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A utilização social e econômica das áreas de várzea, periodicamente alagadas, é, sob o ângulo jurídico, uma questão complexa. As regras sobre a apropriação e a utilização dos recursos naturais nessas áreas não encontram tratamento unificado na legislação brasileira. O livro é resultado do estudo Aspectos jurídicos e fundiários da utilização social, econômica e ambiental da várzea: análise para a elaboração de modelos de gestão, executado no âmbito do Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea/MMA/Ibama. Capítulo I: “Estudo jurídico para a várzea amazônica” (Ana Carolina Santos Surgik); Capítulo II: “A situação fundiária da várzea do rio Amazonas e os experimentos de regularização fundiária nos Estados do Pará e do Amazonas” (David G. McGrath e Antônia Socorro Pena da Gama); Capítulo III: “Identificação e análise dos diferentes tipos de apropriação da terra e suas implicações para o uso dos recursos naturais renováveis da várzea amazônica no imóvel rural, na área de Gurupá (PA)” (Girolamo Domenico Treccani); Capítulo IV: “Aspectos jurídicos e fundiários da várzea: uma proposta de regularização e gestão dos recursos naturais” (José Heder Benatti).

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A QUESTÃO FUNDIÁRIA E O MANEJODOS RECURSOS NATURAIS DA VÁRZEA:

ANÁLISE PARA A ELABORAÇÃO DENOVOS MODELOS JURÍDICOS

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Ministério do Meio Ambiente

Marina Silva

Secretaria de Coordenação da Amazônia

Muriel Saragoussi

Programa-Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil

Nazaré Lima Soares

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

Marcus Luiz Barroso Barros

Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros

Rômulo José Fernandes Barreto Mello

Coordenação-Geral de Gestão de Recursos Pesqueiros

José Dias Neto

Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea

Coordenador: Mauro Luis Ruffino

Gerente Executivo: Letícia Domingues Brandão

Gerente do Componente Estudos Estratégicos: Maria Clara Silva-ForsbergPerito

Darren Andrew Evans (DFID)Perito

Wolfram Maennling (GTZ)Assessora de Comunicação

Marinês da Fonseca Ferreira

Equipe ProVárzea

Adriana Melo, Alexandre Voss, Alzenilson Santos Aquino, Antonia L.F. Barrosso, Anselmo de Oliveira,

Aubermaya Xabregas, César Teixeira, Cleilim Albert de Souza, Cleucilene da Silva Nery, Emerson Soares,

Evandro Leal Câmara, Flavio Bocarde, Joelcia Ribeiro de Figueiredo, Kate Anne de Souza, Manuel da Silva

Lima, Marcelo Derzi, Marcelo Parise, Marcelo B. Raseira, Márcio Magalhães Aguiar, Maria Clara Silva-Forsberg,

Mario José Fonseca, Thomé de Souza, Marinês Ferreira, Natália Aparecida de Souza Lima, Núbia Gonzaga,

Raimunda Queiroz de Mello, Rosilene Bezerra da Silva, Simone Fonseca, Tatiane Patrícia dos Santos, Tatianna

de Souza Silva e Tiago Viana da Costa.

Financiadores

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A QUESTÃO FUNDIÁRIA E O MANEJODOS RECURSOS NATURAIS DA VÁRZEA:

ANÁLISE PARA A ELABORAÇÃO DENOVOS MODELOS JURÍDICOS

José Heder Benatti

Ana Carolina Santos Surgik

Girolamo Domenico Treccani

David G. Mcgrath

Antônia Socorro Pena da Gama

MANAUS, AM 2005

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Copyright © 2005 – ProVárzea/Ibama

Esta publicação faz parte da coleção Documentos Técnicos: Estudos Estratégicos – DT-EE,produzida pelo Componente Estudos Estratégicos do ProVárzea/Ibama.

Coordenação EditorialMauro Luis Ruffino

Edição de Texto e RevisãoTatiana Corrêa VeríssimoMaria Clara Silva-ForsbergMaria José Teixeira – Edições IbamaVitória Rodrigues – Edições IbamaHelionidia Carvalho de Oliveira – Edições Ibama

Projeto Gráfico e CapaTito Fernandes

Ed içãoInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenováveisProjeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea/IbamaRua Ministro João Gonçalves de Souza, s/n. Distrito Industrial – Manaus-AM – Brasil. 69075-830Tel: (92) 3613-3083/ 6246/6754/ Fax: (92) 3237-5616/6124Correio Eletrônico: [email protected]ágina na Internet: www.ibama.gov.br/provarzea.

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Catalogação na FonteInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

S961q Benatti, José HederA questão fundiária e o manejo dos recursos naturais da várzea: análise para a elaboração de novos modelos

jurídicos / José Heder Benatti, Ana Carolina Santos Surgik, Girolamo Domenico Treccani, ... [et al.]. –Manaus: Edições Ibama / ProVárzea, 2005.

104 p. : il.; 16x23cm. (Coleção Documentos Técnicos: Estudos Estratégicos – DT-EE)

Inclui BibliografiaISBN 85-7300-196-8

1. Amazônia. 2. Várzea. 3. Área alagada. 4. Gestão ambiental. I. Benatti, José Heder. II Surgik, AnaCarolina Santos. III. Treccani, Girolamo Domenico. IV. McGrath, David G. V. Antonia Socorro Pena daGama. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. VII. Projeto de Manejo dosRecursos Naturais da Várzea. VIII. Título.

CDU (2.ed.) 502.35(811.3)

A reprodução do todo ou parte deste documento é permitida somente com a autorização prévia do ProVárzea/Ibama

Impresso no BrazilPrinted in Brazil

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SUMÁRIO

Autores ... 6

Lista de Siglas ... 7

Apresentação ... 9

Prefácio ... 11

Capítulo IEstudo jurídico para a várzea amazônica ... 15

Capítulo IIA situação fundiária da várzea do rio Amazonas e os experimentos deregularização fundiária nos Estados do Pará e do Amazonas ... 35

Capítulo IIIIdentificação e análise dos diferentes tipos de apropriação da terra e suasimplicações para o uso dos recursos naturais renováveis da várzea amazônicano imóvel rural, na área de Gurupá (PA) ... 55

Capítulo IVAspectos jurídicos e fundiários da várzea: uma proposta de regularização egestão dos recursos naturais ... 77

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AUTORES

José Heder Benatti: Advogado, mestre em Direito, doutor em Ciênciasdo Desenvolvimento Socioambiental e professor de Direito da UFPA, Vice-coordenador da Pós-Graduação de Direito da UFA e pesquisador associadodo Ipam.

Ana Carolina Surgik: Advogada, mestre em Conservação e Manejo deRecursos Naturais, pela Unesp, SP, e doutoranda em Ecologia, pelo Inpa.

Antônia Socorro Pena da Gama: Advogada, mestranda no Naea epesquisadora do Ipam.

David Gibbis McGrath: Geógrafo, mestre em Geografia eDesenvolvimento Regional, doutor em Geografia, professor do Naea ecoordenador do Projeto Várzea, do Ipam.

Girolamo Domenico Treccani: Advogado, mestre em Direito Agráriopela Universidade Federal do Pará, Doutorando no Naea, professor deDireito Agrário da UFPA, consultor jurídico da Fase no ProjetoDemonstrativo Gurupá e da Fetagri-PA.

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LISTA DE SIGLAS

APP – Área de Preservação PermanenteAtrisb – Associação dos Trabalhadores Rurais da Ilha de Santa BárbaraConama – Conselho Nacional de Meio AmbienteFase – Federação dos Órgãos para Assistência Social e EducacionalFetagri/PA – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do ParáGEAES – Gerência de Área de Empreendimentos SociaisGEAPN – Gerência de Área de Próprios NacionaisGPS – Global Positioning SystemGRPU – Gerência Regional de Patrimônio da UniãoIbama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos NaturaisRenováveisIncra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma AgráriaInpa – Instituto Nacional de Pesquisas da AmazôniaIpam – Instituto de Pesquisa Ambiental da AmazôniaIterpa – Instituto de Terras do ParáIteram – Instituto de Terras do AmazonasMEB – Movimento Educacional de BaseNaea – Núcleo de Altos Estudos AmazônicosONG – Organização Não-GovernamentalPA – Projeto de AssentamentoPAE – Projeto de Assentamento AgroextrativistaPDS – Projeto de Desenvolvimento SustentávelRDS – Reservas de Desenvolvimento SustentávelResex – Reserva ExtrativistaSesoc – Serviço de Operação SocialSTR – Sindicato dos Trabalhadores RuraisSnuc – Sistema Nacional de Unidades de ConservaçãoSPU – Secretaria de Patrimônio da UniãoSucam – Superintendência de Campanha de Saúde PúblicaSTF – Supremo Tribunal FederalTAC – Termo de Ajuste de CondutaUnesp –Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita FilhoUFPA – Universidade Federal do ParáUfra – Universidade Federal Rural da Amazônia

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APRESENTAÇÃO

A utilização social e econômica das áreas de várzea, periodicamente alagadas,é, sob o ângulo jurídico, uma questão complexa. As regras sobre a apropriaçãoe a utilização dos recursos naturais nessas áreas não encontram tratamentounificado na legislação brasileira. Identificam-se, nesse universo, três questõesque se sobrepõem: (a) a titularidade pública ou privada dos terrenos de várzea;(b) os conflitos de interesse entre os particulares, devido ao apossamento dessasáreas ligadas tanto para o uso do solo quanto para os recursos hídricos,principalmente por meio da pesca; e (3) a ação governamental/administrativano que concerne aos diversos aspectos de regulação da atividade econômica doEstado, que vem apresentando políticas públicas voltadas para a conservação eo manejo sustentável dos recursos. Assim, a inexistência de uma abordagemlegal unificada que reconheça as especificidades, e ao mesmo tempo acomplexidade dos problemas que decorrem da utilização da várzea, e a grandevariação de referenciais legais, balizadores da exploração social e econômica,torna a missão de generalizar soluções para os conflitos de interesses encontrados,tarefa quase impossível. As questões de domínio da terra, da exploração pesqueirae do extrativismo florestal estão interligadas ao uso dos terrenos marginais, daságuas dos rios, dos lagos, das ilhas e da fauna aquática.

Assim, apresentamos aqui os resultados do estudo Aspectos jurídicos efundiários da utilização social, econômica e ambiental da várzea: análise paraa elaboração de modelos de gestão, executado no âmbito do Projeto Manejodos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea/MMA/Ibama, dentro docomponente Estudos Estratégicos, inaugurando a Coleção DocumentosTécnicos: Estudos Estratégicos – DT-EE.

A publicação inicialmente expõe uma análise dos aspectos legais dereferência para a várzea amazônica, sobre questões de dominialidade, conceitoe natureza jurídica da várzea; Em seguida identifica os diferentes tipos deapropriação da terra e suas implicações sobre o uso dos recursos naturaisrenováveis da várzea amazônica, no imóvel rural, em quatro áreas de estudono Estuário, no Baixo Amazonas e no Médio Solimões. E finalmenteapresenta uma poposta de regularização fundiária e de gestão dos recursosnaturais renováveis, para a várzea, no intuito de subsidiar políticas públicasque viabilizem a superação dos atuais impasses sociais, jurídicos e ambientais.

Mauro Luis RuffinoCoordenador do ProVárzea/Ibama

Maria Clara Silva-ForsbergGerente do Componente EstudosEstratégicos do ProVárzea/Ibama

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PREFÁCIO

Há dois caminhos complementares para superar a dicotomia entre a proteçãoambiental1 e o direito de propriedade. Em uma esfera macro, a solução é oordenamento territorial como instrumento da política nacional do meioambiente. O ordenamento territorial busca a organização do território e oestabelecimento de medidas e padrões de proteção ambiental, destinados aassegurar a qualidade do ambiente, dos recursos hídricos e do solo, e a conservara biodiversidade, garantindo dessa forma o desenvolvimento sustentável e amelhoria das condições de vida da população. Seu objetivo é vincular asdecisões dos agentes públicos e privados aos planos, programas, projetos eatividades que, direta ou indiretamente, utilizem recursos naturais. Dessemodo, assegura-se a plena manutenção do capital natural e dos serviçosambientais dos ecossistemas.

Na escala micro, a solução é o estabelecimento de imóvel rural, individualou comunitário, como uma unidade espacial que atua decisivamente nautilização e na proteção dos recursos naturais. O imóvel rural é uma peça-chave na proteção ambiental, visto que busca conciliar interesses individuais esocioambientais. Assim, a combinação do ordenamento territorial, com o direitode propriedade, pode ser a garantia de sustentabilidade econômica, social eambiental.

O objetivo deste documento técnico, que reúne quatro estudos, é fornecersubsídios à formulação de políticas públicas para a regularização fundiária e agestão dos recursos naturais, na várzea (Veja o mapa da Figura 1 que contémas áreas estudadas pelas quatro pesquisas). Para isso, é necessário estudar trêsaspectos fundiários que se interligam, a saber: a dominialidade da terra devárzea, as possibilidades de regularização fundiária e a gestão dos recursosnaturais.

A dominialidade trata da titularidade da terra. No caso da várzea se é umbem público ou privado, ou seja, quem de fato possui o título da terra: osujeito privado e/ou as comunidades locais que exploram os seus recursos

1 Emprega-se a expressão “proteção ambiental” por conter duas concepções jurídicas: a conservação e a preservação do meioambiente. A conservação significa “o manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, autilização sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior benefício, em basessustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações futuras egarantindo a sobrevivência dos seres vivos em geral” (artigo 2º, inciso II da Lei 9.985/00). A preservação pode ser entendida comosendo o “conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem à proteção, em longo prazo, das espécies, habitats e ecossistemas,além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais” (artigo 2º, inciso V da Lei 9.985/00). A preservação busca garantir a integridade e a perenidade do bem ambiental ou de uma área determinada. O termo é empregadoquando se refere à proteção integral dos bens.

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naturais, ou o poder público. Ou, ainda, se há um instituto atípico comum outro tipo de titularidade. Para essa discussão é importante definir anatureza jurídica da várzea e o seu conceito do ponto de vista sociojurídico.

A partir daí, pode-se discutir a regularização fundiária e os instrumentosjurídicos mais adequados para determinar quais são os direitos de quem seapropria da terra de várzea e dos lagos. Esse debate é importante porque estádiretamente relacionado à discussão sobre o manejo e a gestão dos recursosnaturais da várzea. O primeiro passo em direção ao bom uso dos recursosnaturais da várzea é definir a titularidade do bem (quem tem poderes parapermitir o acesso e o uso dos recursos naturais). O segundo passo é oestabelecimento das regras que definirão como os recursos naturais podem serutilizados.

O primeiro capítulo deste documento busca analisar o conceito, adominialidade e a natureza jurídica da várzea. Além disso, aborda a questão dadefinição das competências administrativas e legais dos entes federativos(União, Estado e Município) em relação ao uso e ao manejo dos recursosnaturais da várzea amazônica.

O segundo e o terceiro capítulos analisam os diferentes tipos de apropriaçãoda terra e da água e suas implicações para o uso dos recursos naturais renováveis,da várzea amazônica, nas áreas comunitárias dos municípios de Santarém (PA),Parintins (AM), Tefé (AM) e Gurupá (PA). As principais sugestões contidas

Figura 1. Mapa das áreas de estudo.

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13Prefácio

nos dois capítulos são: (i) elaboração de modelos de regularização fundiáriae concessão de uso mais simples; (ii) elaboração de normas administrativasrelativas ao uso sustentável dos diferentes recursos naturais da várzea; (iii)integração do processo de regularização fundiária e desenvolvimento sustentável.As diretrizes legais que vão subsidiar a formulação da política de regularizaçãofundiária devem atender os diferentes interesses dos diversos atores.

O quarto capítulo apresenta uma proposta detalhada de execução do estudosobre a questão fundiária e manejo dos recursos naturais renováveis da várzea.Essa proposta tem como base os estudos anteriores sobre a dominialidade, oconceito e a natureza jurídica da várzea, os diferentes padrões comunitários deuso da terra e o manejo dos recursos naturais.

Esperamos que esses estudos ajudem a compreender a complexa realidadesocioambiental da várzea amazônica brasileira e que as propostas apresentadaspossam contribuir efetivamente para a superação dos conflitos sociais e jurídicosexistentes na região.

José Heder BenattiCoordenador do estudo

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ESTUDO JURÍDICO PARA AVÁRZEA AMAZÔNICA

Ana Carolina Santos Surgik

Capítulo I

Introdução

A várzea é um ecossistema complexo, com imensa riqueza biológicapassível de apropriação humana. Os rios amazônicos e as suas áreasinundáveis cobrem mais de 300.000 km2. Há muitas gerações essasáreas inundáveis vêm sendo utilizadas por populações tradicionais,tanto no período de seca quanto no de cheia. No entanto, amanutenção da vida humana nessas regiões depende da conservaçãodesse ecossistema. A conservação ambiental passa pelas determinaçõeslegais de acesso aos recursos. Portanto, os estudos sobre a utilizaçãodas áreas de várzea exigem inicialmente uma análise do seu aspectojurídico, ou seja, é preciso definir se há a possibilidade jurídica deinterferência humana nessa região, para então poder estabelecerpolíticas públicas direcionadas para o desenvolvimento.

O objetivo deste estudo é obter uma interpretação jurídica sobreas formas de utilização fundiária da várzea, com embasamento claroe consistente. Acredita-se que essa interpretação contribuirá para aconservação ambiental e a sustentabilidade socioeconômica daspopulações, uma vez que não é possível propor áreas de conservaçãoe áreas de uso, sem levar em conta as restrições e as permissões dalegislação vigente. Neste estudo, definiu-se o conceito de várzea,

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bem como a dominialidade, a natureza jurídica e as competências para avárzea amazônica. Demonstra-se, no entanto, que o atual sistema jurídiconão sustenta a proteção da várzea e que há a necessidade de adequar asdiferentes circunstâncias a diferentes procedimentos jurídicos.

O estudo aborda a questão jurídica de utilização fundiária da várzea,considerando a função social e ambiental da propriedade. Essas duas funçõessão complementares e respeitadas tanto nas atividades econômicas (artigo170 da Constituição Federal) quanto na política fundiária rural (artigo 186).O artigo 186 afirma que a função social da propriedade deve promover a“utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação domeio ambiente”.

Métodos

Examinaram-se estudos da área jurídica, conjuntamente com estudos deecologia, para adequar a utilização dos recursos naturais com a proteçãoambiental, pressuposto previsto constitucionalmente.

Levantamento doutrinário e da legislação para a análise de conceito,natureza jurídica, dominialidade e competências

Foram sistematizadas todas as legislações (lato sensu) sobre o tema utilizaçãofundiária da várzea. Para isso, fez-se uma pesquisa bibliográfica na bibliotecada Câmara dos Deputados, em Brasília. Além disso, foram pesquisados sitesda internet utilizando palavras-chave que direcionam ao tema. Para os estudosde ecologia, foram feitas pesquisas no Inpa a fim de verificar os conceitos e osdiferentes tipos de várzea.

Apesar do grande número de artigos jurídicos encontrados, não há materialespecífico sobre o assunto. As várzeas ganharam pouca atenção do legislador, emenos ainda dos juristas para a sua interpretação. Em função da falta de material,foram pesquisados artigos sobre temas afins (terrenos de marinha, terrasdevolutas, bens públicos), utilizados para identificar as possibilidades jurídicasde inserção da várzea. Ainda assim, as análises jurídicas dos estudos encontradossobre esses temas demonstram divergências de opinião. Por isso, foi necessáriocomparar a lei com a ecologia desse complexo ecossistema. O levantamentoidentificou autores clássicos e atuais do Direito, o que possibilitou analisar aevolução do pensamento jurídico brasileiro e suas interpretações da legislação.Todos os artigos foram analisados na sua íntegra, mas nem todos foramutilizados, por não acrescentarem novas informações aos resultados.

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17Ana Carolina Santos Surgik

Resultados e discussão

Conceito de várzeaNo Brasil não há um conceito jurídico claro sobre a várzea. A única definição

encontra-se na Resolução Conama nº 4 de 18/9/85: “Leito maior sazonal:calha alargada ou maior de um rio, ocupada nos períodos anuais de cheia.” Noentanto, essa definição abrange todas as áreas que alagam e não apenas a várzea.Segundo Vieira (2000), a legislação pode ter utilizado outros termos paradesignar a várzea, como o leito de rio, por exemplo, leitos fluviais sazonais ecanais aumentados.

Vieira (2000) destaca que a várzea, pela sua natureza, também se encaixano conceito de solos aluviais do Código de Águas, que afirma no artigo 16:“Constituem ‘aluvião’ os acréscimos que sucessiva e imperceptivelmente se formarempara a parte do mar e das correntes, aquém do ponto a que chega a preamarmédia, ou do ponto médio das enchentes ordinárias, bem como a parte do álveoque se descobrir pelo afastamento das águas.” O artigo 9º complementa: “Álveoé a superfície que as águas cobrem sem transbordar para o solo natural eordinariamente enxuto.”

Embora esses conceitos não sejam incorretos, eles são bastante genéricos eignoram algumas diferenças entre a várzea e as demais áreas inundáveis.Conhecer as características biológicas de cada tipo de área alagável é importante,no caso da Amazônia, para avaliar a possibilidade, ou não, de utilização, semo esgotamento dos recursos naturais dessas áreas (proteção ambiental previstaconstitucionalmente). No entanto, não há um consenso entre os pesquisadores(limnólogos, botânicos, ecólogos e biólogos) sobre esses conceitos. Dessa forma,optou-se por adotar uma terminologia científica que abrangesse a maiorquantidade de aspectos relevantes, englobando a cobertura vegetal, o tipo deágua e a duração de inundação. A nomenclatura popular foi posta de lado porsofrer variações regionais e ser indiferente aos aspectos ecológicos da várzea.

Segundo Prance (1980), existem sete tipos principais de vegetação sobre osolo inundável na Amazônia, cinco dos quais com inundação periódica e doiscom inundações permanentes.

Floresta de planícies inundáveis: inundação por chuva irregular e/ou rápida,em vez de inundação estacional dos grandes rios.

Manguezal: áreas periodicamente inundáveis por água salgada, pormovimento diário das marés.

Floresta de pântano: floresta permanentemente inundada por água branca.Fenômeno raro na Amazônia. No Baixo Amazonas brasileiro tem sido

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18 Coleção Estudos Estratégicos : Questão Fundiária

chamada de igapó, confirmando a confusão da terminologia.Igapó permanente: floresta permanentemente inundada por água preta ou

clara. Também é raro na Amazônia.Igapó: áreas periodicamente inundáveis por ciclos anuais regulares de rios

de água preta e clara; pobres em material suspenso e dissolvido (não transportamsedimento), gerando baixa fertilidade. O solo é arenoso, com vegetação muitomais pobre do que a da várzea, baixa biomassa, com menor diversidade deespécies (muitas delas são endêmicas). Tem árvores baixas e tortuosas. Tambémconhecido como igapó estacional (Prance, 1980, Ayres, 1995).

Várzea: áreas periodicamente inundáveis por ciclos anuais regulares de riosde água branca, ricas em sedimentos. Os solos dessas áreas, submersos quase ametade do ano, possuem alto teor de nutrientes e são constantemente renovados.Há grande diversidade de espécies de vegetação, com alta biomassa. As várzeaspossuem árvores grandes e de crescimento rápido. É o mais comum de todosos tipos de mata inundáveis da Amazônia. Também chamada de várzeaestacional (Sioli, 1967, Prance, 1980, Junk, 1989, Ayres, 1995).

Várzea de marés: é floresta inundada duas vezes, por dia, pelo movimentode marés. A maré alta bloqueia o fluxo dos rios e faz com que eles inundem afloresta. Esse tipo de várzea é muito semelhante à várzea estacional em suacomposição de espécies e fisionomia (Prance, 1980). É também denominada“terreno de marinha”, de acordo com o Decreto-Lei nº 9.760/46, artigo 2º.

Há também a floresta inundável por águas mistas, estando sob a influênciados dois tipos de água, como na região de Manaus, com a união dos riosNegro e Solimões (Prance, 1980).

É importante destacar que, além dos aspectos científicos, há a diferença denomenclatura entre as diversas localidades da Amazônia. As áreas inundáveispelos rios de água preta e clara são conhecidas como igapó, no Alto Amazonas,e como várzea, por muitas pessoas no Baixo Amazonas. O termo igapó temsido mais aplicado para a floresta pantanosa, permanentemente alagada (Prance,1980).

