A política pesqueira atual no Brasil

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A política pesqueira atual no Brasil: a escolha pelo crescimento produtivo em detrimento da pesca artesanal 1 Natália Tavares de Azevedo 2 Naína Pierri 3 Com a eleição do Presidente Luis Inácio Lula da Silva -candidato do Partido dos Trabalhadores- no Brasil, em 2003, criou-se expectativas de desenvolvimento de políticas que favorecessem substancialmente às classes populares, o que, no âmbito do setor pesqueiro, representaria o favorecimento à pesca artesanal. Nos oito anos posteriores, incluindo o segundo mandato do Presidente Lula, muitos programas e ações foram concebidos e instrumentados pelo governo, mas, uma análise rigorosa dos mesmos permite afirmar que a pesca artesanal, ainda que tenha sido atendida como nunca antes, não foi o sub-setor pesqueiro mais beneficiado, e que ações dirigidas aos outros sub-setores, somadas a certas omissões, tem prejudicado aos pescadores artesanais. Nos últimos anos, ao que tudo indica, o governo da Presidenta Dilma Rousseff, que responde ao mesmo partido que o Presidente Lula, mostra continuidade e aprofundamento dessa política, incrementando a fragilidade da pesca artesanal. Os vaivéns das políticas pesqueiras prévias (1964-2003) Antes do governo “Lula”, a política pesqueira no Brasil teve três momentos institucionais com perfis de atuação distintos, que são importantes de ser lembrados para compreender melhor a política atual. Assim, o primeiro período, entre 1964 e 1989, esteve caracterizado por um desenvolvimentismo modernizante e ambientalmente irresponsável. No segundo período, entre 1989 e 1998, o governo reage ao anterior e define uma política fundamentalmente conservacionista. E o terceiro período, entre 1998 e 2003, esteve caracterizado por uma disputa institucional onde a tentativa de retomar o desenvolvimento setorial resultou travada pelas disposições ambientais. 1 Este artigo foi publicado pelo Coletivo Internacional de Apoio aos Pescadores Artesanais (CIAPA, em inglês ICSF- International Collective in Support of Fishworkers) na revista Samudra Report, N o 64, p. 34-41, de março de 2013, nas suas versões em inglês, em francês e em espanhol, disponíveis no site www.icsf.net. Autoriza-se a sua reprodução e divulgação com a devida menção do anterior. 2 Pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). [email protected] 3 Professora da UFPR e membro do Coletivo Internacional de Apoio aos Pescadores Artesanais (CIAPA). [email protected]

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O estado brasileiro vive um momento histórico no qual o crescimento econômico se sobrepõe ao direito de trabalhadores e trabalhadoras e à conservação de territórios tradicionais. Esse modelo desenvolvimentista torna-se nocivo no momento em que beneficia apenas um pequeno grupo da sociedade brasileira, representada pelos grandes empreendimentos, e nega a importância econômica de produtores familiares. Dentro da política pesqueira nacional, encontramos esse cenário na valorização da Aquicultura empresarial e da Indústria da Pesca pelo governo federal em detrimento ao trabalho de incentivo junto a pescadores e pescadoras artesanais. Embasadas nesse contexto, a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Natália Tavares, e a professora da mesma instituição e membro do Coletivo Internacional de Apoio aos Pescadores Artesanais (CIAPA), Naína Pierri, desenvolveram um artigo, publicado pelo CIAPA na revista Samudra Report, em março desse ano, explicitando a trajetória do governo no que tange seus investimentos e demais políticas no setor pesqueiro nacional. As consequências ambientais, sociais e econômicas de um poder público que nega as necessidades e potencialidades de seu povo são colocadas à tona e nos mostram a urgência de se lutar por um modelo que seja realmente democrático.

