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A última lingada Texto de Altimar de Alencar Pimentel

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A última

lingada Texto de Altimar de Alencar Pimentel

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PERSONAGENS

ERASMO

NAZÁRIO

CATARINO

APRESENTAÇÃO

Serão projetados slides (ou documentário cinematográfico) sobre a

vida do cais, obedecendo à seguinte sequência: 1 – Ponto –

Trabalhadores respondem à chamada do ponto, erguendo a

Carteira de Identificação à medida em que é anunciado o seu

número. Será focalizado um ou mais trabalhadores de braços

erguidos, exibindo as carteiras. 2 – Grupo de trabalhadores

encaminhando-se para o cais – O portão aberto, os trabalhadores

entrando. 3 – Trabalhadores que sobraram da chamada do ponto

conversam, sentados uns, outros em pé, na calçada externa do

armazém do Porto. Alguns leem jornal. Rostos frustrados. 4 – Visão

do Cais – Trabalhadores subindo a escada do portaló (escada que

dá acesso do cais ao navio). 5 – Visão geral do cais – Ângulo que

dá a ideia de poucos navios atracados. 6 – Navios em operação de

carga e descarga – Uma lingada suspensa pelo “gato” (gancho em

que são penduradas as cargas e transportadas para dentro ou fora

no navio). A carga focalizada deve ser caixotes. 7 – Porão do navio

- Homens empilhando caixotes numa lingada. Visão da boca do

porão (de cima para baixo). 8 – Porão – Visão de dentro (de baixo

para cima). Mesmo porão do slide anterior. – 9 – Visão do cenário.

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CENÁRIO

Porão aberto, “gato” suspenso, fora de cena, guincho avariado,

estropos espalhados, caixotes, de óleo comestível, empilhados;

alguns caixotes quebrados, latas de óleo espalhadas. Durante a

projeção dos slides que focalizam o cais com os navios operando

serão ouvidos apitos de navios, ruídos de veículos, de guinchos,

vozes humanas – ordens gritadas, avisos, etc. O último slide será

projetado em silêncio.

ERASMO (De calção, deitado numa pilha de caixotes, fuma. Ouvem-

se barulho de martelo batendo em chapa de ferro) –

Como é? (Grita). Ô portaló! Portaló! (Ergue-se e vem até

o centro da cena).

VOZ (De cima, fora de cena) – Diz.

ERASMO – Vai demorar muito?

VOZ (Idem) – O eletricista tá consertando.

ERASMO – Olha: pede ao consertador para descer aqui. Tem um

bocado de caixotes arrebentados.

VOZ (Idem) – Tá bem. (Grita). Consertador! Consertador! (Erasmo

volta a deitar-se sobre a pilha de caixotes. Tira

baforadas do cigarro).

NAZÁRIO (Voz, em cima, fora de cena) – Por que não botam numa

rede?

VOZ (Idem) – São dois ou três caixotes. Você conserta lá embaixo

mesmo, enquanto ajeitam o guincho.

NAZÁRIO (Idem) – Serviço mal feito!

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VOZ (Idem) – Vai rapaz! Deixa de morrinha! Quando o guincho estiver

em ordem, a gente manda os caixotes na lingada e você

não tem mais trabalho.

NAZÁRIO (Desce pela escada do porão) – Esses cornos não fazem o

serviço direito!...

ERASMO – O que é que há meu chapa, tá brabo?

NAZÁRIO – Só muita cangalha!

ERASMO – Tá desenferrujando hoje e fica brabo assim com o serviço?

Devia tá feliz da vida. Descolando uma nota legal... Boa

pinta... Depois tá aí com o tutu em cima..., tirando onda

de seu bacana..., as negas se batendo.

NAZÁRIO (Retira o martelo da cintura, move-se entre as latas de

óleo espalhadas. Apanha um caixote desfeito.

Começa a refazer o caixote e em seguida a arrumar as

latas dentro dele) – Calor desgraçado! (Tira a camisa).

Ainda mais essa! A porqueira do guincho quebra!...

ERASMO – Isso acontece.

NAZÁRIO – Que nada! Desleixo! Catarino disse que esse guincho anda

safado! Em todo porto dá bronca. Já pediu até ao mestre

pra ser fiel de outro porão. A Companhia não quer botar o

navio pra fazer obra...

ERASMO – Já sei que tu vai defender uma muamba bárbara. O fiel teu

chapa, já viu. Tá no papo, hein?

NAZÁRIO – O que é que tu tá pensando? Não sou de afanar...

ERASMO (Corta) – Espere aí. Quem falou em afanar? Eu disse

defender. Tô por dentro da jogada. Ele não é teu chapa,

hein? Não é?

NAZÁRIO – É de minha terra, Cabedelo.

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ERASMO – Ah! Ele é de Cabida também? Legal: turma boa! Pega um

fumo de Macica (maconha) pras moças ver!

NAZÁRIO – Catarino não é dessa onda.

ERASMO – Não tô falando dele, que não conheço. Tô dizendo é dos

meninos que conheci em Cabida. O que é que há? Sou

viajado, meu chapa. Já dei um bordo por lá. Fui nas

bocas. Uma onda legal. Defendi um tutu em ordem e me

diverti às pampas. Na fortaleza. Você sabe. Ah! Ficou

tudo doido... (Pausa. Nazário bate com força num

caixote). Olha como é? Já entraste no quadro?

NAZÁRIO – Que nada! Você sabe como é isso. É mais fácil entrar no

céu. E quando o cara é desgarrado como eu, a onda não

é mole. Se for filho de associado ou tem padrinho forte é

diferente. Se não, é o padecimento. Paparicagem,

bajulação – num mundo de filho da puta metido a

importante.

ERASMO – Não. O irmão: Buxudo é legal.

NAZÁRIO – De Otávio?

ERASMO – Irmão de Buxudo?

NAZÁRIO – É.

ERASMO – Curuca safado.

NAZÁRIO – Buxudo?

ERASMO – Não. O irmão. Buxudo é legal. Não tira da cuca a mulher e

os meninos. O outro não devia querer o terço dele. Disse

mesmo a Buxudo: se fosse comigo não dava. Agora até

que ele tá melhor. Encostado no Instituto pelo menos tem

o certo. Não fica na espera de vez pra trabalhar.

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NAZÁRIO – É... O Instituto... Grande coisa!... O cara quando precisa

dele já tá mesmo na última.

ERASMO – Melhor que nada.

NAZÁRIO – Não tô certo disso, não. Também pra Buxudo já não

importa. Ele não vai mais precisar...

ERASMO – Se apagou? Quando?

NAZÁRIO – Já faz mês.

ERASMO – De acidente?

NAZÁRIO – Gangrenou.

ERASMO – Mas..., não dava. Não dava mesmo. Foi só no pé. Ele

cuidou logo.

NAZÁRIO – Cuidou bem demais. Pra render. Você sabe. Fazia curativo

no Instituto e quando chegava em casa botava soda

cáustica na ferida. No outro dia, tava pior. O tempo

passando e a ferida sem sarar. E ele ali, só na moleza,

com o dinheiro entrando. Danado é que ele cuidou tanto

da ferida, que se descuidou...

ERASMO – Se tivesse me ouvido... Eu disse pra tratar do pé. Não quis ir

por mim...

NAZÁRIO – Foi você?

ERASMO – Arranjei a coisa. Trabalho bem feito. Ele era reclamando o

dia todo: que o dinheiro não dava; que ia passar não sei

quanto tempo sem trabalhar... Se ficasse encostado, tinha

o Instituto pra garantir... Agora; não tinha coragem de

fazer o serviço. Me deu pena...

NAZÁRIO – Você tem prática, hein?

ERASMO – Caprichei. Ele nem viu. De surpresa.

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NAZÁRIO – Deve ter doído um bocado.

