A reforma proposta por GRIESINGER

5

Click here to load reader

Transcript of A reforma proposta por GRIESINGER

Page 1: A reforma proposta por GRIESINGER

52 V O L 9 9 N º 0 3 ; J U L / A G O / S E T 2 0 0 5 — A R Q U I V O S B R A S I L E I R O S D E P S I Q U I AT R I A , N E U R O LO G I A E M E D I C I N A L E G A L

A REFORMA DA ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA PROPOSTA POR GRIESINGER

RESUMO: Em seguida a Pinel, Griesinger foi o grande expoente da psiquiatria, sendo seu Tratado amplamente difundido. Na segunda edição, em 1861, acrescentou no capítulo sobre tratamento, tema de que cada vez mais se ocupou: os hospitais psiquiátricos e a assistência ao doente mental. Publicou, em revistas especializadas, “Sobre Hospitais Psiquiátricos e seus Desenvolvimentos Futuros na Alemanha”, “O Tratamento Livre” (non-restraint) e outros artigos. Considerava em sua proposta assistencial vasta gama de serviços, ciente da grande variabilidade de necessidades dos pacientes. Considerava as condições populacionais de cada região. Sempre tinha em mente as atividades vinculadas às universidades. Propunha hospitais de fácil acesso para atendimento aos casos novos, descentralizados e próximos ao ambiente dos pacientes, com benefícios tanto para a pronta atenção ou internação como para a programação de alta gradativa. Propunha asilos para crônicos desprovidos de recursos, assim como auxílio estatal para familiares e para outras estruturas de apoio. Uma possibilidade era o trabalho de pacientes, com condições para tanto, junto a famílias de trabalhadores que os abrigassem. Suas idéias baseavam-se nos mais recentes conhecimentos da psiquiatria de então. Sua própria concepção psiquiátrica era, a um tempo, somática e psíquica, equilíbrio que se reflete no pragmatismo técnico e humanitário de suas propostas.

ABSTRACT: After Pinel, Griesinger was a great exponent of psychiatry, with a widely spread work. In the second edition, in 1861, he added to the chapter about treatment a subject in which he was each time more interested: psychiatric hospitals and assistance to the mental patient. He published in specialized journals: “On Psychiatric Hospitals and their Future Developments in Germany”, “The Free Treatment” (non-restraint), and other articles. He considered in his assistance purpose a vast range of services and was aware of the great variability of the patients’ needs. He considered the population conditions of each area. He always had in mind activities associated to the universities. He proposed, for the new cases, easy access hospitals that would be decentralized and close to the patients’ setting, with benefits for aiding inpatients and encouraging their gradual discharge. He proposed asylums for needy chronic patients, as well as state aid for relatives and other support structures. He suggested that capable patients could work together with workers’ families that sheltered them. His ideas were based on the most recent knowledge of psychiatry. His own psychiatric conception was, at the same time, somatic and psychic, a balance that is reflected in the technical and humanitarian pragmatism of his proposals.

PALAVRAS-CHAVE: Psiquiatria social/história; Saúde mental/história; Griesinger.

KEYWORDS: Community psychiatry/history; Mental health/history; Griesinger.

THE PSYCHIATRIC CARE REFORM PROPOSED BY GRIESINGER

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA

Maurício Viotti Daker

Maurício Viotti Daker – Professor Adjunto do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenador do Serviço de Psiquiatria do HC-UFMG. Doutor pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, CAPS/DAAD.

00311_Revista.08 10/6/05, 3:49 PM52

Page 2: A reforma proposta por GRIESINGER

A R Q U I V O S B R A S I L E I R O S D E P S I Q U I AT R I A , N E U R O LO G I A E M E D I C I N A L E G A L — V O L 9 9 N º 0 3 ; J U L / A G O / S E T 2 0 0 5 53

