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309 THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará A PRISÃO CIVIL NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Sávio Alexandre Caldas Bezerra Servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará Pós-graduando em Direito Constitucional pela ESMEC – Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará RESUMO O presente artigo busca abordar o tema da prisão civil, analisando sua positivação nos tratados internacionais de direitos humanos, auferindo sua importância em relação ao direito internacional dos direitos humanos e ao princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo o seu disciplinamento no Brasil, e verificando a adequação da Constituição Federal e dos julgados pátrios com os tratados internacionais em que o Brasil é signatário. Palavras-chave: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Direitos humanos fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Prisão civil. 1 INTRODUÇÃO Modernamente, cada vez mais se percebe uma forte V.7 n.1 jan/jul 2009

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A PRISÃO CIVIL NO DIREITO INTERNACIONAL DOSDIREITOS HUMANOS

Sávio Alexandre Caldas BezerraServidor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

Pós-graduando em Direito Constitucional pela ESMEC – Escola

Superior da Magistratura do Estado do Ceará

RESUMOO presente artigo busca abordar o tema daprisão civil, analisando sua positivação nostratados internacionais de direitos humanos,auferindo sua importância em relação aodireito internacional dos direitos humanose ao princípio da dignidade da pessoahumana, trazendo o seu disciplinamento noBrasil, e verificando a adequação daConstituição Federal e dos julgados pátrioscom os tratados internacionais em que oBrasil é signatário.

Palavras-chave: Direito Internacional dosDireitos Humanos. Direitos humanosfundamentais. Dignidade da pessoahumana. Prisão civil.

1 INTRODUÇÃOModernamente, cada vez mais se percebe uma forte

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influência do direito constitucional, de ordem pública, sobreo direito privatista ou privado, seja em virtude do surgimentoe evidenciação de novos direitos, seja pelas transformaçõesdo Estado, que convergiu de uma posição autoritária eabsolutista para o Estado liberal, e ainda depois,notadamente no século XX, para o Estado social (ou Estadopós-social de Direito, para alguns), momento em queassumiu uma participação mais ativa na sociedade.

No momento em que assume essa postura, o Estadose coloca na posição de devedor de prestações positivasda sociedade, como apregoa Robert Alexy:

Para el problema de los derechossubjetivos a prestaciones tienenimportancia, sobre todo, las decisiones enlas que no solo se habla – como suelesuceder – de obligaciones objetivas DelEstado, sino que, además, se analizanderechos subjetivos a acciones positivas.1

Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoahumana ganhou força, assumindo em muitos países, inclusiveno Brasil, nas palavras de Pedro Lenza, a condição de“princípio matriz de todos os direitos fundamentais”2 . A

1 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. 3ª ed.

Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p 422.2 LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 11ª ed. São

Paulo: Método, 2007, p. 37.

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Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, inciso III, vaiainda mais longe, conferindo à dignidade da pessoa humanao status de fundamento da República Federativa do Brasil,ainda estabelecendo a prevalência dos direitos humanoscomo um dos princípios a reger a República em suasrelações internacionais (art. 4º, inciso II).

A dignidade da pessoa humana é conceituada comoa liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razãoe agir conforme o seu entendimento e sua opção. Naconcepção de Kant, a dignidade parte da autonomia éticado ser humano, considerando a autonomia como fundamentoda dignidade do homem, além de sustentar que o serhumano não pode ser tratado como objeto.

Ingo Wolfgang Sarlet, tratando do tema, assevera que:

...em se elevando em conta que adignidade, acima de tudo, diz com acondição humana do ser humano, cuida-sede assunto de perene relevância eatualidade, tão perene e atual for a própriaexistência humana. Aliás, apenas quando(e se) o ser humano viesse ou pudesserenunciar à sua condição é que se poderiacogitar da absoluta desnecessidade dequalquer preocupação com a temática oraversada... o respeito e a proteção dadignidade da pessoa (de cada uma e detodas as pessoas) constituem-se (ou, aomenos, assim o deveriam) em meta

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permanente da humanidade, do Estado edo Direito.3

Portanto, temos que a dignidade, uma vez encaradacomo pressuposto latente da essência do ser humano, estáintima e indissociavelmente vinculada aos direitosfundamentais do homem, que, por sua vez, quandoaplicados a todos os indivíduos indistintamente, representamos direitos humanos no plano internacional.