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A política pesqueira atual no Brasil:

a escolha pelo crescimento produtivo em detrimento da pesca artesanal1

Natália Tavares de Azevedo2

Naína Pierri3

Com a eleição do Presidente Luis Inácio Lula da Silva -candidato do Partido dos Trabalhadores- no

Brasil, em 2003, criou-se expectativas de desenvolvimento de políticas que favorecessem

substancialmente às classes populares, o que, no âmbito do setor pesqueiro, representaria o

favorecimento à pesca artesanal. Nos oito anos posteriores, incluindo o segundo mandato do

Presidente Lula, muitos programas e ações foram concebidos e instrumentados pelo governo, mas,

uma análise rigorosa dos mesmos permite afirmar que a pesca artesanal, ainda que tenha sido

atendida como nunca antes, não foi o sub-setor pesqueiro mais beneficiado, e que ações dirigidas

aos outros sub-setores, somadas a certas omissões, tem prejudicado aos pescadores artesanais. Nos

últimos anos, ao que tudo indica, o governo da Presidenta Dilma Rousseff, que responde ao mesmo

partido que o Presidente Lula, mostra continuidade e aprofundamento dessa política, incrementando

a fragilidade da pesca artesanal.

Os vaivéns das políticas pesqueiras prévias (1964-2003)

Antes do governo “Lula”, a política pesqueira no Brasil teve três momentos institucionais com

perfis de atuação distintos, que são importantes de ser lembrados para compreender melhor a

política atual. Assim, o primeiro período, entre 1964 e 1989, esteve caracterizado por um

desenvolvimentismo modernizante e ambientalmente irresponsável. No segundo período, entre

1989 e 1998, o governo reage ao anterior e define uma política fundamentalmente conservacionista.

E o terceiro período, entre 1998 e 2003, esteve caracterizado por uma disputa institucional onde a

tentativa de retomar o desenvolvimento setorial resultou travada pelas disposições ambientais.

1 Este artigo foi publicado pelo Coletivo Internacional de Apoio aos Pescadores Artesanais (CIAPA, em inglês ICSF- International Collective in Support of Fishworkers) na revista Samudra Report, No 64, p. 34-41, de março de 2013, nas suas versões em inglês, em francês e em espanhol, disponíveis no site www.icsf.net. Autoriza-se a sua reprodução e divulgação com a devida menção do anterior. 2 Pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR). [email protected]

3 Professora da UFPR e membro do Coletivo Internacional de Apoio aos Pescadores Artesanais (CIAPA). [email protected]

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Entre 1964 e 1989, período que inclui o governo militar (1964-1985), o órgão responsável pelas

políticas para o setor foi a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), que

implementou uma política desenvolvimentista, focada especialmente na pesca industrial, fazendo

uso de incentivos fiscais e tributários amparados, entre outros, na Lei da Pesca de 1967. Nesse

período efetivaram-se também algumas medidas modernizantes para a pesca artesanal–

particularmente o financiamento de motores-, ainda que estas tenham ocupado um espaço muito

pequeno no total das ações empreendidas. No conjunto, essa política gerou, do ponto de vista

econômico, o maior crescimento histórico contínuo da pesca extrativa, mas, do ponto de vista

ambiental, gerou a sobrepesca dos principais recursos, com destaque para o colapso da pesca da

sardinha verdadeira (Sardinella Brasiliensis). A crise dos recursos pesqueiros, somada às várias

denúncias de malversação de fundos públicos e de corrupção, levaram à extinção da SUDEPE.

Em 1989, já após a reabertura democrática e a promulgação da nova Constituição, as funções da

SUDEPE foram atribuídas a uma instituição ambiental, o então recém-criado Instituto Brasileiro do

Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que depois veio a ser o principal

braço executor do Ministério de Meio Ambiente, criado em 1992. Nesse período, que vai até 1998,

essa alocação da política pesqueira no órgão ambiental federal, somada à adoção geral de medidas

neoliberais que inibiram certos investimentos públicos, conduziu o foco para políticas

conservacionistas. Assim, se cortou qualquer incentivo para o desenvolvimento da atividade,

considerando toda a pesca depredadora, e se criaram diversos instrumentos de gestão pesqueira,

visando limitar o esforço de pesca e proteger certas espécies.

O terceiro período se inicia em 1998 com a criação do Departamento de Pesca e Aquicultura (DPA)

no interior do Ministério da Agricultura, que foi uma tentativa de retirar a tutela ambiental do setor

e retomar a política desenvolvimentista. Abriu-se então um período de fortes conflitos institucionais

entre o Ministério de Agricultura e o IBAMA, motivados pela divisão de competências na gestão e

ordenamento dos recursos pesqueiros e pela retomada, ainda que incipiente, dos investimentos no

setor pesqueiro, que, agora, além de se dirigir principalmente à pesca industrial, também

privilegiaram a aquicultura empresarial, que dava seus primeiros passos.