INTRODUÇÃOGriesinger se insere, de forma modelar, no período em que predominava uma visão unitária dos transtornos mentais. Concebia os transtornos mentais em um contínuo, desde a normalidade até os estados mentais mais graves. Difun-diu amplamente essa visão em sua ex-pressiva obra, especialmente em seus tratados.1,2 Apoiava-se em observações clínicas suas e de vários autores, em uma hipótese fisiológica e na psicolo-gia associacionista de Herbart.3,4,5 Sua concepção fisiológica era simultanea-mente psicológica, pois a fisiologia do cérebro seria a própria psicologia.3,4 A partir de uma analogia com as funções aferentes, centrais e eferentes da me-dula espinhal, estipulou um processo fisiológico cerebral – as ações reflexas psíquicas – cuja disfunção explicava os transtornos mentais.6 Estes poderiam ser primários e predominantemente afetivos ou secundários com compro-metimento maior da inteligência e ir-reversíveis. Reconhecia que a maioria das doenças mentais era funcional, sem achado anatomopatológico. A melan-colia seria a expressão de um alenteci-mento dos processos fisiológicos (até certo ponto normal na reflexão), em que os sentimentos fluem com muita dificuldade da ideação para a ação. Já na mania ocorreria o contrário, uma espécie de convulsão. Nos estados de enfraquecimento haveria perda do tô-nus psíquico e conseqüentemente uma frouxidão dos nexos associativos: des-troços após a tormenta afetiva.1,2,6,7,8

Muitos dos grandes médicos nota-bilizaram-se não apenas por suas con-cepções ou contribuições científicas, mas pelo intuito de implementá-las na prática assistencial. Na psiquia-tria, a começar pela notável reforma de Pinel. Pouco difundida, no entanto, é a reforma da assistência psiquiátrica proposta por Griesinger, talvez por ela ter sido muito avançada para sua épo-ca, de modo que não foi possível sua implementação (também, no clímax da disputa por sua implementação, Grie-singer adoeceu e logo veio a falecer). No entanto, muito do que preconizava tem sido efetivado mais recentemente. É possível que o confronto gerado en-tre a psiquiatria médica universitária, a qual Griesinger bem representava,

e a psiquiatria administrativa e insti-tucional tenha prejudicado ambos os lados por longo tempo.7

É admirável como Griesinger, em seu período relativamente curto de vida (1817 a 1868), além da exuberân-cia de sua contribuição científica, ainda tenha se dedicado à psiquiatria social de forma tão promissora. Faremos, a seguir, um apanhado do que consistia sua proposta de reforma da assistência psiquiátrica. Basear-nos-emos em tex-tos já citados e em outros específicos sobre esse tema.9,10,11

A PROPOSTA REFORMADORA DE GRIESINGER“Já que a alienação mental é uma doença, e na verdade uma doença do cérebro, logo não pode haver para ela nenhum outro estudo mais apropriado que o médico. A anatomia, fisiologia e patologia do sistema nervoso e o conjunto das patologias e terapias especiais constituem os mais indis-pensáveis embasamentos para o mé-dico alienista.”12

Esse citado de Griesinger espelha sua firme postura “medicocêntrica”. Para ele, doença mental é doença do cérebro. Como, então, associá-lo à re-forma psiquiátrica, pressupondo esta uma abordagem moderna direcionada a questões psicossociais familiares e co-munitárias? Como avaliar a proposta desse longínquo autor?

Fato é que Griesinger se dedicou, com afinco, a uma proposta de desen-volvimento da assistência psiquiátrica com muitas semelhanças com as re-formas atuais.

Antes de adentrarmos em sua re-forma assistencial, algo mais deve ser esclarecido sobre a concepção psiquiá-trica do autor. Devemos enxergar seu aforismo “doenças mentais são doenças do cérebro” inserido no contexto de sua época na Alemanha. Ali, a psiquiatria vinha de uma concepção teológica, mo-ral e filosófica. Reinava, entre outras, a discussão sobre se a alma poderia adoe-cer. Em meio a isso, alguns propunham a origem das doenças mentais nos mais diversos acometimentos corpóreos, por exemplo, a melancolia como acometi-mento dos gânglios abdominais. Por-tanto, não há como negar que a afir-mação de Griesinger representou um

avanço no entendimento das doenças mentais. E é bom lembrar que, mesmo muito antes de Griesinger, em várias épocas da história da medicina – vide Hipócrates –, o cérebro foi considerado o sítio da mente e das alterações men-tais. No entanto, o aforismo paradig-mático de Griesinger encontra campo fértil no processo científico conjuntu-ral de sua época, o método científico natural, com seqüência histórica direta até nossos dias.