ERASMO – Que nada. Quer?

NAZÁRIO (Assustado) – O quê?

ERASMO – Um acidente.

NAZÁRIO – Tá doido!

ERASMO – Coisa legal. Fica aí encostado no Instituto. No certo.

NAZÁRIO – Micha o papo. Isso não é onda.

ERASMO – Não dói nada.

NAZÁRIO – Não me interessa.

ERASMO – O que é isso, meu chapa? Tá com medo?

NAZÁRIO – Não me interessa!

ERASMO – Garanto o serviço. Não dói.

NAZÁRIO – Não quero saber!

ERASMO (Desata numa gargalhada espalhafatosa) – Todinho.

Buxudo. Teve medo também. Depois até que achou bom.

NAZÁRIO – Tão bom que morreu.

ERASMO – Se morre de nada. Ele deu azar.

NAZÁRIO (Retorna ao trabalho) – Não foi azar nenhum. Ele mesmo

procurou a desgraça. Acho até que sabia..., e..., queria

morrer...

ERASMO – Ninguém quer se apagar.

NAZÁRIO – Quando a vida é safada!... Andava aí pelos cantos... Não

queria papo com ninguém...

ERASMO – Tinha o certo. Não havia motivo.

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NAZÁRIO – Por quanto tempo? Quando o dedo sarasse era voltar pra

mesma vida... Só não entendo uma coisa: passar

necessidade e o irmão aí, na boa...

ERASMO – Por ele Buxudo se apagava mais cedo ainda. Aquele curura

(serelepe) não é de ajudar ninguém.

NAZÁRIO – Você andou tirando onda de briga com ele, hein?

ERASMO – Quis me passar pra trás já viu: entra bem.

NAZÁRIO – Fique de luque (olho) em Otávio. Ele não vai deixar ficar

por isso mesmo.

ERASMO – Ah! Com o papai aqui, ele toma torrado fora da venta. Já

sabe que não sou de dar boa vida a vadio. Veio com um

papo mixuruca, uma onda cabrera pra cima de mim. Que

não queria o irmão no negócio! Se tivesse de trabalhar

era pra ele e não andar enchendo o parreco (cu) de

qualquer um, eu ainda avisei: sai do meu juízo, que tu não

é biruta nem eu tô pra papo furado. Aí o bicho se

encrespou e cantou toda goga (vantagem) pra cima de

mim. Massacrou minha paciência. Disse a ele: olha, meu

chapa, vai curtir tua ressaca no juízo de outro que tu te

sai melhor. Vai-te voando que tenho muito trabalho hoje e

não tô pra papo furado! Disse que não ia permitir que

ninguém tomasse a freguesia dele. E botou a banca.

Morei no tanjo (vibração) dele. O bicho tava a fim de me

botar pra correr, me tirar da jogada. Eu não quis mais

nem papo. Faço que dou com a direita, o nego não se

plantou, eu catuco (implico) com o chiquito. Foi o pisante

tocar, vi a queda. Despencou que nem jaca madura e

sentou o parreco no chão. Aí a turma do deixa disso me

tirou. Senão eu tinha vestido um paletó de madeira no

curura e mandado ele pra cidade de pés juntos, ter uma

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conversa com São Pedro. Malandro, comigo, ou se

manca ou se dá mal. (Está, outra vez, perto de

Nazário).

NAZÁRIO (Atenção presa ao trabalho) – Ele diz que vai ter forra.

ERASMO – Já escutei esse papo. Não somente dele, mas de muito

menino metido a bacana. Nenhuma ainda derrubou o

papai. (Aproxima-se ainda mais de Nazário). O bom

cabrito não berra.

NAZÁRIO (Toma um susto e ergue o martelo ameaçador) – Vá pra

lá!

ERASMO – Que é isso: tá cismado?

NAZÁRIO – Se tu pegas me rondando assim, largo o serviço e vou-me

embora!

ERASMO – Deixa de onda cabrera, meu chapa! Quero só te fazer um

favor. Um benefício.

NAZÁRIO – Dispenso. Quando precisar, peço.

ERASMO (Afastando-se) – Legal. Sei esperar. Tenho paciência.

NAZÁRIO (Volta ao trabalho) – Vai precisar de muita, mesmo.

ERASMO – Vicente é que tá na boa. No Instituto... Defendendo uma

nota legal sem fazer força e travessando a erva. Toda

grana em cima.

NAZÁRIO – E você quer que eu entre nessa onda, é? Já tem Vicente,

pra que mais?

ERASMO – Ele só travessa o mato no Sindicato dele.

NAZÁRIO – Comigo não dá. Escolha outro.

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ERASMO – Bicho bom, Vicente! Não foi sem ver não. Foi ali na dureza.

Sabendo. Botou o dedo na chapa de ferro e mandou que

eu caprichasse. Serviço bacana: o melhor que já fiz. Vi o

dedo na chapa de ferro. Preparei o golpe. Alisei o martelo

como quem alisa peito de mulher: devagarzinho, sentindo

o gosto, gozando a macieza do ferro, frio e duro. O dedo

lá, esperando. Eu vendo e era como se não visse. Ele

pediu: “vamos logo!” Não tava nem fazendo calor, mas o

suor pingava da testa de Vicente, que nem do cara

quando tá tirando espírito. Eu vidrado no dedo. Nunca

senti um troço tão bacana, tão legal como naquela hora.

Fiquei parado. Suspenso. O martelo em cima. O dedo

esperando na chapa de ferro. Queria machucar o dedo,

mas o braço não descia, imaginando a beleza do sangue

pulando vivo. Se Vicente não grita: “bata, pelo amor de

Deus!” eu não acordava. Desci o martelo. O sangue

espirrou em flor do dedo estourado, sacudindo o vermelho

distante. Vicente agarrou o dedo e só deu um gemido.

NAZÁRIO (Que durante toda a fala de Erasmo suspendera o

trabalho e estampara no rosto reações semelhantes

às de Vicente, descritas pelo outro, automaticamente)

– Deve ter doído muito.

ERASMO – Apenas um gemido... Duas lágrimas saíram dos olhos...

Nada mais. Agora tá aí, na boa.

NAZÁRIO – Buxudo tá morto.

ERASMO – Porque se descuidou. Não quis trabalhar comigo depois dos

conselhos que eu dei ao irmão. Pensou em viver somente

do Instituto: não podia dá.

NAZÁRIO – Tá morto.

ERASMO – A família ficou amparada. Recebe o certo.

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NAZÁRIO – Grana micha.

ERASMO – O que é que tu tem? Tá perturbado do juízo?

NAZÁRIO – De que adiantou a morte?

ERASMO – A morte não adianta a ninguém. Atrasa: isso sim. Mas vem,

mesmo que a gente não queira. Por isso não perco tempo

azucrinando a cuca com essas coisas. Tô vivo devo viver.

Isso é que é legal. Já estive por baixo também. Vi que

cavalo é que dá o lombo pra os outros montarem. Comigo

é diferente. O meu ninguém leva com conversa. Não dou

boa vida a vadio. Também não sou gato pra ter filho

barbado. Nem mulher tira onda de vadia comigo. Se não

chegar pra minha base mando andar. A mina tem prazer

em me dar as coisas. Do meu tutu nem vê a cor e de vez

em quando escorrega uma nota firme pra mim. Quando

quer se encrespar levo um papo legal e digo que vou me

mandar, ser embarcadiço. Já tô com o navio de luque. A

nega manera logo o assunto e mete um papo firme. Outro

dia não prestou não. Eu já tava morando que a mina tava

mudada, metendo uma onda cabrera. Menino escolado;

fiquei mancuricando (observando) o tanjo dela. Essa

alma quer reza, pensei. Tinha um gajo conversando o

juízo da mina. Fui de papo com o bicho. Vai encarnar em

outra que essa já tem dono. Ele conheceu a barra e se

mancou: foi baixar noutro terreiro. Botei a nega em

confissão. Quis estilhar. Se encheu de direito: levantou a

mão pra bater na cara que mamãe beijou. Dei um ensino.

