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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas PASCAL PAULUS 2017 A praxis em tempos de transformação social; 6 problemas

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas

PASCAL PAULUS

2017

A praxis em tempos de

transformação social;

6 problemas

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Fichas técnica

© Pascal Paulus

1ª versão julho 2017

2ª versão dezembro 2017

Referenciar como

Paulus, P. (2017) A praxis em tempos de transformação social: 6 problemas.

http://pascalpaulus.weebly.com

Aprendizagem e educação Página de 2 106 Pascal Paulus

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Indice

Aprender é dialogar. Uma nota pessoal sob forma de prólogo. 5

Abrindo 7

As transformações sociais e a educação 11As transformações ao longo da evolução de Sapiens 11

Transformação social. Processo discreto ou contínuo? 13

As pessoas e a educação sistémica 16

Problema 1 — o projeto humanista entre crença e dogma 21

O Estado-nação e a escolarização da educação 22O difícil princípio da falsificabilidade nas ciências sociais 22

Pedagogia local ou antropogogia universal? 29

Medidores da normalidade 35

Problema 2 — a medição da normalidade local 38

O conhecimento, a escola e as disciplinas 39Conhecimento disponível, conhecimento autorizado, saber partilhado 40

Da pansofia ao infinito tudo sobre infinito nada 46

Espaço de instrução disciplinar ou de deslumbramento cíclico 52

problema 3 — Entre a normalização do conhecimento existente e aber-tura para a elaboração de projetos culturais, a educação escolarizada tende para que paradigma educativo? 55

O desejo, a aprendizagem e o ensino 56A escola como instituição de poder do Estado-Nação 57

Crenças na educação e ciências da educação 60

O espaço cultural interativo de cooperação 67

Problema 4 — Interagem os indivíduos para projetar o currículo? 73

A praxis vivida pelas pessoas da escola 74Pode uma gramática da escolarização tender para o pluralismo? 75

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Paradigmas… entre o conceber, o querer e o fazer 78

Diferenciação e diversificação. A reflexão necessária 83

Problema 5 — Da visão inclusiva para a visão pluralista 87

A interação entre pessoas e a relação dialéctica sociedade - esco-la 88O dogma humanista e o sonho cosmopolita 88

Pense o que quer pensar, desde que pense como nós pensamos! 94

Formas escolares de relações sociais de aprendizagem 97

Problema 6 — Como desenvolver uma visão pluralista no seio da forma escolar de relações sociais de aprendizagem? 100

Fechando: Pistas de trabalho 101

Referências bibliográficas 104

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Aprender é dialogar. Uma nota pessoal sob forma de prólogo.

Dedico este curto ensaio ao meu pai.

Encontrei entre os seus papeis a carta, datada em 12 de março de

2015 que abaixo reproduzo. Deve tê-la escrita depois de nos despedir

pela última vez, na estação de comboios de Oostende, fazia 15 dias.

Boa tarde Pascal,

Se alguma vez escrevêssemos um novo livro juntos, poderia ter

como título: aprender é dialogar. Tu forneces boa matéria prima

para tal!

Digo nós, mas não sei se ainda serei capaz, a idade tem o seu

preço.

Como o vejo, em grandes linhas?

Como todos os grupos e todas as instituições, a escola tem a sua

própria forma de relações sociais.

A natureza desta relação social depende sobretudo da atitude da

escola perante o poder e o conhecimento. De momento ainda está

largamente presa no sistema hegemónico de preceitos (La Salle),

modernismo técnico, truques didáticos e visões inicialmente ino-

vadoras e inabaláveis que não evoluem (o seu valor inicial é tão

importante que os utilizadores entusiasmados não querem (ou

conseguem) largá-los: Freinet, Pedagogia Institucional, …)

A absoluta necessidade de evolução é entre outros a aceleração da

(só ocidental?) civilização.

Isto significa: a absoluta necessidade de ouvir a voz dos jovens (e

dos aprendentes adultos).

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Ainda menos do que anteriormente, o educador se pode apresen-

tar como o sabe-tudo e servil executor de quem detém o poder.

Paulo Freire já o sabia. A educação em prol de cidadãos demo-

cráticos é um aspecto muito importante - e a subestrutura

necessária da democracia política. Só se consegue aprendê-lo

através da praxis dentro da escola, instituição necessária para este

processo de aprendizagem.

Os professores deixam de ser administradores de disciplinas, mas

acompanhadores. O processo de aprendizagem acontece portanto

em diálogo, entre aprendentes no meio de quem está o educador.

Aprender passa a ser explorar como os aprendentes se encontram,

o que lhes interesse exatamente, como conseguem dividir trabal-

ho entre eles, como organizar o tempo, quem ou o quê conseguem

consultar, como avaliar em conjunto. Este processo é acompan-

hado pelo educador tutor, igualmente autor e ator neste processo.

O diálogo constante é a base necessária da relação social.

É só uma ideia, tanto quanto compreendi algo da essência.

Bob-abraço

As reflexões que seguem poderiam ter integrado esta nova obra a

quatro mãos. Já não foi possível. O escrito ficou, por isso, certamente

mais pobre. As conversas passaram a ser imaginárias. Apoiaram-me

as leituras.

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Abrindo

Este conjunto de ideias centram-se sobre a relação entre a so-

ciedade e uma das instituições que esta gerou e gere para a sua

própria organização, como parte do seu projeto educativo. Retoma a

ideia debatida por Foucault de que uma sociedade organizada e

baseada nas instituições dos Estados-Nação, recorre à instituição es-

colar, ao lado de outras quatro: a instituição militar, hospitalar, pri-

sional e religiosa.

Procuro debater a interação entre transformações sociais, mu-

danças na escola, nas suas diferentes dimensões sociológicas e educa-

tivas. As perguntas de partida são:

• A própria existência de organização social não faz com que

todo e qualquer tempo dos homens e das mulheres esteja su-

jeito a transformação social?

• Quais são as forças que impulsionam a transformação e quais

são as forças que a travam?

• Como é que as pessoas lidam com estas forças, conforme se

situem nos círculos do poder ou não?

• Como relacionar transformações na sociedade com mudanças

de ação na escola evitando raciocínios de causa-efeito?

Estas perguntas abrem espaço para desenvolver pelo menos 6

pontos de focagem:

(1) As transformações sociais e a educação

(2) O Estado-nação e a escolarização da educação

(3) O conhecimento, a escola e as disciplinas

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(4) O desejo, a aprendizagem e o ensino

(5) A praxis vivida pelas pessoas da escola

(6) A interação entre pessoas e a relação dialéctica sociedade-es-

cola

Procuro observar cada uma das entradas, primeiro de um ponto

de vista mais abrangente (M(acro) no resumo pictográfico), depois

de um ponto de vista mais focado nos processos de aprendizagem e

educativos (M(eso) no resumo pictográfico), e por fim, com uma

lente mais local (M(icro) no resumo pictográfico). À cada entrada segue uma sugestão de reformulação da problemati-

zação:

(1) As transformações sociais e a educação

Problema 1 — o projeto humanista entre crença e dogma

(2) O Estado-nação e a escolarização da educação

Problema 2 — a medição da normalidade local

(3) O conhecimento, a escola e as disciplinas

Problema 3 — Entre a normalização do conhecimento exis-

tente e abertura para a elaboração projetos culturais a edu-

cação escolarizada tende para que paradigma educativo?

(4) O desejo, a aprendizagem e o ensino

Problema 4 — Interagem os indivíduos para projetar o

currículo?

(5) A praxis vivida pelas pessoas da escola

Problema 5 — Da visão inclusiva para a visão pluralista

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(6) A interação entre pessoas e a relação dialéctica sociedade-es-

cola

Problema 6 — Como desenvolver uma visão pluralista no

seio da forma escolar de relações sociais de aprendizagem?

O diálogo estabelecido com cada entrada, seguida da reformu-

lação do problema, poderá levar à pistas de trabalho que vão ao en-

contro das perguntas que o titulo desta reflexão sugere, quando dis-

tinguimos, da educação, a educação formal: Como olhar para a praxis

no atual momento de transformação social? e Como olhar para equipas

pedagógicas e projetos de aprendizagem?

Termino como umas curtas notas finais que fixam algumas destas

pistas a explorar.

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As transformações sociais e a educação

PROBLEMA 1: OS TRÊS M

As transformações ao longo da evolução de Sapiens

Transformação social. Processo discreto ou contínuo?

As pessoas e a educação sistémica

As grandes transformações sociais influenciaram a maneira como se olha

para a educação.

E como é que as alterações no modo de olhar para a educação interferem

com a transformação ou o status quo social?

As transformações ao longo da evolução de Sapiens

Dependendo do referencial de partida, quem observa as grandes

transformações sociais ao longo da evolução do ser humano, têm

diferentes formas para olhar para descrever os acontecimentos.

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Para esta reflexão apoiei-me nos autores Enguita, Popper, Steiner,

Harari, Eco e Foucault, entre outros.

Para esta primeira entrada, retomo de Harari (2015) a sua suges-

tão para as grandes etapas na evolução da espécie Homo, ao qual

associo uma determinada forma de aprendizagem.

Harari propõe seis etapas. Primeiro havia o período de recolec-

tores, ao qual penso podermos associar momentos de aprendizagem

de tentativa e erro. Não me custa muito imaginar os pequenos gru-

pos de recolectores experimentarem o que é comestível, e o que não

é, e lentamente aprender com o que constatam. É muito provável que

a observação mutua e a cultura local faz com que as crias aprendem

com os adultos o que comer e como conseguir a comida, um pouco

como podemos ainda observar atualmente com os grandes símios. A

agricultura, segunda etapa de Harari, sugere uma aprendizagem já

menos baseado no simples “tentativa e erro”. Implica o seguimento

de rotinas em função dos ciclos anuais. A aprendizagem passa pela

instrução a partir de experiências anteriores. Com a terceira etapa, a

do desenvolvimento do poder centralizado, e com o desenvolvimen-

to de divindades que gradualmente fazem aparecer o monoteísmo,

associado ao desenvolvimento da escrita, a instrução normativa pas-

sa a ser não negociável. O texto impera assim como quem o domina.

Quando, como quarta etapa, a revolução científica se concretiza, a

instrução exterior, fruto da experiência documentada liga-se à obser-

vação direta. A partir daqui Harari fala da autoridade humana que

gradualmente se vai sobrepor à autoridade divina. É uma nova e

quinta etapa. A reorganização da instrução que isto implica, torna a

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aprendizagem parcialmente negociável. Para a Reforma, que encon-

tra em Coménius um dos importantes educadores, tudo tem que ser

ensinado a todos. Para a Contra-Reforma, que retoma projetos edu-

cativos de Démia e mais tarde de La Salle, define-se primeiro o que

convém ensinar à todos, também nas petites écoles, e depois o que do

conhecimento é mantido reservado para alguns. Enquanto podemos

antever com Coménius uma reflexão que considera o aprendente na

qualidade de pessoa, de quem é preciso ter em conta as suas carac-

terísticas, o projeto Lassiallano concentra-se na organização buro-

crática que irá desenvolver o modelo de escola baseado no paradig-

ma educativo da instrução. A sexta etapa de Harari, o projeto hu-

manista desenvolve-se, diz o autor, em três ramos: o ramo liberal, o

socialista e o evolutivo. Cada um destes ramos estruturam o seu pro-

jeto educativo de forma a que a instrução irá ao encontro da sua in-

terpretação desse mesmo projeto humanista.

Diria que ao longo dos processos de organização societal, obser-

vamos mais facilmente uma instrução que condiciona a aprendiza-

gem do que o surgimento de projetos de aprendizagem conscientes,

suportadas por atos educativos.

Transformação social. Processo discreto ou contínuo?

Podemos colocar a pergunta se existem tempos em que não há

transformação social. Para George Steiner (1992) é possível imaginar

estes tempos. O filósofo fala de uma época de estagnação social gene-

ralizada que antecipa as catástrofes radicais descrevendo o século

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entre 1820 e 1915 durante o qual a burguesia europeia entra no tédio.

Steiner considera também que então se pensou ter chegado ao fim

dos tempos, ao fim da história, em que tudo está feito. O elogio da

modernidade ajudou de certa forma a criar este mito. Este elogio ex-

pressa-se entre outras formas, através do entusiasmo pelo avanço da

ciência. Steiner lembra por exemplo como Macaulay discursa sobre

Bacon demostrando uma fé que a ciência conseguiu desvendar todos

os segredos. A análise que Steiner faz, leva-o a explicar a violenta

reação a este período de tédio, desencadeando as guerras do século

XX movidas pelo poder instalado nos Estados-Nação e pelos interes-

ses económicos em matérias primas necessárias para as aplicações

práticas daquilo que a ciência traz, culminando numa situação que

Umberto Eco nomeia de guerra permanente associado ao fascismo

primitivo, e que Harari associa ao projeto humanista tornado crença

dogmática, na sua versão evolutiva. Este último considera que de

modo geral há sempre o advento de transformações sociais. Há con-

stantemente quem cria, quem ganha consciência, quem escapa à

norma instalada e por isso há constantemente desequilíbrios que

provocam novas formas de relacionamento com as coisas e entre as

pessoas. A realidade é uma construção social constante.

Visto sob este prisma e se considerarmos a transformação de

maneira mais global, poderemos dizer que evolução está a ser provo-

cada por mudanças constantes, que, em determinadas épocas, po-

dem ser bruscas. Pensamos nas revoluções de Sapiens de que fala

Harari (2015). O autor identifica três e de cada uma aponta o desastre

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ecológico que a ela associa: a revolução cognitiva, a revolução agríco-

la e a revolução científica.

A revolução cognitiva assenta na aprendizagem da comunicação e

a respetiva capacidade humana de se deslocar em grupos, caçando e

colhendo de forma mais eficaz, o que irá provocar a extinção de uma

série de mamíferos de grande porte, até aí sem dificuldades para par-

tilhar os nichos ecológicos com Sapiens.

A revolução agrícola que segue será muito mais severa para as

plantas e os animais, incluido para o próprio Sapiens. O assentar em

comunidades, devido a necessidade de cuidar daquilo que foi plan-

tado, provoca conflitos e problemas de ordem pessoal, de saúde e de

convivência, obrigando a novas formas de relacionamento, onde a

hierarquia se destaca como elemento importante. Parte do tempo

educativo é destinado ao ensino das formas de relacionamento, tam-

bém com o Poder hierarquizado.

A revolução científica introduz os procedimentos e os protocolos,

baseados em observações e algoritmos. O tempo educativo concilia

gradualmente a educação e instrução das novas gerações para o rela-

cionamento, com a instrução e a educação formal das novas gerações

no conhecimento. A escola ganha protagonismo como espaço-tempo

onde esta educação formal ocorre. Para Harari trata-se de um novo

desastre ecológico e humano no sentido relacional. A era da revolu-

ção científica constitui o início da deriva dogmática da crença hu-

manista na qual Harari (2017) vê três variantes ou ramos:

(a) o ramo liberal: a experiência humana é uma experiência indi-

vidual. O indivíduo sabe sempre o que é o melhor para si. Derive

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da auto-análise permanente, a angústia permanente dos liberais

que as outras crenças não sejam compatíveis com a sua.

(b) o ramo socialista: a experiência humana é uma experiência

coletiva. Deriva daí que o que importa para o projeto humano,

não é o indivíduo, mas são as estruturas coletivas poderosas.

(c) o ramo evolutivo: as pessoas não são iguais. Deriva daí uma

guerra permanente de seleção, que aniquila os fracos e mantém os

fortes, fortalecendo assim globalmente o projeto humano.

A deriva é desastrosa para tudo que não é humano, mas desas-

trosa também para muitos humanos, em qualquer um dos ramos.

Levado à dogmatização, a crença humanista substitui o controlo ab-

soluto externo e exterior à ação humana por uma forma devastadora

de controlo absoluto interno, sistémico, decorrente da própria ação

humana.

As pessoas e a educação sistémica

Na educação e na educação escolar, que continua de matriz in-

strutiva — assim condicionada pela sociedade e pelos mecanismos

de poder que esta produz e reproduz — o sistema, criado e assumido

por pessoas, impera de várias formas, mais brutal ou menos brutal,

mas sempre incisivas, sobre a vida das próprias pessoas. Os rituais,

que definem quem tem poder e quem não tem, estão presentes, ainda

que analisadas de maneira diferente, conforme a matriz utilizada . 1

Podemos considerar que alguns dos desafios, que os educadores

volto a falar destes construtos culturais mais a frente.1

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profissionais enfrentam, se formulam em torno da pergunta se a es-

cola se reproduz ou se constrói. Temos indicações claras que, sempre

que se trata da escola que se organiza para formas escolares de re-

lações sociais que tem o paradigma da instrução subjacente, ela se

reproduz, mantendo rotinas muito semelhantes ao longo de décadas.

Uma escola que se constrói é mais flexível no que se refere às rotinas.