Além da definição do termo é preciso citar os diferentes tipos de várzea,uma vez que suas diferenças ecológicas devem ser consideradas nasregulamentações do uso humano. Primeiro, as várzeas são diferenciadas quantoao relevo:

Várzea alta: inundável por um pequeno período, no auge da cheia(Aubréville, 1961).

Várzea baixa: inundável por um período mais longo (Aubréville, 1961).Segundo, há formações de várzea que ocorrem em função do depósito

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19Ana Carolina Santos Surgik

dos sedimentos carregados pelos rios de água branca, nas planícies inundadas(Ayres, 1995), formando ecossistemas diferenciados. As várzeas tambémsão definidas pelas formações arbóreas:

Restinga: áreas de floresta localizadas nas terras mais altas. Na várzea, arestinga alta possui a maior diversidade de espécies, área basal e número deárvores, por unidade de área. A restinga baixa é a transição entre as áreasflorestais da várzea, para o chavascal, e seu sub-bosque é freqüentemente maislimpo, com boa visibilidade (Ayres, 1995).

Chavascal: área aberta, nas terras mais baixas. A vegetação é baixa, arbustiva,pantanosa e quase impossível de ser transposta durante a seca. Áreas extensasde chavascal são comuns entre lagos, canais e rios, normalmente atrás dasfaixas de restinga (Ayres, 1995). Existem ainda as áreas mais abertas na várzea,que na estação seca ficam cobertas por uma vegetação gramínea rasteira (Ayres,1995).

É importante para o Direito, diferenciar os tipos de áreas inundáveis e devárzeas, pois agrupá-las em uma única definição pode incentivar a utilizaçãoinadequada e degradante de algumas dessas áreas. Se o Direito generaliza “áreasinundáveis”, generaliza também qualquer determinação de possibilidade deuso dessas áreas. Por exemplo, segundo as definições expostas anteriormente, oigapó é pobre em nutrientes, o que dificulta a sua regeneração. Ao contrário, avárzea é rica em nutrientes, regenerando-se facilmente. Essas diferenciaçõesdemonstram que o uso indiscriminado de igapós pode promover a destruiçãodo ambiente e, conseqüentemente, das populações locais. Já no caso da várzea,é necessário que haja um manejo direcionado e diferenciado (e proteção total,quando necessária), de acordo com a capacidade dos diferentes ecossistemas e,ao mesmo tempo, a manutenção da diversidade das espécies (artigo 225,Constituição Federal).

No entanto, isso não significa que os diferentes tipos de área alagável devemser definidos em legislação. Não cabe ao Direito definir eventos naturais, massim, usar as definições científicas para orientar as possibilidades de apropriaçãohumana. Por exemplo, não se define “chuva” em lei; a lei apenas utiliza esseconceito científico para incentivar formas de utilização da água, pela sociedade.Da mesma forma, não devemos definir legalmente “várzea”, pois estaríamoscondenando esse ecossistema à formalidade do Direito brasileiro, seja pelageneralidade (como na Resolução Conama nº 4/85) ou pelo excesso dedetalhes. O fato é que conceitos científicos são constantemente reformuladospor novas pesquisas.

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20 Coleção Estudos Estratégicos : Questão Fundiária

A legislação brasileira interferiu na definição de apenas um evento natural,que foi uma parte da várzea de maré, dando-lhe o nome de “terreno de marinha”(Decreto-Lei nº 9.760/46, artigo 2º).

Os terrenos de marinha são, em uma profundidade de 33 (trintae três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra,da posição da Linha da Preamar Média de 1831:a) os situados no continente, na costa marítima e nas margensdos rios e lagoas até onde se façam sentir a influência das marés;b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façamsentir a influência das marés.Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, a influência das marésé caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros,pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer épocado ano.

Com essa definição, o Direito entrou em um campo que desconhecia edificultou a própria eficiência da lei, quando determinou serem esses terrenoscontados a partir da Linha da Preamar Média – LPM, do ano de 1831.Estudiosos de ecologia afirmam ser de absoluta complexidade definir comprecisão a linha daquela época, mas o Direito mantém essa demarcação desde1946. Segundo os ecologistas, a várzea e a várzea de maré possuem característicasecológicas similares, portanto, criar diferentes instrumentos de regulamentaçãopara essas duas áreas e suas adjacências, pode prejudicar sensivelmente a proteçãoambiental e as populações humanas que dependem delas. Esse exemplo mostracomo a formalidade do Direito é contrária ao avanço dos conceitos científicos,que buscam oferecer a base para o melhor uso humano dos ecossistemas.

Outro argumento contra a definição jurídica de “várzea” baseia-se nasdiferenças regionais que esse ecossistema apresenta. Por exemplo, no municípiode Gurupá (PA), a várzea não possui nenhum período do ano de plena seca dosolo; em Santarém (PA) são notórias as estações de seca e de cheia. Tais diferençasexigem um regime jurídico aplicado a uma possível regulamentação fundiária,diferenciada para cada região. Ou seja, não há a necessidade de haver umadefinição legal de várzea, mas uma adequação do Direito às diferentesrealidades socioambientais, com base nas diferenciações científicas. Somentedessa forma, é possível propor manejos adequados, a cada tipo de várzea,para melhor atender à conservação ambiental e à função social dessas áreas.

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Natureza jurídica da várzeaA várzea é uma área que oscila entre uma fase terrestre e outra aquática,

portanto, comporta organismos terrestres e aquáticos adaptados a essaalteração. Especialistas de sistemas terrestres tratam-na como um ecossistematerrestre periodicamente perturbado por inundação, enquanto os especialistasde sistemas aquáticos fazem o oposto. No entanto, essa heterogeneidadeespaço-temporal, envolvendo a interação das duas fases, é a função centraldesse sistema e deve ser abordada nos estudos desenvolvidos (Junk, 1997).Assim, a várzea é um sistema híbrido que envolve duas fases distintas,interligadas e interdependentes (Figura 2).

Figura 2. Fenômeno de inundação e de seca das várzeas, caracterizando oleito maior e menor do rio.

No Direito brasileiro, o Código de Águas define a várzea como álveo e soloaluvial, contudo não esclarece qual o regime jurídico que deve ser aplicadopara essas áreas.

Pelo Código Florestal (Lei nº 4.771/65), as Áreas de Preservação Permanentesão “as florestas e demais formas de vegetação natural, coberta ou não por vegetaçãonativa, ao longo dos rios desde seu mais alto nível em faixa marginal” (artigo2o, c/c Lei nº 7.803/89 e Medida Provisória nº 2.166-67/01). Portanto, deacordo com a análise strictu sensu da lei, somente as áreas que estão acima doleito maior seriam consideradas APPs enquanto as áreas restantes seriam oleito do rio. Teria sido intenção do legislador, fixando o mais alto nível deinundação, considerar APP apenas as florestas de terra firme? No entanto,de acordo com a Medida Provisória nº 2.166-67/01, as APPs têm a “função

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ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica,a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar obem-estar das populações humanas.” Adotando o princípio de que a lei deveser interpretada de modo que atinja os seus objetivos finais, essas funçõestambém são exercidas pelas florestas inundadas, mas elas foram excluídasdo conceito da lei. Dessa forma, há o grande risco de excluir as florestasinundadas, das chamadas APPs. No entanto, parece também evidente queconsiderando as APPs em metragem, a partir do leito maior, a área que nãofaz parte do rio em períodos de seca, antes dessa metragem, estaria obviamenteno mesmo regime jurídico, pois estão aquém da exigência legal e, por isso,a elas incorporadas. Além disso, a cada ano o alagamento atinge um ponto,o que torna impossível alterar juridicamente, ano a ano, onde começa acontagem da metragem. De acordo com essa interpretação, as florestasinundadas também seriam APPs, apesar de terem sido claramente excluídasda definição legal.

A situação descrita acima é um problema de aplicabilidade da lei. A leiconsidera a várzea álveo e solo aluvial (leito de rio), contudo, esse ecossistematambém pode ser considerado APP, por estar aquém das exigências legais (antesdo início da metragem do leito maior), e também por exercer as funções deproteção, contempladas na definição de APP. Interpretar a várzea juridicamente,como sendo um ou outro, não estaria errado, mas incompleto, pois as duasfases desse ecossistema (terra e água) estão interligadas2. O fato é que definir avárzea apenas como água ou como APP, desvirtua sua característica híbrida, jácitada. Para resolver o problema de aplicabilidade da lei, a várzea requer umsistema jurídico diferenciado que atenda as suas características específicas. Porexemplo, o manejo florestal de terra firme deve receber um tratamentoconservacionista mais rígido, pois, ao contrário da várzea, as áreas de terrafirme não são periodicamente reabastecidas de nutrientes, diretamente, e suaregeneração é mais lenta.

Além da dificuldade em aliar institutos jurídicos a conceitos ecológicos ,o Direito ainda criou outro instituto, chamado “terreno de marinha”, quedetermina o tratamento jurídico e os seus conseqüentes instrumentos, para33 m para o continente, até onde se faça sentir a influência das marés (várzeade marés). De acordo com estudos ecológicos, a influência da maré éconsiderada até a região de Óbidos (PA), indicando, conseqüentemente,até onde são considerados os 33 m de terrenos de marinha. Essa definição

2 O período de cheia gera nutrientes para o solo do período de seca. O solo do período de seca, por sua vez, protege as característicasdo leito do rio, no período de cheia, e também alimenta a floresta inundável e a de terra firme com a biomassa de macrófitasaquáticas que se acumulam no solo.

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jurídica de um evento natural não foi oportuna, pois os dois tipos de várzeatêm características ecológicas similares e diferentes instrumentos deregulamentação, para essas áreas e suas adjacências, podendo prejudicarsensivelmente a proteção ambiental e as populações humanas que dependemdesse ecossistema. Pela impossibilidade prática em se definir a LPM citada,é evidente a necessidade de revisão desse dispositivo legal, para atender aosnovos estudos feitos depois de 1946, em vez de tentarmos encaixar a realidadeamazônica no formalismo do Direito do século passado, ainda vigente. Asconseqüências dessa diferenciação serão vistas na dominialidade da várzea.

No entanto, a legislação trata genericamente da utilização dessas áreas.O Código de Águas (Decreto nº 2.4643/34) destaca que a utilização deterrenos de áreas inundáveis é tolerada pelo Poder Público para as populaçõestradicionais e ribeirinhas, mas dá-se preferência para pequenos proprietários,e isso deve ocorrer apenas para atender à utilidade pública. Observe-se quehá a palavra “tolerada” e não “autorizada livremente” e “sem controle” (Vieira,2000). O Direito tolera a utilização dessas áreas inundáveis, pela populaçãotradicional e em pequenas propriedades (Código de Águas) e, em algunscasos, a sua utilização, quando houver interesse público e social, seconsideradas de preservação permanente (Medida Provisória nº 2.166-67/01).

Porém, qualquer que seja a natureza jurídica da várzea, há de se observar oprincípio da precaução (internacionalmente incorporado ao Direito Ambiental)na utilização dos recursos naturais. Isso está disposto no artigo 225 daConstituição Federal, em especial para a Amazônia (parágrafo 4o). Portanto,a utilização das áreas inundáveis exige estudos ecológicos específicos, deacordo com os diferentes tipos de várzea, para verificar suas possibilidadesde uso ao longo da calha dos rios Amazonas-Solimões. Há também anecessidade de manejo (plano de manejo ou plano de uso) para a utilizaçãodas áreas alagáveis, seja individual ou coletivo. Essa é a diretriz do Snuc nacriação de áreas protegidas e atinge o princípio da precaução.

Além disso, a várzea, como um sistema híbrido com épocas de exposição dosolo e outras do leito de rio, deve respeitar as diretrizes gerais da Lei da PolíticaNacional dos Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97), que define a necessidadede articulação da gestão dos recursos hídricos, com a do uso do solo, poismesmo nos períodos de seca as áreas continuam influenciando o curso do rio.

O mais adequado é a criação de diretrizes jurídicas específicas para esseecossistema. Isso é possível, pois a própria Constituição Federal instituiu“em todas as unidades da Federação, a necessidade de definição de espaços

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territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos” (artigo 225,inciso III). Essa possibilidade foi reforçada pela Lei nº 9.985/00 (Snuc).Assim, está aberta a possibilidade de definir juridicamente quais são as formasde utilização (e proibições) em áreas alagáveis. Há normas indicando anecessidade de usos diferenciados da floresta amazônica. As InstruçõesNormativas nº 3 e nº 4, do Ministério do Meio Ambiente, ambas de 4/3/02, consideram a importância de “aperfeiçoar os instrumentos legais” paraatingir o desenvolvimento sustentável, em diferentes escalas de uso, naAmazônia. Essas normas reforçam a necessidade de manejos diferenciados,de acordo com as diferentes realidades da região. A natureza jurídica e adominialidade interferem diretamente nos instrumentos jurídicos, possíveispara regulamentar o uso dessas áreas, conforme será analisado a seguir.

Dominialidade da várzeaComo vimos anteriormente, as várzeas são áreas marginais às correntes de

água, alagadas periodicamente, seja por influência da maré ou portransbordamento fluvial em função de chuva. Portanto, não há como abordara várzea, sem verificar quais águas estão transbordando e, conseqüentemente,qual é a dominialidade dessas águas.

A Constituição Federal, no artigo 20, inciso III, afirma claramente quesão bens da União todas as correntes de água que banham mais de umEstado, bem como seus terrenos marginais (também chamados dereservados), ou seja, os que contornam o seu leito. Portanto, como a calhados rios Amazonas-Solimões cruza o Pará e o Amazonas, não há como negarque suas águas, bem como os terrenos alagados e os seus terrenos marginais,são bens da União. Esses terrenos encontram-se necessariamente entre oleito menor das águas e os terrenos marginais do leito maior e, portanto,recaem no artigo 20 da Constituição Federal.

O Decreto-Lei nº 9.760/46 também engloba como bens imóveis da Uniãoos terrenos de marinha e os marginais de rios navegáveis (distância de 15 m,medidos horizontalmente para a parte da terra, contados desde a linha médiadas enchentes ordinárias). Assim, tanto as várzeas interiores quanto as várzeasde marés são bens da União, ou seja, possuem dominialidade federal.

No entanto, algumas questões precisam ser destacadas. Primeiro, a distânciade 33 m para a várzea de maré (terreno de marinha) e de 15 m para a várzeainterior (terreno marginal) é bem menor do que o alcance das inundações, quepodem chegar a até 30 km de “largura”, na Amazônia. Nesse caso, as terrasque excedem a metragem indicada têm sua dominialidade definida como federalpor serem tocadas pelas águas definidas como bem público federal? De

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fato, elas são federais por fazerem parte integrante dessas águas, pois são aságuas dos rios Solimões-Amazonas que trazem os sedimentos que nutrem osolo.

O movimento das águas, a erosão e o depósito de sedimentos influenciamfortemente a estrutura desse solo. A grande diversidade de espécies, nas várzeasamazônicas, é conseqüência da dinâmica do rio, que cria diferentes tipos desolos com diferentes status de nutrientes, idade e estabilidade (Junk, 1989). Asdiferentes composições de espécies na várzea, no igapó e na terra firme estãointimamente ligadas ao regime hidrológico e à química da água que as envolve.Inclusive o comportamento de crescimento e da reprodução das espécies arbóreassão orientadas pelas inundações periódicas que sofrem (Worbes, 1997). Operíodo de cheia enriquece o solo e o período de seca enriquece a água. Prance(1980) destaca que há estudos mostrando que determinadas espécies crescemna seca para a alimentação de peixes durante a cheia e para a distribuição damacrofauna bentônica. Assim, na várzea, água e solo se completam em umrico sistema híbrido. Por isso, recebem a mesma dominialidade (nesse caso,pública federal).

A segunda questão a ser destacada é sobre o momento de os tributáriosque só cruzam um Estado (dominialidade estadual) se juntarem aos riosfederais, ou seja, determinar quais são os solos banhados e influenciados porrios federais e quais os banhados por rios estaduais? Nem sempre é possívelidentificar com clareza a união dos rios, como no encontro do rio Negro(estadual) com o Amazonas (federal), pois isso varia de ano a ano. Nessecaso, o mais apropriado é definir geograficamente esses limites de modo agerar estabilidade aos estados e à União, quanto aos seus direitos e deveresde domínio. O apropriado é instituir instrumentos jurídicos que permitama participação, dos dois entes, nas decisões dessas linhas limítrofes, adequandoa formalidade do Direito às necessidades dos ecossistemas amazônicos.

Antes de identificar características que devem ser consideradas em eventuaisregulamentações de uso de solos de várzea, por serem bens públicos, é precisocitar uma discussão trazida pelo Estado do Pará. Este estado interpretouerroneamente o artigo 64 da Constituição Federal de 1891 e considerou osterrenos de marinha como terras devolutas3. Dessa forma, permitiu-se oregistro de propriedades particulares em áreas de terrenos de marinha. Noentanto, essa interpretação já foi recusada pelo Supremo Tribunal Federalem sentença proferida em 1905, tornando todos esses títulos inválidos(Treccani, 2003).

É preciso também analisar quais as conseqüências da dominialidade e danatureza jurídica da várzea, na regulamentação de seu uso. Nesse caso,

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algumas considerações sobre as características e diferenciações de benspúblicos são necessárias. Os bens públicos, no que concerne à destinaçãodo bem, são divididos em de uso comum, de uso especial e dominicais(Gasparini, 1995).

Os bens de uso comum podem ser utilizados por qualquer pessoa, mas seuuso deve ser conforme a destinação do bem. São inalienáveis (proibidos devenda, permuta, doação e dação em pagamento) pela sua própria natureza(Gasparini, 1995). São exemplos os rios, mares, estradas, ruas e praças (DiPietro, 1997).

Os bens de uso especial são móveis e imóveis utilizados pelo Poder Público,na prestação de serviços públicos. Também são inalienáveis (Gasparini, 1995).São exemplos os edifícios a serviço do governo (Di Pietro, 1997).

Bens dominicais são destituídos de qualquer destinação, prontos para seremalienados (Gasparini, 1995). Constituem patrimônio da União, estados emunicípios, como objeto de direito pessoal ou real. Destinam-se a assegurarrendas ao estado, em oposição aos demais, que são afetados ao interesse geral(Di Pietro, 1997).

A água (que faz parte da várzea) passou por modificações jurídicas nos últimostempos. De acordo com o Código de Águas (Decreto nº 2.4643/34), era possívelhaver águas públicas e águas particulares (disposição em diversos artigos), sendoalgumas consideradas bens de uso comum e outras dominicais (e, portanto,passíveis de alienação). No entanto, com a Lei nº 9.433/97, todas as águaspassaram a ser de uso comum (artigo 1o c/c artigo 11 e artigo 18). Essa leiafirma claramente que a água é um bem público; que o Poder Público nãoé proprietário da água, mas torna-se gestor desse bem, para o interesse detodos e que as águas são inalienáveis (Machado, 2002). Já os terrenos demarinha e os marginais, que abrangem uma faixa de 33 m e 15 m,respectivamente, são considerados bens dominicais (Di Pietro, 1997,Gasparini, 1995, Mello, 1995). Os terrenos marginais são contados desdea linha média das enchentes ordinárias, mas os terrenos de marinha estãodentro da várzea e, sendo bem dominical, pode ser alienado, doado oupermutado.

Essa diferenciação jurídica, advinda de uma definição legal englobando umevento natural, traçou diferentes abordagens de uso para a água e para osterrenos de marinha, que abrangem a várzea de maré. A questão é: comopermitir a alienação de parte que engloba e é adjacente à várzea, já que ela

3 Terras devolutas são terras públicas não aplicadas ao uso comum nem ao uso especial. São as terras que desde o descobrimentodo Brasil não ingressaram no domínio privado, por título legítimo, ou aquelas que não receberam destinação pública (Gasparini,1995).

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incorpora a água (que é inalienável) e dela faz parte por ser um sistemahíbrido? Além disso, a lei de recursos hídricos exige atuação conjunta soloversus água, além dos fatores ecológicos já expostos. Esse impasse precisa serurgentemente revisto na legislação, pois o interesse público deve sempreprevalecer sobre o privado. Os terrenos de marinha devem seguir os mesmosinstrumentos legais de possibilidades de uso da várzea, de um modo geral,inclusive com manejos diferentes de acordo com os tipos de várzea existentesao longo da calha, até onde há a influência das marés. Nesse caso, é necessárioidentificar as principais formas de utilização dos bens de uso comum e osbens dominicais.

Principais formas de utilizaçãoBens de uso comum

São os bens utilizados indistintamente, por qualquer sujeito, em concorrênciaigualitária e harmoniosa com os demais, de acordo com o destino e em condiçõesque não lhe cause uma sobrecarga invulgar (Mello, 1995). No entanto, existemhipóteses de usos especiais que se afastam dessas características indicadas,podendo demandar exclusividade no uso, sobre parte do bem, desde que autilização satisfaça a um interesse público (Mello, 1995, Gasparini, 1995).Destacam-se as seguintes formas:

Autorização de uso: ato unilateral pela autoridade administrativa que facultao uso para utilização episódica de curta duração (Mello, 1995). É revogável esem indenização (Gasparini, 1995). Reveste-se de maior precariedade do quea permissão e a concessão. É outorgada, em geral, em caráter transitório. Conferemenos poderes e garantias ao usuário. Dispensa licitação e autorização legislativa.Pode ser simples (sem prazo) e qualificada (com prazo). Faculta o uso privadodo beneficiário (Di Pietro, 1997).

Permissão de uso: ato unilateral, precário, mas obriga o uso em interessepúblico sob pena de caducidade do uso consentido, discricionário (Mello, 1995),revogável sem indenização (Gasparini, 1995), podendo ser simples (sem prazo)e qualificada (com prazo). Implica a utilização privativa para fins de interessecoletivo. É dotada da mesma estabilidade da concessão de uso (Di Pietro,1997).

Concessão de uso: o Poder Público outorga a terceiro a utilização de bempara que o explore, segundo condições estabelecidas. É intuitu personae (direitopessoal), podendo ser gratuita ou onerosa. É precedida de autorização legislativae concorrência, dispensada nos casos previstos em lei (Gasparini, 1995).Seu uso deve ser feito de acordo com a destinação do bem. Pode ter por

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objeto bens públicos de qualquer natureza. O Decreto-Lei nº 9.760/46não identificou concessão de uso, mas cessão de uso (que é uma dasmodalidades de concessão), aplicada exclusivamente à União, neste caso(Di Pietro, 1995). Para Mello (1995), o instrumento é utilizado para usode bem especial (não abordado neste trabalho) e complementa que a suarescisão é indenizável. Para Gasparini (1995), a cessão de uso é o instrumentopelo qual a Administração transfere o uso de certo bem de um órgão paraoutro, ou seja, é utilizado para uso de bem especial.

Bem dominicalConcessão de direito real de uso: a Administração transfere, como direito real

resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público para utilização,com fins específicos, por tempo certo ou prazo indeterminado. É transmissívelpor ato inter vivos ou causa mortis, como os demais direitos reais sobre coisasalheias. É direito exclusivo (sobre o bem que recai não incidirá outro direito damesma espécie) e oponível erga omnes (contra todos). Diferencia-se da concessãode uso, uma vez que instaura um direito real; enquanto a concessão de usocompõe-se de um direito natural obrigacional (pessoal). Seu exercício independeda colaboração de terceiro, faz-se de per si, diretamente na relação entre osujeito e a coisa, ao contrário dos direitos pessoais (Mello, 1995).

Enfiteuse: é também chamado de aforamento. É o direito real sobre coisaalheia que confere a alguém, perpetuamente, os poderes inerentes ao domínio,com obrigação de pagar ao dono (poder público) uma renda anual e a deconservar-lhe a substância. Só se confere sobre imóveis. O poder público chama-se senhorio, e seu domínio é chamado direto. O beneficiário denomina-seforeiro ou enfiteuta, e seus direitos sobre o imóvel são designados como domínioútil. O enfiteuta dispõe dos mais amplos poderes sobre o bem: pode usá-lo,gozá-lo e dispor dos seus frutos, produtos e rendas, mas não pode mudar-lhe asubstância ou deteriorá-lo (Mello, 1995, Di Pietro, 1997, Gasparini, 1995). Aenfiteuse não é mais contemplada no novo Código Civil Brasileiro (Lei nº10.406 de 10/1/2002).