A pesca artesanal, pois, ao longo desses três períodos, não foi alvo de praticamente nenhuma ação

por parte dos governos, que se centraram ora no desenvolvimento industrial do setor, ora na

conservação e preservação dos recursos. Desta forma, a condição social dos pescadores artesanais,

sua contribuição econômica e à produção de alimento, e a diversidade de suas formas culturais de

vida estiveram fundamentalmente à margem das preocupações governamentais. Mais do que isso, o

resultado das políticas desenvolvimentistas e conservacionistas, somados ao vazio de políticas

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substantivas para a pesca artesanal, determinaram que a maioria dos pescadores artesanais e suas

comunidades ficassem em condições muito precárias de vida. Assim, eles se constituíram nas

principais vítimas da crise dos recursos pesqueiros, sem ter sido os principais responsáveis de

causá-la, ficando condenados ao empobrecimento e a enfrentar a concorrência desigual com a pesca

industrial e a aquicultura empresarial e os conflitos derivados.

A reorganização institucional para reconduzir a política pesqueira

Quando o Presidente Lula começou o seu primeiro governo, em 2003, esperava-se, então, que

atuasse favorecendo prioritariamente à pesca artesanal, que é responsável por mais da metade da

produção pesqueira do país, ocupa diretamente 700 mil pessoas, e ao redor de 2 milhões de pessoas

dependem dela.

As principais ações do governo Lula para instrumentar a nova política pesqueira foram: a criação de

um órgão setorial específico e hierarquizado e, anos depois, de uma nova lei de pesca; a criação de

novas formas e espaços de interlocução entre a sociedade civil e o governo; e a incorporação, nesse

órgão setorial de fomento, da primazia nas funções de ordenamento e gestão ambiental que antes

estava era exercida pelos órgãos ambientais.

Assim, o Presidente Lula, já no início do seu governo, em 2003, criou a Secretaria Especial de

Aquicultura e Pesca (SEAP) com status ministerial. Em 2009, a SEAP foi transformada em

Ministério de Pesca e Aqüicultura-MPA, o que supôs um aumento de recursos humanos e

financeiros, ampliando e fortalecendo a capacidade institucional.

No que diz respeito aos espaços de interlocução com a sociedade civil envolvida no setor, o

governo criou duas instâncias principais: o Conselho Nacional de Pesca (CONAPE), que é um

órgão colegiado de caráter consultivo, criado em 2003, como parte da estrutura da SEAP, e as

chamadas Conferências Nacionais, precedidas por conferências estaduais, que são um mecanismo

para aferir as demandas de diferentes setores da sociedade civil, neste, como em outros setores. O

CONAPE está formado por 54 membros, com 27 representantes da sociedade civil nomeados a

cada dois anos pelas suas assembleias (15 representantes dos movimentos sociais e trabalhadores,

10 representantes da área empresarial, e 02 da área acadêmica e de pesquisa), e com os outros 27

representantes de órgãos governamentais envolvidos no tema. No período analisado, o CONAPE se

reuniu de 2 a 3 vezes por ano, e houve 3 Conferências Nacionais de Pesca e Aquicultura (2003,

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2006 e 2009), e uma Conferência das Trabalhadoras da Pesca e da Aquicultura (2004), reunindo

estas de 600 a 1500 pessoas.

Embora a criação desses espaços de participação represente um importante avanço democrático

porque neles se podem expressar as demandas populares, por si só não garantem a incorporação

dessas demandas às políticas públicas. Mais ainda, a participação nesses espaços, sobretudo quando

é numerosa, pode ser usada pelo governo como demonstração de força a favor de alguma intenção

própria ou com fins eleitorais visando cativar votos, e em todos os casos pode se constituir em

legitimação de políticas que não beneficiem às classes populares ou até as prejudiquem. De fato, as

quatro conferências organizadas contiveram todos esses aspectos, em diferentes graus.

Também em 2009, concomitante com a criação do Ministério, aprovou-se o novo marco legal para

a pesca no país, por meio da Lei No 11.959 que instituiu a Política Nacional para o

Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca. Uma das principais mudanças derivadas

desse reordenamento jurídico foi a primazia outorgada ao MPA nas funções de administração

pesqueira e ordenamento aquícola. Até esse momento essas competências estavam repartidas entre

a SEAP, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o IBAMA, mas quem tinha maior peso eram os

órgãos ambientais. Mas, a SEAP percebia a ação dos órgãos ambientais como um forte entrave para

o impulso que queria dar à pesca industrial e especialmente à aquicultura. Então, depois de anos de

tensão e conflitos, a nova lei de pesca impôs o MPA como o órgão coordenador do processo de

gestão e ordenamento da pesca, e os órgãos ambientais foram mantidos apenas como colaboradores

no então criado Sistema de Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros, que também prevê a

participação de cientistas e usuários dos recursos.