Mas mesmo neste caso de (re)construção, podemos nos perguntar se

não se trata de uma escola que mantém a modelagem das crianças

como objetivo, tomando em conta alguns factores externos. Esta

modelagem é feita por uma espécie de pedagogo Frankenstein, como

ironiza Meirieu . E esta escola de modelagem apresenta-se como um 2

local com um modelo de trabalho aberto à todos, ou com um modelo

de desenvolvimento da pessoa, inacessível para muitos?

A escola que se constrói no sentido de se adaptar minimamente às

exigências que lhe são feitas, enquanto portadora do paradigma da

instrução, assume uma forte necessidade de controlo. Como é que

este controlo se expressa, tanto ao nível macro como ao nível micro?

Temos indícios que ela se processa invariavelmente através de

uma medição classificadora, que compara entre si pessoas que por

acaso foram juntas num mesmo grupo, burocraticamente definido

como turma.

Para os restantes técnicos que interagem com os escolares e os 3

Meirieu, Philippe (1998). Frankenstein pédagogue. Issy-les-Moulineaux: ESF éditeur.2

Prefiro à palavra aluno (de género masculino, que deriva de alumni, pequeno lactente es3 -cravizada), esta palavra, identificada pelo dicionário português como sendo um substantivo de dois géneros, com o significado de estudante, douto, sábio, mestre.

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estudantes, nomeadamente os psicólogos e os terapeutas especiali-

zados, as questões que se coloquem são da mesma ordem. Na maior-

ia dos casos, estes técnicos, quando ganham consciência da sua inter-

ação, procuram clarificar se estão a naturalizar tendências.

Trata-se de criar um aluno-tipo ao qual se espelha todas as pes-

soas, ou trata-se de entender quais são os momentos mais adequados

para estimular determinados processos de aprendizagem em cada

escolar do grupo? Descobrir uma norma, à partir da qual se aplica

um algoritmo de deteção, pode ser útil para obter um afunilamento

que leva o técnico a perceber de que doença pode padecer um pa-

ciente. Contudo, este tipo de afunilamento pode se revelar perigoso

quando aplicado ao desenvolvimento de uma crianças que está a

apropriar-se das linguagens e das ferramentas próprias da herança

da cultura humana. O grupo neerlandês informal BABEL

(Brinkgreve et al, 2017) revela situações extremamente preocupantes

em relação à pressão exercida sobre crianças, não só pelos técnicos,

mas também pelos progenitores. Como caso extremo, relatam uma

situação na qual a ansiedade por parte dos pais para pertencerem ao

grupo mainstream os leva a insistir junto a vários psicólogos e

psiquiatras que o seu filho é portador de uma forma de autismo. Não

é difícil perceber como uma atitude deste tipo, mesmo com técnicos

prudentes e a recusar a pressão — o que não foi o caso na situação

relatada — pode magoar e rotular uma criança para sempre.

Parece-me que aqui estamos a visualizar as falsas respostas, que

podem surgir quando o projeto humanista se dogmatiza no seu ramo

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liberal, que se generaliza o individualismo baseado no princípio do

“cliente decide”.

O tipo de raciocínio subjacente ao anteriormente relatado e que

alguns lóbis anunciam como sendo essencial, para manter a fun-

cionar uma economia de escala, baseada no desejo estimulado das

pessoas, cria situações caricatas, senão perigosas, tanto colectiva-

mente como individualmente.

À título de exemplo podemo-nos lembrar a forma totalmente

acrítica pela qual algumas escolas se lançam em atividades que

anunciam como sendo de “projetos de reciclagem”, quando aceitam

participar em determinados concursos, promovidos por cadeias de

distribuição alimentar. Estou a referir-me àqueles concursos que sur-

giram ao par e ao passo com a individualização do café, em casa.

Desde alguns anos assistimos a agressivas campanhas de marcas que

substituem o café vendido a granel, ou em embalagens familiares,

por café em doses individuais, mais caro, embalado em cápsulas de

plástico. Desde então há escolas que embarcam em atividades sazo-

nais, durante as quais se convida as crianças a produzirem árvores

de natal em plástico, recorrendo às tais embalagens das doses indi-

viduais. Utiliza-se o argumento de que se trata de uma atitude

cidadã de reciclagem de lixo.

Poder-se-á argumentar que um trabalho realmente ecológico e de

reciclagem constituir-se-ia ao fazer uma análise, com as crianças,

para perceber o que o empacotamento em doses individuais de café

significa em termos de desperdício de energia e de matéria prima,

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depois de ter criado o desejo para o objeto, recorrendo para tal a per-

sonalidades reconhecidos pelo grande público no mundo ocidental.

Poder-se-ia simplesmente procurar saber se o café de saco não é, no

seu todo, uma aposta mais ecológica e mais sustentável. Poder-se-ia

inclusivamente procurar perceber como utilizar critérios mais equi-

tativos de distribuição da mais valia criada, entre produtor e dis-

tribuidor.

Da mesma forma acrítica, a instituição escolar apresenta muitas

vezes o trabalho autónomo como sendo o trabalho individual, em

função do desejo do cliente, neste caso do escolar. Ora, este desejo

igualmente induzido, prejudica igualmente as pessoas individual-

mente. Para que a aprendizagem, tanto no que se refere a apropri-

ação de conhecimento, como ao desenvolvimento de competências

sociais, as interações com os outros são fundamentais . 4

O trabalho conjunto, a gestão conjunta do projeto de trabalho é

essencial em qualquer comunidade de seres sociais. Negando esta

possibilidade aos escolares e aos estudantes, a instituição não se

afirma como espaço cultural, mas como mero espaço de instrução,

levando em muitas ocasiões ao surgimento de comportamentos

agressivos.

Sempre que a escola tenha os especialistas que criam perfis de

normalidade, para, de seguida, analisar comportamentos que des-

viam daquilo que é considerada a norma, espreita o risco que uma

criança seja diagnosticado como portador de um qualquer síndrome.

Os trabalhos de Bruner, de Lewin, de Rogoff, entre outros, são elucidativos neste aspecto.4

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Muito mais interessante é poder contar com o conhecimento espe-

cializado de todos para perceber como fazer parte da equipa de inter-

locutores de cada um dos escolares, que, em conjunto com os outros,

se construem um projeto de trabalho de aprendizagem intelectual.

Problema 1 — o projeto humanista entre crença e dogma

O humanismo evoluiu para uma crença com 3 ramos: ramo liberal,

ramo socialista, ramo evolutivo.

Como é que a crença humanista se relaciona com as outras crenças?

A crença humanista consegue sair da opção individualista, sem entrar

em lógicas que aniquilem a pessoa?

Como abordar o conhecimento específico, a experiência e o conheci-

mento geral quando a cidadania é uma miragem?

Que dispositivos desenvolvem-se na educação e na escola para que a

criança não fica canalizada para um dogma — e os adultos querem

isso mesmo? — mas para que seja educada para a valorização da in-

teração entre indivíduos?

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O Estado-nação e a escolarização da educação

PROBLEMA 2: OS TRÊS M

O difícil princípio da falsificabilidade nas ciências sociais

Pedagogia local ou antropogogia universal?

Medidores da normalidade

É possível dizer que o Estado-nação moderno desvia o foco da educação

para a escolarização?

O que significa, para as pessoas, a naturalização da escola?

Quais são as consequências do uso generalizado de normas e da medição do

desvio à norma?

O difícil princípio da falsificabilidade nas ciências sociais

Existem diferenças entre as ciências sociais e as ciências naturais.

Aceitando o princípio da falsificabilidade que Popper (1992) utiliza

para separar a crença da ciência, como interpretar então, nas ciências

em geral, nas ciências sociais e nas ciências de educação em particu-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

lar, a medição, o protocolo e o confronto entre raciocínios estabeleci-

dos?

O que significa, nas ciências sociais, a descoberta de padrões na

atividade humana? São padrões que podem ser descritos matemati-

camente, como se faz para ciências naturais? Os padrões são padrões

da ordem da natureza ou são padrões da ordem da naturalização de

construtos humanos, elaborações feitas pelas mulheres e os homens,

decorrentes da sua atividade cultural? Como iremos ver mais a

frente, a aceitação de padrões e da elaboração de teorias a partir de-

les, mesmo incorporando a falsificabilidade, interfere diretamente

nos processos de aprendizagem e de educação, o que não é o caso

quando se trata de fenómenos naturais. Por acréscimo, podemos in-

terrogar-nos acerca de padrões do comportamento humano na sua

vertente fisiológica, da ordem da natureza, versus padrões no hu-

mano na sua vertente ideológica, da natureza cultural.

Christien Brinkgreve (2017) lembra uma observação do arquitecto

paisagístico Hertzberger que a erva daninha é a planta que não é su-

posta estar no jardim. Contudo, continua , … 5

… é exatamente no que não é suposto que pode estar a germe de

uma novidade. Há demasiados assuntos previamente acordados e

padronizadas, pelo que também demasiadas situações são excluídas

à partida. Colocando os assuntos em protocolos não olhando e ou-

vido sempre de novo, passam-nos ao lado demasiados acontecimen-

tos não observados e achados não procurados. Seen but unnoticed.

(2017, p. 93)

Tradução do autor.5

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A educação escolarizada é por excelência uma atividade humana

protocolado. Com a organização escolar, no seio de uma instituição

criada para padronizar o ensino das novas gerações (confundido re-

gularmente com a educação das novas gerações), as mulheres e os

homens procuram regularizar e ritualizar as interações sociais na sua

forma especificamente escolar. Em pouco mais de cem anos, a edu-

cação escolar, que o Estado Moderna queria - e bem! - universal e

tendencialmente gratuito, se naturalizou (Canário, 2005), adoptando

uma gramática prescritiva, como constatam Tyack e Tobin (1994).

O que significa esta naturalização da escola para as pessoas? Um

aspecto importante é a relação entre a instituição localizada e o poder

localizado. Os currículos elaborados em territórios precisos pelo

poder legal deste mesmo território, pormenorizam o que será ensi-

nado. Quem assim elabora os protocolos em relação ao ensino, in-

verte a relação entre a aprendizagem e o ato educativo. A apropri-

ação do conhecimento e do saber prático não mais decorre de um

desejo, uma vontade ou uma necessidade de aprender, acompanhado

por quem educa. Decorre agora de uma obrigação normalizada, que

dá ao educador o protagonismo sobre quem aprende. Lembro as

palavras de Dewey, proferidas em 1916 quando observe o desen-

volvimento das escolas nos Estados-Nação, os currículos para elas

preparados e constata que a humanidade perdeu o cosmopolitismo.

Dizia ele que o “Estado” substituiu” a humanidade; o cosmopolitismo deu

lugar ao nacionalismo. Formar o cidadão e não o “homem” tornou-se a fi-

nalidade da educação (2009, p. 93).

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A nacionalização da educação formal ao nível planetário teve

ainda outro efeito que merece considerar.

Enquanto os fenómenos naturais não são afetadas por um olhar

nacional, as ciências naturais em si podem sê-lo. Universidades e

Estados colecionam menções e prémios para se destacar entre si e se

vangloriar com as posições que ocupam nos rankings, como se de

um campeonato desportivo se tratasse. A história conta-nos como

descobertas e desenvolvimentos do conhecimento ficaram muitas

vezes à sombra das discussões de quem descobriu primeiro um astro

ou desenvolveu antes dos outros um teorema matemático. Também é

ténue a fronteira entre a verificação entre pares e a arrogância da ig-

norância frente a novas descobertas. Na medicina, a crença se so-

brepõe de vez em quando ao princípio da falsificabilidade.

A gradual imposição das regras económicas em relação à criação

de mais valia associada ao investimento em produtos financiáveis

vai corroendo o edifício da problematização a partir dos princípios

da falsificabilidade. Protocolos de sucesso e com interesses associa-

dos tornaram a ciência aplicada um grande mercado liberal, re-

forçando lógicas de individualização e de manter segredo. Lógicas,

repito, que não alteram em nada o curso dos fenómenos naturais mas

que distorçam ou atrasam a capacidade humana de as observar, en-

tender e interpretar.

Segundo o próprio Higgs, a história da teorização do bosão com o

seu nome e a sua posterior descoberta, bem como as aplicações práti-

cas que decorrem do gradual entendimento do mundo sub-atómico,

só foi possível porque, como investigador, fez parte de uma geração

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

de cientistas para quem era possível fazer ciência teórica; isto é, sen-

tar-se e pensar, desenvolver ideias, pensar sobre elas, discutí-las

abertamente, reformulá-los, tudo isso, tendo amplamente tempo

para o fazer. O cientista ironizou numa entrevista que, se tinha tra-

balhado hoje, num tempo em que os cientistas são pressionados de

publicar constantemente, para serem referidos e citados e assim obter

um ranking que lhes dá acesso à fundos, o bosão provavelmente nem

teria sido concetualizado.

Se, no caso do bosão, o atraso na sua concetualização teria sobre-

tudo efeitos sobre o próprio pensamento acerca da natureza — even-

tualmente atrasando também a invenção de alguns aplicações práti-

cas — a investigação condicionada por financiamento pode muito

bem atrasar o entendimento de sistemas complexos como o clima, e

de se e como a própria industrialização com eles interagem. Mais

uma vez, os fenómenos naturais desenvolvem-se independente-

mente da vontade ou do interesse de os perceber. A subida de tem-

peratura do planeta observa-se e está em curso. Mesmo se alguns

não querem admitir que ela é consequência da ação do ser humano,

movido por interesses próprios da cultura do ser humano, neste

caso, a organização social em nações que competem entre si para a

obtenção de riqueza medida por um instrumento de comparação

também ele inventado pelo ser humano, ela tem consequências sobre

a habitabilidade do planeta . Se a querela sobre o que se passou é de 6

ordem da cultura humana, a negação do observável ofusca que as

Habilidade do planeta, que não está contemplado no instrumento de comparação para 6

medir a riqueza individual ou de um Estado-nação.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

forças naturais não obedecem a padrões e protocolos definidos por

Estados e nações. Estranhamente, perante as grandes secas e os

grandes fogos em partes do planeta, acompanhados por gigantescas

inundações em outras zonas do planeta, responsáveis tendem tanto

invocar novamente forças sobrenaturais — como se fazia antes do

advento da ciência — como mantêm um discurso localizado . 7

Para as ciências sociais o problema coloca-se de forma diferente.

Enquanto é certamente possível perceber tendências e correlações, é

extremamente complicado, e muitas vezes impossível, introduzir

sequências de causa-efeito válidas em todas as circunstâncias. Isto

também é o caso para o que tem a ver com a aprendizagem. Temos

atualmente algumas ideias acerca dos processos de aprendizagem;

sabemos que o treino provoca determinados comportamentos, mas

que não há universal treino que resulta em comportamento univer-

sal; podemos descrever formas de aprendizagem, mas é-nos impos-

sível, a partir daí desenvolver um algoritmo educativo que faz com

que todas as pessoas aprendem as mesmas coisas da mesma maneira

ao mesmo tempo.

Aqui vale a pena referir uma história conhecida entre etólogos,

acerca de um cavalo que sabia contar. Uma observação cuidado do

animal levou à suposição que não interpreta a ordem de executar

Ultimamente estas questões são tratados mais globalmente, como o acordo climático de 7

Paris e as subsequentes discussões nos revelaram, depois das frustrantes tentativas em meados do século passado, como o que aconteceu com os relatórios do Clube de Roma, ou do Grupo de Lisboa, por exemplo. Contudo, alguns líderes mundiais continuam a preferir invocar a mão divina em fenómenos locais e ver, nos acontecimentos, mais uma vez, o início do fim do tempo.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

uma operação aritmética simples, batendo com o casco de um dos

pés no chão, mas que o equídeo é muito mais sensível aos sinais de

stress do que os seus interlocutores e observadores humanos. Ou

seja, o animal faz depender o fim da serie de batimentos da obser-

vação de sinais dados pelo treinador a medida que se vai aproxi-

mando do “resultado certo”. Esta história conta uma possível apren-

dizagem baseada em observação mútua e sugere que, mesmo nas

instruções e nos treinos mais mecânicos, existe mudança de entendi-

mento do outro, conforme vai evoluindo a observação e a percepção

desta mesma observação do outro. Esta mudança de entendimento,

provoca portanto, no caso da educação, mudança na interação com o

outro, quando é percepcionado o sentido que o outro consegue dar a

uma determinada situação de aprendizagem.

Se observamos a mudança de interação, devido ao entendimento,

nos simples programas de condicionamento através da interpretação

da reação esperada, esta capacidade de mudança de entendimento

do outro sustenta, em contextos de interação dialogada recorrendo a

linguagens estruturadas e complexas, modos mais elaborados e

complexos de aprendizagem. A aprendizagem dialogada, seja entre

mestre e aprendiz, seja em comunidades de aprendizagem, tutorados

ou não, está ao alcance de cada um que participa no diálogo. Ela tor-

na-se, para cada pessoa, mais eficaz, na exacta medida em que cada

outra, pela constante interpretação que faz daquilo de que é expresso

pelos parceiros de diálogo, é capaz de mostrar, explicitar e reconsi-

derar.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Pedagogia local ou antropogogia universal?