Recomendações

Expostos os principais instrumentos jurídicos de uso desses dois tipos debens, é preciso avaliar os aspectos que são relevantes e quais instrumentosutilizar na decisão. Conforme mencionado anteriormente, é adequado quea legislação brasileira padronize a classificação das várzeas como bem público

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de uso comum e iguale a atual diferenciação de tratamento jurídico paraáreas adjacentes à várzea de maré (terrenos de marinha) e várzeas interiores.Inclusive porque as várzeas de maré são mais amplas do que a metragem dosterrenos de marinha, o que torna bastante inadequado dispor tratamentodiverso para a mesma realidade fática.

Conseqüentemente, não é conveniente utilizar instrumentos de uso debens dominicais para a várzea, pois a água faz parte desse ecossistema, mesmono período de seca, e o interesse público deve sempre prevalecer sobre oparticular. Outros pontos também merecem atenção e revisão legal. Asregulamentações de uso, feitas sobre área onde há a determinação expressados limites permitidos para uso, não são compatíveis com a realidade davárzea, pois seu solo muda todo ano com a cheia, o que torna as escriturasjurídicas bastante instáveis em um ecossistema tão dinâmico. Contratosdevem ser feitos direcionando a cessão de uso dos recursos e não a cessão daárea onde estão inseridos. Esse procedimento otimiza a utilização dos recursose evita litígios, a cada ano, com as novas diferenças do solo causadas pelasinundações. Além disso, é possível fazer contratos de uso individuais e/oucoletivos, conforme a circunstância, dependendo de qual atende melhor asfunções social e ambiental, mas sempre respeitando o preceito legal de que“a presença será tolerada” e “para a população ribeirinha e tradicional, compreferência para os pequenos proprietários”. Nesses contratos devem constarquais atividades podem ser desenvolvidas e em que escala. Permitir os mesmosusos em áreas de chavascal e de restinga alta, por exemplo, poderia condenara várzea ao esgotamento de seus recursos. Junk (1997) destaca que as atividadesem larga escala na várzea prejudicam o leito do rio e promovem oenfraquecimento do solo. De qualquer modo, seja individual ou coletivo, oacordo ou contrato deve utilizar instrumentos de bens de uso comum, poisassim não podem ser transferidos a terceiros (intuitu personae, mesmo quandofeito a uma cooperativa ou associação), e seu manejo deve seguir claramenteo interesse público da proteção ambiental.

Com a proibição da alienação das áreas inundáveis, os instrumentosdisponíveis atendem às necessidades das populações locais e evitam a entradade proprietários com outros interesses culturais — com a proibição daalienação das áreas inundáveis. Portanto, essas áreas, no período de seca,não são privadas, mas são bens de uso comum, com usos especiais porparticulares. Isso respeita os preceitos da legislação hídrica e atende àsnecessidades da população tradicional local.

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Competências dos órgãos federaisCompete ao SPU determinar a Linha da Preamar Média – LPM - de

1831 (não determinada até hoje), bem como a média das enchentesordinárias. Da mesma forma, é o SPU que faz a discriminação de bensimóveis da União e o levantamento das ocupações para possívelregulamentação (Decreto-Lei nº 9.760/46). No entanto, como foidemonstrado anteriormente, convém alterar a legislação, em vez de insistirem determinar a LPM. Também é necessário rever as competências geraispara otimizar a regulamentação de uso de áreas alagáveis.

Ao Incra compete fazer a regulamentação das áreas rurais de terra firmefederais (Lei nº 4.504/64). Para áreas inundáveis, quem atua é o SPU, pois setrata de um bem da União (Decreto-Lei nº 9.760/46). No entanto, de acordocom a Instrução Ato Interministerial MDA/MPOG de 19/12/02, o Incratambém possui, atualmente, competência para atuar em áreas inundáveis.

Como a várzea comporta um sistema híbrido, é aconselhável que as decisõesa serem tomadas área sejam discutidas também com o Ibama (órgão fiscalizadordos recursos naturais) e com o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (epossível Comitê Federal, se for criado). Somente com a presença de todas essasentidades na discussão sobre manejos de várzea, bem como sobre a participaçãoda população envolvida (Lei nº 9.433/97), será possível atender às determinaçõesconstitucionais de proteção ambiental e desenvolvimento social.

Conclusão

O conceito de várzea abrange aspectos químicos da água, relevo das áreasinundáveis, riqueza do solo e conseqüente vegetação adaptada a inundaçõesperiódicas. Existem diferentes tipos de várzea e todos esses conceitos devem serutilizados para determinar legalmente suas possibilidades de uso, de maneiraque atinja os preceitos constitucionais. Não convém criar um conceito em lei,para não “engessar” suas possibilidades, mas sim utilizar os conceitoscientíficos existentes para determinar, em lei, as possibilidades de suautilização pelo ser humano.

A natureza jurídica da várzea é híbrida, abordando aspectos de água e desolo. Não é adequado encaixar esse ecossistema complexo em naturezas jurídicasjá existentes (água e APP) que limitam a otimização de uso e proteção ambientaldessas áreas. No entanto, sendo APP ou água, a legislação revela apossibilidade de uso das várzeas por populações ribeirinhas e pequenos

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proprietários. A lei do Snuc abriu possibilidade jurídica para melhor definira utilização da várzea, de acordo com a sua natureza.

A dominialidade das várzeas da calha do Amazonas-Solimões é públicafederal. É preciso alterar as determinações de terrenos de marinha parauniformizar a várzea como bem público de uso comum, prevalecendo o interessepúblico sobre o particular.

A competência para discriminar áreas de várzea é do SPU, mas é precisohaver participação do Ibama e de órgãos de recursos hídricos, por se tratarde ecossistema complexo. Além disso, a participação social nos processos dedecisão é fundamental (Lei nº 9.433/97). Somente com modificações nalegislação será viável conservar as populações tradicionais da várzea, por meiode possíveis utilizações sustentáveis desse ecossistema.

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A SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DA VÁRZEA DORIO AMAZONAS E EXPERIMENTOS DE

REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NOSESTADOS DO PARÁ E DO AMAZONAS

David G. McGrath e Antônia Socorro Pena da Gama

Capítulo II

Introdução

A várzea do rio Amazonas sempre foi o corredor central daocupação no Amazonas. Até a década de 1970, quando a atualmalha rodoviária começou a ser construída, a população amazônicase concentrava na várzea e nas margens dos principais rios. Apesarde sua importância em termos demográficos e econômicos, a situaçãofundiária da várzea sempre foi contraditória. Na interpretação dogoverno brasileiro, a várzea é considerada patrimônio da União e,portanto, nela não pode haver propriedade privada. No entanto,a várzea tem sido ocupada por gerações e, em toda a sua extensão,a população desenvolveu arranjos institucionais para garantir oacesso à terra e aos recursos naturais locais. Em muitas regiões devárzea, propriedades privadas são delimitadas e reconhecidas pelapopulação local. Além disso, existe um mercado de terras de várzeano qual é possível comprar e vender propriedades, apesar da faltade títulos legais.

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Essa contradição jurídica gera uma situação de insegurança legal e deconflitos de terra, que intensifica a insegurança ambiental, resultante daprópria natureza da várzea, onde a terra é coberta pela água durante a metadedo ano e onde terras aparecem e desaparecem de um ano para outro. Existehoje interesse em conciliar a ocupação da várzea com a legislação vigente.Esse interesse se dá na busca de formas de regularizar a propriedade privada,para que seja possível obter os benefícios normalmente disponíveis aosproprietários de terra, como o crédito rural. Assim, acredita-se que sejapossível aproveitar, de forma sustentável, o grande potencial produtivo dossolos e dos recursos naturais da várzea. No entanto, para criar uma legislaçãoeficaz, é necessário primeiro conhecer as formas atuais de ocupação da terrae de uso dos recursos naturais da várzea e, a partir desse conhecimento,desenvolver um sistema de regularização consistente com as característicasecológicas da várzea e com o modo pelo qual essa região está sendo ocupada.Este capítulo apresenta os resultados de um levantamento dos padrões deocupação e uso de recursos naturais da várzea e das iniciativas governamentaispara regularizar a situação fundiária.

Contexto da várzea amazônica brasileira

Descrição da áreaVieira (2000) define a várzea do rio Amazonas como a área inundada

anualmente pelo transbordamento lateral das águas do rio. Estima-se que avárzea possui 3.500 km de extensão e uma área em torno de 3.500 km2 (Figura1). Nessa extensão, sua largura varia de algumas centenas de metros, em trechosdo Alto Solimões, para uma média de 50 km ao longo do rio Amazonas. Vieira(2000) distingue duas regiões de várzea do ponto de vista jurídico: a várzeacontinental, que se estende do limite com a Colômbia até a cidade de Óbidos,com uma área de 87.600 km2, e a várzea da marinha, que se estende de Óbidosaté a foz do rio Xingu, com uma área de 70.081 km2. A principal característicaque diferencia essas duas regiões é a influência da maré, presente até a cidadede Óbidos.

Do ponto de vista ecológico, também é comum distinguir duas regiões,mas os critérios e a localização da divisão são um pouco diferentes. A primeiraregião estende-se da foz do rio Xingu até a foz do rio Madeira. Nesse trecho,a várzea é caracterizada por grandes lagos de pouca profundidade e umacobertura vegetal que consiste de 90% de campos naturais e 10% de floresta.

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A topografia é relativamente simples. A terra é mais alta na restinga aolongo do rio e principais canais, e diminui de altura, lentamente, na direçãodo interior da várzea, formando lagos interligados por canais. A vegetaçãoreflete essa variação topográfica, com florestas (ocupando as restingas) ecampos naturais, a zona entre os lagos permanentes e a restinga. No trechoentre a foz do rio Madeira e o limite com a Colômbia, os lagos são menorese mais estreitos e 90% da cobertura vegetal é floresta, enquanto 10% sãocampos naturais. A topografia consiste de séries de restingas intercaladascom lagos estreitos, formando um terreno mais acidentado.

PopulaçãoTradicionalmente, a população se concentrava nas margens da várzea devido

à riqueza de recursos naturais e ao fato de o rio ser a principal via de transportepara essas pessoas. Em conseqüência, quase todas as principais cidades daAmazônia estão localizadas na beira do rio Amazonas e seus principaisafluentes. Estima-se que a população dos municípios, ao longo do rio, estejaem torno de 1,1 milhão (excluindo Manaus) (Almeida et al., no prelo).Enquanto a população das áreas de terra firme, longe do rio, é composta decolonos assentados em anos recentes. Os habitantes da várzea (conhecidoscomo varzeiros ou ribeirinhos) ocupam a região há várias gerações. Ao longodo tempo, os ribeirinhos desenvolveram sistemas de manejo adaptados àscondições ambientais locais. Desde o início da ocupação luso-brasileira,vários recursos naturais foram explorados, por exemplo, o cacau, os quelônios,a borracha, as peles de animais silvestres (como o jacaré e a capivara), amadeira e o peixe seco. Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu a juta,que perdeu espaço para a pesca comercial e a pecuária, na década de 1980.

EconomiaA base econômica local varia de uma região para outra. Em Gurupá, logo

abaixo da foz do rio Xingu, predomina a floresta de várzea. Nessa região, omanejo de açaí e a extração madeireira são as principais atividades. No MédioAmazonas, onde predominam os campos naturais, as principais atividadeseconômicas são a pesca comercial e a pecuária extensiva. A agricultura, que jáfoi a base da economia, na época da juta, está orientada principalmente para asubsistência. Na várzea do rio Solimões predomina a pesca, a extração madeireirae, com menor importância, a agricultura associada à pecuária de várzea.

Nas últimas décadas, a sociedade e a economia de várzea sofreram grandesmudanças com resultados importantes para os arranjos fundiários. Essas

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mudanças variam de uma região para outra e refletem, de um lado, ascaracterísticas ecológicas e os recursos naturais disponíveis, e do outro, osdiferentes processos sociais e econômicos.

A mudança principal foi o declínio do sistema tradicional de aviamento,resultado da decadência da economia extrativista. Na economia extrativistatradicional, a exploração dos recursos naturais locais era controlada por relaçõesde comerciantes do interior que forneciam mantimentos para os moradorese recebiam em pagamento os produtos extrativistas como o peixe seco, aborracha, o cacau, peles de animais silvestres, madeira e outros produtosflorestais e agrícolas, dependendo da região e da época do ano (Castro,2002, McGrath, 1989, Weinstein, 1983). Comerciantes estabeleceramfeitorias nos locais de pesca de pirarucu ou nos tabuleiros, para organizartanto a exploração dessas espécies quanto o processamento dos produtos,fornecendo sal e outros insumos e comprando os produtos beneficiados(Veríssimo, 1890, Weinstein, 1983, McGrath, 1989). Por meio do controledo acesso e da exploração desses locais de alta produtividade, os comerciantesmonopolizavam a comercialização dos produtos naturais da várzea. Nessecontexto, a delimitação da terra não era necessária, pois o controle dacomercialização dos produtos era mais importante do que a extração em si.O sistema de aviamento entrou em decadência na década de 1960 (Lima eAlencar, 2000), embora tenha permanecido como um fator importante nasrelações sociais e econômicas da região.

Essas mudanças nas relações sociais coincidem com o surgimento de umanova atividade econômica na várzea: a juticultura. Trazida por colonos japonesesna década de 1930, para Parintins, a juticultura se expandiu ao longo de quasetoda a extensão de várzea do rio Amazonas no período pós-guerra (Homma,1998). Pelo menos nos primeiros anos, a juta revitalizou a economia da várzeae melhorou significativamente a renda da população. Nesse período tambémhouve, aparentemente, um crescimento significativo da população “varzeira”(decorrente da reprodução e não da colonização), pois muitas comunidades,até aí compostas de apenas algumas famílias, começaram a crescer.

A partir da década de 1970, a economia da juta entra num período dedecadência que leva ao seu colapso na primeira metade da década de 1980. Odeclínio da juta é acompanhado pela intensificação e expansão da pescacomercial (McGrath et al., 1993). Com o desenvolvimento da pescamoderna, houve uma transformação da pesca tradicional. Antes, ela envolviaa produção e a comercialização de peixe seco salgado e era realizada noperíodo da seca pelos moradores locais que utilizavam apetrechos tradicionais.

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Já a pesca comercial envolve a produção e a comercialização de peixe frescoe gelado e é realizada o ano inteiro por pescadores profissionais (conhecidoscomo geleiros) que utilizam malhadeiras de fio sintético. A maior capacidadede captura dos pescadores comerciais tem resultado num aumento da pressãosobre os estoques pesqueiros dos lagos de várzea (Smith, 1985; McGrath etal., 1993 e Goulding, 1983).

Preocupadas com a diminuição dos recursos pesqueiros dos lagos locais,as comunidades ribeirinhas se organizaram para expulsar os pescadorescomerciais e definir regras para a exploração dos recursos locais. Essemovimento para a preservação dos lagos teve características distintas, emdiferentes regiões, mas em quase todos os casos reflete direta ou indiretamentea atuação da Igreja Católica na organização das comunidades e na formaçãode lideranças comunitárias4 (Lima, 1999).

Na base desse movimento está uma nova concepção de territorialidade. Apartir desse momento, as comunidades começaram a reivindicar direitosterritoriais sobre os lagos e recursos naturais que tradicionalmente exploravam.Em geral, o reconhecimento de um território comunitário estava ligado aoconceito de propriedade privada pelo fato de os lagos nos fundos daspropriedades serem considerados como parte da comunidade. Em alguns casos,esse direito é justificado não pela posse da terra ao redor dos lagos, mas pelouso tradicional de lagos, próximos à comunidade. Um ponto importante a serconsiderado é que esta é a mesma lógica utilizada por grandes proprietáriosque reivindicam a posse de lagos, por estes estarem dentro de suas propriedades.Assim, eles justificam a expulsão de pescadores de fora e a exploração exclusivados seus recursos pesqueiros. Do outro lado, esse conceito de posse dos lagosde várzea não é compartilhado pelo Estado, que defende a livre navegação e olivre acesso aos recursos pesqueiros dos lagos, admitindo apenas o direito dascomunidades de definir regras para a sua exploração, a exemplo das recentesportarias editadas pelo Ibama (MacGrath et al., 1999, Brasil, 1934 e Ibama,1996).

Um segundo processo econômico e social, de importância maior no Baixo eno Médio Amazonas, é a expansão da pecuária bovina – e mais recentemente,a bubalina. A expansão da pecuária difere da expansão da pesca porque está

4Em termos sociais, o principal processo de mudança no período pós-guerra foi a reestruturação da sociedade da várzea, pormeio de programas sociais e educacionais da Igreja Católica, dos quais o mais importante foi o MEB. Esse programa organizou osmoradores de várzea em comunidades e formou as lideranças comunitárias. A partir daí, a referência dos varzeiros passou dobarracão, que dominava o comércio local, para a comunidade com a sua igreja, centro comunitário, clubes sociais, atividades comunitárias,catequistas e outras lideranças comunitárias. Na região de Santarém, essa mudança é evidente na comparação dos antigoscroquis da Sucam, com os mapas atuais. Nesses croquis, freqüentemente aparecem os nomes de fazendas e não os nomes dascomunidades hoje existentes.

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diretamente ligada ao controle da terra e não apenas ao acesso aos lagos.Com a intensificação da pecuária, proprietários começam a exercer controlee a reivindicar direitos de propriedade sobre o interior da várzea, e assim,freqüentemente, entram em conflito com pescadores e comunidades. Aexpansão da pecuária, especialmente da pecuária bubalina, está contribuindopara a proliferação de conflitos entre criadores de gado, pescadores eagricultores. Em várias regiões, os prejuízos sofridos pelos agricultores,com a destruição de roçados pelo gado e o búfalo, estão inviabilizando aatividade agrícola, cuja baixa rentabilidade dificulta os investimentosnecessários em cercas, para proteger os roçados dos búfalos.

A expansão da pecuária está relacionada a três processos demográficos eambientais importantes. Primeiro, a expansão da pecuária está contribuindopara a degradação ecológica da várzea e ao mesmo tempo aumentando osriscos para a agricultura. A falta de perspectivas econômicas está levando muitosribeirinhos a migrarem para a cidade. Por sua vez, esse processo de migraçãorural/urbana está contribuindo para a concentração da terra em algumas regiões,como em Parintins. Um segundo processo migratório, a migração sazonal entrea várzea e a terra firme, envolve o deslocamento do gado entre os camposnaturais da várzea, no período da seca, e os pastos de terra firme no período dacheia. Esse processo promove a integração das economias da várzea e da terrafirme, de uma forma nova. Terceiro, a possibilidade de retirar o gado duranteo período da cheia permite aos criadores aumentar seus rebanhos,sobrecarregando os campos naturais e contribuindo para o desmatamento naterra firme. O aumento dos rebanhos na várzea está gerando conflitos emrelação ao acesso e ao uso dos campos naturais. Na região de Santarém, omodelo do acordo de pesca tem sido adaptado para os conflitos relacionadosà pecuária. O Ministério Público Federal tem mediado os conflitos pormeio dos Termos de Ajuste de Conduta – TAC, que estipulam regras eresponsabilidades entre os diferentes atores.

Na década de 1990, na região de Santarém, houve alguns experimentos doque pode ser a próxima grande fase de ocupação da várzea: a agriculturaindustrial. Várias empresas fizeram experiências com a produção de grãos, navárzea, especialmente arroz e soja. Os resultados não foram conclusivos e,atualmente, a atividade está sendo desenvolvida na terra firme, onde os resultadosforam bem mais promissores. Entretanto, existe a possibilidade de, no futuro,o interesse recair sobre a várzea. Embora a agricultura industrial não tenhaobtido sucesso, a horticultura irrigada – utilizando insumos químicos e tratores–, já se consolidou em torno das principais cidades da região. Ao contrário

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dos experimentos com a agricultura industrial, a horticultura não foge muitodos padrões tradicionais de ocupação da várzea, sendo desenvolvida nasrestingas com um impacto ambiental relativamente localizado (Girgoff,2000).

Métodos

Este trabalho está baseado em estudos sobre a situação fundiária realizadaem três municípios: Santarém (PA), Parintins (AM) e Tefé (AM). A metodologiaconsiste de quatro componentes. Primeiro, realizou-se um levantamentosocioeconômico no período de maio a dezembro de 2002, com 30% das famíliasem dez comunidades dos seguintes municípios: Santarém (comunidades deSão Ciríaco, Água Preta, Piracão Era e Igarapé do Costa), Parintins(comunidades de Paraná de Parintins de Cima, Menino Deus e Nossa Senhorado Perpétuo Socorro) e Tefé (comunidades de São Joaquim, Santa Helena eSanta Tereza). Segundo, as entrevistas foram conduzidas com os principaisatores locais envolvidos com questões fundiárias. Terceiro, foram realizadoslevantamentos nos cartórios de registro de imóveis, dos três municípios, paraidentificar os registros de documentos de terras de várzea localizados nascomunidades estudadas. Finalmente, anotou-se a localização de cadacomunidade utilizando GPS e, posteriormente, confeccionaram-se mapas-basedigitais, a partir da digitalização de plantas cartográficas e imagens de satéliteLandsat.

Situação fundiária das comunidades de várzea dos trêsmunicípios

A forma de ocupação da várzea consiste principalmente de comunidades depequenos produtores intercaladas por propriedades maiores. As comunidadesda várzea são formadas por menos de 10, a mais de 100 famílias. Existemdiferenças entre as regiões de várzea. No Baixo Amazonas, por exemplo, ascomunidades são formadas de 30 a 100 famílias, enquanto a maioria dascomunidades de Tefé possui entre 10 e 30 famílias. As comunidades estãolocalizadas nas restingas, com as casas distribuídas ao longo do rio. Em todasas regiões, os moradores distinguem propriedades individuais, embora existamalgumas exceções.

As propriedades de várzea têm o testado ao longo do rio e medem o

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tamanho das propriedades em metros de frente. A frente e os limites lateraissão bem definidos, mas os fundos são raramente delimitados e normalmentese estendem até um lago ou canal, no interior da várzea. Esse sistema asseguraaos proprietários o acesso a todos os principais ambientes da várzea: rio,floresta de restinga, campos e lagos. Esse padrão está sendo modificado nascomunidades da região de Santarém, devido à pressão populacional. Quandonão é possível dividir a propriedade de forma longitudinal, as casas dosfilhos são construídas atrás da casa dos pais.

Existem dois tipos principais de imóveis rurais, a saber: propriedadespequenas, com sistemas de produção diversificados, e propriedades médias egrandes que se dedicam à pecuária. Nos imóveis pequenos desenvolve-se umacombinação de duas ou mais atividades, incluindo a agricultura, a pequenacriação, a criação de gado, a pesca e a extração florestal. As posses familiaressão realmente pequenas, de acordo com os padrões amazônicos. Supondo quea restinga tenha 1.000 m de largura, as propriedades pequenas, que variam de5 a 500 m de frente, têm uma área total de 1/2 ha a 50 ha. Propriedades dessetamanho representam mais de 80% das propriedades, nas comunidadesestudadas. No entanto, essa estatística esconde grandes diferenças regionais.Por exemplo, em Santarém, 74% das propriedades têm entre 5 e 100 m defrente (1/2 ha a 10 ha). Em Parintins, apenas 31% das propriedades estãonessa faixa e, em Tefé, quase todas as propriedades visitadas tinham mais de100 m.

Nas médias e grandes propriedades predominam a pecuária bovina e abubalina. Essas propriedades têm mais de 500 m de frente e, em alguns casos,chegam a ter mais de 5.000 m de frente, por exemplo, nos paranás de Parintinse de Ituqui (Santarém). Esse tipo de imóvel representa mais de 50% da áreatotal das regiões estudadas. Na ilha de Ituqui, essas fazendas ocupam 74% daárea total (McGrath et al., 1999).

