A Técnica Vocal No Preparo Do Ator

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE ARTE DRAMÁTICA DOUGLAS CARVALHO DOS SANTOS A TÉCNICA VOCAL DO CANTOR APLICADA AO TRABALHO DO ATOR Uma reflexão a partir da preparação vocal do espetáculo “Docemente Pornográficos” PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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Dissertação

Transcript of A Técnica Vocal No Preparo Do Ator

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES

    DEPARTAMENTO DE ARTE DRAMTICA

    DOUGLAS CARVALHO DOS SANTOS

    A TCNICA VOCAL DO CANTOR APLICADA AO TRABALHO DO ATOR

    Uma reflexo a partir da preparao vocal do espetculo Docemente Pornogrficos

    PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE ARTES

    DEPARTAMENTO DE ARTE DRAMTICA

    DOUGLAS CARVALHO DOS SANTOS

    A TCNICA VOCAL DO CANTOR APLICADA AO TRABALHO DO ATOR

    Uma reflexo a partir da preparao vocal do espetculo Docemente Pornogrficos

    Trabalho de Concluso de Curso

    de Licenciatura em Teatro

    Prof. Orientadora: Celina Nunes de Alcntara

    PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011

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    SUMRIO

    Introduo_________________________________________________________________4

    1. Buscando limites para pensar as funes ator e cantor_____________________________5

    1.1 Primeiras investigaes_________________________________________________5

    1.2 A regulamentao do trabalho do ator e do cantor____________________________6

    1.3 Panorama histrico sobre o ator e o cantor__________________________________8

    2. A formao de ator e de cantor na perspectiva do proponente desta pesquisa__________13

    2.1 A experincia que precedeu a formao acadmica__________________________13

    2.2 A experincia acadmica no Curso de Teatro (UFRGS)______________________14

    2.3 A juno ator e cantor numa experincia artstica___________________________14

    2.4 As experincias docentes: o constante trabalho com a expresso vocal___________15

    3. Reflexes sobre uma prtica: a preparao vocal do espetculo Docemente

    Pornogrficos___________________________________________________________18

    3.1 O Speech Level Singing, de Seth Riggs____________________________________18

    3.2 Experimentos vocais na preparao de um espetculo________________________19

    3.3 A prtica vocal nos ensaios do espetculo__________________________________20

    3.4 Mudanas___________________________________________________________22

    3.5 Reflexes a partir do olhar docente_______________________________________23

    Consideraes Finais________________________________________________________27

    Referncias________________________________________________________________28

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    INTRODUO

    Este Trabalho de Concluso de Curso buscou analisar o processo de preparao vocal,

    por mim proposto, do elenco de Docemente Pornogrficos, espetculo da Cia. de Teatro

    Gato&Sapato, no qual tambm desempenho as funes de ator e produtor.

    Devido a minha formao artstica como ator e cantor, minha experincia prvia como

    professor de expresso vocal e meu interesse particular em voz para o palco, fui convidado

    pelo diretor Leandro Ribeiro a desenvolver um trabalho vocal com meus colegas de elenco, de

    forma a prepar-los para o trabalho com textos no somente dramticos, em dilogos, bem

    como em prosa e poesia, e, que, alm disso, possibilitasse a interpretao vocal de diferentes

    personagens a serem vividos por um mesmo ator. O trabalho artstico de Docemente

    Pornogrficos tambm previa o trabalho com a voz cantada para alguns atores.

    Partindo de formaes vocais diversas, o elenco desse espetculo teve contato com a

    tcnica Speech Level Singing, criada por Seth Riggs, e aprendida por mim durante minha

    formao artstica. Ao ministrar os exerccios durante os ensaios com os atores do referido

    espetculo, pude observar os seus processos de aprendizagem da tcnica e de que forma ela

    contribuiu para a aquisio de uma voz cnica, preparada para as demandas da pea teatral em

    questo.

    Para poder falar de voz cantada e falada em um espetculo teatral, propus discorrer

    sobre a relao ntima existente entre o trabalho do ator e do cantor, que, na prtica artstica

    de suas funes, rompem os limites de seus ofcios, integrando os conhecimentos especficos

    da rea musical e teatral. Essa pesquisa tambm contempla momentos histricos especficos

    da prtica teatral euro-americana, apresentando um breve panorama abordando tempos e

    espaos nos quais os trabalhos de ator e de cantor se fundiram.

    Por fim, este trabalho tambm contempla a reflexo sobre o exerccio especfico de

    docncia proposto, a partir da anlise e reflexo das mudanas provocadas no grupo atravs

    desta preparao vocal para o espetculo em questo. Assim, discorro sobre a prtica

    pedaggica experienciada junto ao elenco do espetculo Docemente Pornogrficos que

    estabeleceu uma relao entre mim e meus colegas de espetculo, tanto no que refere a

    criao dos personagens, como no modo de emitir textos diversos em voz falada e cantada.

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    1. Buscando limites para pensar as funes de ator e de cantor

    Para empreender o trabalho de anlise a que me propus, senti primeiro a necessidade

    de tentar delimitar algumas ideias em torno das duas atividades artsticas que so a base da

    minha reflexo. A tarefa de tentar delimitar ideias em torno dessas duas atividades artsticas, a

    saber: a do ator e a do cantor, precisa, a meu ver, englobar diversos aspectos, procurando

    atender a maior parte das esferas nas quais o assunto discutido e experienciado. Portanto,

    para falar de ator e de cantor, as informaes devem ser originrias de vrias fontes para que

    possamos ter uma idia mais global, abrangente e com um mnimo de preciso e justeza.

    1.1 Primeiras Investigaes

    A primeira fonte utilizada foi o dicionrio, popular instrumento de busca dos

    significados das palavras. Segundo o Dicionrio Aurlio mais recente, o ator considerado

    aquele que representa em peas teatrais, filmes e outros espetculos (2010, p. 27), enquanto

    o cantor aquele que canta por profisso (2010, p. 45). J a partir dessas simples

    definies, pode-se estabelecer uma relao entre as duas atividades a partir daquilo que se

    conhece das prticas de tais ofcios uma vez que um cantor tambm representa em

    espetculos, se tomarmos o exemplo da pera, onde ele interpreta personagens, contando

    uma histria atravs das letras das msicas. E da mesma forma, um ator, por vezes tambm

    canta por profisso, no somente no teatro musical, como, tambm, nos mais diferentes

    espetculos de teatro nos quais, no raro, pode-se ver um ator entoando uma cano.

    Partindo para um enfoque mercadolgico dos ofcios de ator e de cantor, para tentar

    delimit-los, utilizei a Classificao Brasileira de Ocupaes (CBO), uma publicao que o

    Ministrio do Trabalho e Emprego disponibiliza sociedade e que reconhece, nomeia e

    codifica as ocupaes do mercado de trabalho brasileiro, descrevendo suas caractersticas.

    Utilizei a publicao da nova Classificao Brasileira de Ocupaes, de 2002, que veio

    substituir a anterior, publicada em 1994, utilizando uma nova metodologia de classificao e

    fazendo a reviso e atualizao completas de seu contedo. Sua atualizao e modernizao

    se devem s profundas mudanas ocorridas no cenrio cultural, econmico e social do pas

    nos ltimos anos, implicando alteraes estruturais no mercado de trabalho.

    Pois bem, a ocupao de ator est classificada sob o nmero 2625-05, sendo que esses

    profissionais esto descritos como aqueles que interpretam e representam um personagem,

    uma situao ou idia, diante de um pblico ou diante das cmeras e microfones, a partir de

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    improvisao ou de um suporte de criao (texto, cenrio, tema, etc) e com o auxlio de

    tcnicas de expresso gestual e vocal (2002, p. 409). J os cantores esto classificados sob o

    nmero 2627-05, como msico intrprete cantor, e, segundo a CBO, so aqueles que

    interpretam msicas por meio de instrumentos ou voz, em pblico ou em estdios de

    gravao e para tanto aperfeioam e atualizam as qualidades tcnicas de execuo e

    interpretao, pesquisam e criam propostas no campo musical (2002, p. 413). Tomando

    estes sentidos explicitados pela CBO, possvel desde j afirmar que, nas produes

    contemporneas de espetculos, atores exercem o ofcio do cantor e, em determinadas

    situaes, cantores trabalham como atores.

    Ainda de acordo com a CBO, verifiquei que no h exigncia de escolaridade

    determinada para o desempenho da ocupao de ator. Porm, seguindo tendncia

    profissionalizao na rea das artes, desejvel que a sua formao mnima se d por meio de

    cursos profissionalizantes de teatro, com carga horria entre duzentas e quatrocentas horas.

    na prtica, junto com um grupo com o qual possa trocar experincias, exercitando o

    trabalho, que alguns atores fazem sua formao. Mas h tambm aqueles que frequentam

    escolas que oferecem cursos livres, ou oficinas avulsas ou ainda cursos superiores de teatro.