Uma visita a algumas livrarias em diferentes cidades univer8 -

sitárias de diferentes países da Europa mostra rapidamente, como,

nas prateleiras da não-ficção, existe uma muito limitada oferta em

relação à universalidade do pensamento e uma globalizada oferta de

autores locais que, até nas referências, muitas vezes se mantêm lo-

cais.

Nas secções dedicadas às ciências naturais o mais comum é en-

contrar um leque de títulos de divulgação científica, escrito por um

número reduzido de nomes, traduzidos na língua local. São maiori-

tariamente autores do mundo anglosaxónico ou residentes num es-

tado que tem o inglês como língua oficial. Em regra, a divulgação

refere ao conhecimento que estava disponível até há 20 anos ou mais.

Conhecimento recente obriga a visitas a bibliotecas universitários,

dos quais até o catálogo constitui, em muitos casos, um obstáculo

difícil para vencer.

Se para as ciências naturais ainda é possível encontrar uma relati-

va universalidade, condicionado, repito, por muito que é produzido

no mundo anglosaxónico, para as ciências sociais, não é tão evidente.

As prateleiras dedicadas à psicologia contêm traduções das obras

dos principais fundadores deste ramo do conhecimento. O mesmo

podemos dizer para os títulos relativos à economia. Localmente, são

Livrarias físicas, com livros em papel. Poderá se também fazer uma leitura da oferta nas 8

livrarias digitais e perceber quantos autores locais estão a ser disponibilizados em tradução, já não digo para a língua materna de quem procura, mas pelo menos para uma língua que lhe é familiar.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

completados por publicações de teses feitos por locais, bem como por

um conjunto de títulos do tipo Faça você mesmo, seja para perceber

melhor os filhos, os idosos, os dementes da família, seja para saber

como ler e interpretar ciclos económicos ou como se tornar um em-

preendedor de sucesso. Os autores são locais, as mensagens são

globais e reconhece-se neles facilmente modos de pensar associados

a um qualquer ramo do projeto humanista transformado em crença

(Harari, 2017).

Chegando a educação das crianças e a sua ciência, para o qual uns

utilizam o termo pedagogia, enquanto outros separam os conceitos

de pedagogia e das ciências de educação, percebemos que a interna-

cionalização é muito reduzida, o estudo dos diferentes paradigmas

educativos ainda menos.

Nomes franceses como Perrenoud, Meirieu ou Houssaye encon-

tram se dificilmente em Londres ou Gent. Nomes portugueses são de

vez impossíveis de encontrar. Mesmo se o sistema educativo fin-

landês e alguns dos seus aspectos pedagógicas entraram na curiosi-

dade internacional, não se encontram escritos de Pasi Sahlberg em

Paris, Leuven, Lisboa ou Porto . 9

Encontra-se a lapela de ciências de educação em prateleiras em

países com línguas oficiais de origem latina, enquanto nos outros se

encontra a pedagogia e a psicologia, ao lado da sociologia ou da

antropologia.

Para ilustrar a ideia, juntei, no pictograma no fim deste 2º ponto, fotografias de práticos e 9

teóricos da educação do século XX. Pode não ser fácil situar alguns…

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A aprendizagem dos adultos está quase sempre confinado a can-

tos de prateleira, onde raramente se encontre mais do que alguns

títulos referindo aspectos da alfabetização. Com alguma sorte, encon-

tra-se uma tradução local de alguns escritos de Paulo Freire, e, mais

esporadicamente, a tradução do livro Deschooling Society de Illich,

que era novo em 1975.

Focando a educação do ser humano e a sua ciência, para a qual foi

cunhada a palavra antropogogia , é raro encontrar documentos que 10

refletem sobre instituições como os Volkshogeschüle ou as comu-

nidades de aprendizagem. Alguns livros mais comerciais, como os de

Wengers e de Lave ainda se encontram, embora raramente em

tradução. Autores como Paraskeva, Macedo, Zinn são difíceis de en-

contrar em livrarias em cidades universitárias na Europa.

Tirando os artigos de especialidade, muitas vezes em formato

digital, mas nem sempre de fácil acesso, pouco da reflexão em torno

de projetos de trabalho como as academias de seniores, as comu-

nidades de prática e de aprendizagem, os grupos de estudo amador,

nalguns casos suportados por projetos de investigação universitário,

chega ao conhecimento do grande público.

A relação entre a aprendizagem e a educação é, com a naturaliza-

Podemos ver a pedagogia como uma área especifica da antropogogia, aquela que se refere 10

à ação educativa quando esta ação envolve também crianças?A palavra pedagogia parece ter sido cunhada algures entre 1575-85, a partir da palavra grega paidagōgía, oficio do tutor de criança. Ela é formado a partir de paĩs (derivado de paidós) ‘criança’ e agōgós ‘guia, quem leva, encaminhador’’, uma derivação do verbo ágein ‘guiar’.A palavra Aprender encontra a sua origem no prefixo ad, “junto” mais o verbo prehendere, com o sentido de “levar para junto de si”, metaforicamente “levar para junto da memória”. Por sua vez, este verbo se origina em prae-, “à frente”, mais hendere, relacionado a hedera, “hera”, já que essa planta trepadeira se agarra, se prende às paredes para poder crescer.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

ção da escola, apresentada demasiadas vezes como uma relação de

causa-efeito de adultos para crianças. Restringindo conscientemente

ou inconscientemente a educação à educação formal, cria-se uma

ilusão que a educação produz aprendizagem. A manutenção da

gramática da escolarização prescritiva (Tyack e Tobin, 1994) completa

a ilusão: a norma instaurada pelo poder legitimo da esmagadora

maioria de Estados-nação é ainda, no primeiro quarto do século XXI,

a mesma que se instituiu ao longo do século XX. Entre os paradigmas

de educação existentes, impôs-se o paradigma educativo da in-

strução, utilizando o preceituário inicialmente proposto por Démia,

retomado por La Salle, para criar sistemas nos quais a aprendizagem

de todos depende da relação com o conhecimento de um. Instituiu-se

que, na escola, a transposição didática praticada por um docente-

funcionário, treinado para tal, tem como efeito, a aprendizagem, no

sentido da apropriação de conteúdo pré-definido, do conjunto de

escolares. A capacidade de apropriação será depois medido, como

sustento no ponto seguinte.

A inversão da relação entre aprendizagem e educação, devido à

naturalização da escola tem pelo menos duas consequências imedi-

atas.

A primeira consequência é que a aprendizagem deixa de ser vista

como uma característica própria do processo de maturação dos seres

vivos em geral e dos animais sociais em particular, que desenvolve e

completa as suas capacidades inatas, normalmente através da inter-

ação e da relação com elementos adultos do grupo social no seio do

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

qual se nasceu. No caso do ser humano, a aprendizagem passa por

processos complexos de enculturação e, em muitos momentos, de

aculturação, mais ou menos agressivo ou forçado. Inverteu-se relação

aprendizagem-educação para uma relação educação-aprendizagem.

A segunda consequência é que a educação não-formal deixa de

ser vista como o suporte principal à aprendizagem, completada pela

educação formal, sempre que se trata de objectivar o conhecimento

adquirido, recorrendo à linguagens estruturadas, na qual se destaca a

escrita, a matemática e as linguagens ditas artísticas. Tendo-se

evoluído, para a educação formal, para a instalação de um espaço

específico de instrução, deu se a inversão da relação aprendizagem-

educação para o conceito de ensino-aprendizagem.

A naturalização da instituição escola, considerado necessária pelo

poder legitimo dos Estados-nação, criou um cenário único por onde

se obriga a passar todas as crianças. Mas esta naturalização é só a

expressão política-cultural local e posteriormente globalizado de um

fenómeno complexo que é a aprendizagem.

É difícil encontrar um espaço Solvay para as ciências sociais,

muito menos para as ciências da educação onde aprendizagem, edu-

cação e espaços culturais de interação poderiam ser abordados. A

naturalização da instituição escolar condiciona as poucas tribunas

internacionais disponíveis para os cientistas de educação. O encontro

anual mais conhecido no ocidente, o CIES, é somente um fórum para

estudos comparadas na área da educação, digo, da educação formal,

baseado em análises sistémicas.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Entretanto, olhando novamente para o projeto humanista, quan-

do se aborda a educação formal, apresentam-se dois conceitos bem

diferentes, que, de certa forma, têm o seu equivalente social. Refiro-

me aos conceitos de colaboração e de cooperação.

Sem me pronunciar sobre uma prática frequente de utilizar estas

duas palavras como se tratassem de sinónimos, gostava aqui só sub-

linhar que o conceito colaborar está gradualmente a ganhar um sig-

nificado alargado relacionado à prestação de serviço a outrem: co-

laborar na empresa, colaborar na gestão da cidade, colaborar nos es-

paços de pertença com os outros. Trata-se de um convite à participar

no que foi instituído por outros. Pede-se assim, a colaboração do

aluno no projeto de trabalho definido pelo professor. A colaboração

inscreve-se no paradigma educacional da instrução e no da apren-

dizagem (ver infra). A colaboração com o professor ou com a institui-

ção está na mesma ordem como a colaboração exigida aos trabalha-

dores da empresa, para a concretização dos objetivos da empresa,

objetivos para a concretização dos quais, a colaboração pedido ganha

criativa como epíteto.

Utilizo o conceito cooperar com a sua raiz significando “criar

opus em conjunto”. Aqui, em termos sociais, coloca-se a ação no

plano do instituinte e não do instituído. Sugere a participação insti-

tuinte. No caso da escola básica, este conceito implica uma partici-

pação ativa na criação do currículo de aprendizagem do grupo, por

todos. Ao mesmo tempo obriga a uma profunda reflexão acerca da

transposição didática e de acesso ao conhecimento.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Medidores da normalidade

Acriticamente, professores recorrem a protocolos e medições,

baseados em crenças, para definir o sucesso da criança. Estas crenças

derivam de uma interpretação abusiva de observações e correlações

feitas, normalmente entre a idade de uma criança e o que é estatisti-

camente relevante para aquela idade em termos de aquisições de ap-

tidões e instrumentos culturais. A partir daí a correlação observada é

como por magia transformada numa lei da natureza.

Uma criança que aprende a falar, que aprende a andar, que

aprende a interagir com a realidade envolvente tem que ser seriada

entre outras, para lhe atestar normalidade? Ainda que estas apren-

dizagens não são medidas em função de normas e estandartes… pelo

menos por enquanto, é fácil fazer deslizar a constatação de uma

evolução para uma comparação abusiva levando a constatação de

“anomalias” que precisam de ser corrigidas.

Desliza-se da constatação de uma aprendizagem para a medição

da aquisição de um conhecimento. Medir? Ninguém parece se rir da

simples ideia que se pode medir, isto é, quantificar a aquisição de

conhecimento. Para mais, na escola, na maioria das vezes, não se

mede a aquisição de conhecimento, mede-se a aquisição normaliza-

da de saber escolar, o que vai influenciar a vida fora da escola.

A escolarização da sociedade arisca levar a práticas generalizadas

de catalogação de crianças, por via de especialistas ignorantes, que,

tal como outros, na escola, diagnosticam como defeitos aquilo que

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

corresponde ao desenvolvimento não padronizado de cada ser. Tra-

ta-se algumas vezes de especialistas ávidos de desenvolver materiais

e procedimentos cunhados do seu nome, e que, segundo dizem,

servem para colocar a criança na normalidade, isto é, na zona central

da curva de Gauss . Para evitar uma situação em que a escola con11 -

tinua a acolher qualquer novo doutor Knock , a análise crítica dos 12

diagnósticos sugeridos e a conscientização coletivo do risco de de-

cisões que descrevem as crianças como doentes, porque desviam de

uma norma, impõem-se. Só assim poderá se evitar a generalizada

“mediocretização” de uma população. Lembro o perigo com o exem-

plo dado pelo grupo Neerlandês Babel , acerca da criança rotulada 13

de autista. A partir da prática dos seus membros, na psicologia, na

psiquiatria, no ensino, mas também na sociologia e no jornalismo,

mostram que não se trata de fantasia, quando falamos da hiperquan-

tificação da pessoa.

A escolarização da educação levanta ainda outras perguntas, que,

muitas vezes não são formuladas. E não o são porque a naturalização

da escola leva a considerar que colocar estas perguntas seria a mes-

ma coisa como levantar dúvidas acerca da existência de um fenó-

meno natural como, por exemplo, a atração gravitacional.

À qual voltamos mais a frente.11

O doutor Knock é a personagem que Jules Romain põe em campo no romance O triunfo da 12

medicina. Recém chegado à aldeia sem doentes, o médico vai rapidamente convencer todos os aldeões que têm uma doença qualquer que ele poderá tratar. Pouco tempo depois, perante o espanto do velho médico que ele substitui, ele está a tratar de toda a aldeia, convencendo o próprio colega que ele também tem que se fazer tratar.

Ver supra.13

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Algumas destas perguntas são: - Porque é que na escola não só se teima em considerar padrões,

como se avalia as crianças quase sempre em função daquilo

que lhes falta, em vez daquilo que já conseguem fazer e sabem? - Porque é que a medição do saber das crianças — e raramente

do conhecimento — se mede através de provas de repetição de

informações transpostas, provas que banem a criatividade? - Porque é que há professores que se revoltam, quando uma pro-

va apela ao raciocínio em vez de apelar a repetição? - Porque é que a história e a geografia mudam radicalmente em

função do local onde é ensinado e certificado?

Podemos a partir destas perguntas fazer uma, mais genérica: qual

é a relação entre a avaliação baseada no desvio à norma e a

manutenção das crianças num estado de in fans, etimologicamente,

de quem não tem o direito à palavra.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Problema 2 — a medição da normalidade local

Os currículos nacionais constroem visões localizadas e eventualmente

dogmatizadas sobre a realidade e sobre a relação societal.

Na educação escolar, e em termos gerais:

• os professores são funcionários que fazem a medição da sua apro-

priação.

• a medição da apropriação do currículo impede o desenvolvimento

de visões holísticos e despido de preconceitos sobre o conhecimen-

to e a realidade percepcionada.

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O conhecimento, a escola e as disciplinas

PROBLEMA 3: OS TRÊS M

Conhecimento disponível, conhecimento autorizado, saber parti-

lhado.

Da pansofia ao infinito tudo sobre infinito nada.

Espaço de instrução disciplinar ou de deslumbramento cíclico.

Porque é que a instalação da escola parece ir par a par com a instalação das

disciplinas?

É possível pensar a escola, sem estar condicionado pela forma como a hu-

manidade organiza o conhecimento que coletivamente gerou?

Pretende-se que este conhecimento seja universal, mesmo que, aparente- e

paradoxalmente, aquando ele se avoluma, ele o é cada vez menos?

A abordagem escolarizada do conhecimento obriga a recortá-lo em áreas e

sub-áreas?

É possível olhar para a apropriação do conhecimento de uma forma integra-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

da. Como lembrar a pansofia de Coménius, a ética cosmopolita de Dewey, o

conceito de uso de linguagem diversas?

Conhecimento disponível, conhecimento autorizado, saber par-

tilhado

Existe um fosso grande entre o conhecimento existente e o conhe-

cimento disponível para todos. Há um desfasamento entre o que se

teoriza e concetualiza e o que é disponibilizado desta concetualiza-

ção, através dos currículos propostos para a educação escolar geral.

Este fosso decorre na maior parte das vezes do facto que não é pos-

sível disponibilizar de imediato, a um grupo alargado de pessoas,

com conhecimento prévio variado, novas descobertas. Outra dificul-

dade tem a ver com o conhecimento prévio de cada uma das pessoas.

É diferente descrever a mecânica quântica, recorrendo à física teórica

adequada para o fazer, ou fazê-lo recorrendo a metáforas recolhidas

no mundo da observação humana para descrever situações sub-

atómicas.

Digamos que aqui temos uma dificuldade que decorre do facto

que alguns dos instrumentos utilizados e das linguagens desen-

volvidas serem tecnicamente muito avançados. O conhecimento é tão

vasto que a plena perceção de determinados fenómenos obriga a fa-

zer escolhas.

Quem decide investir num determinado ramo e apropriar-se da

linguagem para o perceber, define ao mesmo tempo as áreas do co-

nhecimento para as quais não terá tempo de vida suficiente para as

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

entender profundamente. Aqui aceitamos necessariamente que a

obra que construimos, e que é o edifício geral do conhecimento hu-

mano, é uma obra no qual se participa em cooperação, disponível

para todos, e para a qual cada um poderá contribuir em função do

ponto de entrada que escolheu.

Contudo existe um outro fosso, fruto dos dogmas desenvolvidos

por quem detém poder sobre outros. É o fosso entre o conhecimento

disponível e o conhecimento autorizado. Ao longo dos séculos, o

poder tem mostrado ter força para não autorizar a divulgação do

conhecimento existente, mesmo que disponível para quem sabia ler.

