórico em Portugal, metido "em seu desterro geográfico, separado do grande mundo pela espessa muralha da Meseta Castelhana deserta e dura"(69). No sertão do Nordeste o forçado isolamento dessa gente, a falta de contatos mais seguidos com o resto do mundo prolongou estas sobrevivências do medievalismo português até quase nossos dias.

O drama das secas marca, desta forma, profundamente a mentalidade do povo sertanejo. Embora, hoje, graças a alguns

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progressos realizados principalmente em matéria de comunicações e transportes, as conseqüências do flagelo se tenham atenuado, ainda resta a alma do sertanejo impregnada do pavor da seca e da fome. E, como veremos mais adiante estes sentimentos influem decisivamente no comportamento do povo nordestino e nas suas manifestações sociais de toda ordem.

Esta exposição um tanto detalhada do sofrimento do homem do Nordeste, ou melhor do homem dos dois Nordestes, submetido permanentemente ao flagelo da fome e esmagado pelo pavor constante da morte sempre presente na sua paisagem humana, talvez ajude a compreensão do complexo drama social que vive esta região: a sua surda agitação política e a sua tensa explosividade. Mas antes de abordarmos o estudo das tensões sociais geradas por esta trágica situação reinante, parece-nos necessário indagar como foi gerada esta situação, indagar de suas origens e dos fatores que a entretêm, uma espécie de desafio à própria História: à evolução social e ao progresso que hoje se processam aceleradamente nos quatro cantos do mundo.

A análise destas raízes históricas é tanto mais necessária para que se possa ter uma interpretação fiel da atual realidade social do Nordeste quando hoje sabemos que suas características fundamentais — sua fome e sua miséria — são muito mais produtos das estruturas sociais reinantes do que das condições naturais da região. Muito mais produtos da organização econômica defeituosa do que da base física considerada pobre. Nada mais falso, mais empírico, mais destituído de qualquer fundamento científico do que a idéia de que a fome e a miséria nordestina são produtos exclusivos da irregularidade e inclemência do seu clima. De que tudo é causado pelas secas que periodicamente desorganizam a economia da região. Nada mais longe da verdade. Nem todo o Nordeste é seco, nem a seca é tudo, mesmo nas áreas do sertão. Há tempos que nos batemos para demonstrar, para incutir na consciência nacional o fato de que a seca não é o principal fator da pobreza e da fome nordestinas. Que é apenas um fator de agravamento agudo desta situação cujas causas são outras. São causas mais ligadas ao arcabouço social, do que aos acidentes naturais, às condições ou bases físicas da região.

Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome e a miséria no

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Nordeste é a proletarização progressiva de sua população, cuja produtividade é mínima e está longe de permitir a formação de quaisquer reservas com que seja possível enfrentar os períodos de escassez — os anos das vacas magras, mesmo porque no Nordeste já não há anos de vacas gordas. Tudo é pobreza, é magreza, é miséria relativa ou absoluta. Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo para adquirir os alimentos nas épocas de carestia, o sertanejo não tem defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome.

Se a região do Nordeste não fosse uma área subdesenvolvida de economia tão fraca e rudimentar, poderia resistir perfeitamente aos episódios das secas sem que sua vida econômica fosse ameaçada e as suas populações acossadas pela fome. Poderiam mesmo esses episódios funcionar como um fator de propulsão e de expansão de sua economia. Não há nada de paradoxal nesta nossa assertiva. Ela deriva de observações levadas a efeito em diferentes pontos do mundo por sociólogos e economistas que, libertos das idéias preconcebidas, são capazes de analisar os fatos em toda sua objetividade. Sobre este aspecto André Piatier(70) nos traz uma preciosa contribuição quando afirma que o nível de desenvolvimento pode ser medido ou aferido pelo grau de resistência duma estrutura econômica em face de uma catástrofe natural ou social: seca, inundação, revolução, guerra. Enquanto os países subdesenvolvidos se deixam esmagar, os países realmente, desenvolvidos reagem às catástrofes de forme positiva, estimulando suas funções de defesa e de conservação, conseguindo rapidamente apagar os efeitos catastróficos. Em sua relação chegam mesmo estes países, em face do impacto, a ultrapassar o seu ritmo habitual de progresso. Para comprovar esta sua teoria, Piatier cita o caso da França se reconstruindo dos efeitos da última guerra, no prazo de cinco anos, e alcançando em dez anos um ritmo de crescimento como o país jamais conhecera. Cita o caso da Holanda, diante da catástrofe do rompimento de seus diques há poucos anos, e o da Alemanha, aparentemente desmantelada por sua derrota militar e, no entanto, em dez anos refeita e economicamente poderosa. De outro lado apresenta o caso da Grécia, que não dispõe de forças para se recompor em face dos estragos da guerra ou das inundações que sofreu nos últimos anos.

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O Nordeste subdesenvolvido, como a Grécia, ou a índia, ou o Ceilão, não resiste ao impacto da catástrofe.

A luta contra a fome no Nordeste não deve, pois, ser encarada em termos simplistas de luta contra a seca, muito menos de luta contra os efeitos da seca. Mas de luta contra o subdesenvolvimento em todo o seu complexo regional, expressão da monocultura e do latifúndio, do feudalismo agrário e da subcapitalização na exploração dos recursos naturais da região.

Desta forma tanto o diagnóstico como a terapêutica dos males do Nordeste só poderão ,ser encontrados, se mergulharmos a fundo na verdadeira fonte destes males, nas suas origens históricas. Para encontrá-las, temos pois, que recuar aos tempos da formação social do Brasil — à época de sua primeira descoberta.

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Agriculture, For Agric. Bulletin, n.° 2, 1942. 30 - GOUGNET, A., 11 Ventre dei Popoli, 1905. 31 — PARAHIM, ORLANDO, A Alimentação do Operário Sertanejo durante

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33 - MACCOLLUM e SIMMONDS, The Newer Knowledge of Nutrition, 1929. 34 - COSTA COUTO, Panorama da Alimentação Brasileira, in "Cultura

Médica", n.° 5-6. 35 - ROCCA, JUAN e LLAMAS, ROBERTO, Estúdio del Frijol como

Alimento, in "Archivos" do Instituto de Biologia do México. 36 - NEVES, CARLOS ALVES DAS, A Batateira Doce e sua Cultura no

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37 - COUGNET, A., I1 Ventre dei Popoli, 1905. 38 - BULNES, FRANCISCO, El Porvenir de las Naciones Latinoamericanas,

México. 39 - FERRAZ, ÁLVARO c ANDRADE LIMA JR. A Morfologia do Homem do

Nordeste, 1939. 40 - COUTINHO, RUY, Valor Social da Alimentação. 41 - MENEZES, DJACIR, O Outro Nordeste, 1937. 42 - VON SPIX e VON MARTIUS, Através da Bahia, trad. e notas de Pirajá da

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1923. 53 - BARROSO, GUSTAVO, Heróis e Bandidos, 1917. 54 - PEREIRA, PADRE JOAQUIM JOSÉ, Citado por J. Américo de Almeida

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developpement économique national; conferência feita no Cairo em 1957.

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CAPITULO III A PRIMEIRA DESCOBERTA: O FEUDALISMO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI A PRIMEIRA descoberta do Brasil, no ano da graça de 1500, não

teve, a princípio, grande repercussão. Passou quase que despercebida, como um episódio secundário, totalmente abafado por outras façanhas mais ilustres da epopéia da navegação portuguesa no começo do século XVI. A verdade é que esta descoberta casual estava fora dos planos ou objetivos mais imediatos das conquistas ultramarinas de Portugal, cuja obsessão naquele momento era a de encontrar o caminho marítimo para as terras do Oriente, cujos produtos importados, por intermédio dos mercadores árabes, tinham enriquecido outros países europeus mais afortunados no comércio. Desviado de sua rota pelas correntes marítimas e pelos ventos contrários, ao topar com esta terra ignota, Pedro Álvares Cabral, limitou-se a "refrescar" as suas naus e a prosseguir sua viagem em busca das índias Orientais. Desta sua descoberta das terras das índias Ocidentais, mandou, no entanto, uma notícia circunstanciada ao Rei de Portugal, expressa no primeiro documento da História do Brasil — a célebre carta de Pero Vaz de Caminha. A notícia, contudo, não causou maior impressão no Reino, e durante mais de trinta anos o Brasil permaneceu praticamente abandonado, salvo esporádicas concessões para exploração do pau-brasil, única riqueza então encontrada na nova terra. Conforme os primeiros cronistas, era de "paz e sossego" a vida brasileira antes da descoberta. Dela assim nos

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fala Jean de Léry, um dos primeiros cronistas a registrar as condições de existência aqui surpreendidas pelos conquistadores vindos de além-mar.

A terra era um bem comum, pertencente a todos, e muito longe se achavam os seus donos de suspeitar que pudesse alguém pretender transformá-la em propriedade privada.

Dispunham os primitivos brasileiros de casas e excelentes terrenos "em quantidade muito superior às suas necessidades" — escrevera Léry. "No que toca à repartição das terras, cada pai de família escolhe algumas geiras onde lhe apraz e nelas planta suas roças; e quanto a isso de heranças e pleitos divisórios são cuidados que deixam aos demandistas e avarentos da Europa" (1).

Conclusões semelhantes, sobre a vida tranqüila e a índole pacífica do gentio, deveriam ter chegado, ao aqui aportarem, os tripulantes da frota de Cabral, cerca de cinqüenta anos antes. "Vinham todos rijos para o batei, e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos, e eles o puseram" — registra Pero Vaz de Caminha, em sua famosa carta a El-Rei D. Manuel.

Após os contactos iniciais, poucos dias de convívio bastaram para que fossem lançadas as bases de um recíproco entendimento e introduzida a prática do escambo entre os povos do velho e do novo mundo. "Resgataram lá, por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequenos, e carapuças de penas verdes e um pano de pena de muitas cores, maneira de tecido, assaz formoso".

E esse foi também o meio por que obtiveram os homens brancos tudo quanto precisavam para "refrescar" suas naus. "Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam aos batiés, e andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles."

Por muitos anos adiante, tal método de resgate das riquezas da terra e de aliciamento da mão-de-obra nativa dera provas de completa eficácia. Assim fora preparada e embarcada a carga da nau Bretoa, à altura do ano 11 da Descoberta, e assim também se procedera com o carregamento de outros barcos que a precederam, sobre os quais se têm notícias menos precisas. Portugueses e franceses, que vararam a

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costa, do Cabo Frio ao Cabo de São Roque, nesses primeiros tempos, devastaram florestas na apanha de milhares de toros de pau de tinta, sem que precisassem empregar, nas suas relações com o gentio, outros elementos mais persuasivos que a oferta, em troca da riqueza extraída, de uma reduzida variedade de bugigangas.

E para que tivessem sido tão bem sucedidos em sua empresa, os traficantes europeus da época não poderiam ter lidado com tribos tão inabordáveis e hostis como depois as imaginaram, com intenções preconcebidas, vários conhecidos historiadores.

Pelo que se sabe de sua vida primitiva, nossos índios, em diversas regiões, já haviam ultrapassado a fase superior do Estado Selvagem e penetrado na fase inferior da Barbárie, adotando-se a classificação de Lewis Morgan. Conheciam a cerâmica e teciam suas redes. Praticavam uma agricultura rudimentar, nos períodos de sedentariedade que se alternavam com os de nomadismo, cultivando a mandioca e o milho. Desses dois gêneros obtinham uma série de produtos, particularmente a farinha, cuja preparação exigia certa experiência de trabalho de tipo mais elevado. Sua antropofagia, tão alardeada para conveniência dos conquistadores, parecia estar em declínio, e restringia-se a meras formas rituais, havendo informações de que, numa ou noutra área, seus prisioneiros já eram poupados.

Dificilmente se poderá determinar o grau de desenvolvimento e de generalização das práticas escravistas entre os índios nessa época. De um lado, exageravam-se as notícias sobre a antropofagia, quando se tinha interesse em justificar a preia do gentio, que, dessa maneira, aparecia como um ato de filantropia dos conquistadores. Doutro lado, exageravam-se as notícias sobre a escravatura, quando se pretendia apresentar o trabalho escravo como uma tradição indígena, e não a resultante da coação dos homens brancos.

A elucidação desse aspecto controverso e obscuro, mas não tão obscuro quanto aparenta, é muito importante para a explicação dos fatos históricos que decidiram do caráter da colonização portuguesa.

Teriam os nossos índios evoluído espontaneamente da antropofagia, para o sistema da escravidão em época anterior ao contacto dos brancos? É pouco provável que isso sucedesse.

Mais aceitável é a hipótese de haver sido a escravidão introduzida

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após aqueles contactos, antes ou depois de Cabral, sem que tivesse alcançado alguma amplitude, por lhe faltarem as condições requeridas para o seu desenvolvimento, no estágio em que se achava o gentio.

As referências do Padre Nóbrega a índios vendidos em Porto Seguro aos portugueses pelos próprios índios, assim como outras que se conhecem, bem como as que tratam dos casos em que estes se entregavam ao cativeiro, premidos pela fome ou pelas calamidades naturais, não são de molde a convencer-nos, senão de acontecimentos esporádicos, e, assim mesmo, tardios, pois se prendem ao tempo em que os hábitos civilizados já tinham penetrado em algumas comunidades nativas. E são igualmente tardias as notícias sobre guerras que entre si moviam as tribos para fazer prisioneiros e negociá-los com os colonizadores que os vendiam ou os submetiam ao trabalho escravo.

Que a escravidão penetrou na História da Humanidade com a civilização, depois que o homem passou a viver sedentàriamente, abandonando o canibalismo e aproveitando os prisioneiros de guerra como trabalhadores escravos, não padece dúvida. Seria, porém, duvidoso que isto tivesse acontecido na pré-história brasileira, antes que as comunidades indígenas houvessem atingido toda a plenitude de uma vida sedentária, antes que praticassem a domesticação de animais e conhecessem o uso dos metais.

Note-se, a propósito, que os portugueses se cercavam de todos os cuidados a fim de que os índios se mantivessem na ignorância de muitos costumes civilizados, chegando a proibir que, nas zonas distantes da costa, os desbravadores brancos fundissem metais, para que não transmitissem aos da terra conhecimentos que se tornariam perigosos se utilizados na feitura de armas e instrumentos de trabalho.

O período relativamente curto de duração do escambo, como forma dominante nas relações entre o índio e os conquistadores, é outro argumento contra a possibilidade da existência de um sistema desenvolvido de escravidão no seio das comunidades indígenas. Se a frota de Cabral aqui encontrasse disponibilidade farta dessa mercadoria humana — o escravo — foco da cobiça dos traficantes de além-mar, dela não só falariam amplamente as crônicas desses primeiros tempos, quando se referissem ao escambo, como se teria

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constituído um fator de relevo na expansão das trocas e, ainda, de permanência das relações pacíficas entre os povos da nova terra e os de além-mar. Ao invés disso, entretanto, as crônicas acentuam que as guerras dos brancos contra os índios, visando a escravizá-los, teriam coincidido com o declínio do escambo.

Por que precisariam os colonizadores encetar as sanguinárias campanhas para a preia do gentio se o poderiam adquirir facilmente, trocando quantos prisioneiros escravizados houvesse por produtos de insignificante valor?

A extensão e ferocidade assumidas por essas campanhas demonstram, sobejamente, que não apenas eram escassas ou inexistentes as reservas de índios escravizados no seio das tribos, como ainda que a sua apropriação pelo branco seria impossível por outras formas que não a violência.

Iria terminar, por esse motivo, a fase das relações pacíficas entre ambos os povos, aproximando-se igualmente do fim o período em que o escambo assegurara aos portugueses o caminho para o saque das riquezas da região descoberta.

Não foi a falta de habilidade dos conquistadores portugueses que motivou a substituição do escambo pela violência no trato com o gentio. As mudanças, que se processaram nesse terreno, foram simples decorrência das necessidades econômicas da metrópole que a levaram a optar por outras formas de exploração da terra conquistada.

Quando predominava a mercancia dos produtos florestais, o que mais preocupava era a paz com o gentio. Os capitães da frota de Cabral revelaram essa intenção ao se reunirem para decidir que "não curassem aqui de, por força, tomar ninguém, nem fazer escândalo, para o de todo mais amansar e pacificar". Mandaria a prudência, em nome dos objetivos a que se propunham, que, mesmo quando os que "por força" tomassem índios nos primeiros lustros, o fizessem "sem escândalo", e assim deveriam também ter agido os demais capitães das naus que por aqui passaram, sem excluir a Bretoa.

A política então vigente na metrópole orientava-se no sentido de tornar o gentio a principal força de trabalho na exploração extrativa. Recebia ele em quinquilharias, cartas de baralho e quejandos, o pagamento de seus serviços, que consistiam no corte, na preparação e

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no transporte do pau-brasil e no abastecimento de tudo quanto pudesse interessar às frotas de guarda-costas e mercadores. A mão-de-obra indígena não-escrava foi ainda utilizada nas roças que se formavam em torno das feitorias, durante os primórdios da ocupação portuguesa.

Mantivera-se nesses termos, ao que tudo indica, até a instituição das Capitanias Donatárias, era 1532, o convívio entre o íncola e os conquistadores, respeitado pelos últimos, em certa medida, o regime comunal da propriedade sob o qual viviam os primeiros, da pré-história brasileira.

Daí por diante, a preia do gentio, antes furtiva e acessória, foi estendendo-se a todas as regiões, vindo a constituir-se paulatinamente numa das atividades mais lucrativas, quer como fonte de suprimento de mão-de-obra para a formação das lavouras, quer como gênero de exportação.

Conta Frei Vicente do Salvador que, quando começaram as entradas, muitos colonizadores não estavam convencidos de que esse sistema fosse o mais conveniente para os fins propostos. "As guerras, diziam eles, afugentavam os Gentios" para a distância de muitas léguas da costa, acreditando ser "melhor trazê-los por paz e por persuasão de Mamelucos; que por eles saberem a língua, e pelo parentesco os trariam mais facilmente que por armas".

Por todo o tempo de vigência das Donatárias, que se pode tomar como a fase de transição entre as formas pacíficas e o uso da coação nas relações com o gentio, o escambo se tornaria cada vez mais escasso. A habilidade e a astúcia dos comerciantes de costa, dos mercadores experimentados no entendimento com os povos das índias, deixariam de ser os elementos fundamentais de ligação entre as duas sociedades que, mais tarde, deveriam forçosamente hostilizar-se.

Acresce que entravam em jogo, agora, interesses e objetivos diferentes da simples aventura da conquista, que havia empolgado os traficantes e mercadores. Não se tratava apenas de vir buscar e transportar para os mercados da Europa os frutos do continente descoberto e sim de fundar aqui novas fontes de riqueza com a ocupação e exploração da terra, empresa a que se lançavam os mais audazes representantes da fidalguia lusa.

Aos princípios e métodos da conquista sucediam os princípios e

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métodos da colonização. A missão confiada aos colonizadores era a de submeter o íncola, apropriar-se de suas terras e seus bens, impor-lhe suas concepções e transformá-lo num agente dócil de seus objetivos de domínio.

A partir do momento em que algo mais do que a riqueza extrativa passa a despertar a cobiça da metrópole portuguesa, começam a apagar-se os vínculos que nos atavam à pré-história. A transformação da terra conquistada em colônia de exploração exige novas instituições jurídicas, novas formas de propriedade, que somente poderiam viçar sobre as ruínas das instituições primitivas.

Incipiente ainda a caça aos escravos indígenas, não havia até então a rutura definitiva entre esses e os conquistadores, o que se verificaria irremissivelmente mais tarde, com a expropriação, em larga escala, de suas terras. Tanto assim que seriam encontradiços na "história das várias donatárias, os exemplos de população européia e nativa vivendo em excelente relação e até mesmo em estreito convívio", o que, evidentemente, não resultaria do "modo de ser natural" dos portugueses, como quer Paulo Merea(2), mas do fato de não terem esses ainda abandonado, por essa época, os meios pacíficos de cooperação econômica.

Uma reconstituição lógica desse período de iniciação da história de nosso país, sobre o qual são escassas e contraditórias as notícias, nos fará compreender que a dualidade de métodos — o do comércio pacífico e o do emprego da força — que por muito tempo coexistiram nas relações com os silvícolas, de certo refletiria o conflito de interesses e de concepções, a disputa entre castas e facções, que dividiam e minavam a sociedade seiscentista de além-mar.

A monarquia agrária portuguesa(3), com um atraso secular em sua história, provocado pela interminável luta dos povos ibéricos contra o Islã, vivia ainda na época da descoberta do Brasil, a sua Idade Média. Se, em 1500, os países da Europa colocados ao norte dos Pirineus já estavam em plena Renascença, a Espanha e Portugal permaneciam ainda em pleno regime medieval. É o que nos demonstra com farta documentação historiadores idôneos, como um Cláudio Sánchez Albornoz(4) ao estudar a empresa colonial na América, ou como um Northcote Parkinson(5) ao afirmar que "Portugal e Espanha eram mais

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medievais do que renascentistas quando começou a sua aventura ultramarina. Viviam ainda num mundo de santos e de cavaleiros andantes, de monges e castelos medievais". O fato de se terem esses dois povos empolgado pela cobiça do ouro e pela aventura comercial não tira a marca do medievalismo de suas empresas de conquista.

Há muito que a sociedade medieval se vinha infiltrando destas ambições materiais que acabaram por dar origem ao capitalismo como sistema econômico que substituiria o sistema feudal decadente. No fundo, as cruzadas da Idade Média não obedeciam apenas a um impulso místico de propagação da fé, mas, em boa parte, a um impulso mais material de conquista de novas riquezas e de alargamento do comércio dos países cristãos, principalmente com os "infiéis", habitantes do misterioso Oriente, considerado como fabulosamente rico e, portanto, ambicionado. É dentro desta ordem de idéias que se pode admitir a conquista das terras da América pelos povos ibéricos, como a última de suas cruzadas — uma cruzada marítima — trazendo no bojo dos seus barcos a mesma cruz e a mesma espada das cruzadas terrestres de vários séculos da história medieval.

No caso de Portugal, a sua sociedade estava ainda bem longe de ter adquirido as astúcias da arte mercantil, e os seus navegantes e colonizadores em tudo revelam a sua inexperiência neste novo metier, em comparação com outros povos mais avançados no mercantilismo — os holandeses, por exemplo. Encontramos uma demonstração cabal da inexperiência mercantil e do comportamento medieval dos portugueses do começo do século XVI na própria ocupação e colonização por parte deste povo das terras do Nordeste do Brasil. O achado ocasional dessas terras pusera Portugal em situação difícil. Com apenas 1 milhão de habitantes e todas as esperanças do país voltadas para as vantajosas conquistas ultramarinas na Ásia e África, pouco sobrava a Portugal em gente e em recursos materiais para tentar a colonização de um território imenso, habitado por tribos nômades ainda na idade da pedra. Mas, em pouco tempo, a lenda de fabulosas riquezas ocultas na nova terra acende o apetite de certos povos europeus que se apresentam para disputar a posse desses tesouros, e Portugal se decide a fazer um grande esforço para ocupá-la e defendê-

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la a qualquer preço. Foi assim, premido por uma série de fatores econômico-sociais(6)

ligados às condições internas da metrópole e à necessidade urgente de melhor defender e explorar a colônia, que D. João III de Portugal resolveu, em 1534, transformar os raros núcleos de população já existentes na costa brasileira em grandes capitanias de tipo feudal. A Duarte Coelho, velho soldado da índia, foi doada a Capitania de Pernambuco, numa extensão de sessenta léguas de costa, compreendida entre os rios Iguarassu e São Francisco. Chegando aos seus novos domínios para nele implantar uma economia agrária estabelecida à base da cana-de-açúcar, Duarte Coelho tratou de fundar a capital do seu feudo, erguendo o burgo de Olinda no topo de uma colina, distante vários quilômetros do porto, por onde deveriam ser exportados os produtos da terra. A simples localização desta capital do novo reino mostra bem, como já acentuava Oliveira Lima, a incapacidade comercial dos portugueses, o seu total divórcio do espírito mercantilista. Como fazer comércio marítimo, voltando as costas para o porto, situado na desembocadura dos dois rios, o Capibaribe e o Beberibe, em cujos vales férteis a cana já começara a medrar, por onde desde 1526 eram exportadas as caixas de açúcar para Lisboa e onde se concentraria nos dois séculos a vir o monopólio quase que exclusivo da produção de açúcar no mundo? Subindo as encostas de Olinda e lá plantando o seu burgo medieval, os portugueses revelaram de maneira cabal que, apesar de cobiçosos de riquezas, estavam bem longe de possuir aquele agudo sentido mercantilista de caráter tipicamente burguês, de signo pós-renascentista e pós-luterano que possuíam os holandeses, por exemplo, e que por isto iriam em breve se apossar do comércio do mundo. E foram estes mesmos holandeses que, atraídos pelo cheiro do açúcar, aportavam nesse mesmo Nordeste no começo do século seguinte, estabelecendo uma colônia e fundando para sua capital a cidade do Recife, situada numa ilha ao lado do porto e ligada por pontes ao próprio porto. Sem a aventura da ocupação holandesa no Brasil, é possível que nunca houvesse sido fundada a cidade do Recife, que é hoje a capital do Nordeste. Este fato histórico marca bem a distância sócio-econômica que separava, na época, os

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portugueses feudais, dos holandeses mercantilistas. Outra prova da pouca habilidade dos portugueses no tráfico

comercial é o fato de que, tendo-se lançado na aventura das índias para eliminar do comércio dos seus produtos o intermediário árabe, que os vendia aos países europeus, principalmente ao grande empório mercantil de Veneza, em breve estavam eles, portugueses, substituindo os árabes e funcionando apenas como intermediários, entregando os produtos a outros povos europeus que auferiam lucros bem mais polpudos com a simples distribuição das mercadorias nos centros consumidores. Mantendo o monopólio da refinação do açúcar, Veneza, que recebia o produto bruto de Portugal, se reservava um terço dos lucros apenas para refiná-lo.

Não resta sombra de dúvida que o Portugal desta época continuava a viver dentro da ordem feudal. É Oliveira Lima quem afirma com ênfase que toda tentativa de mercantilismo por parte dos portugueses se evidencia tardia e obtusa, em comparação com o agudo sentimento comercial de outros povos, principalmente o holandês: "Em matéria de comércio nunca se chegou na Península a um sistema vantajoso. Lisboa foi, no século XVI quando de sua maior prosperidade, um mero entreposto por onde transitavam, a caminho de Flandres, as cargas ultramarinas. O Reino não soube criar relações mercantis com outras nações da Europa".

É evidente que o feudalismo português começava a dar sinais de decadência e de profunda desagregação social.

O regime feudal desagregava-se, o poder absoluto da aristocracia agrária entrava em decomposição e os senhores de terras que escapavam à ruína buscavam nas atividades urbanas novos caminhos para a conservação de seus privilégios. A aristocracia rural trocava os poderes da nobreza pelos do dinheiro.

Mas não ,se conclua daí que, nas novas terras da América, Portugal prolongaria ininterruptamente sua história. Nesse erro incorreram muitos historiadores daqui e d'além-mar. Transplantando para o Brasil o quadro de fenômenos da sociedade portuguesa, muitos historiadores foram levados a admitir o mesmo desenvolvimento aqui, sem qualquer interrupção no seu curso. A colonização, como fruto de expansão do comércio marítimo e da desagregação do regime feudal,

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deveria, de acordo com esse ponto de vista incorreto, seguir no Brasil os moldes da nova sociedade que germinava na metrópole. Nesse caso, nas relações sociais implantadas no Brasil, haveriam de predominar, não os traços da economia feudal decadente, mas os da economia mercantil em formação; e, por conseguinte, a exploração latifundiária, aqui, não teria as características fundamentais do feudalismo, mas as do capitalismo.

Percebe-se o conteúdo apologético dessa concepção errônea, pois com ela se admite que o sistema colonial, ao invés de transportar para o território conquistado os elementos regressivos do país dominante, como de fato aconteceu, abandonaria à sua sorte esses elementos, selecionaria os fatores novos determinantes da evolução social e deles se serviria para fundar, onde quer que fosse, sociedades de um tipo mais avançado que a metropolitana(7).

Ao contrário desse imaginoso, quadro, incorporado ao fabulário do colonialismo, a História nos mostra, não só em relação à colonização portuguesa como no que se refere a todas as outras, que as metrópoles sempre exportam para as colônias, processos econômicos e instituições políticas que procurem assegurar a perpetuação de seu domínio.

Por isso, sempre que a empresa colonial precisa utilizar processos econômicos mais adiantados, ela recorre, como contrapartida obrigatória, a instituições políticas e jurídicas muito mais atrasadas e opressivas. Desse modo, quando os instrumentos de coação econômica se mostram incapazes de atender aos objetivos preestabelecidos, o sistema de coação extra-econômico é acionado com o máximo rigor e levado às últimas conseqüências.

O exemplo brasileiro ilustra e confirma esse imperativo histórico. A despeito do importante papel desempenhado pelo capital comercial na colonização do nosso país, ele não pôde desfrutar aqui a mesma posição influente que começava a assumir na metrópole e não conseguiu impor à sociedade colonial as características fundamentais da economia mercantil, tendo que submeter-se e amoldar--se à estrutura tipicamente nobiliárquica e ao poder feudal instituídos na América Portuguesa.

Por conseguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa,

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não veio continuar-se no Brasil-Colônia, onde o regime econômico instaurado significou um recuo em relação ao seu ponto de partida na metrópole. Para que assim acontecesse, a classe senhorial, despojada ali de seus recursos materiais, empenhou-se a fundo na tarefa de fazer girar em sentido inverso a roda da História, embalada pelo sonho de ver reconstituído o seu passado.

A grande ventura, para os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui os tempos áureos do feudalismo clássico, reintegrar-se no domínio absoluto de latifúndios intermináveis como nunca houvera, com vassalos e servos a produzirem, com suas mãos e seus próprios instrumentos de trabalho, tudo o que ao senhor proporcionasse riqueza e poderio.

Cedo se desvaneceriam as esperanças nesta reconstituição integral das instituições já caducas na sociedade portuguesa. A propriedade da terra era, ainda nesse tempo, um cabedal de nobreza, e a participação da Ordem de Cristo nos frutos da exploração vinha acrescentar aos dons nobiliárquicos a origem mística do direito dominial.

Isso, porém, não bastaria, como não bastou, para que a empresa colonial produzisse os rendimentos que dela era lícito esperar. Daí o fracasso das primeiras tentativas de colonização, o qual poderia muito bem explicar-se pela impossibilidade de uma pura e simples transposição para o Novo Mundo de todos os componentes da estrutura reprodutiva da economia medieval.

Onde não havia o servo da gleba a produzir renda com seus braços, seus animais e seus instrumentos de trabalho, onde a mão-de-obra nativa se mostrava cada vez mais rebelde e reagia violenta ou passivamente contra o cativeiro, a exploração agrária exigiria outros recursos de que a nobreza não dispunha. Naturalmente, em um mundo já invadido pelo poder da moeda, o domínio da terra, nobre, místico, absoluto como fosse, não se transformaria em fonte de riqueza sem um complemento indispensável: o capital-dinheiro.

Os "homens de qualidade", provindos da fidalguia peninsular endividada ou arruinada, não estavam preparados para colher, sozinhos, os pomos de ouro que deveriam nascer da terra. "Esses fidalgos — escreveu Oliveira Viana — vêm de uma sociedade ainda modelada pela organização feudal: só o serviço das armas é nobre, só

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ele honra e classifica. Falta-lhes aquele sentimento de dignidade do labor agrícola, tão profundo entre os romanos do tempo de "Cincinnatus"."