Importante destacar a proximidade de conceitos entredireitos fundamentais e direitos humanos, mais uma vez naspalavras de Ingo Sarlet:

O termo direitos fundamentais se aplicapara aqueles direitos do ser humanoreconhecidos e positivados na esfera dodireito constitucional positivo dedeterminado Estado, ao passo que aexpressão direitos humanos guardariarelação com os documentos de direitointernacional, ... independentemente de suavinculação com determinada ordemconstitucional ... de tal sorte que revelam uminequívoco caráter supranacional.4

3 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitosfundamentais na Constituição Federal de 1988. 5ª ed. Porto Alegre:

Livraria do advogado, 2007, p. 27.4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª

edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p 35.

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A indissociabilidade entre dignidade da pessoahumana e direitos humanos fundamentais encontra respaldomesmo nos ordenamentos jurídicos onde a dignidade nãopossui referência expressa, pois é condição de valor quenorteia toda a ordem jurídica, desde que se reconheçam ese assegurem direitos fundamentais inerentes à pessoahumana. Da mesma forma, a dignidade, por si só, se constituiem elemento pré-existente, anterior a qualquer especulaçãono campo do Direito.

A partir da perspectiva de que todo homem temassegurados direitos e prerrogativas mínimas como formade garantir a preservação de sua dignidade, surge o DireitoInternacional dos Direitos Humanos, responsável pelaproteção da dignidade humana em todo o mundo, atravésda discussão sobre a amplitude do caráter “absoluto” dedignidade e em que situações o mesmo poderia sercontraposto. Tem ainda como um de seus fundamentos arelativização da soberania estatal em detrimento daaplicação dos direitos humanos, eis que não apenas osparticulares, mas, sobretudo os Estados, têm o dever depromover e assegurar a aplicação desses direitos.

Faz-se necessário ressaltar que a noção de dignidadeencontra abrigo, embora não de forma isolada, na liberdadeindividual, ou na “capacidade para a liberdade”, como definiuIngo Wolfgang Sarlet5 . Sem liberdade, continua o autor, “não

5 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitosfundamentais na Constituição Federal de 1988. 5ª ed. Porto Alegre:

Livraria do advogado, 2007, p. 87.

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haverá dignidade, ou, pelo menos, esta não estará sendoreconhecida e assegurada”.

Justamente no universo de inúmeros temas deacentuada relevância associados ao Direito Internacionaldos Direitos Humanos, a prisão civil tem se destacado, emvirtude de sua extremada importância, pois ataca a liberdadede locomoção, princípio de importância ímpar, uma vez quea prisão se constitui em exceção nos ordenamentos jurídicosvigentes em muitos países, inclusive no brasileiro.

O cerne da questão reside no conflito entre as normasde direitos humanos provenientes de tratados assinados erecepcionados pelo Estado e as normas de Direito interno.Isto porque em muitos casos a norma de Direito interno temprevalecido, contrariando a regra que chancela a primaziada norma de proteção dos direitos humanos contida emtratado internacional.

Aplicando a norma de Direito Internacional inscrita notratado, o Estado signatário cumpre a obrigação assumidadiante da comunidade internacional. Caso contrário, provocagrave ofensa à dignidade da pessoa humana, incidindo emviolação da norma do tratado ou convenção, em ato quepoderá ensejar sua responsabilidade no campo internacional.

No Brasil, a celeuma, que parecia se aproximar do fimcom a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004,a qual tratou de conferir aos tratados e convençõesinternacionais sobre direitos humanos o caráter de emendaconstitucional, depois de aprovados por quórum especial,ocasionou o surgimento de inúmeras teorias acerca doalcance das normas já recepcionadas pelo ordenamento

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jurídico brasileiro e também daquelas que porventura venhama ser ratificadas pelo país.

O debate tem envolvido o campo doutrinário de formaintensa, além de promover discussões nos juízos singularese nos tribunais do país, inclusive os superiores.

O tema, que parecia estar longe de se tornar pacífico,tomou uma tendência de definitividade no plenário doSupremo Tribunal Federal, em recente julgamento de doisrecursos extraordinários e um habeas corpus.

A seguir, trataremos de forma mais analítica alguns dosimportantes aspectos relacionados à matéria.