O conhecimento acerca da mecânica celeste é um bom exemplo de

conhecimento não autorizado, por ser contrario às crenças de quem

adere a determinado dogma e que representa numa cadeia de

poder . Um exemplo de outra ordem é como a aplicação dogmática 14

de preceitos puderem ritualizar o conhecimento do corpo: em longos

momentos da história, embalsamadores conheciam a geografia do

corpo como mais ninguém. A representação da dissecação de corpos

humanos não era permitido a qualquer um.

A versão Lassaliana da petite école é uma expressão da crença e da

interpretação limitativa do conhecimento ao nível da escolarização: é

claramente assumido que nem todo o conhecimento convém a todas

as crianças.

Há muitos autores que exploram este tema. Ver, entre outros, Popper (1992), Dawkins 14

(2017), Sagan (1997)

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A organização da escola em disciplinas, diversificando-as con-

forme os cursos, concretiza o fosso entre conhecimento existente e

conhecimento disponível ou autorizado.

O poder não se limita a definir o que do conhecimento autoriza.

Em muitas situações, ritualiza e dogmatiza também as relações so-

ciais, influenciando assim o saber experienciado. Rentes de Carvalho

(2016) testemunha da sua própria experiência em relação aos equívo-

cos que cultivou em torno do conceito e da prática de liberdade,

quando chegou à Holanda, em 1957. Na altura, este país era consid-

erado um modelo para as questões da liberdade de relação com o

outro e de liberdade de expressão, enquanto, como o autor refere, o

próprio era um pobre, vindo de um país pobre, onde a liberdade era

uma miragem. Descreve com algum humor como descobriu que a

liberdade envolvia, nos Países Baixos, uma capacidade de auto-con-

trolo e uma vivência de controlo social, que lhe era completamente

desconhecido, e que lhe fez perceber que ser livre não significava

fazer tudo que lhe ia na cabeça, como tinha inicialmente pensado.

A combinação do acesso ao conhecimento limitado por autoriza-

ções dogmáticas e da relação com o outro, marcado por experiências

anteriores divergentes é por si só um obstáculo à interação harmo-

niosa entre indivíduos ou grupos de indivíduos que se encontram

pela primeira vez. A própria construção de uma base de entendimen-

to e de explicitação de conhecimento do mundo natural e social,

quando as concetualizações são marcadamente diferentes, exige um

esforço de escuta muito grande. No contexto que Harari (2017) apre-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

senta como de dogmatização liberal do projeto humanista, em que se

leva ao extremo o conceito de liberdade individual — que se traduz

na ideia geralmente induzida, mas falsa, de “o indivíduo decide” —

o encontro com o outro, que não partilha este dogma, é tendencial-

mente visto com desconforto e com medo.

No mundo ocidental, que ainda se considera economicamente e

culturalmente mais rico que outros partes do planeta, este conjunto

de factores levou à arrogância sobre o outro, e a uma ignorância acer-

ca das vivências do outro. Harari ilustra-o com uma história de uma

crueldade efetiva e simbólica enorme, quando relata o encontro entre

a jovem afegã Reem, que aborda a chanceler Merkel em alemão per-

feito, questionando a sua expulsão do país, ao qual Merkel lhe res-

ponde que a lei é dura, mas é a lei, e que esta lei não a permite ficar

em território Alemão. Quando a jovem se desfaz em lagrimas,

Merkel faz um gesto de aconchega. Só foi numa tentativa de ameni-

zar críticas, que Merkel concedeu o visto de permanência à família

de Reem, o que fez com que teve que encarar a fúria de outros gru-

pos da população Alemã. O indivíduo não decide, ele é levado a de-

cidir em determinados assuntos ou ainda obrigado a decidir em

função de ordens do poder, em outras situações.

Harari (2017) aborda também o conhecimento, interlaçado com a

ética. Para tal, compara o conhecimento da Europa medieval com o

conhecimento na Europa depois da revolução científica. Postula que,

até o advento da revolução cientifica, o conhecimento poderia ser

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

escrito com a fórmula conhecimento = textos x lógica , ou seja, a 15

verdade vem dos textos sagrados, interpretados pelos sábios, dando

assim significado ao próprio conhecimento.

Com a revolução científica, a fórmula altera-se e pode ser apre-

sentada como conhecimento = dados empíricos x matemática. Para o

pensador que vive na era da revolução científica, a verdade vem dos

dados interpretados. A interpretação faz-se recorrendo à linguagem

matemática, apresentada como a nova língua universal da ciência.

Contudo, nesta formula, ficou de fora a ética, ou com as palavras do

autor:

A fórmula científica do conhecimento levou a descobertas notáveis

nos campos da astronomia, da física, da medicina e de muitas out-

ras disciplinas. Mas tinha uma enorme desvantagem: não conseguia

tratar de questões relacionadas com os valores e com o sentido. Os

eruditos da Idade Média podiam afirmar com toda a certeza que

matar e roubar é errado e que o objetivo da vida humana é fazer

aquilo que Deus nos ordena, porque era isso que as escrituras

diziam. Já os cientistas não podiam produzir juízos éticos semel-

hantes. Não há nenhum dado nem nenhuma habilidade matemáti-

ca que possam provar que é errado matar alguém. Contudo, nenhu-

ma sociedade consegue sobreviver sem esses juízos de valor.

(Harari, 2017 p. 266)

Chegando aqui, Harari propõe uma terceira fórmula, a da

sabedoria ética, na qual conhecimento = experiências x sensibilidade.

Como o próprio Harari explica, utiliza a ideia de multiplicação para tornar os dois termos 15

importantes e interligadas. A ausência de um dos termos tornaria o conceito de conheci-mento vazio de sentido.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Dito de outra maneira, a verdade vem das experiências vividas e in-

corporadas por cada um dos indivíduos. Para o autor, pode-se aqui

situar o projeto humanista:

O humanismo olha para a vida como um processo gradual de trans-

formação interior que, através da experiência, nos leva da ignorân-

cia ao esclarecimento. O objetivo mais nobre da vida humanista é o

desenvolvimento integral do conhecimento por meio de um vasto

leque de experiências intelectuais, emocionais e físicas.

(Harari, 2017 p. 268)

Contudo, aqui também está o projeto humanista dogmatizado

sujeito a crenças. Está o projeto humanista, diminuído para um de-

terminado espaço num determinado tempo, onde a interação de

poucos indivíduos se faz com outros poucos indivíduos, que mutu-

amente se reconhecem. Como afirma Steiner (1992), estes indivíduos

constroem-se uma história. Têm mesmo necessidade de se construir

uma história, para se sentirem congregados. Além disso, esta mesma

história co-construído, remete os indivíduos, ou deveria remete-los,

para os tempos em que tudo era melhor.

Como Steiner avisa, podemos também perceber esta construção

da história de uma outra forma. Trata-se de uma narrativa que con-

siste numa imaginaria — uma construção de imagens — ao mesmo 16

tempo, uma falsificação desta própria narrativa.

As vezes literalmente. Lembro por exemplo, as imagens de Epinal, entre as quais as muitas 16

que vangloriam a história dos franceses, desde os tempos anteriores à própria existência da França!

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Parece-me de primordial importância que nos lembremos disso

sempre que evocamos os contributos de um pensador, centrado so-

bre o conhecimento, os saberes, a sabedoria, a experiência coletiva ou

individual. Temos que nos questionar sobretudo acerca dos conceitos

próprios do tempo e do local no qual o pensamento em questão é

desenvolvido e o conhecimento é produzido.

Assim, com o tempo, a interpretação factual está aberta a se

tornar uma interpretação metafórica, mesmo no caso do conhecimen-

to baseado em dados empíricos, porque estes dados são os que a ob-

servação permitem recolher. E a observação está sujeita à forma

como os órgãos de sentido são utilizados pelo observador, mesmo

reforçados por instrumentos manufacturados. Ainda no século XIX,

astrónomos conceituados descreviam os canais observados em

Marte, utilizando-os como prova da existência de vida fora do plane-

ta terra. Aqui reencontramos, com maior nuança, as fórmulas que

Harari apresenta e a justificação do uso do conceito de multiplicação

nelas.

Da pansofia ao infinito tudo sobre infinito nada

Cauly (1999) relata o encontro entre Descartes e Coménius, quan-

do o segundo se estabelece a primeira vez na Holanda, na cidade de

Leiden. Trata-se de um confronto entre duas visões sobre o conheci-

mento. Por um lado há o racionalismo de Descartes, os dados em-

píricos e a matemática, a filosofia, por outro lado há uma visão do

mundo do devoto e protestante Coménius, que defende o conheci-

mento de tudo, a pansofia, integrando filosofia e teologia.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Para Coménius, a pansofia junta a observação racional à obser-

vação espiritual e o seu desenvolvimento tinha um propósito preciso.

Tendo-a concetualizado, ela facilitava a tarefa de qualquer sábio, que,

para o pensador e pedagogo, consistia na obrigação de ensinar abso-

lutamente tudo a absolutamente todos, condição para todos os seres

humanos perceberem a natureza das coisas e por consequência

pudessem situar a sua relação com ela, bem como a relação entre

eles. Cauly refere a carta de Descartes a Mersenne, no qual, ainda

que crítico, e esperando que Coménius não ira misturar as coisas san-

tas com as profanas, Descartes mostra um certo interesse na ideia da

pansofia. Já depois da morte de Descartes, Coménius considera que o

ser humano não é ser humano só porque pensa, mas na totalidade do

seu espírito. Junta “sonho, logo sou” ao “penso, logo sou”. O ser

humano, diz Coménius, não é unicamente ser do pensamento, mas

também é ser da ação.

O avanço da construção do edifício do conhecimento, torna a

proposta de Coménius, de “ensinar absolutamente tudo a absolutamente

todos”, uma tarefa impossível de realizar. Existem atualmente de-

masiados desenvolvimentos em todos os ramos do saber, algo que

Coménius não previa, ou não podia prever. De certa forma, não se

trata de analisar a natureza para conhecer a obra de Deus. Trata-se de

perceber a natureza como ela se apresenta e de como agir em relação

a ela.

Baseado em conhecimento geral, simples e geralmente aceite,

mesmo se falsificável, porque não do âmbito da crença, existe um

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

conhecimento especializado que é do domínio de poucos, cada um

na sua área de especialização. Até é preciso ter algum cuidado nesta,

cada vez mais apertada, procura de novos factos, no mundo

académico dominado pela visão liberal do humanismo, com um

acréscimo de investigadores, cada um com a necessidade de investi-

gar alguma coisa, para parafrasear Steiner (2017). Este filósofo con-

stata com alguma amargura que, em muitas situações, mais do que

um trabalho sério e ponderado, se desenvolve um certo “lixo

académico”:

A prossecução das teses, as dissertações, não deveria ser autorizada

se as mesmas não produzissem, pelo menos potencialmente, uma

contribuição válida. A qualidade, não a quantidade, deveria ser o

fator decisivo no que toca às publicações. A espiral involutiva da

especialização redutora poderia ser parada..

(Steiner 2017: 110)

As vezes não fica claro se falamos de especialização ou pseudo-

especialização: a necessidade de se destacar no meio da concorrência

feroz abre caminho ao argumento para a solução desejada e interpre-

tações duvidosas. Tanto nas ciências naturais, como nas ciências so-

ciais, existem casos de fraude. No caso das ciências sociais, a fraude

pode ter um efeito decisivo sobre o percurso de uma pessoa, ou um

grupo de pessoas. Tal como os casos que emergem de análises

económicos mal conduzidos mais facilmente conhecidos pelo grande

público, existem também aqueles que se refletem na condução e no

controlo dos projetos de aprendizagem das pessoas, na educação em

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

geral, mas sobretudo ao nível da escolarização regulada e obri-

gatória.

A escolarização obrigatória tem, na sua origem, pouco a ver com

o desejo de aprendizagem. Ela constrói-se à luz da ideia do ensino,

da instrução e da educação dos bons costumes. Com a gradual gene-

ralização da educação escolar na Europa renascentista, observamos

facilmente pelo menos três grandes linhas de pensamento que se

traduzem em linhas de atuação. Subjacente está a atuação do peda-

gogo, do adulto, sobre a criança.

Lidas no seu tempo e seguindo a sua evolução, encontramos, em

pleno reforma, a proposta de Coménius, de levar o conhecimento a

todos. A proposta inscreve-se num projeto de levar ao entendimento

de todos “a obra de Deus”. Se o desejo da pansofia não vingou, a pro-

posta de organizar 3 ciclos de educação básica, de 6 anos cada,

seguida de um tempo de formação profissional nunca inferior a 4

anos, soa muito atual. Foi a sugestão deixada em 1626 por Coménius,

aplicável a todas as crianças, meninas e meninos.

A educação maternal, de 6 anos era, no seu tempo, a educação em

casa, com a mãe.

A este, seguia-se 6 anos de “escola na língua da criança”, de ensi-

no elementar. Aqui, o mais notório é a forma como relaciona a arte de

ensinar com a capacidade de “falar a língua da criança”: literalmente,

quando propõe o ciclo de 6 anos em que o professor utiliza a língua

local, mas também metaforicamente, quando fala da necessidade de

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

encontrar formas de mostrar e explicar os fenómenos, com uma

gradual complexificação.

Depois do primeiro ensino, “na língua da criança”, Coménius

propõe 6 anos de “escola na língua da ciência”. Ao ensino básico,

seguia-se a formação profissional, em cursos de pelo menos 4 anos.

Algumas destas ideias serão retomadas por Von Humboldt,

quando organiza a educação básica e superior. Contudo, agora esta-

va no centro das atenções a reconstrução patriótica da Prussia e da

Alemanha, e não mais o acesso universal ao conhecimento.

Aproximadamente cem anos depois de Coménius, Jean Baptiste

La Salle irá, com as petites écoles, introduzir a noção de diversificação

na educação escolar. Decorre do raciocínio subjacente que, ao con-

trário do que Coménius argumentava, nem todos tem que saber

tudo : enquanto o conhecimento erudito e cientifico está disponível 17

para alguns, para a maioria das pessoas, uma escola básica será o

suficiente. Esta escola básica terá sobretudo a disciplinarização como

propósito: bem educados, sabendo o essencial dos preceitos e das

regras de conduta, os jovens poderão ocupar a sua posição humilde

na sociedade. De certa forma, La Salle irá combinar algumas pro-

postas de Démia — que propunha escolas obrigatórias onde, para

proteção do burgo e dos burgueses, os pequenos vagabundos da

cidade de Lyon pudessem aprender o necessário para se tornarem

servidores úteis — com a contra-reforma que se organizou na França

como no resto do Sul da Europa.

La Salle advoga que nem todos têm que saber tudo, muito menos o Latim. A língua mais 17

acessível para ler os textos sagrados, também a língua da ciência é domínio reservado.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Como sabemos, de La Salle, a escola herda a organização de gru-

pos em torno de um mestre-escola. Para La Salle, este mestre-escola

aplica de igual forma um conjunto de regras de conduto, explicitados

num preceituário, a todas as crianças sob a sua vigilância. A partir

daí, e em termos mais gerais, a escola organizada evolui, criando

grupos homogeneizados artificialmente, para assim facilitar a in-

strução, neste caso sinónimo de educação escolar.

A reação às propostas de La Salle virá sobretudo com os escritos

de Rousseau. Este não é adepto de ensinar absolutamente tudo a ab-

solutamente todos, como fica claro quando considera que até seria

contraproducente ensinar à criança do campo o que não lhe deve ser

ensinado. O raciocínio de Rousseau é que no campo, longe da cor-

rupção da cidade, a criança pode manter a alma pura desde que não

seja sujada pelos adultos.

Contudo, Rousseau introduz para a relação educativa a ideia do

desejo da criança. Sugere o cenário pedagógico que a criança poderá

explorar ao seu gosto, avisando contudo que só se deve deixar fazer

a criança o que ela quer fazer, desde que ela faça aquilo que o adulto

quer.

O cenário pedagógico subjacente às propostas de Rousseau per-

mite, entre outras, desenvolver estas duas ideias: - Dentro do grupo e da organização do grupo, há espaço para o

individualismo; - Ao dar protagonismo à criança, há espaço para olhar de forma

dialéctica a relação entre a aprendizagem e a educação.

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Espaço de instrução disciplinar ou de deslumbramento cíclico

Não é difícil de perceber, como Foucault nos mostrou, que quem

detém poder — político, espiritual, simbólico, legitimo, … — se sinta

muito à vontade com a proposta Lasalliana da educação escolar. Os

preceitos propostos nos “Conduites”, inicialmente para as escolas

religiosas, mas, com Napoleão, também para as escolas da república,

acomodam na perfeição os elementos necessários para uma institui-

ção reguladora do Estado-Nação. A educação escolar, baseada no

paradigma educativo da instrução alastra-se em todo o mundo oci-

dental e é exportada para as colónias, por maior força de razão.