Embora a propriedade privada seja reconhecida em todas as regiões estudadas,existe um gradiente de propriedade privada, para propriedade comum, à medidaque se avança do rio para o interior da várzea. A restinga, onde estão localizadosa casa e o quintal (onde se desenvolve a maior parte das atividades agrícolas)normalmente é considerada propriedade privada, com limites laterais bemdefinidos. À medida que se avança para os fundos da propriedade, os limiteslaterais são menos claros e a terra passa a ser de uso comum. Assim, as florestas,campos e lagos dos fundos da comunidade, são freqüentemente consideradosde uso comum (Figura 3a). Os proprietários podem vender as suas terras e,com isso, o direito de acesso aos campos, lagos e florestas do interior. Em

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alguns locais, a comunidade define um território comunitário e nãoreconhece propriedades individuais (Figura 3b). Nesses casos, os moradoressão proprietários apenas de suas benfeitorias, incluindo seus roçados atuaise os que estão em pousio, mas não são considerados proprietários da terra.Assim, podem vender apenas as suas benfeitorias. Esse arranjo comunitárionão parece ser muito comum na região; foram constatados apenas dois casosno município de Tefé, um no qual a área foi dividida entre os filhos doproprietário original, e outro, em que a prefeitura cedeu uma área a umgrupo de famílias.

A economia das unidades familiares depende do acesso aos recursos dasflorestas, campos e lagos do interior da várzea. Portanto, mesmo onde a terra édividida em lotes individuais, esse componente coletivo é de fundamentalimportância para a viabilidade econômica da pequena produção na várzea.Assim, a unidade econômica verdadeira não é apenas a propriedade individual,mas um território muito maior, compartilhado com outros moradores dacomunidade e da região.

Outro ponto importante é a dificuldade de enquadrar a situação fundiária,da várzea, nos critérios que o Incra utiliza para propriedades de terra firme. Porexemplo, pelos critérios do Incra, o módulo rural varia entre 80 há e 100 ha

Figura 3. Sistemas de propriedades privada e comum na várzea.

a) Território comunitário compropriedade privada

b) Território comunitário sempropriedade privada

Testada (Rio)

LimiteComunidade

Limite

Rio

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e a área mínima para a regularização fundiária é de 3 ha. No entanto, quase50% das propriedades do projeto-piloto de regularização fundiária, emSantarém, estão abaixo desse limite.

Experiências de regularização fundiária

A várzea é considerada um bem público de domínio da União, conforme aprevisão do artigo 20 da Constituição Federal, e a maior parte dessa áreaestá sob a administração do SPU. Isso significa que a maioria dos moradoresnão possui títulos expedidos pelo Poder Público. Aguiar (1994) entendeque a União detém bens que são seus, de seu domínio, que recebem adenominação de bens dominiais, mas ela também é responsável pelos bensde uso comum do povo, não podendo permitir sua degradação ou destruição(veja a discussão sobre esse tema, no primeiro capítulo).

Ao fazer referência à legislação, Vieira (1992) chama a atenção para aposição do Código de Águas, que reconhece a possibilidade de utilizaçãodessas áreas, pelo homem, sujeita a três requisitos indispensáveis: o primeiroressalta o fato de que a autorização não é irrestrita, mas apenas tolerada pelaAdministração Pública; o segundo determina que os usos deverão, quandohouver a necessária autorização, restringir-se a cultivos por pequenosproprietários, ainda que não exclusivamente, mas em caráter prioritário; e,finalmente, quando a atividade de cultivo for tolerada, não pode entrar emconflito com o interesse público, que deverá sempre se sobrepor à vontadede particulares, seja individual ou de um grupo de pessoas (Vieira, 1992).

Além das dificuldades para obter uma posição clara a partir da legislaçãobrasileira, existem diferenças importantes na maneira pela qual os Estados doPará e do Amazonas administram as terras de várzea. Apesar das semelhançasdos ecossistemas e das atividades econômicas entre os municípios de Santaréme Parintins, por exemplo, a estrutura administrativa e o processo de regularizaçãodos apossamentos são completamente diferentes.

A experiência fundiária no Estado do ParáNo Pará, ambos, o Estado e a Prefeitura de Santarém, não possuem um

sistema de administração das terras de várzea. Embora exista um setor de terrasna Prefeitura de Santarém, ele não tem um cadastro dos imóveis de várzea. OIterpa, responsável pelas terras do estado, também não atua na várzea, porentender que é jurisdição da União e que o órgão responsável é a GRPU. OIncra, que só começou a atuar na várzea em 1998, como colaborador do

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projeto-piloto de regularização fundiária da várzea de Santarém, possui essamesma compreensão.

De acordo com as normas legais do GRPU, um cidadão comum poderegularizar sua posse, desde que apresente as documentações previstas noMemorando-circular nº167/01 GEAES/GEAPN e Memorando-circular nº.10/02 GEAES/SPU. O processo legal para regularizar uma área envolve umasérie de passos burocráticos. Além disso, a sede da GRPU está em Belém,muito distante dos municípios do Baixo Amazonas, o que dificulta oencaminhamento dos processos. O baixo poder aquisitivo da população devárzea também limita a possibilidade de habilitar a propriedade.

As conseqüências podem ser conferidas nas quatro comunidades estudadas,onde 70% dos ribeirinhos não tinham nenhum tipo de documentocomprovando o domínio de terra. Apesar de identificar três pessoas comdocumentos nas quatro comunidades de Santarém, não foi encontrado nenhumdocumento de registro de imóvel de várzea, nos cartórios de imóveis deSantarém. Dos 30% que têm algum documento de posse, apenas 38% possuemrecibo de compra e venda e 58% adquiriram a terra por meio de herança.

Em 1998, numa parceria entre a Prefeitura Municipal de Santarém, SPUe o Incra, iniciou-se um projeto-piloto de regularização fundiária das áreas devárzea, com quatro comunidades do município de Santarém (São Ciríaco,Igarapé do Costa, Água Preta e Piracão Era de cima e de baixo). A sua finalidadeé levantar subsídios para definir um procedimento específico para regularizaras terras de várzea do rio Amazonas e seus afluentes. O projeto-piloto buscabeneficiar 390 famílias (2.300 pessoas) das quatro comunidades. Se for ampliadopara todas as comunidades de várzea do município, o projeto beneficiará emtorno de 150 associações, 12.000 famílias e 60.000 pessoas (documento SPU,p. 8). Entretanto, até agora nenhuma comunidade efetivou a assinatura docontrato, embora já tenham sido editadas duas portarias autorizando essaassinatura – uma na comunidade de Igarapé do Costa, Portaria 188 – 9/5/2editada no Diário Oficial da União – 10/5/2 e a outra na Comunidade de SãoCiríaco, Portaria 196 – 14/5/2 editada no Diário Oficial da União – 15/5/2.

A proposta do GRPU possui vários elementos. As propriedades de várzeaforam divididas em dois grupos, comunitários e proprietários médios e grandes,e priorizou-se a regularização de áreas comunitárias. Uma equipe de técnicosdas três instituições parceiras realizou um levantamento de todas as famíliasdas quatro comunidades e definiu e mapeou os limites de cada propriedade.Nessa proposta, os proprietários não receberiam títulos definitivos e simuma concessão de uso, válida para pelo menos cinco anos. Por causa do

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grande número de propriedades, abaixo do tamanho do módulo rural,decidiu-se fazer a concessão de uso para uma associação comunitária, queem seu torno, faria a concessão de uso para cada proprietário. Uma condiçãopara a comunidade receber a concessão de uso é apresentar um plano para aárea.

A proposta possui alguns aspectos interessantes do ponto de vista da co-gestão de áreas coletivas. A concessão de uso é para a comunidade, e não paraproprietários individuais, e a exigência de um plano de uso coletivo para oterritório reforça a estrutura coletiva de gestão dos acordos de pesca e os Termosde Ajuste da Conduta da pecuária. No entanto, a exclusão dos médios e dosgrandes proprietários que residem na mesma área, significa que boa parte dosistema de lagos locais pode estar fora dos planos de manejo. Assim, a integridadeecológica do sistema de lagos é vulnerável a intervenções de posseiros que nãoestão contemplados nos planos de manejo.

A experiência fundiária do Estado do AmazonasAo contrário da política fundiária do Estado do Pará, no Amazonas

implementou-se um sistema de documentação das terras de várzea. Na décadade 1970, a política estadual de terras foi sensivelmente fortalecida dentro dogoverno estadual, com a criação de vários órgãos. Em 1979, o governo doAmazonas editou a Lei nº 1.335 de 13 de julho de 1979, criando o Iterampara administrar as terras do estado, incluindo as áreas de várzea.

A regularização de terras de várzea pelo Estado do Amazonas está baseadana decisão do governo estadual de utilizar uma “fórmula legal” por meio daLei Federal nº. 271, de 28 de fevereiro de 1967, para exercer o controle sobreas terras de várzea, por meio do co-uso para a posse coletiva ou Concessão deDireito Real de Uso – CDRU. De acordo com Pinto (apud Albuquerque,1984), “o co-uso é uma fórmula encontrada pelo governo do Estado pararegularizar as terras de várzea, inundáveis, ocupadas densamente pela atividadede pequenos produtores ...”.

Com a extinção do Iteram, a competência de regularização passou para osmunicípios, embora técnicos da prefeitura de Parintins não soubessem explicarcomo ficou a competência administrativa após essas mudanças. Na estruturaadministrativa de Tefé não percebemos a mesma estrutura organizacional deParintins, mas os cartórios fazem os registros e se organizam da mesma forma.

O modelo de regularização fundiária das várzeas no Amazonas segue a mesmanorma jurídica das comunidades de várzea do município de Santarém, noPará. As terras são consideradas patrimônio da União. Entretanto, a atenção

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dada à questão fundiária nos municípios do Amazonas, é bem diferente dasituação do Pará. Em Parintins, por exemplo, os cartórios do 1º, 2º e 3ºofícios, atuam no registro de imóveis, fazendo escrituras públicas das áreasde várzea, com livros específicos para esses apossamentos. Durante a visitade campo, verificou-se que 50% dos entrevistados apresentaram documentosde terra, inclusive com registros nos cartórios.

A Prefeitura Municipal de Parintins criou uma Secretaria de Terras e Cadastrosem convênio com o Incra, que realiza o cadastro de todos os produtores rurais,utilizando volumes específicos para propriedades de várzea. O resultado desseprocesso administrativo pode ser comprovado no documento do SistemaNacional de Cadastro Rural, do Incra, com índices de 2001, no qual o municípiode Parintins apresenta 2.694 imóveis rurais cadastrados, para uma área totalde 6.004,9 km². Em comparação, Santarém, que tem uma área de 24.422,5km², possui apenas 3.864 imóveis cadastrados no mesmo período, apesar de aPrefeitura de Santarém também ter um setor de terras e o município sediaruma unidade regional do Incra.

Os dois modelos existentes, o da GRPU e o do Estado do Amazonas, partemda mesma premissa. As terras de várzea são do patrimônio da União e issoimpossibilita um título definitivo, permitindo apenas a concessão de uso paratempo determinado. Contudo, os dois possuem divergências. O Estado doAmazonas trata a propriedade de várzea basicamente da mesma forma quetrataria uma propriedade de terra firme. A concessão de uso é individual e nãoexiste uma política de diferenciação entre pequenos e grandes proprietários. Omodelo de regularização da GRPU diferencia entre grandes e pequenos, e trataos proprietários comunitários de forma coletiva. A exigência de um plano deuso também reforça o manejo coletivo do território. Não está claro qual épapel do Estado e do município na administração dessas concessões, uma vezregularizadas, e nem há uma resposta para o fato de o estado e o municípioestarem regularizando terra pública da União.

Considerações sobre os impactos socioambientais daregularização fundiária

É importante refletir sobre as possíveis conseqüências da regularizaçãofundiária da várzea. O reconhecimento formal da propriedade tem grandevalor econômico, social e psicológico para os proprietários. Como argumentaSoto (2000), a regularização fundiária torna concreta a principal forma de

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capital da população varzeira – a sua terra. Além disso, essa regularizaçãopermite acesso a uma série de benefícios, por exemplo, créditos subsidiadospara investir na produção agrícola e que podem melhorar significativamentea qualidade de vida da população. Todavia, também é possível que osresultados da regularização sejam diferentes dos esperados e nãonecessariamente compatíveis com a sustentabilidade da presença humanana várzea.

Historicamente, o sistema fundiário tem-se adaptado para acomodar osprincipais sistemas de produção e uso dos recursos naturais, existindo, portanto,uma interdependência entre os dois (Boserup, 1967, Netting, 1993). Nessecontexto, os arranjos locais refletem de certa forma respostas à situação legal davárzea. Mudanças no contexto legal da várzea poderiam desencadear umasérie de acontecimentos nos sistemas de uso do solo. Por exemplo, é possívelque a regularização fundiária facilite o acesso ao crédito rural e que esse créditoseja investido na pecuária. Isso contribuiria para o aumento da densidade bovinae para a degradação dos habitats e dos recursos aquáticos da várzea. Por suavez, essa degradação pode diminuir a produtividade pesqueira, afetando a rendada população ribeirinha. Por fim, esse processo pode acelerar a migração, oque contribui para a concentração fundiária.

As diferenças entre Parintins e Santarém, que estão localizadas na mesmaregião biogeográfica, especificamente a maior população e o número decomunidades na região de Santarém, e a maior proporção da área dedicada àpecuária de grande escala, na região de Parintins, podem estar relacionadascom os diferentes sistemas de administração fundiária, ou seja, o fato de serpossível regularizar propriedades privadas pelo Estado do Amazonas, apesar denão ser de seu domínio constitucional, e não ser possível no Estado do Pará. Seisso for o caso, a regularização fundiária em Santarém poderá desencadear umprocesso de concentração fundiária em grandes fazendas, ocasionando a expulsãode parte da população varzeira.

Uma outra questão é a importância dos recursos coletivos das florestas,campos e lagos (que varia de acordo com as condições ambientais e econômicaslocais), para a economia familiar. Dessa forma, o sistema fundiário tem de serflexível, de modo a integrar tanto os direitos individuais de propriedade quantoos direitos coletivos. Os atuais arranjos de posse e acesso à terra, e aos recursosda várzea, representam soluções para essas diversas necessidades. O sistema deregularização fundiária, eventualmente adotado, deve reconhecer a coexistênciadesses diferentes regimes de propriedade e assegurar que os direitos coletivos,em relação à conservação do ecossistema de várzea e seus recursos naturais,

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tenham prioridade sobre os direitos individuais de uso desses ambientes edos recursos.

A melhor maneira de garantir os direitos coletivos é fortalecer os arranjoslegais e extralegais que já estão em vigor na várzea. Nesse contexto, o pontode partida é a observação de Santos Vieira (1992) de que o Código deÁguas reconhece a possibilidade de utilização das várzeas, mas coloca trêsrequisitos importantes: (i) a autorização do uso não é irrestrita, apenastolerada; (ii) o uso deve ser restringido às atividades agrícolas de pequenoporte; e (iii) essas atividades não devem entrar em conflito com o interessepúblico. A partir dessa base, é possível condicionar a ocupação e o uso dosrecursos naturais da várzea e assegurar os direitos coletivos da populaçãoresidente. Nesse contexto, os acordos de pesca e as estruturas institucionaiscriadas para a gestão da pesca, representam o principal mecanismo paraqualificar os direitos dos moradores/proprietários de várzea, com relevânciaespecífica para os lagos. Os Termos de Ajuste de Conduta para a pecuária devárzea complementam acordos de pesca e são um importante mecanismopara ordenar a exploração dos campos naturais. Esses arranjos fornecemuma base promissora para o desenvolvimento sustentável da várzea,conciliando as demandas econômicas da população com a necessidade deconservar os habitats e recursos naturais, e manter os serviços ambientaisque a várzea proporciona para a sociedade brasileira como um todo.

Princípios socioambientais para a regularização fundiária

Talvez a melhor maneira de fortalecer esse equilíbrio entre a conservação e ouso seja por meio da definição de princípios socioambientais da várzea, paraorientar a elaboração de uma proposta de regularização fundiária. Osprincípios são:

Conceito de pulso: a várzea é um dos mais produtivos ambientes dabiosfera devido, em boa parte, à interação entre componentes terrestres eaquáticos, ao longo do ano (Junk et al., 1989). A produtividade animal evegetal, e a fertilidade dos solos, dependem em boa parte da interação entreespécies e habitats de várzea, ao longo do ano, com a subida e descida donível do rio. A manutenção da integridade desse habitat, portanto, é essencialpara assegurar o funcionamento do sistema e a produtividade dos recursosexplorados pela população residente.

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Manejo integrado dos recursos naturais: a interdependência entreambientes, recursos e atividades econômicas significa que a intensificaçãode uma atividade poderá ter conseqüências negativas para outras. Porexemplo, o desmatamento das restingas para a agricultura e a pecuáriaprejudica a produtividade pesqueira. Por sua vez, a pecuária tende a prejudicara agricultura, enquanto a expansão da agricultura nas restingas reduz aprodução florestal. Em vez de estratégias para maximizar a produção deum recurso, ou outro, deve-se adotar estratégias de manejo para otimizar aprodução do sistema como um todo. Assim, sistemas de manejo que integrama pesca, a agricultura, a criação animal e a exploração florestal, são maiscompatíveis com a manutenção da integridade do ecossistema de várzea.

Sistemas de lagos como unidades de gestão: o sistema de lagos de umdeterminado local é uma unidade de manejo que integra as principais interaçõesdo ecossistema e a economia de várzea. Na várzea, o sistema de lagos tem umpapel equivalente ao da bacia hidrográfica na terra firme. Ele constitui a principalunidade funcional da várzea. Podemos então diferenciar três níveis na ocupaçãoda várzea: a propriedade individual, o território comunitário e o sistema delagos locais, composto de um ou mais territórios comunitários e propriedadesindependentes. O sistema de regularização fundiária deve reforçar a viabilidadedessa unidade de manejo.

Serviços ambientais da várzea: as planícies de inundação são de grandeimportância no fornecimento de serviços ambientais. As várzeas funcionamcomo filtros ecológicos, retirando elementos nocivos como metais pesados,substâncias químicas e micróbios patogênicos, e reciclando a água. Dessa forma,a várzea aumenta a qualidade e a quantidade da água disponível à populaçãohumana. A degradação dos habitats e da produtividade biológica da várzeareduziria a sua capacidade de desempenhar essas funções, conseqüentemente,reduziria a disponibilidade e aumentaria o custo da água potável. Numa regiãoonde não existe tratamento de esgoto urbano, essa função é cada vez maisimportante.

Conclusão

Bem diferente da situação da terra firme, a várzea foi incorporada à economiaregional logo no início da colonização luso-brasileira. Nos séculos seguintes, avárzea sofreu grandes transformações econômicas e sociais. Cada fase desse

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processo foi acompanhada por um ou mais arranjos fundiários. Atualmente,uma nova fase da ocupação da várzea está exigindo a incorporação definitivada várzea no sistema fundiário nacional. O grande desafio é a definição e aimplementação de um processo de regularização, que seja: i) consistentecom a manutenção da integridade ecológica da várzea; ii) coerente com osarranjos institucionais, não formais, desenvolvidos pela população ribeirinha;e iii) capaz de responder adequadamente às pressões que a região sofrerácomo parte do processo de ocupação e desenvolvimento da bacia amazônica.

Neste trabalho, procuramos descrever os contextos histórico e social emque esse processo se desenvolve, avaliar os dois principais experimentos deregularização fundiária e identificar alguns princípios importantes para adefinição de um novo modelo de regularização fundiária, que combina aeficiência e a sustentabilidade do sistema implementado pelo Estado doAmazonas, com o uso coletivo dos recursos naturais previsto no modeloconstruído pela GRPU, em Santarém.

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IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DOSDIFERENTES TIPOS DE APROPRIAÇÃO DA

TERRA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O USODOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS

DA VÁRZEA AMAZÔNICA, NO IMÓVELRURAL, NA ÁREA DE GURUPÁ

Girolamo Domenico Treccani

Capítulo III

Introdução

A regularização fundiária das áreas de ilhas e várzea representaum enorme desafio para o Poder Público e as populações tradicionaisamazônicas. Isso por causa da complexidade das normas legaisvigentes e da excessiva burocratização dos processos administrativos.Contudo, três experiências realizadas nos últimos anos, em Gurupá,apontam caminhos para garantir a segurança jurídica no que se refereao uso da terra e dos demais recursos naturais.

A primeira é a assinatura do contrato de cessão de uso entre aUnião e uma associação de trabalhadores rurais (Santa Bárbara),embora nesse caso ainda haja a necessidade de rever os procedimentosutilizados para garantir uma maior agilidade em sua tramitação. A

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segunda é a expedição, por parte do governo do Estado do Pará, de doistítulos de reconhecimento de domínio em favor de comunidades deremanescentes de quilombo, totalizando mais de noventa mil hectares, queaponta uma outra possibilidade de regularização dos territórios tradicionais:a regularização étnica. Uma terceira é a criação do Projeto de AssentamentoAgroextrativista Estadual (Camutá do Pucurui), no qual a regularizaçãofundiária passa a abranger uma dimensão ambiental ainda maior. Graças aessas experiências, Gurupá foi escolhido pela Fetagri/PA como laboratóriopara testar as diferentes possibilidades de regularização fundiária da regiãodas ilhas.

Os elementos deste estudo oferecem subsídios e indicações jurídicas para osnovos rumos das reivindicações populares, que permitem o reconhecimentodo direito à terra das populações tradicionais ribeirinhas. O objetivofundamental é, portanto, analisar a experiência desenvolvida em Gurupá, paraapontar caminhos a serem adotados nos demais municípios localizados naregião das ilhas.

A pesquisa reuniu informações de campo, análise de processos administrativose a coleta de dados relativos à situação dominial dos imóveis em órgãos oficiaise em organizações não-governamentais. Essas informações permitiramdiscussões mais amplas com as comunidades locais e os demais atores sociaisenvolvidos na atuação do poder público (federal, estadual e municipal) naregião das ilhas.

O município de Gurupá

O município de Gurupá localiza-se às margens do rio Amazonas, logo apósa foz do rio Xingu e a ilha de Marajó. O imenso estuário do rio Amazonasinicia-se no município de Gurupá, que integra a região das ilhas.

Gurupá faz divisa, ao sul, com cinco municípios do Pará (Almerim, Portode Moz, Melgaço, Breves e Afuá) e, ao norte, com o município de Mazagão,no Amapá. A sede municipal dista cerca de 350 km, em linha reta, de Belém,podendo ser alcançada por via fluvial (24 horas de barco) ou aérea (aviões depequeno porte cobrem essa distância em cerca de 2 horas). Segundo o IBGE,a área total do município é de 8.578,2 km². A maioria (73%) das terras estásob jurisdição da GRPU/PA-AP, órgão vinculado ao Ministério doPlanejamento, Orçamento e Gestão. As áreas restantes (27%) estão sob ajurisdição do Iterpa. As áreas sob jurisdição da GRPU estão localizadas nasilhas e nas margens dos rios, furos, paranás e igarapés onde há a influência da

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maré. Por outro lado, as do Iterpa localizam-se na terra firme.Para determinar a legislação aplicável, é indispensável verificar qual o

regime de inundação predominante, nas diferentes áreas do município.

Regime de inundação no município de GurupáNo município de Gurupá, as águas do rio Amazonas e seus inúmeros

afluentes apresentam-se barrentas e muito carregadas de sedimentos. Os solos,por sua vez, são relativamente férteis5, comprovando os estudos científicossobre a várzea (Lima et al., 1996). Registra-se que o fenômeno das marésapresenta duas inundações diárias que duram, em média, seis horas cada uma.6

As marés têm características sazonais diferentes entre o inverno (de janeiro ajunho) e o verão (de julho a dezembro).

O nível das águas no município de Gurupá está sujeito ao ciclo lunar,apresentando diferenças nas fases distintas da lua. Por exemplo, constantemente,o nível da preamar da lua cheia é maior do que o nível da preamar da lua nova;enquanto o nível das águas no quarto minguante se distingue pouco daqueledo quarto crescente. O nível dessas marés aumenta gradualmente até o mês deabril, quando a preamar atinge o nível mais alto (maior lançante). Depois,começa a diminuir até o mês de novembro, quando ocorre o menor nível dabaixa-mar. Em alguns anos, por ocasião do segundo equinócio (setembro), onível dessa maré é maior. Apesar da falta de registros oficiais, pode-se afirmarque em determinados períodos a diferença entre os dois níveis de maré (alta ebaixa) chega a ser superior a 3 m, bem acima do limite legal que caracterizajuridicamente esse fenômeno.7

Não há em Gurupá a cheia sazonal prolongada, típica da região de Santaréme de outras áreas acima do rio Amazonas, onde as águas permanecem cobrindoo solo durante cerca de seis meses. Apesar disso, considerando a existência deusos dos recursos naturais, parcialmente similares, entende-se que existe apossibilidade de serem adotados alguns institutos jurídicos similares.