Mas o que mais lhes faltava, realmente, era dinheiro. Por todas essas razões, a empresa colonial teve de realizar-se

mediante a associação de fidalgos sem fortuna e plebeus enriquecidos pela mercancia e pela usura, mas sob uma condição: o predomínio dos "homens de qualidade" sobre os "homens de posse".

Recordemo-nos de que na Península, Portugal inclusive, mais que noutra parte, as formas políticas, os costumes, as idéias religiosas, todas as forças ideológicas do medievalismo estavam profundamente arraigadas. As aventuras marítimas, principal fonte de acumulação primitiva do capital comercial, tinham possibilitado a formação de uma burguesia já bem nutrida de recursos monetários, à qual não se havia, contudo, transferido parcela substancial e decisiva do poder do Estado.

Diogo de Gouveia, que tinha inspirado e formulado os planos da colonização portuguesa da América, não era, positivamente, um ideólogo da burguesia, mas da nobreza. "A verdade era dar, Senhor, as terras a vossos vassalos" — aconselhara ele em sua carta datada de 1532 a El-Rei D. João III.

A posição dominante dos "homens de qualidade" na empresa colonial é um fato bastante explícito em nossa história. Prova-o, sem deixar lugar a dúvidas, o espírito de casta que presidiu a divisão do vasto território conquistado ao gentio, particularmente daqueles quinhões maiores e melhores.

Desde o instante em que a metrópole se decidira a colocar nas mãos da fidalguia os imensos latifúndios que surgiram dessa partilha, tornar-se-ia evidente o seu propósito de lançar, no Novo Mundo, os fundamentos econômicos da ordem de produção feudal. E não poderia deixar de assim ter procedido, porque o modelo original, de onde necessariamente teria de partir — a ordem de produção peninsular no século da Descoberta — continuava a ser, por suas características essenciais, a ordem de produção feudal.

É certo que o feudalismo do Portugal seiscentista não guardava mais o mesmo grau de pureza dos primeiros tempos: já havia passado

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do estágio da economia natural para o da economia mercantil. Mas nenhuma mudança na estrutura social se dera em Portugal, que pudesse justificar sua assemelhação a outro regime historicamente mais avançado.

Eis porque erraram redondamente alguns historiadores e economistas notáveis ao classificarem como capitalista o regime econômico colonial implantado no continente americano.

A extraordinária expansão do comércio marítimo e, como sua decorrência, o enorme incremento da economia mercantil no seio do Portugal feudal do século XVI, levaram Roberto Simonsen a perfilhar tão grave equívoco e a introduzir na historiografia brasileira a tese que influenciou numerosos setores de nossa intelectualidade:

"Na verdade — afirmou Roberto Simonsen — Portugal, em 1500, já não vivia sob o regime feudal. D. Manuel, com sua política de navegação, com seu regime de monopólios internacionais, com suas manobras econômicas de desbancamento do comércio de especiarias de Veneza, é um autêntico capitalista"(8).

E partiu daí para as seguintes conclusões: "Não nos parece razoável que a quase totalidade dos historiadores

pátrios acentuem, em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatárias, chegando alguns a classificá-lo como um retrocesso em relação às conquistas políticas da época. Portugal, desejando ocupar e colonizar a nova terra e não tendo recursos para fazê-lo à custa do erário real, outorgou para isso grandes concessões a nobres e fidalgos, alguns deles ricos proprietários, e outros já experimentados nas expedições das índias. Sob o ponto de vista econômico, que não deixa de ser básico em qualquer empreendimento colonial, não me parece razoável a assemelhação desse sistema ao feudalismo".

Como se vê, Simonsen não se contentara em negar o caráter feudal do regime econômico implantado no Brasil--Colônia; indo mais além, deu por extinto, já no começo do século XVI, o feudalismo em Portugal.

No entanto, os argumentos aduzidos pelo eminente historiador são insuficientes para a comprovação de sua tese. A imagem por ele tracejada do Portugal seiscentista revela uma sociedade onde a produção comercial havia alcançado elevado nível de evolução, onde

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as trocas monetárias tinham atingido apreciável desenvolvimento e já existia o capital-dinheiro, condições essas, peculiares, em proporções crescentes, a toda a longa história vivida pela economia mercantil, desde os primórdios da civilização.

Mas não bastaria a presença de tais categorias econômicas, por maiores que fossem sua amplitude e significação na época, para caracterizar como capitalista o regime econômico de Portugal. Se tomássemos como ponto de referência, para definir e classificar os regimes econômicos, os fenômenos inerentes à circulação, acabaríamos por aceitar a absurda igualdade entre todos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a contar do momento em que abandonou a vida primitiva. Não teríamos, pois, como estabelecer distinção entre os períodos correspondentes à escravidão, ao feudalismo e ao capitalismo, de vez que, em todos esses regimes, com maior ou menor grau, o sistema mercantil está presente.

O básico num regime econômico é o sistema de produção, isto é, o modo por que, numa determinada formação social, os homens obtêm os meios de existência. Assim, o modo por que os homens produzem os bens materiais de que necessitam para viver é que determina todos os demais processos econômicos e sociais, inclusive os processos de distribuição ou circulação desses bens. - No Portugal seiscentista, a principal fonte de produção de bens materiais era a agricultura, embora, como talvez sucedesse, fosse já superior à dos senhores de terras a parcela da riqueza acumulada nas aventuras marítimas pela burguesia comercial, que emergia da sociedade como uma classe de forte potencial econômico.

Essa classe repartia com a realeza o poder do Estado, havia já mais de um século, mas não ocupava ali uma posição dominante e não dispunha de forças suficientes para destruir a ordem de produção vigente, que continuava a ser a ordem feudal.

A ordem feudal vigente na sociedade portuguesa de 1500 tinha sua base interna no monopólio territorial. E como a terra era, então, indiscutivelmente, o principal e mais importante dos meios de produção, a classe que possuía sobre ela o domínio absoluto estava habilitada a sobrepor às demais classes o seu poderio, por todos os meios de coação econômica, e, notadamente, de coação extra-

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econômica. Quando a metrópole decidiu lançar-se na empresa colonial, não lhe

restava outra alternativa política senão a de transplantar para a América Portuguesa o modo de produção dominante no além-mar. E o fez cônscia de que a garantia do estabelecimento da ordem feudal deveria repousar no monopólio dos meios de produção fundamentais, isto é, no monopólio da terra. Uma vez assegurado o domínio absoluto de imensos latifúndios nas mãos dos "homens de qualidade" da confiança de El-Rei, todos os demais elementos da produção seriam a ele subordinados.

E assim aconteceu. O monopólio feudal da terra impôs soluções específicas para os problemas que teve de vencer, sem contudo perder as características essenciais da formação social que tomara por modelo.

O feudalismo clássico havia dado um passo à frente sobre o regime econômico que o antecedeu, com a transformação do escravo em servo da gleba e obteve deste, à custa do estímulo proporcionado por sua condição mais livre, uma produtividade no trabalho bastante superior.

Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feudalismo colonial teve de regredir ao escravismo, compensando a resultante perda do nível de produtividade, em parte com a extraordinária fertilidade das terras virgens do Novo Mundo e, em parte, com o desumano rigor aplicado no tratamento de sua mão-de-obra. Teve ainda, de dar outros passos atrás, em relação ao estádio mercantil que correspondia ao seu modelo, restabelecendo muitos dos aspectos da economia natural. Mas, em compensação, pôde desenvolver o caráter comercial de sua produção, não para o mercado interno, que não existia, mas para o mercado mundial. E, com o açúcar, vinculou-se profundamente à manufatura.

Nenhuma dessas alterações, a que precisou amoldar--se o latifúndio colonial, foi bastante para diluir o seu caráter feudal. Muito freqüentemente as formas escravistas entrelaçaram-se com as formas servis de produção: o escravo provia o seu sustento dedicando certa parte do tempo à pesca ou à lavoura em pequenos tratos de terra que lhe eram reservados. Desse modo, o regime de trabalho escravo se

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misturava com o regime medieval da renda-trabalho e da renda-produto, além de outras variantes da prestação pessoal de trabalho. Não faltava aos senhorios coloniais a massa de moradores "livres" ou de agregados, utilizados nos serviços domésticos ou em atividades acessórias desligadas da produção, os quais coloriam o pano de fundo do cenário feudal.

Fruto dessa estrutura, o sistema de plantação, que vários economistas e historiadores pretenderam apontar como uma unidade econômica do tipo capitalista, constituiu, de fato, e sem qualquer dúvida, a expressão consumada do feudalismo colonial.

No sistema de plantação, como aliás no conjunto da economia pré-capitalista do Brasil-Colônia, o elemento fundamental, a característica dominante, à qual estavam subordinadas todas as demais relações econômicas, é a propriedade agrária feudal, sendo a terra o principal e mais importante dos meios de produção.

O fato de se destinarem ao mercado exterior, sob o controle da metrópole, os produtos obtidos através desse sistema, só contribui para juntar àquele um novo elemento: a condição colonial.

Deter-se nessa controvérsia em busca de um ponto de vista firmado sobre a classificação do regime econômico colonial pode parecer, aos menos avisados, uma inútil perda de tempo e um esforço desnecessário. Entretanto, não se trata de um debate meramente acadêmico e desligado de qualquer sentido prático. Nele estão envolvidas questões de enorme significação para o desenvolvimento econômico e social do país, bem como interesses políticos da máxima relevância, como iremos ver.

A simples eliminação em nossa história da essência feudal do sistema latifundiário brasileiro e a conseqüente suposição de que iniciamos nossa vida econômica sob o signo da formação social capitalista significa, nada mais nada menos, do que considerar como supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura agrária.

Supondo-se inicialmente capitalista o regime econômico implantado no Brasil-Colônia, estaria implícita uma solução inteiramente diversa daquela preconizada pelos partidários da reforma agrária. Se a estrutura agrária brasileira sempre teve uma

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"configuração capitalista", por que revolucioná-la, por que reformá-la para promover o desenvolvimento capitalista do país?

Partindo desse ponto de vista, evidentemente falso, concebe-se uma estratégia política não-reformista ou não--revolucionária, uma estratégia evolucionista: o desenvolvimento gradual, sem reformas. De acordo com ele, acrescentando-se à atual estrutura agrária alguns ingredientes — mais adubação, mais mecanização, numa palavra: mais capital — alcançaríamos a fórmula milagrosa para acelerar o progresso agrícola em geral, sem precisarmos apelar para qualquer reforma de base.

A teoria do capitalismo colonial não é, assim, um achado histórico tão inocente quanto parece. É uma teoria conservadora, reacionária que, bem arrumada, se encaixa perfeitamente nos esquemas políticos mais retrógrados.

A negação ou mesmo a subestimação da substância feudal do latifundismo brasileiro retira da reforma agrária sua vinculação histórica, seu conteúdo dinâmico e revolucionário.

Esse conteúdo dinâmico e revolucionário, na presente etapa da vida brasileira, expressa-se pelo objetivo principal do movimento pela reforma agrária, que é o de extirpar e destruir, em nossa agricultura, as relações de produção do tipo feudal e não as relações de produção do tipo capitalista.

Por aí se vê que, ao admitir-se que a estrutura agrária existente em nosso país foi, desde os mais remotos tempos, e continua sendo, capitalista, está-se admitindo, por coerência, a inoportunidade e a desnecessidade de uma reforma revolucionária, de uma mudança democrática dessa mesma estrutura. Que restaria por fazer, se se tratasse de tornar mais capitalista nossa estrutura agrária já capitalista? Deixá-la como está, inalterada, e apenas injetar nela mais dinheiro, mais capital?

A experiência brasileira encarregou-se de demonstrar que têm sido infrutíferas as tentativas de salvar nossa agricultura latifundiária da crise crônica em que mergulha há cerca de um século, à custa de transfusões de recursos, privilégios e favores, de "valorizações" artificiais, da "fixação do homem à terra", de "reajustamentos econômicos" e outras panacéias do gênero.

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Agora, já penetrou na opinião nacional a consciência de que há, no campo, relações de produção caducas, que precisam ser substituídas por novas relações de produção, sem o que as forças produtivas de nossa agricultura não estarão desimpedidas de desenvolver-se. Quais são essas relações de produções caducas? Essas velhas relações de produção que travam o desenvolvimento de nossa agricultura não são de tipo capitalista, mas heranças do feudalismo colonial. A primeira e mais importante dessas relações de produção, cuja destruição se impõe, é o monopólio feudal e colonial da terra, o latifundismo feudo-colonial.

O monopólio feudal e colonial é a forma particular, específica, por que assumiu no Brasil a propriedade do principal e mais importante dos meios de produção na agricultura, isto é, a propriedade da terra. O fato de ser a terra o meio de produção fundamental na agricultura indica um estágio inferior da produção agrícola, peculiar às condições históricas pré-capitalistas. À medida que o capitalismo penetra na agricultura, vão-se desenvolvendo e aumentando sua produção no conjunto os demais meios de produção, isto é, os meios mecânicos de trabalho, as máquinas ou os instrumentos de produção, as construções, os elementos técnicos e científicos, etc, de tal maneira que, numa agricultura plenamente capitalista, esses passam a ser (e não mais a terra) os principais meios de produção. Quanto à agricultura brasileira, é fato comprovado pelos dados estatísticos que continua a caber à terra aquele papel predominante no conjunto dos meios de produção. Por isso, na situação objetiva de nossa agricultura, dominar a terra, açambarcá-la, monopolizá-la, significa ter, praticamente, o domínio absoluto da totalidade dos meios de produção agrícola.

Acresce que o monopólio da terra, nas condições pré-capitalistas de nossa agricultura, assegura à classe latifundiária uma força maior do que o poderio econômico, uma outra espécie de poder que freqüentemente supera e sobrevive àquele — o poder extra-econômico.

O poder extra-econômico é uma característica e uma sobrevivência do feudalismo. Ele se exerce, ainda nos nossos dias, através do "governo" das coisas e das pessoas dentro e em torno dos latifúndios. Aquilo que Antonil recriminava no século XVIII: "Quem chegou a ter

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o título de senhor, parece que em todos quer dependência de servos" (9), e Koster observava no século XIX: "O grande poder do agricultor, não somente nos seus escravos mas sua autoridade sobre as pessoas livres das classes pobres" (10), revive no século XX, sob a forma do "coronelismo" de antes de 1930, e, com algumas modificações no estilo, permanece até hoje.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 - LÉRY, JEAN DE, Viagem à Terra do Brasil, cd. de 1941, Rio de Janeiro. 2 — MEREA, PAULO, História da Colonização Portuguesa, vol. III, Lisboa. 3 - AZEVEDO, J. LÚCIO DE, Épocas de Portugal Econômico, Lisboa, 1947. 4 - SANCHEZ ALBORNOZ, CLÁUDIO, La Edad Media y Ia Empresa de

América, La Plata, 1934..5 - NORTHCOTE PARKINSON, C., East and West, Londres, 1963.

6 — OLIVEIRA LIMA, Pernambuco e seu Desenvolvimento histórico, Leipzig, 1895.

7 - GUIMARÃES, A. PASSOS, Quatro Séculos de Latifúndio, S. Paulo, 1963. 8 - SIMONSEN, ROBERTO, História Econômica do Brasil, S. Paulo, 1937. 9 — ANTONIL, A. J., Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas,

ed. do 1923. 10 - KOSTER, HENRY, Traveis in Brazil, Londres, 1817.

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CAPITULO IV O BRASIL COLONIAL: A AUSÊNCIA DO POVO OU A LUTA CONTRA O

PROGRESSO DIVIDIAM-SE AS simpatias da metrópole portuguesa entre os

"homens de qualidade" e os "homens de posse", estes os mais desejados quando se tratava de fixar na agricultura os grandes interesses da exploração colonial.

Na luta entre a decadente classe senhorial portuguesa, detentora de grandes poderes feudais, apoiada pela Igreja, herdeira das tradições mais vivas do medievalismo, e a burguesia nascente que se ligava por muitos interesses comuns à realeza, nesse conflito que foi a característica dominante do século XVI, é possível encontrar-se a explicação de muitos dos aspectos ainda obscuros de nossa história. Eram interesses contraditórios os daquelas classes e por isso as concessões da realeza aos nobres feudais (em muitos casos sob o patrocínio da Igreja) e, vice-versa, as vitórias dos comerciantes sobre os interesses da nobreza, apareciam no cenário da colônia como outras tantas contradições não muito fáceis de explicar, se se toma uma sociedade ou uma nação como um todo indivisível.

Se no fim do século XV o feudalismo ainda imperava quase que despòticamente, em meados do século seguinte tomava corpo uma classe mercantil cosmopolita, rica e influente, com tendências e

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interesses opostos aos dos barões feudais. Daí por diante, tendiam a agravar-se os choques de interesses entre

um mundo decadente — o do feudalismo — e o que nesse mundo se gerava, como fruto de suas entranhas — o mundo da burguesia.

Haveria de corresponder aos interesses dos mercadores utilizar as colônias para fins exclusivamente de comércio, tendo por base a riqueza extrativa, a preia de índios, o tráfico de escravos. Ao contrário, os cavaleiros feudais miravam as colônias, vendo-lhes principalmente o colosso territorial.

A legislação de sesmarias representava, em Portugal, uma tentativa para salvar a agricultura decadente, para evitar o abandono dos campos, que se acentuava à medida que se decompunha a economia feudal, na razão do crescimento das atividades dos centros urbanos. Era, em sua interferência na propriedade agrária, uma tímida restrição ao Direito Feudal, embora, bem se possa avaliar, muito difícil de ser praticada.

Devia ser bastante grave, no Portugal seiscentista, a situação da agricultura, a miséria e o despovoamento das zonas rurais, para justificar as medidas que com tanta freqüência aparecem nos forais e nas ordenações da época. As leis cominavam penas aos proprietários que não mantivessem suas terras cultivadas. Advertidos, se não voltassem a produzir dentro de um certo tempo (seis meses, um ano ou dois anos), perderiam por completo o domínio sobre suas terras, as quais passariam a pertencer a quem as cultivasse.

Eis porque, às voltas com tais problemas, sem ter meios de resolvê-los no limitado espaço da Península, não poderia interessar-se a metrópole pela granjearia das novas terras cuja grandeza só enchia de fascinação os olhos dos fidalgos. A nova classe dos ricos já era, a esse tempo, bastante esperta para não considerar fácil negócio a aventurosa agricultura no além-mar. É quando surge um produto milagroso — o açúcar — capaz de modificar os rumos da História.

Os nossos ricos massapês provavam ser terras de primeira ordem para as plantações de sua matéria-prima: a cana. Quanto à técnica, a Ilha da Madeira fornecê-la-ia. Indústria das mais rendosas, em plena revolução dos preços, havia que subverter um princípio sagrado da colonização, instalando-se suas fábricas em território colonial e não

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metropolitano como as demais manufaturas. É que sua matéria prima não fora feita para as travessias distantes. Tinha de ser industrializada no próprio sítio onde se plantasse, sob pena de ressecar e se perder. A experiência já havia indicado que, se receios houvera da parte da metrópole, estes se dissipariam. A própria geminação da agricultura com a fábrica se fizera e continuaria a se fazer com a submissão da fábrica à agricultura, ao domínio absoluto e nobiliárquico da terra. Estando a propriedade nas mãos da fidalguia lusa, nada havia que recear quanto às tendências emancipadoras da indústrias.

Caberia ao açúcar uma função excepcionalmente importante. O seu modo de produção permitiria a Portugal materializar, numa admirável síntese, a solução dos seus problemas fundamentais, do seu dualismo econômico. Viria o açúcar possibilitar a ocupação da terra em moldes inteiramente ao gosto feudal da época. Por outro lado, a certeza de grandes lucros bastaria para atrair a classe dos mercadores, cujos representantes seriam intermediários e banqueiros dos nobres na empresa do açúcar.

O afluxo dos metais preciosos aumentava na Europa. Expandiam-se o comércio e os mercados, os preços continuavam a elevar-se e o consumo de todos os artigos, inclusive do açúcar, crescia progressivamente. Os navegadores portugueses viriam, igualmente, colher benefícios com a produção do produto milagroso, que chegou a ser, durante quase um século, o gênero predominante no comércio internacional.

Foi o modo de produção do açúcar aqui implantado que configurou nos primeiros tempos da colonização o regime de terras e, demais, toda a sociedade que então sobre ele ,se erguia. Modo de produção talvez sui-generis na história, pois que reunia elementos de três regimes econômicos: o regime feudal da propriedade, o regime escravista do trabalho, o regime capitalista do comércio. A sesmaria encontrara no açúcar o seu destino econômico.

Coube a Martim Afonso de Souza, a quem a metrópole conferira amplos poderes, lançar as bases, na colônia ainda desprezada, de uma nova política econômica que se apoiaria sòlidamente em duas instituições — a sesmaria e o engenho — as quais constituíram os pilares da antiga sociedade colonial.

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Desse modo, passaria a Colônia de Vera Cruz a uma etapa mais adiantada de sua exploração. À fase puramente extrativa, em que não haviam medrado satisfatoriamente umas poucas feitorias esparsas, se sucederia uma fase de exploração melhor organizada, tendo por base a utilização extensiva da terra e o imediato aproveitamento de sua matéria-prima fundamental: a cana-de-açúcar.

A substituição da riqueza extrativa desorganizada, sobre a qual não se poderia exercer um mínimo de controle fiscal e administrativo, pela produção organizada, tendo por centro a lavoura açucareira e seu aproveitamento industrial, caracterizou as origens do sistema agrário cujas marcas profundas até hoje permanecem nítidas em nossa história.

Simultaneamente, acompanhando os primeiros passos da formação da propriedade, germinavam as sementes do Estado: "Quando D. João III dividiu sistematicamente o nosso território em latifúndios denominados Capitanias, já existiam aqui capitães-mores nomeados para as Capitanias do Brasil. O que se fez então foi demarcar o solo, atribuir--lhes e declarar-lhes os respectivos direitos e deveres e os direitos, foros, tributos e cousas que tinham os colonos de pagar ao Rei e aos Donatários, passando-se a cada um deles a sua carta de doação, ou donatária, com a soma dos poderes forais, que eram uma espécie de contrato em virtude do qual os sesmeiros ou colonos se constituíam perpétuos tributários da Coroa, ou dos seus donatários ou capitães-mores. A terra dividida em senhorios, dentro do senhorio do Estado, eis o esboço geral do sistema administrativo na primeira fase de nossa história (1).

Estruturavam-se, assim, tanto a propriedade como o Estado, sob os mesmos moldes e princípios que regiam os domínios feudais: grandes extensões territoriais entregues a senhores dotados de poderes absolutos sobre as pessoas e as coisas.

Dentro desse sistema regulava-se a hierarquia, tanto pelo isolamento das distâncias geográficas, quanto pela força das armas. E como a extensão das terras, da mesma maneira que a quantidade das armas, existiam muitas vezes em função do poder do dinheiro, não é exclusivamente o sangue, mas, daí por diante, a posse da terra e da riqueza em geral que se torna o brasão da aristocracia rural.

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As duas instituições fundamentais, a sesmaria e o engenho, transformaram-se numa unidade econômica, numa mesma unidade produtora. A ela a Coroa dispensa todas as suas atenções e não são raras as provas de que o sistema aplicado ao Brasil, já experimentado com êxito em outras colônias portuguesas, para aqui se transplantava deliberadamente, em virtude de um plano preestabelecido.

Nada há de acidental, por conseguinte, no fato de se iniciarem as atividades econômicas em nossa terra, sob o signo da grande propriedade, da grande lavoura. A intenção da metrópole era realizar o que efetivamente foi cumprido : pôr nas mãos da fidalguia o monopólio de grandes tratos de terreno, enfeudá-los segundo as suas mais puras tradições jurídicas e, ao lado disso, associar na empresa os "homens grossos", os mais diletos filhos da classe burguesa, enriquecida na mercancia.

Também não seria obra do acaso o ter-se enfeixado nas mãos de Martim Afonso poderes para doar terras e construir engenhos, missão dúplice que o Alcaide-Mor da Casa de Bragança soube muito bem cumprir.

Tão prático se mostrou o Alcaide-Mor que, segundo se conta, tratou de associar-se a banqueiros flamengos e alemães para a instalação de boa parte dos engenhos aqui montados.

Os empreendimentos de Martim Afonso, depois da ausência deste, encontraram continuador à altura no donatário de Pernambuco, Duarte Coelho, cujos esforços nos são revelados através de sua correspondência ao Rei de Portugal: "Dey ordem de se fazerem enjenhos daçuquares que de lá de Portugal trouxe contratados" e "cedo acabaremos hum enjenho mui grande e perfeito e amdo ordenando de começar outros" — dizia em carta de 27 de abril de 1542. Também em carta de 14 de abril de 1549, Duarte Coelho se referia a um engenho "de minha lavra", empenhando-se em fundar outros "que he cousa reall e que muito aumenta e acrescenta ho bem da terra"(2).

Eram passados já 15 anos desde que Martim Afonso recebera as suas três cartas regias e a instalação de engenhos continuava a ser a principal preocupação dos colonizadores, como se vê dos termos dessa mesma missiva de Duarte Coelho, datada de 1549: "entre todos os moradores e povoadores huns fazem enjenho daçuquer porque são

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poderosos para ysso, outros canaveaes e outros algodoaes e outros mantymentos que he a principall e mais necessarya cousa pera a terra... outros são mestres demjenhos e outros mestres daçuqueres, carpynteiros ferreiros oleiros e ofycyaes de formas e synos para os açuqueres ... e os mando buscar a Portugal e a Calyza e as Canareas as minhas custas e alguns que os que vem a fazer enjenhos trazem" (3).

Outras atividades nasciam, é evidente, mas em torno das sesmarias transformadas em engenhas. A agricultura dos mantimentos, apesar de reconhecidamente a cousa principal e mais necessária da terra, continuaria a ser, pelos séculos afora, subordinada ao poder absorvente do açúcar, isto é, ao monopólio da terra, o que equivale a dizer, à monocultura.

Noventa anos mais tarde, em 1639, ao tempo da dominação holandesa, Van der Dussen, às voltas com a escassez de alimentos, clamava em seu relatório dirigido à Câmara dos XIX da Companhia das índias Ocidentais, em Amsterdã: "Assim V. Ex.as devem manter sempre os armazéns bem providos de víveres sem fazer conta dos produtos da região — nem dos víveres que os comerciantes ou os particulares enviam para lá — porque estes são quase todos consumidos nos engenhos e vendidos pelo interior. De modo que, quando as misérias surgem e se pensa em obter algo dos comerciantes, encontra-se tudo vazio, como nos aconteceu nos extremos que passamos."

Este o quadro que permanecia durante todo o período colonial. A terra enfeudada açambarcava a energia humana disponível, aplicando-a exclusivamente a serviço dos senhores daqui e d'além-mar. Obter o máximo de rendimento em riqueza e tributos era o objetivo da dominação, pouco se lhe dando atender às prementes necessidades dos que, desaquinhoados, nada possuíam além de sua força de trabalho.

Não que faltassem leis, de certo impotentes quando se tratava de contrariar o regime dos senhorios.

A "mesquinha plantação de mandioca" como a chamava, em 1807, Rodrigues de Brito, "que se dá em toda a qualidade de terra", não caberia nos "raros e preciosos torrões de massapê, aos quais a natureza deu privilégio de produzirem muito bom açúcar"(4).

Mas, como não somente os torrões de massapê e sim toda a terra

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próxima aos centros de consumo pertencia aos grandes senhores, onde assentar as culturas de subsistência?

A verdade é que, desde suas origens, a sesmaria e o engenho erguiam intransponível barreira à cultura dos mantimentos, à pequena e pouco rendosa agricultura de subsistência.

Elevava-se bem alto, nessa época, o prestígio econômico e também político dos senhores, a julgar pelo que confessava Duarte Coelho numa de suas cartas de 1549: — "antes vou contra o povo que contra os donos dos engenhos."

Acontecimentos da maior importância para a evolução da economia brasileira assinalam-se porém, a partir da época em que foi instalado, na Bahia, o governo de Tomé de Sousa.

"Para a Bahia e Pernambuco, nota Felisberto Freire, afluía de preferência quem queria tirar da terra a renda por meio de escravos e do agregado. O proprietário territorial que vivia na capital, no gozo da Corte, tinha quem desbravasse as florestas e amanhasse suas terras. Já no Rio e em São Paulo e Espírito Santo, principalmente no século XVI, é o próprio lavrador quem, ao lado do seu escravo, vai fazer o trabalho agrícola".

Revela o autor da História Territorial do Brasil, o caráter de classe que presidia as doações de terras desde o primeiro século da colonização: "As concessões no Norte abrangiam em geral uma maior extensão territorial do que no Sul. Com exceção feita da donatária do Visconde de Asseca, em Campos, as sesmarias no Sul não excediam de três léguas de extensão, quando no Norte havemos de encontrar concessões de 20, 50 e mais léguas. Basta assinalar as concessões de Garcia d'Ávila e seus parentes que se estendiam da Bahia até o Piauí, em uma extensão de 200 léguas"(5).

E quais os motivos que teriam determinado essa tremenda diferenciação quantitativa e qualitativa nas concessões de sesmarias? Responde Felisberto Freire: "A causa disto está na desigualdade social do colono que vinha para o Brasil... Essa diferença de colonização torna evidente que no Norte o trabalho de povoamento encontrou óbices e deles o principal eram as extensas concessões que foram feitas, colocando o membro do povo na posição de ser ou um simples arrendatário ou colonizar as zonas do sertão, cheias de índios e das

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maiores dificuldades, perante as quais escasseavam os recursos do pobre.

Vem daí o fato de ter surgido primeiramente no Norte, e antes de findo o século XVI, a renda agrária no seu típico sentido parasitário, antiprogressista, e com ela uma casta separada da produção, por conseguinte supérflua e nociva aos interesses da sociedade. "Em geral os concessionários eram a nobreza da capital da capitania, muitos deles órgãos e representantes do próprio governo. Aí estão D. Álvaro da Costa, Tome de Sousa, Miguel de Moura e muitos outros, cujas sesmarias, pela sua grande extensão territorial, eram verdadeiras donatárias. Iniciou-se, então, o regime do arrendamento aos pequenos colonos. Aí está o procurador de D. Álvaro a subdividir a doação por entre eles, criando-se assim a classe dos agregados agrícolas, que tanto contribuiu para a prosperidade do agricultor. Foi essa classe justamente que, entre nós, criou a primeira forma do trabalho livre, na indústria agrícola, ao lado do trabalho escravo".

O preceito das Ordenações do Reino, estabelecendo que as doações de sesmarias deveriam ser limitadas à capacidade de exploração de cada concessionário, de modo que não se "dessem maiores terras a huma pessoa que as que razoavelmente parecer que poderão aproveitar", tornara-se prática ineficiente. O Regimento de Tome de Sousa viera ratificar, e não introduzir, como afirma Cirne Lima(6), em lei expressa aplicável a toda à colônia, o "espírito latifundiário" que influenciava as datas de terras.

Para os poderosos de então, que tivessem o prestígio da nobreza ou do dinheiro, as concessões não encontrariam limites, além dos confinados pela força das armas nas lutas pela expropriação do indígena.

Os favores da metrópole inclinavam-se para os pretendentes que dispusessem de recursos bastantes para iniciar numa parte apenas dos senhorios uma exploração qualquer, contanto que erigissem fortificações e defesas para manter os seus domínios através de regiões incomensuráveis.

A condição social do concessionário era, em última instância, o fator decisivo no regime das doações. Deve-se exclusivamente a isso, como já vimos, a desigualdade com que os pretendentes eram

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contemplados; aqui e ali, os grandes e pequenos sesmeiros, se é que a estes, favorecidos pelo mínimo legal de três ou quatro léguas de terras, cabe aquela denominação. Esclareça-se que as menores sesmarias eram, contudo, domínios imensos comparados com a capacidade de utilização de cada colonizador ou de cada família, e longe se acham daquilo que razoavelmente estava ao alcance de um homem de medianas posses cultivar.