    Em suma, a formao dos atores muita ecltica e diversa, entretanto, deve dar conta de um

    nmero mnimo de horas de trabalho para que este possa receber o reconhecimento e a

    autorizao dos rgos que fiscalizam a pratica deste oficio.

    O processo de formao dos msicos e intrpretes tambm bastante heterogneo,

    podendo ocorrer em conservatrios musicais, junto a professores especialistas ou em cursos

    de nvel superior em msica, de forma isolada ou cumulativamente. H, tambm,

    profissionais autodidatas, alguns dos quais se especializam no exerccio das suas atividades,

    no mercado de trabalho.

    Por fim, a CBO ainda analisa aspectos relativos s condies gerais de exerccio da

    profisso, afirmando que apenas uma pequena parcela dos atores e cantores profissionais

    empregada, trabalhando para empresas privadas, ou fazendo parte de companhias de teatro ou

    msica subsidiadas pelo governo, sendo a grande maioria composta por profissionais

    autnomos.

    1.2 A regulamentao do trabalho do ator e do cantor

    Embora a CBO seja fruto de uma extensa pesquisa oficial que procura abranger todos

    os ofcios praticados no Brasil, seus efeitos de uniformizao so de ordem administrativa e

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    no se estendem s relaes de trabalho. A regulamentao da profisso, diferentemente da

    CBO, realizada por meio de lei, cuja apreciao feita pelo Congresso Nacional, por meio

    de seus Deputados e Senadores, e levada sano do Presidente da Repblica.

    No caso da profisso de ator, ela encontra-se descrita no quadro anexo do Decreto n

    82.385, de 05 de outubro de 1978, que regulamenta a Lei dos Artistas e Tcnicos em

    Espetculos de Diverses, esta classificada sob o nmero 6.533, em 24 de maio de 1978.

    Nele, o ator aquele que cria, interpreta e representa uma ao dramtica, utiliza-se de

    recursos vocais, corporais e emocionais, com o objetivo de transmitir, ao espectador, o

    conjunto de idias e aes dramticas propostas. Portanto, segundo a lei, notamos o uso da

    voz como um recurso de expresso do ator, assim como sabemos que tambm o no trabalho

    do cantor, que usa a voz no s como um instrumento musical como tambm para transmitir

    ao seu espectador as idias e aes dramticas contidas na letra das canes.

    Segundo o artigo n 6 da Lei 6.533, de 24 de maio de 1978, o exerccio das profisses

    de Artista e de Tcnico em Espetculos de Diverses, na qual se inclui a funo de ator,

    requer prvio registro no Ministrio do Trabalho e Emprego, o qual ter validade em todo o

    territrio nacional, e que pode ser adquirido atravs de diploma de curso superior na rea, ou

    certificado de cursos reconhecidos na forma da Lei, ou ainda atestado de capacitao

    profissional fornecido pelo sindicato representativo da categoria, que concede essa permisso

    segundo critrios prprios, visando equivalncia da formao do requerente s do profissional

    com formao acadmica ou tcnica.

    J a Lei n 3.857, de 22 de dezembro de 1960, que dispe sobre a regulamentao do

    exerccio da profisso de msico, diz que esses profissionais s podero exercer a profisso

    depois de regularmente registrados na Ordem dos Msicos do Brasil, sendo que esta concede

    o registro de acordo com os mesmos termos da lei anteriormente citada. A Lei n 3.857 ainda

    diz que ao cantor incumbe privativamente: (...) participar de espetculos de pera ou

    operetas, que, segundo o Dicionrio Aurlio, definido como um drama inteiramente

    cantado, com acompanhamento de orquestra, ou intercalado com dilogos falados, ou com

    recitativos acompanhados por um instrumento de teclado (2010, p. 167), ou seja uma

    dramaturgia apresentada no palco atravs das falas (cantadas ou no) dos personagens da

    trama, aproximando, portanto, o trabalho do cantor ao do ator.

    No entanto, na prtica, ainda no h uma fiscalizao efetiva da regularidade de ambas

    as profisses, salvo alguns estados como Rio de Janeiro e So Paulo, por exemplo, onde h

    uma maior concentrao de artistas, tanto atores como cantores, e a fiscalizao mais eficaz.

    No estado onde resido e trabalho, o Rio Grande do Sul, ainda h pouca exigncia quanto ao

    registro profissional de atores e cantores, sendo necessria a sua apresentao em algumas

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    licitaes pblicas para financiamento de projetos culturais e ocupao de teatros pblicos

    para apresentao de espetculos.

    1.3 Panorama histrico sobre o ator e o cantor

    Na tentativa de compreender e, ao mesmo tempo, delimitar melhor esta duas prticas

    artsticas que tematizam este trabalho, pesquisei sobre a histria do teatro e da msica,

    buscando encontrar alguns perodos em que o trabalho de ator se assemelhasse ou se

    aproximasse ao do cantor, e vice-versa. Segundo Jean-Jacques Roubine:

    [...]desde muito cedo, ao que parece, uma tcnica vocal apropriada aos diversos gneros foi

    elaborada. O ditirambo, por exemplo, mobilizava um coro de cerca de cinqenta pessoas

    (homens e crianas) que praticavam a dana e o canto sem figurinos nem mscaras. O

    mesmo coro reaparece no drama satrico de tonalidade burlesca. Os coristas, agora usando

    figurinos e mscaras, falam, cantam, recitam e utilizam aparentemente todos os

    recursos cmicos da voz. (ROUBINE, 1987, p.13, grifo meu).

    De acordo com o Dicionrio de Teatro, de Luiz Paulo Vasconcellos, o coro aparece

    pela primeira vez no teatro grego, originrio das festividades comunais, bquicas ou

    dionisacas. (...) O coro no teatro representa, em suas origens, o sentimento do coletivo que

    deu incio manifestao teatral na Grcia. (2001, p. 58). E ainda hoje o coro pode ser visto

    em espetculos de teatro e de pera, constitudo por um grupo de atores e/ou cantores que

    falam e/ou cantam em conjunto. Geralmente, o coro possui um lder, uma figura que se

    sobressai do coletivo para executar o papel de porta-voz ou enriquecer a performance desse

    coletivo. No teatro grego, essa figura era chamada de corifeu, e supe-se que a parte do

    corifeu na tragdia fosse falada, em contraste com a do coro, que seria cantada

    (VASCONCELLOS, 2001, p. 58, grifos meus).

    Sabe-se, do contato com a prtica teatral, que a voz falada foi (e ainda ) geralmente

    utilizada em representaes teatrais por atores, enquanto a voz cantada mais comum ser

    encontrada em apresentaes musicais executadas por cantores. Entretanto, de acordo com as

    referncias encontradas nessa pesquisa, grande parte dos perodos artsticos da histria revela,

    justamente, que tanto atores como cantores necessitavam ter o domnio da voz falada e da voz

    cantada para exercerem suas profisses, no necessariamente estabelecendo uma relao entre

    a voz falada e o teatro, ou entre a voz cantada e a msica.

    Margot Berthold, em Histria Mundial do Teatro, explicita a forma como atores repre-

    sentavam em peas litrgicas nas igrejas durante a Idade Mdia, na Europa: gestos amplos,

    compreensveis para todos, interpretam o texto solenemente cantado. Aqui temos a primeira

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    cena de pantomima na igreja especialmente quando o coro canta (2001, p. 191). De outro

    lado, durante o mesmo perodo, artistas itinerantes se utilizavam da voz falada e cantada em

    apresentaes fora da igreja. O trovador Giraut Riquier, defendendo seu ofcio em relao aos

    palhaos, bufes e charlates da poca, descreve seu trabalho e sua categoria artstica como

    os mais altos representantes da arte recitativa, cujos versos bem torneados e canes

    divertiam a corte (BERTHOLD, 2001. p.242). Segundo Berthold (2001), ainda na mesma

    poca, havia os menestris, cantores ambulantes que freqentavam diversos reinos na

    Europa contando suas histrias atravs da msica e serviam aos seus prncipes com o alade

    e as canes (BERTHOLD, 2001, p. 242).

    Porm, no perodo Barroco (final do sculo XVI a meados do sculo XVIII) que

    acontece o auge da unio entre a msica e o teatro, com o nascimento da pera: palavra,

    rima, imagem, representao, fantasmagoria e aplicaes pedaggicas uniam-se agora

    msica, que emergia, de mero elemento de acompanhamento do teatro, para uma arte

    autnoma. O barroco viu o nascimento da pera. (BERTHOLD, 2001, p. 323). Segundo o

    Guia Ilustrado Zahar de pera, a esse tipo de espetculo vem, desde ento, traando relaes

    cada vez mais profundas com o teatro: O principal resultado (...) foi transformar os cantores

    em atores. (...) Os cantores passaram a ter de se integrar a uma viso dramtica coerente da

    pera (RIDING e DUNTON-DOWNER, 2010, p. 31).