O espaço de instrução disciplinar acompanhou bem a industriali-

zação e a deslocação massiva do campo para a cidade. Deu provas de

eficácia para obrigar grandes grupos de pessoas a se sujeitar a um

novo pensamento acerca da produção. Como nos explica Enguita

(1989), a escola da instrução foi necessária para que o artesão, habi-

tuado a produzir a peça, se reconverte a operário que vende o seu

tempo de trabalho, numa linha de produção que não mais acompan-

ha do início até ao fim.

Com a escola da instrução, o projeto pensado pelo próprio não é

necessário. O aluno passa a ser objeto no projeto do mestre, colabo-

rando à força ou seduzido a fazê-lo, através de um cenário criado

para o efeito. Esta sedução é quanto mais necessário, quando a co-

laboração à força origina focos de resistência de tal ordem que a

própria disciplina que a instrução requer seja posta em causa.

Grande parte dos programas de diversificação curricular dirigem-se

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

a grupos de alunos especificos, como são vagamente e eufemicamente

identificados.

Podemos também descrever a escola como sendo um espaço in-

termédio, para utilizar um termo da antropologia. Este espaço inter-

médio pode ser um espaço de instrução, como acabamos de descre-

ver, pode ser um espaço cultural, e mesmo, um espaço cultural inter-

ativo.

Um espaço cultural interativo traz-nos três ideias à cabeça: - nesta escola, mantemos a autoria e a autoridade, dialeticamente

cultivadas pelo auctor. Este não é mais o sábio-funcionário que

transpõe o conhecimento em sabedoria para o discípulo. Auctor é

todo aquele que se envolve no projeto de trabalho intelectual,

analisando o objeto em estudo, recorrendo ao conhecimento

disponível e elaborando conclusões provisórias a partir desta

análise; - neste espaço, todo e qualquer projeto de trabalho é lançado por

todos que querem participar nele. Todos os projetos têm uma fase

de planificação, uma de execução e uma de apresentação de resul-

tados. Cada projeto consiste assim na realização de uma obra cul-

tural autêntica, como o designou Filomena Serralha (2009), fruto

de um trabalho executado em cooperação. - este espaço possibilita reganhar a abordagem holística da reali-

dade e da sua construção social. Atualiza de certa forma a propos-

ta pansofica do Comenius, não no sentido ultrapassado de fazer a

interpretação da obra de Deus, mas para reconciliar no conheci-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

mento a ciência e a ética. Poderia se reagrupar duas das formulas

de Harari: Conhecimento = (dados empíricos x matemática) x

(experiências x sensibilidade).

Será que temos aqui uma sugestão que liga tanto a educação for-

mal como a educação não-formal, a projetos de trabalho intelectual

de crianças e adultas, proporcionando a antropogogia à qual aludi há

pouco?

Nesta integração, o ser do pensamento e o o ser da ação, segundo

Coménius separados por Descartes, poder-se-iam reencontrar, não de

forma mística, mas como dois componentes que temos que ver sob

uma perspectiva holística.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

problema 3 — Entre a normalização do conhecimento existente

e abertura para a elaboração de projetos culturais, a educação

escolarizada tende para que paradigma educativo?

A humanidade é refém do seu próprio sucesso de gerar conhecimen-

to de duas ordens:

• conhecimento para a interpretação da natureza através da formu-

lação de hipóteses refutáveis;

• formulação de hipóteses do seu próprio funcionamento cultural,

como indivíduo aprendente,

objetivando estas mesmas hipóteses naturalizando este mesmo

funcionamento cultural.

A naturalização do funcionamento cultural sujeita a auto-análise e o

confronto com o outro

• através da norma;

• eventualmente através da re-interpretação da norma;

• raramente através da interação instituinte da norma.

Na educação escolarizada o confronto com o outro origina paradig-

mas educativos de relações sociais que podem ser:

• de instrução

• de aprendizagem

• de comunicação

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O desejo, a aprendizagem e o ensino

PROBLEMA 4: OS TRÊS M

A escola como instituição de poder do Estado-Nação

Crenças na educação e ciências da educação

O espaço cultural interativo de cooperação

O ensino na escola relaciona-se com a aprendizagem desejada pelas pes-

soas, individualmente ou em grupo?

Como olhar para a educação escolar?

Podemos perceber, no contexto escolar, o paradigma da instrução, a norma-

lização do material escolar, a estandardização das idades propícias a apren-

dizagens escolares, como resultado de um pensamento científico ou como o

resultado de um pensamento baseado em crenças?

E como olhamos para o paradigma da comunicação, quando olhamos para

a escola na sua forma?

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A escola como instituição de poder do Estado-Nação

Como já referi, Foucault (1979) mostra como a instrução é algo

próprio do Poder. A escola Lassalliana é a personificação desta ideia.

As instituições disciplinadoras do Estado que Foucault evoca são a

instrução militar, a igreja, o hospital, a prisão e a escola. Já tive a

oportunidade de mostrar como a escola da instrução incorpora os

elementos principais de cada uma das outras instituições (Paulus,

2013). Lembro aqui só que foi no hospital que a escola foi buscar os

exames, na igreja as ritualizações, na instrução militar a disciplina

hierarquizada e na prisão o panoptismo.

Na escola da instrução, estamos a depositar, temos a educação

bancária, como nos mostrou Paulo Freire (1970). Nesta situação, a

instrução revela frequentemente a arrogância que o poder facilmente

acarreta.

A escola da instrução é a escola do estrado, real ou simbólico, no

qual a oração do professor transpõe a palavra de Deus, a palavra do

Sábio, a palavra de quem sabe ler a palavra, a palavra de quem in-

terpreta a palavra para ti. A aprendizagem é conduzida. A trans-

posição didática garante um trabalho para as pessoas e não com as

pessoas (Freire) e explicita como a realidade deve ser lida e interpre-

tada.

Numa situação de instrução, habitualmente, conduz-se para que a

aprendizagem individual corresponda a uma capacidade de correta

reprodução do que foi ensinado. Os testes e exames servem para o

verificar. Os resultados de testes e exames não só são observados em

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

relação à norma, ou seja, ao que é apresentado como norma, mas são

também utilizados para comparar instruíndos entre si. Assim cada

indivíduo é convidado a verificar quão melhor ou pior é em relação a

todos os outros que entraram no lote comparativo.

Os Estados também comparam resultados. Se existe quem con-

tinua a fazer da comparação de resultados um simples concurso,

como se de um festival se tratasse, há quem recolha e compara in-

formação tentando de extrair variáveis, para perceber o porquê do

sucesso de uma determinada política num determinado contexto.

Habituamo-nos à recolha e interpretação em estudos internacionais,

tendo como objetivo perceber como um sistema se pode tornar mais

equitativo, ou como ele pode contribuir para aumentar o índice de

desenvolvimento humano num Estado específico.

Riccardo Petrella (2007), economista e professor catedrático emeri-

tus da Universidade Católica de Leuven (Bélgica), mostra-nos como a

história do mundo que nos é contado e que se resume à “só existe um

caminho” ou à “eis o fim da história” não se baseia na evolução do

planeta, mas se baseia em assunções de que tudo é mercado, e que

todo mercado esta sempre relacionado com a posse privada dos bens

materiais e imateriais.

A partir da análise do estado do mundo, baseado no relatório do

grupo de Lisboa , apontando os limites à competição, este pensador 18

nos propõe uma outra história do mundo, que tem uma premissa:

declarar universalmente a pobreza como ilegal. Associado a esta

Grupo de Lisboa (1994). Limites à Competição. Lisboa: publicações Europa América18

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

premissa está um conceito de bens materiais e imateriais planetários,

que são propriedade comum, além-humano. Três bens não transac-

cionáveis como se de mercadoria se tratasse são o ar, a água e os

raios solares.

Desmonta os hábeis argumentos de quem se apodera dos bens no

caso da água e dos raios solares. Para quem mercantiliza estes bens, a

diferença está no facto de se tratar de água ou raios solares no seu

estado natural, versus água potável tratada ou raios solares trans-

formadas em energia armazenada.

O que fica claro, das duas histórias do mundo que Petrella apre-

senta, a história do mercado dominante, contada pelo poder domi-

nante e a história das pessoas no planeta, contado por grupos da so-

ciedade civil e parcialmente retomada por algumas associações de

estados-nações, é isso mesmo: trata-se de formas de contar a história

da história. Em toda a investigação, dados e descrições de factos po-

dem fazer surgir aquela imagem que o contador da história quer fa-

zer surgir, negando aquilo que não condiz com a crença que se

procura divulgar.

Nas ciências sociais, a fronteira entre a ciência e a crença, alimen-

tada por omissões ou construções de universos, é tão ténue como nas

ciências naturais. As consequências do desenvolvimento de teorias

que põem de lado a informação e os factos que podem falsificar a

própria teoria — o princípio da falsificabilidade de que Popper fala

— podem porém ter consequências muito mais nefastas, do que uma

falsa teoria acerca da transmutação dos elementos, como foi a

alquimia. Podem inclusivamente terem consequências nefastas sobre

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

a própria natureza, como a filtragem dos factos, conforme a história

que se quer contar em relação ao aquecimento global parece confir-

mar.

No plano societal, a história do poder dominante coloca a hu-

manidade num permanente estado de desequilíbrio, havendo

grandes grupos mantidos no nível do auxílio, criando dependências

do mais frágil em relação ao mais forte. A história das pessoas do

planeta coloca as mulheres e os homens num estado permanente de

desequilíbrio que lhes convida a cooperar indeterminadamente per-

ante os desafios, criando uma rede de interdependências dialetica-

mente definidas.

Crenças na educação e ciências da educação

Poderia se dizer que as crenças na educação tornam as coisas dis-

cutíveis não discutíveis, enquanto as coisas não discutíveis se man-

têm não discutíveis.

Convém lembrar aqui que a crença no dogma, ou seja, a assunção

de que existe uma verdade absoluta não questionável, é instaurado

por quem tem, por quem representa ou por quem se arroga a ideia

que tem o poder absoluto.

Com a naturalização da escola, foi-se instalando na cabeça das

pessoas, ao longo dos últimos 100 a 150 anos, que a forma escolar de

relações sociais é una e que se rege pelo paradigma da instrução, no

qual o aluno é sujeito-objeto da relação do mestre com o conhecimen-

to. Como o mostraram Tyack e Tobin (1994) a gramática da escola-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

rização tende a ser apresentada como prescritiva e não como des-

critiva.

Uma das características próprias da crença é o questionamento da

própria ciência. É assim quando os criacionistas aleguem que o dar-

winismo não passa de uma fantasia, porque contradiz as Escrituras,

mas também é assim quando se atribui o estatuto de falsa ciência às

Ciências de Educação quando, com a fenomenologia, elas colocam

interrogações acerca do pensamento positivista de causa-efeito na

educação. Entre nós, é conhecido a atribuição do termo eduquês por

quem não aceita este ramo do conhecimento das ciências sociais.

Em ambos os casos recorre-se a citações fora do contexto, extratos

incompletos de estudos ou parciais de apresentação de dados, mistu-

rado com ataques gerais aos investigadores referidos, não pelo tra-

balho produzido, mas pelas pessoas que são: têm um pensamento

divergente dos atacantes.

As ciências de educação dão nos ferramentas para entender a di-

versidade humana quando olhamos para a aprendizagem e a edu-

cação. Observem-se correlações. Penso que com as ferramentas de

que elas dispõem, as coisas discutíveis são discutidas enquanto se

procurar definir o que eticamente não é discutível.

Relacionado a tendência de uso da gramática da escolarização

como instrumento prescritivo, ela introduz modos gerais de fun-

cionamento com efeitos secundários úteis para a manutenção da hi-

erarquia de relações. Isto pode ser o caso para as relações no traba-

lho, como Enguita descreve:

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

A sucessão de períodos muito breves — sempre de menos de uma

hora — dedicados a matérias muito diferentes entre si, sem necessi-

dade de sequência lógica alguma entre elas, sem atender à melhor

ou pior adequação de seu conteúdo a períodos letivos mais longos

ou mais curtos e sem prestar nenhuma atenção a cadencia do inte-

resse e do trabalho dos estudantes; em suma, a organização habitu-

al do horário escolar, ensina ao estudante que o importante não é a

qualidade precisa de seu trabalho, a que o dedica, mas sua duração.

A escola é o primeiro cenário em que a criança e o jovem presenci-

am, aceitam e sofrem a redução de seu trabalho a trabalho abstra-

to. (1989, p. 180).

A redução do trabalho a uma atividade abstrata também é o

visível na avaliação que se faz da evolução das crianças e dos jovens

escolarizados.

Como o mostrou Marcel Lesne, o modo pedagógico de trabalho

mais comum na escola recorre a testes de avaliação que o autor iden-

tifica como avaliação de desvio à norma. São os testes que quem passou

pela escola bem conhece: de resposta simples, de resposta múltipla,

de desenvolvimento, o objetivo é sempre o mesmo. Procura-se saber

o que o avaliado reteve da informação que lhe foi apresentada, seja

através de um suporte de informação, seja diretamente pelo adulto,

que, na sua função de docente, aplicou a transposição didática con-

siderada apropriada. Em muitos casos nem sequer é avaliado a re-

lação que o escolar estabeleceu com o conhecimento, mas simples-

mente se consegue reproduzir a relação com o conhecimento que foi

estabelecida pelo professor. Dito de outra forma, é pedido ao estu-

dante de verificar se a informação dada no teste corresponde com a

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

informação dada algum tempo antes, em aula, ou então de repro-

duzir o raciocínio para aplicar a um exercício de pensamento, em

tudo igual ao que que lhe foi apresentado num exercício de pensa-

mento equivalente, durante uma aula.

Por decisão própria, o docente valoriza as perguntas do teste,

dando a cada uma delas um peso relativo. Depois de recolher as res-

postas obtidas, avalia-as, atribuindo a quem respondeu, uma parte

ou a totalidade do valor que lhe tinha reservada, em função da

prestação do estudante na sua capacidade de reprodução. Em muitas

situações segue uma classificação de pessoas, em função da pontu-

ação obtido.

Os testes padronizados chegam-nos de contextos em que faz sen-

tido medir o desvio à norma. É o caso para perceber se haverá risco

de inundações (medição da altura da água, no rio, em relação a al-

tura média e o momento do ano), ou risco de saúde (medição da

temperatura do doente, em relação à temperatura corporal de um ser

humano saudável). Estes testes têm também utilidade para entender

se fenómenos previsíveis na física ou na química e nas suas apli-

cações práticas, decorrerão de forma seguro ou se existe o risco de

nada acontecer ou de tudo ficar em perigo. Em situações físicas rela-

tivamente simples, de causa-efeito, e desde que esteja definido qual é

o resultado expectável (de uma reação química, da utilização da cor-

rente elétrica, da provocação de uma explosão controlada, etc.), o

teste para medir eventuais desvios ao padrão, revela-se extrema-

mente eficaz.

A importação para a educação escolar dos testes padronizados

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

reduz as crianças a objetos a serem observadas e entendidas em

função de um padrão previamente estabelecido e que lhes é externo.

Não é da mesma ordem a constatação do ponto de equilíbrio dos

reagentes numa reação química e a correlação, nos seres humanos,

entre uma certa idade e a aptidão para desenvolver a capacidade de

escrita.

Na primeira situação, o teste para medir a concentração dos

reagentes, para depois corrigir os valores, levará sem dúvida ao re-

sultado desejado.

Na segunda situação, o teste para medir a capacidade de repro-

duzir grafismos não acrescente nenhuma informação nova. Confirma

simplesmente que cada criança reproduz o que consegue reproduzir,

e que, mesmo havendo tendências e correlações, nem todas as cri-

anças desenvolvam a aptidão para a escrita num momento preciso

que pode ser expresso em anos, meses ou dias de vida.

Num processo de aprendizagem, um padrão não traz informação

acrescentada. O educador não precisa de medir nenhum desvio a

nenhum padrão, para, em função da sua observação do desenho que

uma criança faz da fala (Vygotsky), saber como poderá interagir com

ela e continuar a mediar a sua aprendizagem da escrita.

A crença na eficácia da educação escolar baseada na instrução

baseia-se em rituais educativos que obedecem a um simples esquema

de causa-efeito. A escola da instrução tenta eliminar variáveis que

poderão complicar os processos de trabalho do docente-reprodutor,

razão pela qual procura homogeneizar os grupos de instruídos.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Com o avanço nas ciências de educação, mas também na neuro-

psicologia, percebemos gradualmente que a aprendizagem é um pro-

cesso individual e relacional, complexo.

A escola da instrução não corresponde às exigências dos apren-

dentes ativamente envolvidos no seu projeto de trabalho intelectual,

nos projetos de aprendizagem individuais e coletivos.

O que o avanço da ciência mostrou sobretudo é que a educação

escolar e alargada a toda a população obriga a um pensamento mais

complexo em relação à forma escolar, ou seja, às formas escolares de

relações sociais, necessárias para as interações que promovem a

aprendizagem.