Numa primeira vista, o autor susci-ta interpretação enganosa: parece tra-tar-se de autor extremamente “bioló-gico” ou organicista. Porém, vejamos este outro citado seu: “Consideramos as causas psíquicas as mais freqüentes e produtivas fontes de alienação”. De fato, como é nosso consenso atual, todos os múltiplos fatores causais de doença mental, também os psíquicos, atuam de alguma forma no cérebro. Griesinger fala da “história interior da individua-lidade psíquica”, de “cisão do eu” e de “violenta luta interior” no sentido de conflitos. Reconhecia, inclusive, pro-blemas familiares que poderiam in-fluir na primeira infância e resultar em futuro transtorno mental. Não se pode dizer, portanto, que Griesinger era puramente organista, como de resto a psiquiatria não o é. Correto é considerá-lo em posição de equilíbrio entre o orgânico e o psíquico.

Griesinger era monista, defendia a unidade organo-psíquica, ou entre corpo e alma, considerando as funções psíquicas funções fisiológicas – igual-mente psicológicas – do cérebro. Já se empregava o termo “funcional” para aqueles quadros em que não havia evi-dência de alteração organo-cerebral ou sintomática, com comprometimento mais propriamente fisiológico.

Nessa ótica, preservados os aspec-tos psicológicos e existenciais envolvi-dos na doença mental, intrinsecamen-te ligados à psiquiatria enquanto via entre ciências naturais e humanas, já não é tão surpreendente que ele pos-sa ter formulado proposta que pudes-se contemplar aspectos essenciais da atual psiquiatria social.

Vale menção à assistência psiquiá-trica prestada à época. Embora haja relatos de uma assistência hospitalar especializada para doentes mentais

00311_Revista.08 10/6/05, 3:49 PM53

Page 3: A reforma proposta por GRIESINGER

54 V O L 9 9 N º 0 3 ; J U L / A G O / S E T 2 0 0 5 — A R Q U I V O S B R A S I L E I R O S D E P S I Q U I AT R I A , N E U R O LO G I A E M E D I C I N A L E G A L

desde a antigüidade, ao menos sim-bolicamente considera-se a época de Pinel após a revolução francesa, em torno de 1800, marco da instituição da especialidade médica psiquiátri-ca. Griesinger enaltecia o aspecto te-rapêutico dessa nova abordagem e o interesse médico mais próximo pelas doenças mentais. Segundo Griesinger, os pacientes vivenciam nos hospitais psiquiátricos uma primeira noção de liberdade, igualdade e fraternidade. Tentativas de aplicação desses dita-mes também existiam de forma mais aberta, extramuros, como no princí-pio do non-restraint e do open door na Inglaterra, em torno de 1840. Na Ale-manha, havia nessa época um hospital psiquiátrico em que os funcionários, inclusive os médicos, participavam conjuntamente em várias atividades com os pacientes, como em jogos e às refeições. Funcionários e pacientes re-sidiam juntos. Familiares de ambos os lados participavam das atividades. Im-pressionante era a experiência extra-hospitalar em Gheel, Bélgica, onde cerca de mil pacientes residiam com famílias. Griesinger era muito bem informado e chegou a visitar várias dessas instituições, mencionando-as em seus artigos. “Minhas palavras não resultam de lucubrações teóricas, mas de experiência”, dizia.

Em que pesem os avanços huma-nitários e libertadores, a medicina en-contrava dificuldades para propiciar uma igualdade dos pacientes psiqui-átricos com os demais doentes, graças ao arraigado medo ante o inusitado das doenças mentais e à vinculação destas, àquela época, a uma noção de degene-ração. A sociedade, assim, incentivava o isolamento dos pacientes. Em com-pensação, erigiam-se construções lu-xuosas, “palacianas” (Griesinger), em muitos casos consideradas monumen-tos da humanidade, para servirem de hospitais psiquiátricos. Basta lembrar-nos de alguns de nossos primeiros hos-pitais psiquiátricos, como o hospital colônia de Barbacena, Minas Gerais, com sua bela fachada e, na época de sua construção, certamente monumental para a cidade. Também o Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte, possui bela arquitetura, assim como outras insti-tuições do gênero no Brasil.

De forma impressionante, ergue-se Griesinger, com base em seus avan-çados conhecimentos psiquiátricos, contra esse estado de coisas. Preocu-pou-se com a inserção dos pacientes na sociedade, questionou vários aspectos da hospitalização e considerou as in-fluências institucionais e sociais nos transtornos mentais: é o que sustenta a psiquiatria social surgida recente-mente após a segunda guerra!

