A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VIA A ...

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A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VIA A COMPLEMENTARIDADE DO SETOR PRIVADO AO PÚBLICO Clara Morgana Torres da Rocha Silva 1 Gildete Ferreira da Silva 2 Maria Valéria Costa Correia 3 Viviane Medeiros dos Santos 4 RESUMO: Este artigo trata dos interesses do capital expressos no âmbito da política de saúde brasileira, no contexto de crise do capital, contrarreformas do Estado e de afronta à Constituição de 1988. Abordamos, particularmente, como esses interesses tem se apresentado na política de saúde brasileira, através da privatização do SUS, pela complementaridade do setor privado ao público, via as contratualizações e convênios firmados com o setor filantrópico/privado. Palavras-chave: Contrarreforma; Sistema Único de Saúde; Privatização; ABSTRACT: This article deals with the interests of capital expressed within the scope of Brazilian health policy, in the context of the capital crisis, counter-reforms of the State and of affront to the Constitution of 1988. We particularly address how these interests have been presented in Brazilian health policy, Through the privatization of the SUS, by the private sector's complementarity with the public, through contractual agreements and agreements with the philanthropic / private sector. Keywords: Counter-Reformation; Unified Health System; Privatization; 1 Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais. 2 Graduanda em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais. 3 Assistente Social. Prof.ª. Dr.ª da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal. 4 Assistente Social da Prefeitura de Delmiro Gouveia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pósgraduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal.

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A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE VIA A

COMPLEMENTARIDADE DO SETOR PRIVADO AO PÚBLICO

Clara Morgana Torres da Rocha Silva1

Gildete Ferreira da Silva2

Maria Valéria Costa Correia3

Viviane Medeiros dos Santos4

RESUMO: Este artigo trata dos interesses do capital expressos no âmbito da política de saúde brasileira, no contexto de crise do capital, contrarreformas do Estado e de afronta à Constituição de 1988. Abordamos, particularmente, como esses interesses tem se apresentado na política de saúde brasileira, através da privatização do SUS, pela complementaridade do setor privado ao público, via as contratualizações e convênios firmados com o setor filantrópico/privado. Palavras-chave: Contrarreforma; Sistema Único de Saúde; Privatização;

ABSTRACT: This article deals with the interests of capital expressed within the scope of Brazilian health policy, in the context of the capital crisis, counter-reforms of the State and of affront to the Constitution of 1988. We particularly address how these interests have been presented in Brazilian health policy, Through the privatization of the SUS, by the private sector's complementarity with the public, through contractual agreements and agreements with the philanthropic / private sector. Keywords: Counter-Reformation; Unified Health System; Privatization;

1 Bacharela em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pesquisadora do Grupo

de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais. 2 Graduanda em Serviço Social pela Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de

Alagoas, integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais. 3 Assistente Social. Prof.ª. Dr.ª da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas.

Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal. 4 Assistente Social da Prefeitura de Delmiro Gouveia. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa e

Extensão Políticas Públicas, Controle Social e Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pósgraduação da Faculdade de Serviço Social da Ufal.

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I. INTRODUÇÃO

O estudo aqui apresentado faz parte de resultados de pesquisas que têm sido

desenvolvidas - projetos de iniciação científica, Trabalho de Conclusão de Curso,

dissertação e teses - a partir do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas, Controle Social e

Movimentos Sociais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de

Alagoas.

Em nosso estudo, evidenciamos que o processo de captura do fundo público

pelo setor privado na área da saúde não é recente, desde o século XX, o Estado brasileiro

fomentava a compra de serviços de saúde ao setor privado ao invés da ampliação dos

serviços públicos de saúde. Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e

da aprovação das leis orgânicas da saúde, o setor privado conseguiu manter seus

interesses na prestação dos serviços de saúde na forma de caráter “complementar” seja

através de contratos ou convênios.

Com o aprofundamento da crise do capital nos anos de 1990, e sua caçada por

novos nichos de acumulação, a atuação do Estado passa a ser redefinida fortalecendo os

interesses do capital, mediante as orientações neoliberais cristalizadas nas contrarreformas

as quais tem impactado nas políticas sociais. No que se refere a política de saúde, tem se

ampliado cada vez mais a atuação do setor privado na prestação de serviços públicos, no

caso da complementaridade do setor privado ao SUS, esta tem sido cada vez mais inversa,

se tem privatizado o fundo público da saúde por dentro do SUS.