Fui de perna com ela. Quando se aprumou desprezei a

mão no pé do ouvido... Ela rodou e se apragatou

(esparramou) no chão sem vontade de se levantar mais.

Ali mesmo, ela chorando, a gente fez amor. Uma onda

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legal. Chorando do castigo e gemendo de gozo!... (Ri).

Acho que ela vai chorar quando eu me voar daqui...

NAZÁRIO – Pra onde você vai?

ERASMO – Pra onde o navio for.

NAZÁRIO – Quando vai ser isso? Ah, você tá com conversa furada!

ERASMO – Não: é papo firme.

NAZÁRIO – Olhe aqui. Não é mole embarcar, você sabe muito bem.

Vaga não anda aí dando sopa. Quando aparece uma tem

muito gente na espera.

ERASMO – Sempre se dá um jeito. Também o cara não pode ficar a

vida toda no mesmo lugar. Fica manjado. E tem mais, vai

ser bacana viajar. Me mandar por aí afora, pelas terras

dos gringos..., passar nos peitos muita gringa. (Ri). Me

voar! Sempre em frente...

NAZÁRIO – Não é onda. Termina voltando pra o mesmo lugar.

ERASMO – Já não é o mesmo. Tudo muda. O lugar..., o povo...

NAZÁRIO – É... Tudo muda.

ERASMO – Mulher! Muita mulher!...

NAZÁRIO – Falar nisso, dizem que a mulher do Buxudo já tá se virando.

ERASMO – Você queria que ela ficasse entocada feito caramujo? Quem

morreu se apagou meu chapa. Sai dessa! O negócio é

tutu, grana! E digo mais. Não é só a mulher, não. As filhas

também devem tá funcionando. As meninas, você sabe,

já brincavam antes dele se apagar. Tem uma que é até

jeitosa na cama! A segunda. De olho agateado. Aí tem

que se virar pra ganhar tutu e ter vestido novo, pisante e

aproveitar a vida. E tem um porém: tanta mulher aí que

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nem espera pela morte do marido pra botar outro na

cama...

NAZÁRIO (Como se falasse a si próprio) – Vida vagabunda. Criando

menino... A mulher reclamando..., as coisas faltando...,

colchão de espuma! Você sabe a importância de um

colchão de espuma pra mulher ficar calada? A minha não

tira da boca esse troço: colchão de espuma. Sonha

dormindo num. Fala de manhã, de noite, toda hora! Até

uma indisposição que tem diz que é porque dormiu mal.

Se tivesse um colchão de espuma... (Bate com

agressividade nos caixotes, como se pregasse as

palavras com os pregos batidos).

ERASMO – Esquece esse troço. Fala de Cabida. Turma legal.

NAZÁRIO – Não sei nada que te interesse.

ERASMO – Diz qualquer coisa. Qualquer coisa de lá. Fala da fortaleza.

Ah! Foi a maior onda: cinco homens e cinco mulheres.

Todo mundo botou fumo no juízo e entrou na zonzeira.

Fazia feio. O vento do mar tinha gosto de salgado...

Quando tudo tava doidão as negas tiraram a roupa e

saíram correndo por dentro da fortaleza. Ainda tem lá

uma mesa? Pois bem: em cima da pedra, os outros

olhando e se divertindo, cada um passou sua nega nos

peitos... (Ri. Em movimentos rápidos, sobe nos

caixotes e estira-se preguiçosamente). Conhece

boemia, hein? Garotão cheio de chinfra. Menino bom.

(Ri). Foi uma onda legal! Legal!

NAZÁRIO – E a polícia? Nunca deu em cima de você?

ERASMO – Cavalo é quem dá pinta. Eu sou menino vivido, escolado.

Não tô pra ser engrupido.

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NAZÁRIO – Um dia descobrem.

ERASMO – Que nada! Se seguir o traçado direitinho, o cara não é

engrupido nunca. Se dá azar e cai na mão da justa, leva

um papo legal... Escorrega uma nota e tira fora o corpo.

NAZÁRIO – Não tem disso. Antes do papo, os ingratos já tão batendo.

ERASMO – Tu tá mesmo por fora, hein? Nem parece que tá me vendo

aqui. Vê se eu sou de embarcar em canoa furada!...

NAZÁRIO (Volta a bater com força os pregos nos caixotes) –

Desgraça! Colchão de espumas! Merda! Merda!

ERASMO (Ri) – Cuidado! Tu te machuca! (Fuma tranquilo, medindo

as reações Nazário. Ergue-se e vem para o centro da

cena). Se importa, não, que um dia você vai entrar pra o

quadro... Aí compra colchão de espuma e a mulher fecha

o bico. (Grita para cima, para a boca do porão). Portaló!

Portaló!

NAZÁRIO – O que é que há?

ERASMO (Como se não tivesse ouvido Nazário falar) – Portaló!

Portaló!

NAZÁRIO – Fala. O que é que há?

VOZ (De cima, fora de cena) – O que é?

ERASMO – Não vão consertar esse guincho hoje, não?

VOZ (Idem) – Tá com medo de cangalha? Se tiver de levar, já levou,

não tem mais jeito.

ERASMO – Não quero passar o dia todo aqui parado.

VOZ (Idem) – É só subir, que aqui tá mais fresco.

ERASMO – Vai, rapaz. Diz se isso fica pronto hoje.

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VOZ (Idem) – Tá quase pronto. Não demora nada.

ERASMO (Volta a deitar-se sobre os caixotes) – Vou meter um

cinema hoje. Tá passando um filme legal. Não sei ainda.

NAZÁRIO – Por que tem que ser acidentado?

ERASMO (Fazendo-se de desentendido) – Diz mais alto. Não ouvi

nada. Você fala pra dentro.

NAZÁRIO – Por que você não trabalha com gente que não esteja

acidentado, gente da ativa?

ERASMO – Não dá pé. Acidentado é melhor. Tem mais tempo e mais

cuidado. O cara quando se acidenta tá pensando em

ganhar tutu e se esforça mais.

NAZÁRIO – Às vezes até demais... Como Buxudo.

ERASMO – Micha esse papo! Tá lembrando a toda hora que Buxudo se

apagou? Eu já sei. Tu já disse. Fim. Não quero mais

papo. Cavalo não tem vez. É viver na merda! Morrer na

merda!

VOZ (De cima, fora de cena) – O que é que tá havendo aí?

ERASMO (Disfarça) – Nada! Vê se esse guincho fica pronto hoje!

VOZ (Idem) – Cinco minutos mais.

ERASMO (Vai se deitar sobre os caixotes) – Cabra como Vicente não

se encontra todo dia. (Fuma). Ficam se melando dentro

das calças.

NAZÁRIO (Como se falasse consigo mesmo) – Sebastião foi em

cana.

ERASMO – Um cavalo! Medroso. Deu logo pinta.

NAZÁRIO – Mora perto de mim. Vi quando foram buscar ele.

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ERASMO – Ah! Você também mora naquele buraco?

NAZÁRIO – Começaram a bater nele dentro de casa...

ERASMO – Só pensa em coisa ruim. Parece até mau agouro!... Tira

esse cara do juízo.

NAZÁRIO – Na frente da mulher e dos meninos. Queriam que ele

cantasse... Dissesse quem fornecia a maconha...

ERASMO – E ele?

NAZÁRIO – Nada. Apanhou que nem borrego enjeitado... Os meninos

chorando... De minha casa se ouvia os gritos...

ERASMO – Isso é pra ele não ser cavalo.

NAZÁRIO – Depois foram empurrando para o carro... Ficou o berreiro.