O regime de marés, que pode ser observado empiricamente, por qualquervisitante, tem uma grande relevância jurídica, pois as ilhas localizadas em áreassujeitas a esse fenômeno são legalmente consideradas de uso comum.

5 Segundo Raimundo Nonato Souza de Almeida, morador de Fortaleza: “Quando a água baixa, o terreno é mais fértil”.6 Com base nos bens que cada família possui, percebe-se que todas as casas têm pelo menos um trapiche, muitas têm mais deum e vários deles são muito compridos (existem trapiches com 60/80 m e um com 120 m), comprovando que a maré é quem dita as regrasdo dia a dia e condiciona o ritmo das atividades.7 Ver parágrafo único do artigo 2° do Decreto-Lei n° 9.760 de 5/9/1946 que determina: “Para os efeitos deste artigo a influência das marésé caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros, pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época doano.”

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Jurisdição federal das ilhas e terrenos de marinhaNa legislação portuguesa, os terrenos de marinha sempre estiveram ligados

à defesa do território. Segundo Diógenes Gasparini (2000): “Sendo os terrenosde marinha faixas de terras fronteiriças ao mar, era de interesse preservá-laspara a construção de obras ou a implantação de serviços necessários à defesa doterritório, ou, quando não, destiná-las aos serviços do Reino”. Um dos primeirosdiplomas legais que regulamentou essa matéria foi a Carta Régia de 4 de outubrode 1678, que determinava que os terrenos de marinha fossem reservados aouso comum, pois eram “regalia real”. Posteriormente, inúmeras legislaçõesconsagraram o uso especial dessas áreas8, contestando a concessão de eventuaistítulos, por parte das autoridades locais.9

Uma pendência toda especial foi criada com a transferência das terrasdevolutas, para os estados, operada pelo art. 64 da Constituição Federal de189110. Pois, a partir daquele momento, vários estados, entre eles o Pará,começaram a titular nessas áreas. Essa situação foi definitivamente resolvidapelo Supremo Tribunal Federal que, em 31 de janeiro de 1905, decidiu que osterrenos de marinha não poderiam ser confundidos com as terras devolutas:“São bens nacionais, sobre os quais a União exerce um direito de soberania oujurisdição territorial, impropriamente chamado, também por extensão, domínioeminente”.

A legislação atualmente em vigor determina que são propriedades da União:os terrenos de marinha e seus acrescidos (Constituição Federal de 1988, artigo20, inciso VII e Decreto-Lei nº 9.760/46, artigo 1o, AX“a”) e os terrenosmarginais de rios navegáveis e as ilhas neles situadas, na faixa da fronteira doterritório nacional e nas zonas onde se faça sentir a influência das marés(Decreto-Lei nº 9.760/46, artigo 1o, “c”) (grifo nosso).

No Pará, a influência das marés se estende por centenas de quilômetros dafoz do rio Amazonas, até Obidos, PA.

8 Uma Ordem Régia, de 10 de janeiro de 1732, apresentava a seguinte ordem: “Não consintais se aproprie pessoa alguma das praiase mar, por ser commum (sic) para todos os moradores”.9 O Decreto de 13 de julho de 1820 afirmava a primazia do domínio público sobre os terrenos de marinha: “Havendo sempre sidoconsideradas como uma dependência da Repartição da Marinha todas as praias de qualquer porto (...), e constatando-me que,não obstante isso, foram concedidas e distribuídas, por diversas autoridades, várias porções de terrenos nas praias desta cidadea indivíduos, que as requereram com o fim de levantarem ali estaleiros, estâncias e outros estabelecimentos da mesma natureza,resultando daqui o grande embaraço. Em que eles mesmos agora se consideram pela falta de legitimidade de seus títulos ....(grifos nossos)”.10 “Artigo 64. Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somentea porção de território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais(grifos nossos)”.

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Segundo um estudo realizado pela GRPU/PA-AP:A Gerência Regional de Patrimônio da União no Estado doPará tem, sob sua jurisdição, uma área de 1.367.806 km2, queconstituem os estados do Pará e Amapá, equivalente a 16% doterritório nacional. Desta, cerca de 596.737 km2, 7% do territóriobrasileiro, ou 59.673.700 ha de terras sob influência de marés,dos quais cerca de 8.500.000 ha representam áreas de várzeas eilhas, que se alongam desde 680 km da foz do rio Amazonas,atingindo a região do chamado Baixo Amazonas, constituindodiferentes ecossistemas, com características próprias e queparticipam de forma ativa e decisiva na economia regionaldaqueles estados (...). A extensão territorial dessas terras é bastanteexpressiva na Amazônia, estimando-se uma área de cerca de288.742 km², ou seja, em torno de 29 milhões de hectares.11

Na região onde confluem as bacias dos rios Amazonas e Pará, existem maisde 500 ilhas exploradas secularmente por populações tradicionais ribeirinhas.A documentação desses moradores é precária. Dados não oficiais indicam quecerca de 70% dos ocupantes dessas áreas não possuem qualquer documentocomprobatório de propriedade dessas áreas ocupadas. Os documentos existentes,em geral, são ilegítimos, portanto, nulos de pleno direito.12 De fato, durantetodo o processo de pesquisa não se encontrou nenhum imóvel documentadonos moldes preconizados pela legislação, a não ser a ilha de Santa Bárbara.

Apenas a União pode destinar esses imóveis, uma vez que eles são de suapropriedade. Os primeiros artigos do Decreto-Lei n° 9.760 de 5 de setembrode 1946 apresentam as definições de terrenos de marinha e os acrescidos.13

11 Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Secretaria do Patrimônio da União, Gerência Regional de Patrimônio da União noEstado do Pará, Serviço de Empreendimentos Sociais – Sesoc/PA, Áreas de Várzeas e Ilhas no estado do Pará, Belém: 2002, p. 4 e 8.12 Ibidem, p. 1613 Artigo 2° - São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra,da posição da linha da preamar média de 1831:a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se façam sentir a influência das marés;b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façam sentir a influência das marés.Artigo 3° - São terrenos acrescidos de marinha os que tiverem se formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos riose lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.Existem divergências sobre qual lei deveria ser considerada como aquela que traz a primeira referência histórica relativa aosterrenos de marinha. Alguns autores acreditam que seja a Carta Régia de 4 de outubro de 1678, Santos (1985), por exemplo,afirma ser uma Carta Régia de 21 de outubro de 1710. A discussão sobre essas datas não é meramente uma curiosidadehistórica, mas gera uma relevante problemática jurídica: qual a legitimidade dos títulos expedidos depois deste primeiro documento.A Câmara Municipal de Belém, por exemplo, entende que lhe pertencem todas as áreas localizadas na sua primeira léguapatrimonial (4.356 ha) que se estende até o bairro do Marco, por ter recebido uma Carta de Sesmaria, ainda em 10 de setembrode 1627, concedida pelo governador e Capitão-Geral no estado do Maranhão, Francisco Coelho de Carvalho. A GRPU PA-AP, aocontrário, entende que todos os terrenos de marinha, localizados na capital do estado do Pará, estão sob sua jurisdição.

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Percebe-se que não existe, porém, nenhuma definição jurídica de várzea.Um dos desafios lançados aos jus-agraristas amazônicos será, a partir dasdiferentes realidades locais, construir um conceito jurídico de várzea quepermita a elaboração de uma legislação mais pertinente à região.14

A experiência cotidiana de observação do fenômeno das marés, e osdocumentos oficiais, confirmam de maneira inquestionável que todas as ilhasdo município de Gurupá se localizam na área que está sob a jurisdição da GRPU/PA-AP e que só poderão ser regularizadas por órgão federal. Nessas áreas, oPoder Público assina um contrato de cessão de uso conforme prescreve oartigo 18 da Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998.15 Esse contrato foiinicialmente previsto no artigo 7º do Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereirode 1967, e pode ser gratuito ou oneroso, e por prazo determinado ouindeterminado16. O uso normalmente é condicionado à apresentação dolicenciamento ambiental, devidamente aprovado pelo Ibama e de acordocom o disposto no artigo 18, inciso III, do Decreto nº 3.725/01.17

As várzeas de GurupáNas áreas pesquisadas, tanto aquelas que se localizam nas ilhas menores

quanto as que ficam na ilha Grande, as terras são inundadas durante o períododiário das marés altas. Quem se aproxima da margem do rio, rumo ao interiordas ilhas, encontra inicialmente a várzea alta seguida pela várzea baixa e peloigapó.

14 Na falta de uma definição jurídica de várzea, podemos citar como a mais apropriada a de Lima et al. (2000): “São consideradas várzeasflúvio-marinhas as áreas inundáveis da Amazônia brasileira, até onde, ao longo do baixo curso dos rios e de seus afluentes, as marésinvertem a correnteza dos rios e comandam o regime da inundação das várzeas”.15 A Lei nº 9.636, de 15 de maio de 1998, dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveisde domínio da União.16 O artigo 7° do Decreto 271 determina: “É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita,por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação,cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social.§ 1° A concessão de uso poderá ser contratada por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, e seráinscrita e cancelada em livro especial.§ 2° Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos nocontrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suasrendas.§ 3° Resolve-se a concessão antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecidano contrato, ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo, neste caso, as benfeitorias de qualquer natureza.§ 4° A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima outestamentária, como os demais direitos reais sobre coisas alheias, registrando-se a transferência.”17 A Portaria nº 195, de 14 de maio de 2002, do Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão, que permitiu a cessãodas terras para a Atrisb, determina: “Artigo 3º: A cessionária deverá autorizar a população destinatária o uso do imóvel referido noart. 1º, a título gratuito, sem prejuízo da conservação dos seus recursos naturais, de acordo com o plano de manejo definido pelo órgãocompetente.§ 1º A implantação de projetos a que se refere o caput do artigo 2º, desta Portaria, deverá ser precedida do licenciamento ambiental,expedido por órgão competente na forma da legislação em vigor.§ 2º A cessão deverá ser revogada quando houver quaisquer danos ao meio ambiente, transferência inter vivos dos direitos deuso ou descumprimento do disposto no respectivo plano de manejo.”

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Normalmente, a várzea alta é inundada apenas periodicamente (sobretudonos equinócios, quando a lançante projeta as águas com maior intensidadesobre a terra). As atividades econômicas predominantes na várzea alta são aagricultura de ciclo curto e o extrativismo florestal.

A várzea baixa alaga cotidianamente pela água que transborda dos inúmerosigarapés, pois possui um nível menos elevado. A sua vocação econômica naturalé o extrativismo.

Finalmente, no interior da ilha existe o igapó – uma faixa de terra aindamais baixa que fica constantemente inundada. Em todas essas áreas (várzeas eigapós) a exploração de madeira, palmito e açaí tem um notável peso econômico.

Nessas ilhas não existe o chamado “interior nacional”, isto é, o terrenoalodial localizado após os 33 m da Linha da Preamar Média (LPM), de 1831,conforme determina o artigo 2 do Decreto-Lei n° 9.760 de 5 de setembrode 1946, citado acima. Em outras ilhas do estuário amazônico, localizadasem municípios vizinhos, a presença de áreas mais altas em seu interiordetermina uma configuração jurídica totalmente diferente, como mostra aFigura 6.

Nessa situação, o perfil das ilhas tem conotação diferente, a qual requerque o Poder Público assuma a responsabilidade de traçar a LPM, tarefa de

18 Essa figura foi elaborada por Sérgio Alberto Queiroz Costa, a partir de um trabalho inicial do Dr. José Heder Benatti (2000).19 Essa figura foi elaborada por Sérgio Alberto Queiroz Costa, a partir de um trabalho inicial do Dr. José Heder Benatti (2000).

Figura 5. O perfil das ilhas de Gurupá.Fonte: Fase Gurupá (2003).18

Rio Várzea alta Várzea baixa Igapó Várzea baixa Várzea alta

MAX.

MIN.

MAX.

MIN.

Rio Várzea alta Interior nacional Várzea alta

Figura 6. Perfil das ilhas com a presença do interior nacional.Fonte: Fase Gurupá (2003).19

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exclusiva competência do SPU (artigo 9° do Decreto-Lei n° 9.760 de 5 desetembro de 1946). Esse fato gera uma enorme dificuldade prática, poissão pouquíssimos os profissionais habilitados para traçar essa linha.20 Nassituações acima, há uma realidade fática e jurídica, diferente daquela existenteem Gurupá, por causa da presença dos terrenos de marinha. O detentor deum terreno que tenha essa configuração assinará um contrato de cessão dedireito real de uso com a União, na faixa que se estende até o limite doterreno alodial (33 m além da LPM, de 1831) e receberá um título definitivode propriedade expedido pelo órgão competente (a GRPU, no caso deterrenos localizados nas ilhas, Incra ou Iterpa se os terrenos estiveremlocalizados em áreas de terra firme sob a jurisdição de um ou outro órgão).21

Existem algumas diferenças fundamentais entre o contrato de cessão de usoa ser expedido nos terrenos de marinha, as ilhas e o título de propriedade. Amais evidente é que no primeiro caso se concede o uso e no outro se transferea propriedade. Outras diferenças são:

a) no caso da propriedade, a transferência de domínio para terceiros nãoprecisa ser autorizada, pois uma de suas características é a possibilidade dedispor do bem, a não ser naqueles títulos que apresentem uma determinadacarência temporal (no caso do Iterpa, os títulos recebidos por meio de doaçãosão intransferíveis, inter vivos, pelo prazo de três anos22 e, no caso do Incra, osadquiridos por meio de reforma agrária ou regularização de posse, não podemser alienados antes de dez anos23) ou restrições legais que impeçam a transferência(como, por exemplo, no caso do reconhecimento de domínio das comunidadesremanescentes de quilombo24);

20 Ainda no começo do primeiro governo Almir Gabriel, em 1994, o governo do estado do Pará assinou um convênio com a SPU parapermitir que o Iterpa e a GRPU/PA-AP, realizassem a regularização fundiária de algumas áreas localizadas em ilhas. O convênio,renovado mais de uma vez, não teve qualquer efeito prático, pois a SPU nunca conseguiu terminar o curso que deveria capacitar ostécnicos do órgão estadual a traçar a LPM.21 Na realidade, até a presente data, os órgãos fundiários expedem títulos sobre a totalidade do imóvel, sem levar em consideraçãoa existência dos terrenos de marinha, sobretudo quando eles não incidem em ilhas, mas nas margens dos rios.22 Em âmbito estadual, a legislação em vigor é o Decreto-Lei n° 57, de 22 de agosto de 1969, que dispõe sobre as terras públicasdo estado e dá outras providências, cujo artigo10 afirma: “Poderão ser objeto de doação, a título gratuito, as terras devolutas do estadoem que o posseiro tenha moradia habitual, ou cultivo de lavoura.§ 1° - A alienação por ato inter vivos só poderá ocorrer após o decurso do prazo de três (3) anos, contados da expedição dorespectivo título, ressalvado ao estado o direito de preferência, nos termos do Código Civil” (grifo nosso).23 O artigo 189 da Constituição Federal determina: “Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberãotítulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.” (Grifo nosso). Essa norma está repetida no art.16 da Instrução Normativa Incra n° 2 de 20 de março de 2001, que fixa normas gerais para a implementação do ProgramaNacional de Reforma Agrária, abrangendo as ações de assentamento de trabalhadores rurais e a atividade complementar deregularização fundiária.24 Assim determina o artigo 17 do Decreto n° 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação,reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombosde que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “A titulação prevista neste Decreto será reconhecidae registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o artigo 2º, caput, com obrigatóriainserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade” (grifo nosso).

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b) o contrato está vinculado a um plano de uso, elaborado pela associaçãoe aceito pela GRPU e, em alguns casos, pelo Ibama. O plano deve serexecutado para não ser rescindido. A propriedade pode ser utilizada demaneira mais livre, devendo, todavia, obedecer à legislação agrária eambiental no que diz respeito à produtividade e demais requisitos previstosno artigo 186 da Constituição Federal.

c) o contrato de uso normalmente é assinado por um prazo determinado (oda Santa Bárbara foi assinado por cinco anos, apesar de a legislação permitirque seja sem prazo), enquanto no título de propriedade é definitivo.

Os contratos serão de concessão de direito real de uso, nos terrenos demarinha, e de cessão de uso nas áreas de várzea. Será necessária ulterior pesquisadoutrinária e jurisprudencial para identificar as semelhanças e diferençasentre os pontos de semelhança e as diferenças entre as duas modalidades detransferência do uso da terra, os recursos e a sua aplicação concreta.

A inexistência do terreno alodial nas ilhas de Gurupá, onde o PoderPúblico poderia expedir títulos de propriedade, inviabiliza qualquer outraregularização fundiária que não esteja baseada na celebração de contratos decessão de uso. Essa constatação está de acordo com o artigo 20, inciso VII,da Constituição Federal, que afirma que todos esses terrenos são bens daUnião, sendo nulo, portanto, todo e qualquer registro de propriedadeparticular incidente sobre estes.25

Métodos

A premissa de que “a utilização econômica de áreas periodicamente alagáveisé, sob o ângulo jurídico, problema complexo, posto que a disciplina de apreensãoe utilização dos recursos por ela oferecidos não encontra tratamento unificadona legislação, doutrina e jurisprudência brasileira” nos levou a planejar umapesquisa que permitisse não apenas coletar informações socioeconômicas,mas também descobrir como as populações locais se relacionam com a terrae os recursos naturais.

Antes do início do trabalho de campo, analisou-se o levantamentodocumental realizado graças ao convênio assinado entre a Fase e o Iterpa, o

25 Apesar de, no município de Gurupá, a área titulada em favor dos remanescentes das comunidades de quilombo estar localizada naterra firme, sob a jurisdição do Iterpa, o reconhecimento de domínio das terras ocupadas por essas comunidades, que incidirem emilhas e terrenos de marinha, gerou uma grande discussão na hora de elaborar o decreto acima, pois, teríamos aqui dois direitosamparados constitucionalmente: o da União (artigo 20) e o dos remanescentes (artigo 68 do Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias). O Decreto, por sugestão do Ministério Público Federal, adotou a idéia em que prevalece o direito de domínio dosremanescentes: “Artigo 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidirem em terrenosde marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o Incra e a SPU tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título.”

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qual permitiu o acesso a todos os registros arquivados no Iterpa, na GRPU/PA-AP, no Cartório de Registro de Imóveis da comarca de Gurupá e nocadastro do Incra-SR 01.

Em Gurupá, uma das cidades mais antigas do Pará26, concentram-sepraticamente todos os tipos de documentos de transferência de domínio debens imóveis expedidos durante a história colonial e brasileira. O levantamentocomeçou com as cartas de sesmaria, em seguida foram verificados os registrosparoquiais, os títulos de posse, os títulos de legitimação e posse, os títuloscoloniais, os pedidos de compra, os pedidos de doação, os títulos de propriedade,os processos de usucapião e as declarações registradas na GRPU.

Para a coleta de dados socioeconômicos, realizaram-se reuniões nascomunidades, entrevistas com as comunidades e seminário de “devolução” dasinformações para as comunidades.

Reunião nas comunidades: no final de abril de 2002, o coordenador e os doisassistentes de pesquisa visitaram as seis comunidades selecionadas do municípiode Gurupá. Nessa visita, os pesquisadores apresentaram os objetivos da pesquisae destacaram a importância desse trabalho para os passos futuros doreconhecimento do direito à terra. Participaram da reunião 175 pessoas (124homens e 51 mulheres).

Entrevistas: nos meses de maio e no começo de junho de 2002, os doisauxiliares entrevistaram as 131 famílias residentes nas comunidades selecionadas.Os questionários permitiram traçar um perfil das famílias que residem naregião, abordando a estrutura fundiária27, o tipo de solo (argiloso), oabastecimento de água28 e os aspectos econômicos (produção29, comercialização,escoamento) e sociais30.

26 A presença européia data do começo do século XVII, quando se constituíram em seu território algumas fazendas holandesas,posteriormente ocupadas pelos portugueses.27 A tabulação dessas informações permite verificar alguns dados que, de maneira muito significativa, refletem a concentraçãoda propriedade da terra no Brasil: quem detém até 50 ha representa 70% do total dos ocupantes, mas detém apenas 37% daárea total, enquanto os que possuem imóveis com área acima de 50 ha, ou seja, apenas 30% dos ocupantes, detêm 64% da área.Os dados permitem outra constatação: uma parte considerável dos entrevistados (33%) não tem terra própria. Contudo, essefato é superado pela solidariedade familiar, pois os parentes cedem parte do terreno para aqueles que não possuem propriedadealguma.28 Todos utilizam a água do rio, pois não há outras formas de abastecimento, tais como poço amazônico ou artesiano.29 A pesquisa verificou a destinação das várias partes do imóvel: o quintal revelou-se como o lugar mais importante, pois é neleque se localizam as principais culturas alimentares complementares àquelas produzidas na roça. É a fonte das frutíferas e o lugaronde se criam os pequenos animais. Já a capoeira é o lugar para a extração de produtos necessários à construção das residênciase à fabricação de instrumentos de trabalho (varas, lenha, palha para a cobertura das casas). Destina-se também ao plantio deplantas frutíferas (sobretudo banana). Depois do plantio da roça, a maioria dos moradores semeia o açaí e não volta a utilizar aárea com outras culturas. A mata é o lugar onde se pratica o extrativismo, por excelência, e o lugar privilegiado onde se praticaa caça.30 Um número grande de famílias declara que participa de comunidades eclesiais e que são sócias do STR. Isso mostra o esforçoda igreja católica de estimular o engajamento social e como a luta do STR contra os antigos patrões ajudou a enraizar osentimento de unidade e a participação efetiva no órgão de representação da classe. Além disso, a participação em outrasassociações é muito forte.

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As localidades pesquisadas foram: a) Fortaleza do Jaburu: localiza-se nailha Grande de Gurupá; b) ilha das Cinzas (com uma área de 2.921 ha); c)ilha das Pracuubinhas (4.759 ha); d) ilha de Santa Bárbara (1.300 ha). Emtodos os imóveis os entrevistadores coletaram pontos com GPS onde selocalizam as casas. Ao todo foram coletados 220 pontos que, trabalhadospelo laboratório de geoprocessamento, da Fase Gurupá, permitiram elaboraros mapas georreferenciados das diferentes comunidades pesquisadas –instrumento importante para os futuros trabalhos de regularização fundiária.Todo o trabalho de campo foi documentado por registros fotográficos.

Seminário de “devolução” das informações para as comunidades e discussão dosencaminhamentos futuros: No dia 27 de agosto de 2002, na sede da Associaçãodos Trabalhadores Agroextrativistas da Ilha das Cinzas, foi apresentado para osrepresentantes das comunidades o resultado da pesquisa e discutidos os passosfuturos para possibilitar a documentação da terra. É importante destacar que apesquisa ajudou as comunidades a despertarem para a necessidade de teremsuas terras documentadas.

Resultados

Na região de Gurupá há a incidência de antigas escrituras de compra evenda e muitos títulos de posse não legitimados expedidos no final do séculoXIX e no começo do século XX, pelo governo do Estado do Pará. Váriosimóveis estão matriculados como “propriedades”, apesar de muitos dessesregistros não terem qualquer origem em títulos válidos. Comprovou-se aexistência de 102 registros cartoriais incidentes na região de Itatupã e nas ilhasadjacentes, na sua maioria de origem duvidosa. Apesar de sua presumidalegalidade, por estarem registrados nos livros 2, 2A, 2B e 2C do Cartório deRegistros de Imóveis, não existe, em sua origem, um instrumento hábil paraque aqueles imóveis sejam considerados como legitimamente destacados doPatrimônio Público Federal e, portanto, terão que ser cancelados. A existênciade títulos expedidos pelo governo do estado do Pará, nas áreas sob jurisdiçãofederal, procura se embasar no art. 64 da Constituição Federal de 1891, queconsidera terrenos de marinha como terras devolutas. Entendemos, porém,que os terrenos de marinha não se incluem entre as terras devolutas, poisenquanto estas são terras inaproveitadas, ainda sem uso, aqueles têm sidoconstantemente utilizados com objetivo específico e determinado, e tambémporque a Constituição Federal de 1988 disciplina essas realidades em doisincisos distintos do art. 20 (inciso II sobre as terras devolutas e o VII sobre

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os terrenos de marinha e seus acrescidos). Além disso, o Decreto-Lei n.°9.760, de 5 de setembro de 1946, já tinha adotado a mesma sistemática(os terrenos de marinha estão incluídos na letra “a” do art. 1°, enquanto asterras devolutas na letra “e”). Os terrenos de marinha, bem como os demaisbens públicos, são inusucapíveis31, não possuindo qualquer amparo legalalgumas sentenças de usucapião prolatadas por juizes estaduais.