2 PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA: CONCEITO, HIPÓTESES,ORIGENS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

2.1 Conceito e hipóteses

Diversas são as conceituações acerca da prisão civil.Dentre elas, destaca-se a do professor Álvaro VillaçaAzevedo, ao aduzir que:

Prisão civil é a que se realiza no âmbito,estritamente, do Direito Privado,interessando-nos, ...essencialmente, a quese consuma em razão de dívida impaga, ouseja, de um dever ou de uma obrigaçãodescumprida e fundada em norma jurídicade natureza civil... Entendemos, dessemodo, que a prisão civil é o ato deconstrangimento pessoal, autorizado por lei,

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mediante segregação celular, do devedor,para forçar o cumprimento de umdeterminado dever ou de uma determinadaobrigação.6

Portanto, a prisão civil caracteriza-se pela privação daliberdade de uma pessoa, para o fim de constrangê-la, forçá-la a adimplir uma obrigação de natureza civil, sem conotaçãode punição.

As duas hipóteses mais comuns de prisão civil pordívida, verificadas em alguns ordenamentos espalhados pelomundo, inclusive no Brasil, dizem respeito ao devedor deprestação de caráter alimentar e ao depositário infiel.Contudo, alguns ordenamentos previam ou ainda prevêema prisão por dívidas contra o erário ou em casos de fraudecontra credores ou insolvência fraudulenta.

2.2 Origens e evolução histórica

A prisão por dívida pode ser verificada nas maislongínquas eras da antiguidade.

O Código de Hamurabi, elaborado na época em quegovernou na Babilônia o rei de mesmo nome, no períodocompreendido entre 1728 e 1686 a.C, já previa a prisão pordívidas em alguns de seus artigos. Da mesma forma, relatosbíblicos apontam para o pagamento de dívidas com a

6 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Prisão Civil Por Dívida. 1ª Ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1993, p. 45.

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escravidão de membros da família do devedor. No segundolivro dos Reis, em seu capítulo 4, versículo 1, observamosque “Certa mulher, das mulheres dos discípulos dos profetas,clamou a Eliseu, dizendo: meu marido, teu servo, morreu; etu sabes que ele temia ao Senhor. É chegado o credor paralevar os meus dois filhos para lhe serem escravos”7 . Emboranão se verificasse o encarceramento propriamente dito, oescravo sujeitava-se às ordens do seu senhor, o quecaracterizava uma séria restrição na liberdade do indivíduo.

Ainda verifica-se a prisão por dívida no Código deManu, de origem hindu (século XIII a.C.), e no antigo Egito.No Direito Romano, essa obrigação derivava do nexum,situação de inferioridade jurídica do plebeu em relação aopatrício, em que o plebeu, não conseguindo crédito, vinculavasua própria pessoa. Caso não efetuasse o pagamento docrédito liberado, poderia ser colocado em cárcere privadodo credor.

A Lei das XII Tábuas também admitia a prisão pordívida e a execução pessoal do devedor. Somente a partirdo advento da Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C., oinadimplemento do débito passou a ensejar não mais aexecução pessoal do devedor, mas apenas do seupatrimônio.

Na Idade Média e na Idade Moderna a prisão dodepositário infiel esteve presente nas legislações da Itália,

7 Bíblia de estudo de Genebra, São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p.

432.

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França e Inglaterra.No período compreendido entre os séculos XVII e XVIII,

chamado de “Século das Luzes”, o movimento iluministacontribuiu substancialmente para que se abolisse o uso daprisão civil como forma de coerção para o cumprimento deuma obrigação contratual em quase todos os países daEuropa.

3 A PRISÃO CIVIL NO DIREITO COMPARADO

3.1 Itália

A prisão civil por dívida no Direito Italiano resumia-seaos casos de condenações criminais ex delicto. Contudo, oCódigo Civil de 1942 tratou de abolir tal previsão.

No tocante aos débitos de natureza alimentar, nãoexiste a possibilidade de prisão civil pelo seuinadimplemento. Todavia, a conduta é considerada crime deviolação das obrigações de assistência familiar, punido comreclusão de até 01 (um) ano mais multa (art. 570 do CódigoPenal Italiano).

3.2 França

O Direito Francês sempre esteve dividido quanto àaplicação da prisão civil. Alguns governantes tentaram aboli-la, outros mantê-la.

Em 1274, época em que ainda vigia o feudalismo, aprisão por dívidas foi parcialmente abolida, aplicando-se

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somente aos casos de débito com o Tesouro Público, masem 1867, deixou de existir definitivamente.