Suas exposições iniciais a respeito de uma reforma assistencial se referem à questão dos hospitais para pacientes curáveis versus os para os incuráveis, que existiam na época. Argumentava que esses conceitos de curável e incu-rável eram difíceis de aplicar e que, por freqüente falta de vaga nos hos-pitais para assistência aos incuráveis, acabavam os hospitais para curáveis superlotados e inacessíveis à popula-ção deles necessitada. Propôs hospitais “descentralizados” (Griesinger), em ci-dades, próximos ao meio dos pacien-tes, para os quadros clínicos que ele preferiu denominar de transitórios, reservando aqueles hospitais maio-res e mais distantes para tratamentos prolongados, para os pacientes crônicos necessitados desse tratamento.

Propôs uma série de melhoramen-tos técnicos e inovadores, tanto para o hospital de agudos como para o de crônicos. Suas propostas se baseavam em dados concretos, inclusive quanto a custos. Digno de nota, o número de internados na Europa àquela época era da ordem de 300.000 pacientes!

Para que hospitais descentralizados nas cidades? Os ganhos seriam muitos, segundo Griesinger:

– Os pacientes teriam acesso ime-diato ao hospital e a uma assistência psiquiátrica quando necessária.

– O psiquiatra do paciente teria muito mais condições de obter infor-mações sobre o meio familiar e social do paciente. Griesinger advogava que toda demanda de internação deveria ser acompanhada da visita de médico assistente à residência do paciente, o que enriqueceria a anamnese e respal-daria ou não a decisão da internação.

– De modo inverso, a alta poderia ser testada gradualmente, ou seja, com períodos anteriores de saídas do hospital, até que o médico se sentisse

seguro para dar a alta. Para Griesin-ger, essa possibilidade de contato mais próximo do paciente agudo com seu meio, com amigos e familiares, pro-porcionada pelos hospitais urbanos, era relevante para o tratamento. Isso se contrapunha a uma noção arraiga-da de que o paciente com transtorno mental se beneficiaria de um longo isolamento. Griesinger era absoluta-mente contrário a uma massificação do tratamento, a um mesmo remédio para todos os casos. Argumentava que os tratamentos deveriam ser tão varia-dos quanto a variedade dos diversos quadros clínicos.

Esses hospitais deveriam ser pe-quenos, para acompanhamento mais intensivo e individual, de 60-80 a, no máximo, um pouco mais de 100 pa-cientes, conforme o tamanho da cidade. Seu aspecto deveria ser o de uma casa usual, ou de várias casas, sem luxo ou fachadas especiais. Por motivos econô-micos e de tranqüilidade ambiental, seriam mais apropriados na perife-ria. Prescindiriam do grande arma-mentário arquitetônico e funcional dos hospitais tradicionais, como área de trabalho, igreja, grande refeitório, pátios enormes, salas de jogos e de tea-tro, residência do diretor etc. Apenas médicos com boa formação psiquiá-trica poderiam ser responsáveis por tais hospitais.

No âmbito dos hospitais urbanos para agudos, incentivava a criação de clínicas psiquiátricas vinculadas às universidades, adaptadas ao ensino e relevantes para a boa formação do mé-dico, tanto do generalista na graduação quanto a do especialista. Enfatizava a importância das doenças psiquiátricas na medicina. Num de seus textos, es-creve que a construção de uma clínica psiquiátrica universitária era tarefa re-lativamente fácil, que talvez custasse apenas a metade do que um hospital de obstetrícia e ginecologia, e indaga: “esta deveria ser uma especialidade tão mais importante que a psiquiatria?” Ressaltava que essas clínicas psiquiá-tricas deveriam se localizar nas imedia-ções das demais clínicas universitárias, e não isoladas, para fins assistenciais – vide os quadros orgânicos agudos – e de ensino. Em sua gestão em Zurique e no planejamento do Burghölzli, mas

00311_Revista.08 10/6/05, 3:49 PM54

Page 4: A reforma proposta por GRIESINGER

A R Q U I V O S B R A S I L E I R O S D E P S I Q U I AT R I A , N E U R O LO G I A E M E D I C I N A L E G A L — V O L 9 9 N º 0 3 ; J U L / A G O / S E T 2 0 0 5 55

especialmente em Berlim, Griesinger procurou implementar os princípios do hospital para agudos com vistas ao ensino.