A desigualdade na distribuição não iria, como nunca foi, ao ponto de extremar, de um lado, imensos senhorios e, de outro lado, pequenos lotes, concedidos a pessoas de pequenos recursos, a homens do povo. Não chegaria a distribuição das sesmarias, por mais desigual e injusta que fosse, a se afastar dos limites da classe dos senhores. Apenas a injustiça consistia, para a época, em criar a desigualdade dentro da classe dominante, composta de nobres e plebeus ricos ou remediados, os "homens bons" de qualidades ou de posses, únicos, por sua condição, a merecerem o dignificante título de senhores da terra.

Não nos parece que tenha jamais passado pela mente da Corte portuguesa colocar a terra nas mãos dos homens do povo, o que sempre foi desaconselhado pelo espírito da época, além de se ter por antieconômico, no melhor conceito wakefieldiano corporificado em doutrina, tempos depois.

Afora os senhores de terra e os homens de posse, nada mais havia nesta sociedade nascente a ser tomado em consideração. A massa popular, integrada pelas camadas despossuídas, não participava da vida do país senão como uma força primitiva de produção. Como uma força animal de produção, como os bois dos engenhos, passivamente encangados no carro da economia feudal. Sem vivência, sem sentido humano, marginalizados da sociedade dominante e sem nenhuma porta de acesso aos direitos e vantagens que a mesma desfrutava.

As leis, baixadas com o propósito de restringir as proporções dos territórios concedidos, responderiam apenas, e vagamente, aos insistentes abusos e às repetidas demandas, nas quais levavam sempre a melhor os senhores mais poderosos, com prejuízo da marcha da colonização que se desejava acelerar.

Numa tentativa para pôr termo aos excessos, várias cartas regias se expediam, regulando o tamanho das sesmarias, entre as quais a de 27

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de dezembro de 1695, que recomendava não se concedessem a cada morador mais de quatro léguas de comprimento e uma de largo, "que é o que comodamente pode povoar cada morador", segundo consta de um manuscrito atribuído ao Marquês de Aguiar(7).

Bem se pode imaginar quão dificilmente eram aplicadas as restrições, que as leis sucessivamente impunham à esterilidade do sistema imperante, visando, como é natural, ao acréscimo da produção e, conseqüentemente, dos tributos à metrópole.

Lembremo-nos de que o sistema mercantil, tentando suceder a economia natural, impulsionava a divisão social do trabalho. Ao mesmo tempo, os senhores da terra, que se afastavam da produção, subdividiam a exploração de seus domínios em parcelas, entregando-as aos lavradores, destes usufruindo a renda agrária.

Desse modo se golpeava o conteúdo por assim dizer metafísico da legislação sesmeira, a qual impunha, em tese, aos beneficiários, a obrigação de cultivar, por seus próprios recursos, as terras doadas. Acreditamos que, particularmente, em virtude do número crescente dos arrendamentos, viria a Real Ordem de 27 de dezembro de 1695 inaugurar a cobrança de um tributo até então inexistente. Instituía-se, assim, "além da obrigação de pagar dízimo à Ordem de Cristo, e às mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza e a bondade da terra". Não se conhecem, entretanto, provas de que tal determinação fosse cumprida antes do ano de 1777, quando Manoel da Cunha e Menezes, governador da Bahia, começou a cobrar foro de cada nova sesmaria concedida.

O século XVIII assinalaria a estratificação da propriedade sesmeira. Dentro do crescimento generalizado das atividades econômicas rurais e urbanas, fortalece-se ainda mais o monopólio da terra, reforça-se o poder absoluto dos grandes senhores, ao mesmo tempo em que as camadas menos providas da população se encontram em dificuldades cada vez maiores. Já havia a Coroa percebido a necessidade de distinguir em sua desordem administrativa, de que Caio Prado nos dá uma excelente descrição(8), os dois campos fundamentais em que se separavam as forças econômicas da colônia. Consultaria melhor os interesses da metrópole colocar-se ao lado dos senhores mais poderosos, respeitar-lhes os privilégios antes que

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contrariá-los. Nem se compreenderia que fosse de outro modo, conhecidas as condições econômicas e políticas do Reino. À medida em que se agravava o processo de desagregação da sociedade portuguesa, desenvolviam-se, igualmente, no Brasil colonial, os antagonismos de classe.

De um lado, brasileiros proprietários, que se consideram a nobreza da terra, educados num regime de vida larga e de grandes gastos, desprezando o trabalho e a economia; doutro, o mascate, o imigrante enriquecido, formado numa rude escola de trabalho e parcimônia e que vem fazer sombra com seu dinheiro à posição social daqueles. A oposição ao negociante português — mascate, marinheiro, pé-de-chumbo, o epíteto com que o tratam varia — se generaliza, porque este, empolgando o comércio da colônia, o grosso como o de retalho, exclui dele o brasileiro, que vê cercearem-se-lhe os meios de subsistência. O conflito assim se aprofunda e se estende.

O que se passava no Brasil nada mais seria do que um aspecto particular da expansão mundial da economia burguesa, necessariamente oposta aos interesses da economia feudal. Aqui, o caráter contraditório do desenvolvimento burguês exprimia-se pelas relações de devedor e credor entre proprietários agrários e comerciantes, aqueles, já no correr do século XVIII, seriamente endividados em conseqüência dos efeitos de uma crise que atingia nossos principais produtos de exportação.

A esse tempo, acentuava-se a avidez tributária da Coroa que aqui vinha buscar, a todo transe, através do dízimo e dos subsídios de várias espécies, os meios para cobrir os extraordinários gastos a que levavam seus desmandos. Mas, nesse empenho de oprimir e espoliar a colônia, seriam de certo modo poupados os senhores poderosos, também menos atingidos pela crise, em prejuízo da desabrida corrida aos tributos.

A aristocracia rural constituía, com poucas exceções, os pontos de apoio da metrópole em sua política de drásticas restrições ao progresso das manufaturas, na supressão dos ofícios, na destruição das fontes de riqueza que pudessem concorrer com a propriedade burguesa da metrópole. Acentuava-se o monopólio reinol ao mesmo tempo em que aqui aumentava a concentração dos bens de produção

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nas mãos de uma casta privilegiada. E aí está porque o relativo progresso da economia mercantil, em Portugal, refletia-se no Brasil, contraditòriamente, pelo fortalecimento da propriedade agrária feudal.

A caça ao ouro, o desenfreado ciclo de mineração que foi a atividade dominante no terceiro século e que produzira conseqüências desastrosas para a nossa lavoura, causa de tantos conflitos entre os interesses econômicos nacionais e os dos colonizadores, não fora capaz de afetar a marcha avassaladora da grande propriedade latifundiária. Pelo contrário, enquanto as atividades agrícolas em geral declinavam, enquanto empobrecia a lavoura e os campos ficavam abandonados, uma minoria de poderosos resistia às dificuldades e tirava partido desta anômala situação, enriquecendo ainda mais.

Passadas as ilusões, esgotados os veios auríferos, desbaratadas as atividades mineradoras, a colônia apresentava um quadro desolador, um incrível contraste que só o monopólio da terra poderia explicar. Terras abandonadas por toda a parte e uma enorme massa humana privada de trabalho em face dos tremendos empecilhos legais que se antepunham à pequena e média propriedades.

A legislação de Sesmarias, traída em suas origens pelo monopólio feudal, revelava-se incapaz de servir às finalidades expressamente declinadas em seus textos: a disseminação das culturas e o povoamento da terra.

De acordo com os preceitos que regulavam a concessão de sesmarias, estas eram concedidas sempre a título precário e sob três condições: medição, confirmação e cultura. A primeira dessas condições — a medição — era raramente observada, o que se explica pelo elevado custo dessa operação, assim como pela escassez de técnicos capazes de levá-la à prática; quanto às outras duas, e principalmente à última, não havia como justificar o seu descumprimento.

As cartas de sesmarias eram dadas com base em informações imprecisas e às vezes falsas dos pretendentes, sucedendo até que, por falta das necessárias referências, as mesmas terras se concediam a duas ou mais pessoas. Isto facilitou enormemente a absorção das terras de pequenos e indefesos proprietários por poderosos latifundiários. Tinha assim origem a mais deslavada grilagem (termo

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de gíria, para denominar a apropriação indébita de terras) das terras no Nordeste, de que até agora não nos livramos totalmente, responsável pelo desencadeamento de terríveis choques armados e lutas de famílias.

Pelo seu pitoresco e para ilustrar o exposto, vale referir o que se conta a respeito dos vagos limites de um vasto latifúndio da região. Em quadro pendurado na parede, o seu proprietário assim definia os confrontantes de sua fazenda: "Ao norte limitada pelo rio Taquari, embora longe; ao sul, enxergando a serra; ao nascente por uma lagoa que às vezes seca; ao poente só Deus é quem sabe".

A exigência de cultivar terras doadas era inerente ao próprio instituto sesmeiro, que para tal fora criado, pois, como já tivemos ocasião de dizer, ele representa uma restrição ao direito de propriedade, ao considerar reversível ao patrimônio público, a terra que não fosse utilizada.

A partir de 1780, as cartas de sesmaria exigiam que nunca se dividissem as terras, o que obviamente veio impedir, ou pelo menos dificultar o parcelamento dos extensos latifúndios. Tal imposição, que atrasou por muitos anos o aparecimento da pequena propriedade territorial, atendia às necessidades e aos imperativos da economia agrícola nordestina, baseada nas lavouras de cana, nos engenhos de açúcar e na pecuária, atividades estas tradicionalmente famintas de terras.

Consolidava-se, cada vez mais, o tripé em que se apoiou quase toda a economia nordestina até o fim do século passado: o latifúndio, a monocultura e o braço escravo. Nem mesmo foi capaz de abalá-lo a luta que Maurício de Nassau, durante a ocupação holandesa no Nordeste do Brasil, moveu contra a monocultura, ao obrigar os senhores de engenho a cultivar mandioca e ao distribuir terras aos colonos pobres, garantindo-lhes a compra de toda a produção.

A pequena propriedade, convém notar, não podia medrar na economia colonial do Nordeste, posto que o trabalho livre de pequenos lavradores se mostrava incapaz de desbravar uma vasta terra ainda virgem. Além disso, a grande propriedade em culturas tropicais, mesma com técnica primitiva, era ainda a mais rendosa.

No Nordeste, havia ainda outras razões poderosas para galvanizar

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a grande propriedade. A instalação de um engenho de açúcar — principal riqueza da colônia —demandava, no mínimo, uns trezentos mil cruzeiros e de 150 a 200 trabalhadores. Não havia mercado interno para a pequena lavoura independente, tanto mais quanto as grandes propriedades rurais produziam quase todo o necessário para o seu consumo interno. Só as grandes propriedades rurais tinham meios para defender-se da agressividade dos índios. E, finalmente, a própria legislação protegia os latifundiários, ao proibir a produção de aguardente em pequenas engenhocas e de algodão em reduzidas glebas.

A Resolução de 17 de julho de 1822, extinguindo o regime de sesmarias no Brasil foi o reconhecimento tácito de uma situação insustentável, cujas conseqüências poderiam de tal modo agravar-se, constituindo uma verdadeira ameaça à propriedade latifundiária. Referimo-nos a um acontecimento da maior significação para a história do monopólio da terra no Brasil: a ocupação, em escala cada vez maior, das terras não cultivadas ou devolutas, por grandes contingentes da população rural.

Foram esses contingentes de posseiros ou intrusos, como passavam a ser chamados, que apressaram a decadência da instituição das sesmarias, obrigando as autoridades do Brasil colonial a tomarem outro caminho para acautelar e defender os privilégios da propriedade latifundiária.

Com eles surge nova fase da vida agrária brasileira, pois sua luta por novas formas de apropriação da terra foi que tornou possível, mais tarde, o desenvolvimento de dois novos tipos menores de propriedade rural: a propriedade capitalista e a propriedade camponesa. Inicia-se, com a pecuária, um período em que a sesmaria gera um novo tipo de domínio territorial: a fazenda.

As primeiras doações da terra visando à penetração no interior da Bahia, em direção à bacia dos seus mais importantes rios, tiveram lugar na segunda metade do século XVI, após o estabelecimento ali, do governo geral. "Deitar gado dentro de seis meses", ou, no mesmo prazo, "deitar fazenda" — eram exigências que figuravam em quase todas as datas.

Revelava a metrópole a intenção de ampliar os seus objetivos

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colonizadores, reservando a faixa litorânea para fincar, principalmente nas melhores e mais próximas terras, a exploração açucareira e fazendo da pecuária o seu segundo grande instrumento de ocupação, sem dúvida o mais indicado para o alargamento da fronteira econômica.

Surgia a fazenda como o segundo tipo de domínio latifundiário que, de início, ligava o seu nome unicamente à pecuária e, depois, serviria para designar quaisquer outras grandes propriedades destinadas à agricultura.

Tivessem, embora, engenho e fazenda a mesma origem, frutos como eram da mesma política colonizadora do Reino, que pretendia, acima de tudo, imprimir um sentido de casta à distribuição das sesmarias, não tardou que acontecimentos imprevistos impusessem caminhos diferentes àqueles dois tipos fundamentais de propriedade latifundiária.

Fixar-se-iam nos engenhos todos os desígnios da nobreza territorial, neles ,se concentraria toda a força do monopólio da terra, toda a resistência contra a infiltração das formas "plebéias" de propriedade. Ali, a metrópole haveria de encontrar, por muito tempo, principalmente entre os grandes senhores, os seus pontos de apoio e a mais completa colaboração para a empresa colonial.

As atenções e esperanças dos mercadores, dos usurários, convergiam também preferentemente para os engenhos. Eram estes o grande mercado para a escravaria e para a usura. Eram os centros de consumo realmente importantes, para os objetos de luxo e as bugigangas européias.

Entretanto, desde seus primeiros instantes e pelo menos até o século XIX, a fazenda provocaria um rompimento parcial das heranças medievais e escravistas incorporadas nos senhorios açucareiros.

O engenho havia de ser, muito mais que a fazenda, uma unidade produtora autônoma e forte. Sua força residia menos na sua riqueza econômica do que nos privilégios que lhe eram conferidos: as torres, as armas, o monopólio feudal da terra, o domínio sobre as coisas e sobre os homens.

Era o engenho uma organização híbrida porque representava a

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conjugação de sistemas econômicos historicamente distanciados. Erguia-se sobre uma base orgânica feudal, caracterizada pelo regime de propriedade e de administração: verdadeiro senhorio regido pelos códigos da nobreza territorial, com seu proprietário à frente da produção. O ser senhor de engenho "he título que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos", segundo Antonil. Dentro desta estrutura feudalizada, predominava o trabalho escravo, elemento componente de um regime de produção anacrônico, tomado da antigüidade clássica e já largamente utilizado por Portugal em outros domínios.

A este misto de senhorio feudal e patriciado rural, numa combinação de atividades agrícolas e manufatureiras, vinham juntar-se formas assalariadas de trabalho, oficiais recebendo soldadas, antecipando-se em tímidos e raros esboços ao regime da produção capitalista — tal era a economia açucareira. Todavia, esse conjunto prenhe de antagonismos formava uma amálgama, uma unidade de forças contrárias, em que se fundiam, num extremo, as mais rudes relações de domínio e, noutro extremo, a pior e mais vil subordinação do ente humano. Estranha unidade de produção, em que os homens livres regrediam à condição de servos, os servos à condição de escravos, ao mesmo tempo que mercadores se convertiam em nobres, e os nobres saídos do feudalismo se transformavam em senhores de escravos.

Essa unidade produtora — o engenho — foi a célula da sociedade colonial, tornando-se por muito tempo, a base econômica e social da vida brasileira. Era, como a sociedade que dele nascera, medularmente feudal. E se se quer dar uma designação mais precisa, tendo em conta os aspectos fundamentais de seu modo de produção, como feudal--escravista é que se deve definir tanto o engenho, como todo o período colonial da sociedade brasileira.

No engenho atuava sempre, imprescindivelmente, como agente direto da produção, como homem de "cabedal e governo", o seu proprietário e senhor. Aliás, senhor único e absoluto, pois nunca ou quase nunca existiram, durante toda a história dos engenhos, propriedades que não fossem de um homem ou de sua família, ausentes em nosso meio rural também esses traços associativos tão

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evidentes já na economia mercantil seiscentista. A esse respeito note-se que o engenho era um senhorio familiar, que não poderia ser compatível com a importuna presença de sócios endinheirados, intrusos não consangüíneos que disputassem o governo do clã e da propriedade. O poder feudal do senhor à frente de seus negócios, sua fixação na propriedade, são características que devem ser guardadas como distinção das mais importantes entre o engenho, como propriedade territorial latifundiária, e a fazenda que, com a pecuária a princípio, e mais tarde com outras formas de exploração, condiciona a divisão social do trabalho, separando o proprietário da produção. Lavradores e rendeiros, nos engenhos estão longe ainda de representar o desenvolvimento ulterior da renda agrária, sua evolução para renda-dinheiro ou sua aproximação da renda tipicamente capitalista. As contribuições que lhes impunham os senhores não passavam de tributos feudais, de formas pré-capitalistas de renda.

Por muitas razões, a economia açucareira circunscrevia, obstinadamente, a vida social aos esparsos núcleos rurais, nada ou só indiretamente influenciando o crescimento das atividades urbanas. Como nos tempos medievais, dos senhorios açucaceiras emanava o poder exercido pelo campo sobre a cidade, até que esta se transformasse, de simples refúgio da parte mais pobre da população, em centros de comércio e de usura, capazes de atender às solicitações angustiadas dos senhores de terras, vítimas de aperturas financeiras. À medida que as cidades se desenvolvem, cresce o antagonismo com o poderio rural, e o conteúdo material desse antagonismo é a hipoteca, o endividamento dos senhores de terra aos negociantes das cidades, tornando aqueles cada vez mais dependentes destes. Essa situação explica a origem de vários movimentos políticos e insurrecionais de que está cheia nossa história, em que se colocam, de um lado, os senhores de terras endividados, as camadas populares descontentes e, de outro lado, os comerciantes e usurários reinóis, apoiados pela Coroa e ligados por muitos interesses comuns às oligarquias locais, constituídas pelos latifundiários de grandes recursos.

Conta o senhorio açucareiro com uma tradição de lutas constantes, quase contínuas, por sua conservação, pela defesa de suas prerrogativas econômicas, sociais e políticas, pela integridade do

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monopólio da terra. Organizara-se o engenho, desde sua formação, como praça d'armas, como autêntica fortaleza feudal, capacitada para repelir os ataques do gentio que tentasse recuperar as terras que lhe pertenceram. Depois, as incursões dos quilombolas e as invasões estrangeiras forneceriam aos senhores de engenho outras tantas oportunidades de se exercitarem como homens de combate. Algumas vezes suas lutas coincidem com os legítimos interesses nacionais, com os anseios populares. Eis-nos diante de um dos aspectos contraditórios do latifúndio açucareiro: seu esforço pela perpetuação — que obedece a um impulso conservador, contrário à evolução da sociedade — combina-se com a defesa de postulados sagrados nitidamente patrióticos e progressistas. Mas é a ordem rural, a ordem feudal, que acima de tudo defendem contra invasores de tendência acentuadamente burguesa, urbana, como os holandeses, ou contra negociantes e usurários impertinentes, que monopolizam o comércio das cidades a serviço dos interesses colonizadores dos mercantilistas da metrópole portuguesa. É a ordem contra o progresso.

Ao tempo da Revolução Praieira, a unidade do latifúndio açucareiro aparenta cindir-se. Haviam surgido oligarquias poderosas, como a dos Cavalcanti, senhores de imensas propriedades, diferenciando-se dos demais engenhos, presos estes por dívidas e compromissos à bolsa dos negociantes portugueses de Recife. Explode o movimento, e o povo, mais do que a classe senhorial endividada e oprimida, empresta-lhe caráter de um protesto libertário, nacionalista e anticolonial.

Os currais eram, inicialmente, uma simples dependência dos engenhos, destinada a supri-los do gado necessário a todos, para os serviços de transporte em "carros com dobradas esquipações de bois", ou para o acionamento dos trapiches, engenhos cujas moendas precisavam de pelo menos sessenta animais, empregados revesadamente em grupo de mais ou menos doze de cada vez. O gado, então, utilizava-se quase exclusivamente como fonte de energia, como animal de trabalho. Tornara-se um escravo tão disputado quanto o negro e cujas reservas deveriam ser tão abundantes quanto as dos produtores humanos. Pelos depoimentos de bom número de cronistas, pode-se concluir que, nos engenhos de regular importância, o número

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de bois deveria igualar ao número de escravos, sendo que o desgaste daqueles era de tal ordem que exigia sua renovação ao cabo de três anos. Os escravos duravam um pouco mais. E por ser cada vez mais intensa a procura de animais de trabalho, determinada pelo crescimento da produção açucareira, os currais dos engenhos já não bastavam para abastecer de gado o mercado que a partir daí se alargava.

Esse teria sido o principal estímulo à separação entre o curral e o eito, entre o engenho e a fazenda, que teve de afastar-se sertão a dentro, em busca de espaço por onde expandir-se. Não ,se deu tal penetração sem antes haver provocado repetidos conflitos entre criadores e lavradores. Estes, pela necessidade de defender suas plantações, nunca cessaram seus esforços no sentido de empurrar para longe do litoral os rebanhos em proliferação, até que uma Carta Regia, no começo do século XVI fixou a área de criação a mais de dez léguas da costa.

Quando, porém, a Carta Regia de 1701 veio delimitar legalmente as fronteiras da grande criação, a intensa demanda de animais de trabalho, o paulatino aumento do consumo da carne e, principalmente, o aparecimento de novas e largas aplicações do couro vacum já teriam impulsionado definitivamente a expansão da pecuária, sua separação da agricultura, seu afastamento cada vez maior da faixa litorânea.

Passam então os currais a ter enorme importância na formação econômica da sociedade brasileira, não só como força de penetração mais impetuosa como, de fato, mais positiva, por seus elementos de fixação, do que o teriam sido a caça ao índio e as aventuras dos metais preciosos.

No século XVII, quando a pecuária toma o seu primeiro grande impulso, tem início também a cultura do fumo e com ela se abre um vasto campo para o emprego do couro, como envoltório dos rolos de tabaco. Só a Bahia, no século seguinte, exportaria 25.000 rolos encourados num ano, informa Antonil.

Para Lisboa eram exportados também meios de sola, preparados com o couro vindo dos currais, mas curtidos nas cidades. A pecuária, assim, distinguia-se da economia açucareira ao produzir a separação entre a fazenda e a manufatura, entre a criação e o curtimento, entre a

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cidade e o campo. Note-se que o desenvolvimento da pecuária correspondia plenamente aos interesses de Portugal, integrando-se em nossa economia de exportação. A influência do mercado interno de carnes nesse desenvolvimento parece--nos de importância secundária. Antonil atribui ao couro em cabelo o valor de 2.000 réis, quando uma rês valia 4.000 réis. Isso mostra o pouco valor que se dava à carne e revela igualmente sua menor procura. As crônicas referem, tempos depois, que o gado somente serviria para fornecer couro, desprezando-se, praticamente, o resto.

De um modo geral, as tradições ruralistas pertencem mais ao engenho cio que à fazenda. É de notar — e não há nisso nenhum paradoxo — que a penetração dos currais nos sertões coincide com a formação das cidades na orla marítima. E que as atividades urbanas muito pouco deveriam contar com o concurso dos engenhos, aos quais se opunham por definição histórica. Entretanto, os interesses econômicos da fazenda (da pecuária principalmente) convergem para as cidades, ligam-se aos mercados urbanos, centralizam-se nas feiras, centros de propulsão das cidades.

Entre os fazendeiros de gado, desde os primeiros tempos, predominavam os proprietários de extensões intermináveis de terras, que eles mesmos não poderiam controlar. A propriedade pecuária, deste modo, seria forçada a subdividir sua exploração, dando lugar, antes de qualquer outro tipo de latifúndio, ao aparecimento do arrendatário.

Apesar de manter muitos pontos de contacto com o engenho, guardando dele grande parte das heranças feudais, a fazenda adotava um sistema de arrendamento mais próximo da renda, agrária capitalista. Com isso, e inevitavelmente, o modo de produção da pecuária permitia o acesso à exploração e mais tarde o acesso à propriedade, de homens de menores posses. Nesse sentido, a fazenda se opunha ao engenho como força desagregadora dos privilégios absolutos da nobreza territorial.

.JÁ natureza do trabalho nos currais, a ausência do proprietário, a impossibilidade mesma de uma vigilância contínua direta, o número reduzido de braços necessários, enfim, o sistema de produção da pecuária não exigiria o trabalho escravo, adaptando-se melhor às

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formas de servidão — cronologicamente mais adiantadas — e ao próprio salariado. O índio é aí mais amplamente utilizado, num desmentido à sua "incapacidade" ao trabalho, tese que ainda se encontra em certos historiadores oficiais.

Por todo esse conjunto de circunstâncias, a fazenda, no período que analisamos, representava, em relação ao engenho, um passo à frente. Caracterizava um tipo de latifúndio na maioria dos casos não escravocrata, embora um latifúndio, por outro aspecto, mais tipicamente feudal, da fase em que o proprietário territorial se distanciava da produção e passava a embolsar a renda agrária. Por isso a fazenda é, de certo modo, mais vulnerável à fragmentação. Os vaqueiros e as fábricas são trabalhadores socialmente mais independentes, economicamente melhor retribuídos, em comparação com a extrema miséria dos demais trabalhadores "livres" e escravos dos engenhos.

A importância da pecuária para o crescimento econômico de nosso país, geralmente subestimada por muitos historiadores atentos a outros acontecimentos e por eles injustamente relegada a plano secundário, é destacada por Roberto Simonsen, que lhe empresta "feição caracteristicamente local, formadora de gente livre e com capitais próprios".

Parece-nos correta a observação do autor da História Econômica, ao distinguir a pecuária da economia açucareira que, segundo ele, "funcionava, em grande parte, com capitais da metrópole, aos quais eram atribuídos os seus maiores proventos". Entretanto, não podemos concordar inteiramente com sua afirmação de que "a produção da pecuária e o seu rendimento ficavam incorporados ao país".

Já vimos que, começando como fornecedora de fontes de energia, como supridora de animais de trabalho (portanto, como atividade complementar da economia açucareira) e, logo depois, passando a .servir como supridora da matéria-prima necessária aos envoltórios do fumo exportado, as atividades pecuárias funcionaram por longo tempo como um apêndice da economia de exportação, constituindo-se também num manancial de dízimos e de fartos tributos coloniais impostos pela metrópole.

Não é possível, porém, negar que a criação de gado possibilitou

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aquilo que os senhores do açúcar nunca poderiam permitir: o acesso à terra de uma parte da população mais pobre. Desta forma se estabeleceu um certo antagonismo econômico entre os senhores de engenho e os criado-rs, de menores posses, espalhados pelo sertão. Esse antagonismo representou a primeira brecha no monopólio absoluto da terra, abrindo uma promessa para uma mais justa distribuição da propriedade territorial.

A conversão da sesmaria em fazenda apresenta, pois, um conteúdo diferente, menos retrógrado do que a ocupação da terra pelos engenhos, nesse sentido restrito aqui examinado. Três foram os principais meios de acesso à fazenda:

1) o arrendamento, cujas origens representavam um procedimento ilegal, dado que aos donatários não cabia o direito de subdividir suas concessões;

2) a aquisição por compra, condicionada pela abastança do pretendente e restrita, geralmente, à minoria amoedada;

3) e a sesmaria que, parecia como uma distinção aos nobres e favoritos da Coroa e, nesse caso, envolvia enormes territórios, ou surgia como prêmio aos preadores de índios, aos autores de façanhas militares, leais nos serviços à metrópole.

Somente mais tarde, extinto o regime sesmeiro, iria desenvolver-se com um pouco mais de liberdade a ocupação das terras, acontecimento em que as camadas mais modestas da população tiveram ampla participação. Mas, ao menos nos primeiros momentos, esses posseiros ou intrusos não chegaram a fazer fazendas, não indo suas posses além da categoria dos sítios, precursores, que foram, de uma nova forma de repartição da terra — a pequena propriedade.

Vale a pena relembrar aqui — e isto tem uma importância predominante na formação econômica brasileira — a diversificação que se estabeleceu na marcha da colonização no norte e no sul do país, resultante da já referida desigualdade social dos colonizadores, os mais modestos se tendo estabelecido em São Vicente e suas adjacências e os mais abastados convergindo para Bahia e Pernambuco, onde lhes parecia acharem-se os melhores terrenos para a exploração que tinham em mente. A supremacia social, de casta ou de classe, explica melhor do que as influências climáticas, físicas,

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étnicas ou geográficas, a supremacia econômica do Nordeste nos primeiros séculos, quando as forças de produção ainda não se chocavam com a propriedade latifundiária; e, explica, ainda, sua posterior decadência econômica, quando o monopólio da terra redobrava sua resistência ao progresso, à penetração capitalista, ao povoamento, à expansão do mercado.

No Sul, onde, em geral, o monopólio da terra era menos despótico, onde o proprietário não se separara ainda da produção para viver parasitariamente da renda agrária, onde, portanto, o proprietário menos vinculado à aristocracia rural, quase sempre fora um agente direto da produção - mais cedo surgiram condições para a fragmentação da propriedade, para uma melhor utilização do solo, para a localização de correntes migratórias e para a formação de um mercado mais amplo. Estas as circunstâncias preliminares e imprescindíveis que no Centro-Sul possibilitaram o desenvolvimento da economia industrial.

Já no século XIX as fazendas de gado de Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Goiás e as estâncias do Rio Grande do Sul haviam arrebatado aos sertões do Norte e Nordeste a antiga hegemonia na produção pecuária. A inferioridade dos currais nas regiões do Norte é indiscutível. Se o criador era arrendatário, estava sujeito ao pesado ônus da renda agrária que lhe tirava o estímulo e lhe desfalcava os rendimentos. Se era senhor de muitas fazendas, a falta de vigilância direta de sua exploração e a impossibilidade de administrá-las com eficiência seriam fatores de insucesso. Também a distância dos mercados e a pobreza dos centros urbanos sujeitavam ali as boiadas a preços menos compensadores. Por sua vez, o sistema de criação no Norte fora, desde o início, mais atrasado do que aquele que os proprietários, à frente do trabalho, imporiam no Centro--Sul. O leite, os subprodutos, eram desprezados naquela região, que também não contava com terras apropriadas para a agricultura de subsistência. Esta, de certo modo, aliviava as despesas da fazenda e servia para melhorar, com a cultura do milho e das forragens, o teor alimentício do gado. Tudo isto existia, ao lado dos currais no Centro-Sul.

Mas o fator decisivo da superioridade desta região fora o deslocamento dos mercados ou mais propriamente, o nascimento de

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um incipiente mercado interno nas vizinhanças da criação, dando ensejo ao aproveitamento dos subprodutos do gado, inclusive da carne. Primeiro, o surto da mineração, e, depois, uma melhor disseminação da propriedade rural garantiriam aos criadores de Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul, vantagens com que os demais não contavam. No Norte e Nordeste, os únicos mercados para outros produtos que não o couro exportável eram constituídos pelos engenhos, os quais dispunham, eles também, de currais próprios. O latifúndio açucareiro, com seu poder absorvente, mostrava-se sempre pernicioso às atividades que o cercavam.

Essa diversificação econômica e social, estabelecida desde os primeiros instantes do povoamento de nosso território, expressa com bastante nitidez o processo contraditório da evolução da sociedade brasileira, mediante o qual os fatores de desenvolvimento de uma época se transformaram em negação desse desenvolvimento mais tarde e, vice-versa, os elementos negativos de um período se converteram depois em fatores positivos.