II. PROCESSO HISTÓRICO-SOCIAL DA CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

PÚBLICA NO BRASIL

Para compreendermos a processualidade que levou a constituição da política de

saúde brasileira se faz necessário contextualizarmos momentos importantes de lutas e

resistências dos movimentos populares de saúde.

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Em 1923, com a Lei Eloy Chaves5, foram criadas as Caixas de Aposentadorias e

Pensões (CAPs) que, segundo Correia (2005, p.154), “eram um contrato compulsório

contributivo que tinha como função a prestação de benefícios, o pagamento de pensões e

aposentadorias, e a assistência médica”. Sendo assim, só tinha direito a assistência médica

quem contribuía com as CAPs, ou seja, quem tinha vínculo empregatício ou aposentado,

sendo o atendimento médico ofertado pelas empresas por intermédio do setor privado. “As

CAPs eram financiadas, pelas empresas empregadoras e pelos empregados. Elas eram

organizadas por empresas, de modo que só os grandes estabelecimentos tinham condições

de mantê-las” (BRAVO, 2005, p.03)6.

De acordo com Correia (2005, p. 154), as CAPs foram absorvidas pelos

Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que são entidades autárquicas com a

presença direta do Estado e se organizavam na forma de categorias profissionais. A

contribuição deixa de ser bipartite, que seria a contribuição direta do empregado e do

patrão, e passa a ser tripartite, com a contribuição do empregador, do empregado e do

Governo. Desta forma, o Estado só oferecia os serviços de saúde para quem estava ativo

no mercado de trabalho, pois tinha a natureza contributiva e o direito ao benefício estava

vinculado à condição de um contrato de trabalho, deixando o resto da população sob o

atendimento de entidades filantrópicas.

Na década de 1960, com o regime militar, os IAPs foram absorvidos e

transformados no Instituto Nacional de Previdência Social7 (INPS) que deu continuidade à

política de saúde ligada à previdência e com caráter privado.

5 Decreto Legislativo no 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que criou em cada uma das empesas de estradas de ferro existentes no país uma Caixa de Aposentadoria e Pensões para os respectivos empregados.

6 Este texto é uma versão revista e ampliada dos artigos: “As Políticas de Seguridade Social Saúde”. In: CFESS/ CEAD. Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo III: Política Social. Brasília: UnB- CEAD/ CFESS, 2000 e “A Política de Saúde no Brasil: trajetória histórica". In: Capacitação para Conselheiros de Saúde - textos de apoio. Rio de Janeiro: UERJ/DEPEXT/NAPE, 2001.

7 Segundo Oliveira, Araújo, Cecílio “O INPS consolida o componente assistencial, com marcada opção de compra de serviços assistenciais do setor privado, concretizando o modelo assistencial hospitalocêntrico, curativista e médico-centrado, que terá uma forte presença no futuro SUS”. Disponível em:< http://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/1/modulo_politico_gestor/Unidade_4.pdf> Acessado em: 27 de fevereiro de 2016.

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Na década de 1970, vários movimentos sociais brasileiros pediam uma

reavaliação da política de saúde que vigorava no Brasil, e com forte influência da reforma

sanitária italiana, formou-se então no país, resultados de lutas sociais, o Movimento de

Reforma Sanitária Brasileira, que serviu como o primeiro passo para uma reformulação da

política de saúde, que inicialmente se intitulou de “Movimento Preventivista”. Segundo

Arouca (1975, p. 239), esse foi

Um movimento ideológico que tinha como projeto a mudança da prática médica através de um profissional médico que fosse imbuído de uma nova atitude. Como projeto de mudança da prática médica, a medicina preventivista representou uma leitura liberal e civil dos problemas do crescente custo da atenção médica nos EUA e uma proposta alternativa à intervenção estatal, mantendo a organização liberal da prática médica e o poder médico. (AROUCA, 1975).

A reforma sanitária italiana,

Apresentou uma crítica ao sistema de saúde existente, e reflexões sobre o longo e fértil processo, de construção e implantação da reforma sanitária italiana, concebida e forjada no decorrer da árdua luta política, travada pelo Partido Comunista Italiano (PCI) – principal formação de esquerda italiana e maior partido comunista da Europa Ocidental -, em conjunto com a esquerda, com o Partido Socialista Italiano, sindicatos e os movimentos populares. Em 1695, o PCI já apresentava propostas de lei e expressava os principais resultados da crescente mobilização popular, e dos trabalhadores, em torno da questão (BERLINGUER, 1988, apud MEDEIROS, 2008).