    Richard Wagner (1813 1883), compositor de peras alemo, props uma revoluo,

    no incio do sculo XIX, nas peras que se fazia at ento, e que, mais tarde, viria a modificar

    a forma como se realizavam as peras no perodo do Romantismo (final do sculo XVIII at

    final do sculo XIX). Seu pai, Ludwig Geyer, era um ator consagrado da poca, suscitou no

    menino a paixo pelo teatro e chegou a lev-lo ao palco em papis infantis (RIDING e

    DUNTON-DOWNER, 2010, p. 217).

    Wagner chamava suas obras, no de peras, mas de dramas musicais: a Alemanha,

    em busca de seu nacionalismo, aplaudiu de p esta ousadia e os outros pases comearam a

    perceber a fundamentao do motivo da mudana do nome, libertando-se das amarras da

    pera italiana que, at ento, dava todas as coordenadas de composio das mesmas

    (RIDING e DUNTON-DOWNER, 2010, p. 217).

    Na Frana, sob tardia influncia de Wagner, a pera francesa comeou a se despir dos

    trajes italianizantes, e passou a criar msicas leves, poticas, lricas, alegres. Assim nasce a

    opereta, que se estendeu aos teatros mais populares criando a msica dos cabars e do

    "vaudeville", msica esta que vai ser conduzida para os musicais (RIDING e DUNTON-

    DOWNER, 2010, p. 265). Dessa forma, as operetas do mais nfase s histrias a serem

    contadas, dramaticidade dos personagens e a tramas cada vez mais populares.

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    A partir do Realismo (final do sculo XIX e incio do sculo XX), dois compositores

    americanos, George Gershwin (1898 1937) e Leonard Bernstein (1918 1990), propem-se

    a renovar e adaptar a pera cultura norte-americana do sculo XX e, com isso, transformar o

    conceito deste gnero de espetculo. No somente eles, mas paralelamente no primeiro quarto

    do sculo, um grupo de compositores americanos, aproveitando-se de frmulas que j

    haviam dado certo na pera, ensaiaram uma adaptao, ou mesmo a autoria, de roteiros que se

    adequavam ao gosto dos americanos. E assim surgiram os musicais contemporneos.

    (RIDING e DUNTON-DOWNER, 2010, p. 20). justamente derivado da opereta, da msica

    dos cabars e do "vaudeville", que surge nos Estados Unidos um gnero de espetculo que se

    firmar como principal produto de consumo da classe mdia emergente daquele pas: o

    musical da Broadway, exigindo atores que cantem e dancem, ou cantores que dancem e

    atuem, influenciando o teatro contemporneo no mundo todo.

    Alm dos musicais e das peras, que at hoje so feitos no mundo todo, h tambm

    algumas prticas teatrais nas quais o trabalho do ator se funde com o do cantor. Bertolt

    Brecht, por exemplo, em seu teatro pico, utilizava-se de msicas em suas encenaes: as

    tcnicas do teatro pico incluem a utilizaes de canes, narrao, projees, alm de uma

    exposio atravs de um enredo episdico, o que evita o processo de identificao entre

    espectador e personagem (VASCONCELLOS, 2001, p. 195). A utilizao dessas tcnicas

    visava produzir um efeito de estranhamento em quem assistia aos seus espetculos: a

    finalidade deste efeito fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a

    possibilidade de exercer uma crtica construtiva (BRECHT, 1967, p. 148), portanto, atravs

    de canes, entre outras tcnicas, o ator podia distanciar-se de seu personagem e comentar a

    cena apresentada, quebrando a identificao entre o ator e o pblico.

    Aqui no Brasil, j durante a poca das grandes navegaes, assim que navios

    portugueses aportaram em solo brasileiro, a forma de estabelecer contato com os habitantes

    nativos era atravs do teatro e da msica, haja vista o impedimento da barreira lingstica.

    Percebendo os costumes dos nativos, os jesutas passaram a catequiz-los, utilizando os

    mesmos meios de comunicao:

    Para os jesutas, as manifestaes artsticas dos silvcolas nada mais eram que rituais de

    magia. Assustados com seu carter pago, os inacianos desenvolveram um intenso trabalho

    visando sua eliminao. Com o cantocho e os autos pequenas peas teatrais de teor moral e religioso que os ndios encenavam cantando, danando e acompanhando com instrumentos musicais, os jesutas conseguiram destruir a msica espontnea e natural dos

    nativos, fazendo com que perdesse, gradativamente, suas caractersticas. (LOUREIRO,

    2003, p. 44)

    Outro episdio que integra o uso da msica com o teatro o do padre Jose de

    Anchieta, que aprendendo a falar a lngua dos ndios (...), teve o cuidado de traduzir para o

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    tupi as oraes e os textos teis catequese, alm de escrever e musicalizar peas teatrais para

    serem encenadas pelos ndios. Escreveu e dirigiu a primeira pea de teatro encenada no

    Brasil (LOUREIRO, 2003, p. 44).

    Ainda depois da catequese dos nativos brasileiros, os jesutas passaram a utilizar a

    mesma pedagogia ao lecionar para os filhos de imigrantes que vieram de Portugal para

    trabalhar no Brasil, atravs da instituio chamada Radio Studiorum: juntamente com a

    palavra, o canto era um dos principais recursos utilizados pelos jesutas para cativar os alunos

    e fortalecer-lhes a f (LOUREIRO, 2003, p. 45).

    Em 1822, com a chegada da famlia real portuguesa ao Brasil, o cenrio cultural do

    pas passa a receber uma maior influncia da arte europia: as atividades culturais sofrem um

    abalo. A Capela Real perde sua fora e, em conseqncia, a msica religiosa cede espao

    msica profana. (...) Surge o reinado da pera, que movimenta a vida social do Rio de

    Janeiro. (LOUREIRO, 2003, p. 48). A partir de ento, a pera influencia o Teatro Musical

    Brasileiro at o surgimento do Teatro de Revista, gnero de teatro considerado tipicamente

    brasileiro em que a msica e o teatro estabelecem uma forte relao.

    E, assim, como o teatro musical na Broadway surge como um derivado da opereta

    francesa, o Teatro de Revista Brasileiro tambm recorre ao modelo francs: um enredo frgil

    serve como elo entre as cenas que, independentes, marcam a estrutura fragmentada do gnero.

    A pesquisadora Neyde Veneziano afirma o Teatro de Revista brasileiro como um gnero que

    estabeleceu a identidade nacional:

    Ao se falar em teatro de revista, que nos venham as idias de vedetes, de bananas, de

    tropiclia, de irreverncia e, principalmente, de humor e de msica, muita msica. Mas que

    venha tambm a conscincia de um teatro que contribuiu para a nossa descolonizao

    cultural, que fixou nossos tipos, nossos costumes, nosso modo genuno do falar brasileira. Pode-se dizer, sem muito exagero, que a revista foi o prisma em que se refletiram as nossas formas de divertimento, a msica, a dana, o carnaval, a folia,

    integrando-os com os gostos e os costumes de toda uma sociedade bem como as vrias

    faces do anedotrio nacional combinadas ao (antigo) sonho popular de que Deus

    brasileiro e de que o Brasil o melhor pas que h. (VENEZIANO, 1994, p. 154-155)

    Nesse gnero teatral de grande importncia na histria do espetculo brasileiro,

    aparece a figura das vedetes, que cantavam e danavam em meio a nmeros cmicos,

    geralmente baseados em fatos reais ocorridos no ano. De acordo com Maximiliano Marques,

    em matria ao site Pense Msica (www.pensemusica.com.br), devido a problemas com a

    censura e a concorrncia com a televiso, o teatro de revista chega ao fim, mas permanece a

    sua influncia no teatro musical que ainda se faz hoje no Brasil.

    Segundo matria de Gustavo Martins ao site UOL, aps um perodo de glria nas

    dcadas de 50 e 60, o musical de entretenimento perdeu espao para uma dramaturgia mais

    politizada, notadamente em criaes de Chico Buarque, como Roda Viva, pera do

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    Malandro, Gota Dgua. No perodo do governo militar no Brasil, essas foram as poucas

    expresses de teatro musical no Brasil que se tem registro oficial, visto que Chico Buarque

    escrevia os textos de seus espetculo, assim como as letras de suas msicas, possibilitando as

    posteriores remontagens que foram feitas de seus espetculos, que utilizavam tanto atores que

    cantavam, como Marieta Severo e Marlia Pra; como cantores que atuavam, como Elba

    Ramalho e Cida Moreira.