Levando em conta as peculiaridades desse processo, não teremos dificuldades em compreender como e porque o latifúndio açucareiro, fruto da conjugação de interesses de senhores de escravos, da nobreza e dos mercadores metropolitanos, respondeu durante os três séculos de dominação colonial pela hegemonia econômica do Brasil Norte, passando depois a transformar-se num entrave ao progresso dessa região, quando começava a despontar a nossa independência nacional.

Na verdade, analisando mais a fundo o processo social do Nordeste, à base dos elementos expostos, chega-se à conclusão que o sistema da economia feudal, foi sempre, e em todas as etapas da exploração colonial, um inimigo do progresso real: uma força de contenção do desenvolvimento econômico-social da colônia, como ocorreu, na realidade, com todos os países da América Latina. O chamado esplendor econômico e mesmo cultural do Nordeste do século XVII e parte do século XVIII não passa de um esplendor de fachada de uma oligarquia restrita e poderosa, inteiramente desvinculada da grande massa humana, marginalizada pela economia agrária de tipo feudal.

No fundo, o chamado progresso econômico aí registrado se

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limitava à estabilização e ampliação dos lucros dos senhores da terra, donos de quase toda a riqueza do país. Portugal, como toda potência colonialista, utilizara esta oligarquia para seus fins coloniais, associando-a às vantagens da Coroa. O economista Gunnar Myrdal acentua bem, em um dos seus trabalhos (9), a diferença fundamental do verdadeiro desenvolvimento econômico, que integra em seus benefícios largas parcelas da coletividade, e o falso desenvolvimento econômico, de tipo colonial, de cujas vantagens a massa não participa e não tem mesmo possibilidade de acesso. '/Na economia do Nordeste colonial só a minoria dominante prosperava e progredia, enquanto a massa era deixada sempre à margem, como um simples reservatório de mão-de-obra. E a distância entre os dois grupos — a elite dominante e a massa oprimida — fazia-se mais evidente e intransponível, dada a inexistência de uma classe média, por falta da mobilidade social que o colonialismo não propiciava, y'

Desta maneira, nunca se formou nesta área, pela sedimentação sociológica, a entidade povo, como expressão das aspirações e reivindicações de várias classes ou grupos sociais, e como força viva de orientação política do processo nacional. E foi esta ausência do povo, como entidade sociológica organicamente configurada, que explica a quase que ausência da revolução, no sentido clássico do termo, que deveria ter constituído o remate natural do episódio colonial.

Os ressentimentos, as humilhações, a revolta contra a opressão não encontram meios de passar do nível do antagonismo surdo ao do conflito social aberto, que conduz à explosão coletiva. E esta impotência coletiva cria e alimenta o conformismo, a apatia, o torpor social em que as populações nordestinas pareciam anestesiadas e alienadas da sua própria miséria. Sociólogos e antropólogos mal informados se apressaram em atribuir estas características psicológicas a uma ação depressora ou desagregante do clima tropical sobre a vontade individual ou coletiva. Nada mais longe da verdade. O clima natural nada tem a ver com este comportamento, produto exclusivo do condicionamento social a uma estrutura que não permitiu aos elementos servis de se organizarem como povo e vir a ter uma voz ativa no debate público dos destinos da Nação.

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O regime feudal latifundiário fornece, também, a chave explicativa de outro fenômeno social do Nordeste, mal compreendido e mal interpretado pela maioria dos sociólogos: o fenômeno do misticismo e do banditismo que até 1930 dominaram o sombrio cenário do sertão nordestino.

Os episódios de Canudos, Juazeiro, Caldeirão, Pedra Bonita e várias outras rebeliões locais, intempestivas e esporádicas, não são como muitos pensam, fenômenos extra--históricos, mas expressão bem significativa da história do colonialismo feudal. O cangaceirismo, que grassou como um terror endêmico na região, e estas epidemias de delírio místico e de ódio destrutivo não passam de expressões desordenadas e descoordenadas do sentimento latente de revolta de populações encurraladas como um gado dentro de um cercado sem pasto: o regime latifundiário feudal. Estas manifestações de revolta, que explodem no fanatismo e no banditismo, são tentativas ingênuas de derrubar a cerca, de partir o círculo de ferro da miséria em que os indivíduos se sentem encarcerados. Roger Bastide(10), num penetrante estudo, acentua o fato de que o fanatismo messiânico nada mais é, em certos casos, do que a busca de uma solução milagrosa para a frustração que não encontra uma solução política. Em livro póstumo, o saudoso jornalista Rui Facó(11) analisa com mais amplitude o fenômeno, mostrando que estas explosões primitivas são geradas em grande parte pelo monopólio da terra, que gangrenou a sociedade nordestina: "A situação dos pobres do campo no fim do século XIX e mesmo em pleno século XX não se diferenciava daquela de 1856. Era mais do que natural. Era legítimo que esses homens sem terra, sem bens, sem direitos, sem garantias, buscassem uma saída, nos grupos de cangaceiros, nas seitas dos fanáticos, em torno dos beatos e conselheiros, sonhando a conquista de uma vida melhor".

Também na estrutura agrária feudal se encontra a explicação para a alienação social e o inconscientismo crítico total das elites dirigentes do Nordeste, praticamente até os nossos dias. Tendo ascendido ao controle absoluto do poder sem qualquer mobilidade ou trânsito nas estruturas sociais, estas elites dominantes perderam a capacidade criadora, desvinculando-se da História em seu sentido mais profundo. A sua representação, mais ornamental do que funcional da vida, lhes

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proporcionou um tipo de cultura e de comportamento social de um egoísmo cego e mesquinho e de uma total incompreensão da alma e dos sentimentos populares. Esta tentativa de explicação da ausência de ação social do povo, como entidade definida, da desvinculação e alienação das elites dominantes, da exaltação fanática e violenta de certos elementos marginalizados e do mimetismo da cultura regional, poderá ajudar de muito a formulação de uma interpretação válida do Nordeste atual, do Nordeste na hora de sua segunda descoberta.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - FLEIUSS, MAX, História Administrativa do Brasil. 2 - DUSSEN, ADNER VAN DEN, Relatório sobre as Capitanias Conquistadas

no Brasil pelos Holandeses, 1639. 3 - Idem. 4 - BRITO, RODRIGUES DE, A Economia Brasileira no Alvorecer do Século

XIX. 5 - FREIRE, FELISBERTO, História Territorial do Brasil, Rio de Janeiro,

1906. 6 - LIMA, R. CIRNE, Terras Devolutas. 7 - VASCONCELLOS, J. M. F., Livro das Terras, 1860 8 - PRADO JR. CAIO, Formação do Brasil Contemporâneo, S. Paulo, 1953. 9 - MYRDAL, GUNNAR, Une Economie Internationale, Paris, 1958. 10 - BASTIDE, ROGER, O Messianismo e a Fome, in "O Drama Universal da

Fome", Rio de Janeiro, 1958. 11 - FACÓ, RUI, Cangaceiros e Fanáticos, Rio de Janeiro, 1963. ,

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CAPÍTULO V

A SEGUNDA DESCOBERTA OU A

CONSCIENTIZAÇÃO DO POVO NORDESTINO SE NOS quatro séculos do feudalismo agrário — séculos de muito

sofrimento e bem pouco progresso — que se seguiram à primeira descoberta do Brasil, quase nada mudara nessa terra do Nordeste, não se pode negar, a bem da verdade, que a segunda descoberta dessa região brasileira, por parte dos norte-americanos em 1960, fora bem diferente da descoberta de 1500 pelos portugueses. E essas diferenças resultam principalmente, de dois fatos históricos fundamentais: do fato de ter o mundo mudado bastante neste período de tempo e do fato de que, no intervalo destas duas descobertas realizadas por dois povos estrangeiros da terra do Brasil, o povo brasileiro havia descoberto a si mesmo. E que esta autodescoberta, da qual pouco falam os historiadores oficiais, fora mais importante historicamente do que as duas outras descobertas. Mas, voltemos às diferenças fundamentais entre as duas descobertas consideradas históricas. Se, em 1500, o episódio ocorreu sem grande alarido, a descoberta de 1960 teve uma repercussão retumbante. É que, se D. Manoel, Rei de Portugal, manteve em discreto silêncio o seu contentamento pela feliz descoberta de Pedro Álvares Cabral, os norte-americanos bradaram em altas vozes, pondo suas mil bocas no mundo para poderem exprimir pelo rádio, pela televisão, revistas e jornais, o seu descontentamento e a sua preocupação pela inquietante descoberta desse novo foco de agitação social, colocado quase que na retaguarda

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das linhas de defesa do continente. Nesta hora dramática da redescoberta do Brasil e durante alguns

meses, conforme relata-nos o escritor norte--americano Stefan Robock, "O Nordeste novamente se projetou como um foguete, da obscuridade à fama internacional"(l). Sinal dos novos tempos: da era da grande publicidade e da rápida circulação dos meios de comunicação e de informação bem diferentes dos do tempo de Cabral. Mas se foram diferentes as atitudes dos dois povos descobridores, também se distanciaram de muito os comportamentos dos nordestinos descobertos no século XVI e no século XX. Se os primitivos habitantes do Nordeste receberam gentilmente os ousados marinheiros portugueses e documente iniciaram com eles o escambo dos seus produtos por ninharias, o que tanta satisfação e vantagem trouxe aos lusitanos, os habitantes do Brasil atual, menos primitivos e já bem mais sofridos e experimentados no contacto com representantes de outras grandes potências, não se mostraram muito entusiastas com a aproximação destes seus novos descobridores, representantes da maior potência do Ocidente. Mostraram-se antes desconfiados, ou mesmo hostis às relações comerciais por eles usadas com povos atrasados como o nosso, e que lhes parecera apenas uma forma mais evoluída e mais sutil do escambo dos primeiros anos da colonização européia. Desconfiados do seu paternalístico desejo de ajudar e de proteger e hostis ao seu transbordante interesse de bons vizinhos e de velhos aliados, que se haviam batido no mesmo front para livrar o mundo da tirania nazista. Esta reserva, esta surda hostilidade dos primos pobres do Nordeste para com os primos ricos, filhos do tio Sam, parecia sem explicação. E a partir deste momento toda a descoberta se fez como um fato incompreensível. Basta consultar os documentos deste recente episódio de nossa história: os anais da segunda descoberta registrados em reportagens e artigos pela imprensa norte-americana, para sentir-se como ela se fez mais sob o signo da desconfiança e da incompreensão do que do entendimento e da identificação.

Muitos foram os registros da imprensa norte-americana e, na impossibilidade de citar a todos, resolvemos escolher um, que por suas origens, pela respeitabilidade de sua fonte de informação e mesmo pelo sincero esforço de compreensão de nossa realidade social que ele

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evidencia, poderá ser tomado como um documento modelo desta revelação histórica. Escolhendo o documento que o jornalista Tad Szulc publicou no Neto York Times sobre o Nordeste, nos dias 31 de outubro e 1 de novembro de 1960. Como este artigo teve uma grande repercussão, sendo lido e comentado pelo próprio Presidente dos Estados Unidos da América, ganhou ele uma dimensão histórica idêntica à da carta de Pero Vaz de Caminha contando a primeira descoberta, com a vantagem não desprezível de ter tido em dois dias, vários milhões de leitores, o que não teve, nem de longe, a carta do escriba português em seus quatro séculos de existência. Que revelações encerrava este artigo de Tad Szulc? Revelava, de logo, que as perspectivas de uma situação revolucionária estavam aumentando naquele área do Nordeste brasileiro, sob a pressão do pauperismo generalizado e agravado pela calamidade das secas periódicas. E revelava a seguir que a miséria é explorada pela crescente influência esquerdista nas cidades superpovoadas. As Ligas Camponesas, infiltradas pelos comunistas, organizando e doutrinando, tornaram-se um fator político importante nesta área. O título da segunda parte do artigo "Os marxistas estão organizando os camponeses no Brasil", exprime bem a preocupação da influência comunista. O primeiro ministro de Cuba, Fidel Castro e o Presidente do Partido Comunista da China, Mao Tsé-tung, estão sendo apontados como heróis a serem imitados pelos camponeses nordestinos, trabalhadores e estudantes. Fala o jornalista a seguir do clima humano da cidade do Recife, capital do Nordeste, de onde fora enviada a sua reportagem: "A cidade do Recife é o suporte básico para o manejo das estações de mísseis teleguiados do Atlântico Sul, da Força Aérea dos Estados Unidos. Ela se serve da estação de Fernando de Noronha, uma ilha brasileira, vizinha à costa e da Ilha da Ascenção, e está engajada em ajudar as novas estações da costa da África no teste de novos mísseis de maior raio de ação, incluindo o Polaris. Navios de apoio e cargueiros Globemasters são empregados em Recife e servem também como centro de comunicação para a seção sul do sistema de Cabo Canaveral. Não há sentimentos antiamericanistas em Recife. Na segunda guerra mundial dezenas de milhares de homens dos Serviços dos Estados Unidos estacionaram aqui ou passaram por Recife. Mas

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há um ressentimento baseado no sentimento de que, depois de usar o Nordeste como base durante a guerra, os Estados Unidos fizeram pouquíssimo para ajudá-lo a desenvolver-se na paz".

O autor da reportagem associa esta situação explosiva com o sistema econômico imperante, principalmente com o regime agrário: "Há áreas na região do Nordeste seco onde a renda anual é cerca de 50 dólares per capita. Cerca de 75% da população é de analfabetos. O consumo médio diário de calorias é de 1644. A expectativa da vida é de 28 anos para os homens e de 82 para a.s mulheres. Metade da população morre antes de 30 anos.

A taxa de nascimento é de 2,5% anualmente. As doenças gastrintestinais incidem tremendamente em crianças menores de um ano. Em duas cidades do Estado do Piauí, tomadas como exemplo, nenhuma criança viveu além de um ano.

Os proprietários de fazenda, trabalhando pequenas parcelas de terra, algumas vezes forçam os agricultores a trabalhar três ou quarto dias na semana sem pagamento. A grande massa dos residentes do Nordeste não são nem consumidores nem produtores em seu sentido econômico. Sobreviver fisicamente é a sua única preocupação e ficam desesperados quando as secas periódicas aparecem. Enquanto a miséria do Nordeste sempre existiu em vários graus, surgiram em anos recentes novos fatos humanos, econômicos, sociais e políticos, que tornaram esta região ameaçada de uma explosão revolucionária".

Como testemunhos do clima de revolta reinante, o jornalista cita conceitos difundidos na região tais como este de que, a menos que alguma coisa seja feita no Nordeste com urgência, situações revolucionárias de maiores dimensões serão inevitáveis, ou mesmo que "o Nordeste se tornaria comunista e teremos aí uma situação dez vezes pior do que em Cuba, se alguma coisa não for feita". Acrescenta Tad Szulc: "Os homens das Ligas dizem aos camponeses que a miséria não é necessária. Eles o impulsionam a de fenderem os seus interesses locais, que invariavelmente, necessitam verdadeiramente de serem defendidos. Vem então a doutrinação política e a preparação revolucionária. Em Recife as pressões se estão elevando. Dentre 800 mil pessoas cerca de 400 mil estão desempregadas, ou apenas parcialmente empregadas, e milhares mais chegam diariamente das

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zonas rurais. Moram em mocambos, crateras e buracos no solo ou em casebres precariamente assentados em regiões fétidas e nas margens baixas dos rios.

Quando as marés baixam, nos três rios que cortam esta cidade, ao lado do cais, as águas sujas e escuras das terras mais altas ficam imediatamente cheias de milhares de homens, mulheres e crianças com água até a cintura. Pescam caranguejos, um insignificante crustáceo que é a sua principal fonte de nutrição.

Eles comem o que conseguem capturar e vendem o restante. Josué de Castro, técnico brasileiro de nutrição, do Recife, Ex-presidente da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), chamou a isso o ciclo do caranguejo."

E na parte final do seu artigo o jornalista do New York Times sublinhou que "ninguém poderá, conseqüentemente, ficar surpreso que Recife seja há muito tempo o mais forte centro comunista no Brasil".

Analisando-se objetivamente este documento do qual transcrevemos alguns trechos mais significativos, verifica--se que o Nordeste socialmente tenso causou profundo impacto no espírito do seu autor e que este impacto ele o transmitiu com todo seu conteúdo explosivo ao povo norte--americano. Sua análise da situação sócio-econômica é justa, mas sua interpretação se afasta do real, quando ele liga este fenômeno social mais às influências ideológicas vindas de fora do que à marcha do próprio processo cultural brasileiro. Erra o jornalista em supor que a explosividade do Nordeste se alimentou, principalmente dos mitos de Mao Tsé-tung e Fidel Castro e dos exemplo da Revolução Chinesa e da Cubana. Aí é que não lhe ajudou a decifrar o enigma do Nordeste a falta de um conhecimento mais profundo da história da região, dos seus antecedentes remotos e da transformação mais recente processada na consciência do povo brasileiro a partir do começo deste século. Transformação que acabou por conduzir este episódio a que já me referi, como de capital importância na nossa evolução histórica: a autodescoberta do país, ou a conscientização de nossa realidade social. Se ele tivesse travado um contacto mais profundo com este fenômeno e compreendido a sua eclosão, veria logo que a explosividade do Nordeste tomara forma mesmo antes da vitória da Revolução de Mao Tsé-tung, em 1949, e da

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Revolução Cubana de 1959. Na verdade a tensa explosividade do Nordeste é um produto da evolução natural de sua estrutura sócio-econômica superada e inadequada para dar atendimento aos desejos e aspirações de um povo que, tendo finalmente tomado consciência de sua existência como entidade política, procura dar expressão a seus anseios de reforma e de melhorias de suas desumanas condições de vida.

É esta tomada de consciência do povo o fenômeno mais recente da história do Nordeste, que precedeu, contudo, de alguns anos, a descoberta desta região pela imprensa estrangeira, principalmente a norte-americana em 1960.

Como afirmamos em capítulo anterior, o que caracterizara a estrutura social do colonialismo agrário entre nós fora a inexistência do povo como entidade política, como força participante nos destinos da nação.

Durante quatro séculos a nossa organização social singular, refletindo a própria rudimentaridade do seu sistema de produção, se limitava à contraposição de uma pequena minoria despòticamente dominante e do resto da coletividade, politicamente apática ou passiva, sem consciência de seus direitos e sem meios de expressão dos seus anseios. Mas, já a partir dos meados do século passado, esta massa amorfa começava a dar sinais de sua existência ao balbuciar seus primeiros diálogos com a classe dominante. Com a Independência do Brasil em 1822, se extingue o sistema das sesmarias ou doação de terras, substituído pelo sistema da aquisição da propriedade territorial, o regime jurídico das posses.

Foi o primeiro golpe dado no sistema feudal da terra, compensado entretanto pela rápida associação que se estabeleceu entre os senhores feudais e a alta burguesia financeira, permitindo a compra pelo grupo, de mais terras e a formação de enormes fazendas latifundiárias. A lei chamada "Lei de Terras", de 1850, ao disciplinar a aquisição das terras procurou evitar estes abusos que tendiam a alargar ainda mais e a eternizar o sistema dos latifúndios. A seguir, a libertação dos escravos promulgada em 13 de maio de 1888. veio dar um golpe mais fundo na renitente estrutura feudal, abalando-lhe os alicerces. Entretanto, ainda desta vez o latifúndio sobreviveria. Arruinou-se a classe dos senhores

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de engenhos — classe essencialmente escravista, cujo esplendor correspondera ao segundo reinado — mas substituiu-a uma nova classe, a dos usineiros. Com a ajuda de capitais estrangeiros, desde 1870 que se haviam instalado na região as modernas fábricas de açúcar — as grandes usinas — com um apetite insaciável de moerem mais cana, com uma fome de terras sem limites. Essa nova classe é ao mesmo tempo latifundiária e capitalista. Reforma, revoluciona mesmo os processos industriais de fabricação do açúcar, mas mantêm intacto o arcabouço arcaico do latifúndio. Intensificava-se, assim, no Nordeste o processo de monopolização da terra. Mas no Sul a situação começava a mudar. A importação de trabalhadores livres da Europa, numa escala média de cem mil por ano, a partir da libertação dos escravos até o fim do século, e que vão, em sua grande maioria, localizar-se em São Paulo, transformou este Estado no grande centro produtor de café, deslocou totalmente o eixo econômico do país e abriu novas perspectivas sociais ao Brasil. O açúcar entra em relativa crise, mas se intensifica a prosperidade do café. A partir deste momento cresce rapidamente a acumulação da riqueza nacional — o país se aburguesa e se capitaliza. Com a penetração do capitalismo no campo, aparecem os embriões de uma classe camponesa, e com o crescimento das cidades e sua incipiente industrialização, os germes de um proletariado ativo. É o povo que surge como entidade orgânica, como centro diferenciado das reivindicações e dos antagonismos das várias classes que o compõem.

Premido pelas circunstâncias, o sistema latifundiário, antes unido sòlidamente pelas mesmas concepções e os mesmos objetivos, não pôde escapar a uma primeira diferenciação, fendendo-se em duas correntes principais: a dos que persistiam impermeáveis ao progresso, encastelados nos processos de produção os mais conservadores e retrógrados e a dos que percebem a inevitabilidade do processo evolutivo e se deixam penetrar pelos métodos renovadores. A primeira corrente predominou no latifúndio açucareiro do Nordeste, enquanto o Sul se deixou permeabilizar pelos processos renovadores da economia. Assim se criaram os dois Brasis: o do Norte, praticamente feudal, e o do Sul capitalista, marchando para a fase da industrialização. Com a Proclamação da República no fim do século

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passado o contraste se acentua e a participação da burguesia nascente no Sul, na máquina governamental, arrebata também ao Nordeste o seu poder político, que no Império se exercera através dos barões do açúcar.

Com a relativa decadência da economia açucareira do Nordeste, agrava-se a miséria reinante na região, cuja pressão social só se alivia um pouco através da imigração em massa dos seus habitantes para outras áreas do país. No fim do século passado, para o Acre, para a terrível epopéia da borracha de tão triste memória nos anais de nossa história e, depois da primeira guerra mundial, para São Paulo, que, com sua indústria em expansão acelerada e sua agricultura próspera, absorvia mais de cem mil nordestinos por ano. Esta dispersão do.s homens do Nordeste por outras zonas do país, suas idas e vindas e os contactos daí advindos, fizeram compreender melhor a esta gente a sua verdadeira situação de párias, de abandonados a uma condição social degradante. A fome e a miséria que sempre sofreram e que para a maioria parecia natural, inevitável como o correr dos dias, como o sono, como a morte, começou a parecer como algo estranho, desde que neste mesmo país, conforme tomavam agora conhecimento, havia gente de outras regiões que vivia livre da miséria e da fome. Então a coisa não era tão natural, não era uma lei de Deus, à qual o fatalismo teria que se curvar. E, foi assim, que, ajudado pelos novos meios de comunicação, as novas estradas abertas na região e os caminhões de carga que começaram a penetrar na outrora ilha perdida do sertão nordestino, o progresso começou a se desenhar, embora com bem vagos contornos na consciência coletiva ainda um tanto confusa desta pobre gente. Desta fraca gente do Nordeste que começou a vislumbrar no progresso uma idéia-força capaz de emancipá-la da miséria e da fome, que nem a Independência, nem a Proclamação da República tinham-lhe propiciado. É que com a Independência e a República a classe dominante permanecera a mesma no Nordeste e o povo permanecera sempre marginalizado de todos os benefícios que estes atos políticos introduziram no país. A classe latifundiária, como uma barreira inexpugnável, continha toda e qualquer aspiração do povo de se exprimir como povo e de participar da vida econômica e dos benefícios sociais da riqueza. O poder econômico e o extra-econômico

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do feudalismo varara assim o século XX, com a mesma desenvoltura com que haviam exercido nos séculos anteriores sua opressão irresistível. Mas já não encontrava a mesma docilidade e o mesmo conformismo por parte das classes servis. Na Independência e na Proclamação da República, o povo praticamente não participara do drama. Ficara fora da cena, como simples espectador, mas aproveitara como espectador para aprender muita coisa com os personagens do drama. E agora se sentia este povo já com algumas passibilidades para entrar em cena e mesmo disputar certos papéis mais importantes na cena de nossa história. Em seguida à primeira guerra mundial, com a maior difusão das idéias e dos meios de divulgação cultural, a realidade do Nordeste se fez mais nítida na consciência do povo nordestino. Muito influiu neste sentido o esforço de democratização da cultura que se iniciara na própria capital do Nordeste, levada a efeito por jovens intelectuais decepcionados com o tipo de cultura que o Brasil até então venerava — uma cultura de formação bacharelesca, desvinculada por completo da realidade social vigente> Cultura quase toda de importação, feita mais para brilhar do que para atuar. Cultura de salão: vazia, passiva, estéril, feita de encomenda pelos senhores feudais e seus representantes no poder, para conservar o status quo. Cultura, numa palavra, eminentemente antidemocrática. A verdade é que este abismo cavado entre os dois Brasis a que já fizemos alusão, o Brasil pobre e o Brasil rico, o Brasil do Norte e o Brasil do Sul, o Brasil feudal e o Brasil industrial — em nenhum setor é mais profundo do que na vala que separa o Brasil letrado do outro imensamente mais vasto, o Brasil analfabeto. Essa é uma das expressões mais terrivelmente marcantes do complexo do subdesenvolvimento do país. E ninguém pode negar que o analfabetismo e a ignorância foram em grande parte mantidos como um cimento para conservar de pé o desconjuntado edifício da estrutura feudal, cujas pedras ameaçavam desabar ao menor choque, já não digo das forças políticas em jogo, mas ao menor choque das idéias. Daí o pavor dos donos do poder, das próprias idéias e dos seus propagadores. Daí a suspeição com que sempre olhavam os estudiosos mais ousados, que lutavam por uma tomada de consciência educacional, por uma educação que não fosse apenas um privilégio,

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com o qual se dominam os espíritos de toda a coletividade, como se domina a sua massa, com o privilégio ou o monopólio da terra. Para que o latifúndio pudesse sobreviver não bastava que a terra permanecesse em sua maior parte inculta, era também necessário que os homens continuassem em sua maioria incultos. Mas nesta muralha cultural foi aberta uma primeira brecha. A partir da segunda década de nosso século apareceu no Brasil, e não por simples coincidência, no próprio Nordeste, uma nova forma ou expressão de literatura de tipo popular, no sentido de se preocupar pelos problemas do povo, pela tragédia da vida deste povo. Foi do meio da planície parada do Nordeste contemplativo e fatalista, economicamente decadente, que irrompeu o grito de protesto da inteligência brasileira contra este estado de coisas. Do meio desta gente formada de cordatos e conformados que sempre se manifestava de acordo com os donos do Brasil, em matéria de idéias, de política e de estética, foi que saiu a primeira leva de escritores rebelados — os grandes romancistas do Nordeste. Foi no clima humano desta região, sob a pressão contraditória do feudalismo culturalmente superado e das aspirações das liberdades contidas nas promessas da Democracia, que amadureceu e explodiu esta nova vaga dos romancistas brasileiros, chamados de proletários porque se metiam por lugares escusos, onde só os pobres penetram e de lá saíam com um cheiro forte de vida. Cheiro que tonteia e provoca náusea nos meios mais limpos, da gente bem. Foi esta a primeira experiência cultural autóctone, através da qual o Nordeste revelou a sua tragédia(2). Os romances de um Graciliano Ramos, de Jorge Amado, de um José Lins do Rego e de vários outros formam os primeiros documentos da autodescoberta do Nordeste, de sua realidade social, de sua humanidade singular. Neles se cristalizava o sentimento difuso do povo revoltado contra a opressão econômica que mantinha esmagado e faminto um país de imensas riquezas potenciais.

Este mesmo sentimento expresso em forma mais tosca começou a ser difundido através da poesia popular, através da abundante literatura dos folhetos, impressos em papel ordinário e vendidos nas feiras do Nordeste. Sente-se na lira popular do Nordeste a partir desta época uma nítida consciência do desumano sofrer do nordestino, do

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inferno que é a sua vida esmagada pelas forças opressivas. Ainda tímida em suas expressões, por falta de outros meios de cultura mais elevados e por receio das punições que o latifúndio impõe aos que se mostram mais rebelados com a situação vigente, o poeta camponês fala mais numa linguagem comparativa, em parábolas que evidenciam, no entanto, uma admirável riqueza de imaginação poética. Os poucos que sabem ler e a maioria dos analfabetos tomam contacto com esta poesia revolucionária, seja através dos folhetos mesmo, seja através dos violeiros e cantadores que repentem os versos nas feiras e nas festas do interior, transmitindo de geração em geração o rico acervo do folclore nordestino. O número de folhetins tratando dos problemas da terra, da fome, da miséria, da opressão dos senhores latifundiários, é abundante. Mais de duas dezenas de pequenos editores disseminados pelas pequenas cidades do Nordeste se ocupam de imprimir estes folhetins que, guardados em caixões de querosene, vão formar o único tipo de biblioteca existente nas casas dos camponeses da região. Muitos destes folhetos são documentos da mais alta expressão e validade deste processo de autodescoberta do Brasil no que ele tem de mais autêntico, de mais profundamente brasileiro.

Tomemos como exemplo um destes documentos da época: um folheto intitulado a "Chegada da Lampião no Inferno". É um exemplo típico desta literatura popular participante do processo de conscientização das massas nordestinas. Lampião é o grande cangaceiro que nesta época põe em polvorosa todo o sertão, fazendo justiça à sua maneira, "roubando dos ricos para alimentar os pobres". É o sentimento de revolta, apoiado no cano do fuzil e tendo na alça da mira a lei e a ordem consideradas como uma iniqüidade a serem combatidas. Fazendo lembrar, até certo ponto, aquela ordem de que nos fala Sartre, em carta que dirigiu a Camus, na qual dizia que "por enquanto a ordem humana não passa da desordem que é injusta e precária, pois nela se mata e ,se morre de fome".

O inferno descoberto pelo poeta camponês é uma evolução da casa do senhor das terras, que ele visualiza como o próprio Satanás em carne e osso. Assim, o inferno do poema popular tem cerca, tem portão, tem vigia, tem depósito de algodão, tem tudo da casa do patrão. Tem tudo aquilo que simboliza a prepotência satânica do

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poder, contra a qual Lampião, que no fundo é o próprio camponês, luta e termina por vencer. Vitorioso, o camponês afirma no seu verso que:

"Houve grande prejuízo No inferno, nesse dia; Queimou-se todo o dinheiro Que Satanás possuía. Queimou-se o livro de ponto E mais de seiscentos contos Somente em mercadoria." Mas não é só no campo literário que o Brasil se revela aos olhos

dos brasileiros. Em todos os setores da vida nacional, nos quais os seus componentes haviam vivido até então, ou voltados para dentro de si mesmos, ensimesmados em sua solidão social, exilados, portanto, na sua própria terra, ou debruçados no parapeito do oceano, suspirando pela Europa distante e, portanto, alienados, também, da sua realidade circundante, quase que bruscamente aparecem homens visceralmente interessados em conhecer a fundo os problemas da terra, em conhecer suas origens, suas necessidades funcionais e em buscar soluções autóctones para os problemas desta terra. Nasce, assim, uma cultura brasileira original e atuante, que brota como uma planta tenra sobre os detritos da cultura falsa e postiça, conservadora e formal, que fora o apanágio de uma pequena minoria alienada da realidade do país. Identificando a miséria nacional com o estágio de subdesenvolvimento, os homens desta nova cultura brasileira se puseram a lutar contra este agente obstinado da desumanização, considerando que, como muito bem exprimiu Eduardo Portela, "ser subdesenvolvido é habitar perifèricamente a condição humana, sem possuir, em nenhum instante os meios de acesso a ela. O prisioneiro do subdesenvolvimento não vive, sobrevive" (3). A luta popular pela libertação desta prisão do subdesenvolvimento se intensifica a partir de 1930 no país.