Esta reorganização institucional constituiu, pois, um movimento político pelo qual o governo

federal, respaldado e legitimado pela participação dos pescadores artesanais e demais setores da

pesca e da aquicultura, conseguiu uma acumulação de forças que lhe permitiu liberar o caminho

para avançar no fomento da produção pesqueira, mediante a criação de um ministério, a aprovação

de uma nova legislação e, principalmente, o enfraquecimento dos entraves ambientais.

O foco no crescimento econômico privilegia a aquicultura e a pesca industrial oceânica

Os objetivos da política pesqueira foram reconduzidos pelo governo de forma que o crescimento da

produção foi consolidado como principal meta, tal como anuncia o primeiro Projeto Político da

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SEAP, apresentado após a 1ª Conferência Nacional de 2003, e se consagra em 2008, no primeiro

plano sistemático para o setor pesqueiro intitulado Mais Pesca e Aquicultura. Adicionalmente,

figuram entre os objetivos a modernização do setor, tanto da captura quanto do beneficiamento e da

comercialização, e, secundariamente, a ampliação dos direitos sociais e da renda do pescador

artesanal.

Reconhecendo que a maior parte dos estoques pesqueiros das áreas costeiras está sobre-explotada, e

sem pôr os devidos esforços em revertê-lo, o governo definiu incentivar a produção da pesca

industrial oceânica sob o suposto de que nas águas profundas ainda haveria margem para

incrementar a produção. Desta forma, dentro da pesca extrativa, o governo estabeleceu como

principais atores para protagonizar o pretendido crescimento aos empreendedores da pesca

industrial, e não aos pescadores artesanais. Para gerar esse crescimento, o governo desenvolveu

vários programas de ação. Um deles é o Programa Profrota, que consistia em uma política de

crédito para fabricar barcos visando constituir uma frota nacional para atuar na Zona Econômica

Exclusiva (ZEE) brasileira, com expectativas de incrementar a pesca de espécies como os grandes

atuns e similares. Essa frota nacional iria substituir as embarcações estrangeiras que estavam sendo

arrendadas e traria para o país recursos que também estavam sendo apropriados por frotas

estrangeiras. Vale ressaltar que, além disso, o Profrota providenciou fundos para a substituição de

embarcações de pesca industrial que operam sobre os estoques costeiros de camarão, pargo

(Lutjanus Purpureus Poey) e piramituba (Branchplatystoma Vaillant), condicionado a que as

embarcações mais antigas fossem inabilitadas. O programa, contudo, não obteve o sucesso

desejado: apenas 8 embarcações das 130 planejadas foram financiadas.

Além disso, a pesca industrial foi beneficiada com o incremento paulatino do Programa de

Subvenção ao Óleo Diesel, o combustível usado pelas embarcações, que, mais adiante, o governo

pretendeu estender aos pescadores artesanais, mas que foi limitado por dificuldades operacionais.

Pode-se dizer, assim, que este programa atende fundamentalmente à pesca industrial, contribuindo a

tornar economicamente viáveis pescarias que não o são do ponto de vista ambiental, e, por outro

lado, contribuindo a aumentar os conflitos entre a pesca industrial e a pesca artesanal.

A expansão do crédito para o setor pesqueiro também tem sido uma ação prioritária do governo, e

se consolidou com o lançamento do 1º Plano Safra das Águas, em 2010. Criaram-se novas linhas de

crédito e ampliaram-se os limites para a pesca industrial e para a aquicultura. Por outro lado,

ampliou-se a inclusão de pescadores artesanais no Programa Nacional da Agricultura Familiar

(PRONAF), que é um sistema de crédito específico para esses produtores, mas que tem muitos

limites e problemas na execução.