ERASMO – Assim ele aprende.

NAZÁRIO – Tu não vai fazer nada?

ERASMO – O que?

NAZÁRIO – Ajudar Sebastião, não é? É só ele se mudar. Aliás, nem...

ERASMO – Sai dessa! Ele que se aguente. Disse pra ter cuidado...

Manerar o assunto... Cada um que se vire... Isso de eu tá

me arriscando por causa de cavalice não é onda não.

NAZÁRIO – Olha aqui. O cavalo é você, agora. Se ele canta, tu tá

hospedado na pensão do Governo.

ERASMO – Sei me defender. Tiro o corpo fora. Tenho meus amigos.

NAZÁRIO – Podia ajudar Sebastião. Pedir a teus amigos por ele.

ERASMO – Essa não! Cavalo tem que aprender sofrendo. Quando sair

das mãos dos ingratos entra na linha. Na justa vai receber

a melhor lição.

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NAZÁRIO – Pensa na mulher dele e nos meninos. Todo o mundo viu o

berreiro que fizeram.

ERASMO – Olha: ali onde tu mora ninguém deve botar reparo nessas

coisas. Já tão cansados de ver a justa dar batida. Aquilo é

lá lugar de gente? Vê Vicente: ele já morou lá também.

NAZÁRIO (Intencional) – É. Eu sei.

ERASMO – O que foi que houve? Te passou pra trás?

NAZÁRIO – Não houve nada com ele. Morou junto de mim. Vizinho. Não

fosse por causa do colchão de espuma que ele comprou

pra mulher..., eu não tinha nada que dizer dele.

ERASMO – Tu vai ter um também. Tenha paciência.

NAZÁRIO – Não é por mim, não. É a mulher. Até que a mulher não

havia falado mais no colchão de espuma... Pensava que

tinha se esquecido... Reclamar reclamava, mas de outras

coisas... Do colchão tinha deixado de falar... Não é que

Vicente compra um colchão de espuma! Não prestou,

não. A mulher dele mostrou o colchão pra todo o mundo.

Minha mulher ficou furiosa. Falei que meu dinheiro não

dava pra essas coisas. Disse que Vicente trabalhava no

cais de bagrinho, como eu, e tinha comprado um pra

mulher dele. Onde é que eu tava botando o dinheiro?

Expliquei como Vicente conseguia dinheiro. Sabe o que

ela me disse? “Por que eu não fazia como ele?”...

ERASMO – Agora Vicente tá de apartamento. Sem perturbação. Na

moleza...

NAZÁRIO – Até que o apanhem... Batam nele na frente da mulher e dos

filhos... Arrastem pela rua. O pai vai vê-lo na cadeia...

ERASMO – Cala essa boca agourenta, porcaria!

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NAZÁRIO – Até que não volte mais... Amanheça um dia com a cara pra

o sol..., boiando num rio..., o corpo inchado aparecendo

no jornal...

ERASMO (Ergue-se) – Cala a boca! O que é que tu quer? Que se viva

a vida toda trabalhando, num porão de navio, sufocado

pelo calor, levando chuva no inverno, pegando

pneumonia? Um dia um fardo de algodão, um saco ou

uma caixa despenca em cima do desgraçado e ele se

apaga. Você sabe de todos os casos. Do Gojoba, que

despencou numa noite de maio no porão vazio... Não teve

tempo nem de gritar. A cabeça ficou uma poça de

sangue. Sabe de tantos casos..., de tantos que morreram

ou ficaram aleijados... Sabe de outros que se

aposentaram e vivem como xepeiros nos navios... O que

é que tu quer? Que todo mundo seja cavalo que nem

você?

NAZÁRIO – Eu quero viver.

ERASMO – E tu pensa que todos esses caras que se apagaram no

trabalho, também não queriam viver?

NAZÁRIO – Eu sei o que eu quero. Os outros sabem o que eles

querem.

ERASMO – Que vida tu quer viver? Carregando a fome na cara, na

roupa, no pisante? A vida tá toda aí fora convidando a

gente. O tutu se oferecendo. Olha. Tô te dando uma vez.

Quero de ajudar. Se tu não aceita eu procuro outro. Ele é

quem vai ganhar.

NAZÁRIO – Procure outro.

ERASMO – Além de cavalo..., medroso.

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NAZÁRIO (Ergue-se, martelo em riste, e enfrenta Erasmo) – Só não

tenho medo de você. Você pode ser bacana pras suas

negas, mas comigo se estrepa.

ERASMO – Ih! O menino quer falar grosso. Tomou chá de homem, foi

meu chapa?

NAZÁRIO – Corra dentro pra ver.

ERASMO (Ri) – Devagar, negão. Manera esse assunto. Não tô a fim de

me engrupir contigo. Isso não é papo. Tu é meu chapa.

Deixa essa onda micha pra lá. Se tu não quer, tá

acabado. Não se leva mais o papo. Pronto. (Vai-se deitar

na pilha de caixotes).

NAZÁRIO (Retorna ao trabalho batendo os pregos com fúria) –

Colchão de espuma...

ERASMO – Ô meu chapa: vê se bate esse troço mais devagar! Não tem

cristão que aguente o barulho.

NAZÁRIO – Está incomodado?

ERASMO – Dói nos ouvidos da gente.

NAZÁRIO - Não devia tá aqui. O resto dos terno tá em cima. Lá em cima

tá mais fresco...

ERASMO – Aqui já tem fresco demais...

NAZÁRIO – Só tô vendo um.

ERASMO – Olha velho, minha paciência também acaba.

NAZÁRIO – Problema seu.

ERASMO (Pausa. Acende um cigarro) – Nazário...

NAZÁRIO – Diz.

ERASMO – Quer?

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NAZÁRIO – Não. Vamos michar esse papo duma vez. Tá bem? Eu já te

disse que...

ERASMO – Que papo?

NAZÁRIO – Você sabe.

ERASMO – Não sei de papo nenhum.

NAZÁRIO – Olha aqui: vai azucrinar o juízo de outro. Já te disse que

não quero saber de acidente, e pronto. Deixa eu terminar

essa desgraça desse trabalho em paz. Tá bom?

ERASMO – Que onda é essa, hein? Tu não entende as coisas e fica aí

engurujado..., no mundo da lua. Eu levanto um papo legal

e tu com essa onda cabrera.

NAZÁRIO – Não tem onda nenhuma. Você fica aí me zerando... Já

disse que não quero assunto.

ERASMO – Devagar, meu chapa. Só quero te dá um fininho.

NAZÁRIO – Não é onda pra mim.

ERASMO – É uma onda muito legal. Não me diga que ainda não deu

um puxo? Hein? Eu sei que tu não é otário. Em Cabida a

turma é firme...

NAZÁRIO (Bate com mais força os pregos no caixote) – Não quero

papo. Já disse.

ERASMO – Ah! Menino bom! Sabe: você assim, apavorado...

NAZÁRIO (Corta) – Eu não tô apavorado. Não tenho medo de ninguém.

De ninguém, ouviu?

ERASMO – Calma, negão, calma, tá? Boiava por aqui de vez em

quando... Nunca se lembra? Você deve ter conhecido

também. Boiava por aqui de vez em quando... Nunca

tinha entucado a coisa no juízo... Chegou um dia pra mim

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e pediu um puxo. Escorreguei um baseado. (Ri). O

garotão puxava a coisa numa gulodice que só você

vendo! ... A fumaça no juízo, já viu. Foi só no que deu.

Ficou doidão. Todo besuntado. Foi bater o “bode” o

garotão tremia que nem vara verde... Parecia até que tava

com maleita. (Ri). Foi uma onda legal. Chorava, ria..., era

gozado. Depois dessa vez ele grudou em mim que nem

catarro em parede. Não prestou não. Toda hora queria se

cardiar (preparar). Garotão, não sabia manerar a coisa.