"O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente se encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional

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aos efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura social do país e em sua vida política. À proporção que as relações capitalistas se ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza, definindo as suas reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o proletariado e o semiproletariado, que se organizam, definindo aquele as suas reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-se o poder da classe dos latifundiários e no campo fermentam inquietações. Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em atividades em disputa de melhores oportunidades. Está presente nos grandes episódios políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o tenentismo, a revolução de 1930. No vasto mundo rural, o campesinato começa a acordar do sono secular: aparecem as revoluções camponesas, transvestidas de fanatismo religioso; primeiro Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta dos posseiros e nas organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto surpreendem e assustam os que acreditam piamente na eternidade do conformismo" (4).

Foi nesta fase de nossa história, de tomada de consciência com a história, que tomei consciência individualmente com a realidade social da região onde nasci. Foi por este tempo que vi com os olhos indagadores de adolescente o espetáculo da miséria circundante nas áreas mais pobres da cidade do Recife, onde travei contacto direto com o drama da fome. Foi por esta época e nesta paisagem humana que me impressionaram certas imagens negras daquilo que eu depois chamaria a Geografia da Fome. Naquele momento resumi minhas impressões destas imagens numa simples crônica, a qual fez referência o jornalista Tad Szulc em seu documento que publicou no New York Times e intitulei esta crônica de Ciclo do Caranguejo. Nesta seqüência de documentos que estou apresentando neste ensaio — documentos das mais variadas origens e mais variadas formas de expressão — talvez não seja de todo descabido acrescentar mais este. Não só pelo fato de ter sido referido no artigo que desencadeou o interesse da imprensa norte-americana pelo Nordeste, como pelo fato de que foi este documento a primeira tentativa de romper violentamente contra um tabu — o de ocultar a existência da fome, o de negar a realidade de um tremendo estado de miséria, o de tomar a vida de um grupo de

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habitantes dos mangues da cidade do Recife, marginalizados pela miséria, como símbolo da vida da maioria dos homens do Nordeste. Em 1933 publicávamos o Ciclo do Caranguejo, cujo texto é o seguinte:

"A família Silva mora nos mangues da cidade do Recife, num mocambo que o chefe da família fez quando chegou de cima.

A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho das usinas, mas não se pôde agüentar com os salários dessa zona, sem ter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso de xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fome apertasse.

Nesse tempo espalharam pelo interior o boato que o governo tinha criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que, com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza, trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome. A família Silva ouviu esta história, acreditou piamente e resolveu descer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bom oferecia aos pobres.

Logo de chegada, a família viu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóvel. Mas a vida do operário, apertada como sempre. Muita coisa p'ros olhos, pouca coisa p'ra barriga.

O cabloco Zé Luís da Silva não quis desanimar. Adaptou-se : "Quem não tem remédio remediado está". Entrou na luta da cidade com todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de 80 mil réis para cima, para comida uns 150 por mês, e os salários sem passarem de 5 mil réis por dia.

Começou o arrocho. Só havia uma maneira de desapertar: era cair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejos.

No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela enche, se avoluma e se estira, alaga a terra toda, mas quando ela baixa

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e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o caboclo Zé Luís levantou o seu mocambo. As paredes feitas de varas de mangue e de lama amassada. A cobertura de palha, de capim, seco e de outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça, encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue é um camaradão: dá tudo. Casa e comida: mocambo e caranguejo.

Agora, quando Zé Luís saiu de manhã para o trabalho, já o resto da família caiu no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços de lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luís vai para o trabalho conformado, porque deixa a família dentro da própria comida: atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.

Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita p'ro homem, com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito especialmente p'ro caranguejo. Tudo aí é, foi, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com a lama a caminha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas víceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazem a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez .

Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida "solucionada", como uma da,s etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família marcha dentro desse ciclo da miséria até o fim, até o dia de sua morte. Nesse dia os vizinhos levarão aquela lama que deixou de viver dentro dum caixão p'ro cemitério de Santo Amaro, onde ela seguirá as etapas

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do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se, aparentemente, nesse dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes e os descendentes do morto derramam caridosos as suas lágrimas no mangue, para alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo."

Este e outros documentos-revelação das condições de vida no Nordeste levaram os homens de ciência e os homens públicos do Brasil a procurar compreender melhor esta realidade social e buscar-lhes soluções válidas, tudo dentro do processo normal de diferenciação da economia brasileira.

Se durante mais de quatro séculos o Brasil viveu um tipo de economia colonial que se manteve quase que intacta até 150 anos depois de nossa independência política, através do Império e da Velha República que perdurou até 1930, nesta data, com a Revolução de Getúlio Vargas, surgiram no campo político os primeiros impulsos nítidos de emancipação econômica. E, a partir deste momento, com a diversificação de nossa economia, esses impulsos se foram multiplicando em manifestações populares de toda a ordem (5).

Esse desenvolvimento econômico, à medida que se torna autônomo e tecnicamente diferenciado, vai às populações brasileiras uma consciência cada vez mais nítida de sua situação social, fazendo aumentar o seu desejo de participação no sistema político da nação. Com a industrialização nasceu um proletariado urbano que, desejando participar da vida política, começou a interferir na distribuição do poder político. Até 1930 os grupos oligárquicos manipulavam tranqüilamente o seu eleitorado de cabresto graças a um sistema organizado de clientelas, e o poder era assim exercido por meia dúzia de privilegiados escolhidos pelas elites e completamente desvinculados dos interesses da coletividade. O eleitorado representava, ademais, uma fração mínima da população brasileira, o que fazia do voto uma simples aparência democrática. Basta lembrar que, em todas as eleições à Presidência da República anteriores a 1930, o número da população do país. Era esta maioria insignificante que decidia dos direitos políticos do povo. A partir de 1930 as coisas começaram a mudar. Não fora, apenas, por causa do triunfo da revolução de Vargas, que, no fundo, não tinha sido senão a tomada do

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poder por um grupo às custas de outros grupos, sem uma real participação do povo, e sem verdadeira significação popular, mas sobrtudo porque a crise mundial, que tinha começado em 1929, havia fortemente influenciado o país, obrigando a produzir internamente tudo aquilo que não era possível importar por falta das necessárias divisas, decorrente da crise dos nossos produtos de exportações. Pouco a pouco o povo cessava de ser uma simples ficção jurídica para ter uma participação ativa na escolha dos seus representantes. E, como Vargas se tinha identificado completamente com este processo econômico-social, sua eleição em 1950 como candidato da oposição foi a primeira demonstração eleitoral de uma vontade popular independente. Nesta ocasião, cerca de 20% da população votava e esta participação não tem feito, senão, aumentar até os nossos dias. No fundo, o grande drama político do Brasil atual é a participação intensa, na vida política, de grandes massas que não tiveram até hoje acesso à vida econômica nacional e que, em conseqüência disto, se revoltam. A atual vida política brasileira, na verdade, já não é uma luta entre clãs eleitorais, mas entre classes e grupos sociais de interesse profundamente divergentes, e foi a evolução econômica destes últimos tempos que determinou esta polarização sistemática(6). É esta radicalização que caracteriza mesmo a situação política atual, pondo o país diante de uma encruzilhada. De um lado a direita, que luta desesperadamente para conservar, através do poder econômico, o poder político que lhe ameaça escapar das mãos. E, de outro lado, a esquerda, mal organizada ainda, sem possibilidades financeiras, mas que se apóia sobre a energia elementar das massas excitadas pelo desejo obcecante de se emancipar de qualquer forma da tutela estrangeira. Entre estas duas forças exaltadas subsiste um centro democrático amolecido, que não sobrevive senão por sua inércia e porque faz concessões de toda espécie aos dois extremos. Desta forma, se consolida a consciência democrática do país. O começo deste processo radicalizante foi marcado, sem nenhuma dúvida, pela queda do governo de Vargas em 1954 e pela intensa campanha através da qual se desenrolou este drama político e humano. É surpreendente constatar que os historiadores e os analistas de nossa realidade têm uma certa tendência a negligenciar este ponto de partida significativo

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de nossa tomada de consciência política. É a partir desta época que as forças políticas se dividem e que a polarização se produz. A campanha intensiva contra o Presidente Vargas foi o primeiro golpe das forças de extrema direita para tomar o poder pela violência e para instalar um governo de força no Brasil. O suicídio do Presidente e a sua carta de acusação provocaram um choque nas massas atordoadas e, pela primeira vez, orientaram os debates políticos do Brasil para um mais alto nível, no sentido dos problemas econômicos e do conhecimento do conjunto da realidade nacional. Pela primeira vez parecia claro que o dilema político brasileiro era conseqüência de um choque de interesses inerentes aos processos de emancipação econômica (o nascimento da indústria de bens de equipamento, da siderurgia e da indústria de petróleo) e que a sorte do país se jogava na defesa das relações das trocas comerciais e na expansão do nosso comércio exterior, na luta para disciplinar os capitais estrangeiros e para controlar a sua ação na política interna do país(7).

O suicídio de Vargas foi, assim, uma experiência de angústia coletiva que orientou o povo brasileiro para a sua própria descoberta. Resultou dele um brusco amadurecimento da consciência política nacional e uma elevação geral do nível dos debates públicos. A exploração do moralismo como tema de análise da realidade nacional começou a ser denunciada como uma simples tática diversionista. Tornou-se cada vez menos viável apontar os sintomas em lugar das causas e as conseqüências em lugar dos fatores determinantes do subdesenvolvimento. Mais ainda, uma tão fácil interpretação da realidade nacional caracteriza agora um grupo determinado cuja ideologia antidemocrática e abertamente golpista tornou-se a da direita no Brasil. Em resposta, se afirma a consciência democrática das massas e a defesa popular dos direitos políticos e das conquistas sociais.

A mudança do centro dinâmico de nossa economia teve, assim, efeitos políticos significativos. A antiga classe dirigente começou a perder sua influência eleitoral. Os antigos chefes políticos foram perdendo substância sob a pressão de novos interesses, principalmente dos interesses industriais. Elevar o nível das massas é garantir o consumo dos produtos industriais. A partir de 1955 assiste-se a

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formação de grupos de pressão poderosos em favor da indústria nacional. Se em certos casos inevitavelmente a defesa dos interesses da indústria manifesta o antagonismo capital-trabalho, os esquemas de ação dos grupos industriais brasileiros não têm no conjuto este conteúdo.

Sua contradição principal, a mais importante, é aquela que opõe a nova classe burguesa em formação aos sobreviventes do antigo capitalismo de tipo colonial, voltados para o mercado externo, defensores dos mecanismos de transferência de rendas para o setor exportador de nossa economia e ideologicamente desvinculados dos interesses das massas brasileiras.

Esta consciência política nacional, que se formou inicialmente nos grandes centros industriais do Sul, onde se processou uma maior e mais rápida diferenciação de nossa economia, foi também aos poucos tomando consistência na área do Nordeste.

A princípio, o que chocara as populações subdesenvolvidas desta área, fora a revelação do grau de miséria em que viviam em comparação com os níveis de vida bem mais elevados do Sul do Brasil e de outros países do mundo. O contraste que a comparação evidenciava era realmente alarmante. Se o Brasil é um país subdesenvolvido, o Nordeste dentro do conjunto nacional é o ponto máximo no qual transparece o subdesenvolvimento. A distância social que separa em certos aspectos o Nordeste do Sul do país é maior do que a que separa os países adiantados da Europa de algumas de suas antigas colônias da África ou da Ásia. Entre o Estado de São Paulo, por exemplo, e o Estado do Piauí, no Nordeste, a distância econômica é tão grande quanto a que separa os E.U.A., do Congo ou do Laos, por exemplo. A que atribuir este contraste tão impressionante? A princípio e por influência de certos julgamentos apressados e superficiais e, possivelmente, com intenções políticas ocultas, o atraso do Nordeste foi atribuído a uma base física desfavorável e a uma condição racial também desfavorável. A sua pobreza, o seu atraso, a sua fome não eram senão o produto de condições naturais adversas: do clima desta terra e da raça desta gente. Do seu clima incerto, com as catástrofes das secas periódicas e da mestiçagem da raça, bem mais caldeada no Nordeste do que no Sul, com o elemento negro, considerado

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rebaixador do padrão eugênico e cultural deste grupo ético. Assim, certos sociólogos de gabinete, engajados em explicar esta negra realidade que o inconformismo da inteligência brasileira pusera a descoberto, se apressaram a decretar a condenação do Nordeste, considerado irrecuperável, diante destes dois males terríveis: o seu clima e a sua raça. E durante certo tempo esse tabu pegou e o Nordeste era chamado de uma área-problema. Uma área sem solução à vista, pesando negativamente, sombriamente, nas perspectivas de progresso no país.

Só com a evolução dos estudos sociológicos, que desmoralizaram a teoria climática e a teoria da pureza racial, caíram estas falsas doutrinas, que tudo justificavam como males de raça e males de clima. Mas com a queda dos preconceitos contra o clima tropical maléfico e contra a mestiçagem dissolvente, ficara contudo de pé o problema das secas. Das secas que, de tempos em tempos, se mostravam com sua terrível agressividade, aniquilando a economia da região e expulsando as populações pela porta da morte ou da emigração forçada. E a seca se impôs como o grande vilão do filme do drama nordestino.

A miséria e o atraso do Nordeste eram produtos de suas secas periódicas. E de tal forma isto tomou ares verdade inabalável que o Nordeste passou a ser identificado como a área das secas. Como uma terra estorricada, amaldiçoada, esquecida de Deus. E o homem do Nordeste, o cabeça-chata nordestino passou a ser retratado como um judeu-errante brasileiro, o eterno emigrante, que está sempre estendendo a mão no ar para ver se está chovendo, e sempre que a chuva não está caindo, dispara ele aterrorizado pelo campo afora, fugindo da terra amaldiçoada e virando a mão estendida, com a sua palma para cima, no gesto tradicional de quem pede uma esmola, de quem implora a caridade pública.

Foi diante desta falsa imagem de uma realidade social, que os interesses investidos queriam dissimular, que se fez da seca o cavalo-de-batalha do Nordeste. A verdade é que nem todo o Nordeste é seco, nem a seca é tudo, mesmo na área do sertão. Mas, foi preciso tempo para provar, para convencer a opinião pública dos habitantes de outras áreas do país, que o subdesenvolvimento e a fome do Nordeste eram mais um fenômeno de ordem social do que natural e de que suas

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causas estavam muito mais ligadas à estrutura econômica da região do que aos episódios das secas intermitentes(8).

No ano de 1956, quando o Nordeste se encontrava a braços com as conseqüências de uma grande seca, num discurso que pronunciei na Câmara Federal do Brasil, procurei mostrar que o problema era mais complexo: que não bastava lutar contra os efeitos das secas para salvar o Nordeste. Ainda nesta época, este discurso recebeu uma cerrada oposição e, o que parecerá mais estranho ainda, oposição por parte dos representantes do próprio Nordeste.

Transcrevo alguns trechos deste discurso, como um novo documento desta progressiva tomada de consciência nacional:

"Não nego a existência da seca. Nego seja ela a causa do fenômeno da fome no Nordeste; porque a seca é uma causa secundária, subsidiária, que apenas agrava o estado de coisas reinante, determinado por outras causas, mais sociais do que naturais... Quero deixar bem claro este ponto de vista, a fim de não ser mal interpretado porque, como nordestino, como homem da região das secas, como filho de homem do sertão e como neto de retirante da seca de 1877, não nego a existência do fenômeno. É mister, entretanto, que não se explore a questão, dizendo que a culpa de tudo é a seca, quando há outros culpados e mais do que ela. Meu objetivo é esclarecer — e tenho a coragem de dizer que não é a seca que determina a fome; mas outras causas determinantes que necessitam ser removidas; e desejo sugerir um plano que anule essas causas, a fim de evitar a persistência do fenômeno da miséria e da fome que assolam grande área do território nacional... A meu ver, a fome que o Nordeste está atravessando, a miséria aguda, que se exterioriza mais gritante, mais negra e mais trágica nesta época de calamidade, é mais um fenômeno de ordem social do que natural. Mais do que a seca, o que acarreta esse estado de coisas é o pauperismo generalizado, a proletarização do sertanejo, sua produtividade mínima, insuficiente, que não lhe permite possuir nenhuma reserva para enfrentar as épocas difíceis, as épocas das vacas magras, porque já não há lá, nunca, épocas de vacas gordas. Mesmo quando chove, sua produtividade é miserável, sua renda é mínima, de maneira que ele está sujeito a viver na miséria absoluta, segundo haja ou não inverno na região do sertão. E que causas

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determinam esse estado social, esse estado de estagnação econômica e de proletarização progressiva da região do sertão? A meu ver, a causa essencial, central, contra a qual temos de lutar todos, é o regime inadequado da estrutura agrária da região, o regime impróprio da propriedade territorial com o grande latifundiarismo, ao lado do minifundiarismo, reinantes no Nordeste do Brasil. Sendo esta uma região por excelência agrícola, desde que 75 % das populações do Nordeste vivem de atividades rurais, 50% da renda sendo retirada da agricultura, ela só poderia sobreviver e desenvolver-se, se a agricultura fosse compensadora, fosse produtiva. Infelizmente, não o é. E por que não o é? Porque o latifúndio é o irmão siamês do arcaísmo técnico. Nessas áreas latifundiárias se pratica uma agricultura primária, uma proto-agricultura, sem assistência técnica, sem adubação, sem seleção, sem mecanização, e pelos processos mais rudimentares, exaurindo a força do pobre sertanejo para produzir menos do que o suficiente para matar sua fome.

O latifúndio nessa região é representado pelo fato estatístico significativo de que, de 1940 a 1950, de acordo com o recenseamento demográfico e agrícola, longe de diminuir o tamanho médio da propriedade agrícola, no Nordeste, este tamanho aumentou e vem aumentando de tal forma que, hoje, no Nordeste, apenas 20'/o dos habitantes das regiões rurais possuem terra; 80% trabalham como arrendatários, como parceiros ou como colonos, porque a terra é monopolizada por pequeno grupo. Para mostrar a que extremo chega esse monopólio, basta referir o fato de que 50 °/o da área total do Nordeste é açambarcada por 3% dos proprietários rurais. Por outro lado, encontramos mais de 50/í das propriedades contendo mais de 500 hectares. Há centenas de propriedades de mais de 10.000 hectares... Não me parece justo, portanto, que se dê tanta ênfase a este fenômeno da seca, porque há coisas muito piores do que a seca no Nordeste: o latifundiarismo e o feudalismo agrário, por exemplo. A seca é um fenômeno transitório. mas o pauperismo do Nordeste é permanente. Não bastam, portanto, medidas transitórias de emergência, contra a suposta seca: são necessárias medidas de profundidade, reformas estruturais que modifiquem realmente o arcabouço econômico da região nordestina".

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Hoje estas idéias que tanto alarido levantaram por sua heterodoxia, pelo ar de verdadeira heresia diante do coro das idéias consagradas, fazem parte do repertório ortodoxo da consciência nacional. Hoje todo mundo está de acordo, a exceção, apenas, da oligarquia feudal, que os males do Nordeste derivam da exploração econômica aí implantada, que fez desta área uma colônia de outra colônia. A princípio uma colônia de Portugal, explorado colonialmente por outras potências européias mais fortes e, depois, colônia do Sul do Brasil, explorado colonialmente por várias potências de economia dominante. Isto, hoje, todo mundo sabe e é contra isto que todo mundo protesta.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - ROBOCK, S. II., Northeast Brazil: a Developing Area, Washington, 1963. 2- CASTRO, JOSUÉ DE, Documentário do Nordeste, Rio de Janeiro, 1935. 3 - PORTELA, EDUARDO, Literatura e Realidade Social, Rio de Janeiro,

1963. 4 - SODRÉ, NELSON WERNECK, Quem é o Povo do Brasil, Rio de Janeiro,

1962. 5 - QUINTAS, AMARO, Vocação Política e Tendências Ideológicas do

Nordeste, in "Síntese Política, Econômica, Social", n.° 17, Janeiro de 1963. 6 - RAMOS, GUERREIRO, A Crise do Poder no Brasil, Rio de Janeiro, 1961. 7 - MENDES, CÂNDIDO, Nacionalismo e Desenvolvimento, Rio de Janeiro,

1961. 8 - BARROS, SOUZA, O Nordeste, Rio de janeiro, 1957.

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CAPITULO VI

O NORDESTE E A AMÉRICA LATINA NA TOMADA de consciência de sua realidade social, o povo do

Nordeste não se limitou a travar conhecimento com os seus problemas regionais, mas, também, em enquadrá-los dentro da realidade de todo o continente americano. E este enquadramento serviu para evidenciar que os problemas do Nordeste são os mesmos problemas de toda a América Latina. Problemas de expressão continental que, em alguns de seus aspectos particulares, ganha maior intensidade nesta área do Nordeste, que pode, desta forma, ser considerada como uma área significativa — como um exemplo típico da geografia econômica do continente latino-americano.

Para que os habitantes de outros continentes possam admitir sem relutância que este exemplo do Nordeste é realmente válido e significativo para exprimir o que há de mais característico no subdesenvolvimento latino-americano, resolvemos inserir neste nosso trabalho um capítulo apresentando uma síntese das condições econômico-sociais do continente. Julgamos que este estudo comparativo entre o Nordeste e o continente inteiro permitirá, ademais, um melhor julgamento da posição que ocupa esta região no panorama continental e o grau de tensão de sua capacidade explosiva local. Poderá, ainda, a nosso ver, esta síntese ajudar a corrigir uma impressão errônea provocada pelo documento de Tad Szulc, quando afirmou no New York Time que não existe um sentimento antiamericano no Nordeste do Brasil. Que os nordestinos têm apenas

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um certo ressentimento por não serem suficientemente ajudados nos anos de paz, como aparentemente o foram durante os anos de guerra. A verdade é bem diferente. A verdade é que há, por parte do povo nordestino, um forte sentimento antiamericano e que este sentimento tem suas raízes em fatos bem mais graves, em motivos bem mais profundos. Resulta este confuso sentimento de animosidade de uma certa falta de compreensão e de sutil distinção a fazer por parte do povo do Nordeste, da estrutura político-social dos E.U.A. Conhecendo o tipo de política econômica que executam no continente os grupos financeiros norte-americanos, quase sempre apoiados pelo Departamento de Estado

— política que conduziu a América Latina à trágica e crítica situação em que se encontra no momento — o povo do Nordeste condena com veemência esta política. Mas confunde, nesta condenação, todo o povo norte-americano com estes grupos financeiros e manifesta seu desagrado contra o país inteiro, atribuindo todos os seus males locais ao simples fato de coexistirem no continente com os E.U.A. É neste ponto que esclarecimentos mais precisos poderão ser de mútua utilidade, servindo para desfazer as falsas interpretações dos dois lados. Nem o Nordeste é apenas um bando de agitadores e de comunistas, nem os E.U.A. são apenas um bando de sanguessugas chupando impiedosamente todo o sangue — todo o trabalho e toda a riqueza

— dos latino-americanos. Vamos tentar pôr as coisas nos seus devidos termos.

A América Latina desperta para a vida moderna e se interroga acerca de suas possibilidades de desenvolvimento. Toma consciência das formas arcaicas de suas estruturas políticas e sociais e dos paradoxos de sua organização econômica na qual coexistem lado a lado a extrema miséria e a fome e uma opulência quase que insolente. "Depois de séculos de estratificação e de estagnação impostas por uma ordem feudal rigorosa, herdada dos conquistadores ibéricos e mantida pela cumplicidade dos grandes proprietários agrários, do exército e do clero, o mundo dos camponeses e dos peões, do proletariado urbano, dos negociantes pequeno-burgueses e dos intelectuais universitários, se agita e aspira um futuro diferente. Pode-se pensar o que quiser de

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Cuba, mas não resta dúvida que a revolução de Fidel foi um sintoma evidente da degenerescência que atingiu a antiga ordem e da formidável vontade de mudança que é o fato mais marcante da América Latina contemporânea." Assim se exprime sobre este continente o economista suíço Pierre Goetschin(l).

"A estrutura social e econômica da América Latina é decadente, corrupta, imoral e geralmente insolvável. Que uma mudança está para vir é óbvio. Que ela se processará através de uma revolução é certo. Que esta revolução implica na possibilidade da violência é inevitável. O que permanece como um enigma é: quem liderará esta revolução?" São palavras do jornalista norte-americano John Gerassi(2), que viveu em vários países da região. Tais afirmações com tom de profecias apocalípticas traduzem apenas a observação acurada de uma realidade social em marcha.

Sente-se por toda a América Latina uma grande inquietação e uma ávida busca dos caminhos que possam conduzir os seus povos à libertação de todas as formas de servidão. Assim se explica o profundo sentido de autocrítica da atual literatura latino-americana e a objetividade com a qual os modernos sociólogos e economistas desta área analisam a realidade político-social do continente, preconizando uma revisão total do conceito de pan-americanismo, cujo conteúdo ideológico e político já não atende aos interesses autênticos desses povos, cujo obstinado desejo se concentra numa vontade de emancipação total, tanto econômica como social. Desejo de sair deste estado de subdesenvolvimento, no qual as circunstâncias políticas e as forças econômicas internacionais os mantiveram relegados.

A carta atual da América Latina apresenta os seguintes traças predominantes: seu território cobre uma superfície de 23 milhões de quilômetros quadrados (16% das terras habitadas) para uma população de 220 milhões de habitantes (7% da população mundial). Vinte estados soberanos e alguns territórios coloniais formam o mosaico político desta vasta região que se estende da fronteira sul dos E.U.A. até a vizinhança da Antártida. No interior de suas fronteiras encontramos imensas reservas de petróleo e de minerais de todas as espécies. Seu potencial de solos cultiváveis é enorme e, em grande parte, inexplorado. Assim, a América Latina é uma região bem mais

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vasta e bem mais rica do que a América do Norte, mas suas populações, sob o ponto de vista econômico-social, vivem no maior atraso. No conjunto constitui a América Latina uma das grandes áreas subdesenvolvidas do mundo, marcada em sua conjuntura social por todos os estigmas do complexo do subdesenvolvimento. Baixa renda média individual, péssima distribuição das riquezas, elevados coeficientes de natalidade e de mortalidade. Índices alarmantes de analfabetismo, de doenças endêmicas e de fome generalizada, etc. O rendimento bruto por pessoa se mantém em torno de 350 dólares, três vezes menor do que o da Europa Ocidental e oito vezes menor do que o dos E.U.A. Os desníveis de suas riquezas são alarmantes, não somente entre diferentes regiões de um mesmo país, mas entre as diferentes classes sociais. Dois terços de sua população aperta o cinto sobre um ventre vazio. A metade está atacada de doenças infectuosas e parasitárias. Mais da metade assina em cruz. Um terço pelo menos leva uma existência puramente vegetativa, fora dos circuitos econômico e cultural. O sistema agrário feudal entretém este desequilíbrio, pois uma minoria insignificante é proprietária de quase todas as terras do continente, vivendo a grande maioria como servos dos grandes senhores feudais. Na Venezuela 3% da população é proprietária de 90% das terras. Os países da América Latina continuam a obter seus recursos fundamentais no setor da economia primária (agricultura e exploração mineira) e, principalmente, da exploração por métodos arcaicos de uma agricultura de produtos de exportação tais como o café, o açúcar, o cacau e o tabaco, que constituem a maior parte das rendas da exportação da América Latina. Sua população, como em todas as áreas de miséria do mundo, cresce em ritmo acelerado. Sua taxa de crescimento demográfico é a mais alta do mundo, com 2,6%, enquanto que a da Europa é de 0,8% e a média mundial de 1,8%.

Como o crescimento da renda bruta na América Latina não ultrapassa de 4% por ano, apenas 1% pode ser considerado como progresso, desde que o resto é consumido pelo simples crescimento vegetativo da população. Para onde será conduzida a América Latina, através desta tomada de consciência de suas extraordinárias potencialidades e de suas alarmantes deficiências? Embora não

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tenhamos grande confiança nas previsões históricas, tomadas como fórmulas mágicas para adivinhar o futuro, é possível, à luz de certos fatores de semiologia econômica, prever as possíveis diretrizes do processo político e econômico da América Latina. Em face da realidade atual e pela projeção das tendências econômicas até hoje manifestadas na região, quase nada se pode esperar para os próximos anos que possa realmente modificar a fisionomia desta região. Só através de um esforço novo, diferente de tudo o que tem sido usado até agora, será possível emancipar-se da fome e da miséria o antigo "continente da abundância" dos tempos dos colonizadores ibéricos. Ora, este esforço necessário, muitas vezes evocado em documentos líricos ou platônicos, resta no domínio das boas intenções. E "de boas intenções o inferno está cheio", como diz um adágio do Nordeste. E é por isto que a América Latina continua a viver o seu inferno econômico, com suas almas danadas consumidas pelo fogo da fome e das doenças em massa. E os planos de emancipação do continente permanecem letra morta, porque "o interesse privado se sobrepõe ao interesse público e o interesse estrangeiro domina o interesse nacional. As vinte repúblicas poderão gozar da independência política desde que dela se envaideçam e não façam uso. Dependem quase todas de um só comprador-fornecedor. Vendem a preços baixos e compram caro. Dependem dos monopólios que, como tumores cancerosos, proliferando, as asfixiam sob a exuberância de sua vida anárquica. Sobre a estrutura feudal se sobrepôs uma estrutura capitalista. Os dirigentes das duas ordens contraíram uma frutuosa aliança. Visando à manutenção e à ampliação dos privilégios, os feudais cederam ao capitalismo estrangeiro o direito de cortar a carne à vontade, de espremer o suco e de empobrecer irremediavelmente estas nações. Tal situação semicolonial desperta um amargo ressentimento e prepara o caldo de cultura de grandes desordens políticas.

A história que hoje se aprende da América Latina não é mais a da epopéia dos descobridores, trazendo a estas terras a luz e a fé, salvando as almas, cultivando o espírito e amparando o corpo das primitivas populações que viviam atoladas na ignorância e no atraso. É muito mais a história da dilapidação de suas riquezas por sucessivos grupos de exploradores colonialistas que buscavam muito mais salvar

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a sua economia metropolitana do que a alma dos habitantes de suas colônias. É verdade que, com os primeiros descobridores que aí aportaram trazendo numa mão a espada e noutra mão a cruz, introduziu-se entre os seus bárbaros habitantes o espírito do cristianismo. E é por isto que ainda hoje se afirma na Europa e nos E.U.A. que a América Latina é a única região do terceiro mundo oriunda da cultura e do cristianismo ocidentais. Infelizmente, os conquistadores usaram melhor a espada do que a cruz. Ao conquistarem as novas terras trataram de maneira tão desumana as suas populações que um missionário do século XVI — este verdadeiro cristão — perguntava indignado aos grandes senhores do tempo se aquela cruz que eles traziam numa das mãos seria mesmo a cruz de Cristo ou a cruz de um dos dois ladrões crucificados ao lado de Cristo(3)!

Durante o século XIX, a revolução política levada a efeito pela burguesia crioula contra o despotismo metropolitano terminou. Mas a independência política assim obtida não se acompanha de nenhuma revolução econômica e as taras coloniais permanecem. Durante três séculos a América Latina é despojada de suas riquezas em proveito da Espanha e de Portugal. Estas duas nações entrando em deliqüescência, a América Latina continuará o seu papel de grande abastecedora, mas, desta vez, no interesse quase que exclusivo dos E.U.A. É que na época da independência política das antigas colônias latino-americanas, os E.U.A. borbulham de energia criadora. Dispõem de enormes capitais e de técnicas, que poderão ser implantados na imensidade latino-americana, onde existem uma mão-de-obra dócil e abundantes e inesgotáveis recursos naturais. São os E.U.A. os mais fortes, os melhores armados, os mais empreendedores. Dispõem da Doutrina de Monroe que se transformou na carta da intervenção permanente. Acreditam os norte-americanos, ardentemente, na virtude do liberalismo e estão persuadidos de sua missão civilizadora.