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Os dados sobre o crédito disponibilizados pelo MPA apontam um montante de R$ 1.484.230.710,00

(em torno de US$ 811.055.033, a valores de 2010, onde US$ 1,00 custava R$1,83) aplicados entre

os anos de 2003 e 2010, num total de 212.662 contratos. Mas esses dados não diferenciam os

beneficiários de forma que não se sabe quanto foi destinado a cada sub-setor pesqueiro nem o que

foi destinado à aquisição de petrechos de pesca, embarcações e/ou motores.

Já em relação à aquicultura, o governo lhe foi atribuindo cada vez mais importância, de forma que

quando o MPA venceu os entraves dos órgãos ambientais e trouxe para si a atribuição do

ordenamento aquícola, passou a realizar a demarcação de Parques Aquícolas, bem como o

desenvolvimento de Planos Locais de Desenvolvimento da Maricultura. A partir de então, a

aquicultura passou a ser o sub-setor principal para o fim do crescimento produtivo, e, portanto, o

mais privilegiado pela política governamental. Assim, o MPA vem fazendo cessões onerosas e não-

onerosas de áreas aquícolas, isto é, vendendo ou doando espaços aquáticos públicos para cultivos de

particulares. Por outro lado, se propõe a integração vertical da cadeia produtiva, por meio do

desenvolvimento e adoção de pacotes tecnológicos.

Apesar da porção de espaços aquícolas cedida de forma não onerosa, cujo público alvo seria

composto pelos pequenos produtores ou pescadores artesanais, esta política implica o início de um

processo de privatização das águas continentais e marinhas que, sem dúvida, conflita,

principalmente, com a pesca artesanal, pois dispõe dos espaços onde ela normalmente acontece.

Quando questionado, o governo não admite esse conflito, e o esconde sob o discurso de que os

pescadores artesanais, graças a sua ajuda, virarão aquicultores, e assim resolverão os limites

impostos pela crise de recursos e melhorarão definitivamente sua renda e suas condições de vida. A

aquicultura é, pois, o projeto principal de desenvolvimento pesqueiro deste governo, e o futuro

programado para o pescador artesanal é que deixe de pescar, isto é, que deixe de ser pescador.

É importante destacar que, apesar do anterior, desde o início da atuação da SEAP existe, no

discurso governamental, a proposição de atender prioritariamente a pesca artesanal. Os dados da

distribuição orçamentária da SEAP entre os anos 2003 e 2009, a primeira vista parecem confirmar

essa intenção.

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QUADRO 1. DISTRIBUIÇÃO DO ORÇAMENTO DA SEAP (2003-2009)

SETOR INVESTIMENTO

(R$)

%

Pesca artesanal R$ 257.570.000,00 36

Pesca industrial (inclui

Profrota e subvenção ao óleo

diesel)

R$ 191.600.000,00 26

Aquicultura R$ 102.450.000,00 14

Outros: Publicidade e

Administrativo

R$ 1.71166000,00 24

TOTAL GERAL R$ 722.786.000,00 100

Fonte: elaboração própria com base em MINISTÉRIO DE TRABALHO E EMPREGO (MTE), Políticas públicas de emprego no Brasil: avaliação externa do Programa Seguro-desemprego. Brasília, 2010 e MINISTÉRIO DA PESCA E AQUICULTURA (MPA), Relatório de Ações Executadas no período de 2003 a 2010. Brasília, 2010.

Observando o Quadro 1, os números absolutos mostram que a pesca artesanal recebeu a maior

quantidade dos gastos/investimentos (36%), seguida pelo setor industrial, que recebeu 26% do total,

e que a aquicultura recebeu apenas 14%, sendo o 24% restante dos gastos destinados a

administração e publicidade. Porém, se se considera a quantidade de pessoas de cada setor, que são

as reais beneficiárias desses gastos, o sentido da distribuição se inverte, mostrando que os 700.000

pescadores artesanais do país receberam relativamente muito menos que os empresários industriais,

que são uns poucos milhares, considerando que há aproximadamente 5000 embarcações neste sub-

setor. Por sua vez, relembrando que, nesse período, a SEAP ainda não tinha vencido os entraves

ambientais para poder promover massivamente a aquicultura, o montante destinado a esta também

tem um peso relativo maior. Mas, aos efeitos de nossa questão, o relevante é que esses números

ratificam que, apesar do discurso, os pescadores artesanais não são os beneficiários principais do

apoio do governo ao setor pesqueiro.