Já os débitos de natureza alimentar têm previsãosimilar ao Direito Italiano, prevendo a impossibilidade deprisão civil, mas tipificando a conduta como crime deabandono de família, caracterizado a partir do nãopagamento de dois meses de pensão alimentícia, prevendopena de prisão de três meses a um ano ou pagamento de300 (trezentos) a 6.000 (seis mil) francos, além da destituiçãodos direitos civis e do pátrio poder.

3.3 Inglaterra

A prisão por dívidas na Inglaterra apresentava, emalguns casos, aspectos de extrema crueldade, como amutilação do corpo daquele que não adimplia com aobrigação pactuada.

A revolta social contra esses procedimentos foi intensae incisiva, levando a Rainha Vitória a abolir a prisão pordívidas em 1869, através do Debtor’s Act, que excetuouapenas a hipótese de insolvência fraudulenta por períodonão superior a seis semanas.

3.4 Argentina

Oriundas da legislação espanhola, as disposiçõeslegais argentinas permitiam a prisão civil por dívida. A lei nº50, de 1863, cuidou de estabelecer a prisão por dívidas decunho civil e comercial.

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Contudo, a exemplo da legislação inglesa, a lei nº 514,de 1872, tratou de abolir a prisão civil, excetuando os casosde falência e insolvência civil decorrentes de dolo ou fraudepor parte do devedor.

3.5 Estados Unidos

Em virtude da adoção do chamado federalismoclássico nos Estados Unidos, onde cada um dos Estadosfederados elabora suas próprias leis, ainda encontramos aprisão por dívidas de cunho alimentar em alguns dessesEstados, principalmente para os casos de filhos de paisseparados que se encontram sob a guarda da mãe.

4 ORIGEM E EVOLUÇÃO DA PRISÃO CIVIL NO DIREITOBRASILEIRO

4.1 Origem e evolução

O Brasil, em virtude do longo período de colonização,e mesmo após sua independência, adotou o DireitoPortuguês. Até a elaboração de legislação própria, asOrdenações, Alvarás, Leis, Decretos e RegulamentosPortugueses continuavam vigendo no País.

Naqueles dias, Portugal sofria influência doCristianismo, em ascensão por toda a Europa, e adotavapostura que atenuava a opção pela prisão, tornando suaincidência cada vez menos utilizada.

Esse critério foi adotado em toda a legislação brasileira

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superveniente, que tratou de permitir a prisão civil apenasem hipóteses de relevante e extremada importância.

4.1.1 A herança portuguesa

A prisão civil está presente no ordenamento jurídicodo Brasil desde o início da colonização, uma vez que já seencontrava amparada nas Ordenações Manuelinas, de 1521,nos mesmos termos do que fora antes instituído nasOrdenações Afonsinas, de 1446, conforme nos informa oprofessor Álvaro Villaça Azevedo:

A prisão civil por dívida existiu no primitivoDireito Português, herdada dos Romanos,após terem passado às fontes jurídicasvisigóticas, aparecendo nos Foros deCastelo Bom, transcritos na obra de GamaBarros, bem como em legislação demeados do século XIII. Até o início do séculoXV já estava bem delineado no DireitoPortuguês o instituto da prisão civil pordívida, não podendo esta ser decretadasem que fossem, antes, executados os bensdo devedor.Mesmo que fosse insuficiente o patrimôniodo devedor ao pagamento do seu débito,para evitar a prisão poderia ele oferecer aocredor todos os seus bens, a não ser que odébito fosse à Coroa. Em caso de atuaçãoilícita, mesmo tendo bens, o devedor deveria

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ser preso e “pagar” na cadeia.Destaque-se, nesse passo, que o Alvará de11.01.1517 proibiu, de modo geral, quefosse decretada prisão civil por pequenasdívidas, relativas a alimentos, quando osalimentantes não tivessem condições derealizar o pagamento. 8

Com a unificação ibérica em 1850, Portugal passoupara o domínio espanhol, ocasião em que foi aclamado oRei Felipe II, e editadas as Ordenações Filipinas, em 1603.

A prisão civil por dívida permaneceu com as mesmascaracterísticas do código anterior, mas o devedor não seriapreso antes da condenação judicial transitar em julgado,caso não tivesse agido de forma ilícita, a não ser que fosseconsiderado foragido.

Mesmo entrando em vigor o Código Criminal de 1830,a prisão do depositário foi mantida não só na ação civilprevista nas Ordenações Filipinas, mas também no processocriminal (arts. 258 e 265).