Disse a ele que naquela onda terminava zoró (tribo de

índio do Mato Grosso). Não adiantou. Tava ali toda

hora. Parecia até visagem: aparecia onde menos se

esperava. Mandei ele se arrancar. Se voar do meu juízo.

Menino novo assim dá muito na vista. Os tiras ficam

manjando a gente. Moram na jogada e já viu: é um

desemprego. Já tinha um gajo de luque, tirando meu

tanjo. Disse ao garotão: vai baixar noutro terreiro que já

tem cura luqueando. É hora de descartar, que uns e

outros tá afim de engrupir a gente. Mas que foi uma onda

legal, foi. (Ri).

NAZÁRIO – E ele?

ERASMO – Quem?

NAZÁRIO – O menino.

ERASMO – Sei lá. Se arrancou do meu juízo quando viu que eu não

tava a fim de me engrupir com a justa por causa de

ninguém.

NAZÁRIO – Pois eu sei. Saiu de tua mão e foi trabalhar para Otávio.

Puxou a erva demais e ficou ruim da bola.

ERASMO – Micha esse papo. Já conheço a história.

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NAZÁRIO – Por isso mesmo é preciso repetir. Um dia te procurou e tu

mandou ele andar.

ERASMO – Não sou de tirar onda de abrigo de menor.

NAZÁRIO – No outro dia encontraram ele morto..., com os punhos

cortados.

ERASMO – Desliga a televisão ou muda de canal. Já tô cheio de

novela.

NAZÁRIO – Tô por dentro do teu caso. Mete o cara na jogada e tira o

corpo.

ERASMO – E o que é que tu quer? Que eu tire onda de babá? Ah, essa

não!

NAZÁRIO – Então micha esse papo duma vez! (Volta a agredir os

caixotes com fortes marteladas).

ERASMO – Escuta aqui, ô coisa! Tu vai ficar na merda a vida toda, é?

Tô te dando uma vez. Tu não tem cuca pra ver isso?

Vamos. Pega a coisa. Um puxo... Fica tudo legal... Com a

coisa no juízo tu não sente nada. Nem uma dorzinha...,

um troço em ordem... Tudo bacana...

NAZÁRIO (Ergue-se e vai recuando até a escada) – Pare com isso.

ERASMO (Segue-o insistindo) – É só um puxo. A fumaça entrou na

cuca tudo fica legal...

NAZÁRIO (Agarra-se à escada para subir) – Não quero.

ERASMO – Tem que ser agora. É uma chance. Tá deixando passar?

Não tenha medo.

NAZÁRIO – Não tenho medo.

ERASMO – Então?

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NAZÁRIO – Não quero.

ERASMO – O puxo?

NAZÁRIO – Sim..., o puxo.

ERASMO – E o acidente? Cru mesmo?

NAZÁRIO – Não... Não... Não quero.

ERASMO (Segura o braço de Nazário) – Decida. Não temos mais

tempo.

NAZÁRIO (Lutando por libertar-se de Erasmo) – Solte meu braço!

ERASMO – Não vai doer.

NAZÁRIO – Solte-me! (Luta desesperado por libertar-se).

ERASMO (Dando um puxão em Nazário) – Tem que ser agora!

NAZÁRIO – Não! (Os dois rolam provocando grande barulho com a

queda de caixotes e latas. Nazário ergue-se e põe-se

em guarda, ameaçando Erasmo com o martelo).

VOZ (De cima, fora de cena) – Pressa é essa? Já tá quase pronto.

Tenha paciência.

ERASMO – Tá bem. Não chacoalha. (Nazário e Erasmo ficam se

medindo, olhando fixo um para o outro, os golpes

armados. Um com o martelo e o outro com um pedaço

de ferro. Nazário com pavor estampado no rosto

espreita os movimentos de Erasmo, escudando-se

nos caixotes. Erasmo, depois de algum tempo, dá um

salto e vai-se sentar na pilha de caixotes. Nazário,

num ato reflexo ao movimento de Erasmo, dá um

salto em direção à escada e faz menção de subi-la.

Erasmo espoca uma gargalhada cínica, larga, um

tanto forçada).

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NAZÁRIO (Aos poucos vai se recompondo e volta ao trabalho,

espreitando Erasmo de esguelha) – Para com esse riso

besta!

ERASMO – Coitadinho: como ficou apavorado!... Não tenha medo

bichinho, o papai não vai lhe fazer mal. Não vai machucar

o nenezinho... (Nazário bate em crescente fúria os

pregos nos caixotes). Dá até vontade de botar no colo...

Tadinho!... Faz tanta pena... Vai morrer batendo prego...,

costurando sacos... Boa pinta. Dava pra ter melhor

destino. É isso mesmo: futuro de cavalo é mascar capim.

NAZÁRIO – Para com isso!

ERASMO – Coitadinho!

NAZÁRIO (Grita) – Para com isso!

ERASMO – Tudo isso é medo, meu chapa!

NAZÁRIO – É..., é sim. É medo. Medo! Tenho medo, sim. Quem não

tem? Todo mundo tem medo. Você... Você tem medo

como todo mundo. Tem medo. Medo!

ERASMO – Não fico me melando sem mais nem menos.

NAZÁRIO – Medo... Mais do que os outros. Tudo o que você faz é por

medo.

ERASMO – Só não tenho medo de deixar de ser cavalo. Escuta aqui.

Aprendi desde menino que o que vale é tutu. É tem um

porém: grana não fala. Não diz de onde veio nem como

veio. Agora, que dá respeito, dá!... Compra tudo. Tudo.

Sabe? Tudo! O cara com grana em cima, pode ser feio,

preto, aleijado, o escambau! Fica bonito, bacana, todo

mundo quer ser amigo dele. Vê se eu sou de deixar

passar uma onda dessas!... Carreguei vinte anos a fome

na barriga e na cara... Deu tempo pra encucar, que ter

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dinheiro não é nada ruim... Até o padecimento de quem

tem dinheiro é mais bacana do que o do cara na pior. É

meu chapa, tua mulher tem razão: chorar em colchão de

espuma é menos duro do que no chão frio. E tem uma

coisa engraçada. O cara não se apaga de qualquer

bobagem..., nem amanhece com a cara pra cima...,

boiando num rio. Morre de doença bacana..., de nome

bonito..., em colchão de espuma..., o nome no jornal..., o

rádio falando dele. Dizendo um porrilhão de coisa que o

cara nem sabia que era..., que tinha feito. Tudo em

ordem. Bacana! Muito bacana!

NAZÁRIO – Deixa de papo micho! Tá gastando saliva. Eu quero saber é

do teu medo. Diz que não vive te cagando de medo que a

polícia te dê o flagra? Diz!

ERASMO – Tá bem. Tenho medo. Mas sabe de quê? De voltar a ser o

que já fui. Entuca isso de uma vez. Tu sabe o que é que

era minha mãe? Hein? Tu sabe? Não, não sabe. Vou te

dizer: lavadeira de bordo. Ia a bordo dos navios apanhar

roupa pra lavar. Não prestava apenas esse serviço aos

embarcadiços: para aumentar o ganho deitava-se com os

fregueses. Lá no beliche mesmo. Numa dessas lavagens

de roupa me trouxe no bucho. Visitava tanto navio..., de

tanto lugar diferente..., nunca soube me dizer se sou filho

de brasileiro ou de gringo... Me criei aqui no cais mesmo.

Vinha com ela buscar roupa e ficava do lado de fora,

enquanto ela atendia o freguês... Fiz camaradagem nos

navios e tirei onda de capitão de areia... Carreguei muito

balde pesado, cheio de areia, pra lavar convés de navio.