A eles compete, pois, difundir a eficácia, a exploração da riqueza pela empresa privada e a implantação da democracia, e se lançam nesta tarefa com o mesmo ardor com que os povos ibéricos se lançaram na difusão da fé cristã. Acreditam estes novos pioneiros no interesse evidente da divisão internacional do trabalho, na existência

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simultânea e complementar de territórios fornecedores de matérias-primas e de territórios que as refinem e as industrializem, nascendo desta partilha das responsabilidades a prosperidade total. Não devemos subestimar a sinceridade destas convicções, embora delas tenham decorrido terríveis aberrações econômicas e trágicas mutilações humanas.

Para realizar esta utopia da democracia econômica no continente, desejavam os E.U.A. que não lhes opusesse a América Latina qualquer resistência. Sua classe dirigente se compunha dos grandes proprietários agrários cuja importância social e política se mede pela extensão dos seus domínios e não por sua rentabilidade, dos comerciantes e dos financistas. Esta classe reverencia os nomes de Montesquieu, Jean Jacques Rousseau, Auguste Comte e o liberalismo, o que lhe permitirá redigir soberbas constituições, enfeitadas com peremptórias declarações dos direitos do Homem, e edificar uma fachada democrática, ao abrigo da qual todas as forças antidemocráticas terão livre trânsito.

A América Latina sofre de falta de capitais e de uma armadura técnica, pois o seu ensino acadêmico dá as costas ao mundo moderno. À epopéia dos Morgan, dos Ford, ela prefere a Ilíada de Homero. Recusa-se a ler os balanços dos lucros das empresas em favor da leitura dos poemas parnasianos. Faltando-lhe o espírito empresarial, a América Latina tudo espera das democracias ocidentais e nas suas mãos depõe os seus interesses e o seu futuro.

O capitalismo liberal, que devia modificar a condição humana nesta área, conduziu todo o sistema a uma verdadeira desumanidade: não destruiu o feudalismo opressor, mas apenas criou uma minoria urbana muito bem provida e uma maioria de subproletários e de camponeses subnutridos, analfabetos e desprovidos. Os produtos manufaturados a serem importados custam cada vez mais caros em relação aos preços das matérias-primas exportadas, e a América Latina, enquadrada em seu absurdo arcabouço feudal e capitalista, não progride senão na aparência, como só de aparência é também a sua estrutura democrática. Alguns exemplos desta associação espúria entre o capitalismo e o feudalismo, usando o cenário latino-americano para a apresentação dos seus dramas, não deixa de ter a sua utilidade para

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mostrar que os fatos que relatamos não são produtos de nenhuma especulação teórica, mas o retrato fiel de uma realidade vigente.

A Venezuela sua petróleo por todos os seus poros. Cuba, como uma ilha diabética, urina açúcar de maneira ininterrupta. A Bolívia se recobre de estanho e o Chile de cobre. O Brasil e a Colômbia transformam o húmus do seu solo e o suor do seu povo em grãos de café. Os monopólios importadores dos E.U.A. desembaraçam a América Latina de suas matérias-primas, amontoam os benefícios e fazem crescer a miséria no continente.

Desde 1945 que a Venezuela é o segundo produtor mundial de petróleo. Produziu 185 milhões de toneladas em 1962. Há trinta anos contava três milhões de habitantes, hoje dispõe de oito milhões. Os operários do petróleo não passam fome. Têm um salário elevado e dispõem de serviços sociais, médicos e culturais. É que o petróleo fornece 3/4 partes da renda nacional de cinco bilhões de dólares, por ano. A renda média per capita do país é de 700 dó'ares. Mas a realidade não se apresenta sob a forma de médias aritméticas. A realidade é que os operários do petróleo são uma ínfima parcela da população nacional, cuja massa vive até hoje na mais negra miséria. Os 700 dólares da média per capita são a média entre a renda de milhões de dólares de uns poucos e a renda de uns poucos dólares de milhões de indivíduos.

A Standard Oil produz metade do ouro negro, a Shell a quarta parte, a Gulf um sétimo, a Socony, a Sinclair e a Phillips produzem o resto. Estas companhias pagam liberalmente os royalties e as taxas ao Estado, o que não impede que a filial da Standard no país, chamada a Creoula, tenha obtido em 1950 benefícios calculados em 167 milhões de dólares. Possuem estas companhias seis milhões de hectares de terra a título de concessões privadas.

A segunda riqueza nacional, o ferro, pertence à Iron Mining, filial da United States Steel e à Orinoco, filial da Bethlem Steel. Estas companhias fornecem atualmente 15 milhões de toneladas de minérios. O grupo Hawkin se assegurou da petroquímica e o grupo Cooper da siderurgia. Os palácios paradisíacos, as estradas imperiais e os insolentes buildings de Caracas são um testemunho da opulência reinante — suntuosa fachada por trás da qual fervilha a miséria

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amontoada nos cortiços e nas favelas. Quatrocentas mil famílias camponesas cultivam a terra que não lhes pertence, e o país não produz hoje senão a metade do milho, da carne e do leite, e apenas um terço dos legumes e dos cereais que consome. Decorre desta estrutura que, conforme afirmou Harwey O'Connor "tudo na Venezuela, exceto as matérias-primas, custa de 50 a 100% mais caro do que nos Estados Unidos". E é através deste alto custo de vida que se esvai toda a aparente ilusão dos altos salários.

No Peru, a Anderson Clayton controla o algodão e a lã. A Grace Company, o Chase Manhattan Bank, o National City Bank of New York, a Northern Peru Mines, a Marconia Mines, a Good Year, fixam os preços agrícolas e controlam 80% das matérias-primas. Uma só companhia, filiada à Standard Oil, controla 80 % da produção nacional de petróleo. Duas companhias proprietárias de 13 milhões de hectares de terras reinam soberanamente no campo da exploração do cobre e de outros produtos minerais. Os monopólios se beneficiam de vantajosos privilégios fiscais, havendo mesmo um decreto — o de 11 de outubro de 1945 — que declara ser o cálculo dos benefícios uma informação "estritamente confidencial". O segredo legal cobre, desta forma, o retorno dos capitais para os Estados Unidos.

Diante desta situação, o atual Presidente da República, Belaunde Terry, para evitar uma revolução violenta, tenta realizar reformas urgentes, contra as quais ,se levanta o poder de contenção da oligarquia econômica.

Na América Central, a United Fruit controla, praticamente, toda a economia da Guatemala, da Nicarágua e de grande parte de Honduras. As estradas de ferro, as instalações portuárias, os navios, as estações de rádio, os jornais, tudo lhe pertence. E são suas filiais que dirigem a importação dos produtos industriais. No Chile, a Kennecott Co. e a Anaconda Copper Co. controlam a quase totalidade das minas de cobre e dos altos fornos do país. No México, toda a extração e a indústria dos metais não-ferrosos, exceto a prata, dependem da American Smelting and Refining Co. A Westinghouse domina o mercado dos aparelhos elétricos. A Ford e a General Motors, a indústria de automóveis, a Pan American World Airways, a navegação aérea e a American Tobacco Co., a indústria de cigarros. E nas outras

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diversas regiões ou países do continente fenômenos idênticos se repetem. Os monopólios norte-americanos controlam sempre a quase totalidade das operações econômicas. Em 1959 os monopólios reconheciam ter realizado na América Latina lucros correspondentes a 774 milhões de dólares. Os cálculos indiretos afirmam que a verdade se satisfaria com um lucro de 1.250 milhões. Segundo o economista Johann Lorenz Schmidt, os lucros realizados na América Latina são, conforme os casos, de 50 a 200% mais elevados do que os realizados nos E.U.A.

De 1920 a 1953 a American Foreign Co., na Guatemala, reembolsou seus acionistas em mais de 12 vezes o capital investido. O economista chileno Alberto Baltra calculou que os monopólios americanos, controlando a produção de cobre em seu país, auferiram durante os últimos trinta anos um lucro líquido de dois bilhões de dólares, o que representa, aproximadamente, 40 % do valor total do cobre exportado durante este período e o triplo dos investimentos efetuados neste país.

O total dos empréstimos concedidos à América Latina é, em geral publicado, mas raramente o são as condições em que o empréstimo é realizado. Na verdade, os juros são, via de regra, módicos ou liberais, o que é escorchante é a imposição de que estes países se abasteçam dos produtos industriais de origem norte-americana.

Depois da crise de 1929, vários países da América Latina se esforçaram por criar uma indústria nacional e para isto se proveram de uma barreira protecionista. Na impossibilidade de saltar com seus produtos esta barreira alfandegária, os monopólios julgaram mais vantajoso instalar suas usinas nestes países. Tendo em suas mãos as indústrias extrativas e grande parte da produção agrícola, passaram, também a controlar a maior parte da indústria de transformação, quase sempre maquiladas com nomes indígenas. Os consumidores ignoram, assim, que estão sempre na dependência de um traste norte-americano. Quando no México, por exemplo, os mexicanos adquirem os seus aparelhos elétricos à Indústria Elétrica Mexicana, o fazem, na verdade, a Westinghouse Electric Co. Tiveram ainda os países da América Latina de participar à força da política do embargo, produto da guerra fria. Tentaram vender certas matérias-primas aos países socialistas,

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mas esta atitude levantou um clamor geral em nome da defesa contra o comunismo. Quando o Presidente Jânio Quadros, do Brasil, ensaiou os primeiros passos na direção desta política, começou a baixar o seu cartaz na imprensa norte--americana. E até à sua renúncia, sua má reputação só fez aumentar. Como cada país da América Latina tem seu balanço de pagamentos baseado na exportação de um ou dois produtos apenas, a sua economia extremamente vulnerável deixa-se facilmente controlar pelo jogo das pressões econômicas que se exteriorizam, principalmente, pelas flutuações dos preços das matérias-primas. Algumas cifras ilustram bem este mecanismo: a Venezuela tem no petróleo 92% do volume total de suas exportações, a Colômbia 74% no café, a Guatemala 72% na banana, o Chile 67% no cobre e a Bolívia 62% no estanho. Nos últimos dez anos os produtos de exportação da América Latina registraram as baixas seguintes: a lei 46%, o zinco 28%, o algodão 23%, o estanho 20%, o cacau 52%, o café 33% e assim por diante. A maior queixa dos países latino-americanos repousa no fato sabido que 75% destas importações são feitas pelos E.U.A. A monocultura, a monoprodução, a dependência sem defesas de um só comprador-fornecedor privilegiado amarram, irremediavelmente, a economia da América Latina. Ao tomar conhecimento desta conjuntura opressora da economia mundial sobre a economia do conjunto dos povos latino-americanos, estes povos chegaram à conclusão que o processo de evolução rotineira de sua economia, retardado por um conjunto de obstáculos de toda a ordem, dificilmente lhes permitiria alcançar a emancipação econômica que eles tanto aspiram, quebrando o círculo de ferro do subdesenvolvimento. E chegaram mesmo à evidência que só através de profundas modificações estruturais, que dificilmente serão alcançadas sem violência, poderão estes povos se libertar de sua miséria. A impressão geral é que nem a aspirina da ajuda internacional, nem as injeções intermitentes de dólares poderão impedir a explosão continental (4).

Dentro deste panorama geral da América Latina, o Nordeste se ajusta como se fosse uma reprodução em pequena escala, ou seja, uma miniatura do grande afresco geral.

Uma análise, feita com mais profundidade do problema da terra no

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Nordeste, evidencia até que ponto a estrutura latifundiária, semifeudal e semicolonial se mantém viva e prepotente nesta área. Mesmo desfalcada de sua antiga força e de seu prestígio coloniais, mesmo abalada pelas interferências de outros poderes econômicos, o monopólio feudal da terra é ainda o pivô da vida econômica, política e social do Nordeste.

Embora a indústria ensaie passos tímidos aqui e ali, a economia do Nordeste é agrária no que ela tem de fundamental, e as trocas monetárias processam-se ainda em escala reduzida. Mesmo nas grandes propriedades pouco penetrou o salariado. Se este é encontrado com freqüência nas zonas açucareiras de Pernambuco e Alagoas, está quase ausente das outras lavouras da região. Os assalariados não atingem um milhão sequer numa população de 20 milhões e nem todos percebem salário a seco, remuneração por excelência do regime capitalista(5).

A extirpação dessas raízes feudais encontra seu maior obstáculo na elevada concentração da propriedade em poucas mãos. De fato, quem se aprofundar no exame das causas que têm contribuído para o subdesenvolvimento do Nordeste verá que ele deriva fundamentalmente dessa inadequada infra-estrutura assente no latifundismo. Desta decorrem, num encadeamento inexorável, todos os fatores de atraso e de pobreza. E é fácil compreender por quê. O latifundismo engendra uma estrutura de produção que se caracteriza pela escassez de capital. Esta, por sua vez, faz com que seja pequeno o excedente da produção destinado a inversões, dando lugar a uma exígua taxa de formação de capital, que impossibilita a ampliação das empresas agrícolas e a criação de indústrias rurais e de transformação. Simultaneamente vão se agravando as desigualdades econômicas. No alto da pirâmide social uma pequena minoria controla grande proporção dos recursos agrícolas, ao passo que a maior parte da população somente dispõe de sua força de trabalho ou de um minifúndio incapaz de prover o sustento da família e cuja propriedade lhe escapa quase sempre através do mecanismo das dívidas hipotecárias insolváveis. Sem oportunidades econômicas e educacionais, mantém-se baixa a produtividade de enormes setores da população e torna-se, por isso, difícil, senão impossível, elevar a renda

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regional. Não havendo dentro desse defeituoso regime de terras imperativos

econômicos imediatos que determinem maior soma de investimentos por unidade de capital e por unidade de área, o pequeno grupo beneficiário dessa situação entrega-se às inversões especulativas, quando não ao consumo suntuário. Os próprios investimentos governamentais — e eles têm sido consideráveis na região — não se mostram capazes de modificar fundamentalmente a economia do Nordeste, pois, via de regra, favorecem sobretudo aquela minoria a que nos referimos. Vejamos a razão.

Os açudes públicos, criados para combater os efeitos das secas, como se sabe, fertilizam as terras adjacentes, valorizando-as comercialmente. Quem ganha com isso? Os grandes proprietários das terras em que estão encravadas essas obras. O mesmo sucede com a construção dos canais de irrigação. E os açudes por cooperação e os poços tubulares, largamente difundidos na região, quase sempre só estão ao alcance dos médios e grandes proprietários, pois o pequeno agricultor não dispõe de recursos financeiros, nem de influência e acesso às autoridades, para requerer e obter a colaboração técnica e financeira dos organismos públicos encarregados dessa tarefa.

A ênfase aqui dada ao problema da terra justifica-se. Muitos programas de investimentos na área do Nordeste são elaborados sem que se procure dinamizar o fator de produção que ali é primordial — a terra, — estando por isso condenados a uma rentabilidade insuficiente. O desenvolvimento econômico do Nordeste e o êxito do programa oficial de combate aos efeitos das secas dependem estreitamente de uma reforma agrária que mereça de fato esse nome. Não a reforma agrária baseada em mera colonização de terras devolutas, a qual não passaria de um conjunto de medidas inócuas, deixando intocado o deplorável regime de terras imperante na região. Não a reforma agrária desejada por certos líderes ruralistas, que consistiria em desapropriar terras mediante a indenização prévia em dinheiro pelo seu valor venal no mercado imobiliário; mas sim a reforma agrária apoiada na desapropriação por interesse social, que retalhe os latifúndios improdutivos; que dê terra a quem dela necessite para viver com decência; que estipule novas e mais humanas bases de

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arrendamento ; que regule os contratos de trabalho, fixando níveis salariais adequados; que cuide da assistência técnica e financeira aos pequenos produtores; que, em suma, liquide definitivamente os odiosos privilégios que ainda hoje enfeudam a propriedade da terra no Nordeste.

Sem essa reforma agrária, o Nordeste continuará a desenvolver-se, como até agora, lentamente, a um ritmo bem inferior ao do conjunto do país, sujeito aos tremendos colapsos econômicos que o desencadeamento das secas provoca. Sem a reforma agrária, o Nordeste continuará com seu comércio à base da exportação de produtos primários e da importação de artigos manufaturados, o qual sabidamente cria uma relação de trocas desfavorável e que tende a deteriorar-se mais ainda em face da atual conjuntura internacional, extremamente adversa aos produtos primários em geral e aos do Nordeste em particular.

Não se trata de uma tese calcada num retrato impressionista da paisagem agrária do Nordeste, mas em conclusão que emerge de uma análise aprofundada de sua estrutura agrária, conforme a seguir se verá. Preliminarmente examinemos, à luz das estatísticas censitárias, o modo de ocupação e de utilização da terra e a maneira pela qual se distribui a propriedade fundiária, bem como todos os demais aspectos da economia agrária da região. A julgar pelos resultados do censo agrícola de 1950, somente 49% do território nordestino estaria ocupado por estabelecimentos agrícolas, o que nos parece altamente subestimado, pois, mesmo descontando as áreas urbanas, e outras, como rios, lagos e serras inacessíveis, teríamos de admitir elevada proporção de terras devolutas, cuja área total é sabidamente de pouca expressão. Responde por essa flagrante incompatibilidade do recenseamento com a realidade agrária nordestina a inexistência de cadastro das propriedades rurais, o que leva o dono de estabelecimento a declarar a área por ele ocupada com base em presunções ou estimativas não testadas por levantamentos topográficos, quando não a reduz intencionalmente com receio da ação fiscal do governo. Dos 49 milhões de hectares que, em 1950, constituíram a área total dos estabelecimentos agrícolas, apenas 10$ estavam ocupados com lavouras (permanentes e temporárias). Essa

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irrisória taxa de aproveitamento e o fato de que 76% das propriedades agrícolas têm menos de 5 hectares de área de colheita caracterizam a estrutura tipicamente latifundiária da região. Não obstante a precariedade dos dados censitários, servem eles para compor um retrato tosco, mas não de todo infiel, do agro nordestino, que alcança contornos mais nítidos quando se examina a propriedade da terra.

Inicialmente releva salientar o grande número de lavradores que, no Nordeste, não possuem a propriedade de qualquer trato de terra, por menor que seja. De um total de 4.697 mil pessoas que, em 1950, exerciam atividades agrícolas, somente 749 mil eram responsáveis pela exploração de estabelecimentos, sendo que 261 mil dispunham de área inferior a cinco hectares. Como se vê, quase 4 milhões de nordestinos viam-se forçados, para viver, a lavrar a terra alheia, sem garantias de qualquer espécie, auferindo os parcos rendimentos que a meação, o arrendamento a curto prazo, ou o salariado lhes proporcionam. Nesta primeira característica da economia do Nordeste reside a principal causa da baixa produtividade e da insignificante propensão a investir. Mesmo entre os que possuem glebas para explorar, há disparidades gritantes. Assim, 15.458 grandes proprietários de área superior a 500 hectares, isto é, 2% do número total de responsáveis por estabelecimentos agrícolas, são donos de 48% da área total destes últimos. Em troca, os pequenos proprietários, como tal conceituadas os que dispõem de área inferior a 50 hectares, conquanto representem 76% do total de proprietários, só controlam 14% da área total dos estabelecimentos agrícolas. Por outro lado, verifica-se sua pauperização gradativa pela tendência à pulverização da propriedade. Basta dizer que, se em 1949 o número de estabelecimentos com área inferior a 5 hectares era de 28% do total, em 1950 este número ascendia a 35%. Esses donos de minifúndios que mal dão para o sustento da família, não passam de legítimos proletários do campo.

Nestas simples cifras está patente o elevado grau da concentração da propriedade rural que caracteriza o regime latifundiário do Nordeste. Ao contrário do que vem ocorrendo em outras regiões do país, tanto a razão de concentração como a área média dos estabelecimentos agrícolas aumentaram no Nordeste no decênio entre

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os dois censos, o de 1940 e o de 1950. Por outras palavras, agrava-se no Nordeste a monopolização da terra, à despeito da tendência à sua divisão que deveria propiciar o direito sucessório brasileiro. O fato se confirma também pelo ocorrido com as propriedades de área superior a 500 hectares. Estas cresceram, não somente em número absoluto, como também na extensão da área possuída.

Sobre esta infra-estrutura agrária feudal se assentam relações de trabalho ou sejam características sócio-ocupacionais também tipicamente feudais. Se na indústria açucareira, onde foi maior a penetração do capitalismo no campo, o trabalho se faz num regime de salário, nos outros setores agrícolas perdura o regime do arrendamento, da parceria e da meação, expressões típicas da exploração servil. Em qualquer das modalidades aí utilizadas o latifundiário exige sempre que os contratos sejam de curta duração, para poder renová-los em bases cada vez mais vantajosas, dada a tendência de valorização das terras.

Em certos tipos de cultura o camponês é explorado ostensivamente pelo proprietário agrário e pelo truste beneficia-dor e exportador do produto. É o caso da cultura do algodão, de relativa importância na economia do sertão nordestino. Nesta cultura, ao contrário da usina de açúcar que se fez um só complexo agroindustrial, há uma separação completa entre a indústria de beneficiamento do produto e a sua exploração agrícola. A primeira, juntamente com a indústria dos subprodutos, é dominada pelas poderosas firmas norte-americanas, a Anderson Clayton e a SANBRA, que são donas das usinas de beneficiamento, que controlam todo o capital comercial, que monopolizam os produtos industriais destinados à lavoura e que adquirem aos preços por elas fixados toda a matéria-prima disponível. A segunda, a exploração agrícola propriamente dita, permanece nas mãos do latifundiário que é o senhor das terras, mas o vassalo do truste.

Na pecuária nordestina durante muito tempo prevaleceu o regime da parceria, segundo o qual de cada quatro bezerros nascidos, tocava um ao vaqueiro. Era a época do gado criado à solta, não raro em campos sem dono, cujos pastos naturais eram uma espécie de propriedade coletiva. Com a enorme valorização do boi, resultante da

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sua maior procura nos mercados consumidores e da própria melhoria da raça, passou a ser mais interessante, para o dono das boiadas, pagar salário em dinheiro ao vaqueiro, ou, então, obrigá-lo a vender-lhe o bezerro a que teria direito pelo preço vil por aquele estipulado.

Outro esforço do latifundiário no Nordeste foi a expansão do plantio do agave. O preço era bem maior que o de outras culturas e dispensava mão-de-obra em grande escala. As pequenas propriedades revelavam-se inaptas para o fornecimento do sisal às máquinas desfibradoras. Abandonavam-se, por isso, não só as culturas temporárias (feijão, milho), mas também as permanentes, tudo com o objetivo exclusivo de plantar mais agave. Novas terras se compraram e novos latifúndios surgiram na região. A zona de Brejo, na Paraíba, outrora dividida em pequenas propriedades cultivadas intensivamente, produzindo gêneros alimentícios, que em épocas normais abasteciam a cidade de Campina Grande e, nos períodos de seca, as populações fronteiriças do Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, foi altamente prejudicada com a invasão do agave em bases latifundiárias. Esta estrutura agrária do Nordeste, pintada em seus traços fundamentais, é a grande responsável pelo fato de que nesta região a renda média per capita seja de 2,6 vezes menor do que a renda média brasileira. Que a população desta área apresente um índice de analfabetismo de 74%, enquanto a taxa nacional de analfabetos é de 42%. Nesta conjuntura econômica defeituosa repousa, também, a existência do desemprego ou do subemprego crônico que é uma forma disfarçada do desemprego, muito comum nesta região, principalmente na área do açúcar onde se observa "o nomadismo da mão-de-obra nos períodos de corte da cana, grupos numerosos que se deslocam do sertão e do agreste para a mata canavieira e depois retornam para renovar cada ano este vaivém sem esperança"(6).

Hoje o camponês do Nordeste conhece todos os segredos desta organização, bem melhor do que era de esperar por parte de uma população em sua maioria analfabeta. E compreendeu, também, que o monopólio da terra, associado ao monopólio das exportações, transfere sempre para as costas do povo as sobrecargas do processo espoliativo, resultante das pressões baixistas sobre os preços dos produtos primários exercidas pelos trustes estrangeiros, e conclui que

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os senhores da terra, intermediários e cúmplices desse processo, são os grandes responsáveis pelo retardado desenvolvimento econômico regional, pelo irrisório poder aquisitivo do homem do campo, pela fome e pela miséria reinantes em toda a região.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 — GOETSCHIN, PIERRE, Situation économique de l’Amérique Latine, in "Revue économique et sociale", Lausanne, fevereiro de 1962,

2 - GERASSI, JOHN, The Great Fear, Nova Iorque, 1963 3 — HANKE, LEWIS, Colonisation et Conscience chrétienne au XVI" siècle,

Paris, 1948. 4 - SWEEZY, P. M. e HUBERMAN, L., Latin America?, Nova Iorque, 1963. 5 — BARRETO, LEDA, Julião, Nordeste, Revolução, Rio de Janeiro, 1963. 6 - MORAES, MANOEL H. A., O Nordeste, o Meio e o Homem, in "Síntese

Política, Econômica, Social", n.° 17, Rio de Janeiro, 1963.

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CAPITULO VII ANOS DECISIVOS POR OCASIÃO da sensacional descoberta levada a efeito em 1960

pelos serviços de imprensa e de informação dos E.U.A. desta desconcertante terra do Nordeste, a tensão social aí reinante já tinha atingido os limites do tolerável. Esta tensão vinha crescendo paralelamente à tomada de consciência política — a conscientização das massas — a que já fizemos alusão em capítulos anteriores. Na realidade esta conscientização não representa um problema específico, exclusivo desta região brasileira, ela é antes a expressão regional de um fenômeno hoje universal: a tomada de consciência por parte dos países periféricos, das origens, das causas e da significação dos seus trágicos problemas político-sociais. O Nordeste, como uma área tipicamente subdesenvolvida, em permanente e desesperada luta por se emancipar econômica e socialmente, não podia escapar das malhas envolventes desta trama, desta espécie de tecido espiritual, ao qual já fazia alusão o Padre Teilhard de Chardin, e que hoje recobre praticamente o mundo inteiro: o complexo tecido da consciência coletiva. Nesta região do Nordeste, o fato de que poderosas forças de contenção social tenham tentado impedir por todos os meios a formação desta consciência coletiva e conter as suas variadas formas de expressão além dos limites do tolerável provocara, num determinado momento, o rompimento brusco desta barragem social, e a consciência coletiva jorrou com uma tal violência que hoje se

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apresenta não como um fenômeno evolutivo, mas como uma espécie de transmutação social. Como uma espécie de fato imprevisível para todos aqueles que não tenham acompanhado sua surda incubação no subsolo das lutas de grupos que a História praticamente não registra. Daí o desconcertante do atual momento histórico-social brasileiro.

Uma das impressões mais correntes que forma o estrangeiro da realidade do Brasil, em seus primeiros contatos com esta terra, é o da nitidez, do forte relevo de certas personalidades individuais, de extraordinária riqueza interior, em contraste com a fragilidade do sistema social, com o caos desencorajador desta sociedade, que se apresenta como um conglomerado informe de arcaísmos e de modernismos, de fatalidades e de veleidades. "É o Brasil um mundo coletivamente imprevisível e sob certos aspectos desconcertante mas no qual a mistura de raças, a hostilidade e a fecundidade da Natureza engendraram uma individualidade excepcionalmente rica. Expansivo como um meridional, melancólico como um índio e carregado de ternura como um negro, o homem brasileiro se interroga por que será ele tão pobre num continente que deveria ser tão rico. E, assim, ele se conscientiza, o que quer dizer, se politiza", afirmou com lucidez André Dumas, após uma viagem de estudos ao Nordeste do Brasil. E concluiu que este país se mantém até hoje como uma gigantesca força social que ainda não cristalizou suas potencialidades. Mas que se aproxima do ponto da cristalização.

Neste impulso avassalante das forças de criação, contidas durante séculos pelas barragens do feudalismo, se refaz a olhos vistos todo o relevo da paisagem social da região, como se refaz o relevo de uma paisagem natural, quando grandes torrentes procuram nela abrir caminhos até então inexistentes. Se a Amazônia é fisicamente um mundo ainda em formação, com o intrincado sistema dos seus rios ainda modelando a fisionomia do seu solo incerto, o Nordeste é, socialmente, também um mundo em formação, com o seu povo em sôfrega busca de seus destinos históricos. A cada avanço desta torrente social, hoje praticamente incontrolável, tem correspondido o aparecimento de certas instituições criadas com o objetivo de mudar a paisagem social da região. De ajustá-la melhor ao quadro atual das necessidades vitais e das aspirações incontidas de um povo que

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decidiu viver e não apenas sobreviver. Infelizmente, como veremos a seguir, este objetivo ainda não foi

alcançado, tendo a maior parte das instituições criadas cedo enveredado pelo caminho das falsas soluções, produtos, até certo ponto, de uma consciência ainda um tanto nebulosa dos nossos problemas, mas, principalmente, produtos das influências negativas de poderosas forças interessadas na manutenção da "paisagem defunta", na sobrevivência de uma estrutura morta, expressão típica do feudalismo decadente.

Durante séculos, todos os problemas do Nordeste tinham sido reduzidos a um só grande problema: o das secas. O problema das secas considerado como um fatalismo climático, contra o qual nada ou quase nada poderia fazer o homem. Daí o conformismo, a inércia, a ausência de quaisquer medidas tendentes a melhorar a situação das populações expostas ao flagelo. Só depois da ,sêca de 1877, que segundo os anais da História matou de fome, de sede e de outros males epidêmicos, metade da população do Nordeste, é que o governo brasileiro tomou a iniciativa de realizar um plano, não de luta contra o flagelo da seca, mas de ajuda e de amparo aos flagelados da sêca(l). Assim, foi criada a primeira Comissão Nacional de Estudo dos Problemas da Seca, que durante anos, de forma intermitente e bem pouco ordenada, dispensava uma vaga ajuda nas épocas de calamidade. Só em 1909, em face das constantes reclamações contra a inoperância desta ação do Governo Federal, foi criado um organismo com a missão específica de estabelecer e superintender um plano sistemático de combate às secas: a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Influíram muito na criação deste organismo, de um lado a cega confiança que se votava no começo do século à ciência e à técnica, como soluções válidas a todos os problemas, e de outro lado, o exemplo a imitar, da criação nos E.U.A., em 1902, do U.S. Bureau of Reclamation, que iniciara com sucesso a irrigação em larga escala da região árida do sudoeste dos Estados Unidos(2). Inspirada em tais princípios, a Inspetoria ,se constituiu como um órgão de engenharia, e foi nomeado para seu primeiro diretor um engenheiro de minas, Arrojado Lisboa, que a dirigiu durante três anos. Desde seu início, com esta visão limitada do problema, considerando toda a miséria do

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Nordeste como um problema de falta d'água e depondo toda a confiança em resolver o problema através das soluções hidráulicas, o novo organismo fracassou redondamente. Empenhou--se quase que exclusivamente na construção de grandes barragens — os açudes, mares interiores nesta terra de desolação. Mas, como nem ao menos se preocupou o novo organismo em utilizar a água assim represada na irrigação destas terras, os açudes tinham os seus objetivos limitados apenas em refletir nas suas águas a beleza do azul do céu e em concentrar nas suas margens, como pontos de resistência, as negras massas de retirantes das épocas de calamidade. Mais grave ainda do que a miopia técnica fora a mistificação política em que caíra este organismo ao qual competia, também, a distribuição e a aplicação das polpudas verbas para ajuda aos flagelados das secas. Nenhum outro organismo técnico fora tão desvirtuado em seus objetivos do que este que canalizava para os bolsos dos senhores das terras e dos seus apaniguados quase todos os recursos que deviam ser destinados a alimentar, a educar, a ajudar a viver aos camponeses da região. A ação deste organismo se fazia sempre ao sabor das influências e do prestígio político. Assim o seu esplendor financeiro correspondeu aos anos de 1919 a 1922, durante os quais encontrava-se à frente da Presidência da República, pela primeira vez na história do Brasil, um homem do Nordeste, Epitácio Pessoa. Neste período, avultados recursos foram consagrados às obras contra as secas, mas infelizmente, dentro de uma estreita visão técnica e de uma conduta política sempre lamentável. Com a eleição do novo presidente, um homem do Brasil Central, o mineiro Artur Bernardes, foram cortados quase que todos os créditos da Inspetoria, paralisadas as obras em construção, e os grandes capitais investidos em máquinas importadas dos E.U.A. pelo governo anterior ficaram enferrujando no campo, ao lado das ossadas do gado morto de fome e de sede. E, mais uma vez, se frustravam as esperanças do povo do Nordeste. Em 1950 a Inspetoria mudou de nome, passando a chamar-se Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, não mudou no entanto sua visão política que continuou alienada dos interesses reais do povo da região. Mas, se não realizou este organismo uma política eficaz na terra, estimulou no papel a realização de trabalhos e estudos sobre o

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Nordeste, que foram pouco a pouco revelando a sua realidade econômico-social. A contribuição científica da Inspetoria Contra as Secas desempenhou, pois, um papel inestimável na formação da consciência regional e na preparação de uma política mais realista para a solução dos seus problemas (3).