A pesquisa mostrou que os principais produtos são: açaí32, palmito33,madeira34 e agricultura35. A pesca é uma das atividades mais importantes, sendoexercida por cerca de 70% dos moradores36. A criação de animais e a caçarevelam-se importantes atividades de complementação alimentar.

Graças ao apoio do STR e da Fase, o trabalho continuou depois doencerramento da pesquisa, resultando na apresentação do pedido deregularização das terras para o Incra e a GRPU (resultando no processo n°05010.001608/2002-26). Isso permitiu a expedição da Portaria n° 44, de 19de março de 2004, do Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, quetransferiu as terras para o Incra para que o mesmo criasse um Projeto deAssentamento Extrativista. Outra comunidade visitada durante a pesquisa (SãoJoão do Jaburu) liderou o trabalho que levou à solicitação da criação de umaReserva de Desenvolvimento Sustentável, para o Ibama, pedido protocoladoem fevereiro de 2004.

Uso dos recursos naturais determina o acesso à terraA mudança da base econômica e, conseqüentemente, as novas relações de

trabalho em uma região, influenciam a negociação de novos limites

31 Ver Súmula n.° 340 do STF: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podemser adquiridos por usucapião”. Artigo 200 do Decreto-Lei n.° 9.760/46: “Os bens imóveis da União, seja qual for sua natureza, não sãosujeitos à usucapião”; o artigo 5° do Decreto n.° 87.040, de 17 de março de 1982: “São insuscetíveis de usucapião os terrenos demarinha e seus acrescidos, essenciais à execução da segurança nacional, assim como quaisquer outras terras públicas não devolutas”.32 A preferência p elo açaí é bem resumida nessa afirmação de Manoel Araújo Barros, da ilha das Praccubinhas: “O açaí é alimento,vende-se o fruto e o palmito”.33 A extração é normalmente realizada utilizando mão-de-obra familiar e a intensidade da exploração varia muito nas diferentesfamílias. Várias pessoas vêem essa atividade como uma fonte complementar de renda, afirmando: “Tira somente na precisão”;“Só tira quando precisa de dinheiro extra”; ou “Só quando está aperreado”. Todos aqueles que exploram o palmito do açaíafirmam estar fazendo manejo.34 Representa uma das mais importantes atividades econômicas da região. As espécies mais procuradas são: pau- mulato,andiroba e virola. O beneficiamento se reduz a serrar em tábua (muitas vezes trabalhando à meia, com o dono da serraria),pernamanca, ripa e ripão.35 A tradicional sabedoria desses produtores rurais ensinou-os que a melhor maneira de trabalhar é consorciar as diferentesculturas, cuja variedade é muito grande: existem pelo menos 41 culturas diferentes plantadas na roça ou no quintal. Plantam-semilho, feijão, banana, cana, melancia, batata, maxixe e abacaxi. Na maioria dos casos, a produção se destina ao consumohumano e ao animal. Muitos reconhecem que o prazo ideal do pousio seria de pelo menos dez anos, mas uma parte considerávelnão pode mais esperar tanto tempo devido ao pequeno tamanho do lote, por isso volta a trabalhar na mesma área, quatro oucinco anos depois.36 Considerando a necessidade de se regulamentar essa exploração e diante da ausência do Poder Público, os pescadoresartesanais da região, com a ajuda da Fase, estão se organizando em associações e já elaboraram “acordos de pesca”, queganham sempre mais eficácia, graças à pressão dos pescadores sobre as geleiras.

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territoriais. Essa constatação é de notável relevância jurídica, pois permiteafirmar que o uso dos recursos determina a identificação dos limites do imóvel decada família. Em Gurupá, novas disputas estão surgindo, não mais baseadasnas antigas relações de aviamento, decorrentes da época da borracha, masno controle e na exploração dos novos recursos, tais como madeira, açaí epalmito.

Na região estudada, a extração de látex para a fabricação de borracha foi aprincipal fonte de renda durante várias décadas no final do século XIX e nocomeço do século XX. Ela foi considerada como uma das mais importantesatividades econômicas do passado, por 82% das 90 famílias entrevistadas emGurupá. Algumas comunidades da região (por exemplo, Fortaleza e São Joãodo Jaburu) nasceram graças à chegada de migrantes nordestinos, expulsos pelaseca e atraídos pela riqueza gerada a partir da extração de látex.

O sistema econômico e social da região, fruto daquele período histórico,permaneceu ancorado ao aviamento, durante décadas. Nos relatos de pessoasmais idosas, ainda é muito forte a lembrança da luta contra os “antigos patrõesque se diziam donos da região”. A conquista da autonomia econômica e socialcomeçou na década de 1970 e foi alcançada graças à ajuda do STR. Hoje,muitos dos moradores afirmam ter nascido após a época da extração deseringueiras; os mais velhos lembram como há quinze ou vinte anos “cortavam”seringa junto a seus pais. A maioria tinha somente duas ou três estradas queforam abandonadas, pois a renda da borracha não compensava. Algunschegaram a descrever a vida dura dos seringueiros, manifestando não ternenhuma saudade daquele tipo de trabalho37. A extração de látex para afabricação da borracha não apenas marcou a região econômica e socialmente,mas determinou durante décadas os limites das terras de cada colocação.

Documentar a terra: um desafio para todos

A segurança da posse de terra é o principal motivo pelo qual os moradoresde Gurupá pleiteiam ao poder público a regularização fundiária. Emboranenhum dos imóveis pesquisados tenha sido cadastrado na GRPU, ou

37 José Souza de Almeida, morador de Fortaleza do Jaburu, relatou que: “saía de casa às 6 horas, terminava de riscar às 10:00horas, parava para quebrar o jejum e iniciava a coleta que terminava às 13:30 horas”. Já Raimundo Nonato Silva Rocha, da ilhadas Cinzas, afirma: “quando cortava, saía de casa às 2 horas da madrugada com o pai, com a poronga na cabeça, cortava coma faca de seringa, que terminava às 9:00 horas da manhã. Ao término do corte, quando tinha, merendava e começava a coleta,que terminava às 14 horas. Colocava o leite na lata e derramava um litro de harmônico dentro da lata para não qualhar o látex”.

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detenha o protocolo no Iterpa, isso não significa que os moradores nãotenham procurado documentar a terra. De fato, das 131 famíliasentrevistadas, 33 assinaram a declaração de posse do STR, enquanto 25têm o Cadastro do Incra.

Análise dos processos que tramitaram na GRPU do Pará e do AmapáO Processo n° 10280.011471/99-48 relativo à ilha de Santa Bárbara

(Gurupá) mostra as dificuldades da atual estrutura administrativa para responderàs necessidades das comunidades amazônicas. Esse processo demorou trinta ecinco meses para ser concluído. A principal razão para a demora foi a tramitaçãoburocrática de uma instância para outra. Somente em 28 de agosto de 2000,isto é, mais de um ano depois do começo da tramitação do processo, a Chefedo Sesoc da GRPU/PA-AP informou que: “A documentação constante na listade verificação encontrava-se devidamente conferida e atendia às exigênciasformais, técnicas e legais para a concessão do pedido.” (p. 195). Ela entãoremeteu o processo para a SPU, em Brasília. Vale ressaltar que se a associaçãotivesse sido informada desde o início sobre a relação dos documentos necessários,o processo teria sido mais ágil. Apesar de o parecer da Consultoria Jurídica doMinistério do Orçamento, Planejamento e Gestão ter recusado a utilização daexpressão “regularização da situação fundiária” e sugerido sua substituição pelaexpressão “preservação dos modos de vida econômico e cultural, vinculada aum plano de manejo dos recursos naturais”38, defende-se que se trata de umaforma de regularização fundiária especial para preservar uma dinâmicaeconômica e cultural, própria das populações tradicionais da Amazônia. Ocaráter especial desses processos é hoje reconhecido pelo próprio ministérioquando afirma que: “Os anseios das comunidades secularmente instaladas nasilhas de várzea, não se limitam ao reconhecimento da posse, ou seja, ascomunidades almejam uma assistência oficial completa, com direito a créditos,assistência técnica e social para si e suas famílias”.39

Uma situação ainda pior se deu com os processos das comunidades de SãoCíriaco (Processo n° 10280.000303/99-81) e Igarapé do Costa (Processo n°10280.000304/99-44), ambos de Santarém, Pará, que, apesar de teremcomeçado a tramitar em 26 de janeiro de 1999, somente no início de 2004terminaram seu iter processual.

38 Ver Processo n° 10280.011471/99-48 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, p. 217-221.39 Ver Processo n° 05010.000973/2002-13 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, p. 69.

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Abrem-se novas perspectivas: trabalho em conjunto do SPU-IncraEm fevereiro de 2002, o STR de Gurupá apresentou um pedido para que as

ilhas daquele município fossem administradas pelo Incra. A ProcuradoriaRegional do órgão, no Pará, determinou o arquivamento do pedido alegandoque o mesmo carecia de base legal. Em 6 de novembro de 2002, o Dr. SebastiãoAzevedo, Presidente do Incra, solicitou ao SPU a transferência da administraçãode várias ilhas localizadas nos Estados da Bahia e do Pará, para o Incra.40

Em 19 de dezembro de 2002, o Ministério do Desenvolvimento Agrário eo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com a intervenção doIncra e da SPU, assinaram um Termo de Cooperação Técnica para aimplementação de ações conjuntas no âmbito de terras rurais, de domínio daUnião.

O trabalho em conjunto com o Incra abre novas possibilidades de ação peladisponibilidade de recursos humanos, financeiros, maior capilaridade do órgão(o Incra tem unidades avançadas em várias cidades do interior) e maior parquetécnico disponível (computadores, mapas, imagens de satélite, ploter etc.).Com base nessa nova realidade, os movimentos sociais do Pará apresentaramoutros pedidos, sugerindo a realização de um trabalho em conjunto do SPU-Incra. Esse trabalho deu origem aos processos do Complexo Campompema(município de Abaetetuba), Urutaí e ilha das Cinzas (Gurupá).

Em 19 de março de 2004, a Portaria n° 44 do Ministério do Planejamento,Orçamento e Gestão autorizou a cessão gratuita da ilha das Cinzas, ao Incra,para que ela fosse destinada: “à regularização e à implantação de programas dereforma agrária, por meio de Projetos de Assentamentos Extrativistas” (artigo2°)41. No mesmo dia, foi também assinada a Portaria n° 46 cedendogratuitamente uma área de várzea, de 888,1799 ha, para a Associação dosComunitários de Piracõeira Santarém.

Apesar de a Cláusula Primeira do Termo afirmar que: “O presente Termo deCooperação Técnica tem por objeto a implementação de ações conjuntas visandoà utilização, destinação e transferência de terras rurais de domínio da União aoIncra, para fins de reforma agrária e regularização fundiária”, de fato oMinistério do Planejamento, Orçamento e Gestão entende que: “Atransferência do domínio pleno dessas terras, ao Incra, não é possível por

40 É interessante observar como a base legal do pedido do presidente do Incra foi a mesma utilizada no pedido do STR de Gurupá,isto é, os artigos 9º, inciso I, e 10, § 3°, da Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, e o artigo 23 da Lei n° 9.636, de 15 de maio de 1998.41 Apesar de a Portaria se referir a Projetos de Assentamentos Extrativistas, na realidade atualmente esta modalidade não existe mais,tendo sido substituída pelos Projetos de Assentamentos Extrativistas, conforme determina a Portaria do Incra n° 268, de 23 de outubrode 1986.

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tratar-se de terreno de marinha e acrescido, cabendo, no entanto, a cessãode uso que transfere somente a posse.”42

Sugestões para a regularização fundiária na várzea

Elaboração da legislação relativa à concessão de uso para simplificar atramitação dos processos

A pesquisa e a análise da legislação em vigor, e dos processos administrativosde cessão, mostram alguns obstáculos:

a) Inexistência de um iter administrativo claro. Hoje parece que os diferentesprocessos possuem tramitações diferentes. Portanto, há a necessidade desimplificar a tramitação;

b) Insuficiência de recursos humanos e financeiros da GRPU/PA-AP. Todosos levantamentos e estudos foram realizados por ONGs (como a Fase Gurupá,no que se refere à ilha de Santa Bárbara) ou universidade (Ufra), em Santarém,e Incra em Abaetetuba. Poderiam ser formalizados convênios com essas ONGspara a realização desses levantamentos.

Propostas relativas à regularização fundiáriaA simplificação dos processos administrativos poderá facilitar a documentação

da terra, por parte das famílias ribeirinhas, até agora excluídas da garantiajurídica de ter a ocupação tradicional e o uso dos recursos naturais reconhecidos.Os passos necessários para a regularização fundiária das famílias das ilhasdeveriam seguir o exemplo da ilha de Santa Bárbara e da ilha das Cinzas, comos seguintes aperfeiçoamentos:

a) O Poder Público, em conjunto com os representantes dos trabalhadoresrurais (Federação dos Trabalhadores na Agricultura e Sindicatos dosTrabalhadores Rurais), deverá discutir os processos de regularização fundiária,em seminários regionais e locais, que possibilitarão às famílias envolvidas efetivaparticipação em todas as fases posteriores do processo.

b) As discussões deverão ser orientadas para a constituição de associações demoradores, que irão pleitear do Governo federal a celebração de contratos deuso das terras tradicionalmente ocupadas pelos seus associados.

c) Em cada localidade a ser regularizada será realizado um diagnósticosocioeconômico simplificado e um seminário para a discussão do plano de uso

42 Ver Processo n° 05010.000973/2002-13 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, p. 69.

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– instrumento que normatizará as relações entre os moradores e o uso dosrecursos naturais. Esse plano de uso será de responsabilidade da associação,que contará com a assessoria de entidades de apoio, ou dos próprios funcionáriosdo Poder Público. Além disso, também seria viável o treinamento de agentesambientais comunitários para acompanhar a implantação desses planos.

d) O pedido de abertura do processo será protocolado num escritório daadministração pública municipal (Secretaria Municipal de Agricultura), queassumirá a responsabilidade de remetê-lo à unidade avançada do Incra maispróxima. O pedido poderá vir acompanhado de um mapa georreferenciado daárea pretendida ou, caso isso não seja possível, de um croqui que permita a suaidentificação sumária.

e) O Incra realizará a vistoria preliminar na qual serão confirmadas asinformações que constam no levantamento socioeconômico, no memorialdescritivo da área, com o auxílio de um GPS. Na mesma ocasião, serão discutidoscom a comunidade os limites de respeito da área a ser documentada em favorde cada família.

f ) A procuradoria do Incra procederá ao levantamento cartorial identificandoos eventuais registros imobiliários existentes e, em conjunto com a Advocacia-Geral da União, apresentará ao Corregedor-Geral de Justiça os requerimentosde cancelamento desses registros, conforme dispõem a Lei nº 6.739, de 5 dedezembro de 1979, e a Lei nº 10.267, de 28 de agosto de 2001.43 Sugere-se aadoção desse instrumento por acreditar-se que seja muito mais rápido e eficazdo que as ações de Nulidade e Cancelamento da Matrícula, Transcrições eAverbações no Registro de Imóveis, que têm rito ordinário.

g) A celebração do contrato dar-se-á por decisão do Comitê Regional doIncra44, que criará um Projeto de Assentamento Agroextrativista, que possibiliteo acesso ao crédito e à infra-estrutura (a garantia da terra, por meio de umdocumento, por si só não é suficiente para garantir o desenvolvimentosustentável). O contrato deverá ser gratuito e com o prazo de trinta anos.

h) Celebrado o Contrato, a associação repassará a cada família umaautorização de uso intransferível, inter vivos, sem o prévio consentimento daassociação. Na autorização, além do memorial descritivo e do mapageorreferenciado do imóvel, no qual se evidenciam os limites de respeito,serão resumidos os principais direitos e as obrigações dos moradores.

43 A Lei n° 10.267, de 28 de agosto de 2001, foi recentemente regulamentada pelo Decreto nº 4.449, de 30 de outubro de 2002.44 O Comitê Regional é hoje o órgão competente para deliberar sobre a indicação de áreas a serem desapropriadas, bem comosobre a criação das diferentes formas de Projetos de Assentamento (PAS, PAEs, PDS).

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i) Onde as comunidades escolherem este caminho poderão ser criadasUnidades de Conservação de uso direto, previstas no Sistema Nacional deUnidades de Conservação (Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000), tais comoResex e RDS.

Conclusão

Três experiências realizadas em Gurupá apontam caminhos para garantir asegurança jurídica no que se refere ao uso da terra e aos demais recursos naturaisna Amazônia. São elas: (i) a assinatura de um contrato de cessão de uso entrea União e uma associação de trabalhadores rurais, em Santa Bárbara; (ii) aexpedição, por parte do governo do Estado do Pará, de dois títulos dereconhecimento de domínio em favor de comunidades de remanescentes dequilombo; e (iii) a criação do primeiro Projeto de Assentamento AgroextrativistaEstadual (Camutá do Pucuruí). Este estudo analisou essas experiências a fimde apontar caminhos a serem adotados nos demais municípios localizados naregião das ilhas. Nessa região, há mais de 500 ilhas exploradas secularmentepor populações tradicionais ribeirinhas, contudo, 70% dos seus ocupantes nãopossuem qualquer documento comprobatório de propriedade dessas áreas.

Nas áreas pesquisadas, as terras são inundadas durante o período diário dasmarés altas. Perto da margem do rio, rumo ao interior das ilhas, encontra-seinicialmente a várzea alta, seguida pela várzea baixa e pelo igapó. A inexistênciado terreno alodial nas ilhas de Gurupá, onde o Poder Público poderia expedirtítulos de propriedade, inviabiliza qualquer outra regularização fundiária quenão esteja baseada na celebração de contratos de cessão de uso, que exigem aapresentação do licenciamento ambiental devidamente aprovado pelo Ibama.

A simplificação dos processos administrativos poderá facilitar a documentaçãoda terra por parte das famílias ribeirinhas, até agora excluídas da garantia jurídicade ter a ocupação tradicional e o uso dos recursos naturais reconhecidos. Entreos passos necessários para a regularização fundiária das famílias da região dasilhas estão: constituição de associações de moradores para pleitear do Governofederal a celebração de contratos de uso das terras; diagnóstico socioeconômicosimplificado e um seminário para a discussão do plano de uso; protocolo dopedido de abertura do processo num escritório da administração públicamunicipal (Secretaria Municipal de Agricultura); criação de um Projeto deAssentamento Agroextrativista, que possibilite o acesso ao crédito e à infra-estrutura; e repasse da autorização de uso intransferível, inter vivos, paracada família associada.

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Entretanto, a regularização fundiária de ilhas deixa alguns pontos aindaabertos à discussão:

a) contrato gratuito ou oneroso: inicialmente, a proposta da GRPU, contidano processo, era a cobrança de uma taxa de utilização, mas prevaleceu a cessãogratuita45;

b) prazo do contrato: a elevação do prazo de cinco anos (como consta noscontratos de Santa Bárbara e Santarém) encontra sua justificativa no fato deque muitas das comunidades ribeirinhas exploram madeira. Essa atividade sópoderá ser permitida com a aprovação do correspondente Plano de ManejoFlorestal Simplificado. Para uma exploração sustentável desse recurso, o Ibamasugere ciclos de corte de trinta anos.

c) estabelecimento de procedimentos mais ágeis: é necessário encontrar soluçõesque reduzam os tempos gastos na tramitação dos processos atuais.

d) estabelecimento de áreas prioritárias: a procura de caminhos mais fáceispara a concessão das terras poderá ensejar um aumento considerável dedemandas de regularização, portanto será necessário elaborar uma lista deprioridades regionais46.

Os trabalhos desenvolvidos pelos movimentos sociais e o esforço de técnicosda GRPU/PA-AP e do Incra mostraram a solução para o problema. Portanto,esse é o momento no qual o Poder Público pode garantir a segurança jurídicaàs populações das ilhas e criar as bases para o seu desenvolvimento sustentável.

Referências BibliográficasGASPARINI, D. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2000. 699 p.

LIMA, R.R.; TOURINHO, R.R.; MALHEIROS M., CHAVES, J.P. Várzeasflúvio-marinhas da Amazônia brasileira – características e possibilidadesagropecuárias. Belém: FCAP. Serviço de Documentação e Informação, 2000. 35 p.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Secretaria doPatrimônio da União, Gerência Regional de Patrimônio da União do Estado doPARÁ. Serviço de Empreendimentos Sociais do Pará. Áreas de várzeas e ilhas noestado do Pará. Belém, p. 4-8, 2002.

45 No Processo n° 05010.000973/2002-13 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (p. 69) afirma-se: “Considerandoo atual estágio em que se encontram aquelas famílias, ou seja, em completo abandono por parte do Poder Público, vivendo numverdadeiro estado de miséria e, levando-se em consideração que sua principal atividade econômica resume-se no extrativismodo açaí, essa Gerência de Área de Empreendimentos Sociais, sob o aspecto da conveniência e da oportunidade, nada tem a oporquanto à cessão de uso gratuito ...”.46 Em 17 de fevereiro de 2004, a Fetagri-Pa e a Fase apresentaram à SPU à Presidência do Incra, à GRPU/PA-AP e à SuperintendênciaRegional do Incra-Pará (SR 01) uma listagem com 80 ilhas localizadas nos seguintes municípios: Abaeteuba, Afuá, Ananindeua,Bagre, Barcarena, Belém, Breves, Gurupá, Ponta de Pedras, Portel e São Sebastião da Boa Vista.

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SANTOS, R.S. Terras de marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985, 5 p.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. Secretariado Patrimônio da União, Gerência Regional de Patrimônio da União do Estadodo PARÁ. Serviço de Empreendimentos Sociais do Pará. Áreas de várzeas eilhas no estado do Pará. Belém, p. 4-8, 2002.

SANTOS, R.S. Terras de marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985, 5 p.

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ASPECTOS JURÍDICOS E FUNDIÁRIOSDA VÁRZEA: UMA PROPOSTA DEREGULARIZAÇÃO E GESTÃO DOS

RECURSOS NATURAIS

José Heder Benatti

Capítulo IV

Introdução

Este trabalho foi elaborado a partir da análise dos três estudosjurídicos anteriormente apresentados e tem como escopo fornecersubsídios à formulação de políticas públicas para a regularizaçãofundiária e gestão dos recursos naturais na várzea. O objetivo doestudo-síntese é estabelecer uma base técnica e científica para aformulação de políticas públicas, no âmbito da conservação egerenciamento dos recursos naturais da várzea, na região central dabacia amazônica.

Buscou-se analisar a dominialidade, o conceito e a natureza jurídicada várzea, os diferentes padrões comunitários de uso da terra e omanejo dos recursos naturais. Essa análise é fundamental para aelaboração de propostas de regularização fundiária e a gestão dosrecursos naturais renováveis.

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A várzea amazônica

Os rios da Amazônia estão sujeitos a um período de enchente, momento noqual a água transborda dos seus leitos e invade as áreas marginais, inundando-as em diferentes graus de intensidade. As áreas marginais inundadasperiodicamente pelas águas dos rios, lagos, igarapés, paranás e furos, são osterrenos de várzea.

A várzea é considerada uma planície de inundação, formada por uma faixade largura, variável ao longo do rio Amazonas, podendo alcançar 16 km delargura, em Itacoatiara, 50 km em Parintins, 33 km em Óbidos e 24 km emSantarém (Moreira, 1977). Topograficamente, a várzea pode ser dividida embaixa e em alta. Na primeira, as terras são inundadas durante parte do ano,com vegetação ora campestre ora florestal. A segunda é uma área da planíciemais alta, alagada no período final das enchentes, formada por vegetação deporte arbóreo.

A várzea é um fenômeno natural que sofre influência de fatores hidrográficos,climáticos, edáficos e florísticos. Devido a esses fatores e à variável de tempo depermanência da inundação, em cada área, as diferentes regiões da Amazôniaapresentam características ecológicas e de uso dos recursos naturais, distintas.