    Nessa mesma poca, e mesmo antes e depois de Chico Buarque, o teatro brasileiro

    quase sempre teve a msica cantada por atores presente em seus espetculos. Observando a

    trajetria de alguns grupos como o Teatro de Arena, liderado por Gianfrancesco Guarnieri e

    Augusto Boal, em suas montagens de Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes

    (1967); ou como o Teatro Oficina, liderado por Jos Celso Martinez Corra, em O Rei da

    Vela (1967), e mais recentemente em Cacilda! (1998); ou ainda a encenao de Macunama

    (1978), dirigida por Antunes Filho; em todas essas montagens, a msica, sobretudo cantada,

    era utilizada como um importante recurso cnico, um forte elemento dramtico, executado, na

    maioria das vezes, pelos prprios atores.

    Bibi Ferreira um exemplo nacional de uma das primeiras profissionais do ramo a

    trabalhar como atriz e cantora, atuando como vedete no teatro de revista; passando a

    protagonista de Gota Dgua, de Chico Buarque; e at hoje realiza montagens como atriz,

    cantora e diretora de espetculos. Assim como ela, diversos artistas tambm se aventuraram

    em espetculos de teatro musicados, interpretando biografias de clebres artistas da histria

    mundial, como Edith Piaf, Noel Rosa, Maria Callas, entre outros.

    Com a estria de Rent, de Jonathan Larson, em 1999, no Teatro pera, em So Paulo,

    tem incio uma importante etapa do renascimento dos musicais de entretenimento: as

    adaptaes da Broadway. Segundo Gustavo Martins, em matria ao site UOL, os oramentos

    generosos, auxiliados por leis de renncia fiscal, permitiram a realizao de grandes

    montagens e aceleraram a profissionalizao no setor.

    Hoje em dia, o que se nota uma busca de atores, cantores e bailarinos por uma

    formao cada vez mais heterognea e abrangente, em que as artes teatral, musical e de dana

    estejam integradas na formao desses profissionais, o que parece acontecer, em parte, devido

    ao crescimento dos espetculos da rea do teatro musical e, de outra, por fora das mltiplas

    influncias e linguagens utilizadas nas construes dos espetculos na contemporaneidade.

  • 13

    2. A formao de ator e de cantor na perspectiva do proponente desta pesquisa

    A inter-relao entre diferentes reas artsticas sempre esteve presente em minha vida

    desde a formao escolar. Durante o Ensino Fundamental, regularmente tive aulas de

    Educao Artstica voltadas ao ensino de Artes Visuais. No entanto, pude por duas

    oportunidades frequentar aulas de Msica, alm de fazer uma apresentao cnica anual, da

    primeira at a sexta srie do Ensino Fundamental, organizada pelo professor responsvel da

    turma, no que era chamado de Hora Cvica. Neste evento, os alunos faziam apresentaes

    teatrais, musicais ou de dana. A participao era opcional, mas eu sempre estava presente no

    palco, seja atuando, cantando ou danando. Alm disso, durante o perodo escolar, pude

    freqentar, atravs das proposies da escola, diversos espetculos de teatro, msica, pera e

    bal, o que contribuiu para minha formao pessoal e apuro esttico.

    2.1 A experincia que precedeu a formao acadmica

    Em 2004, com 21 anos de idade, comecei a realizar atividades regulares em corais de

    Porto Alegre. Primeiramente, o Coral da PROCERGS, depois, o Coral da UFRGS, um dos

    melhores do estado. Tambm, na mesma poca, passei a fazer aulas particulares de tcnica

    vocal com a cantora de jazz Flora Almeida, ao mesmo tempo em que frequentei aulas de

    teatro no projeto Descentralizao da Cultura, ministradas pelo ator Marcelo Aquino, no

    bairro onde eu morava na Zona Norte de Porto Alegre. Esses dois professores foram decisivos

    na minha escolha profissional.

    Com a cantora Flora Almeida, pude conhecer o cenrio musical de Porto Alegre,

    assistindo a vrias apresentaes suas e de seus colegas de profisso. Tambm pude conhecer

    melhor meu instrumento musical, a voz, e saber como utiliz-lo. Por recomendao da prpria

    Flora, passei a frequentar aulas de teatro. Foi quando encontrei Marcelo Aquino, e pude

    descobrir o universo teatral gacho que, at aquele momento, parecia oculto para mim. Alm

    de assistir a muitas peas teatrais, o prprio Marcelo me estimulava durante as aulas, dando-

    me orientaes muito importantes, o que resultou no s o meu aprimoramento, bem como

    uma grande amizade entre ns dois. Mas o fator mais decisivo para que eu escolhesse entrar

    para o curso de Teatro da UFRGS, foi eu ter podido assistir ao premiado espetculo Entre

    Quatro Paredes, no qual Marcelo atuava. O espetculo foi apresentado no Teatro de Arena de

    Porto Alegre, contava com a direo de lcio Rossini, e no elenco ainda atuavam Carolina

    Garcia e Daniela Aquino. A montagem ganhou diversos prmios Aorianos naquele ano de

  • 14

    2004, incluindo o de Melhor Espetculo e Melhor Direo. O que mais me impressionou,

    alm do texto de Jean-Paul Sartre, foi o jogo de contracenao, evidenciado principalmente

    entre Marcelo e Carolina, bem como o modo como eles se apropriaram e expressaram atravs

    de suas interpretaes um belssimo texto, o qual, eu no havia conhecido at aquele

    momento. A partir dessa vivncia, percebi que aquele era o caminho a seguir.

    2.2 A experincia acadmica no Curso de Teatro (UFRGS)

    No ano seguinte, entrei no curso de Bacharelado em Teatro: Habilitao em

    Interpretao Teatral da UFRGS. Durante essa graduao, sempre tentava incluir algo musical

    nos exerccios e cenas propostas, tentando buscar a integrao entre as artes, que para mim,

    sempre foi algo natural. O primeiro contato com aulas de expresso vocal aconteceram com a

    professora Gisela Habeyche, atriz com experincias tambm no campo musical, e que

    ministrou exerccios que at hoje realizo em meu trabalho como ator, para manuteno de um

    bom desempenho vocal em cena.

    Encontrei tambm nas aulas da professora Mirna Spritzer, j no segundo ano do curso

    acadmico, muitas relaes entre a arte do ator e a do cantor. Conhecendo o seu extenso

    currculo, no qual sua experincia com o teatro musical, especialmente as montagens de

    textos de Bertolt Brecht das quais participou, alm da vivncia e pesquisa que realizou com

    peas radiofnicas, fica evidente em sua metodologia de ensino essa estreita relao que

    Spritzer desenvolve em sua docncia. Durante um ano, em suas aulas de interpretao, ela

    propunha turma diversos exerccios em que a palavra estava muito presente.

    2.3 A juno ator e cantor numa experincia artstica

    Assim, sobretudo, a partir da experincia acadmica, minha carreira artstica tem-se

    voltado para uma possvel unio dessas duas reas. Estudei um pouco sobre pera em livros e

    workshops de canto lrico; tive contato tambm com o teatro musical, cursando diversas

    oficinas ministradas por Cntia Ferrer, atriz que se especializou no gnero na cidade de So

    Paulo; e frequentei aulas de tcnica vocal com Cida Moreira, artista com uma extensa carreira

    musical e teatral, que participou da clebre montagem da pera do Malandro, de Chico

    Buarque, entre outros musicais.

  • 15

    Entre os espetculos que fiz, pude usar minhas habilidades vocais em O Balco, de

    Jean Genet, no ano de 2008, sob a direo de Ana Paula Zanandra; A Aurora da Minha Vida,

    de Naum Alves de Souza, nos anos de 2009 e 2010, sob a direo de Leandro Ribeiro, e,

    recentemente, idealizei o espetculo CALE-SE As Msicas Censuradas Pela Ditadura

    Militar, que consiste em um espetculo cujo mote so as msicas que sofreram algum tipo de

    proibio na poca do governo militar no Brasil, no qual o dilogo entre o teatro e a msica

    ficou muito evidente para mim, e, onde pude comear a traar paralelos mais concretos entre a

    arte do ator e a do cantor.

    Alm dessas experincias, meu trabalho com a docncia teatral sempre foi voltado

    para a questo vocal. Desde o incio desse processo de minha formao como professor de

    teatro, at os dias de hoje, busco trabalhar com a interdisciplinaridade entre o teatro e a

    msica.