A partir do governo de Vargas se acentuou esta consciência de que as soluções até então apresentadas não atendiam nem de longe aos objetivos colimados. Na grande seca que assolou o Nordeste durante os anos de 1931 e 1932, o Governo Federal liberou verbas excepcionais para dar assistência a 220 mil flagelados que foram empregados nos serviços públicos da área das secas. Estas despesas atingiram a 10% da renda federal e representavam a mais alta contribuição financeira ao Nordeste depois do período de Epitácio Pessoa, quando esta quota fora de 15%. Ora, os resultados obtidos no governo Vargas foram tão pouco brilhantes quanto os dos governos anteriores. A percepção de que o Nordeste não era apenas um problema de engenharia, mas de economia política, conduziu à criação de dois novos organismos: em 1948, a instalação da Companhia do Vale do São Francisco, encarregada do desenvolvimento da região e da utilização do potencial hidrelétrico deste rio, e, em 1952, da criação do Banco de Desenvolvimento do Nordeste. A partir deste momento se formava uma mentalidade desenvolvimentista na região, em luta aberta com a política que até então tinha sido imposta ao Nordeste pelos homens do Sul. Política de tipo paternalista, limitada aos apelos de "ajuda ao teu irmão" nas épocas calamitosas da seca. Ajuda que mesmo como procedimento assistencial beneficiava mais a certos grupos apaniguados — os industriais da seca — do que propriamente às vitimas desse flagelo.

Na década dos cinqüenta, a economia brasileira tomara um grande impulso, crescendo numa taxa média de 7% por ano, uma das mais altas do mundo ocidental. A produção industrial aumenta neste período numa média de 10% por ano. Com a diferenciação tecnológica de nossa economia que se processa em ritmo acelerado, a consciência democrática do país se fortifica, dando às populações um maior desejo de participar dos destinos da nação. Tais modificações desarticulam a antiga estrutura feudal e ameaçam seus velhos

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interesses, despertando uma violenta reação. E é no Nordeste que se acentua esta radicalização das forças antagônicas. Tudo aí passa a ter uma certa conotação ideológica. Tudo é direita ou esquerda. Tudo é revolução ou reação.

Todo um conjunto de fatores sócio-econômicos, agindo em processo convergente, determinou esta cristalização em formas mais precisas das antigas e informes contradições da estrutura sociológica do país. Assim, se aprofundaram de forma impressionante as brechas ou hiatos — aquilo que o sociólogo W. Ogburn chamou os cultural lags — da sociedade vigente. O mais importante destes fatores de aceleração do processo de conscientização das massas e de fissura na estrutura social contraditória foi o próprio processo de desenvolvimento econômico do país acelerado a partir de 1950.

O Presidente Juscelino Kubitschek, eleito em 1955 e empolgado pela ideologia desenvolvimentista, concentrou todos os esforços do Governo Federal na tarefa do desenvolvimento visando à emancipação nacional. Mas confiou esta tarefa a colaboradores altamente comprometidos com a estrutura agrário-feudal amparada no capital estrangeiro. O desenvolvimento, que se processou, se fez, desta forma, de maneira unilateral, limitado regionalmente ao Sul do país e setorialmente a um só grupo de atividades: a indústria. Esta política da industrialização intensiva concentrada na região do Sul acentuou ainda mais os desníveis nacionais. O desnível regional entre o Sul e o Nordeste e o desnível setorial entre a agricultura e a indústria, agravando ainda mais a fome no país. Não foi casual nem politicamente desinteressada esta opção por uma política de desenvolvimento, preocupada em desenvolver as áreas já desenvolvidas e em enriquecer mais os grupos já enriquecidos. O marginalismo em que foram deixados a agricultura e o Nordeste — região essencialmente agrícola — tinha suas origens nas imposições de certos grupos de que não se tocasse nas estruturas agrárias. Que se fizessem todas as revoluções industriais, mas não se pensasse na mais discreta reforma nos problemas da terra. Os resultados deste desenvolvimento capenga, feito numa perna só, agravou o descontentamento das massas populares do Nordeste e impediu a industrialização autêntica do país no ritmo desejado. Concentrando

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todas as atenções do governo e todas as disponibilidades da nação numa ,só região do país — o Centro-Sul — e imolando a este novo Moloque todas as forças de produção nacional, o governo de Kubitschek distorceu e desajustou ao extremo o sistema econômico nacional. Diante do dilema do pão ou do aço, ou seja, da agricultura ou da indústria, ele investiu tudo na indústria, esqueceu a agricultura e acabou fazendo esta indústria estagnar por falta de matérias-primas, por falta de meios de subsistência nos parques industriais e por falta de mercado interno para os produtos desta indústria(4). Acredito que sua intenção fosse boa, fosse a de emancipar o Brasil, através de uma economia industrial e, portanto, com possibilidades de independência. Mas a realização ficou bem aquém das intenções. O arcaísmo agrário acabou peiando o crescimento industrial, e nos anos de 1955 em diante, apesar deste apregoado esforço de industrialização, o seu ritmo de crescimento começou a decair, passando o aumento do seu produto real a ser apenas de cerca de 5% por ano, quando, no período de 1950 a 1954, fora de cerca de 11%.

Outro fator de agravação das tensões sociais no Nordeste tem sido a sua crescente pressão demográfica. É esta uma área de alto coeficiente de fertilidade e, se seu crescimento demográfico, no período de 1950 a 1960, fora de 2,8%, enquanto o do país inteiro é de 3,5%- (o mais alto do mundo), o fenômeno se explica pela imigração interna, pelo espraiamento das grandes massas nordestinas para todos os quadrantes do país. A Amazônia no começo do século, São Paulo nos anos mais recentes, absorveram grandes volumes destes excedentes funcionais de população — os desocupados da economia primária nordestina.

Com o craque da borracha e com o relativo recesso da indústria paulista ameaçando o aparecimento do desemprego, a pressão demográfica do Nordeste tinha que aumentar. É verdade que neste período surgiu a construção de Brasília, mas sua capacidade de absorção da mão-de-obra era bem mais limitada. E já neste momento o Nordeste ameaçava saturar o Brasil, infiltrando-o com suas massas humanas, exportando por toda aparte, com a sua miséria, a expressão da sua angústia e a formulação de sua política de revolta e de inconformismo. Salienta muito bem André Dumas que, se em Nova

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Iorque se distingue um proletariado porto-riquenho bem definido e em Paris um proletariado norte-americano, no Brasil o proletariado de tipo nordestino está hoje universalmente presente. Em todas as cidades, desde Porto Alegre, no extremo Sul, a Brasília no Centro, o Nordeste acampa nas portas dos luxuosas buildings urbanos, exibindo o seu rebotalho humano que o vento das secas e o chicote da fome tangeram das terras do Nordeste para as outras áreas do país. E este contraste alarma.

O Nordeste fez-se, assim, presente em todo o território brasileiro como o maior problema nacional. Esta conotação sociológica reforça o drama da luta ideológica do país e insufla novas táticas aos grupos em conflito. A direita e a esquerda, ou as confusas forças que julgam exprimir tais posições ou contradições, se apresentam agressivas no cenário político nacional. A principal característica da esquerda brasileira é de se apresentar conservadora em política e revolucionária em economia. Por sua intransigente defesa dos princípios da democracia representativa, ela sustenta o ponto de vista de que através do jogo democrático os grupos de pressão popular acabarão por conquistar o poder. Daí a sua tática de lutar pela conquista de um parlamento que exprima autenticamente a realidade nacional e defenda autenticamente os interesses do povo, e de um executivo capaz de propor medidas dinâmicas, apoiado na vontade popular. No sistema ideológico da esquerda destaca-se a consciência nítida dos fatores condicionantes do subdesenvolvimento nacional e da nítida influência dos capitais estrangeiros nos destinos do país — influência exercida sobre variadas formas, principalmente através da propaganda bem remunerada, que louva e exalta a política de certas potências estrangeiras e que combate e avilta todas as iniciativas de renovação política e de emancipação econômica do país. Esforça-se ainda a esquerda por obter em apoio de sua causa as Forças Armadas hoje divididas. Forças Armadas que em sua esmagadora maioria é patriòticamente nacionalista, mas se apresentam, em parte por sua obsessão anticomunista, capaz de defender um status quo superado e opressivo. Contra esta infiltração da esquerda que ganha terreno a olhos vistos e que ameaça mesmo ganhar o poder democraticamente pela força do voto, principalmente se este voto for estendido às massas

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analfabetas, hoje politicamente conscientizadas, rebela-se violentamente a direita. A direita, que deseja antes de tudo a manutenção da atual estrutura onde, no fundo, ela exerce ainda todo o poder econômico e, por seu intermédio, a maior parcela do poder político. A direita no Brasil não é uma classe historicamente ultrapassada que sonhe voltar ao poder. Mas uma classe politicamente ativa que participa do poder e, para nele eternizar-se, preconiza mesmo os métodos da ação subversiva. É por isto que a direita economicamente conservadora em extremo, é politicamente revolucionária, neste sentido de que a ordem democrática, estabelecida em bases verdadeiras, representa para ela, o maior perigo aos seus privilégios abusivos, em face de uma possível tomada do poder pela esquerda eleitoralmente bem mais forte.

Praticamente já não existe centro ou política de centro, no país. Como nunca existiu classe média na sociedade de tipo feudal, a inexistência deste tecido intersticial de ajustamento político não propiciou a criação de uma posição de centro politicamente forte. O centro se acomoda tímido e apagado às pressões dos dois lados. Do arsenal ideológico da direita faz parte ainda uma submissão total aos interesses das potências estrangeiras sob o pretexto já surrado do perigo comunista. Tal perigo a direita exagera em altos brados, escondendo a realidade de que o Partido Comunista Brasileiro, que nunca foi estruturalmente forte, atravessa no momento uma das mais graves crises internas, — crise de divisionismo em face da luta de princípios ideológicos que travam a URSS e a China. Em sua análise superficial do problema do subdesenvolvimento, a direita defende a tese falsa de que a pobreza nacional se deve, antes de tudo, à falta de elementos capazes e válidos para impulsionarem os empreendimentos econômicos do país.': Alguns dos seus porta-vozes dão grande ênfase aos problemas da educação e da saúde, considerados como causa e não como efeito do subdesenvolvimento. Toda a direita, sem exceção, omite intencionalmente de sua problemática os problemas estruturais de base da nação. Com um programa deste tipo, é fácil compreender-se que a direita se encontra ideologicamente desmunicionada para enfrentar os problemas do subdesenvolvimento brasileiro democraticamente e, por isso, a sua tática é a da violência. Daí os seus

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processos de intimidação de todas as vozes que se levantam, pregando a urgência das reformas que o Brasil necessita. Daí o terrorismo em que ela descamba, criando um clima de pânico e de incerteza para o país. A direita brasileira sabe que sua última chance reside na guerra civil onde ela poderia contar, sem dúvida, com um auxílio estrangeiro substancial, justificado pelo pretexto de afastar os perigos de uma ditadura comunista. Claro que esta é uma solução precária, de sucesso curto, pois a direita diante da extrema ineficácia de suas respostas ao problema do subdesenvolvimento está de antemão condenada ao fracasso político, à perda do poder, que lhe escapa de maneira irremediável. Esperemos que esta conscientização ou lucidez política nacional encontre sua contrapartida nos responsáveis pela segurança do hemisfério americano, os quais, compreendendo a precariedade do esquema político da extrema direita que conduzirá fatalmente o Brasil à convulsão improdutiva, prefiram o desenvolvimento democrático, apoiando as reivindicações das massas conscientes ou pelo menos contendo seus impulsos de intervenção.

É preciso que se reconheça que esta complexa estrutura política do país, tão contraditória em sua aparência, facilita as interpretações inexatas e conduz a uma visão deformadora da realidade política brasileira. Daí os graves erros manifestados pelos cronistas da recente descoberta do Nordeste.

O maior destes erros dos observadores estrangeiros do Nordeste de 1960 foi o de transpor da sociedade que lhes parecia confusamente incompreensível, para certas individualidades que se apresentavam como nitidamente definidas, toda a responsabilidade do drama histórico que aí se representava. Enorme foi este erro de pensar que eram estas personalidades os verdadeiros heróis do drama, quando não passavam elas de simples comparsas de uma história, cujo personagem central era mesmo o povo nordestino: a massa humana indistinta, informe, agitada e sofredora do Nordeste. Olhando a paisagem humana encandescida pela tensão social, os observadores apressados apontaram como incendiárias, certas personalidades e instituições, que longe de estarem jogando lenha na fogueira, o que estavam na verdade era procurando evitar que o fogo se alastrasse. Diante da tremenda confusão do incêndio, os observadores

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inexperientes tomaram como seus autores os próprios bombeiros que se agitavam socialmente, lutando contra a explosão. Vejamos alguns exemplos: Miguel Arraes, Francisco Julião e as Ligas Camponesas, os padres da Reforma Agrária, Celso Furtado e os técnicos da SUDENE são alguns exemplos de nomes invocados como instigadores da revolução social do Nordeste, quando na verdade eles apenas personificam, em determinados aspectos ou setores de atividades, o impulso natural do movimento de emancipação de um povo, desencadeado de início, à revelia destes homens. É ingênuo pensar que foi Julião quem inventou o problema agrário no Nordeste, que foi Arraes o autor da escravidão branca e das aspirações de justiça social, que foi Celso Furtado o revelador da economia dependente ou que fui eu quem inventou a fome. Não inventamos nada. Todas estas coisas já tinham brotado naturalmente da estrutura social da região e crescido emocionalmente no seu clima humano de desespero e apenas aguardavam serem um dia reveladas em termos mais ou menos racionais por alguns homens ou instituições da terra. Homens e instituições realmente identificados com os problemas dessa terra. Mais ainda uma vez por ignorância ou má fé são os efeitos tomados como causas. Para desfazer este erro de interpretação, que poderá ser de graves conseqüências para o futuro político do continente inteiro, pelas distorções que ele acarreta na formulação dos tipos de política preconizados para evitar a exploração violenta do Nordeste, basta que se analise com serenidade e com objetividade o que vem ocorrendo nestes anos decisivos que precederam e que se seguiram à data simbólica de 1960. E que nesta análise sociológica se coloque nos devidos lugares, sem prevenções ideológicas, estas e outras personalidades que se vêm destacando por sua participação mais ativa no processo da revolução social do Nordeste. Miguel Arraes, Prefeito do Recife na data da descoberta e Pelópidas Silveira, então Vice-Governador do Estado, são nominalmente citados no documento de Tad Szulc: " O Prefeito Miguel Arraes de Alencar é geralmente citado como comunista, embora ele o negue. A administração da cidade inclui comunistas notórios em altos postos... O Vice-Governador do Estado Pelópidas Silveira, pertence ao Partido Socialista Brasileiro que em Pernambuco trabalha em íntimas relações com os comunistas,

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especialmente nas Ligas Camponesas". Até onde vai o "comunismo" de Miguel Arraes? A evidência dos fatos tem mostrado que se trata de um homem público, simples e probo, de formação cultural relativamente limitada e sem grandes rasgos de imaginação. Mais um realista e um realizador do que um intelectual ou ideólogo. Como político se voltou Arraes com sincero devotamento aos problemas do povo e à busca de soluções democráticas para estes problemas. Cercou-se, em sua administração na Prefeitura do Recife e depois no Governo do Estado, de uma equipe de homens conhecedores destes problemas que o orientam tecnicamente no complexo labirinto das decisões a serem tomadas. Sempre participaram desta equipe, é verdade, comunistas, como também, socialistas e católicos ferventes e praticantes e economistas e técnicos muitos deles com um santo horror às lutas ideológicas, mas todos irmanados e galvanizados por um só ideal comum: a urgente transformação sócio-econômica do Estado chave do Nordeste — Pernambuco.

Em reportagem publicada por Antônio Callado(5) no órgão conservador Jornal do Brasil em dezembro de 1963 lê-se o seguinte: "Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de idéias do Brasil. É o Estado mais democrático da Federação. Lá a gente repara, mesmo, que a democracia não tem nada de habitual no Brasil. Dois fatores principais se terão combinado para favorecer o aparecimento desse clima pernambucano de liberdade: um movimento de agitação das massas que preencheu, em poucos anos, o papel da educação que essas massas nunca tinham tido, e a eleição para o Governo do Estado, de um homem do povo. Miguel Arraes é o primeiro homem do povo a dirigir uma das unidades de maior atraso mental e mais arraigadas pretensões aristocráticas do Brasil... Duas coisas dificultam em Pernambuco qualquer opinião definitiva sobre o que se passa e o que virá a acontecer: tudo lá é novo, fluido, acelerado, e, em segundo lugar, tudo é empírico. A questão social em Pernambuco era, em rigorosos termos de República Velha, um caso de polícia. E era a polícia que resolvia o caso. Isto se vê claramente no próprio memorial que as classes produtoras de Pernambuco entregaram, em outubro, ao Presidente da República e aos Presidentes da Câmara dos Deputados,

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do Senado e do Supremo Tribunal, denunciando o clima de terror e insegurança, criado pelo Governo Arraes. Dizia o memorial: "Dentro da mesma técnica de desmoralização do princípio da autoridade, a polícia muitas vezes participa passivamente das invasões. Acompanha, como testemunha impassível, aparentemente sem objetivo, o desenrolar dos acontecimentos. Com isto serve, no entanto, aos propósitos do governo, fazendo sentir ao camponês, outrora respeitador da lei e da autoridade, que pode seguir sem risco os agitadores, na desordem e no crime, sem temer a Força Policial considerada antes, por eles mesmos, garantidora da ordem pública"... Apesar da tentação dei o trecho todo sem grifos ou aspas, na sua prístina pureza. A polícia de Pernambuco é hoje uma polícia de verdade, uma polícia de vigilância e não de repressão. Não baixa o pau, quando o usineiro chama, e é isso que dá uma nostalgia de tango aos que contavam com a polícia como um dócil leão-de-chácara. Participa passivamente. Testemunha impassível. Em novembro passado, essa polícia impassível fez com que transcorresse na maior ordem a greve geral que paralisou totalmente, durante dois dias, toda a indústria canavieira de Pernambuco. E não houve atentados à propriedade, depredações ou mortes. Qualquer carnaval do Rio de Janeiro resulta em muito mais acidentes e tropelias do que foi o caso nessa reivindicação salarial de 200.000 homens que até há pouco tempo mal sabiam o que era salário, quanto mais reivindicação... Tudo é novo e tudo empírico. Pernambuco nem se parece com Cuba nem com URSS Por outro lado já não parece muito com o resto do Brasil. Sua pobreza continua enorme, mas ,sua atividade revolucionária, sua busca de soluções em todos os terrenos, dão-lhe uma vitalidade maior que a de qualquer outro Estado. As franquias democráticas são totais, a grande imprensa e a sofisticada televisão locais são conservadoras, o contrabando de uísque e cigarros americanos é risonho e franco, mas, ao mesmo tempo, lá estão os padres que não vêem nada demais no trabalho que fazem os comunistas entre os homens do campo, lá estão as Ligas Camponesas pregando guerrilhas sob a invocação do Padre Cícero de Juazeiro e lá está uma nova geração que trabalha até de graça para a Assessoria Sindical".

Esta reportagem revela com cristalina clareza que Miguel Arraes

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se inseriu no sistema histórico, como uma peça do sistema. Obedecendo mais à sua força de expansão natural do que tentando pela força dirigir pessoalmente o sistema. Esta a verdade dos fatos.

Pelópidas Silveira sempre foi, antes de tudo, um administrador progressista e não um agitador social. Sempre foi um bom gerente que não batia nem prendia os seus operários. Que os respeita como homens e os estima como irmãos e que, por isto, a massa proletária do Recife já o elegeu por duas vezes para Prefeito do Recife. Seu suposto extremismo se funda exclusivamente em sua extremada resistência em cooperar com a reação cegamente anticomunista.

Mas há Julião. Julião o anticristo, o fariseu, o espantalho máximo da região com suas temerárias Ligas Camponesas. E neste caso é ele mesmo quem se acusa apresentando-se em cena para recitar com élan o seu perigoso papel: "Fazemos questão de deixar bem claro que tendo inciado, faz alguns anos, um trabalho de agitação nos campos de Pernambuco que se alastrou tempos depois pelo resto do país e fora mesmo de nossas fronteiras, o único título que desejamos alcançar no fim desta jornada, se o merecermos, é o de simples agitador social, no sentido patriótico de colocar diante do povo, o problema fundamental para debate franco e o encontro da solução justa"(6).

Que problema agitou este agitador de profissão? O problema do feudalismo agrário do Nordeste com os seus horrores e as suas injustiças sociais. Onde formou o agitador a sua técnica de agitação? Na própria agitação social da massa nordestina. Na verdade o agitador autodidata vinha agitar a própria agitação já reinante na região. Agitação levantada pela abusiva permanência de um sistema que ofende a dignidade humana, sistema que mantém todos os poderes nas mãos de uns poucos privilegiados. Foi vendo este espetáculo que Julião apareceu e lhe deu expressão, como há vários séculos Frei Bartolomeu de Las Casas, assistindo à hecatombe dos índios, dizimados pelos colonizadores espanhóis, passou a agitar o problema da escravidão dos índios. Como Joaquim Nabuco, diante da escravidão do negro, se fez em agitador da abolição. Como Antônio Silvino e Lampião, diante do desrespeito aos direitos do homem imposto pela prepotência dos latifundiários do sertão, se fizeram agitadores do cangaço. Sempre o mesmo processo: a agitação latente

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se exprimindo pela força consciente de uma forte personalidade humana. Joaquim Nabuco riscando a história com os traços de sua pena e Lampião com os traços de suas balas. Mas para que a História não seja falsificada é preciso colocar bem esses traços dentro das linhas daquele tecido a que já fizemos referência: o tecido espiritual da consciência coletiva. Já bem antes de Julião, o Nordeste estava tomando consciência do que significa o regime latifundiário: o regime do foro e do cambão. "Na verdade, o camponês vive submetido ao regime do cambão e do foro, palavras que constituem as correntes de uma escravidão branca. Para ter direito de usar a terra, o camponês é obrigado a pagar ao proprietário uma taxa anual (foro), que vai de Cr$ ... 10.000 a Cr$ 40.000. O foro é seguido do cambão, ou sejam, 99 dias de trabalho por ano, sendo 90 ao preço diário (em vários casos que examinamos) de Cr$ 4 a Cr$ 5, e os 9 dias restantes sem pagamento algum. Durante o trabalho do cambão, o camponês não recebe qualquer comida: é o que eles chamam de cambão a seca, sem mesmo um copo com água. No caso de o camponês não poder — por doença ou qualquer motivo — dar os dias de cambão, é obrigado a pagar o dia ao preço do momento. Por um trabalho que recebe em pagamento Cr$ 5, quando trabalha, é obrigado a pagar de Cr| 80 a Cr$ 100. É comum ainda os patrões exigirem, além do foro e do cambão, que o camponês se encarregue das contas da terra, ou seja, a lavra de trechos. Se o camponês, como no caso do cambão, não pode trabalhar na conta, tem de pagar a trabalhadores para que o façam naquele sistema de preço. Encontramos ainda agravantes odiosos. Como este: além de tais condições, o foreiro, só pode vender o produto de suas roças a dono da terra. Pelo preço que convenha a este e nem sempre a dinheiro vivo: em troca de fornecimentos ou de cachaça. Este sistema vigora, nesses termos, na região em que os engenhos não são necessariamente de cana. Isto é: o proprietário destina uma parte à cana e outra aos foreiros. Na região dos engenhos de cana, o sistema é ainda mais terrível. O canavial começa onde acaba a casa do camponês e seu trabalho é no eito, na capina, plantio, corte, amarração e cambitagem da cana. Vigora o regime do barracão da usina para fornecer alimentos em troca de trabalho, num regime de preços ditados pelo dono do barracão. Nem sempre circula dinheiro e alguns

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donos de engenho chegam a dar ao trabalhador a ilusão de ganharem mais do que em outros engenhos: aumentam o salário e retiram a diferença majorando também o preço dos mantimentos e utilidades oferecidas pelo barracão. É esse o clima em que se desenvolvem as Ligas e as suas idéias". É esta a descrição que nos faz na primeira de uma série de reportagens publicadas em 1961, na revista 0 Cruzeiro, o jornalista Mauritônio Meira(7). São estas condições mantidas pela oligarquia feudal que aí tenta resistir à ação transformadora do tempo. Em meados do século passado dominavam toda a terra do Nordeste algumas poucas famílias. Houve mesmo um tempo, onde uma só família dominava praticamente um Estado inteiro. "Dominavam na terra pernambucana os três irmãos Cavalcanti: o Visconde de Camaragibe, o Visconde Suassuma e o Visconde de Albuquerque. O primeiro chefiava praticamente o partido conservador, o segundo deste fazia parte e o último era o líder inconteste do partido liberal. Qualquer mutação na política imperial nenhuma repercussão apresentava em Pernambuco. Continuava a mesma situação a imperar, isto é, o domínio dos Cavalcanti. Daí a quadra, segundo se afirma, de autoria do Professor Jerônimo Vilela de Castro Tavares, da Faculdade de Direito, então em Olinda, ao afirmar:

"Quem viver em Pernambuco Deve estar desenganado. Ou há de ser Cavalcanti Ou há de ser cavalgado". Esta oligarquia representava a dominação da aristocracia rural

controladora da vida agrícola, possuidora dos inúmeros latifúndios existentes na Província".

Um século depois, a oligarquia continua cavalgando o Nordeste. Se passou a dinastia dos Cavalcanti, lá está montada a dos Ribeiro e dos Lundgren: "A Paraíba é um Estado que fica dentro do latifúndio dos Ribeiro, é o que pela Paraíba se diz, acrescentando: o pedaço da Paraíba que não é dos Ribeiro é dos Lundgren, sim senhor. Os Ribeiro têm toda a várzea da Paraíba do Norte, com suas cidades, vilas, canaviais, gente e a consciência de representantes paraibanos no

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Congresso Nacional. Os Lundgren têm, além de um pedaço da Paraíba, o litoral de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, fábrica de pólvora, Casas Pernambucanas. Nestes incultos ducados nordestinos crescem a cana e o algodão que assalariados e foreiros plantam, mas estão também crescendo plantas daninhas aos latifúndios, como as Ligas Camponesas". É o que nos conta Antônio Callado na série de suas reportagens publicadas em 1963.

Nestas condições, tratar de um assunto tão emocional-mente carregado de tensão política é provocar inevitavelmente a agitação. Com sua mentalidade de poeta lírico, Julião começou a agitar falando numa linguagem colorida e popular, de fácil percepção pela massa. Ele costuma dizer coisas como estas: "Não pode haver felicidade de estômago vazio", "A fome é inadiável e não se transfere: ou se mata a fome ou se morre dela", "Temos de acabar com a sociedade dos sabidos", 'Não queremos saber de ideologia ou religião de ninguém: que venham todos libertar o camponês da opressão", "Não vemos inimigo no soldado, no padre, no estudante, no industrial, no comunista; o inimigo é o latifundiário", "A Liga vai tirar o soldado de polícia da porta da casa do lavrador", "Só a Liga conseguiu até hoje fazer com que um latifundiário comparecesse a Juízo na condição de réu", "A Liga é como uma mão fechada. Precisamos da mão fechada para empunhar o facão. Unam-se como uma mão fechada", "Esta luta é mais bela do que a abolição da escravatura", "Ou faremos a reforma agrária, ou a reforma agrária fará a revolução", "Faremos a reforma agrária pela lei ou na marra (isto é, na luta)" "O papa João XXIII foi o primeiro Papa a vir de origem camponesa. A encíclica que ele acaba de fazer é uma prova de que o Papa veio apoiar as Ligas Camponesas", "A Liga é como a cheia do rio: começa pequena e vai crescendo e levando tudo pela frente", "Usamos nessa pregação as palavras da Bíblia. Sim, porque a Bíblia é um livro revolucionário".

Com frases como estas, dos mais variados matizes ideológicos, procurou Julião canalizar para um mesmo rio, todas as águas correntes oriundas das fontes emocionais do caboclo do Nordeste: a sua consciência da injustiça social, a sua combatividade nas horas decisivas. O tenaz esforço de Julião tem sido o de dar uma voz ao enigmático mutismo do camponês, com ele dialogando e ensinando-o

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a dialogar. Para mostrar o grau de politização que alcança hoje o diálogo entre os camponeses e os seus senhores, basta referir à saborosa conversa ocorrida entre um coronel do latifúndio e o seu morador: — "Seu coronel o que é mesmo este tal de comunismo?" — "Comunismo é um regime que toma tudo o que é dos outros, que faz mal às filhas dos outros e que empata a religião dos outros", responde seguro de si o coronel. — "Mas se é assim, seu coronel, já estamos neste regime", responde ainda mais seguro o camponês.

A que perigos poderá ser arrastado o Nordeste por este diálogo aberto com a massa hoje despertada do seu .sono fatalista? "O perigo não está propriamente em Julião, o homem que lê Júlio Verne às escondidas, mas nas massas que ele vem açulando, dopando com as suas palavras de açoite. Elementos responsáveis da melhor elite intelectual do Nordeste defendem convencidos a tese de que Julião tem sido o freio da revolução armada da região. Para esses intelectuais, as coisas felizmente ainda estão nas mãos de Julião, que se conduz como um São Francisco de Assis, fazendo da Bíblia a sua cartilha. A catástrofe virá se o feiticeiro não conseguir dominar as águas que está levantando. Não é fora de cogitação a possibilidade de Julião vir a ser empurrado em termos de violência pela própria massa que ele hoje atiça. Poderá ser até esmagado por ela" (8). Não foi esmagado, mas foi deixado para trás. A corrente passou adiante e ele ficou aquém do ímpeto da grande onda em cuja crista hoje aparecem outras figuras carismáticas. Isto ocorreu porque faltou-lhe capacidade de direção, de formulação de uma ideologia clara, de soluções práticas ao problema. E toda aquela sua força verbal, toda a sua capacidade de agitação se volatilizou numa vaga forma de romantismo político. Outras lideranças surgiram dentro do mesmo processo. O clero nordestino, conhecedor das misérias da região, da revolta do seu povo e temeroso em face, de um lado do desprestígio político da Igreja junto às massas e, de outro lado, que essas massas debandassem para rumos perigosos, começou a organizar uma ação social de mais profundidade do que a da caridade de tipo paternalista. Guiada por alguns dos seus líderes católicos mais progressistas, resolveu a Igreja utilizar a religiosidade dessa gente como uma força de criação social". É muito grande a religiosidade daquela gente, e, com o declínio do

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prestígio da Igreja, ficou como os açudes do Departamento de Obras Contra as Secas: inúteis, porque não completados pelos canais de irrigação. A religiosidade do caboclo está trancada. Deus virou um poço inútil dentro de cada camponês. Quem soubesse, não importa com que finalidade, liberar aquelas águas vivas, ficaria dono de um rio caudaloso"(9).