4.1.2 A prisão civil no ordenamento infraconstitucionalbrasileiro

A primeira legislação brasileira a tratar do tema daprisão civil foi o Código Civil de 1916, que previa a prisãopara o depositário infiel em seu art. 1287, trazendo o seguinte

8 Ob. citada, p. 50-51.

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teor: “seja voluntário ou necessário o depósito, o depositárioque não o restituir quando exigido, será compelido a fazê-lomediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir osprejuízos”.

O Código de Processo Civil de 1939 (art. 920)acrescentou a hipótese de prisão para os casos de devedorde pensão alimentícia, em que “o não cumprimento depensão alimentícia será punido com prisão decretada pelojuízo cível.” O referido dispositivo foi mantido no Código deProcesso Civil de 1973, ainda vigente, que fixou o períodode três meses como prazo máximo para a duração da prisão(art. 733, § 1º).

Em 1969, o governo militar que se encontrava no poderinstitui o Decreto-Lei 911, que alterava o artigo 66 da Lei4.728/65, transformando o devedor fiduciante em depositáriodo bem adquirido em alienação fiduciária, concedendo aocredor fiduciário a possibilidade de transformar a ação debusca e apreensão em ação de depósito, fazendo incidir aprevisão legal de prisão civil destinada ao depositário quenão devolve o bem ao final do contrato.

Concluído o processo de redemocratização do Brasil,com a passagem do poder político para a sociedade civil, oSupremo Tribunal Federal manteve o entendimento pelaaceitação do Decreto-Lei 911/69, admitindo a prisão dodevedor fiduciário, enquanto o STJ adotou entendimentocontrário, não admitindo a recepção da norma pelo novoregime constitucional, e excluindo a possibilidade de prisãodo adquirente de bem em alienação fiduciária.

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4.1.3 A prisão civil no ordenamento Constitucionalbrasileiro

As Constituições de 1824 e 1891 foram silentes quantoà previsão de prisão civil. No âmbito do Direito Constitucionalpátrio foi a Constituição de 1934 que, pioneiramente, impôsa vedação à prisão civil, sem ressalvas, em seu art. 113, nº30: “Não haverá prisão por dívidas, multas ou custas”.Entretanto, esta regra foi revogada na constituição de 1937,para dar ensejo às hipóteses de prisão do devedor deprestação alimentícia e do depositário infiel.

Com a promulgação da Constituição de 1946, aproibição da prisão civil passou a ter novamente statusconstitucional, consagrada no art. 141, §32. No texto domesmo parágrafo, efetuou-se a constitucionalização dasnormas ordinárias que previam a possibilidade de prisãocivil do devedor de alimentos e do depositário infiel.Posteriormente, as Constituições de 1967 e 1988caminharam no mesmo sentido, mantendo as mesmasressalvas.

O artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de1988, apresenta a seguinte redação: “Não haverá prisão civilpor dívida, salvo a do responsável pelo inadimplementovoluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a dodepositário infiel”.

5 OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOSHUMANOS E SUA APLICAÇÃO NO ORDENAMENTOJURÍDICO BRASILEIRO

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A Declaração Americana dos Direitos e Deveres doHomem, aprovada na IX Conferência InternacionalAmericana, realizada em Bogotá, Colômbia, em abril de1948, com a participação do Brasil, já trazia em seu art. 25:

Ninguém pode ser privado da sualiberdade, a não ser nos casos previstospelas leis e segundo as praxesestabelecidas pelas leis já existentes.Ninguém pode ser preso por deixar decumprir obrigações de naturezaclaramente civil. Todo indivíduo, que tenhasido privado da sua liberdade, tem o direitode que o juiz verifique sem demora alegalidade da medida, e de que o julgue semprotelação injustificada, ou, no casocontrário, de ser posto em liberdade. Temtambém direito a um tratamento humanodurante o tempo em que o privarem da sualiberdade. (Grifos nossos).

Após a promulgação da atual Constituição, em 1988,o Brasil ratificou, em 1990, o Pacto Internacional sobredireitos civis e políticos, que traz em seu art. 11 a proibiçãode prisão civil, sem ressalvas: “Ninguém poderá ser presoapenas por não poder cumprir com uma obrigaçãocontratual”.

Após, em 1992, foi signatário (Decreto 678, de 6 denovembro de 1992) de um tratado internacional firmado naConvenção Americana dos Direitos Humanos, ocorrida na

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cidade de San Jose, Costa Rica. Neste pacto, conhecidocomo Pacto de San Jose da Costa Rica, ficou estabelecido,no art. 7º, item 7, que “Ninguém será detido por dívida. Esteprincípio não limita os mandados de autoridade judiciáriacompetente expedidos em virtude de inadimplemento deobrigação alimentícia”.