Fui xepeiro de bordo..., afanei coisas..., me virei desde

menino pra matar uma fome que não tinha mais idade...,

e nunca acabava..., sempre tava por perto.

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NAZÁRIO – Pra que esse drama, meu chapa? Sei de tudo. Tá aí na

boa..., no quadro da estiva. Trabalhando uma vez perdida

e mandando os outros na tua chapa..., pra te dá o terço.

Vê se te manca!

ERASMO – Escuta isso de uma vez, ô cara! Não tô a fim de te

conversar coisa nenhuma. Quero te dar uma luz!

Entende? Uma luz! Não entrei na estiva logo no quadro,

não. Fui bagrinho. Padeci. Tem uma coisa. Quando entrei

de bagrinho não era mais cavalo. Sabia que quem tem

grana se sai bem em toda parte. O negócio é usar a

cuca..., o resto, a grana consegue. O bacana é que agora

eu posso me virar e tenho a nota firme. Hoje tô tirando

onda de burro jumento..., mas amanhã mando um na

minha chapa e meto uma praia legal!...

NAZÁRIO – É... Amanhã... Se a justa não te levar em cana.

ERASMO – Esquece isso. Mas que coisa! Não tira os ingratos do juízo!

Pensa no tempo. Isso que é assunto. O tempo... Tá

passando.

NAZÁRIO – Que passe!... Ninguém pode parar.

ERASMO – Toma o puxo.

NAZÁRIO – Não vai adiantar.

ERASMO – Com o fumo no juízo tu fica doidão e não vai sentir nada.

NAZÁRIO – Você pensa que os médicos não descobrem? O cara

embriagado no serviço, já viu. É a maior onda. Não vou

entrar em fria. Tô por dentro da situação.

ERASMO – Tu vai ficar na mesma a vida toda?

NAZÁRIO – É o jeito!

ERASMO – Tô te mostrando. Oferecendo.

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NAZÁRIO – Tem de haver outro jeito... Esse não me interessa. Quero

olhar todo mundo na cara. Não ter medo de ninguém.

Quero que todos me respeitem.

ERASMO (Estoura numa gargalhada) – Todos te respeitem!...

NAZÁRIO – Tô falando sério. Por que não devem respeitar?

ERASMO (Sempre rindo) – Todos te respeitem!...

NAZÁRIO – E por que não? Responda.

ERASMO (No mesmo tom) – Por que..., por que..., só se respeita quem

tem dinheiro. Tu quer olhar na cara dos outros e vive

baixando a cabeça pra todo mundo!...

NAZÁRIO – Mentira! Eu sou homem. Não me abaixo pra ninguém.

ERASMO – Devagar, negão. Pra cima de mim com esse papo?... Sou

daqui mesmo. Quem é que não deixa o cangote? Me diz.

NAZÁRIO – Não interessa. E tu, o que é que quer? Tudo isso pra que

eu travesse tua mercadoria, hein? Pra que eu te dê

lucro!...

ERASMO – Tu vai ganhar também. Sair da merda.

NAZÁRIO – Olha aqui. Eu posso ser cavalo, burro, jumento, o que tu

quiser. Agora te digo. Tu não vai encher o parreco à

minha custa. Tá pensando que eu sou otário é? Não vou

na tua conversa.

ERASMO – Dou luz. Se o cara não for cavalo...

NAZÁRIO – Aceita a luz..., e a justa apaga ele.

ERASMO – A luz que dei a Vicente tá acesa.

NAZÁRIO – Por quanto tempo, hein? Por quanto tempo?

ERASMO – O tempo que ele quiser.

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NAZÁRIO – Tu sabe que não é isso.

ERASMO – Tu azucrina o juízo de qualquer um. Como é: vai pegar de

fumo?

NAZÁRIO – Isso não é assunto. Já te disse.

ERASMO – E o acidente? Não precisa trabalhar pra mim... Tá certo. Tu

tem medo da justa. Não forço a barra... Só por tuas mãos.

Tuas mãos... São tão bonitas!... Tanto sangue... Tenho

pena. Deixe eu fazer... Não machuca nada... Prometo.

Somente um pouquinho de sangue.

NAZÁRIO – Nada feito.

ERASMO – Tão bonitas... Tanto sangue...

CATARINO (Desce pela escada do porão) – Como é? Te esperei.

Você não deu as caras. Qual foi o galho? Tá tudo lá,

esperando.

NAZÁRIO – Não deu pé. Quando é que o navio se arranca?

CATARINO – Amanhã de tarde.

NAZÁRIO – Passo de manhã.

CATARINO – Mas vai mesmo, hein?

NAZÁRIO – Se importe não. E o guincho demora muito?

CATARINO – É o que te disse. Muito safado. Toda hora tá dando fora.

Eu a fim de me mandar pra terra e acontece isso! Ah!

Nem te digo. Tô aí com uma menina legal. Novinha.

Gamou pelo papai aqui. É a maior onda. Só tu vendo.

Levei um papo pra garota que eu tava embarcado, pra me

distrair, mas que era proprietário de uma fazenda de café

no Paraná. (Ri). A nega foi nas minhas águas e tá

maluca... A turma de bordo fica se babando. A garota é

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legal mesmo. Bonita às pampas. Miss. Ganha de

qualquer miss. A maior zonzeira. Disse pra ela que o

porão terminava a carga cedo e marquei encontro. Agora

tá aí. O guincho pifa. E é porque o eletricista é safo!... Se

não fosse, você ia ver, tinha que meter um guindaste de

terra. É de lascar. Um restinho de carga desses e a gente

aqui preso...

ERASMO – Ah! Não se lamente que o mal é de muitos. Tô a fim de

meter um cinema legal e fico aqui também. Um bang-

bang italiano em ordem.

CATARINO – Você é Erasmo, não?

ERASMO – Qual é o babado?

CATARINO – Tudo na santa.

ERASMO – Tô ficando conhecido é?

CATARINO – A gente sempre fica conhecido... Qual foi o galho com

Otávio, hein?

ERASMO – Dei uns conselhos a ele. Ele é teu chapa?

CATARINO – Fiz negócio com ele.

NAZÁRIO – Tem sabido notícias da terra?

CATARINO – Nunca mais. O barco foi somente até Maceió. Deu

vontade de ir lá ver a turma, mas não deu tempo. Tinha

um assunto pra resolver em Maceió... Alguma novidade?

ERASMO – Fumo de Macica é legal... (Dá um puxo no cigarro).

NAZÁRIO – Nada. Desliguei.

CATARINO – Nem do velho?

NAZÁRIO – Nada.

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CATARINO (Indicando Erasmo) – Disse que o chapa aqui é bom

menino. Não é de tirar onda de cavalo..., nem de dá boa

vida a vadio...

ERASMO – Te deram toda minha ficha, hein?

CATARINO (A Nazário) – E o troço que eu te falei?

NAZÁRIO – Amanhã. Não já te disse?

CATARINO – Não. Não é isso. É a muamba. Como é?

NAZÁRIO – Micha o papo.

CATARINO – Coisa em ordem. De Maceió.

NAZÁRIO – Tô fora.

CATARINO – Quero te ajudar. Fico te trazendo.

NAZÁRIO – Não... Não dá pé. Tem Otávio.

CATARINO – Larguei ele.

NAZÁRIO – Não vai gostar.

CATARINO – Azar dele! Comigo, ou anda direito ou já viu. Ninguém me

passa pra trás.

NAZÁRIO – É... Mas não tá pra mim não.

CATARINO – O que é que há? Tô te desconhecendo. Em Cabida tu

tava por dentro...

NAZÁRIO – Aqui não é Cabedelo. Não quero mais assunto.

CATARINO – Você é quem sabe. Se não quer mais... Vou te dizer. Eu

acho que já é tempo de tu tirar o velho da cuca.

NAZÁRIO – Ih! Isso não é assunto!