Ironicamente, mostrou claramente que os crentes da escola básica

da instrução têm razão quando dizem que esta escola não serve a

população toda, mas somente à quem se adapta a sistemas impostos.

Mostrou também que a dificuldade de trabalhar com todos não deri-

va de algum desvio a um padrão imaginado de parte da população

escolar, mas da própria inexistência do padrão.

As correlações observadas entre idade e aptidão para o desen-

volvimento de competências e de aprendizagens culturais dis-

tribuem para todas as variáveis a população numa curva em forma

de sino, mais conhecido como curva de Gauss.

Contudo a resposta não está em “corrigir” todos os indivíduos

para que se situassem no centro da curva, como se de uma mega-op-

eração de promoção da mediocridade se tratasse. Antes pelo con-

trário, a diferença entre os indivíduos convide a pensar a aprendiza-

gem desejada em função do aprendente e do mediador da sua

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

aprendizagem, ou seja, na escola, em função dos escolares e o do-

cente ou os docentes responsáveis para o grupo no qual o estudante

está inserido.

Olhando para a forma escolar, ou mais precisamente, para as for-

mas escolares de relações sociais, necessárias para que a aprendiza-

gem se desenvolva, observamos múltiplas formas de interação para

que uma aprendizagem desejada, tanto pelo aprendente, como pelo

docente, ocorra. A gramática da escolarização, como dizem Tyack e

Tobin, pode não ser necessariamente normativa . 19

A observação em pormenor, através de estudos de caso, revela a

existência de grupos-turma diversos no seio da organização escolar.

Alguns destes grupos-turmas organizaram-se em comunidades de

aprendizagem, comunidades nas quais as crianças deixaram de ser

alunos , para ganharem elas também o estatuto de auctor, no proje20 -

to de trabalho intelectual no qual se envolvem e que é também o seu

próprio projeto de aprendizagem.

Para que escolares e estudantes se possam envolver pessoalmente

como autores, com autoridade, nos seus projetos de trabalho intelec-

tual, eles precisam de aprender, o mais cedo que possível, o que sig-

nifica ser influenciado, o que significa influenciar. Para que isto possa

acontecer a sua aprendizagem deve estar livre de dogmas.

Será necessário repensar a relação entre a aprendizagem e a edu-

cação — neste caso a educação formal —, para que a escola facilite a

Ver ponto seguinte.19

De raíz latina “alumni”, pequenos lactentes, posteriormente escravizados.20

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

apropriação do conhecimento e o desenvolvimento de novo conhec-

imento? Para que as crianças possam aprender, livre de dogmas dos

adultos, serão estes últimos capazes de perceber a educação como

uma relação dialéctica com a aprendizagem. Será que conseguem

perder a crença de que a aprendizagem seja o resultado de uma edu-

cação, em muitos casos ritualizada e instrucional?

Em situações de aprendizagem e educação não formal pode ser

mais fácil de entender a interação: observa-se a aprendizagem da fala

por exemplo, ou a aprendizagem da convivência em grupo. Em

muitas destas situações, quem desempenha a função de educador

interage com o aprendente, em função daquilo que o aprendente está

a tentar fazer.

A aprendizagem não decorre exclusivamente nem maioritaria-

mente de comportamentos induzidos, excepto nas situações em que

os adultos têm como objetivo a dogmatização da criança.

O espaço cultural interativo de cooperação

Harari relaciona o que ele defina como o projeto humanista com

com a educação escolar e lembra:

Pergunte a uma professora — seja do jardim-escola, do secundário

ou da universidade — o que é que ela está a ensinar aos alunos. A

resposta será: “Bem eu ensino História, Física Quântica ou Arte, mas

acima de tudo, ensino-lhes a pensarem pela sua próprias cabeças”.

Pode nem sempre resultar mas é este o objetivo da educação hu-

manista. (2017, p. 261)

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Há dois aspectos interessantes nesta afirmação: “ensino-lhes a

pensarem pelas suas próprias cabeças” e “pode nem sempre resul-

tar”.

Pensarem pela sua própria cabeça? Porque é que isto tem que ser en-

sinado, como parte de um projeto humanista, na escola? Significa

que consideramos, que, por norma, de natureza, de nascença, uma

pessoa NÃO pensa da sua própria cabeça?

Ou está Harari a dizer que, por norma, quem se relaciona com as

crianças antes de elas entrarem na escola, as obriga a pensar pela

cabeça de outras em vez de pela sua? Quer isto dizer que, antes da

escola, as pessoas estejam condenadas a ser dogmatizadas? Que lhes

são implantadas crenças dos adultos, de que a escola, e quem aí tra-

balha, as liberte novamente?

É isso mais ou menos que Richard Dawkins (2017) advoga, quan-

do fala da influência da religião dos adultos sobre a formação das

crianças. E Dawkins é menos optimista do que Harari, em relação à

escola e à educação humanista, quando alerta para o fundamenta-

lismo de grupos religiosos, sobretudo na America do Norte, que ad-

vogam o ensino do criacionismo, ao lado do darwinismo, reforçando

a crença, em vez de a questionar.

O que os criacionistas aparentemente estão a dizer é que “todas”

as teorias da evolução têm que ser “ensinados”, para que a criança

“escolhe” posteriormente aquela que mais sentido lhe faz. O condi-

cionamento para a crença num dogma, como se de dois dogmas se

tratasse, não tem nada a ver com livre escolha, ou com pensar pela

própria cabeça. É de natureza diferente acreditar a descendência a

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

partir de um casal instalado no mundo pelo seu criador sobrehu-

mano e observar a linha evolutiva das espécies a partir de um con-

junto de artefactos, procurando preencher as falhas, para conseguir

manter ou alterar a teoria elaborada.

Da mesma forma é de natureza diferente acreditar que a terra está

no centro do universo e que foi nela que a imobilização do sol foi um

sinal divino para o povo escolhido ou deduzir através da observação

que a terra orbita em torno do sol, que por sua vez orbita em torno

de um ponto gravitacional situado no centro da galáxia na qual ele se

encontra.

Estimular a criança para desenvolver hipóteses, testá-las, alterá-

las, e, ao mesmo tempo, de desenvolver uma conduta ética, parecem

me ser duas tarefas indispensáveis do educador, seja na educação

não formal, seja na educação formal. Isto pode ser feito, indo ao en-

contro da curiosidade que uma criança expressa, cada vez que faz

perguntas directas, que faz comentários acerca de uma situação ob-

servada, ou que relata algo que imaginou, na sua cabeça.

Gostava de lembrar aqui o que passei a chamar o ensaios soci-

ológico mais curto que conheço sobre a escola. Fui presenteado com 21

este ensaio, pela Joana, então com cinco anos, que me fez de escriba

para pôr em papel a sua observação da vida da irmã mais velha, en-

tão com 14 anos:

Numa intervenção no Conselho Nacional de Educação em 2008. Versão em pdf do trabalho 21

da Joana está disponível em http://pascalpaulus.byethost7.com/01/livros/EscolaCasa-Joana01.pdf

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Escola Casa — Casa Escola.Uma menina chegou à escola… e depois foi para casa.

Ela saiu de casa… e foi para a escola. A menina chegou à escola.

E a menina saiu da escola e foi para casa. E quando chegou à casa…

… fez os trabalhos da escola

Apresento regularmente esta história, e fico sempre admirado

com a reação dos profissionais da educação. Entre sinais de reconhe-

cimento e sorrisos, as pessoas mostram que foi um traço certeiro com

o qual a Joana desenhou os rituais da escola. Só muito raramente há

quem se questiona sobre a mensagem que é transmitida, de um ritual

entediante, o resumo da gramática da escolarização prescritiva.

Os mesmos profissionais da educação que reconhecem a capaci-

dade de observação da menina de cinco anos entram em discussão

aguda acerca de uma proposta de escrita, feito a jovens de 15 anos,

numa prova nacional. Naquele ano era sugerido aos estudantes de

escolher uma figura feminina com expressão nacional ou interna-

cional, de explicar porque a escolheram e de desenvolver um pensa-

mento crítico sobre esta figura. A discussão centrava-se sobre se os

jovens com aquela idade tinham ou não tinham capacidade e ma-

turidade para desenvolver um tema deste tipo. Diria que maturidade

certamente têm, mas que não fica claro se ainda mantêm a capaci-

dade para o fazer. Dependerá da escola que tiveram, se ainda con-

seguem descrever as suas observações, como a Joana fazia com 5

anos, e portanto, se sempre aprenderem a desenvolver o pensar pela

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

própria cabeça, ou se, pelo contrário, aprenderam a executar a repro-

duzir estritamente o ensinado e o instruído.

Recentemente foi me dado a oportunidade de trabalhar — e

aprender! — em base regular com um grupo de docentes de várias

disciplinas de uma escola não muito grande. Por opção inscrito no

projeto educativo, que foi elaborado de forma cooperado entre todos

os docentes da escola, alterou-se a mancha curricular das turmas do

5º até ao 9º ano com as quais este grupo de docentes interage. Um

quinto do tempo de escola é reservado a projetos de trabalho, conce-

bidos a partir dos desejos dos escolares. Não há assunto ou objeto de

estudo proibido. Os jovens apresentam uma proposta de trabalho

para a desenvolver em cerca de um mês. Constituem-se grupos entre

escolares de idades e turmas diferentes, e docentes-tutores à sua es-

colha, em função do objeto de estudo. Toda a planificação, monito-

rização e avaliação do trabalho é feito em conjunto. No fim de um

período de trabalho, organiza-se, na escola, um mini-encontro de a-

presentações de trabalhos, como se de um mini-congresso se tratasse.

Em três ou quatro salas em simultâneo, são apresentados vinte a

vinte cinco trabalhos ao longo de uma tarde. Cada um escolha aquilo

que quer ver e ouvir, e todos passam durante esta tarde a ter o papel

de apresentador e de ouvinte.

Depois de quatro anos de trabalho, a variedade de assuntos con-

tinua a deslumbrar os adultos envolvidos. Deitou completamente

por terra a ideia induzida pelos rituais normalizantes da escola da

instrução que haveria assuntos só apropriados para determinadas

idades. O que se verificou, mais do que uma vez, é como a discussão

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

inteligente em torno dos assuntos e objetos escolhidos, leva a situar o

trabalho na zona próxima de desenvolvimento de qualquer um dos

participantes, qualquer que seja a sua idade ou o seu conhecimento

prévio sobre o objeto em estudo.

No grupo-turma que foi, para a aprendizagem da Joana, o espaço-

tempo de educação formal, bem como nos grupos de trabalho que

decorrem do projeto educativo pensado pelo grupo de docentes de

disciplinas, o currículo foi assumido como um fio condutor para o

projeto curricular desenvolvido em conjunto. O trabalho intelectual é

encarado como um trabalho colectivo, gerando obras culturais, que

foram concebidos, desenvolvidos e avaliados de forma participado,

em cooperação. Os próprios grupos estruturam-se como micro-redes

de pessoas que cooperam entre si.

Será que, quando falamos de uma educação humanista, livre de

crenças e livrando-se da tentativa da sua própria dogmatização por

alguns educadores, estamos a falar de indivíduos que não trabalham

uns para os outros, mas uns com os outros? Não será que os edu-

cadores que dogmatizam o projeto humanista, não estejam simples-

mente à procura de colaboradores para um projeto seu, ou seja, a

procura de escolares e estudantes a trabalhar para eles? Será que es-

tão somente a procura de uma estrutura em que cada indivíduo pos-

sa ser individualista, promovendo os seus próprios projetos para os

quais procuram colaboradores, aceitando colocar parte da sua cria-

tividade e do seu trabalho ao serviço de outros?

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Problema 4 — Interagem os indivíduos para projetar o currículo?

Na educação em geral e na educação escolar em particular:

• só o desejo do indivíduo chega, ou o processo educativo tem a ver

com a interação?

• como libertar-se do indivíduo que contraria o coletivo?

• como libertar-se do coletivo apagador do indivíduo?

Na educação escolar básica:

• o currículo organizado por disciplinas é gerador de atividades coleti-

vas de aprendizagem?

• o currículo organizado por disciplinas é instrumento de verificação

de aprendizagem?

• o currículo é um fio condutor? E, sendo fio condutor:

• está organizado por disciplinas?

• orienta abordagens holísticas da realidade observada e vivida?

Afirmações

• Uma rede não é uma coleção de indivíduos

• Uma rede não é uma estrutura de colaboradores

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A praxis vivida pelas pessoas da escola

PROBLEMA 5: OS TRÊS M

Pode uma gramática da escolarização tender para o pluralismo?

Paradigmas… entre o conceber, o querer e o fazer

Diferenciação e diversificação. A reflexão necessária

Como é que a praxis escolar é vivida na escola, pelas pessoas da escola?

Ela é interpretada como uma ação sujeita à transposição didática, à escolha

de técnicas de reprodução de discurso?

Ela é interpretada como uma conduta de pessoas que se encontram num

espaço-tempo cultural e interativo no qual são desenhados projetos de

aprendizagem?

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Pode uma gramática da escolarização tender para o pluralis-

mo?

Uma das observações determinantes na reflexão, que Tyack e To-

bin (1994) tecem em relação à gramática da escolarização, tem a ver

com o próprio uso da gramática, que consiste na descrição das coisas

mas que também pode ser utilizada para descrever como as coisas

devem ser usadas. Neste sentido, a gramática é ao mesmo tempo

descritiva e prescritiva:

“Both schools and language are, of course, in flux – for example, as

new words or institutional features are added – but we are here argu-

ing that changes in basic structure and rules of each are so gradual

that they do not jar. “Grammar" in this sense might be thought of

both as descriptive (the way things are) and prescriptive (the way

things ought to be).”

(Tyack e Tobin, 1994: 454)

O modo de trabalho da escola da instrução, e em muitas situ-

ações, também da escola do cenário pedagógico que abre espaço para

aprendizagens controladas pelos docentes responsáveis, guarda to-

das as características da gramática prescritiva. A forma da escola é a

de relações sociais com sujeitos objetos, eventualmente com sujeitos

atores, sempre dirigidos e controlados pelo docente que mantém a

sua função de intermediário entre o conhecimento e o aluno, através

dos mecanismos da transposição didática. Lembro dois aspectos das

instituições do Estado Nação, presentes na instituição escolar que

auxiliam os funcionários da ação educativa:

Aprendizagem e educação Página de 75 106 Pascal Paulus

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

(1) o controlo através dos exames advém de uma necessidade de

colocar os acontecimentos dentro de uma norma. Não é fácil conceber a discussão como ponto de partida para a

convivencialidade, sem ser através da tendência para cair em

consensos que levam para a zona de maior incidência na curva

de Gauss.

(2) o controlo através do panoptismo advém de uma necessidade

de colocar a relação entre as pessoas numa lógica hierárquica. Não é fácil conceber um poder instituído que não institui a vigi-

lância e o controlo, mas que garante a instituição instituinte.

Não é fácil, na instituição do Estado-Nação, com toda a organiza-

ção preconizada pela gramática prescritiva, conceber a convivenciali-

dade ou a instituição instituinte, mas não é impossível.

A gramática prescritiva na qual assenta a escola do Estado-Nação

dá pouca margem para o desenvolvimento de comunidades de

aprendizagem. Contudo, a prescrição não é mais do que isso. Uma

prescrição. A prescrição tem atualmente tido a veleidade de intro-

duzir o ponto de vista da inclusão. Com as escolas dos exames, das

seriações e dos rankings, o poder insiste: sê inclusivo. A contradição

está nos termos. Não é possível propor a uma estrutura que se

moldou para a exclusão para, ao mesmo tempo, ser inclusiva. A não

ser que se quer alargar o grupo de pessoas entre as quais se quer

prosseguir à seriação e por tanto ao ranking. O primeiro classificado

passa assim a ser o primeiro de um grupo maior, enquanto que quem

não consegue reproduzir o que lhe é pedido, passa a estar excluído

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

do acesso a determinado conhecimento, dentro da instituição e não

fora da instituição.

Quando olhamos para o micro, a sala de aula e do grupo-turma,

percebemos rapidamente que a descrição das interações observados,

nos obriga, se queremos ser sérios, a uma leitura fenomenológica da

realidade, uma leitura que nos leva antes para uma gramática com-

parada do que para uma gramática normativa e prescritiva.

É esta gramática comparada, que nos permite perceber onde,

como e quando os grupos se constituem comunidades de aprendiza-

gem. É a gramática comparada que nos ajuda também a perceber

que, quando falamos de participação, no sentido da cooperação, e só

neste caso, podemos falar de um processo educativo pluralista.

O ponto de vista pluralista que, no contexto escolar, só é possível

quando livre da imposição de crenças em dogmas por parte dos

adultos, desenvolve-se a partir da relação biunívoca entre a partici-

pação em cooperação e a capacidade instituinte do trabalho intelec-

tual por parte do grupo-turma constituído em comunidade de

aprendizagem.