Quanto ao hospital geral, admitia que certos quadros clínicos psiquiá-tricos poderiam ser adequadamente tratados neles. Criticava a internação em hospital geral daqueles pacientes fisicamente íntegros necessitados de trabalho ou atividade ao ar livre: “(...) suas forças físicas inutilizadas se exercitam em gritos e destruição! Eles mesmos estão no inferno, e perturbam profundamente a ordem e harmonia de tais casas”. Griesinger era adepto do non-restraint, inaugurado por Co-nolly na Inglaterra, sustentando que a liberdade de movimentos – ausên-cia de celas, camisas de força ou outras contenções físicas – era benéfica para o comportamento do paciente.

As internações transitórias leva-vam de poucos meses a um ano, ex-cepcionalmente pouco mais de um ano, período suficiente para defini-ção entre a alta e o encaminhamento a tratamento prolongado.

Várias foram as propostas para os hospitais de crônicos, conforme o grau de acometimento desses pacientes. A mais tradicional seria a da colônia agrí-cola. Como a maioria da população tra-balhava na terra, essa era uma atividade a que os pacientes se dedicavam com in-teresse. Havia relatos de que as pessoas da cidade também logo se interessavam por essa atividade e se beneficiavam. A idéia não era a de alojar todos esses pacientes crônicos numa só edificação ou em enfermarias, mas muitos deles residiriam no campo em pequenos lares próximos à edificação central, próximos ao hospital propriamente dito. Parte dos custos com o tratamento estaria cober-ta com a produção. Mas Griesinger foi muito além. Em síntese, propunha que o hospital psiquiátrico para crônicos se transformasse gradualmente numa vila, onde as famílias de funcionários e, nas imediações de alguma cidade, famílias de trabalhadores passassem a abrigar os pacientes aptos a exercer alguma atividade laborativa, que auxi-liassem na renda familiar (além disso, as famílias poderiam ter compensações financeiras do município ou do estado). Era o que denominava assistência em

liberdade ou livre. Em qualquer even-tualidade, em caso de crise, haveria o respaldo do hospital psiquiátrico. Este, por meio da assistência em liberdade, já não permaneceria superlotado. Em parte, Griesinger se apoiava no exemplo de Gheel. Mas em Gheel os pacientes eram pré-selecionados, pois havia um regulamento que impedia pacientes realmente incontroláveis ou agres-sivos de pertencerem à comunidade, donde a necessidade de apenas uma enfermaria para dar cobertura às cri-ses (ainda assim, alguns pacientes re-corriam à enfermaria por mais tempo que o desejável). Por isso, Griesinger sustentava que o hospital era necessá-rio como retaguarda para os casos gra-ves em crise ou para alguns pacientes impossibilitados de compartilhar uma assistência em liberdade.

Já existiam os hospitais privados para as classes mais abastadas. O siste-ma de Griesinger referia-se à assistên-cia pública. Considerava procedimento incorreto a possibilidade de financia-mento pelo estado do tratamento em hospital privado, no intuito de suprir eventual carência de leitos, pois os hos-pitais privados deveriam ser indepen-dentes e competir entre si pela oferta de um melhor tratamento.

Se ainda resta alguma dúvida sobre o avançado da proposta e do pensamen-to de Griesinger, vejamos alguns cita-dos de seus textos sobre a assistência psiquiátrica:

– “Quando a ciência traz novos pontos de vista, quando se eviden-ciam urgentes necessidades que não podem ser satisfeitas com os recursos da atual assistência pública, então não se permite – e este é o caso – ignorar ou negar as necessidades, senão que os recursos devem ajustar-se às ne-cessidades.”

– “O homem, também o assim chamado doente mental, não é uma máquina viva, cujas funções estariam consumadas com a satisfação de ali-mento ou bebida e escalvado traba-lho mecânico; ele tem inclinações, tem interesses, tem coração. Bem que em muitos transtornados psíqui-cos a mente sucumbiu à noite, o afeto se apagou, a vontade fraquejou, mas noutros ainda permanecem existen-tes essas condições, mesmo que apenas

como ardentes centelhas sob as cinzas. São preciosas centelhas!”