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CATARINO – Esquece. Não precisa ficar a vida toda assim... Tempo

bom, hein?

NAZÁRIO – Você achava?

CATARINO – O que é que há? Tu vai ficar amofinado o resto da vida

por causa de teu pai? Isso de ir em cana ficou pra homem

mesmo. Te digo mais. A gente só se deu mal por causa

daquele alcaguete safado. Agora vou te dizer. Vai por

mim que tu vai bem. Tô por dentro. O negócio é o cara

não ficar cheio de fricote... Tu fica aí engurujado... Deixa

isso pra lá. Esquece. O que aconteceu, aconteceu.

Pronto. Agora é pensar no hoje. Aquilo serviu de

experiência. É a vez de entrar no tutu.

ERASMO – É o que eu sempre digo a ele. O menino não quer entucar a

verdade no juízo...

CATARINO – Menino bom. Legal. A gente fez a maior onda... Toda nota

em cima...

NAZÁRIO – Não é assunto. Já passou.

CATARINO – O que é que tem? O garotão aqui é legal que eu sei. Tá

por dentro da onda... Não é de alcaguetar. Também se

fosse dava-se mal.

NAZÁRIO – Olha Catarino. Escuta duma vez. Continuo pensando como

no navio. Larguei tudo, sabe? Não quero voltar mais à

vida antiga. Aqui sou somente do trabalho. Do trabalho. A

lição pegou.

CATARINO – Me admiro de ti. Nunca pensei. Tu sempre foste um cara

legal às pampas... Foi o casamento, hein? Te amoleceu.

NAZÁRIO – Não. Não foi. No navio, quando a gente se mandou de

Cabedelo, eu ainda não tava casado.

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CATARINO – Pra cima de mim! Eu sei como é esse troço. Mulher...

Menino... Amolece o cara.

NAZÁRIO – Não foi nada disso. O que eu não quero é ir em cana outra

vez, tá ouvindo?... Vejo sempre a cara de meu pai

olhando pra mim..., as lágrimas descendo pelo rosto e

caindo no bigode branco..., os olhos parados em mim...,

me queimando.

CATARINO – Também teu pai é da velha guarda. Não tá por dentro da

onda. Não entende nada. O papo dele é que tu ia estudar,

botar banca de doutor, o escambau! Isso não era assunto

pra você. Claro que você não é dessa onda de queimar o

juízo em cima de livro... O negócio era se cardiar e

travessar o fumo, descolar uma nota legal e se virar com

as negas!... Tem muito cavalo aí..., tu não é de tirar essa

onda...

NAZÁRIO – Não se trata disso. Essas coisas não têm importância pra

você. Pra mim tem. Tem muita. Depois daquele dia ele

não quis mais me ver...

CATARINO – Melhor pra você que não tem quem lhe perturbe o juízo!

Isso de velho, no fim da vida, é a onda mais cabrera que

já inventaram

ERASMO – É o que eu digo: cavalo só quer comer capim.

NAZÁRIO – Ninguém pediu tua opinião.

ERASMO – Deixa eu dar o meu pitaco também, que agora tô por dentro

de tua onda toda. Tu tirando onda de bom moço pra cima

da gente, hein? Tô conversado...

NAZÁRIO – Do que adianta saber dessas coisas?

ERASMO – Sempre é bom a gente ter a ficha completa das pessoas.

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NAZÁRIO – Besteira é essa tua! Tá bem. Travessei a erva, me cardiei, o

escambau!... E daí? Não é mais onda pra mim e pronto.

Não vou mais puxar nem travessar.

ERASMO – Falar é fôlego. Tu sabe que no mundo tem duas classes de

gente: os sabidos e os otários. Uns têm tudo sem fazer

muita força, enquanto os outros ficam aí na merda a vida

toda. Tu sabe que não é fácil ser otário. É dar duro a vida

toda pra não ter nada. Conheço muita gente como tu.

Menino estudioso, doutor. De que adiantou o anel? Nada.

Ficou sempre pra trás. Isso de estudar não é tudo. É

preciso ter cara grande pra dar a mão. E tu já saísse

dessa. Tá se vendo que não é a tua meter estudo na

cuca. Agora fica pensando no velho, nas reclamações da

mulher... Sai dessa, negão!

NAZÁRIO – Ah! Vê se te manca! Ninguém te chamou nesse papo.

CATARINO – Eu acho que tu já tá bem crescido pra largar a perna da

calça de teu pai. A vida é difícil em todo canto. Tu não

deu pra o estudo, como teu pai queria e não tem coragem

de enfrentar a dureza. Fica se borrando. É entucar que a

vida é essa mesmo. Não tem o que pensar. Ou o cara

decide ou tá pebado (se dar mal). Não tem essa de ficar

maginando e esperando que as coisas caiam do céu. É

batalhar.

NAZÁRIO – Não tô te pedindo conselho. Deixa minha vida e cuida da

tua. Já sou grandinho. Sei o que faço.

CATARINO – Ah, conversa! O que tu tem é moleza. Não vai ter nunca

nada. Não tem coragem de enfrentar a verdade e fica aí

se lamentando. Olha velho, entuca isso de uma vez. As

coisas acontecem quando a gente faz por onde. E tem

mais. Não importa como. O que vale é conseguir as

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coisas. Eu tenho meu emprego. Você também podia tá

comigo, trabalhando junto. Não teve coragem, tá aí na

mesma. Que adianta ficar pensando no que teu pai é, ou

no que ele queria que tu fosse e tu não conseguisse ser?

Vai. Esquece ele e toca pra frente. Em qualquer caminho.

Tô te mostrando o mais fácil. Se tu não quer, problema

teu. Só tem uma coisa. Vai ter que trabalhar, e com a tua

disposição, duvido muito que consiga alguma coisa.

NAZÁRIO – Ora, não enche! Eu sou capaz de fazer qualquer coisa. Só

não vou é me meter mais com erva nem com polícia.

CATARINO – Tá bem. Tá bem. É teu direito. Agora pra não se meter

com isso, como tu quer, é preciso o cara ter coragem de

batalhar. E tu tem? Diz. Tu tem coragem de batalhar?

NAZÁRIO – O que é que tu quer? Tu não entende. Não pode entender e

fica aí com esse papo furado.

CATARINO – O que é que eu não entendo, hein? Ora meu chapa: se tu

dá muita bola pra o que o povo diz ou pensa, tu te acaba

cedo. Isso não é onda. O que vale é o cara ser vivorino e

saber usar a cuca pra ganhar tutu. Isso é o que é bom. Vê

a minha onda. É eu chegar, o mulherio cai em cima que

nem mosca no mel...

NAZÁRIO – Ah, todo o marítimo gosta de tirar onda de rico, meter birita

na cuca, estourar nota com o mulherio! Elas, depois... Tu

te lembras como a gente ficava com inveja dos marítimos

e escorregamo dinheiro deles para os gigolôs?... A nossa

vingança era saber que o dinheiro deles vinha pra gente.

Agora eu entendo eles.

CATARINO (Ri) – Era uma onda legal! Os cavalos soltando a grana

pras negas e elas escorregando pra gente. A tua nega...

Marly, não era? Não soubesse mais dela?

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NAZÁRIO – Pra que saber? Mas, não é isso que eu quero te dizer.

Escuta: vi muito trabalhador estourando dinheiro, que ia

fazer falta em casa, desesperado para imitar os

embarcadiços..., e sem entender o desespero dos

embarcadiços... Tu não sentes que tás fazendo o

mesmo? Tu já não é o cara bacana daquele tempo.

Entraste na onda dos marítimos. Tás dando também boa

vida à mulher.

CATARINO – O que é que tu quer? Passar dez, quinze dias num navio

sem tocar em terra não é moleza. O cara tem de tirar

onda de coronel. E tem mais. Isso de ser gigolô é onda

pra quem tá na pior..., não tem nota.