De acordo com Medeiros (2008, p. 143) o “Movimento Sanitário apresentou-se

como principal articulador das lutas pela saúde, protagonizando em conjunto com outros

movimentos populares”. No Brasil, com o desenvolvimento das lutas sociais impulsionadas

pelo processo de redemocratização do país e por um sistema de saúde único, universal,

gratuito e igual para todos, durante o contexto de ditadura militar, o movimento da reforma

sanitária se estabeleceu e ganhou forças com os sindicatos dos médicos, o Partido

Comunista Brasileiro (PCB) que esteve à frente na condução estratégica, e os movimentos

sociais populares. Essa articulação se iniciou com o debate da 8ª Conferência Nacional de

Saúde, em março de 1986, a qual teve como eixos centrais: a saúde como direito, a

reformulação do sistema nacional de saúde, e o financiamento setorial da saúde. Arouca

(1998) avaliou que estava

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Em curso uma reforma democrática não anunciada ou alardeada na área da saúde. A Reforma Sanitária brasileira nasceu na luta contra a ditadura, com o tema Saúde e Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em experiências regionais de organização de serviços. Esse movimento social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os segmentos da sociedade civil discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado (AROUCA, 1998).

Reconhecida como o ápice do movimento que lutava pela reestruturação da saúde

no Brasil, na medida em que defendia também a redemocratização do país, a 8ª

Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, que apresentou como eixos

centrais: a saúde como direito, a reformulação do sistema nacional de saúde, e o

financiamento setorial da saúde; colocando-a num patamar de direito universal, norteando

de que forma deveria ser implementado o novo sistema de saúde brasileiro e definindo,

inicialmente, como se daria seu financiamento, se a sua estatização ocorreria de forma

imediata ou progressiva.

Apesar da proposta de estatização imediata ter sido recusada, ficou claro o desejo

dos delegados que faziam parte da 8ª Conferência e dos demais participantes, que havia

uma necessidade do fortalecimento do setor público. Existia certa urgência de o Estado

assumir a saúde garantindo condições dignas de acesso de forma universal e igualitária.

Outro assunto bastante discutido na 8º CNS e que consta em seu relatório final, foi a

separação da Saúde e Previdência, pois havia uma concepção de que a previdência deveria

se responsabilizar naquele momento pelo “Seguro Social”, como pensões, aposentadorias e

demais benefícios.

Em consenso com as deliberações da 8ª CNS, a partir do ano de 1986, iria haver

mudanças na política de saúde. Ela então passaria a ser dever do Estado e os recursos que

até então eram entregues ao INPS, agora deveriam ser destinados a um novo órgão gestor

constituindo-se um Fundo Nacional de Saúde (FNS). Esse Fundo seria formado por

recursos derivados do Orçamento da Seguridade Social, sendo o Estado responsável pelo

financiamento do novo sistema, que seria descentralizado na gestão dos serviços e traria o

fortalecimento dos municípios.

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A relação entre política social e econômica foi bastante tratada na 8ª CNS,

consolidando as ideias do Movimento da Reforma Sanitária, que nesse momento ganhava

forças na construção de uma nova constituinte. O relatório da 8ª CNS nesse momento

contribuiu com o debate de construção da Constituição Federal de 1988, trazendo alguns

princípios do Movimento de Reforma Sanitária, como a universalidade8, a equidade9, a

integralidade10.

Nesse sentido, sob fortes influências dos movimentos sociais, é promulgada a

Carta Magna de 1988, que em seu art. 196 assegura a saúde como direito de todos e dever

do Estado, garantida através de políticas sociais e econômicas visando a redução dos

riscos de doenças e outros agravos, com serviços de promoção, proteção e recuperação.

Contudo, no art. 199 da CF nos deparamos com uma fresta que permite que a assistência à

saúde seja livre à inserção da iniciativa privada, sendo regulamentada pelo “§ 1º As

instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de

Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo

preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos” (BRASIL, 1988).

Compondo o arcabouço legal do SUS, junto à CF de 1988, temos as leis federais

nº 8.080 e nº 8.142. A primeira, criada em 19 de setembro de 1990, “dispõe sobre as

condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o

funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”. A segunda, nº

8.142, de dezembro de 1990, “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do

Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos

financeiros na área da saúde e dá outras providências”.