– “(...) já que um certo número [de pacientes] não pode gozar mais de ne-nhuma liberdade, torna-se a privação da liberdade regra geral. Eu não penso que as pessoas doentes mentais devam ter sempre a mesma liberdade que as sadias, mas eu penso que deveria ser-lhes concedida aquela liberdade que é suportada com segurança e bem-estar pela sociedade civil e pelo próprio es-tado do paciente, donde penso que a muitos dentre eles possa ser dada mui-to mais de uma forma de liberdade or-denada; tem, pois, que ser dada, mais do que se tende a aceitar atualmente na Alemanha e do que hoje possuem. A razão disso está não apenas em que é de todo uma injustiça limitar a liberdade de um ser doente além do estritamente necessário, senão que, essencialmente, pelo fato das faculdades mentais sa-dias, cujas preservação e atividade são prioridades para uma verdadeira vida humana nesses casos crônicos, atrofia-rem e submergirem em anos de disci-plina de caserna, num modo de vida mecanizado e num sempre estar junto do doente com tantos outros doentes, como vemos nas centenas de pacientes dos hospitais de crônicos. Porque essas faculdades acontecem apenas, preci-samente, ante uma certa quantidade de liberdade.”

– “(...) muitos pacientes suportam mais liberdade do que se supõe (...) Mas se eles podem suportá-la, então tam-bém têm que tê-la.”

– “Existem também influências ainda mais benéficas que as das colô-nias e tais são (...) encontrar assistência na família, a qual é a apropriada e a única correta para uma certa parte dos alienados. Ela garante o que o hospital mais esplendoroso e melhor adminis-trado do mundo nunca pode oferecer: a plena existência entre saudáveis, o retorno de um meio artificial e mo-nótono para um meio social natural, o benefício da vida familiar. Doentes tranqüilos, totalmente inofensivos, ainda receptivos para o que aqui se trata, ainda não totalmente alheios à vida, ainda capazes de conservar a maioria das formas saudáveis de existência, no geral mais mulheres do que homens, são especialmente

00311_Revista.08 10/6/05, 3:49 PM55

Page 5: A reforma proposta por GRIESINGER

56 V O L 9 9 N º 0 3 ; J U L / A G O / S E T 2 0 0 5 — A R Q U I V O S B R A S I L E I R O S D E P S I Q U I AT R I A , N E U R O LO G I A E M E D I C I N A L E G A L

indicados para este tipo de assistên-cia livre e dela urgentemente neces-sitados”. Lembramos que, aqui, não se trata necessariamente da própria família do paciente, mas daquelas em comunidades adjacentes a um hospital psiquiátrico para tratamento prolon-gado em assistência livre.

Mas Griesinger não era contrário, de modo algum, ao hospital psiquiá-trico. Antes um hospital psiquiátrico qualquer que nenhum, dizia. Mais al-guns citados nesse sentido:

– “Vê-se que não faltam doentes para os quais uma internação num hospital ‘fechado’ é reconhecida como benéfica e inteiramente necessária, que pessoas sensatas não devem falar de ‘destruição’ (!) dos hospitais, que tais hospitais fechados devem ser pronta-mente demandados onde não existem, como a mais urgente necessidade.”

– “(...) não há hospital realmente ruim – onde o médico é bom.”

DISCUSSÃO

A história da psiquiatria é antes uma história de idéias que de descobertas. Pouca coisa tor-

nou-se de tudo obsoleta e em prati-camente todas as idéias há fundo de verdade. Os conhecimentos parecem avançar em espiral, com certas idéias mais em evidência em dada época, ten-dendo a ser cada vez mais elaboradas. Mas Griesinger adiantou-se muito no tempo! Ante tais leituras da história, prevalecem os sentimentos de admira-ção, respeito e humildade. Há pontos mais sensatos e exeqüíveis nas propos-tas de Griesinger do que em muitas das alvoroçadas propostas atuais. É certo que muito do que defendia tinha fun-damento. Note-se que ainda não tinha surgido uma série de concepções ou de conhecimentos considerados, por muitos, básicos para uma tal reforma, como o existencialismo e a psicanálise, assim como a realidade social de então era muito diversa. Ou devemos negar a profundidade de seus princípios e propostas? Havia, sim, a psiquiatria. É relevante constatar que a psiquiatria, por si, chegou a essas propostas.

Não há como negar que deva ser oferecida ao doente mental toda uma gama de recursos, conforme a notória variabilidade e complexidade de cada

caso: assistência prontamente disponí-vel para crises, assistência para crôni-cos, assistência para crônicos em crise, para meio crônicos e para meio em cri-se, para pobres e ricos, para abandona-dos etc. Assistência precoce e preven-tiva, assim como assistência reabilita-dora em vários aspectos. Pensar, como Griesinger, em distâncias geográficas e conseqüentemente em densidade de-mográfica, assim como acrescentaría-mos as peculiaridades culturais. Pen-sar, como Griesinger, na viabilidade econômica da proposta. Pensar, como Griesinger, na liberdade do paciente. Para alguns, mesmo hoje e por muito tempo ainda, não é ou será viável um tratamento em plena liberdade, pois requerem cuidados intensivos diutur-nos. Mas é claro que cada qual deve ter toda a liberdade possível para si.