As ações dirigidas à pesca artesanal visam mais o alívio imediato da pobreza e não sua

supervivência e fortalecimento de longo prazo

Mas, qual é a política do governo atual para a pesca artesanal em si? Começando com as ações

voltadas para a atividade pesqueira, a principal medida do governo orientada à fase de produção da

pesca artesanal foi a ampliação já referida do acesso dos pescadores artesanais ao crédito oriundo

do PRONAF. Mas, os montantes dos empréstimos e certos condicionamentos e medidas

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complementares orientavam esses recursos para serem usados para repor equipamentos de pesca e

não para somar novos, na intenção do governo de não ampliar a capacidade de captura deste sub-

setor. Outras ações referidas à fase produtiva foram dirigidas a diminuir custos de insumos, tais

como a distribuição de fábricas de gelo, e o acesso à subvenção ao óleo diesel, sendo ambos pouco

eficazes por dificuldades de implementação.

Outras medidas foram orientadas a otimizar as fases pós-captura da cadeia produtiva da pesca, isto é

o processamento e a comercialização, tais como a distribuição de kits para beneficiamento inicial

(limpeza e filetamento) e comercialização direta do pescado, e de caminhões frigoríficos para

facilitar o transporte para centros comerciais, visando diminuir os custos e a dependência da

intermediação. Por último, na fase do consumo, o governo incluiu o pescado na alimentação das

crianças nas escolas, como meio de ampliar e garantir um mercado consumidor regular, assim como

certos preços.

Complementarmente, em 2008, foi lançado o Plano Nacional de Assistência Técnica e Extensão

Pesqueira, que, junto com o estímulo ao associativismo e ao cooperativismo, seriam outros meios

de favorecer o aumento de eficácia na cadeia produtiva e a diminuição de custos.

Por outro lado, o governo teve outras iniciativas em matéria educativa, tais como um programa de

alfabetização (Pescando Letras) e cursos técnicos em pesca e em aquicultura, com conteúdos e

formas pedagógicas desenhadas especificamente para pescadores.

Mas, o mais destacado das ações voltadas à melhoria de renda, é a política do chamado “Seguro

Defeso para a Pesca Artesanal” que consiste no pagamento de um salário mínimo mensal (US$

340,00, aproximadamente, em valores de março de 2013) aos pescadores artesanais envolvidos na

pesca de determinadas espécies, durante os períodos em que esta é proibida (de 2 a 4 meses por

ano) com o fim de favorecer a reprodução e manutenção dos estoques. Surgida em 1991 como uma

ferramenta de gestão pesqueira, esta política foi exponencialmente ampliada durante o governo do

Presidente Lula. A SEAP facilitou o acesso e não fez os devidos controles, estimulando que

recebam esse benefício muitos pescadores que não pescam as espécies em questão, e inclusive

muitas pessoas que não são pescadores profissionais, frequentemente próximas destes, e que

ilicitamente se registram como tais. Desta forma, essa ferramenta de gestão ambiental, se voltou,

pela via dos fatos, uma política social distributiva muito forte, concebida e facilitada pelo Ministério

de Pesca, mas financiada pelo Ministério de Trabalho e Emprego, por esse benefício ter sido

formulado como um seguro de desemprego. A figura 01 é eloquente em mostrar o crescimento das

pessoas registradas como pescadores profissionais e o crescimento, ainda maior, da quantidade de

dinheiro pago como seguro-defeso no período 2003-2009. Este crescimento relativo maior do

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monto pago se deve ao incremento do salário mínimo nacional registrado nesse período (US$ 77,00

em 2003; US$ 291,00, em 2010).

Os dados indicam, então, que o objetivo principal da política do governo dirigida para a pesca

artesanal busca a redução da pobreza mediante o incremento da renda dos pescadores artesanais e

de suas comunidades, em primeira instância, por meio da melhoria da cadeia produtiva e a

diminuição da dependência de intermediários. Mas, sendo ambas positivas e necessárias, são

limitadas pelo fato de nenhuma dessas medidas terem caráter universal e/ou sistemático. Pelo

contrário, se trata de ações fragmentadas, dispersas e pontuais, que são incapazes de transformar

significativamente a realidade das comunidades pesqueiras. Considerando isso, e o volume de

dinheiro público distribuído como pagamento do seguro-defeso a grande parte da categoria, esta

medida distributiva se constitui na mais significativa realizada pelo governo com respeito à pesca

artesanal no período considerado. Mas, também é limitada, pois se trata de um mecanismo não

universal e, pior ainda, com vícios de procedimento que questionam sua legalidade e, portanto, sua

continuidade.