8 É a determinação de que todos os brasileiros tenham direito ao acesso as ações de saúde, sem discriminação de raça, cor, religião, orientação sexual (FIOCRUZ, 2016). Disponível em:< http://pensesus.fiocruz.br/universalidade> Acessado em: 28 de fevereiro de 2016

9 Tem relação com a igualdade e a justiça, reconhece as condições devida e saúde de cada indivíduo de acordo com suas necessidades e passa pelas diferenciações sociais que devem atender a diversidade. Da norte as políticas de saúde reconhecendo a necessidade de grupos específicos como: Negros, Ciganos, Indígenas, idosos, pessoas em situação de rua, deficientes e outros (FIOCRUZ, 2016). Disponível em:< http://pensesus.fiocruz.br/equidade> acessado em: 28 de fevereiro de 2016.

10 Ação em saúde de forma integral, com tratamento digno, acolhimento e de qualidade (FIOCRUZ, 2016). Disponível em:< http://pensesus.fiocruz.br/integralidade> acessado em: 28 de fevereiro de 2016.

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O parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080/90, salienta a abertura do SUS para

ser complementado pela iniciativa privada “Quando as suas disponibilidades forem

insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o

Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa

privada”, isto é, quando o serviço público de saúde não tiver como suprir a necessidade do

usuário, o SUS irá recorrer à iniciativa privada como forma complementar para oferecer seus

serviços. Assim como diz no art. 4º, desta mesma lei em seu parágrafo segundo “a iniciativa

privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar”. E

para garantir que essa prestação de serviços não venha com finalidades lucrativas, esta lei

em seu art. 38 afirma que “não será permitida a destinação de subvenções e auxílios a

instituições prestadoras de serviços de saúde com finalidade lucrativa”.

III. PRIVATIZAÇÃO VIA A COMPLEMENTARIDADE INVERTIDA

Observa-se que o processo histórico da classe trabalhadora junto com o

movimento da reforma sanitária conseguiu êxito na construção do SUS, porém, diante do

contexto de crise do capital, que no país se apresentou como uma crise fiscal do Estado

ainda no final dos anos 80, as políticas públicas, em especial a política de saúde passou por

um processo de contrarreforma, como explicitam Behring e Boschetti, “reformas orientadas

para o mercado, num contexto em que os problemas no âmbito do Estado brasileiro eram

apontados como causas centrais da profunda crise econômica e social vivida pelo país

desde o início dos anos 1980” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p.148).

Essa contrarreforma que tem atacado ao SUS é considerada um retrocesso,

como explica Santos (2015, p.95), “o processo de regressão que se está a designar como

contrarreforma é, por sua vez, o processo de desmonte da reforma sanitária brasileira e,

consequentemente, do SUS”. Duriguetto e Montaño (2011), vão se referir à Reforma do

Estado como parte da estratégia do grande capital em busca da reposição de suas taxas de

lucro.

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Assim concebeu-se como parte do desmonte das bases de regulação das relações sociais, políticas e econômicas [...]. Está articulada à reestruturação produtiva, à retomada das elevadas taxas de lucro, da ampliação da hegemonia política e ideológica do grande capital, no interior da reestruturação do capital em geral – tem assim um caráter político, econômico e ideológico que visa alterar as bases do Estado de bem-estar social e do conjunto da sociedade, construídas no interior de um ‘pacto social-democrata’, no período do pós-guerra que conformaram o ‘regimento de acumulação fordista-keynesiano’ (DURIGUETO; MONTAÑO, 2011).

Como forma de enfrentamento da crise, o sistema capitalista vai buscar saídas

para sua reorganização “baseada na liberdade do mercado com um novo padrão de

acumulação flexível e com a destruição dos direitos sociais e trabalhistas” (CORREIA, 2007,

p.14). E como o fundamento da reestruturação do capital, se fortalece o paradigma da

liberdade do mercado, com incidência na política social com caráter seletivo, focalista e

privatista. Nessa perspectiva, a denominada “reforma” do Estado vai se dá voltada para a

racionalização de gastos na área social e para intensificar o setor privado nas ofertas de

serviços de bens coletivos.

De acordo com o Banco Mundial (1997 apud CORREIA, 2007, p. 17), “muitos

Países em desenvolvimento que deseja reduzir a magnitude de seu desmesurado setor

estatal devem conceder prioridades máximas a privatização”, deste modo,

desresponsabilizando o Estado de oferecer serviços diretamente. Segundo Correia (2007,

p. 17) seria a

Transferência do dever do Estado atuar sob as políticas sociais, e então, deixar com que a sociedade civil, através da ajuda, filantropia, caridade como forma de atuar na questão Social

11, motivando o processo de mercantilização da saúde por instituições

não estatais e o processo de repasses de verbas públicas para a iniciativa privada. (CORREIA, 2007).