E qual a razão, que se observa atual-mente, para tanta objeção ao hospital psiquiátrico? É indicado especialmente para as crises, tanto crises de agudos como de crônicos, além de sempre ter sido útil ao ensino da medicina e da especialização em psiquiatria. Diria que são até econômicos, por lidarem com clientela em estado extremamen-te delicado, com equipe especializada e habituada a isso. Nada obsta que al-guns pacientes crônicos mais se bene-ficiem de asilos bem cuidados, assim como outros de lares abrigados ou, de preferência, do convívio com a pró-pria família, associados a atividades em centros de atenção psicossocial, a programa de saúde da família, a parti-cipação em organizações não-governa-mentais etc., priorizando-se a melhor relação custo-benefício e a gravidade dos transtornos. Em vez da proposta de convívio com famílias operárias, como propunha Griesinger, isso equivaleria hoje a condições de trabalho facilitado para muitos dos portadores de trans-torno mental.

Muitos já lidaram e lidam com a assistência ao portador de transtorno mental, tarefa das mais relevantes ao considerarmos a elevada prevalência e morbidade desses transtornos, e suas conseqüências familiares, sociais e eco-nômicas. Que o exemplo de Griesin-ger nos seja útil nesse caminho difícil e tortuoso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Griesinger W. Die Pathologie und

Therapie der psychischen Krankheiten. 1. ed. Wieden: Braunschweig; 1845.

2. Griesinger W. Die Pathologie und Therapie der psychischen Krankheiten. 2. ed. Wieden: Braunschweig; 1861.

3. Kuhn R. Griesingers Auffasung der psy-chischen Krankheiten und seine Bedeutung für die weitere Entwicklung der Psychiatrie. Bibl Psychiatr Neurol 1957;(100):41-67.

4. Bodamer J. Zur Phänomenologie des geschichtlichen Geistes in der Psychiatrie. Nervenarzt 1948;19(7):299-310.

5. Watson RI. The great psychologists. 4. ed. New York: J.B. Lippincott Co; 1978. Available from: URL: http://educ.southern.edu/tour/who/pioneers/herbart.html

6. Griesinger W. Ueber psychischen Reflexactionen. (Mit einem Blick auf das Wesen der psychichen Krankheiten). In: Wunderlich CA. Wilhelm Griesinger’s Gesammelte Abhandlungen. Berlin: Hirschwald; 1872. p. 3-45.

7. Marx O. Wilhelm Griesinger and the his-tory of psychiatry: a reassessment. Bull Hist Med 1972;46(6):519-44.

8. Janzarik W. Themen und Tendenzen der deutschprachigen Psychiatrie. Berlin: Heidelberg; New York: Springer-Verlag; 1974.

9. Griesinger W. Die Pathologie und Therapie der psychischen Krankheiten. 2. ed. Wieden: Braunschweig; 1861. p. 520-38.

10. Griesinger W. Über Behandlung der Geisteskranken und über Irrenanstalten. a) Bemerkungen über das Irrenwesen in Würtemberg. b) Über Irrenanstalten und deren Weiterentwickelung in Deutschland. c) Weiteres über psychiatrische Kliniken. d) Die freie Behandlung. In: Wunderlich CA. Wilhelm Griesinger’s Gesammelte Abhandlungen. Berlin: Hirschwald; 1872. p. 254-331.

11. Schrenk M. Griesingers neuropsychia-trische Thesen und ihre sozialpsychiatrisch-en Konsequenzen (zu Wilhelm Griesingers 100. Todestag). Nervenarzt 1968;39(10):441-50.

12. Griesinger W. Die Pathologie und Therapie der psychischen Krankheiten. 2. ed. Wieden: Braunschweig; 1861. p. 10.

Endereço para correspondência

Maurício Viotti DakerAv. Prof. Alfredo Balena, 190, sl. 406030130-100 Belo Horizonte, MG, BrasilE-mail: [email protected]

00311_Revista.08 10/6/05, 3:49 PM56