Desta forma, com a adoção das disposições contidasno Pacto de San Jose, surgiu uma antinomia entre o incisoLXVII do art. 5º da Constituição Federal, que prevê a prisãocivil do depositário infiel e do devedor de alimentos, e o artigo7º, item 7, do mencionado acordo internacional.

O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituiçãoe responsável pelo controle constitucional, havia firmadoentendimento de que não há prevalência de norma previstaem tratado internacional sobre disposição da ConstituiçãoFederal, decidindo que as regras contidas no Pacto de SanJose da Costa Rica, apesar de ratificadas pelo Brasil, devemser interpretadas com as limitações previstas naConstituição.

Todavia, uma forte tendência internacional no sentidode extinguir totalmente a prisão civil começou a produzirmudanças no Pretório Excelso, evidenciada pelosmovimentos de valorização dos direitos humanos contráriosà limitação da liberdade por razões econômicas.

Em matéria publicada no site do STF, no dia 13 demarço de 2008, constatou-se que o posicionamento anteriordo órgão, que defendia a prisão civil do depositário infiel,estava com os dias contados:

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Pedido de vista adia julgamento deprocessos que discutem prisão civil pordívidaUm pedido de vista do ministro CarlosAlberto Menezes Direito adiou, ontem (12),o julgamento, pelo Plenário do SupremoTribunal Federal (STF), de três processosem que se discute a prisão civil por dívida.Os processos haviam sido levados de voltaao plenário pelo ministro Celso de Mello,que deles pedira vista em 2006 e 2007. Emum dos processos, oito ministros já sedeclararam contra a prisão civil pordívida do depositário infiel.Trata-se dos Recursos Extraordinários (RE)349703 e 466343, além do Habeas Corpus(HC) 87585. Nos REs, em processos contraclientes, os bancos Itaú e Bradescoquestionam decisões que entenderam queo contrato de alienação fiduciária emgarantia é insuscetível de ser equiparadoao contrato de depósito de bem alheio(depositário infiel) para efeito de prisãocivil....Em voto de quase duas horas queproferiu na sessão, o Ministro Celso deMello mudou posição que defendiaanteriormente sobre a questão,

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posicionando-se contra a prisão civilpor dívida, prevista no artigo 5º, incisoLXVII, da Constituição, como medidaexcepcional para o depositário infiel, aolado da prisão por inadimplementovoluntário das obrigações referentes àpensão alimentícia.Neste contexto, o ministro ressaltouvotos que o Ministro Marco Aurélio vemproferindo há tempos contra a prisão dodepositário infiel, qualificando-os comoprecursores de uma nova mentalidadeque está surgindo no STF nojulgamento de casos semelhantes.O ministro invocou o disposto no artigo 4º,inciso II, da Constituição, que preconiza aprevalência dos direitos humanos comoprincípio nas suas relações internacionais,para defender a tese de que os tratados econvenções internacionais sobre direitoshumanos, mesmo os firmados antes doadvento da Constituição de 1988, devemter o mesmo status dos dispositivosinscritos na Constituição Federal (CF). Eleponderou, no entanto, que tais tratados econvenções não podem contrariar odisposto na Constituição, somentecomplementá-la.A CF já dispõe, no parágrafo 2º do artigo

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5º, que os direitos e garantias nelaexpressos “não excluem outros decorrentesdo regime e dos princípios por elaadotados, ou dos tratados internacionaisem que a República Federativa do Brasilseja parte”.Cezar Pelluzo reiterou hoje sua posiçãosobre o tema. “O que se tem hoje comodireito posto é a inadmissibilidade daprisão do depositário, qualquer que sejaa qualidade desse depósito”, disse ele,que é relator de um dos processos emjulgamento, o Recurso Extraordinário466343. “Já não é possível conceber ocorpo humano como passível deexperimentos normativos no sentido deque se torne objeto de técnicas decoerção para cumprimento deobrigações estritamente de caráterpatrimonial”, afirmou. A única ressalvafeita por ele foi quanto ao inadimplentede pensão alimentar. (Grifos nossos).