Contrário ao grupo de pertença que nos permite reconfortarmos

entre quem pensa da mesma forma, e que nos reforça na criação de

consensos, só porque tememos o pensamento divergente, a comu-

nidade de aprendizagem pode abrir caminho para um ponto de vista

pluralista. Lembro Diana Eck (2016), que é muito clara, quando fala

de pluralismo:

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

(1) Pluralismo não é diversidade, mas o engajamento energético

com a diversidade;

(2) Pluralismo não é tolerância, mas a busca ativa para com-

preensão de linhas diferentes: tolerância não retira a ignorância;

substitui somente o preconceito por meias verdades;

(3) Pluralismo não é relativismo, mas guardar as nossas diferen-

ças, não de forma isolada, mas em relacionação com o outro.

(4) Pluralismo baseia-se no diálogo. Diálogo não significa con-

cordar com todos os outros. Pluralismo envolve o comprometi-

mento de estar na mesa — com o seu comprometimento.

Como já afirmei em outras ocasiões, percebo a participação no

sentido da co-operação (a criação de opus em conjunto), e não como

colaboração (co-labore, trabalhar com o outro) . O diálogo (ou 22

“pluriálogo”, o uso do logos entre muitos) entre as pessoas que se re-

conhecem, uns aos outros, o estatuto de auctor, encaminha para a

transformação co-operada.

Nas restantes situações, uma pessoa pode considerar colaborar

(ou seja, contribuir) para a ideia de outra pessoa. Não há lugar para

diálogo aqui, mas a concretização de reformas apoiadas.

Paradigmas… entre o conceber, o querer e o fazer

O dicionário informa que um paradigma corresponde ao que

serve de modelo ou de exemplo geral.

Coopérer ou collaborer - ver https://amartinphilo.wordpress.com/2013/10/11/collaborer-22

ou-cooperer-12/

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

O modelo geral sustenta os elementos que introduzimos no nosso

discurso, quando criamos uma imagem da realidade. Da história da

ciência sabemos que paradigmas mudam, se contradizem, que são

frequentemente construções culturais complexas e colectivas e por

isso passível de evolução.

Os paradigmas sustentem raciocínios, às vezes elaborados com

muito trabalho e quando a realidade observada ou quando um

fenómeno parecem inferir o modelo geral, a resistência à mudança de

paradigma na ciência, muitas vezes costuma ser prudente, difícil e

conflituoso. Se, devido a esta prudência, um paradigma pode levar

muito tempo para ser reformulado — pensamos por exemplo no

modelo geral com que cientistas procuram perceber o mundo sub-

atómico — há também pessoas que se fazem refém do paradigma

que lhes serve de referência. A intransigência que daí resulta pode,

nas ciências sociais mais do que nas ciências naturais, condicionar

gravemente as interações e alterar a realidade.

Tento explicitar esta afirmação com dois exemplos.

Nas ciências físico-químicas, o comportamento da luz deu origem

a debates apaixonados desde a antiguidade, passando por grandes

nomes da física renascentista, entrando século XX dentro. Houve

alturas em que os defensores do modelo da luz como uma onda es-

tavam entrincheirados frente aos defensores do modelo da partícula.

As diferentes abordagens permitiam entender a luz até um certo

ponto, e aproveitar as características assim entendidas para as uti-

lizar em criações da mente originando determinadas aplicações. Pelo

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

que nos é contado pelos divulgadores da ciência que fazem tentati-

vas de nos explicar a teoria quântica, a reformulação da natureza da

luz, introduzindo os quanta, os pequenos pacotes de energia, dando

origem ao fotão, é atualmente considerado o melhor modelo geral

para perceber a luz e trabalhar com ela.

Os sucessivos paradigmas explicativos da luz alteraram o nosso

entendimento da sua natureza. Em função deste entendimento novas

aplicações surgiram. Algumas criações até ajudaram para fazer

evoluir o entendimento, porque, à partida, não eram compatível com

o modelo geral idealizado.

A luz não se alterou, alterou-se a nossa perceção acerca dela.

Na psicologia e nas ciências da educação, muito trabalho tem sido

feito para entender como e quando crianças se apropriam dos com-

plexos instrumentos da cultura humana, nomeadamente as lingua-

gens simbólicas com particular ênfase na escrita, a matemática e o

desenho (ou, mais genericamente, as artes). O modelo geral de en-

tendimento acerca da aprendizagem e da educação evolui. Os para-

digmas principais que orientam a atuação dos profissionais da edu-

cação com escolares e estudantes reagem de maneira diferente à esta

evolução.

Para o paradigma da instrução, as crianças que desviam demasi-

ado da norma que foi estabelecida como padrão, deixam de ser

educáveis ao ritmo desejado acerca dos assuntos considerados apro-

priados para este mesmo padrão.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

O individualismo e a competitividade são características do proje-

to educativo.

O cenário pedagógico, criado no âmbito do paradigma da apren-

dizagem, induz uma diversificação no trabalho com as crianças,

dando origem a percursos educativos em função daquilo que a psi-

cologia e as ciências de educação apontaram como sendo expectável

que uma criança aprenda, analisando o desvio ao padrão.

O trabalho individualizado e a colaboração são características do

projeto educativo.

Com o paradigma da comunicação, o profissional da educação

toma como ponto de partida a interação que estabelece com a criança

e com o grupo de pessoas, crianças e adultos, com quem a criança

habitualmente convive. Entendendo a história e as relações, o projeto

educativo é co-construído, responsabilizando todos os atores no pro-

cesso para que cada criança vai o mais longe como possível na

aquisição dos instrumentos da cultura humana. Cada elemento do

grupo só alcança os seus objetivos pessoais, na medida em que esteja

envolvido para que cada outro elemento do grupo também consiga

alcançar os seus.

A cooperação e a diferenciação são características do projeto ed23 -

ucativo.

A história recente e a diversidade de projetos educativos tem-nos

mostrado que, por exemplo, para as crianças portadoras de trissemia

Ver também Nóvoa, Marcelino e Ramos do Ó (2012). Sérgio Niza, Escritos sobre Educação. 23

Lisboa: Tinta da China

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

21, o paradigma educativo adoptado por uma comunidade educativa

pode ser decisivo. Significa, em determinado tempo, ou em determi-

nados espaços, a diferença entre ter ou não ter acesso aos instrumen-

tos da cultura humana, somente devido ao paradigma de referência

na comunidade escolar próxima. A natureza das interações inten-

cionais com a criança, como ser social, com o seu meio natural e so-

cial pode mudar radicalmente, simplesmente devido ao paradigma

subjacente ao trabalho desenvolvido com ela.

A utilização generalizada de um determinado paradigma educa-

tivo tem um peso social. Neste caso, uma mudança de paradigma

interage dialeticamente com uma transformação social. Como tive a

ocasião de dizer , a escola da transposição didática tem alguma difi24 -

culdade em perceber que quando se fala de um modo de trabalhar,

não se está a falar de estratégias, de métodos ou de técnicas. Pessoal-

mente, preferia falar de uma proposta de trabalho e não de uma

metodologia, de um modelo para organizar o trabalho de aprendiza-

gem de um grupo de pessoas.

As formas escolares das relações sociais entre sujeitos apren-

dentes são uma particularidade das formas de relações sociais. Tanto

a praxis como a transformação social são simultaneamente interpre-

tadas e influenciadas pelas formas de relações sociais. Podem estar

em sintonia ou em oposição bem como em qualquer fase intermédia.

Durante uma entrevista com António Baldaia para A página da Educação (Inverno 2015)24

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Diferenciação e diversificação. A reflexão necessária

A diferenciação é não mais do que tomar em consideração a dife-

rença que existe entre todas as pessoas. É, para o trabalho educativo

formal, uma oportunidade e uma riqueza poder contar com uma va-

riedade grande de vivências, ideias, pontos de vista, interesses em

qualquer grupo de trabalho, em qualquer comunidade de apren-

dizagem . 25

Desde que a especialização impera na busca do conhecimento, o

currículo da escola geral e generalista tem sofrida a imposição das

disciplinas, alimentado pelos lobby’s e pelas associações respetivas.

Se a especialização se justifica quando se trata da profissionalização,

ela é discutível quanto à escola básica e secundaria universal, portan-

to de uma abordagem genérica e inicial do conhecimento.

A confusão semeada entre o conceito de coadjuvação e a prática

de construção de horários completos para professores de disciplina

facilitou o surgimento de um certo fundamentalismo em relação a

cada vez mais cedo “disciplinarização”. Para contrapor, diria que as

orientações curriculares para a educação pré-escolar deveriam ser

leitura obrigatória para todos os docentes. Durante demasiado tempo, Portugal esqueceu-se das propostas de

três ciclos de escola geral desde Coménius, onde “absolutamente tudo

seria ensinado a absolutamente todos”, depois de, na primeira república,

ter feito algumas experiências neste sentido.

Discuti a diferenciação num webinar da Direção Geral da Educação. https://www.youtube.25 -com/watch?v=s0SkT6xT8SU

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Como em muitos outros países com sistemas educativos completa-

mente elaborados, existe um ensino baseado na instrução em si-

multâneo, com classificação e criando grupos artificiais de instruín-

dos. O insucesso destas medidas geram as iniciativas inovadoras que

são sugeridas para o trabalho com os alunos “outros que os

normais” (anormais?) - desviando da norma, diria Marcel Lesne).

Diria que as iniciativas inovadoras ficam para os que desviam tanto

da norma que parecem “incuráveis”. As medidas adoptadas são

como os medicamentos para novos tratamentos que podem ser

agressivos e dos quais os médicos supõem maior eficácia para a cura. Ainda que o utente compulsivo da escola não é considerado um pa-

ciente, a doença da organização escolar passa miraculosamente a ser

ónus deste utente. É uma forma de entender as orientações deixadas

para a implementação de projetos curriculares adaptados:

Não obstante a potencialidade de todas as medidas elencadas, im-

porta reconhecer que as escolas consideram necessário que, em

determinadas circunstâncias, a intervenção não se restrinja ao nível

das metodologias de ensino e aprendizagem e permita a reorganiza-

ção do currículo, enquanto janela de oportunidade para um ensino

menos disciplinarizado, mais global, onde os conteúdos possam ser

trabalhados de um modo inter e transdisciplinar numa lógica de

trabalho de projeto. (ME, 2016)

Apresentei numa tertúlia organizada pelo grupo “Inquietações

pedagógicas” uma série de entradas dicotómicas, para provocar a re-

flexão entre colegas docentes, acerca da suas opções pessoais em re-

lação a profissão. Retomo-as aqui. O objetivo não é de diabolizar uns

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

e santificar outros, mas simplesmente de ajudar a criar alguma

clareza em relação ao próprio posicionamento. Procurei clarificar o

que diferentes paradigmas educativos significam para a conceção da

escola. Volto ainda no último ponto a estes paradigmas, quando me

refiro ao continuum de formas escolares de relações sociais.

Tentei mostrar que a escola básica e obrigatória de modelo Lassal-

liana, optando por utilizar a gramática escolar de forma prescritiva,

valorizando o paradigma educativo da instrução, assume a seriação e

a diversificação dos alunos em função das provas que prestam. In-

cluindo mais ou menos utentes nas suas estruturas, ela é por

definição excluinte, porque coloca as pessoas em concorrência. Esta

escola foi, em muitos Estados-nação, a escola implementada.

A evolução do próprio conceito da escola para todos, associado à

discussão em torno da sociedade plural, parece encaminhar institu-

ições escolares para alterações, tanto na sua organização como na sua

forma. A escola básica e obrigatória que recorre à gramática da esco-

larização para se situar e utiliza para o fazer uma lente fenomenoló-

gica, ganhará consciência como instituição acerca do paradigma edu-

cativo que lhe serve de base. A partir daí será possível definir esco-

lhas mais conscientes, em como se apresenta perante os escolares e a

sua família. Poderá escolher apresentar-se como espaço que fomenta

o individualismo, que fomenta a colaboração, que fomenta a cooper-

ação. Só o diálogo que ela estabelece com parceiros individuais e

colectivos, com a sociedade em geral, poderá ajudá-la para perceber

as suas escolhas. Trata-se de escolhas que se limitam acompanhar,

antecipar ou seguir a transformação social em curso no espaço-tem-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

po onde se coloca? Ou trata-se de escolhas que a envolvem no pro-

cesso de transformação social? E como é que se envolve? Como é que

facilita ou não a democratização dos processos de tomada de de-

cisão? Como é que ela enceta o desenvolvimento de linhas de trabal-

ho, a partir da diversidade existente na sua população, no sentido

mais lato do termo, promovendo um processo pluralista de trabalho?

Como lida com o conhecimento e com os preconceitos? Como é que

se coloca perante a narração do mundo (Petrella, 2007)?

Todos os profissionais da educação deveriam ter a possibilidade

de refletirem em torno destas interrogações e fazer o seu perfil.

Como já mencionei, na tertúlia que referi , sugeri as seguintes 26

entradas, às quais certamente podem ser acrescentadas outras. Na

altura utilizei a palavra professor. Proponho agora o termo mais

abrangente “docente”.

Docente curador ou docente mediador? Docente que fala ou do-

cente que ouve? Docente planificador ou desenhador de projetos?

Docente especialista ou docente generalista? Docente prescritor de

receitas ou docente observador? Docente que diversifica ou que

diferencia? Docente induzido à instrução ou à educação? Docente

“maquilhador” ou docente reflexivo? Docente para informar, para

formar ou para educar? Docente com aprendente escravo ou apren-

dente autor? Docente de monólogo ou docente de diálogo? Docente

executor ou docente cidadão?

As notas estão disponíveis em http://pascalsarchive.weebly.com/arquivo-49.html 26

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Problema 5 — Da visão inclusiva para a visão pluralista

No paradigma da instrução a inclusão é inexistente.

Será que no paradigma da comunicação é possível evoluir da visão

inclusiva (inclusão de todos na sujeição ao ensino e à instrução) para a

visão pluralista (interação entre todos, como autores dos processos de

aprendizagem)?

Aprendizagem e educação Página de 87 106 Pascal Paulus

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A interação entre pessoas e a relação dialéctica sociedade - escola

PROBLEMA 6: DOIS DOS 3 M

O dogma humanista e o sonho cosmopolita.

Pense o que quer pensar, desde que pense como nós pensamos!

Em que medida encontramos na sociedade, movimentos convergentes, diver-

gentes ou abrangentes quando se trata da interação entre as pessoas?

Quais são as consequências desses movimentos na forma como os Estados

olham para a organização dos currículo nacional e a forma da escola?

O dogma humanista e o sonho cosmopolita

Num pequeno tratado, escrito a partir de um discurso realizado

em 1995, Umberto Eco reflete acerca do “Ur-fascismo” ou o fascismo

primitivo.

A tese consiste em mostrar que o fascismo se apresenta sob

muitas formas. Mostra que seria um erro pensar no fascismo e no

nazismo como sendo sinónimos. O autor desenvolve a ideia que a

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

familiaridade que sentimos em relação ao fenómeno não decorre de

uma única combinação dos mesmos elementos. O que perturba é

verificar que cada elemento per si da lista que enumera, combinado

com qualquer outro, inicia facilmente uma corrente que se apresenta

rapidamente com características fascistas. Reproduzo, de forma

abreviada, a lista que Eco (2017) produz:

1. O fascismo primitivo tem o culto da tradição. O sincretismo

associado leva a uma atitude de afirmação que toda a verdade já

foi enunciada. Em consequência o avanço do Conhecimento é

impossível.

2. O tradicionalismo implica o recuso do modernismo. Quando

existe um fascínio para a tecnologia, este recuso do mundo mo-

derno anuncia-se sob forma da condenação do capitalismo e, so-

bretudo, do recuso do espírito das Luzes, uma forma de irra-

cionalismo.

3. Este irracionalismo recorre também ao culto da ação pela

ação. Logo a cultura é suspeita (intelectuais malvados, “snobs"

radicais, nas universidades só há comunistas, etc.

4. O sincretismo não aceita a crítica: na ciência, o desacordo é

instrumento de progresso de conhecimento. No fascismo primiti-

vo o desacordo é traição.

5. O desacordo é sinal de diversidade. O fascismo primitivo

procura o consenso, e mostra medo pela diferença. A primeira

ação lança-se contra os intrusos. O fascismo primitivo é racista

por definição.

Aprendizagem e educação Página de 89 106 Pascal Paulus

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

6. O fascismo nasce da frustração individual ou social. Apela à

classe média frustrada, esmagada entre classe alta e o medo de

voltar a descer para um grupo considerado inferior. Observa-se

entre os antigos proletários que ascendem à pequena burguesia.

7. Cultiva-se o privilégio único que une todos que não têm iden-

tidade social preciso: nasceram no mesmo país. Aí reside a

origem do nacionalismo, com o corolário da obsessão da trama

internacional. Os residentes devem se sentir assediados. A trama

dá asa à xenofobia.