    2.4 As experincias docentes: o constante trabalho com a expresso vocal

    No segundo ano do Curso de Bacharelado em Teatro da UFRGS, tive a oportunidade

    de ser bolsista, por dois anos, do projeto de extenso da universidade chamado Introduo

    Interpretao Teatral: Corpo, Voz, Ao, coordenado pela professora Ana Ceclia de Carvalho

    Reckziegel. Nele, pude observar e desenvolver o exerccio da docncia teatral, alm de fazer

    investigaes acerca do trabalho do ator. Incentivado pela professora coordenadora do

    projeto, Ana Ceclia de Carvalho Reckziegel, e pela professora ministrante do curso, Joana

    Isabel da Silva, passei a propor alguns exerccios relativos tcnica e expresso vocal e ao

    trabalho do ator com a palavra para os alunos desse curso. A partir dessa experincia, passei a

    aguar meus ouvidos na assistncia a espetculos teatrais e musicais para poder auxiliar os

    alunos na execuo dos exerccios propostos por mim, buscando compreender que mudanas

    os exerccios que eu propunha poderiam suscitar nos meus alunos termos de trabalho vocal.

    Uma curiosidade especfica, que me chamou a ateno no que diz respeito a integrao

    entre o trabalho do ator e do cantor, aconteceu durante um intensivo de vero do referido

    projeto, realizado no ano de 2008, no qual, coincidentemente, participaram cinco cantoras

    lricas interessadas em aprimorar as partes interpretativas (cnicas) de suas performances

    como cantoras. Estreitando relaes com algumas delas, pude tambm fazer relaes mais

    efetivas entre a arte teatral e a musical.

    Outra experincia docente que tive, foi a de lecionar aulas de expresso vocal na

    Escola de Atores TV e Cinema, para substituir a professora fonoaudiloga que antes

  • 16

    ministrava essa disciplina. No incio desse trabalho, comecei a experimentar em aula alguns

    exerccios vocais aprendidos durante o curso de teatro da UFRGS. Depois de freqentar

    algumas oficinas de teatro musical com Cntia Ferrer, pude descobrir a tcnica vocal Speech

    Level Singing, criada por Seth Riggs, e utilizada por diversos atores e cantores no mundo

    todo, especialmente nos Estados Unidos por atores-cantores dos musicais da Broadway, e

    passei a desenvolver um estudo sobre essa tcnica com alunos aspirantes a atores. Ainda hoje

    continuo ministrando aulas de expresso vocal na Escola de Atores TV e Cinema,

    aprimorando os exerccios propostos a partir da observao das mudanas nos alunos com a

    aplicao da tcnica Speech Level Singing.

    No ano seguinte ao meu ingresso como professor na Escola de Atores TV e Cinema, e

    j tendo ingressado no curso de Licenciatura em Teatro da UFRGS, fui convidado para

    ministrar aulas de teatro no curso de Portugus Para Estrangeiros, projeto de extenso do

    Instituto de Letras da UFRGS, que mantm parcerias com outras universidades do mundo

    todo, possibilitando intercmbio entre alunos de diferentes nacionalidades. Nas duas turmas

    que tive oportunidade de trabalhar, uma por semestre, os alunos eram todos chineses, que j

    estavam morando no Brasil h, pelo menos, um ano, portanto, j haviam tido um contato

    considervel com a lngua portuguesa. Ao criar um plano de trabalho para esses alunos, levei

    em considerao a questo do aprimoramento da comunicao deles em um idioma

    estrangeiro. Trabalhei diversos exerccios de expresso vocal, utilizei-me de msicas do

    folclore brasileiro como inspirao para a criao de algumas cenas e, por fim, trabalhei

    textos de Nelson Rodrigues, que apresentamos, sob a forma de uma leitura dramtica, para

    alunos e professores do Instituto de Letras da UFRGS. As dvidas desses alunos giravam

    bastante em torno de algumas expresses presentes nos textos de Nelson Rodrigues e

    desconhecidas por eles, bem como a pronncia correta de certas palavras, o que eu

    orientava no existir propriamente uma nica pronncia, j que a diversidade de sotaques no

    Brasil muito grande. Foi um trabalho essencialmente voltado para a palavra em cena, que

    me fez prestar ateno em detalhes de pronncia de meu prprio idioma que, por vezes, no

    dava tanta importncia.

    Houve tambm as experincias docentes relativas aos meus estgios obrigatrios em

    escolas de ensino fundamental e mdio, que fazem parte do currculo acadmico do curso de

    Licenciatura em Teatro da UFRGS. No meu primeiro estgio, realizado no Colgio de

    Aplicao, no primeiro semestre de 2010, meu trabalho foi voltado para os jogos de

    improvisao, onde propunha diversos exerccios vocais, e mesmo sugerindo a voz como

    mote para as improvisaes a serem criadas. O segundo estgio foi feito no Colgio Jlio de

    Castilhos, no segundo semestre de 2010, no qual desenvolvi com os alunos uma maior

  • 17

    ateno para a palavra em cena, trabalhando o texto O Sr. Puntila e Seu Criado Matti, de

    Bertolt Brecht, apresentado para alunos de outras disciplinas do Colgio.

    Portanto, em minha formao artstica e docente, a msica e o teatro sempre estiveram

    ligadas de alguma forma. Ao ser convidado para exercer uma nova forma de docncia, a

    preparao vocal de um espetculo, ainda desconhecida por mim, levo em considerao os

    paralelos existente entre a arte do ator e a arte do cantor para elaborar um plano de trabalho

    vocal com o elenco de Docemente Pornogrficos. A partir da experimentao de

    determinados exerccios, proponho-me observao dos meus colegas, tentando compreender

    as mudanas obtidas com esta proposio de trabalho, inspirado, principalmente, na tcnica

    vocal criada por Seth Riggs.

  • 18

    3. Reflexes sobre uma prtica: a preparao vocal do espetculo Docemente Pornogrficos

    Nesta parte desta pesquisa, refleti sobre a preparao vocal dos atores do espetculo.

    Aqui exponho a maneira como desenvolvi o plano de trabalho a partir dos exerccios criados

    por Seth Riggs, e outros, por mim aprendidos ao longo de minha formao. Ao observar o

    contato deles com o plano de trabalho proposto, e o meu modo de ministrar esses exerccios,

    busquei pensar sobre essa especfica prtica docente, e investigar sobre o que os levou s

    mudanas apresentadas no processo com relao aos seus trabalhos de criao.

    3.1 O Speech Level Singing, de Seth Riggs

    Devido minha facilidade ao apreender a tcnica Speech Level Singing, e percebendo

    seus benefcios em meu trabalho como ator e cantor, optei por trabalhar com essa tcnica

    especfica, mas tambm trazendo alguns outros exerccios vivenciados em minha formao

    artstica. Pareceu-me ser esta a forma mais confortvel para desenvolver um trabalho eficaz e

    que atingisse os objetivos esperados em termos de trabalho vocal. Para ministrar a tcnica de

    forma oficial, necessria uma certificao do Instituto Seth Riggs, em Nova York, nos

    Estados Unidos. O que realizei no espetculo Docemente Pornogrficos foi apenas a

    aplicao de alguns exerccios que passei a conhecer ao estudar esse padro vocal, de forma a

    trabalhar as vozes do elenco de forma confortvel, que deixasse os atores mais preparados

    para utiliz-la de maneira criativa em suas interpretaes.

    O preceito bsico da tcnica Speech Level Singing est em seu prprio nome, que pode

    ser traduzido como cantar ao nvel da fala (traduo minha), ou seja, de forma que a laringe,

    rgo do corpo humano importante para a fonao, fique em uma posio estvel durante o

    canto, assim como o durante a produo da voz falada. Assim, j no prefcio de sua obra, o

    autor, Seth Riggs, criador da tcnica, afirma que ela permite que voc cante com a mesma

    voz confortvel e facilmente produzida que voc usa, ou deveria usar, para falar (RIGGS,

    1998, p. 7, traduo minha, grifo meu). A partir dessa afirmao do autor, pode-se inferir que

    nem sempre as pessoas falam de forma confortvel, o que me instigou a utiliz-la para

    trabalhar a voz falada de atores em meu trabalho de docncia na Escola de Atores (como foi

    citado no captulo anterior) e, mais recentemente, durante a preparao vocal do espetculo

    Docemente Pornogrficos.

  • 19

    3.2 Experimentos vocais na preparao de um espetculo

    Ao elaborar um plano de trabalho para desenvolver com o meu grupo, com a

    finalidade de prepar-los vocalmente para o espetculo em questo, senti a necessidade de

    revisar, no somente exerccios de Seth Riggs, a partir da obra Singing For The Stars (1998),

    como tambm alguns outros exerccios aprendidos durante minha formao artstica que

    contriburam para meu treinamento vocal enquanto ator e cantor. Resolvi propor alguns de

    meus exerccios preferidos, mesmo sabendo que corria certo risco, visto que nem todos

    possuem o mesmo corpo e que exerccios que funcionaram em mim, talvez no funcionassem

    em meus colegas. Mesmo assim, decidi partir por esse caminho e analisar os resultados,

    satisfatrios ou no, dessa investida. Alm disso, senti, tambm, a necessidade de conhecer

    um pouco mais sobre a formao vocal de meus colegas, bem como interrogar o diretor

    Leandro Ribeiro a respeito das necessidades vocais especficas para esse espetculo.