Como se percebe, a tendência do STF era ressalvarcomo única hipótese de prisão civil no Brasil a do devedorde pensão alimentícia, nos termos do Pacto de San Jose daCosta Rica, do qual o Brasil é signatário, tendênciaconfirmada no dia 03 de dezembro de 2008, quando oplenário do STF, por maioria, arquivou o Recurso

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Extraordinário nº 349.703 e, por unanimidade, negouprovimento ao Recurso Extraordinário nº 466.343, quediscutiam a prisão civil de alienante fiduciário infiel. OPlenário estendeu a proibição de prisão civil por dívida,prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal,à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, poranalogia, também à alienação fiduciária, tratada nos doisrecursos.

Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu no sentido deque a prisão civil por dívida é aplicável apenas aoresponsável pelo inadimplemento voluntário e inescusávelde obrigação alimentícia. O Tribunal entendeu que a segundaparte do dispositivo constitucional que versa sobre o assuntoé de aplicação facultativa quanto ao devedor, à exceção doinadimplente com alimentos, e, também, ainda carente delei que defina rito processual e prazos.

Também na mesma oportunidade e por maioria, oSupremo decidiu no mesmo sentido um terceiro processoversando sobre o mesmo assunto, o Habeas Corpus nº87.585. Para dar consequência a esta decisão, revogou aSúmula 619 do próprio STF, segundo a qual “a prisão dodepositário judicial pode ser decretada no próprio processoem que se constituiu o encargo, independentemente dapropositura de ação de depósito”.

6 A EMENDA CONSTITUCIONAL 45 E SUASIMPLICAÇÕES NO TEMA

Definir a hierarquia dos tratados de direitos humanos

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é uma das questões mais controvertidas no Direito brasileiro.A alteração introduzida pela Emenda Constitucional nº 45,de 15 de dezembro de 2004, que inseriu o parágrafo 3º aoart. 5º da Constituição Federal, materializou um retrocessoem relação às normas anteriormente previstas e ainda nãorevogadas, que conferem hierarquia constitucional aostratados internacionais de proteção dos direitos humanos,contidas no inciso II do art. 4º, e nos parágrafos 1º e 2º doart. 5º da Constituição Federal.

A EC 45/2004 instituiu, para os tratados de direitoshumanos, procedimento rigoroso e de difícil aprovação paraque os mesmos possam ser alçados à categoria de normasconstitucionais. Conforme prevê o dispositivo contido no §3º do art. 5º, “Os tratados e convenções internacionais sobredireitos humanos que forem aprovados, em cada Casa doCongresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dosvotos dos respectivos membros, serão equivalentes àsemendas constitucionais”, o que significa dizer que ostratados de direitos humanos que não alcançarem o quorumnecessário para sua aprovação ficarão submetidos à pechade leis ordinárias, enquanto aqueles que lograrem o êxitoda aprovação serão alçados à hierarquia de normasconstitucionais.

Essa possibilidade de situar tratados e convençõessobre direitos humanos em diferentes categorias certamenteacarreta a promoção de um tratamento desigual entre oscidadãos, pois alguns seriam beneficiados pela aplicaçãode um tratado de direitos humanos que fosse aprovado pelonúmero de votos previstos para as emendas constitucionais,

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enquanto outros ficariam prejudicados pela inefetividadedaqueles tratados de direitos humanos que nãoalcançassem status hierárquico de normas constitucionais.

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, procurandoanalisar o status normativo dos tratados e convençõesinternacionais sobre direitos humanos, proferiu voto9

interessante, colocando tais normas em quatro categorias:natureza supraconstitucional, caráter constitucional, statusde lei ordinária e caráter supralegal.

Defendeu o caráter supralegal das mesmas, afirmandoque os tratados sobre direitos humanos sãoinfraconstitucionais, mas diante de seu caráter especial emrelação aos demais atos normativos internacionais, tambémseriam dotados de um atributo de supralegalidade. Emoutras palavras, os tratados sobre direitos humanos nãopoderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriamlugar especial reservado no ordenamento jurídico.

Referindo-se ao debate sobre a possibilidade daprisão civil do depositário infiel, argumentou que diante dasupremacia da Constituição sobre os atos normativosinternacionais, a previsão constitucional da prisão civil dodepositário infiel (art. 5º, LXVII, da CF) não foi revogada pelaratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis ePolíticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre DireitosHumanos – Pacto de San Jose da Costa Rica (art. 7º, 7),mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisantedesses tratados em relação à legislação infraconstitucional

9 RE 466.343 STF.

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que disciplina a matéria, incluídos o art. 1287 do CódigoCivil de 1916 e o Decreto-Lei nº 911/69.