No conjunto, o que predomina como política específica para a pesca artesanal, então, é uma política

de corte distributivo, que, apesar de, no imediato, servir para a diminuição da pobreza e a melhora

de qualidade de vida das comunidades pesqueiras, resulta totalmente insuficiente para atender a

situação de fragilidade estrutural da pesca artesanal a médio e longo prazo, como seria necessário.

FIGURA 01 - EVOLUÇÃO DOS MONTANTES APLICADOS (R$) E TOTAL DE BENEFICIÁRIOS

DO SEGURO-DEFESO 1994 – 2009. Fonte: Elaboração própria com base em MTE, 2010, op cit .(op.cit.).

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A política neodesenvolvimentista para o setor pesqueiro representa o aumento da vulnerabilidade

da pesca artesanal

Essas características da política pesqueira atual são condizentes com o modelo de desenvolvimento

construído pelo governo federal nos últimos anos, que tem sido denominado de

neodesenvolvimentista. Este se caracteriza por combinar uma forte atuação governamental para

impulsionar o crescimento econômico, principalmente através de grandes obras públicas de

infraestrutura e de crédito público outorgado aos agentes econômicos considerados capazes de

protagonizá-lo, somada a uma política de distribuição de renda, em grande parte viabilizada

mediante benefícios sociais não universais nem permanentes, mais que, no imediato, estimulam o

consumo, fortalecem o mercado interno, e criam conformismo nos setores populares. No caso do

setor pesqueiro, esse modelo se expressa na prioridade dada à pesca industrial e, crescentemente, à

aquicultura, e no caráter predominantemente social e distributivo da política voltada à pesca

artesanal.

Grandes projetos de infraestrutura, como hidrelétricas, portos e estradas, grandes empreendimentos

públicos e privados, como a exploração de petróleo, fazendas de carcinicultura, hotéis resorts, e

complexos industriais, pressionam cada vez mais aos pescadores artesanais, que não contam com

nenhuma proteção especial que lhes garanta a permanência nos seus territórios e seus modos de

vida. A política para o setor pesqueiro não somente não escolhe aos pescadores artesanais como

destinatários privilegiados do apoio do governo, senão que, pior ainda, a prioridade dada à pesca

industrial e à aquicultura implica, por um lado, o incremento da escassez de recursos pesqueiros, e,

por outro, a privatização das águas, que já começou, processos que, se não forem detidos, acabarão

inviabilizando a pesca artesanal.

No conjunto, a atuação governamental dos últimos anos, por trás de um discurso de suposta

sensibilidade social e responsabilidade ambiental, e a pesar da diminuição imediata da pobreza, tem

contribuído para aumentar a vulnerabilidade e a situação de injustiça ambiental sofrida pelas

comunidades pesqueiras artesanais.

Frente a esta situação, parte significativa dos pescadores artesanais organizados tem adotado uma

posição crítica ao governo. Em 2010, isto cristalizou na criação de um novo movimento nacional e

autônomo da categoria, denominado Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil

(MPP). Em 2012, o MPP lançou a Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios das

Comunidades Tradicionais Pesqueiras, que tem como objetivo principal a aprovação de uma Lei de

Iniciativa Popular que reconheça e disponha a demarcação das áreas de terra e água das quais

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dependem as comunidades pesqueiras. O reconhecimento do direito coletivo a esses territórios e aos

recursos neles presentes é considerado a condição fundamental para garantir a sustentabilidade da

pesca artesanal e garantir a reprodução dos modos de vida e práticas tradicionais de suas

comunidades. A luta por conquistá-lo constitui uma exemplar resistência dos pescadores artesanais

brasileiros frente ao modelo de desenvolvimento excludente impulsionado pelo governo nos últimos

anos.

Mais informação:

AZEVEDO, N. T. Política Nacional para o Setor Pesqueiro no Brasil (2003-

2011), Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e

Desenvolvimento. UFPR. Curitiba. 2012.

Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/29268

Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades

Tradicionais Pesqueiras

http://peloterritoriopesqueiro.blogspot.com.br/

http://www.icsf.net/en/samudra/article/EN/62-3743-Staking-Claims.html