    Nenhum dos integrantes do grupo (exceto eu) mantm um treinamento vocal

    constante, seja com um professor de canto ou de teatro, ou com um fonoaudilogo. A maior

    parte deles trabalhou a voz para algum espetculo especfico de sua carreira ou durante aulas

    de teatro que frequentaram. Tambm alguns deles possui um contato com a msica, enquanto

    outros sequer freqentaram uma nica aula de canto.

    Em conversa com o diretor de Docemente Pornogrficos, Leandro Ribeiro, foi

    definido que o trabalho vocal se voltaria para a emisso mais natural do texto (enfatizando a

    sensualidade da voz, intenes e pausas), bem como para chegar o mais prximo possvel de

    uma uniformizao do tnus vocal do elenco, visto que as experincias e formaes dos

    atores so heterogneas. Tambm foi solicitado pelo diretor que o trabalho vocal

    contemplasse exerccios de musicalidade, j que alguns atores entoariam canes durante o

    espetculo.

    Analisando esses aspectos, elaborei um plano de trabalho que teve seu foco no

    desenvolvimento da conscincia vocal de cada ator. Aliei noes de fisiologia da voz prtica

    da tcnica vocal, detalhando o funcionamento do corpo na produo vocal ao propor os

    exerccios. Alm de ser a forma como Seth Riggs trabalha, aliando a teoria com a prtica,

    achei interessante instrumentalizar o meu grupo com esses conhecimentos mais tcnicos e

    aprofundados, multiplicando-os com meus colegas que, possivelmente, acompanhar-me-o

    em trabalhos futuros da Cia. de Teatro Gato&Sapato, podendo avanar cada vez mais nos

    prximos trabalhos vocais, caso seja necessrio.

  • 20

    3.3 A prtica vocal nos ensaios do espetculo

    Para que os atores compreendessem melhor a fisiologia de suas vozes, organizei os

    exerccios em quatro etapas: respirao, vibrao, ressonncia e articulao. A obra de Seth

    Riggs, Singing For The Stars (1998), no prope exerccios que trabalhem a respirao. No

    entanto, senti a necessidade de trabalhar esse aspecto mais profundamente, j que alguns

    exerccios de respirao aprendidos antes e durante a minha passagem pelo Departamento de

    Arte Dramtica contriburam para uma utilizao mais confortvel da voz no seu uso teatral.

    Os exerccios de respirao utilizados foram: a respirao de cachorrinho, aprendido

    com Gisela Habeyche, na qual, ao imitar a respirao de um co, o ar passa rapidamente pelo

    trato vocal, sendo necessria a utilizao dos msculos abdominais e do diafragma para a sua

    execuo; a respirao de trenzinho, aprendida com Flora Almeida, e que consiste em

    emitir os fonemas correspondentes s letras S, X e F, de forma ritmada, imitando o som de um

    trem, aumentando a velocidade do exerccio gradualmente; e o exerccio da emisso do

    fonema correspondente a letra P, aprendido com Cida Moreira, em que se deve emitir o P com

    certo tnus e preciso do msculo diafragma, como se o aluno recebesse um leve soco no

    estmago, sem o som de pregas vocais, inicialmente, depois ligando o som do P com a vogal

    A. Outro exerccio que trabalhei com o grupo foi aprendido com Mirna Spritzer, e que

    consiste simplesmente em executar uma gargalhada forada, balanando o corpo, o que ajuda

    a relaxar os msculos faciais e respiratrios, alm de estimular positivamente os atores, visto

    que o riso contagia a todos.

    Ao estudar a obra de Seth Riggs (1998), v-se que ele prope duas etapas

    correspondentes noo de vibrao. A primeira etapa, proposta ao introduzir a tcnica

    Speech Level Singing a da no-interferncia dos msculos extrnsecos (ao redor) da laringe

    na emisso vocal. Segundo Riggs, essa a causa da instabilidade da laringe ao cantar ou falar

    (p. 28). Para evitar esse processo, Riggs prope os exerccios de lip roll (que consiste em

    fazer vibrar os lbios com o som vocal, como uma criana imitando o som de um carro) e

    tongue thrill (que consiste em fazer vibrar a ponta da lngua em contato com o palato duro,

    perto dos dentes incisivos superiores, como ao imitar o som de um telefone antigo tocando):

    uma vez que voc conseguir fazer o lip roll e o tongue thrill com pouco esforo indica que

    voc est se livrando da interferncia dos msculos extrnsecos da laringe na produo vocal

    (RIGGS, 1998, p. 45, traduo minha).

    Aps esse perodo, Riggs prope uma segunda etapa onde sugere a emisso de um

    som parecido com uma porta rangendo, que ele chama de edge sound, que pode ser

    traduzido como som inacabado (traduo minha), para que o aluno sinta onde o som da voz

  • 21

    produzido (p. 58). A partir do exerccio 19, constante na pgina 63 de sua obra (1998),

    Riggs prope a eliminao do som inacabado: hora de comear a eliminar o edge

    sound, gradualmente permitindo que mais ar esteja envolvido no processo de vibrao das

    pregas vocais, substituindo-o pelo fonema correspondente a letra M, chamado, por Seth

    Riggs, de humming, trabalhando dessa maneira a ressonncia da voz.

    Nessa segunda etapa, Riggs afirma que o ator/cantor comea a sentir o que o Speech

    Level Singing, ou seja, cantar ao nvel da fala, em outras palavras, cantar com a laringe em

    posio estvel, nem subindo para emitir agudos, nem descendo para entoar sons graves. No

    caso da voz falada, em minha experincia como professor de interpretao teatral, tenho

    observado uma tendncia dos alunos a subirem um pouco a laringe (levantando o queixo,

    inclusive) ao gritar ou falar com algum que est distante, situaes em que a voz geralmente

    soa mais aguda. Assim como ao contar um segredo ou demonstrar tristeza, quando, na

    maioria das vezes, a voz soa mais grave, a tendncia observada a de descer a laringe,

    comprimindo o queixo em direo ao peito.

    A partir dessa etapa, chamei a ateno do elenco de Docemente Pornogrficos a

    experimentarem fazer vibrar alguma parte do corpo com o som de suas vozes, principalmente

    o peito e a cabea (principais ressonadores da voz humana), evitando concentrar o som no

    pescoo de forma demasiada, para evitar a interferncia dos msculos extrnsecos da laringe

    na produo vocal, como j havia sido trabalhado inicialmente.

    Partindo do humming, Riggs comea, na pgina 64, a trabalhar na transformao desse

    som em cada uma das vogais, compreendendo o que organizei em meu plano de trabalho

    como articulao. No entanto, tive de adaptar esse exerccio para as vogais da lngua

    portuguesa, j que no livro Singing For The Stars (1998), as vogais propostas advm do

    idioma ingls, lngua nativa do autor. Nesse momento, chamei a ateno dos atores para a boa

    articulao dos sons correspondentes s vogais da lngua portuguesa, a saber: A, , , , I, ,

    e U, compreendendo, assim, todos os fonemas da lngua portuguesa relacionados s vogais.

    Estimulei-os a pronunciar cada vogal de forma exagerada, observando a particularidade de

    cada uma delas, repetindo esse mesmo trabalho com texto e canes posteriormente.

    Tambm trabalhei com um pouco de musicalizao, visto que todos os exerccios

    propostos (exceto os de respirao) foram acompanhados por um CD, constante no verso do

    livro de Seth Riggs (1998), e que continha diversas sequncias de notas musicais tocadas em

    um piano, as quais deveriam ser reproduzidas pelos atores/cantores durante a execuo dos

    exerccios, e, devido variao de altura, era preciso conhecer e variar os ressoadores

    corporais para emitir notas graves, mdia e agudas com mais eficcia, desenvolvendo tambm

    um ouvido mais sensvel s notas musicais, aumentando a percepo auditiva do elenco.

  • 22

    Os exerccios citados nesse captulo foram ministrados por mim uma vez por semana

    durante o perodo de quatro meses. Inicialmente, trabalhei com os atores durante cerca de

    duas horas em cada encontro semanal. Depois, a partir do segundo ms, diminu esse tempo

    para trinta minutos semanais, antes do ensaio com o diretor, no qual j comeava com a

    abordagem do texto. Depois dos trinta minutos iniciais, o diretor prosseguia com o ensaio.