Referida norma ainda provocou outras preocupações,no tocante à indefinição de como ficarão os tratados dedireitos humanos ratificados antes da edição da EmendaConstitucional nº 45/2004, uma vez que o Brasil já assinou eratificou a maioria dos tratados de proteção dos direitoshumanos. A questão a ser solucionada reside em saber setais tratados adquirirão automaticamente status de normasconstitucionais ou se continuarão equiparados a leisordinárias, ou, ainda, se também serão submetidos aomesmo rito legislativo previsto pela Emenda Constitucionalnº 45, com o objetivo de serem reconhecidos como normasconstitucionais.

A tese do Ministro Gilmar Mendes é hoje majoritáriano Plenário do STF, que atribuiu status supralegal (acimada legislação ordinária) a esses tratados, situando-os, noentanto, em nível abaixo da Constituição. Porém, essacorrente admite dar a eles status de constitucionalidade,se votados pela mesma sistemática das emendasconstitucionais pelo Congresso Nacional, ou seja: maioriade três quintos, em dois turnos de votação, conforme previstono parágrafo 3º, acrescido pela Emenda Constitucional nº45/2004 ao artigo 5º da Constituição Federal.

Considerando que a prisão de um ser humano émedida extrema e de graves consequências tanto no planofísico como no plano emocional, a norma constitucional queinstituiu a possibilidade da prisão civil por dívida, em plenorol dos direitos e garantias fundamentais, além de

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representar séria violação das regras emanadas naDeclaração Universal dos Direitos Humanos e em diversosinstrumentos internacionais de proteção da dignidadehumana, representa também uma violação das regrasemanadas do próprio texto constitucional, definidas em seuart. 1º, onde declara que:

A República Federativa do Brasil, formadapela união indissolúvel dos Estados eMunicípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito etem como fundamento:...III - a dignidade da pessoa humana....

Vale ressaltar que a prisão traz consigo o risco de malgrave e perigo de lesão intensa, que pode revestir-se comode difícil reparação. Afinal, todo aquele que for submetidoao cárcere vai enfrentar, por todo o país, superlotaçãocarcerária não somente em presídios, mas também emdelegacias, além do convívio com detentos da esfera penal,muitas vezes perigosos.

Como se não bastasse, referido instituto também éfrontalmente dissonante com o princípio da prevalência dosdireitos humanos, diretriz orientadora das relações do Brasilno plano internacional, estabelecida no art. 4º, inciso II, daConstituição Federal, que assim dispõe:

A República Federativa do Brasil rege-senas suas relações internacionais pelos

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seguintes princípios:...

II - prevalência dos direitos humanos.Numa sociedade oprimida por profundas

desigualdades sociais, em que grande parte da populaçãovive em condições precárias, desprovidas do mínimonecessário para viver dignamente, a norma que prevê apossibilidade de prisão civil do inadimplente de pensãoalimentícia e, sobretudo, do depositário infiel, revela-seexcessivamente opressiva e configura uma tremendainjustiça, por utilizar como único parâmetro o nãocumprimento de uma obrigação e como único princípio o dacondição econômica da pessoa, rasgando-se as garantiasconstitucionais do processo.

A medida excepcional da prisão civil por dívida, a meuver, deve limitar-se aos casos em que um valor superior aopróprio valor da liberdade está em perigo, ou seja, o direitoà saúde e à vida, nos casos de obrigação alimentícia, edesde que comprovada a capacidade econômica doalimentante e sua recusa em prestar os alimentos.

Assim, a prisão, por suposta infidelidade dodepositário, mostra-se fora de qualquer proporcionalidadeou razoabilidade, pois desponta como irrazoável tudo quantonão guarda bom arrimo de fato ou de direito, seja limitandoou suprimindo direito ou garantia individual.

Como bem frisou o Ministro Cézar Peluso, “aConstituição Federal não deve ter receio quanto aos direitosfundamentais. O corpo humano, em qualquer hipótese dedívida é o mesmo. O valor e a tutela jurídica que ele merece

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são os mesmos. A modalidade do depósito é irrelevante. Aestratégia jurídica para cobrar dívida sobre o corpo humanoé um retrocesso ao tempo em que o corpo humano era o‘corpus vilis’ (corpo vil), sujeito a qualquer coisa” 10 .

10 Parte do voto proferido no julgamento dos RE’s nºs 349.703 e 466.343

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STF – Sítio do Supremo Tribunal Federal

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