Nem toda a área marginal das correntes de água é considerada várzea, poistambém há terra firme não inundada pelas cheias do rio Amazonas. De modogeral, os terrenos da terra firme estão dispostos a partir da várzea, sucedendo asáreas de baixos níveis.

Não se pode confundir a classificação de várzea baixa e alta com o fenômenode enchentes (pequena, média e grande). Nas enchentes pequenas, a água ficabem abaixo da várzea alta, ou seja, tanto a várzea alta quanto parte da várzeabaixa permanecem livres da inundação. Contudo, nas enchentes médias, aságuas chegam a transpor a várzea alta, comunicando-se diretamente com osrios, lagos, paranás e furos. Toda a várzea baixa fica submersa e somente asvárzeas altas, de cota bem elevada, não são inundadas. É nas enchentes grandesque ocorre a inundação de toda a várzea, podendo tangenciar as áreas de terrafirme.

O objeto deste estudo é o terreno inundado pela enchente média, ou seja, aárea das várzeas baixa e alta, inundada todo ano, as quais denominaremosgenericamente “várzea”. É para essa faixa de terreno que buscaremos soluçõesjurídicas, a fim de garantir uma regularização fundiária.

Nesta pesquisa não foram analisadas as áreas compreendidas na várzealitorânea – espaço geográfico formado no baixo curso dos rios que deságuam

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diretamente no Oceano Atlântico; área sobre a qual a maré exerce influênciatanto na enchente quanto na vazante. Estudaram-se as comunidades domunicípio de Gurupá, na várzea do estuário do rio Amazonas (localizada notrecho do rio a jusante da confluência com o rio Xingu) e as comunidades dosmunicípios de Santarém (PA), Parintins (AM) e Tefé (AM), situadas na várzeado Amazonas (localizada no trecho do rio Amazonas que está a montante dafoz do rio Xingu).

A várzea possui duas fases distintas, porém interligadas e dependentes umada outra, a saber: os períodos de vazante (época em que o rio apresenta omenor volume de águas) e de enchente (quando as águas, ao transbordar,provocam a inundação das terras marginais). Portanto, trata-se de um sistemahíbrido (Surgik, 2003). É importante destacar que as propostas para regularizara situação fundiária e de manejo de recursos naturais na várzea devem consideraresses dois ciclos.

A várzea é configurada pela inter-relação de diversos elementos geográficose recursos naturais, uma vez que nela estão localizados os rios, os lagos, osparanás, os furos, os igarapés, a restinga, o campo inundável e a vegetaçãoflorestal. A Figura 7 mostra os elementos que compõem a drenagem, o relevoe a vegetação da várzea, tanto no período da vazante quanto no da enchente.Ressalta-se o papel fundamental dos acidentes geográficos no processo detransportar os sedimentos e na distribuição da diversidade ecológica.

Embora a várzea seja um ecossistema complexo, o Direito considera apenasas conseqüências ambientais e sociais do alagamento temporário das áreas devárzea. Sob o ponto de vista da regularização fundiária, o que importa é a

Figura 7. Elementos que compõem a drenagem, o relevo e a vegetação davárzea.

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definição da dominialidade do terreno sobre o qual incide o alagamento, ouseja, das áreas que ficam submersas em algum momento do ano (a restinga, asmargens e o leito do lago e dos furos temporários e a vegetação florestal).Segundo a lei, o domínio das margens e do leito do rio principal, do igarapé,do paraná, do lago e dos furos permanentes, é público porque a água éconsiderada um bem público. Quanto à análise dos fatores de proteção e usodos recursos naturais (água, solo, fauna e flora), é importante definir adominialidade (se é pública ou privada) e a forma de acesso ao recurso e a suautilização.

Definição da natureza jurídica e da dominialidade davárzea

A discussão sobre a dominialidade da várzea (se é pública ou privada) éimportante para o manejo dos recursos naturais. Nessa discussão é essencialdistinguir o domínio e o uso dos recursos naturais, pois, no caso da várzea, épossível que a propriedade seja pública, mas o uso dos seus recursos, privado.Portanto, trata-se de duas perspectivas jurídicas distintas, mas que podem serrealizadas simultaneamente, para resolver a questão fundiária, e sobre a utilizaçãodos bens ambientais existentes na várzea.

Esta seção aborda a questão sobre a definição jurídica da várzea. Há duaspossibilidades para essa questão: saber se a legislação brasileira define várzeaou se esse fenômeno natural enquadra-se em um conceito jurídico aberto.

Para Girolamo (2003) e Surgik (2003), a legislação não apresenta nenhumconceito de várzea. De fato, não encontramos nenhuma definição jurídica nalegislação brasileira. Vieira (1992, 1999) afirma que a várzea possui a mesmanatureza jurídica do álveo. Esse autor, fundamentado em Junk, descreve que avárzea é composta por:

“sistemas de margens ou protuberâncias de terrenos, queinteragem permanentemente com lagos, rios, canais e águasinteriores, nos quais a massa líquida que as recobre, durante partedo ano, permanece retida por ilhas e diques naturalmenteformados, ou é simplesmente represada e mantida nos terrenosmarginais, pelas próprias águas do leito natural, durante asenchentes, assim, ecossistemas aluviais de extraordináriacomplexidade e riqueza biológica. As águas que se elevam duranteo período das enchentes retornam ao seu leito natural, quando o

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nível do rio diminui, descobrindo assim os terrenos de várzea(Junk, 1984, apud Vieira, 1992).”

O álveo é definido no artigo 9º do Código de Águas (Decreto nº 2.4643,de 10 de julho de 1934) como sendo “a superfície que as águas cobrem semtransbordar para o solo natural ordinariamente enxuto”, ou seja, álveo é aextensão superficial que as águas cobrem comumente47. Vieira (1992) tambémafirma que “as várzeas se equivalem ao denominado leito maior sazonal...”.

A Resolução Conama n° 004, de 18 de setembro de 1987, conceitua leitomaior sazonal como “a calha alargada ou maior de um rio ocupada nos períodosanuais de cheia” (artigo 2º, letra c).48

Assim, a várzea, segundo a sua natureza jurídica, é a área que incide noterreno da calha alargada ou maior de um rio. Contudo, sob a óptica daregularização fundiária e do manejo, a várzea deve ser analisada a partir de doiselementos jurídicos, o recurso hídrico e o leito maior do rio. A Figura 8 ilustraa nossa concepção de várzea.

Figura 8. Elementos que compõem o terreno da várzea sob a ópticajurídica.

47 Leito, álveo ou canal do rio é o conduto das águas, o lugar por onde elas correm entre duas margens. Logo, as margens, porterem uma superfície mais elevada, representam a porção do leito que contém as águas (Mendonça, 1909).

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A partir da Constituição de 1988, a água passou a ser um bem público.A Lei nº 9.433/97 institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e oSistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Essa lei afirmaque a água é um bem de domínio público49, considerado um recurso naturallimitado e em situação de escassez; o seu uso prioritário é o consumo humanoe a dessedentação de animais.

Devido à determinação constitucional, a dominialidade repercute sobre odomínio da várzea. De acordo com a Carta Magna, “os lagos, rios e quaisquercorrentes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de umestado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a territórioestrangeiro ou dele provenham” e os “potenciais de energia hidráulica” (artigo20, incisos III e VIII) são bens da União. Já os bens de propriedade doEstado são “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e emdepósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras daUnião (artigo 26, inciso I).”

Nessa linha, Ribeiro (2003) afirma que “pela nova ordem constitucional, aságuas serão sempre públicas e isso vem ratificado, expressamente no artigo1°, inciso I, da Lei nº 9.433, ao preceituar que a água é um bem de domíniopúblico. Já não há, portanto, águas particulares” (grifo do autor).50

Como a água é um bem de domínio público, o terreno que a suporta, oálveo e o leito maior sazonal também o são. Logo, as águas e o respectivo soloque elas ocupam (permanente ou sazonalmente) pertencem aos estados quandoas águas “em suas diversas maneiras de manifestações, desde que não seencontrem em terrenos de propriedade da União, não banham mais de umestado (CF/88, artigo 20, inciso II), ou, quando em depósito, não decorramde obras realizadas pela União” (Price Waterhouse, 1989, apud Ribeiro,2003).

Portanto, a dominialidade da várzea é pública, podendo ser da União ou

48 Alguns juristas afirmam que a Resolução Conama nº 004/85 foi revogada, pois a Lei nº 9985, de 18 de junho de 2000 (Lei doSistema de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC), revogou o artigo 18 da Lei nº 6938/81. Os defensores dessa opiniãoentendem que com a revogação do citado artigo 18, a Resolução Conama nº 4/85 também estaria revogada. Defendemos a tese contráriade que a Resolução Conama nº 4/85 não seguiu o mesmo destino do artigo 18 da Lei nº 6.938/81 e continua em pleno vigor. A nossacompreensão é de que a Resolução Conama não regulamenta o artigo 18 da Lei nº 6.938/81, portanto, não se tornou sem efeito. Maioresdetalhes sobre a discussão, ver Mercadante et al. (2001).49 A expressão domínio público é empregada no sentido de designar os bens afetados a um fim público, os quais compreendemos de uso comum e os de uso especial. Como lembra Di Pietro (2001): “embora a classificação adotada pelo artigo 98 do Código Civilabranja três modalidades de bens, quanto ao regime jurídico existem apenas duas”, ou seja, os bens do domínio público do estado eos bens do domínio privado do estado (os bens dominicais), sendo estes parcialmente públicos e parcialmente privados.50 O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.230 afirma que “A propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demaisrecursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais”.Apesar de não constar no rol do caput do artigo citado, a Constituição Federal e a lei especial (Lei nº 9.433/97) excluiu a água dadominialidade privada.

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dos estados, dependendo da propriedade das águas. No caso de ocorrerconfluência de duas ou mais águas de dominialidades distintas, em umamesma área, terá a preferência a dominialidade da corrente d’água maisvolumosa.

A dominialidade das ilhas e das terras de marinhaA partir da Constituição Federal de 1988, “as ilhas fluviais e lacustres nas

zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e ascosteiras, excluídas destas as áreas referidas no artigo 26, inciso II”51 (artigo20, inciso IV da Constituição Federal), são bens da União. As ilhas fluviaise lacustres não pertencentes à União são bens dos estados (artigo 26, incisoIII da Constituição Federal). Logo, as ilhas, cuja dominialidade não foitransferida ao patrimônio privado, pertencem ao Poder Público, seja elefederal ou estadual.

As ilhas existentes na várzea até o dia 5 de outubro de 1988 (data dapromulgação da nossa Magna Carta) que não foram concedidas ao domínioprivado passaram a integrar o patrimônio público.

Em relação aos terrenos de marinha, eles sempre foram parte integrante dapropriedade do estado, desde o Aviso de 27 de abril de 1826. Terrenos demarinha “são todos os que banhados pelas águas do mar, ou dos rios navegáveis,vão até a distância de 15 braças craveiras (33 m) para a parte da terra, contadasdesde o ponto a que chega a preamar média [de 1831]” (Octavio, 1924)52. AConstituição de 1988 ratifica a dominialidade pública federal em seu artigo20, inciso VII.

O terreno de marinha na região amazônica não é um elemento complicadorda questão fundiária, pelo menos sob o aspecto de sua dominialidade, poistambém é um bem público. A questão polêmica é definir se a faixa de terra de33 m incide ou não na área de várzea. A nosso ver, o terreno de marinha nãocoincide com o terreno de várzea por dois motivos.

Primeiro, não se pode afirmar que o terreno de marinha incide na área doálveo ou do leito maior do rio, lago, igarapé, paraná ou furo. A faixa de terra

51 Afirma o artigo 26, II da Constituição Federal, que entre os bens dos estados estão incluídas: “as áreas, nas ilhas oceânicas ecosteiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, município ou terceiros.”52 O próprio autor explica o que significa a expressão navegável: “deve ser entendida em sua acepção mais lata como talconsederando-se aquelles rios e lagos que permittam a flutuação por jangada, mesmo sem admittirem a passagem de barcosque demandem outro calado de agua.” (Octavio, 1924).53 Em uma decisão histórica do Superior Tribunal Federal, de 31 de janeiro de 1905, ficou definido que “terra de marinha não épróprio nacional e não se inclui entre as terras devolutas. Terra de marinha é bem nacional” (Santos, 1985). Assim, o PoderJudiciário faz a distinção jurídica entre a terra de marinha e a terra devoluta. A primeira é de propriedade da União, já, a segundaé de dominialidade pública, podendo pertencer aos estados ou à União, conforme a situação elencada pela Constituição Federalde cada época. Com base no acórdão de 1905, revalidado pelo acórdão de 31 de dezembro de 1921, o Supremo Tribunal Federalafirmou que “a União tem pleno domínio das terras de marinha não aforadas e o direito das aforadas, cuja posse não perde coma cessão do útil” (Bastos, 1923).

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denominada marinha “é constituída de terra firme” (Santos, 1985) e nãode uma área alagada periodicamente que permanece submersa alguns mesesdo ano.53 Segundo a descrição de Mendonça (1909), “nos terrenos demarinha contam-se os metros do mar para terra, e o processo consiste emtomar a maior e a menor enchente de uma lunação e calcular o ponto médio”.

Segundo, o Decreto-Lei n° 9.760/46 define terreno de marinha no seuartigo 2°, ao afirmar que:

“São terrenos de marinha em uma profundidade de 33 (trinta etrês) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, daposição da linha da preamar média de 1831:a) os situados no continente, na costa marítima e nas margensdos rios e lagos, até onde se façam sentir a influência das marés;b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façamsentir a influência das marés.Parágrafo único: para os efeitos deste artigo a influência das marésé caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros,pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer épocado ano.”

O Decreto, ao prever que a linha imaginária deve localizar-se a partir dapreamar-média, indica que o terreno de marinha será medido na enchentemédia. Isso significa que o terreno de marinha constitui uma porção de terraque não é inundada periodicamente, podendo ocorrer o alagamento apenas noperíodo das grandes cheias.

Área de preservação permanente e a várzeaA Área de Preservação Permanente (APP) é uma “área protegida nos termos

dos artigos 2º e 3º dessa lei, coberta ou não por vegetação nativa, com afunção ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidadegeológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o soloe assegurar o bem-estar das populações humanas” (inciso II, § 2º, artigo 1ºda Medida Provisória nº 2.116-67/01).

A APP já era prevista no Código Florestal de 1930 como florestas protetoras,e o Código de 1965 confirmou a concepção de que a floresta e demais formasde vegetação existentes nas áreas descritas no artigo 2º são permanentes, ouseja, não podem ser eliminadas e são insuscetíveis de modificação. A

54 De acordo com Machado (1999), os seguintes países protegem suas Áreas de Preservação Permanente: Argentina, Venezuela,Alemanha e França. Temos conhecimento de que a Costa Rica, Espanha e Itália também possuem um sistema legal de proteçãodessas áreas.

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preocupação com a preservação das matas protetoras é prevista em diversaslegislações de outros países54, que buscam conservar o regime de águas,prevenir a erosão do solo, impedir o desmoronamento dos barrancos derios, lagos e demais correntes d’água, manter o calado nas vias fluviais, protegerrodovias, ferrovias etc.

Desse modo, em regra geral, a APP não pode ser vista como um espaçonatural suscetível de exploração econômica, pois cumpre uma missão específicadevido a sua localização de fundamental importância para o meio ambiente epara a atividade agrária. É uma limitação administrativa55, não cabendoreivindicar indenização do Poder Público porque essas áreas representamlimitações do direito de propriedade.

A dúvida aqui é se a área da APP incide no terreno de várzea. No entanto,a letra “a” do artigo 2º do Código Florestal é clara ao indicar quando começaa faixa de terra que será considerada de preservação permanente. Diz omandamento legal que a APP deve ser medida “ao longo dos rios ou de qualquercurso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal” (grifo nosso), ouseja, essa faixa do terreno inicia-se depois do ponto onde termina a enchentemédia dos rios ou de qualquer curso d’água. Portanto, várzea e APP ocupamespaços distintos e não se pode afirmar que a APP incide no leito maior sazonaldo curso d’água.

O fato de considerar a várzea distinta da APP não significa dizer que ela nãomerece a mesma proteção jurídica, pelo contrário, as duas figuras são protegidasconstitucionalmente, conforme está expresso no artigo 225 da CF.

Um dos instrumentos legais que a administração pública possui para protegero bem público é a criação dos espaços especialmente protegidos, pois “todos têmdireito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Espaço protegido é

todo local, definido ou não seus limites, em que a lei asseguraespecial proteção. Ele é criado por atos normativos ouadministrativos que possibilitem a administração pública àproteção especial de certos bens, restringindo ou limitando suapossibilidade de uso ou transferência, pelas suas qualidadesinerentes (Souza Filho, 1993).

A criação desses espaços protegidos é fundamental para assegurar a eficáciado mandamento constitucional e garantir o equilíbrio ecológico. No parágrafo

55 Para Meirelles (1993), a “limitação administrativa é toda imposição geral, gratuita, unilateral de ordem pública, condicionadorado exercício de direitos ou de atividades particulares às exigências do bem-estar social.”

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4º do artigo 225 da Constituição Federal, estão dispostos alguns dos bensambientais protegidos constitucionalmente, denominados de patrimônionacional: a floresta amazônica, a mata atlântica e a serra do mar. Por receberemessa definição, sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições queassegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursosnaturais.

Contudo, não podemos tomar espaços territoriais especialmente protegidoscomo sinônimo de Unidades de Conservação, pois estas são espécies daqueles,como lembra o constitucionalista José Afonso da Silva (1994): “um espaçoterritorial se converte numa Unidade de Conservação, quando assim é declaradoexpressamente, para lhe atribuir um regime jurídico mais restritivo e maisdeterminado.”

Os espaços territoriais especialmente protegidos são áreasgeográficas públicas ou privadas (porção do território nacional)dotadas de atributos ambientais que requeiram sua sujeição, pelalei, a um regime jurídico de interesse público que implique suarelativa imodificabilidade e sua utilização sustentada, tendo emvista a preservação e proteção da integridade de amostras de todaa diversidade de ecossistemas, a proteção ao processo evolutivodas espécies, a preservação e a proteção dos recursos naturais (Silva,1994).

Portanto, são espaços naturais sensíveis que merecem alguma forma deproteção jurídica (constitucional ou infraconstitucional). No entanto, não hánecessidade de especificar o local exato; sua localização se dá mais pelo bioma,pela característica de localização geográfica ou pelo papel ecológicodesempenhado. São exemplos desses espaços territoriais a floresta amazônica,a mata atlântica, o pantanal mato-grossense, a serra do mar, a zona costeira, osmanguezais, as várzeas, as dunas, as restingas e as florestas que são consideradascomo reservas legais56 ou APPs.

As terras devolutas e a várzeaDe modo geral, é permitido conceituar como devolutas as terras que não

estão aplicadas a nenhum uso público nacional, estadual ou municipal; as

56 A reserva florestal legal é “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente,necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação dabiodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas” (Artigo 1°, inciso III do Código Florestal, com as alterações introduzidaspela MP n° 2166-67/01). Logo, a reserva legal é o espaço florestal de cada imóvel rural onde não pode ocorrer o corte raso dafloresta. Dependendo da sua localização no território brasileiro, estipula-se um mínimo de área necessário para que permaneçacom cobertura vegetal.

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que não estavam na posse de algum particular, com ou sem título, em 1850;as que não estão no domínio particular, em virtude de algum título legítimo(Garcia, 1958).57 Assim, as terras devolutas não se confundem com álveoou com o leito maior sazonal, pois esses terrenos são aplicados a um usopúblico, ou seja, têm uma destinação, que é dar suporte à água.

Os terrenos marginais, as praias e a várzeaAs correntes navegáveis que não sofrem influência das marés, portanto, não

se enquadram nas características dos terrenos de marinha, não deixam de serpúblicos, porém recebem outra denominação. De acordo com a legislação atual,as áreas que não podem ser enquadradas como terras de marinha serãodesignadas como terrenos marginais.

Com efeito, o artigo 4º do Decreto-Lei n° 9.760/46 conceitua: “Sãoterrenos marginais os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcancedas marés, vão até a distância de 15 (quinze) metros, medidoshorizontalmente para a parte da terra, contados desde a linha média dasenchentes ordinárias.”58

Esses terrenos são considerados bens dominicais (Di Pietro, 1997). Oselementos que no seu conjunto irão definir os terrenos marginais são(Nascimento, 1985): a) os banhados por correntes navegáveis; b) as correntesnavegáveis que não sintam a influência das marés; c) a largura dos terrenosmarginais, espaço que corresponde a 15 m, medidos em direção à terra; d) omarco inicial para medição – uma linha imaginária denominada “linha médiadas enchentes ordinárias”.

A dominialidade desses terrenos será federal quando estiver à margem derios navegáveis federais, em territórios federais, e por qualquer título nãopertencerem a particular; quando os rios e as ilhas estiverem situados na faixade fronteira do território nacional. Os demais terrenos marginais pertencemaos estados onde estão localizados, “se por algum título, não forem dodomínio federal, municipal ou particular” (artigo 31 do Código de Águas).

57O artigo 20, inciso II da Constituição Federal, afirma que a terra devoluta é um bem da União quando for indispensável à defesa dasfronteiras, das fortificações e à preservação ambiental, definida em lei. O artigo 26, inciso IV da Constituição Federal, afirma quepertencem aos estados as terras devolutas não compreendidas entre as da União. Quanto à destinação das terras devolutas, deveráser compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária (artigo 188, Constituição Federal). Já no parágrafo5° do artigo 225 está previsto que “são indispensáveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos estados, por ações discriminatórias,necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.” Desse modo, os mandamentos constitucionais orientam a destinação das terrasdevolutas para a reforma agrária ou para a proteção ambiental; em qualquer situação serão consideradas bens públicos. A definiçãode terra devoluta está contida no artigo 5º do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946.58 Essa mesma definição está prevista no Código de Águas (artigo 14 do Decreto nº 2.4643, de 10 de julho de 1934) apenas com aterminologia de terreno reservado.59 Em relação aos terrenos marginais, o Superior Tribunal Federal, através da Súmula n° 479, orienta que “as margens dos riosnavegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização”.

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De qualquer forma, “são terras públicas, conceitualmente não devolutas, eque, por via de conseqüência, não são usucapíveis...” (Nascimento, 1985).59

Portanto, com essas características, os terrenos marginais também não incidemna área de várzea, pois a faixa de terra começa a ser medida a partir da linhamédia das enchentes ordinárias, ou seja, após a várzea.

As praias, segundo a definição do Dicionário Aurélio, são “qualquer extensãodo leito dos rios que forma coroas ou ilhas rasas, as quais ficam a descobertoquando as águas baixam muito.”A sua dominialidade será federal quando forbanhada por águas federais (artigo 20, inciso III, da CF), as demais serãoconsideradas de propriedade estadual. De todos os elementos até agoraanalisados, a praia é o único localizado dentro do terreno de várzea.

Instrumentos jurídicos e competência para regularizar asituação fundiária da várzea

Na discussão apresentada está claro que a várzea tem a natureza jurídica dacalha alargada ou maior do rio, lago, igarapé, paraná ou furo e, por isso, suadominialidade é pública. Qualquer outra solução pode levar à incongruênciajurídica de afirmar que a várzea teria uma natureza sui generis, ou seja, quandoo terreno estivesse descoberto na vazante a terra seria privada, enquanto noperíodo em que estivesse alagado, a dominialidade seria pública. Ora, ummesmo bem não pode ter duas naturezas jurídicas e dominialidadesconcomitantes ou contínuas.

Depois de definidas a questão da natureza jurídica da várzea e a suadominialidade, a discussão sobre a regularização fundiária pode ser aprofundada.Contudo, é bom lembrar que nesse item iremos analisar os instrumentosjurídicos para regularizar a situação fundiária somente das áreas rurais, ouseja, não estão incluídas as áreas urbanas, tais como as sedes de municípios,distritos, povoados ou vilas.

A várzea é um bem público de uso comum e tem o seu domínio indisponível.Em razão de sua destinação para fins públicos, a várzea está fora do comércio,ou seja, é uma res extra commercium, que não pode ser alienada60. Ou seja, nãopode ser objeto de qualquer relação jurídica regida pelo direito privado, comocompra e venda, doação, permuta, hipoteca, penhor, comodato, locação, possead usucapionem etc.