Segundo Behring (2003, p. 116), desde os anos de 1990 vem sendo realizada

uma proposta de reforma no Brasil que é iniciada especialmente no período do governo de

Fernando Henrique Cardoso. No entanto, o que estava em tendência seria uma

contrarreforma do Estado, por se tratar de sua desestruturação e consequentemente a

perda dos direitos da classe trabalhadora. A contrarreforma vai implicar nas políticas sociais 11

Segundo Iamamoto (1998, p.27) “A Questão Social é apreendida como um conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”.

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estatais e, principalmente, na política de saúde, em que se desloca a responsabilidade do

Estado para as instituições não estatais e na compra e venda de serviços, fortalecendo o

mercado e os interesses financeiros, causando prejuízos aos direitos sociais conquistados.

De acordo com Carneiro (2015, p. 131), desde 1970 o Estado já comprava

serviços oferecidos pelo setor privado, em especial os serviços de alta complexidade, sendo

facilitado pela Previdência Social. Hoje, mesmo depois da Constituição de 1988 ter

legalizado esse serviço como forma complementar, temos uma inversão de investimentos,

contemplando uma lógica comercial onde o dinheiro público passa a ser investido mais no

que é privado.

A expansão do setor privado por dentro do SUS é o que denominamos de privatização. Ela vem se dando através da compra de serviços privados de saúde ‘complementares’ aos serviços públicos e, mais recentemente, através do repasse da gestão do SUS para entidades privadas (CORREIA, 2012).

Em concordância com Silva (2015) e Correia e Santos (2015, p.121),

entendemos que a complementaridade é assegurada pela CF e trata-se da parceria público

e filantrópico/ privado que é feita através de convênios e/ou contratos12 com o propósito de

complementar os serviços oferecidos pelo setor público, quando este for insuficiente para

atender as necessidades do SUS. Segundo estudos das autoras, observa-se uma inversão

dos investimentos do fundo público da saúde, sendo esse repassado mais para o setor

privado contratado ou conveniado, ao tempo que se deixa o setor público sucateado.

De acordo com o Ministério da Saúde, os serviços de saúde são divididos por

níveis de atenção sendo eles separados em produção ambulatorial e produção hospitalar.

A produção ambulatorial é responsável pela atenção básica e de média complexidade e a

produção hospitalar pela média e alta complexidade. De acordo com a política nacional da

atenção básica os serviços prestados por esse nível de atenção correspondem a ações

de promoção da saúde, redução de danos, prevenção de agravos, monitoramento da

situação de saúde, tratamento e reabilitação. Os procedimentos de média complexidade

12

“No convênio, os partícipes visam exclusivamente a consecução de um determinado objeto, de comum interesse. Por esse motivo é que não se admite a obtenção de qualquer vantagem que exceda o interesse comum pretendido com o próprio objeto [...]. Já o contrato pressupõe interesses opostos (diferenciados), existindo sempre uma contraprestação, um benefício, uma vantagem”. (Súmula da consultoria Zênite nº 042,1999 apud TCU 2006, p.263)

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são: procedimentos especializados realizados por profissionais médicos, outros de nível

superior e nível médio; cirurgias ambulatoriais especializadas; fisioterapia; terapias

especializadas; próteses e órteses; anestesia. E a alta complexidade fica responsável por:

assistência ao paciente portador de doença renal crônica; assistência ao paciente

oncológico; cirurgia cardiovascular; cirurgia vascular; assistência aos pacientes portadores

de obesidade (cirurgia bariátrica); entre outros.

Em nossa pesquisa, com base nos dados disponibilizados pelo DATASUS

(gráfico 1), na produção ambulatorial de 2010 a 2015, pudemos constatar o quanto do fundo

público da saúde foi destinado a rede pública e ao setor privado da saúde durante os

referidos anos.

Gráfico 1 – Produção Ambulatorial - SUS

FONTE: Elaboração própria, conforme os dados disponibilizados pelo DATASUS.

De acordo com o gráfico 1, podemos visualizar uma tendência de investimentos

na compra de serviços da produção ambulatorial ao setor privado, que a partir de 2012, a

compra desses serviços ao setor privado tem tido predominância.