8. Os discípulos devem se sentir humilhados pelos inimigos,

mas ao mesmo tempo devem se convencer que os vão vencer. Os

inimigos são simultaneamente demasiado fortes e demasiado

fracos. Razão pela qual os fascistas perdem sempre, por não

solucionar esta contradição.

9. Não luta para a vida, mas antes uma vida de luta. O pacifis-

mo é conluio com o inimigo - a vida é uma guerra permanente. A

contradição reside no facto que se apela à luta até a solução final,

que obrigaria ao fim da guerra permanente.

10. Elitismo é algo típico da ideologia reacionária aristocrática,

desprezando os fracos. O fascismo primitivo apregoa o elitismo

popular. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo, os

membros do partido são os melhores cidadãos, logo todos os

cidadãos deveriam ser do partido. Contudo, na cadeia hi-

erárquica de subordinados, cada subordinado desprezado de-

spreza os seus subordinados.

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11. Assim, todos são educados para se tornar um herói. E este

culto do herói é facilmente associado ao culto da morte.

12. O heroísmo associado à guerra permanente e à ideia de força

origina o machismo.

13. O fascismo primitivo assenta num populismo qualitativo. Os

indivíduos não têm direitos per se, os indivíduos são o povo que

tem uma vontade comum expressa pelo líder. Um bom exemplo

de populismo qualitativo moderno é o populismo téle ou internet,

onde a resposta emotiva de um grupo de pessoas é apresentado

como a voz do povo. Acontece facilmente quando um político

anuncia duvidar da legitimidade do parlamento por não repre-

sentar “a voz do povo”.

14. O fascismo primitivo fala a novalíngua (inventada por Or-

well). Os textos escolares são escritas numa língua elementar.

Outras formas de novalíngua são os diálogos dos talk-shows por

exemplo.

A análise que Umberto Eco nos dá torna-se ainda mais pertur-

bador, quando percebemos que muitos dos traços que aqui evoca em

pontos separados são facilmente reconhecíveis no dia-a-dia, nas con-

versas de rua e de café, nas discussões entre membros de associações

locais, nas discussões também entre dirigentes de associações e insti-

tuições.

Já não é a familiaridade com o assunto do fascismo em si, mas a

familiaridade com cada um destes pontos, que facilita o surgimento

de crenças, associadas à dogmatização do projeto humanista, não só

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para a linha evolutiva, mas para qualquer uma das três linhas de que

Harari fala.

Em determinados momentos da história, e em determinados lo-

cais do planeta, nem as ciências naturais, nem as ciências humanas

escapam à análise que Eco faz. Podemos até pensar em situações em

que o desacordo, também na ciência é considerado traição. Os tra-

balhadores da ciência que, devido às suas pesquisas, chegam a con-

clusões que contradizem elementos de uma teoria consagrada,

testemunham ao longo da história a fronteira muito ténue entre a —

as vezes violenta — oposição de ideias e a acusação de traição em

relação àquilo que passou a ser considerado como intocável . 27

Entretanto não deixamos de nos relacionar com o conhecimento e

de relacionar o conhecimento com a ação humana. Qualquer altera-

ção no conhecimento concetualizado implica também alterações nes-

ta relação. Discutindo em torno da pergunta o que é a critica, Foucault

afirma:

Se quiser, para mim — por muito escandaloso que isto possa e deva,

com efeito, parecer aos olhos de um académico, de um metodólogo

ou até de um historiador das ciências — , entre a proposição de um

psiquiatra e uma demonstração matemática, quando falo de saber,

não faço, provisoriamente, diferença. O único ponto pelo qual intro-

duziria diferenças é saber quais são os efeitos de poder, se quiserem

de indução — indução não no sentido lógico do termo — que essa

proposição pode ter, por um lado, no seio do domínio científico no

Ainda recentemente, João Magueijo conta a sua experiência em Mais rápido que a luz 27

(Gradiva, 2003).

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interior do qual temos a fórmula — a matemática, a psiquiatria, etc.

—, e, por outro, quais são as redes de poder institucionais, não dis-

cursivas, não formalizáveis, não especialmente científicas, a que está

ligada a partir do momento em que é posta em circulação. É a isto

que eu chamaria o saber: os elementos de conhecimento que, seja

qual for o seu valor em relação a nós, em relação a um espírito

puro, exercem efeitos de poder no interior e no exterior do seu

domínio. (2017, p. 60)

O conhecimento científica e a circulação das ideias ao que obriga

é um elemento importante para quem cultiva o sonho cosmopolita.

Mas não chega. A atitude pluralista subjacente ao sonho cosmopolita

é condicionada pela aplicação prática do conhecimento, fora do seu

domínio, em combinação com as crenças e os dogmas de uma época

e de um lugar. A história de Alan Turing é só uma de muitas histórias

tristemente conhecidas, entre muitas outras tristes e nem sequer pu-

blicamente conhecidas.

O desenvolvimento de uma ética cosmopolita é um processo

lento, que esbarra, sempre que um dogma se quer suplantar a outro

dogma, ou ainda, sempre que o pensamento dogmático interpreta os

seus textos de referência no sentido de impedir a convivencialidade.

Impedir a ação do outro, devido a um argumento hierárquico não

humano, ainda que comungado por parte da humanidade, é impedir

o avanço na construção de uma ética cosmopolita.

Recusar ponderar a prudência, manifestado ao nível planetário,

no que se refere às alterações climáticas, por exemplo, é impedir um

avanço no desenvolvimento de uma ética cosmopolita.

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Pense o que quer pensar, desde que pense como nós pensamos!

Os efeitos de poder no exterior e no interior do seu domínio são

regularmente referidos por Foucault, como também os são por Pop-

per, Steiner e Harari. Em vários ocasiões, apontam pela diferença

entre a teorização da natureza e a teorização da atividade humana.

Mais uma vez, parafraseando Harari, ler e reformular Galileu pode

interferir com a percepção que temos de Galileu e com o nosso en-

tendimento que Galileu tinha do universo, mas não interfere com o

próprio universo; ler e reformular Marx pode alterar a perceção que

temos de Marx e, a partir daí, não só a perceção que temos da

economia, mas possibilita alterar a própria economia. Ler e reformu-

lar Freud ou Lacan pode, da mesma forma, não só alterar o conheci-

mento na área da psiquiatria, mas pode alterar também a vida das

pessoas que são observadas a luz do conhecimento reformulado.

A escolarização instrucional e a educação formal são interpreta-

dos de maneira diferente, em função dos textos de referência. A in-

terpretação feita pode fazer a diferença entre projetos educativos ao

serviço da aprendizagem das novas gerações de cidadãos pla-

netários, ou projetos educativos ao serviço da educação cívica loca-

lizada de novas gerações.

A insistência com a qual é vinculada a ideia que não existe alter-

nativa ao modelo económico vigente favorece a lógica do pensamen-

to único: pense como nós pensamos, que a nossa forma de pensar é,

não só a melhor, mas de qualquer forma, a única possível. Esta forma

de pensar afasta-nos dos projetos educativos ao serviço da apren-

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dizagem, afasta-nos da visão cosmopolita e, por mais que ela suben-

tende a globalização do mercado de capitais, ela localiza os projetos

de educação cívica . 28

A retórica política associa à insistência que não existe alternativa

uma ideia de democracia generalizada. Contudo, a democracia rep-

resentativa não garante por si só a evolução no sentido do acolher da

diversidade, do pluralismo ou do desenvolvimento de uma ética

cosmopolita. Esta nunca poderá decorrer da autoridade imposta pelo

verbo ou pela lei definida por um grupo restrito de quem se arroga o

poder de a definir.

Dewey alertava no início do século passado que a democracia não

é possível sem educação generalizada. Com a evolução do tempo

aprendemos que “educação generalizada” não chega. Não se trata só

de alfabetizar, de assegurar uma instrução básica, através da qual os

adultos continuam a ter a possibilidade de dogmatizar as crianças. A

educação formal e não formal, privada da interação dialogante, a

educação sem conscientização e consciencialização, ainda que gene-

ralista, arrisca de reforçar uma aristocracia que se apresenta como

democracia, cultivando a ilusão de pensamento livre.

Apresentei ao longo deste texto elementos que contribuem para a

criação da ilusão:

• Brinkgreve (2017) alerta para a obsessão da medição e dos

grandes conjuntos de dados quantitativas. O conhecimento não

Ver também Gilles Lipovestky e Jean Serroy. A cultura-mundo. Resposta a uma sociedade 28

desorientada. (Edições 70, 2014).

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decorre só do registo de dados quantitativos, mas da sua inter-

pretação confrontada com a fenomenologia, ainda mais no que

se refere à ação e interação humana;

• A generalização da classificação das pessoas e da atribuição de

números comparativos e que dizem exprimir o desvio ao

padrão, separa, em vez de unir, os grupos de cidadãos e os in-

divíduos;

• A educação não formal e a educação formal estão sujeitos à lóg-

ica da hipervalorização da venda do tempo de trabalho;

• A dificuldade de lidar com a planta não combinada no jardim.

Existem muitos outros sinais contrários à evolução para a inter-

ação baseado na diversidade. Refiro só mais um: o dogmático em

relação à ciência exprime-se regularmente. Nos EUA há grupos

cristãos que conseguem impedir o ensino da teoria da evolução, por

esta teoria conflituar com a idade atribuída ao planeta na Bíblia. Na

Turquia, Darwin é retirado do programa, com o argumento que é

complicado e que choca com os valores turcos.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

PROBLEMA 6: O TERCEIRO M

Formas escolares de relações sociais de aprendizagem.

Formas escolares de relações sociais de aprendizagem

Ainda não chegámos a uma escola verdadeiramente democrática,

uma escola onde as crianças e os jovens participem de pleno direito

no seu projeto de aprendizagem. A escola sempre teve grande relu-

tância em dar voz às crianças.

Pensando em Portugal, lembro o que entendo, quando falamos de

diferenciação pedagógica e da flexibilização curricular:

• Diferenciar é distinguir a diferença. Entende-se conscientemente

que um grupo de pessoas é sempre heterogéneo, também em con-

texto escolar. Então tira-se as ilações práticas e desenvolve-se a

diferenciação pedagógico. Abordamos a diferenciação pedagógica em mono- e pluridocência,

no ensino superior e na formação em contexto. Percorremos a pla-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

nificação cooperada, o trabalho a pares, a pesquisa diferenciada, o

trabalho em equipa, as comunicações no grupo e os instrumentos

de avaliação. É feito a distinção entre diferenciação pedagógica e diversificação

curricular e relaciona-se a diferenciação pedagógica com o currícu-

lo e o conhecimento na educação básica e na educação de adultos.

Destaca-se o isomorfismo no projeto de aprendizagem em todos os

contextos de educação e formação.

• Numa perspectiva de flexibilização, consideramos o currículo

como sendo um guião, com abertura curricular, nomeadamente

para o modelo de projeto. Sugerimos que, na escola, crianças e do-

centes, equipas de docentes, adultos, crianças e jovens, se propon-

ham realizar projetos de trabalho. A flexibilização da organização

do currículo facilita a planificação e execução dos projetos, de

modo diferenciado, no tempo e no espaço, obrigando a uma cuida-

da preparação e monitorização. Este tipo de flexibilização tem con-

sequências para a avaliação do trabalho, dos processos de trabalho

e, claro, da aprendizagem. A eficaz flexibilização exige certamente

também um olhar crítico sobre o paradigma educativo utilizado no

contexto escolar.

Aqui gostava de retomar uma ideia formulado há algum tempo, à

respeito das formas escolares de relações sociais quando pensamos

nas interações em contextos educativos. As formas escolares inter-

agem com as relações educativas fora da escola.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Por isso gostava olhar novamente para os três grandes paradig-

mas educativos, e a maneira com jogam com o poder e o saber

(Paulus, 2013).

A clarificação poderá ajudar a perceber que projeto humanista

estamos a desenvolver e como este projeto humanista pode ter uma

outra saída diferente de uma dogmatização associada a um dos

ramos que Harari identifica.

Se podemos aspirar a evoluir no paradigma da comunicação, o-

lhando para a interação entre os indivíduos, talvez torna-se possível

retomar um projeto humanista substrato da harmoniosa conviven-

cialidade.

No contexto da educação geral e inicial, que, na sua vertente esco-

lar corresponde à educação básica e secundária na maioria dos países

com sistemas evoluídos de educação escolar, vislumbramos então o

trabalho em projetos de aprendizagem, entre grupos de pessoas, cri-

anças e adultos, cooperantes entre si, autores do produtos culturais

autênticos, portadores do sentido dado ao conhecimento apropriado

pelos envolvidos.

No contexto da elaboração do conhecimento, aproximamo-nos

então talvez do “rapport au savoir”, a relacionação ao saber, como

Charlot o apresenta, quando olha para as três facetas desta relação

que também é uma ação, a saber, a epistémica, a identitária e a social.

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

Problema 6 — Como desenvolver uma visão pluralista no seio

da forma escolar de relações sociais de aprendizagem?

Podemos afirmar que temos, na escola europeia, incluindo a escola

portuguesa,

uma cultura humanista? Provavelmente sim.

Existindo esta cultura humanista:

• Ela tende para o humanismo liberal? Dá sinais que sim.

• Ela tende para o humanismo evolutivo? Dá sinais que ainda o faz.

• Ela tende para o humanismo socialista? Dá sinais que sim.

• Ela dogmatiza a proposta humanista? É mais do que provável

A escola de cultura humanista que observamos parece privilegiar uma

relação com a colaboração e com a classificação, disciplina à disci-

plina.

É uma situação universal e homogeneizada?

NEM POR SOMBRAS

A forma escolar caracteriza-se por um continuum de formas de re-

lações sociais desde que a escola de acesso tendencialmente univer-

sal existe.

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Fechando: Pistas de trabalho

Escolhi seis entradas para tentar elaborar pistas de trabalho que

vão ao encontro das perguntas que o titulo desta reflexão sugere:

Como olhar para a praxis no atual momento de transformação social? e

Como olhar para equipas pedagógicas e projetos de aprendizagem?

Permitem me acrescentar na segunda pergunta o que penso ter

ganho sentido ao longo do raciocínio desenvolvido: Como olhar para

equipas pedagógicas e projetos de aprendizagem percorrendo caminhos de

pluralismo e de participação?

Sugiro como pistas de trabalho seis ideias:

1. Estamos a ver a evolução da sociedade no planeta só do ponto

de vista do ser humano. Talvez temos que equacionar os out-

ros seres numa espécie de sociedade ecológica planetária.

A educação pode dar um contributo se não proibir, por qual-

quer tipo de dogmatização, o acesso a todo o conhecimento

das ciências da natureza — diferente da construção da reali-

dade cultural — incluíndo a evolução biológica das espécies.

2. Uma visão universal e planetária é possível com currículos

mais abrangentes sem a defesa intransigente de interesses cul-

turais locais. Este defesa local existente implica uma reflexão geral no meio

da comunidade alargada e específica no meio da comunidade

escolar acerca de duas crenças absolutas do ser humano:

• o valor absoluto atribuído ao dinheiro

• o individualismo associado ao estado de guerra permanente

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

3. A auto-avaliação e a avaliação da relação com os outros e com

a realidade observada e vivida obriga a abordagens holísticas

se se pretende caminhar para uma ética cosmopolita.

Na educação escolar obrigatória esta abordagem obriga ao

reconhecimento do auctor. Ser auctor implica ter acesso a todo o conhecimento e aprender

a analisar as fontes de informação. A abordagem holística ao conhecimento obriga ainda à dis-

tinção clara entre os paradigmas educacionais da instrução, da

aprendizagem e da comunicação por parte dos educadores

profissionais.

4. A educação básica ou obrigatória é a educação do trabalho em

rede. Aqui, colaboração corresponde à hierarquia, cooperação cor-

responde ao trabalho em rede.

5. A praxis na escola básica ou obrigatória acolha a flexibilidade

no desenvolvimento curricular mas não a diversificação nor-

mativa. A mediação dos educadores é no sentido da promoção da in-

teração entre todos e não da separação das partes.

6. Para a cultura da escola se tornar democrática — uma cultura

humanista não significa uma cultura democrática — a escola

deverá refletir acerca da sua organização e da sua forma. Enquanto uma organização hierárquica não impede formas

escolares com sujeitos autores no contexto da sala, uma orga-

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Das disciplinas no ensino para a educação além das disciplinas. A Praxis em tempos de transformação social

nização em rede da escola dificulta formas escolares com su-

jeitos objetos na sala de aula.

Para estas seis ideias, parecem-me serem objeto de reflexão:

• considerar a relacionação em vez da relação;

• considerar a função instituinte do grupo;

• considerar a construção em cooperação e flexível do currícu-

lo de cada grupo em função dos seus projetos de aprendizagem;

• considerar a avaliação de processos e produtos aquando da

construção de obras culturais autênticas;

• considerar a avaliação dos percursos individuais das pes-

soas, recusando qualquer classificação em função de uma nor-

ma exterior.

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