Foi neste sentido de liberação dessas águas vivas que a Igreja entrou em cena no drama da liberação do Nordeste. É bom frizar que a Igreja no Brasil é exteriormente muito poderosa e interiormente bem pouco municionada de sentido religioso. O poder exterior da Igreja, deriva, antes de mais nada, do fato de ser a alma do brasileiro naturalmente tão afastada do fanatismo como do anticlericalismo. Todo o mundo admite sem dificuldade que o Evangelho do amor, da não-violência e da esperança, é uma semente de salvação para o Homem. Embora de um catolicismo mais formal do que substancial, as grandes massas humanas se alimentam do grande exemplo de Cristo. Os fenômenos de sincretismo religioso das macumbas e dos candomblés dos mocambos do Nordeste e das favelas do Rio .são a prova de que o homem do povo, mesmo desobediente ou indiferente às palavras da Igreja oficial, procura estabelecer espontaneamente esta comunhão entre a sua vida e o espírito de divindade. Como tudo no Brasil no momento, a Igreja também está dividida. Uma parte — a maior — alimentada pelo conservadorismo, se mantém indiferente ao social como um aliado potente das forças de opressão popular, outra parte é representada por uma minoria mais esclarecida, a chamada esquerda católica que tem o seu grande centro de ação e de irradiação exatamente no Nordeste. A atitude desta ala dirigida pela maioria dos Bispos da região pode ser definida com precisão através de uma frase do atual Arcebispo do Recife, D. Helder Câmara, de que "o escândalo não está na infiltração comunista, mas na falta de infiltração cristã". Esta tentativa de infiltração tem sido feita nos últimos anos no Nordeste através da tentativa de organização dos sindicatos rurais em que se lançaram vários padres, em aberta concorrência com as Ligas Camponesas. Esta política de estimular as associações de classes e a criação de sindicatos rurais, até pouco tempo combatida pela própria Igreja sob o pretexto de que facilitaria a ação comunista no meio rural

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brasileiro, vem mostrar a que ponto atingiram as preocupações do clero, disposto a preferir os candidatos com todos os seus riscos à revolta desordenada diante da opressão desumana. Nesta ação social e socializante da Igreja em luta aberta contra o latifúndio, destacam-se figuras como a de Monsenhor Negreiros, da zona do Seridó, no sertão do Nordeste, e como a do Padre Melo na zona do latifúndio açucareiro. São figuras marcadas de suspeição pelos grupos conservadores que chegam a pôr em dúvida os sentimentos cristãos desses padres. No caso de Monsenhor Negreiros, quando as acusações foram crescendo, ele reagiu a advertiu da praça pública que: "Se continuarem a me chamar de comunista, compro um lenço vermelho e ponho no pescoço". Na sua opinião os senhores feudais já não contam com o apoio passivo da Igreja: "Eles se limitam a dar esmolas à Igreja e eu sou contra a mera assistência, porque caridade cristã sem justiça social é um tóxico", acrescenta o padre de Seridó.

Outro padre famoso na região é o padre Melo, que, em certas ocasiões, fez causa comum com Julião e que, ao lado dos camponeses, travou luta política contra o Governador de Pernambuco Cid Sampaio, pelo fato deste ter ordenado a expulsão de camponeses de certas áreas do Estado. Quando alguns lavradores mais timoratos lhe disseram: — "Seu Padre, a gente tem mesmo de ir embora, senão a polícia vem aqui e vai baixando o pau", ele animou-os: — "Não se importem. Eu excomungo a polícia". Na opinião do Padre Melo, o camponês não tem nada com as brigas ideológicas. "Ele tem é que reclamar o seu direito e cumprir os seus deveres". "A revolução agrária — disse ele a Mauritônio Meira — não tem de ser feita pacificamente, como dizem os capitalistas; ou na briga, como querem os comunistas. A forma da revolução são as circunstâncias históricas que vão dizer. Se ela não puder ser feita pacificamente, então teremos de enfrentar a realidade da luta". E explica valendo-se de uma imagem: "Quando botamos um carro para correr na estrada, não podemos dizer, por antecipação, qual a marcha que vamos usar. A estrada é que escolhe a marcha, como a reforma agrária vai escolher seus meios" (10).

Quando sacerdotes, tocados pelo drama pungente dos lavradores sem terra do Nordeste, chegam a usar uma linguagem como essa, quase de pregação revolucionária, é porque realmente as coisas

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atingiram um ponto intolerável. E nenhuma outra providência, senão a reforma agrária, será capaz de aliviar as dolorosas tensões sociais geradas naquele sofrido Nordeste, na medida em que lograr o seu tríplice objetivo: maior justiça social, maior produtividade agrícola e maior participação das massas rurais no poder político. Eis porque o clero do Nordeste se afiliou a este movimento das forças de emancipação através da reforma agrária. É fácil de se entender esta posição da Igreja no Nordeste. "O clero do Nordeste é o mais avançado do Brasil — a maior nação católica do mundo — como se sabe. E o novo clero do Nordeste é o mais avançado da região. A explicação mais racional é a que os próprios padres do novo clero do Nordeste oferecem: eles são filhos da região e se acostumam, desde a infância, a tomar conhecimento dos problemas, como filhos de camponeses ou de senhores de terra, de pequenos proprietários ou de classe média. A presença dos problemas e o trato com as coisas de Cristo aguçam-lhe a sensibilidade e os levam a examinar a região à luz dos ensinamentos da Igreja. Daí se explicar a facilidade — a enorme facilidade — com que se pode encontrar padres, monsenhores e bispos nordestinos com declarações e atos que parecem revolucionários e até mesmo esquerdistas extremados, se os examinarmos com rigor demasiado conservador. Sobretudo, essa facilidade se tornou tanto maior, depois da Conferência dos Bispos do Nordeste, quando os assuntos da região foram tratados em termos objetivos. Em termos de solução cristã, e não meramente assistenciais; em termos de previsão e não de pronto-socorro. Firmam-se, para isso, não somente nos ensinamentos da Bíblia — já por si indicativos dos caminhos da realidade social em todos os tempos — mas, sobretudo, nas últimas encíclicas, como a Rerum Novarum e a recentíssima e realística Mater et Magistra. Um repórter que vá ao Nordeste poderá, sem esforço, obter opiniões avançadas de bispos como o de Petrolina, como o de Garanhuns, como o de Natal, de São Luís, de Sergipe; e de padres, como os de Caruaru, os dois de Campina Grande e muitos do Recife... É que eles estão resolvendo problemas, estão dentro de problemas reais, debatendo-se com obstáculos e levantando a voz e a ação em favor de uma legião imensa de desamparados" (11).

Neste clima de intensa agitação social, de vez em quando surgem

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pequenas explosões. Explodem os ódios represados, os sentimentos de vingança contra as humilhações e o sentimento de pavor contra as ameaças revolucionárias. Já em 1956 um grupo de camponeses do município de Goiana, em Pernambuco, repelia à bala a polícia que tentara dissolver sua Liga, fazendo algumas vítimas. Sobre este episódio simbólico escreveu o escritor e ex-deputado por Pernambuco Amaury Pedrosa uma crônica que merece ser estampada neste livro, como um documento expressivo desta luta: "Como nas crônicas sociais pode-se começar dizendo que acontecera, em Goiana. Seguramente faz mais de um ano. Telegramas publicados pela imprensa do Rio deram a notícia magra e sem comentário. Porque talvez não fosse necessário acrescentar mais nada. O nosso Conselheiro diria que os fatos falavam por si. No Engenho Marambaia, localidade de Tabatinga, soldados de polícia trocaram tiros com esses que costumamos chamar de moradores, e os comunistas um tanto afetadamente de camponeses. Eis em resumo o que houve. Nunca mais ouvi falar de João Thomaz, o conterrâneo João Thomaz que imagino velho e pitoresco, até pelo nome lembrando Pai Thomaz. Homem símbolo, definindo um tempo que acaba. Onde estás, onde estás, João Thomaz? Lavrador bem curtido, com espichados anos de vida, entregues ao chamado maneio da terra, viu-se de dia para a noite intimado a deixar o seu sítio, onde plantou com grandes esperanças as suas mangueiras, as suas jaqueiras e laranjas, sem falar no bananal, na roça, na criação miúda. E nos arranjos da casa, no terreiro limpo, na cacimba de água leve. O vigia armado de rifle (esse policial privado, que o constituinte pernambucano de 1947 quis acabar com uma declaração ressonante e, até hoje, vazia de sentido) botou--se para o lavrador com ordem de despejo. Recusa e espancamento foram obra de minutos. Mais vigias, mais soldados de polícia (esses velhos vigias da propriedade) foram aparecendo. De tudo resultou um melancólico escore de dois a zero. Pois em número de dois foram os milicianos que ficaram deitados no chão, sem o sopro da vida. Não sei se o meu bravo conterrâneo João Thomaz se pôs à frente de um grupo de lavradores, defendendo-se no melhor estilo dos quilombos de antigamente. Ou se foi tudo apenas tropelia, alteração de rotina sem maior repercussão. Mal informados somos,

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todos nós, do que se passa na Província distante; e perto apenas, tão somente, pelo constante afeto. Desejo justificar, perante os que me estão lendo, a teimosia de João Thomaz. Na cidade que por acaso ancorasse, Recife, Rio, São Paulo, ele teria uma espécie de propriedade no emprego (estabilidade), férias, aposentadoria, médico, escola, cinema, festa de Natal para os filhos nos portões dos palácios governamentais, com senhoras dos governantes à frente, trabalho de oito horas, direitos sindicais e cívicos; e até mesmo depois de morto, auxílio funeral e pensão para a família. Pois o imprudente João Thomaz deixou tudo de lado. O teimoso João Thomaz!... Cravou os dentes no pequeno sítio, com esse absurdo, esse exagerado amor que só um proprietário poderia ter pelo solo que lhe pertencesse. E mais: enfrentou pelotões, com real perigo de vida, para amparar e resguardar — o quê? Para somente defender (oh, incrédulos da bondade humana) a sua vocação de bem servir, de ser útil; para continuar a ser agricultor, no apaixonado e mal remunerado amanho da terra. Para permanecer de enxada na mão de sol a sol. Para se dar a essa tarefa essencial de produzir alimentos. Destinados a quem, estes produtos arrancados da terra? Esses milhos, esses feijões?! A nós, miserere. A nós, os citadinos. O nosso João-teimoso, João-cabeça-dura, viveu toda uma existência inglória, rejeitando ofertas de ricos Paranás, fiel a Pernambuco. Não havia sedução de riqueza, lá fora, que lhe arrancasse o apego à terra — terra malvada, para sempre querida. Se tantos fossem assim como ele, obstinados, sem arredar pé, se muitos se conservassem assim resolutamente infensos ao fascínio do Sul, falaríamos menos em fixação do homem ao solo, em êxodo rural, e outros temas igualmente especulativos. Esta foi a sua glória. E a sua desventura. O erro imperdoável de João Thomaz, contra ele próprio, consistiu apenas nisso: em recusar o eficaz remédio do pau-de-arara. Errou porque pretendeu contrariar o ímpeto crescente desse irreprimível despovoamento dos campos, decorrente de razões muito mais profundas e imperativas. Razões que um pobre João Thomaz não pode compreender, nem saberá enfrentar. E afinal saiu-se com aquele rompante desassombrado e inútil, arremetendo à feição de um Dom Quixote caipira, enfrentando com afoiteza, irresistíveis causas além das suas forças. Como um símbolo vivo, João Thomaz (que muitos há,

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por esse espalhado Brasil) sempre estará de espreita, incompreendido e ronhento, de carabina em punho e dedo no gatilho. Muitos, ao léu, nos campos, atirando em caça — como um derivativo. João Thomaz, João Thomaz — João Sem Terra"(12).

Em 1963 apareceram outros João Thomaz, mas desta vez, em lugar de matarem, foram mortos pelos capangas do latifúndio. No pátio da Usina Estreliana, de propriedade de outro ex-deputado federal por Pernambuco, ficaram estendidos os corpos de cinco camponeses que tinham resolvido enfrentar as forças da reação.

Neste vaivém das lutas de classe, de quando em vez desaba no sertão um novo episódio de seca, agravando de forma negra a situação. Foi o que ocorreu em 1958 quando uma das secas mais severas veio desafiar com seus problemas de emergência o governo do Presidente Juscelino Kubitschek. Governo que até então se tinha praticamente esquecido da existência do Nordeste, preocupado exclusivamente com suas duas paixões realizadoras: a construção de Brasília e a instalação de uma indústria revolucionária no Sul do país. O desafio da seca obrigou o governo a desviar para o Nordeste uma boa parcela dos créditos nacionais a fim de salvar da fome alguns milhões de retirantes desta malsinada região. Só o Departamento de Secas teve que dar emprego a meio milhão de pessoas. E isto custou muito dinheiro e, também, muito dinheiro escorregou discretamente para os bolsos dos industriais da seca. Armou-se um novo escândalo nacional e o Presidente enviou à região um membro de sua Casa Militar em missão confidencial para verificar o que está ocorrendo. O relatório desta missão revelou que a situação do Nordeste era economicamente alarmante, socialmente trágica, politicamente explosiva e administrativamente em completa desintegração. E que sem efetivas medidas urgentes só havia dois caminhos à vista: o do separatismo regional ou o da revolução. Foi sob o duplo impacto da calamidade natural e da calamidade política que Kubitschek criou em 1959 a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste — a SUDENE — que breve seria considerada também como um centro institucional de agitação social. De agitação econômica planejada cientificamente por economistas e técnicos.

Nesta altura dos acontecimentos estava provado que o problema do

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Nordeste era realmente um problema de economia, mas não bastava estimular esta economia ao arbitrário sabor das iniciativas privadas. Era preciso disciplinar o desenvolvimento, ou, mesmo mais: planificá-lo na perspectiva dos interesses das populações regionais e integrá-lo dentro do sistema da economia nacional. E disto ninguém se tinha ocupado até então. A verdade é que os nordestinos há muito que não encontravam condições políticas para tomar e para aplicar decisões fundamentais ao seu desenvolvimento econômico. Estavam sempre na dependência de decisões tomadas por homens de outras áreas. Os seus mercados eram controlados ou por estrangeiros, ou pelos comerciantes do triângulo político Rio Grande-Rio de Janeiro-Minas Gerais. Esta impossibilidade de determinar sua própria economia e de se defender das agressões econômicas de outros estados da federação traumatizara profundamente o Nordeste. A SUDENE fora concebida para curar os males deste traumatismo, reformulando em novos termos a política econômica do Nordeste. Foi esta tarefa confiada ao economista Celso Furtado que em relatório-programa mostrava como a política tradicional do Governo Federal para com o Nordeste era uma política de total esterilidade. A princípio influenciado pelo exagerado tecnicismo dos seus colaboradores diretos, Celso Furtado não chegou a discernir bem toda a trama de forças de contenção que impediam o progresso regional e no seu primeiro documento, chamado Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste, atribui em grande parte a pobreza do Nordeste ao que ele chama "a pobreza da base física do seu solo" e preconiza como solução real a industrialização planificada da região. Não fala da estrutura agrária. Não fala em mudar esta estrutura. É como se o problema não existisse. Só ao travar conhecimento mais direto com os problemas da terra na sua condição de Superintendente da SUDENE é que o problema se lhe revelou na sua totalidade e a nova organização passou a cuidar não só dos problemas da indústria, mas dos problemas bem mais graves da agricultura regional. Rapidamente, os técnicos da SUDENE, que tinham por função atacar no campo as contradições econômicas que extenuam o corpo social, tomaram conhecimento do limite dos seus esforços diante das barreiras de uma legislação levantada e apoiada pelos grandes interesses de uma minoria. Da mesma forma que os

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homens da Igreja desejavam encarnar a sua fé em realizações capazes de salvar esta coletividade, também os homens de ciência puseram toda a sua fé nesta ciência, para construir uma nova economia libertada de todas as formas de servilismo e escravidão. Cedo se fizeram, assim, reformistas e vieram engrossar as águas da revolução social do Nordeste. Mas as águas continuaram a correr pelos declives mais fáceis, sem conseguir derrubar as barragens principais, as espessas muralhas, levantadas pelo feudalismo agrário. E a pressão social continuou a subir.

Este era o clima humano do Nordeste no ano de sua segunda descoberta. Até que ponto o conhecimento desta realidade social por parte dos E.U.A. — mesmo com as enormes lacunas e distorções que as crônicas da época continham — viera influenciar as decisões da política norte--americana em face da América Latina é assunto que merece algumas reflexões de nossa parte. O conhecimento dessa atmosfera explosiva do Nordeste, que não era muito diferente da que respiram os outros povos subdesenvolvidos do continente, e o receio que sobre eles viessem cair, provocando a explosão continental, as fagulhas incendiadas do vulcão cubano, levou o Presidente Kennedy a conceber, como uma espécie de apara~chuva anti-revolucionário, a operação chamada "Aliança para o Progresso". Como Cuba, insistia em exportar a Revolução, os E.U.A. resolviam exportar a contra-revolução. É verdade que as coisas não foram assim tão às claras na conferência instalada em Punta del Este a 5 de outubro de 1961. Nesta ocasião o Secretário do Tesouro, Sr. Douglas Dillon, fizera mesmo referência ao fato de que há duzentos anos os Estados Unidos tinham feito a sua revolução e estavam hoje dispostos a ajudar de maneira decisiva a revolução econômica de todo o continente. E antes mesmo da reunião, em discurso pronunciado perante o Corpo Diplomático Latino-Americano, o Presidente Kennedy afirmava que seria esta aliança um esforço de cooperação, sem precedente por sua amplitude e nobreza dos seus fins à serviço das Américas. A serviço do desenvolvimento econômico e social de todo o continente. Mas um mês antes da inauguração da Conferência de Punta dei Este o Presidente Kennedy enviava ao Congresso mensagem solicitando recursos, conforme transcrevera o New York Time para "um programa

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militar especial destinado a garantir a segurança interna da América Latina, contra a subversão" (13). Acrescenta este jornal que o novo programa representa uma modificação total na estrutura dos programas militares do hemisfério ocidental desde 1952 e que seu objetivo principal não era equipar e treinar homens para a defesa conjunta do hemisfério contra um ataque exterior, mas o de promover a defesa interna contra a subversão. Apesar disto tudo, diante das bandeiras desfraldadas de todas as nações livres do continente um vento de esperanças sopra em Punta dei Este, pois os E.U.A. vão conceder um auxílio desinteressado aos demais países do continente, tornando desnecessária a revolução e evitando que toda a cordilheira dos Andes com suas ramificações viesse a se transformar um dia numa gigantesca Sierra Maestra sob a inspiração de Fidel Castro.

A que se propunham os Estados Unidos? A conceder uma ajuda de 20 bilhões de dólares num período de dez anos sob a forma de empréstimos e de investimentos privados. Deviam, em contrapartida, os países da América Latina empreender profundas reformas institucionais sobretudo no domínio fiscal e agrário. Como se desenvolveram as decorrências dessa promessa? Do lado norte-americano, já a 22 de agosto, o Secretário Dillon precisava que os 20 bilhões de dólares prometidos incluíam no seu total tanto a ajuda pública como a ajuda privada dos Estados Unidos, dos países europeus, do Japão e de todas as instituições internacionais. Que cada ano entrariam os Estados Unidos com uma quota à parte de 1.100 milhões de dólares cabendo o resto aos grupos acima referidos. A América Latina não entendeu bem como podia o governo norte-americano tomar compromissos em nome de potências estrangeiras e de organismos internacionais.

Quanto à aplicação destes créditos, o que os fatos vêm mostrando é que ela tem sido morosa e distorcida dos seus objetivos fundamentais (14). Como este é um livro sobre os problemas do Nordeste brasileiro, tomamos o exemplo de sua aplicação nesta área em relação às suas necessidades reais. Ninguém ignora que é esta a região do Brasil mais necessitada de promover o seu desenvolvimento, mas a Aliança para o Progresso concedeu ao Governo do Estado da Guanabara, que contém 4 milhões de habitantes apenas, o dobro da

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ajuda dada ao Nordeste inteiro com seus 25 milhões de habitantes. Afirma-se no Nordeste à boca pequena que esta discriminação se fundamenta no fato de que a Guanabara tem um Governador a serviço incondicional dos interesses dos Estados Unidos, enquanto os Governadores do Nordeste estão a serviço do povo desta região.

Por parte dos governos latino-americanos, até hoje nenhuma reforma substancial foi arrancada. Os arremedos de reforma agrária ensaiada não passam de simples programas de colonização, enquanto 2% dos proprietários agrários continuam a açambarcar 60% de todas as terras cultivadas. O latifúndio continua a reinar e com ele a miséria e a fome. Todas as tentativas feitas por vários países para reformar o seu sistema agrário se têm chocado contra as resistências internas das minorias prepotentes e as resistências do governo norte-americano que preconizou estas reformas na Conferência de Punta dei Este, mas as desautorizam sempre que elas ameaçam se processar. É que o governo liberal dos Estados Unidos, na sua desesperada defesa da democracia contra os perigos do comunismo, aceita todas as espécies de aliança, inclusive das oligarquias feudais que impedem a realização de toda e qualquer espécie de reforma no continente latino-americano. São do jornalista John Gerassi em seu livro The Great Fear, as seguintes expressivas palavras: "Today the oligarchies control most of the armies, police forces, banks, congresses and, in general, the state machinery. And those who denounce this control — smeared as Fascists not long ago — are branded Communists by Latin America's press as well as our own. Corruption is common in every Latin American country. Courts never condemn the rich. Union Leaders who complain of wage and living conditions are traitors, while those who make deals with management and government are the so called democrats or Free unionists".

Que resta, então, de todas as esperanças insufladas como velas abertas para o futuro no barco lançado com tanto alarido de Punta dei Este? Só a nostalgia de todos os sonhos de que pudessem ser atenuadas a miséria e a violência no continente latino-americano. De fato, nos anos que se seguiram, os Estados Unidos prosseguiram no seu ritmo normal de ajuda e de investimentos, enquanto que os capitais privados começaram a evitar a América Latina. Calcula-se em

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18 milhões de dólares o desinvestimento de capitais no ano de 1962. A Aliança para o Progresso é hoje uma das instituições mais impopulares em todo o continente latino-americano e, por motivos óbvios, no Nordeste do Brasil. Os espíritos mais esclarecidos do Nordeste compreendem a situação difícil em que se encontram os E.U.A. em escolher seus partners ou aliados na luta pela democracia. Compreendem que, se os Estados Unidos ajudam os grupos oligárquicos é porque eles se apresentam como os porta-estandartes do anticomunismo, mas que assim agindo, os Estados Unidos agravam a tensão social no continente e, em lugar de diminuir, aumentam os perigos do comunismo que eles tanto temem. Compreendem, também, os homens do Nordeste que não é fácil aos Estados Unidos entabularem uma cooperação efetiva com os grupos que combatem estas oligarquias, para instalação de uma verdadeira democracia na América Latina, porque estes democratas progressistas são considerados antiamericanos. Ora, se a situação é difícil, a opção devia ser clara. Mesmo porque estes grupos democráticos não são visceralmente antiamericanos, não são adversários do povo dos Estados Unidos. São apenas adversários intransigentes de uma política de opressão exercida pelas minorias privilegiadas dos seus países, mas que se dizem apoiadas pela maioria da nação norte-americana, representada por seu governo. É sobre isto — sobre a dramática situação de populações como esta do Nordeste brasileiro, que é um símbolo da vida dos homens do continente inteiro — que devem meditar os homens públicos, detentores do poder nos E.U.A. Nos dias de hoje, onde o isolacionismo significa suicídio e a solidariedade entre as nações se impõe como nunca, não poderão os países deste continente conviver com tamanhas distâncias econômicas e ideológicas, a dividi-los na mais completa incompreensão. Se desejam realmente os países do continente americano defender e reforçar a democracia é preciso que eles se compenetrem urgentemente do fato de que esta defesa não reside, apenas, na preservação de princípios jurídicos abstratos, manipuladores de palavras-^símbolos como liberdade e riqueza. Que se compenetrem que a sobrevivência da democracia no mundo moderno depende muito mais de nossa capacidade de estender ao povo, de forma efetiva e não apenas

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potencial, os benefícios da liberdade e da riqueza que são hoje reservados exclusivamente a uma classe dominante.

No caso do Nordeste e do Brasil inteiro, toda a possível ajuda da Aliança para o Progresso e todos os planos de cooperação internacional em favor do desenvolvimento autêntico e equilibrado conduzirão irremediavelmente ao fracasso, sem as reformas de base que são um imperativo histórico da hora presente. Sem estas reformas, a começa por aquela que maior pavor provoca na oligarquia feudal — a reforma agrária — a Aliança para o Progresso em lugar de ajudar o povo brasileiro a lutar contra o subdesenvolvimento, a fome e a doença em massa, ajudará os inimigos do povo a fortalecerem suas lideranças ilegítimas e a engordarem a custa da miséria popular. Neste caso, a Aliança para o Progresso só ajudará uma coisa: a explosão da revolta popular.

É preciso, pois. que se compreenda que a explosiva situação do Nordeste — em diferentes graus de intensidade, de toda a América Latina — não é uma armadilha maquiavélica da "hidra comunista", monstro gerado no próprio ventre da oligarquia feudal. "Hidra" criada pela fértil imaginação de uma classe — a classe dos industriais do anticomunismo que farejaram na Aliança para o Progresso uma boa pista para alcançar seus ambiciosos objetivos: para encher os bolsos, fortalecer suas bases políticas e asfixiar definitivamente o povo revoltado desta terra tão miseravelmente explorada. Mas a luta por tais reformas não é uma luta fácil. É a luta de um povo contra um sistema, na verdade decadente, mas possuindo aliados extremamente fortes e poderosos. É este sistema de forças que vêm impedindo a adoção de quaisquer reformas que toquem mesmo de leve nesta estrutura social periclitante, extremamente frágil em seus esteios político-sociais, mas extremamente forte nos seus instrumentos de escamoteação e de repressão da vontade popular. O dramático suicídio de Getúlio Vargas, a espetacular renúncia do Presidente Jânio Quadros e a pressão que hoje se levanta esmagadora contra os desígnios do governo do Presidente João Goulart de realizar algumas destas reformas, são expressões nítidas e incontestáveis da obstinação das forças mais retrógradas da sociedade brasileira, na defesa de uma estrutura econômico-social insustentável, sob a falsa alegação de que

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estão defendendo a civilização cristã e a democracia contra os perigos do comunismo. Como se fosse cristão e democrata matar o povo de fome para manter intocáveis os privilégios abusivos da oligarquia feudal.

Como a tensão reinante aumenta cada vez mais, as forças de reação se sentem também cada vez mais em perigo e se apressam em gritar em altas vozes que o que está em perigo é a própria democracia. E que, na defesa da democracia contra os perigos do comunismo, é preciso usar métodos de contenção e de repressão cada vez mais violentos e, portanto, cada vez mais antidemocráticos. É bem possível que, nesta extremada defesa da democracia a todo o custo e por todos os meios, acabem provocando a explosão social da região. A explosão pela esquerda ou a explosão pela direita. O estouro da democracia comprimida por este excesso de zelo posto a serviço dos interesses de uma classe contra os interesses do povo. É esta a lição que poderá tirar todo o continente da realidade social reinante nesta região explosiva: o Nordeste brasileiro.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - TEÓPHILO, RODOLPHO, História da Seca do Ceará, Rio de Janeiro, 1922.

2 - HIRSCHMANN, A. O., Journey Toward Progress, Nova Iorque, 1963. 3 - POMPEO SOBRINHO, T., História das Secas, Fortaleza, 1958. 4 - CASTRO, JOSUÉ DE, Le Dilemme brésilien: Pain ou Acier, Paris, 1963. 5 - CALLADO, ANTÔNIO, Revolução Piloto em Pernambuco, in "Jornal do

Brasil", 22 de dezembro de 1963. 6 - JULIÃO, FRANCISCO, Que são as Ligas Camponesas?, Rio de Janeiro,

1962. 7 - MEIRA, MAURITÔNIO, Nordeste, as Sementes da Subversão, in "O

Cruzeiro", 11 de novembro de 1961. 8 - MEIRA, MAURITÔNIO, Idem. 9 - CALLADO, ANTÔNIO, Revolução Piloto em Pernambuco, in "Jornal do

Brasil", 29 de dezembro de 1963. 10 - MEIRA, MAURITÔNIO, Nordeste, a Revolução de Cristo, in "O

Cruzeiro", 2 de dezembro de 1961. 11 - MEIRA, MAURITÔNIO, Idem. 12 - PEDROSA, AMAURY, João Thomaz, in "Jornal do Comércio", Recife,

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junho de 1957. 13 - New York, 4 de julho de 1961. 14 - LLERAS CAMARGO, A., The Alliance for Progress, in "Foreign Affairs",

outubro de 1963.

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BIOGRAFIA DO AUTOR Josué DE CASTRO Nascido em Recife em 1908, formou-se em medicina em 1929 pela

Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Doutor em Filosofia pela mesma Universidade em 1938. Escritor, Cientista e Professor Universitário, foi o pioneiro no Brasil dos estudos sobre os problemas de alimentação e nutrição, tendo realizado em 1932 o primeiro inquérito social levado a efeito no País para apurar as condições de vida do nosso povo.

Realizou uma série de originais pesquisas experimentais que, divulgadas em publicações científicas e em vários livros, lhe deram projeção mundial, a qual culminou com a sua eleição em 1951 para o alto cargo de Presidente do Conselho da Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas a F. A. O., e sua reeleição para o mesmo cargo em 1953.

Já exerceu no Brasil, entre outros os seguintes cargos: Fundador e Vice-Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais do Recife; Professor de Antropologia da Universidade do Distrito Federal; Fundador e primeiro Diretor do Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS); Diretor do Serviço de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômica durante o período da guerra. Professor de Geografia Humana da Faculdade Nacional de Filosofia; Diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil; Presidente da Comissão Nacional da Alimentação; Vice-Presidente da Comissão Nacional de Bem-Estar Social.

Foi Delegado do Brasil em várias Conferências e Congressos Internacionais, sendo eleito Vice-Presidente da l.a Conferência Latino-Americana de Nutrição e Presidente da 2.a Conferência Latino-Americana de Nutrição. Realizou, a convite oficial, cursos de conferências em universidades de vários países do mundo, tais como a Sorbona, em Paris, as universidades de Roma, Nápoles, México, Buenos Aires, Montevidéu, San Domingo, Lima, Havana, Caracas, Pequim, Moscou, Praga, Varsóvia e várias universidades norte-americanas.

É Professor Honorário de várias Universidades estrangeiras e Membro Honorário de inúmeras associações cientificas em vários países. É detentor

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dos seguintes Prêmios: Grande Medalha da Cidade de Paris; Prêmio Franklin D. Roosevelt, da Associação Americana de Ciências Políticas por seu livro Geopolítica da Fome; Prêmio Internacional da Paz, do Conselho Mundial da Paz; Prêmio Pandiá Calógeras da Associação Brasileira de Escritores e Prêmio José Veríssimo, da Academia Brasileira de Letras, por seu livro Geografia da Fome.