60 Alienar significa transferir para outrem o domínio de um bem, passar para outro o domínio de coisa ou gozo.61 Com uma redação muito similar, encontramos o artigo 102 do Código Civil, ao afirmar que “os bens públicos não estão sujeitos àusucapião”.

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Os artigos 183, inciso 3° e 191 da Constituição Federal são categóricosao afirmarem que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião61.Nessa linha, o artigo 100 do Código Civil diz que “os bens públicos de usocomum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarema sua qualificação, na forma que a lei determinar.”

Contudo, é possível o acesso jurídico ao solo e aos recursos naturais, pormeio de institutos publicísticos, tais como autorização de uso, permissão deuso, cessão de uso, concessão de uso, concessão de direito real de uso e direitode superfície. No caso da várzea, os institutos mais adequados para que oPoder Público faça a cessão para o uso privado são: a concessão de uso, aconcessão de direito real de uso e o direito de superfície. Qualquer um dessesinstrumentos pode ser utilizado, conforme o interesse público e a limitaçãolegal.

No uso privado de bens públicos não há a transferência de domínio, mas acessão de uso do bem ao fim a que ele se destina. A cessão é materializada nocontrato administrativo de concessão, que “é o documento escrito que encerraa delegação do poder concedente, define o objeto da concessão, delimita aárea, forma o tempo da exploração, estabelece os direitos e deveres das partes edos usuários do serviço” (Meirelles, 1993).

O contrato de cessão tem como característica ser bilateral, oneroso ougratuito, comutativo62 e realizado intuita personae. A cessão para uso privativode bem público é outorgada mediante contrato63, que depende de préviamanifestação do Poder Executivo ou do Legislativo, cuja outorga ocorrerá comprazo estabelecido.

A Lei nº 9.636/98, artigo 18, inciso II, enumera a quem pode ser cedido,gratuitamente ou em condições especiais, os imóveis da União, que são aspessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou social, ou deaproveitamento econômico de interesse nacional, que mereça tal favor.

Nas três possibilidades (concessão de uso, concessão de direito real de uso edireito de superfície), o domínio do terreno de várzea será da União ou doestado, e a transferência do usufruto para o ocupante se fará pelo contratoadministrativo, e, enquanto estiverem assegurados os interesses ambientaisda sociedade, estarão também assegurados os direitos dos grupos sociaisque utilizam essas áreas de forma não predatória64. Portanto, enquanto existir

62 Comutativo é decorrente de ato de troca ou permuta. Empregado em contratos onerosos ou em que ocorre a troca ou permuta, desdeque uma parte se obrigue a pagar ou entregar a coisa à outra parte.63 A outorga significa o consentimento, a aprovação e a permissão de uso do bem público.64 No caso da regularização fundiária da propriedade familiar e da propriedade comum, a cessão também se destina a asseguraros modos de vida econômico e cultural, do grupo social favorecido.

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o uso adequado da área, segundo o contrato, subsiste a cessão a essa utilização,podendo ser transferido esse direito para os herdeiros. Mas, no momento emque o concessionário não respeitar o uso acordado ou mudar a finalidadeprevista legalmente, rescindir-se-á o contrato e a terra reverterá àAdministração Pública.

Seja qual for o motivo pelo qual findar a concessão – descumprimento decláusulas contratuais ou por interesse das partes –, os que a receberam têm odireito de ser indenizados pelas benfeitorias e trabalhos realizados no bem,como qualquer relação possessória65. Na ocorrência de danos ambientais,comprovada a responsabilidade, o responsável responderá administrativa, civile penalmente pelos seus atos, além de se proceder à rescisão contratual, quenão deixa de ser uma sanção administrativa.

O contrato de cessão inclui um plano de uso da área concedida66, aprovadapelo órgão público a que pertence a dominialidade da área67. O contrato conterácláusulas de rescisão quando houver quaisquer danos ao meio ambiente, e acessão está vinculada a um plano de manejo dos recursos naturais. O órgãocedente autoriza à população destinatária o uso do imóvel, a título gratuito,sem prejuízo da conservação dos seus recursos naturais, de acordo com o planode manejo de uso múltiplo, definido pelo órgão ambiental competente. Logo,o plano de manejo é parte integrante do contrato de cessão. Caberá ao órgãoproprietário do bem, supervisionar as áreas concedidas e acompanhar ocumprimento das condições estipuladas no contrato de cessão administrativa,no plano de uso e no plano de manejo.

Para regularizar a situação fundiária da área concedida, o contrato de cessãopoderá ser assinado por uma associação de moradores, legalmente constituída,que representará todos os moradores; portanto, o contrato poderá ser coletivoou individualizado (família), desde que todas as famílias aprovem um únicoplano de uso da área68.

65 A exceção a essa regra pode ocorrer se for previsto no contrato de cessão que o ribeirinho não terá direito a qualquer indenização,inclusive por benfeitorias, nas seguintes situações: a) quando for dada utilização diversa da prevista no contrato; b) na falta decumprimento de cláusula contratual; c) se o ribeirinho renunciar à cessão, deixar de exercer as suas atividades específicas ou seextinguir; d) quando houver quaisquer danos ao meio ambiente, transferência, inter vivos, dos direitos de uso ou descumprimento dodisposto no respectivo plano de manejo.66 Plano de uso é um documento escrito, proposto e elaborado pelos moradores que definem a área que utilizam e desenvolvemcada atividade econômica e social, com o intuito de assegurar a utilização dos recursos naturais da várzea da área a serregularizada.67 Atualmente, para regularizar a situação fundiária dos bens da União (Memorando-Circular nº 167/01 GEAES/GEAPN e Memorando-Circular nº 10/02 GEAES/SPU), o interessado deve encaminhar o pedido à GRPU, da SPU, solicitando a cessão, além de outrosdocumentos e informações. O pedido deve ser acompanhado de um anteprojeto do empreendimento visado, ou da sua descriçãosumária. Em nossa proposta, o plano de uso substitui o anteprojeto do empreendimento, pois cumpre a mesma função, ou seja,a de informar como pretende utilizar o bem público.68 Um único plano de uso, por área concedida, facilita a sua gestão e a resolução de possíveis disputas por recursos naturais.

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Em resumo, a regularização fundiária deverá estar baseada na cessão deuso, pois, pelo fato de os terrenos das várzeas serem bens públicos de usocomum, não poderá ser concedido título definitivo a quem quer que seja,“sendo nulo, portanto, todo e qualquer registro de propriedade particularincidente sobre os mesmos” (Treccani, 2002).

A regularização fundiária destina-se a concretizar o domínio e a posse doestado (quando se tratar de unidade de conservação, terreno de marinha eterreno de várzea) sobre as terras inseridas nos limites da área a serregulamentada. As dúvidas com relação à efetiva propriedade da terra e ao usodos recursos naturais são resolvidas por meio da regularização fundiária. Nocaso particular das populações tradicionais e dos ribeirinhos, o poder públicoestá regularizando um apossamento preexistente.

O processo de regularização fundiária deve levar em conta duas premissas básicas:a) a integridade ecológica do conjunto de ambientes da várzea (solo, cobertura

vegetal e recursos hídricos);b) os diferentes padrões de agricultura e manejo da floresta, ou seja, a forma

de apossamento e o uso dos recursos naturais.69 A regularização fundiária paraas populações tradicionais ou ribeirinhas não pode levar em conta apenas aterra utilizada para as atividades agrárias, ou seja, a área de restinga. Asustentabilidade econômica e ecológica na várzea envolve as áreas de restinga,campo natural, lagos e rios.70

Assim, a regularização fundiária da várzea deve respeitar a forma de uso e aapropriação dos recursos naturais, pelas populações ribeirinhas. As diretrizeslegais que vão subsidiar a formulação da política de regularização fundiáriadevem atender aos interesses dos diversos atores e aos diferentes ambientesnaturais, conforme demonstram os casos estudados nos trabalhos de McGrath(2004) e Treccani (2002). Nesses estudos foram identificadas três categorias deimóveis rurais quanto à forma de uso dos recursos e o tamanho da áreaapropriada:

a) médio e grande imóvel rural (individual – acima de quatro módulosfiscais71);

b) pequeno imóvel rural (individual – igual ou abaixo de quatro módulosfiscais) + área comunitária (pasto e lago de uso comum); 72

69 Quanto à discussão sobre o apossamento das populações tradicionais e o seu reflexo na legislação ver Benatti (2003).70 No apossamento familiar na várzea, os limites laterais são bem definidos e os fundos normalmente se estendem até o lago oucanal d’água. Essa divisão espacial busca assegurar a cada posseiro o acesso aos quatro principais ambientes da várzea (canalde corrente d’água, restinga, campo natural e lago). Deve-se respeitar essa forma peculiar de distribuição e acesso aos recursosnaturais, já que esse arranjo socioambiental assegura a viabilidade da economia familiar na várzea (McGrath, 2004).71 O módulo fiscal (MF) é fixado pelo Incra e definido por lei pelo município, sendo regulamentado pelo artigo 4 do Decreto Nº 8.485, de6/5/1980.

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c) comunitário (área de restinga, pasto e lago de uso comum).O procedimento de regularização fundiária deve ser o mesmo para cada

classe de imóvel rural acima descrita, respeitando a forma peculiar de apropriaçãoe o uso dos recursos naturais de cada um deles. O médio e o grande imóvelrural na várzea priorizará o uso dos recursos do solo e da floresta. O ocupantedo pequeno imóvel rural ou comunitário dará prioridade ao uso do solo, àcobertura vegetal e ao recurso hídrico, pois é a somatória desses bens ambientaisque assegurarão a sustentabilidade social, econômica e ambiental. Resumindo,uma área objeto de cessão deverá levar em conta o uso comum da comunidadee as áreas para o uso familiar, cuja exploração considerará os costumes locais eas legislações agrária e ambiental.

Atualmente, o órgão responsável pela regularização fundiária é o SPU, masserá necessário transferir essa competência para o Incra, pois ele possui estruturae pessoal mais qualificado para realizar a tarefa. Contudo, é importante ressaltarque a transferência da competência da regularização fundiária do SPU, para oIncra, não significa a substituição da titularidade da propriedade, que continuasendo do SPU.

Também foi constatada a necessidade de simplificar os processosadministrativos de regularização fundiária e de outorga, em tramitação naGRPU/PA/AP, que é ainda muito moroso e complexo. 73

Organograma 1. Processo deregularização fundiária.

Pedido de Abertura do Processoacompanhado do Plano de Uso ecom a identificação da área.Reivindicada

encaminha Órgão municipalresponsável poressa tarefa.

UnidadeAvançadado Incra.

encaminha

InstânciaSPU/Incra aprovaa solicitação.

Celebração do Contratode Cessão entre oSPU/Associação ouindividual.

Incra realizavistoriapreliminar.

Procuradoriafaz o estudocartorial.

Associação repassapara as famílias aAutorização de Uso.

72 O trabalho de McGrath (2004) indica a existência de uma boa porcentagem de imóveis rurais menores que o módulo rural da região,ou seja, estão abaixo de 3 ha. Contudo, quando a regularização inclui a área de restinga, pasto comum e lago, a área mínima familiarnão é menor que o módulo rural, portanto, não poderá ser enquadrada como minifúndio. Propriedade familiar e módulo rural podem serconsiderados sinônimos, pois o módulo é definido levando em conta as condições mínimas exigíveis para a rentabilidade e o aproveitamentosocialmente útil da propriedade (artigo 4 da Lei 4504/64 – Estatuto da Terra).

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As bacias hidrográficas e o plano de uso74

Na várzea, a bacia hidrográfica75 é a principal unidade de organizaçãosocial e manejo dos recursos naturais e, portanto, fornece uma base apropriadapara a gestão dos recursos naturais. É sob a influência da bacia hidrográficaou da microbacia, conforme a definição estabelecida, que ocorrem asprincipais atividades antrópicas. Portanto, ela deve ser uma referênciaobrigatória no plano de uso e no plano de manejo de uso múltiplo.

Assim, na elaboração do contrato de cessão e, conseqüentemente, do planode uso, a bacia hidrográfica é o elemento básico orientador.76 Nas áreas a seremconcedidas, que possuem mais de uma bacia, o primeiro passo é definir olimite e o alcance de cada bacia. Cada uma será composta pelos moradores,com posse na área, os quais serão responsáveis pela elaboração dos planos deuso locais e sua implementação nas respectivas bacias. Esses planos locais darãosuporte à elaboração do plano de uso da área a ser concedida. Os planos deuso, no âmbito da bacia e da área a ser concedida, ordenam o acesso e o usodos recursos naturais e servem de orientação para o desenvolvimento de projetosespecíficos de manejo.

Para subsidiar a elaboração dos planos de manejo, por bacia, será necessáriorealizar levantamentos em todo o terreno utilizado pelo ribeirinho. Oslevantamentos devem ser direcionados, principalmente, para diagnosticar eavaliar o estado geral da bacia e a distribuição dos principais recursos, bemcomo para apontar as potencialidades. O plano de uso busca assegurar o direitoao solo, à água e aos demais recursos naturais, mas não pode ser confundidocom o plano de manejo de uso múltiplo, que será discutido no próximo item.

Enquanto o plano de uso procura fundamentar a área necessária para aregularização fundiária, o plano de manejo de uso múltiplo será elaboradopara licenciar o uso dos recursos naturais. Dessa forma, estudos maisdetalhados e pontuais, por região ou comunidade, deverão ser realizadospara atender à demanda do plano de manejo.

73 Em relação às propostas para simplificar o processo de regularização, ver o texto de Girolamo Treccani (Capítulo III deste livro).74 As idéias expostas neste item foram retiradas da “Proposta para o Plano de Manejo de Uso Múltiplo da Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns”, elaborado pelo Ipam (2003), que sofreu algumas mudanças para adequar a realidade da várzea ao objetivo específico elimitado do plano de uso.75 A bacia hidrográfica pode ser entendida como “uma área de terra determinada por feições topográficas, tendo em conjuntouma superfície de água e drenagens subterrâneas (lençol freático). O limite da bacia hidrográfica é estabelecido considerando-se a topografia, a declividade e os divisores de água. Normalmente, numa bacia hidrográfica estão incluídas atividadessocioeconômicas de uso e ocupação, além de fatores físicos, ambientais e jurídicos“ (Musetti, 2000).76 O comitê de bacia da área concedida não tem a mesma abrangência e competência legais do comitê de bacia previstas no artigo 38da Lei nº 9.433/97. Aquele comitê tem um alcance e uma finalidade mais restrita, ou seja, é uma estrutura mais adequada para elaborarplanos de manejo, de um grupo de pessoas circunscritas a uma determinada área. Assim, podemos afirmar que a bacia é um locus(lugar) privilegiado para ordenar o espaço para a regularização fundiária e a elaboração do plano de manejo, já que é determinada porfeições topográficas, tendo em conjunto uma superfície de água. O limite da bacia hidrográfica é estabelecido considerando-se atopografia, a declividade e os divisores de água. Além do espaço físico e ambiental, a bacia é caracterizada pelas atividadessocioeconômicas de uso e ocupação. Logo, com uma concepção mais restrita.

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94 Coleção Estudos Estratégicos : Questão Fundiária

Competência e instrumentos jurídicos para regularizar omanejo dos recursos naturais

Atualmente o manejo dos recursos naturais implica sustentabilidade, ouseja, o uso dos recursos deve ser duradouro, sem deterioração ambiental e,dentro dos limites científicos e técnicos, com um baixo impacto sobre abiodiversidade nativa.

Como o manejo envolve a manipulação do ecossistema para favorecerdeterminadas espécies a serem exploradas ou para acomodar outras atividadeshumanas, suas técnicas podem ter efeitos negativos sobre outras espécies quenão foram “privilegiadas”. Portanto, é necessário regularizar o manejo dosrecursos naturais, a fim de amenizar esses possíveis impactos negativos.

O plano de manejo de uso múltiplo é um instrumento de planejamento daadministração pública, utilizado em áreas privadas e públicas, no qual se defineum conjunto de ações para garantir o uso e a proteção dos recursos naturais. Oseu principal objetivo é apresentar diretrizes de manejo da área, para assegurara proteção dos recursos naturais que nela ocorrem.

Para alcançar o objetivo do plano de manejo, a proteção da vegetação nativaexistente nos imóveis rurais não pode ser vista somente como uma reserva demadeira ou de biodiversidade. Em se tratando de imóveis rurais privados,sejam eles individuais ou coletivos, o objetivo da proteção ambiental deve sera manutenção dos serviços ecológicos dos recursos naturais. Eles possuem serviçosambientais fundamentais para o desenvolvimento de uma agricultura eextrativismo duradouro. Entre esses serviços podemos destacar: a diversidadebiológica, a manutenção do microclima, a fertilidade e a umidade do solo, aalimentação do lençol freático e das nascentes d’água, a reciclagem de nutrientes,

Organograma 2. Estrutura para a elaboração do plano de uso das áreasconcedidas.

Plano de uso por microbacia Plano de uso, por microbacia

Moradores da microbacia Moradores da microbacia

Plano de Uso da Área Concedida

Plano de uso, por microbacia

Moradores da microbacia

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o controle da erosão, o fornecimento de matérias-primas etc. Todos esses serviçossão importantes porque, além do seu papel ambiental, tornam a atividadeagropecuária mais rentável em médio e longo prazos.

Assim, os serviços ecológicos podem ser vistos, pelos seus efeitos positivos,sob dois aspectos: o primeiro está relacionado aos próprios recursos agrícolas eao potencial produtivo, e é de interesse direto dos trabalhadores rurais; o segundorefere-se ao ambiente e é de interesse da sociedade.

A busca de atividades agrárias integradas com o manejo dos recursos naturaissustentável é imprescindível para a proteção do meio ambiente, e a suaconseqüência imediata é a manutenção dos serviços ecológicos dos recursosnaturais renováveis.

A água como um novo elemento estruturador da gestão ambientalPara implantar um sistema de gestão participativa e de elaboração do plano

de manejo de uso múltiplo, da área concedida, há a necessidade de integrar asentidades sociais existentes, tais como as organizações sociais e sindicais. Aestrutura do plano está baseada no manejo de bacias ou microbaciashidrográficas e consiste de três instâncias institucionais: a comunidade(moradores), os comitês de bacias hidrográficas e o comitê de gestão da áreaconcedida. O comitê de gestão será composto por representantes dos comitêsde bacias, das representações sociais que atuam na área e do órgão que concedeua área, se achar necessário participar do comitê.

A bacia hidrográfica é a principal unidade de manejo dos recursos hídricose, portanto, fornece uma base apropriada para o manejo e a gestão dos recursosnaturais. Uma vez definido o espaço geográfico de cada bacia, deve ser criadoum comitê de gestão para cada uma delas. O comitê de gestão da bacia serácomposto por representantes das comunidades e associações localizadas na bacia,que serão responsáveis pela elaboração dos planos de manejo e suaimplementação. Ele deve estar baseado nos planos de manejo elaborados emcada bacia, no caso de haver mais de uma. Logo, os planos de manejo ajudama ordenar o acesso e o uso dos recursos naturais e servem de orientação para aelaboração do plano de manejo de uso múltiplo, da área concedida.77

No âmbito da gestão ambiental da região, que extrapola o manejo das áreasconcedidas, é fundamental a criação dos comitês, por bacia regional, conformeestá previsto no art. 38 da Lei n° 9.433/97. Esse comitê tem a incumbência depromover o debate sobre as questões relacionadas aos recursos hídricos e articular

77 Utiliza-se o mesmo procedimento de elaboração do plano de uso, para elaborar o plano de manejo da área concedida.

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a atuação das entidades que atuam na região. Quando houver conflito deuso entre as áreas concedidas e terceiros, ou mesmo entre as próprias áreas,o comitê tem o papel de arbitrar, em primeira instância administrativa, osconflitos relacionados aos recursos hídricos. Do mesmo modo, um dosobjetivos do comitê é orientar a utilização racional e integrada dos recursoshídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimentosustentável.

Conclusão

A várzea amazônica é importante pela sua dimensão espacial, diversidadessocial e ecológica e exploração econômica. Este estudo aponta que a naturezajurídica da várzea é a de terreno da calha alargada ou maior de um rio, uma vezque se trata de uma área alagada temporariamente. Por se tratar da calhaalargada, a dominialidade da várzea é pública, podendo ser da União ou dosestados, dependendo da propriedade das águas.

Com base em uma interpretação sistêmica da Constituição Federal de1988, conclui-se que a várzea é um bem público de uso comum. Portanto,

Organograma 3. Estrutura institucional de gestão ambiental da áreaconcedida.78

Plano de manejo, por bacia Plano de manejo, por bacia

Comitê de bacia Comitê de bacia

Comitê de Gestão da Área Concedida

Plano de manejo, por bacia

Comitê de bacia

Plano de Manejo de Uso Múltiplo da Área Concedida

Moradores da bacia Moradores da baciaMoradores da bacia

78 As idéias expostas nesse item foram retiradas da “Proposta para o Plano de Manejo de Uso Múltiplo da Reserva Extrativista Tapajós/Arapiuns”, elaborado pelo Ipam (2003), que sofreu alterações para se adaptar à realidade da várzea.

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esse ecossistema não pode ser confundido com o conceito de terras devolutas,que se refere às áreas que não estão aplicadas a algum uso público ou quenão estão no domínio particular legítimo. O estudo também conclui que oterreno de várzea não incide na faixa da Área de Preservação Permanente(APP), no terreno de marinha e no terreno marginal. São categorias distintas,cada uma delas com uma incidência jurídica própria.

Quanto à regularização fundiária: pelo fato de a dominialidade da várzeaser pública, não há a transferência de domínio, mas somente a cessão de usodo bem, ao fim a que ele se destina. O acesso jurídico ao solo e aos recursosnaturais ocorre por meio de institutos publicísticos, tais como concessão deuso, concessão de direito real de uso e direito de superfície. O reconhecimentodo direito à terra pode ser individual ou coletivo.

Um dos pontos de destaque deste estudo é a discussão sobre os pressupostosbásicos da regularização fundiária. Há duas premissas básicas para regularizara situação de apossamento dos recursos naturais na várzea. Primeira, buscarmanter a integridade ecológica do conjunto de ambientes (solo, cobertura vegetale recursos hídricos). Segunda, levar em consideração os diferentes padrões deagricultura e manejo da floresta, ou seja, a forma de apossamento e uso dosrecursos naturais.

Ainda sobre a regularização fundiária, o seu procedimento deve ser o mesmopara cada classe de imóvel rural (coletivo, pequeno, médio ou grande),respeitando a forma peculiar de apropriação e uso dos recursos naturais, decada um deles. O médio e o grande imóvel rural na várzea priorizará o uso dosrecursos do solo e da floresta. Já o ocupante do pequeno imóvel rural, ou docomunitário, deverá levar em conta o uso do solo, a cobertura vegetal e orecurso hídrico, ou seja, a forma de uso e apropriação dos recursos naturais,pelas populações ribeirinhas.

O órgão responsável pela regularização fundiária é o SPU, mas será necessáriotransferir essa competência para o Incra, pois ele possui estrutura e pessoalmais qualificado para realizar a tarefa.

Um novo elemento na discussão da regularização fundiária e no procedimentopara o manejo dos recursos naturais é a bacia hidrográfica. Ela é a principalunidade de organização social e manejo dos recursos naturais. O plano de usobusca assegurar o direito ao solo, à água e aos demais recursos naturais, ouseja, fundamentar a área necessária para a regularização fundiária. O planode manejo de uso múltiplo busca licenciar a utilização dos recursos naturaisda várzea.

Nos dois planos, é necessário buscar uma gestão integrada das diferentes

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atividades agroambientais, desenvolvidas no imóvel rural. O melhor meiopara alcançar esse fim é a unificação, em um só licenciamento, dosprocedimentos de manejo dos recursos naturais e do desmatamento. Acompetência para aprovar o plano de manejo dos recursos naturais, na várzea,é do Ibama, no entanto, pode-se transferir essa competência para as instânciasambientais estaduais.

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E s t a e d i ç ã o f o i p r o d u z i d a n o p r i m e i r o

s e m e s t r e d e 2 0 0 5 , e m M a n a u s , u t i l i z a n d o a s

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F r u t i g e r ( 9 ) , s o b r e p a p e l o f f -s e t 1 2 0 g / m 2 .

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