    3.4 Mudanas

    O mtodo pedaggico que Riggs estabelece em sua obra bastante tcnico. Suas

    orientaes baseiam-se em conceitos fisiolgicos da voz para que o ator/cantor conhea seu

    instrumento de trabalho e possa realizar os exerccios de forma efetiva. No entanto, ao

    ministrar as atividades com o elenco de Docemente Pornogrficos, busquei trabalhar com um

    pouco de estmulo imaginao, quando o direcionamento tcnico nos exerccios no

    estabelecia uma comunicao satisfatria entre mim e o elenco.

    Por exemplo, no exerccio do som inacabado ou edge sound, alguns atores

    encontraram dificuldades para execut-lo somente com informaes tcnicas do mtodo.

    Dessa forma, demonstrei o som que eu queria, e pedi que eles me dissessem que imagem

    vinha cabea ao ouvir o tal som. Dentre vrias imagens citadas, uma delas foi a de um

    zumbi, criatura fantstica, algo como um morto-vivo, presente em filmes de terror. Pedi, ento

    que caminhassem pela sala como zumbis, da forma como imaginavam um zumbi e

    reproduzissem a sua voz, enquanto observava de perto as execues, verificando a produo

    sonora do edge sound. Desta forma, o elenco conseguiu se aproximar da qualidade sonora

    proposta pelo mtodo.

    A relao dos atores com alguns dos exerccios propostos j demonstraram mudanas

    significativas, principalmente na relao de si prprio com a sua voz. Observei que, no incio

    do trabalho, o elenco ficava cansado muito rapidamente com os exerccios de respirao.

    Gradualmente, durante o processo, o tempo proposto para os exerccios de respirao foi

    aumentando, e os atores, ao mesmo tempo, foram demonstrando uma maior resistncia fsica

    aos exerccios, executando-os de maneira satisfatria por mais tempo.

    Um claro exemplo o do trenzinho, citado anteriormente, no qual, ao final do

    exerccio, a velocidade da emisso dos fonemas correspondentes s letras S, X e F se d de

    forma muito rpida. O tempo de durao dessa emisso final acelerada foi aumentando

    gradativamente, durante o processo, o que leva a crer que seus msculos respiratrios, assim

    como a conscincia respiratria, foram se adaptando s exigncias fsicas dos exerccios.

  • 23

    Tambm o tempo de durao dos mesmos fonemas emitidos de forma contnua foi

    aumentando gradativamente, contribuindo para a emisso de uma maior quantidade de

    palavras com a mesma respirao, sem a necessidade de interromper uma frase ou uma

    inteno para repor o ar, demonstrando um maior controle respiratrio nos atores.

    Outro aspecto a ressaltar so os exerccios de articulao de vogais em diferentes

    escalas musicais. O fato de terem de reproduzir com suas vozes as notas tocadas em um piano

    contribuiu para um aumento de suas percepes auditivas com relao s notas musicais. Para

    os atores que no possuam experincia musical prvia, mostrou-se bastante difcil o ato de

    cantar em cena. Esse trabalho refletiu diretamente nesses momentos, proporcionando um

    maior conforto, em alguns deles, ao terem de se colocar em cena com a voz cantada. Nesses

    mesmos exerccios, a partir de uma melhor e mais precisa emisso das vogais, nota-se uma

    maior clareza das palavras, tornando o texto e as canes mais inteligveis.

    Notei, durante os ensaios de criao de cenas com o diretor, que poucas vezes tive de

    intervir como preparador vocal em questes de criao vocal para cena, visto que os atores,

    naturalmente, foram, por exemplo, construindo caractersticas vocais para seus personagens

    de forma coerente (com o texto, com as intervenes do diretor e com a postura fsica que

    vinham construindo nos ensaios). Tambm em seus modos de enunciar os textos, observei

    intenes precisas e inflexes variadas, o que era algo quase inexistente ou invarivel durante

    a leitura inicial do texto feita no primeiro ensaio.

    O surpreendente, nesses casos, foi o fato de que eu imaginava que teria de intervir

    tambm no aspecto criativo, em um estgio posterior do trabalho de preparao vocal.

    Entretanto, isso no foi necessrio devido ao modo como os atores se apropriaram da tcnica,

    ultrapassando o estgio da experimentao dos exerccios.

    3.5 Reflexes a partir do olhar docente

    De um modo geral, as mudanas observadas no grupo de atores do espetculo

    Docemente Pornogrficos, durante o processo de preparao vocal, foram muito

    significativas, sobretudo do ponto de vista da percepo do elenco sobre a voz cnica,

    inclusive nos colegas que tinham menos experincia. Entendo por voz cnica, partindo da

    minha experincia como ator/cantor e tambm como pblico de espetculos, aquela que se

    projeta no espao, que todo o pblico consegue ouvir de forma clara e inteligvel, e que,

    segundo a fonoaudiloga especializada em voz para atores, Lucia Helena Gayotto, a voz

    que me afeta, me transporta, me transforma. Age sobre mim. (...) Minha gargalhada, minha

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    lgrima, minha revolta, meu desejo, minha indignao, minha surpresa, eram vibraes

    produzidas tambm por um contato fsico invisvel, que ocorria quando havia ao na fala do

    ator (GAYOTTO, 1997, p. 20, grifo meu). Mas como tornar consciente para o elenco com o

    qual estava trabalhando essa necessidade de ao na voz? Como ensinar ao vocal para eles?

    Segundo Jean Piaget, bilogo e pesquisador de referncia mundial sobre o

    desenvolvimento do conhecimento em seres humanos, a assimilao a integrao a

    estruturas prvias, que podem permanecer invariveis ou so mais ou menos modificadas por

    esta prpria integrao, mas sem descontinuidade com o estado precedente, isto , sem serem

    destrudas, mas simplesmente acomodando-se nova situao (1996, p. 13).

    Pois bem, a ao um elemento bsico da arte teatral. Segundo Constantin

    Stanislavski, importante diretor teatral russo, pioneiro ao sistematizar uma pedagogia para

    atores: em cena, vocs (os atores) tm sempre de pr alguma coisa em ao. A ao, o

    movimento, a base da arte que o ator persegue (STANISLAVSKI, 2004, p. 66, grifos

    meus). Portanto, utilizei-me do conhecimento que o elenco do espetculo em questo j havia

    assimilado a respeito de ao, devido s experincias prvias com teatro que todos possuam,

    para ajud-los a assimilar que a voz tambm precisa conter ao, que a palavra ao ser falada

    e/ou cantada em cena, precisa estar imbuda de ao, estimulando-os a acomodar esse

    conhecimento nessa nova situao: a assimilao e a acomodao so (...) os dois plos de

    uma interao entre o organismo e o meio, a qual a condio de todo funcionamento

    biolgico e intelectual (PIAGET, 1996, p. 309).

    Para Piaget, a assimilao no se reduz (...) a uma simples identificao, mas

    construo de estruturas ao mesmo tempo que incorporao de coisas a essas estruturas

    (1996, p. 364), enquanto que a acomodao esse resultado das presses exercidas pelo

    meio (1996, p. 12). Por esse motivo, a construo do conhecimento um constante processo

    de assimilao e acomodao. Assim, para que ocorra um novo conhecimento necessrio

    que o organismo tenha construdo estruturas anteriores que assimilar e transformar o

    conhecimento anterior (PIAGET,1996).

    Nesse exerccio especfico de docncia ao qual me propus analisar, relaciono ao

    conceito de assimilao na medida em que o grupo incorporou a seu organismo os dados da

    experincia a partir de conhecimentos teatrais que cada um tinha (ainda que precrios) aliados

    aliado ao novo conhecimento que eu os incentivei a vivenciar. Percebo, tambm, um

    movimento de acomodao desses novos conhecimentos, na medida, em que as estruturas

    relativas ao praticada na cena, se modificaram, em funo das variaes, aplicadas agora

    aos sons que o corpo pode produzir a partir da voz, e, com meu estmulo direto, ao solicitar

    que esses atores tentassem afetar o colega, agir sobre eles ao proferirem seus textos ou

  • 25

    cantarem suas canes. A adaptao intelectual (PIAGET, 1982) constitui-se ento em um

    equilbrio progressivo entre assimilao e acomodao, neste caso, das vivencias propostas

    por mim na preparao vocal do espetculo em questo.