No que se refere a compra de serviços na produção hospitalar, o gráfico 2,

abaixo, demonstra o percentual de recursos investido nos procedimentos hospitalares,

durante os anos de 2010 a 2015 tanto no setor público como no privado.

54,40%

51,30%

49,20% 48,30%

49% 47,70%

45,60%

48,70%

50,80% 51,70%

51% 50,30%

40,00%

45,00%

50,00%

55,00%

60,00%

2010 2011 2012 2013 2014 2015

PRODUÇÃO AMBULATORIAL - SUS

PÚBLICO PRIVADO

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Gráfico 2 – Produção Hospitalar - SUS

FONTE: Elaboração própria, conforme os dados disponibilizados pelo DATASUS.

De acordo com os dados do gráfico 2 acima, pode-se observar que nos

procedimentos hospitalares do SUS, os recursos que são destinados as esferas públicas

correspondem em média a 45,58% e em contraponto temos 54,42% investido na compra de

serviços a rede privada/filantrópica. A tendência de investimento na compra de serviços ao

setor privado, traz como uma de suas consequências a precarização dos serviços de saúde

oferecidos pelo setor público, tendo em vista que tais recursos poderiam ser investidos na

ampliação da rede pública de saúde

O atual governo, através do ministro da saúde Ricardo Barros, vem fortalecendo

essa complementaridade com as entidades filantrópicas, em especial as Santas Casas. Em

setembro de 2016, o ministro anunciou a liberação R$ 516 milhões as Santas Casas e

demais hospitais filantrópico. Segundo o governo, “o repasse vai reforçar e qualificar os

serviços oferecidos em 255 instituições, localizadas em 19 Estados, que desempenham um

papel importante na assistência à população por meio do Sistema Único de Saúde (SUS)13”.

Em contrapartida, no que se refere ao SUS, o ministro anunciou que é preciso rever o

tamanho do SUS. “Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as

13

Acesso em: 23 de janeiro de 2017. http://www.brasil.gov.br/saude/2016/09/governo-federal-libera-r-513-milhoes-a-santas-casas-e-hospitais-filantropicos

43,38% 43,17% 43,50% 43,70% 44% 37,70%

56,62% 56,83% 56,50% 56,30% 56% 62,30%

0,00%

20,00%

40,00%

60,00%

80,00%

2010 2011 2012 2013 2014 2015

PRODUÇÃO HOSPITALAR - SUS

PÚBLICO PRIVADO

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aposentadorias, e em outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado

porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las14.”

IV. CONCLUSÃO

Observa-se então, a partir do estudo desenvolvido que a política de saúde no

Brasil, a partir de 1990, vem sofrendo incisivos ataques - como a utilização do fundo público

para a expansão do setor privado/filantrópico. O que coloca em xeque os pressupostos do

Movimento de Reforma Sanitária, assim como da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de

fortalecimento do setor público e estatização progressiva da saúde, com alocação exclusiva

do fundo público no setor público estatal.

Através da pesquisa realizado no banco de dados do SUS, observou-se que a

máxima da complementaridade, assegurada na Carta Magna de 1988, e nas leis orgânicas

da saúde, concretiza-se de forma invertida, através de convênios e contratos com o setor

privado/filantrópico, que vem acontecendo de maneira ilegal, contrariando o que prevê o

arcabouço jurídico do SUS.

Assim, segundo Silva, Correia e Santos (2015, p.128) , na contramão da

“estatização progressiva”, defendida pelo Movimento de Reforma Sanitária, o que

atualmente presenciamos é o alicerçamento de uma “privatização progressiva” dos recursos

da saúde, com o fortalecimento do setor privado/filantrópico financiado com recursos

públicos (através da compra de serviços), em que a maior parte destes recursos que são

destinados a procedimentos hospitalares e produção ambulatorial, são transferidos para

subsidiar empresas filantrópicas/privadas em detrimento à ampliação e fortalecimento do

Sistema Único de Saúde.

Com isso, analisamos que esse processo contribui para a desestruturação da

rede pública de serviços de saúde, que tem sido refletido na precarização do setor público,

14

Acesso em 24 de janeiro de 2017. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1771901-tamanho-do-sus-precisa-ser-revisto-diz-novo-ministro-da-saude.shtml.

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no subfinaciamento crônico do SUS, no sucateamento da sua infraestrutura, na falta de

insumos e recursos humanos, fatores esses que refletem de forma negativa no fornecimento

de serviços públicos aos usuários do SUS.

REFERÊNCIAS

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