    Portanto, os conhecimentos construdos pelo grupo, a partir da preparao vocal de

    Docemente Pornogrficos, estabeleceram uma maior conscincia vocal em si prprios,

    deixando-os aptos a executar o trabalho criativo posterior com suas prprias ferramentas. A

    partir da conscientizao do instrumento vocal, de como ele funciona, e de que forma ele pode

    responder quilo que se deseja realizar, abre-se um campo de criao para o ator que permite

    que ele crie com mais facilidade e naturalidade, o que Constantin Stanislavski chama de

    estado de criao interior (2004, p. 312). Segundo ele, nosso consciente muitas vezes

    aponta a direo em que o subconsciente continuar com a tarefa. Portanto, o objetivo

    fundamental da nossa tcnica colocar-nos em um estado criador no qual o nosso

    subconsciente funcione naturalmente (STANISLAVSKI, 2004, p. 335, grifo meu).

    Sendo assim, a construo de uma conscincia vocal permitiu ao elenco acessar o

    objetivo de criar aes vocais em seus trabalhos de interpretao, a partir da relao entre a

    noo de ao adaptando-a ao trabalho criativo com a voz. Assim, os atores acessaram esse

    campo de criatividade vocal de forma autnoma e independente, sem a necessidade de uma

    prtica de ensino especfica para esse aspecto, apenas com a indicao de que deveriam afetar

    e agir sobre o colega de cena atravs da voz.

    Portanto, meu trabalho como professor de uma tcnica vocal de cantores para um

    grupo de atores possibilitou a esse elenco um aprendizado maior sobre sua capacidade criativa

    em relao voz em cena. Pude contribuir para o aprimoramento do grupo e para o

    fortalecimento da relao do ator com seu instrumento de trabalho, no sentido de possibilitar a

    conscientizao dos atores para seus recursos vocais (GAYOTTO, 1997, p. 20), entendido

    como tudo o que se dispe para falar (respirao, articulao, entonaes, pausas, etc)

    combinados com suas foras vitais (GAYOTTO, 1997, p. 21), ou a forma como o indivduo

    expressa suas sensaes, afetos, vontades e desejos em seu meio. Segundo Lcia Helena

    Gayotto, quando na emisso da voz cnica se fundem as foras vitais e os recursos vocais,

    tem-se o que ser chamado de ao vocal: a voz interferindo decisivamente na situao

    cnica e, consequentemente, afetando os rumos do espetculo e atando o espectador

    (GAYOTTO, 1997, p. 22, grifo meu). Dessa forma, pude intervir positivamente no processo

    de criao do espetculo Docemente Pornogrficos.

    Segundo Lauro de Oliveira Lima, criador do Mtodo Psicogentico, que tem suas

    bases nas teorias de Jean Piaget, onde houver um professor ensinando... a no est

    havendo uma escola piagetiana! (LIMA, 1980, p. 131). Segundo ele, o professor no ensina,

  • 26

    mas ajuda o aluno a aprender, o que me leva s teorias de Paulo Freire, educador brasileiro de

    grande importncia para a pedagogia mundial. Observando meu exerccio de docncia

    relatado nessa pesquisa, conclu que minha prtica educativa teve menos relao com o ato de

    ensinar, segundo Lima (1980), tornando-a mais prxima do ato de criar condies para que os

    atores pudessem ter autonomia (FREIRE, 1996) em relao aos seus trabalhos de criao. O

    trabalho que desenvolvi, possibilitou-me entender com mais clareza que ensinar no

    transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produo ou a sua construo

    (FREIRE, 1996, p. 22), algo que j sabia previamente, em diversas aulas do curso de

    Licenciatura em Teatro da UFRGS, mas que, nesse exerccio de docncia, tornou-se mais

    prximo de mim, devido experincia concreta que vivenciei, tambm provocando, em mim,

    assimilaes e acomodaes na construo dos meus conhecimentos docente.

  • 27

    CONSIDERAES FINAIS

    Mesmo j tendo vivenciado duas experincias de estgio em escolas, como professor

    de teatro, e conhecendo as teorias de Paulo Freire e Constantin Stanislavski, nesse exerccio

    de docncia a que me propus analisar, pude compreender na prtica seus conceitos. Vivenciar

    com profundidade uma teoria de suma importncia para o acadmico que pretende formar-

    se como professor de teatro. Percebi que essa vivncia contribuiu para uma maior segurana

    e eficcia em todas as aulas que vim a ministrar durante e depois do processo de preparao

    vocal de Docemente Pornogrficos.

    Paulo Freire (1996) afirma que o educador tambm aprende com o educando e vice-

    versa, assim, neste exerccio hibrido de docncia e pratica artstica, pude complexificar a

    conscincia vocal que j possua, enriquecendo meu trabalho como ator. Esse exerccio de

    docncia me permitiu trocar experincias com meus colegas, e construir um belo trabalho de

    teatro de grupo, como a Cia. de Teatro Gato&Sapato vem desenvolvendo ao longo de seus

    seis anos de existncia.

    O ltimo aspecto que ressalto a conscincia tambm do meu processo de construo

    do conhecimento a partir da assimilao e da acomodao (PIAGET, 1996) de vrias noes

    adquiridas durante o curso de Teatro da UFRGS ao realizar essa pesquisa e ao exercit-la

    atravs da escrita. Pude, com ela, realizar um apanhado geral de toda minha trajetria, no

    somente acadmica, mas de toda a minha formao artstica, e consolidar conhecimentos

    importantes para mim, tanto de pedagogia teatral, como de histria do espetculo,

    interpretao, regulamentao da profisso, etc. Esse Trabalho de Concluso de Curso

    definitivamente serviu ao seu propsito, concluindo uma etapa importante na minha formao

    como docente teatral. A partir dele, imagino que poderei aprofundar seus diversos aspectos

    em pesquisas futuras, bem como fundamentar minhas futuras prticas pedaggicas em

    oficinas ou cursos que eu venha a ministrar em outros projetos.

  • 28

    REFERNCIAS

    BERTHOLD, Margot. Histria Mundial do Teatro. Trad. Maria Paula V. Zurawski, J.

    Guinsburg, Srgio Coelho e Clvis Garcia. So Paulo: Perspectiva, 2001;

    BRECHT, Bertolt. Teatro Dialtico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967;

    FORTUNA, Marlene. Performance da Oralidade Teatral. So Paulo: Annablume, 2000;

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios prtica educativa. 30

    edio. So Paulo: Paz e Terra, 1996;

    GAYOTTO, Lcia Helena. Voz partitura da ao. So Paulo: Summus, 1997;

    HOLLANDA, Aurlio Buarque. Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro:

    Positivo, 2010;

    LIMA, Lauro de Oliveira. Piaget para principiantes. 2. ed. So Paulo: Summus, 1980;

    LOUREIRO, Alcia Maria Almeida. O ensino de msica na escola fundamental. Campinas:

    Papirus, 2003;

    PAVIS, Patrice. Dicionrio de Teatro. So Paulo: Perspectiva, 2003;

    PIAGET, Jean. O nascimento da inteligncia na criana. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982;

    ___________. Biologia e conhecimento: ensaio sobre as relaes entre as regulaes

    orgnicas e os processos cognoscitivos. Petrpolis: Vozes, 1996;

    RIDING, Alan; DUNTON-DOWNER, Leslie. Guia Ilustrado Zahar de pera. Rio de

    Janeiro, Zahar, 2010;

    RIGGS, Seth. Singing For The Stars. Van Nuys, CA: Alfred Music Publishing, 1998;

    ROUBINE, Jean-Jacques. A Arte do Ator. Rio de Janeiro: Zahar, 1987;

    STANISLAVSKI, Constantin. A Preparao do Ator. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    2004;

    VASCONCELLOS, Luiz Paulo da Silva. Dicionrio de Teatro. Porto Alegre: L&PM, 2001;

    VENEZIANO, Neyde. O teatro de revista. In: O Teatro atravs da histria. Rio de Janeiro:

    Centro Cultural Banco do Brasil, 1994.

    CBO verso 2002 para download:

    http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf [disponvel em 01/08/2011]

    Lei 6.533, de 24 de maio de 1978:

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6533.htm [disponvel em 01/08/2011]

    Lei 3.857, de 22 de dezembro de 1960:

  • 29

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3857.htm [disponvel em 01/08/2011]

    Decreto 82.385, de 05 de outubro de 1978:

    http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/111151/decreto-82385-78 [disponvel em 01/08/2011]

    Portaria Ministerial 3.346, de 30 de setembro de 1986:

    http://www.maniphesto.com/sindimusicosbahia/pdf/portaria_ministerial_3346.pdf [disponvel

    em 01/08/2011]

    Ita Cultural, verbete Teatro de Revista:

    http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=concei

    tos_biografia&cd_verbete=614 [disponvel em 13/11/2011]

    Teatro de Revista:

    http://www.pensemusica.com.br/pensemusica/teatroderevista.htm [disponvel em 13/11/2011]

    Do teatro de revista s adaptaes da Broadway, musicais se tornam milionrios no Brasil:

    http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/2008/04/15/musicais_no_brasil.jhtm [disponvel em

    13/11/2011]