ERASMO – Tá, negão, tu és um cara viajado e até entendido de muita

coisa. Mas esse teu papo não tá mesmo. Já vi que em

negócio de mulher tu não entende do traçado. Bem que é

uma onda bacana ter mulher trabalhando pra gente,

escorregando nota firme!

CATARINO – Nem sempre a gente pode tirar essa onda. Aí entra de

coronel. E quando o cara é bacana, sabe conversar o

juízo da nega, leva um papo legal, e pode até dar uma de

gigolô. O negócio é prometer. Quanto mais impossível é a

promessa, mais a nega acredita. É como num sonho.

Acho mesmo é que elas precisam acreditar em coisas

impossíveis... Não tem quem entenda esse troço direito.

(Para Nazário). Olha: vou ter que me mandar. Preciso ver

um parangolé lá em cima. Mas quero resolver logo o

nosso assunto. Quero te ajudar. Tu me conhece. Para os

amigos eu sou legal... Tu é quem sabe o que quer. Sei

que tu não é de tirar onda cabrera... Por isso vou te dizer.

Tô com a muamba aí. Otávio quis me passar pra trás.

Não vou mais trazer fumo pra ele. Tu podia entrar na

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jogada. Não precisa nem se preocupar com o tutu. Depois

a gente acerta. É tua vez. Fico trazendo. Tô por dentro de

todas as bocas. É só travessar aí pra os compradores. Tu

sabe que comprador não alcagueta. É pegar, e entrar no

tutu legal.

ERASMO – Tás com o mato a bordo?

CATARINO – Não. Tá fora. Em lugar seguro. Não sou menino. (Para

Nazário). Como é?

NAZÁRIO – Não... Não dá. Esquece. Não vai faltar quem te compre.

Aqui mesmo, e agora..., se quiser.

CATARINO – Eu sei. Eu sei que não vai faltar. Quero somente te ajudar.

Entende? Te ajudar. O problema não é vender a erva...

Esse não existe.

ERASMO – Falou. É isso ai. Eu tô aqui mesmo. Se quiser travessar a

muamba é abrir a boca e dizer. Tutu logo na frente. Não

tem papo.

CATARINO – Tô vendo que não adianta tá levando esse papo contigo.

Tu não vai topar um grande negócio. No muito tu podia

ser um travessador. É preciso não ter medo. E tu vive se

cagando... Depois daquele troço tu mudou muito, hein?

ERASMO – O menino aí, nem pegar de erva quer mais... Só quer tirar

onda de bom moço.

CATARINO – É. Tu afracou mesmo... Tudo por causa daquele

alcaguete safado!... Mas vai ter forra. Mando ele fazer

uma visita a São Pedro na primeira vez que baixar em

Cabedelo.

NAZÁRIO – Deixa isso pra lá.

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CATARINO – Ah! Não tem essa não. Comigo é tudo no limpo. Alcaguete

tem de penar. Tu afrouxou, mas o papai aqui ainda é

homem às pampas.

NAZÁRIO – Alcaguete deve padecer mesmo?

CATARINO – É de lei!

NAZÁRIO – Então, o que a gente devia fazer contigo?

CATARINO – Que onda é essa?

NAZÁRIO – Deixa de máscara! Todo mundo sabe que tu cantasse!

Bagre alcaguetou somente você. Disse que ele não ia

com a tua fachada. Na unha dos ingratos...

CATARINO – Safado. Queria me passar pra trás. Como o papai aqui é

muito vivo... Descobri a tramoia dele e desmascarei o

bicho. Ficou de marcação comigo. Quando os ingratos

deram o flagra nele, foi só no que deu: me alcaguetou.

NAZÁRIO – E você cantou que nem canário belga.

CATARINO – Que papo micha é esse? Vê se sou de dar serviço para a

naica (caverna cheia de cristais gigantes)? Sou menino

legal. E tu sabe disso. Tá me desconhecendo, meu

chapa? Comigo não tem essa.

NAZÁRIO – Pra cima de mim, Catarino, que penei por tua causa? Eu tô

por dentro de tudo. Nunca te disse por que para tudo tem

hora. Também fiquei esse tempo todo sem querer

acreditar. A gente cresceu junto..., você não podia fazer

isso comigo. Podia trair todo o mundo, menos a mim. Era

isso que eu sempre pensava. Mas, agora, tô te

conhecendo melhor. Tu tás na tua. Queres só teu bem, o

que te interessa. O resto que se dane. Amigo e tudo o

mais.

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CATARINO – E tu queria que pagasse sozinho? Os ingratos vieram com

uma onda de me botar em confissão debaixo de

pancada... Eu aí, não é? Você sabe... , o que é que há

meu chapa? Eu não te alcaguetei. Escorreguei somente o

nome de Viriato. Não ia fazer isso contigo.

NAZÁRIO – Somente o nome de Viriato!... E precisava mais? Todo

mundo sabia com quem Viriato andava!

CATARINO – Amanhã te espero. (Aproxima-se da escada para sair).

ERASMO – E o mato? Tô nessa boca?

CATARINO – Tu quer mesmo?

ERASMO – É coisa que se pergunte? Abre a boca e diga lá. Negócio

comigo resolvo sem papo.

CATARINO – Faz o seguinte. Na saída passa lá no meu camarote. A

gente acerta.

ERASMO – Legal. (Catarino sai. Erasmo senta-se num caixote,

displicentemente). Quantos filhos tu tem, hein?

NAZÁRIO (Atacando os caixotes com fúria) – Três. Duas meninas e

um garoto.

ERASMO – Quantos anos?

NAZÁRIO – Quem?

ERASMO – O garoto.

NAZÁRIO – Quatro.

ERASMO – Gosta de você?

NAZÁRIO – Que te interessa? Minha família é minha. Particular. Não

quero assunto.

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ERASMO – Às vezes fico pesando..., seria bacana ter um pirralho. Meu

filho... Dava tudo a ele. Bola, carrinho, levava à praia..., o

escambau! Era uma onda legal.

NAZÁRIO – E por que não tem? Mulher não falta.

ERASMO – Não dá pé. Não é onda ficar preso. Quero ser livre.

Brinquedo. Todo garoto gosta de brinquedo. Vou comprar

um pra teu filho. Ele gosta de carrinho?

NAZÁRIO – Como todo o menino.

ERASMO – Compro um carrinho pra ele.

NAZÁRIO – Não precisa.

ERASMO – Quero dar. Gosto de garoto. Não custa nada. O dia hoje foi

lucrativo.

NAZÁRIO – Não quero onda com meu filho. Deixa ele em paz. Não é

onda meter minha família nesse assunto.

ERASMO – O que é que há? Quero dar um carrinho ao garoto,

somente.

NAZÁRIO – Dá a outro garoto. Ao garoto que tu quiser. Deixa meu filho.

ERASMO – Devagar, negão. Tu não quer trabalhar comigo, tá bem. Não

trabalhe. Não vou te forçar. Mas eu sou teu chapa.

NAZÁRIO – Esqueça meu filho.

ERASMO – Quero somente dar um brinquedo a teu filho. Não vou fazer

mal ao garoto. Ele tem muitos, é?

NAZÁRIO – Que te interessa? Se não tiver ele mesmo faz.

ERASMO – Quando eu era garoto fazia eu mesmo os meus brinquedos.

Era legal, sabe? Mãe não podia me dar brinquedo... Ah!

Cheguei a fazer carrinho de madeira tão bacana que

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depois vendia. Ganhava grana. A garotada vidrada nos

carrinhos que eu fazia. Só tu vendo. Arranjava pedaço de

madeira, caixote velho, latas vazias de óleo..., vendia

tudo. Não chegava pra quem queria. Menino granfa

largava os brinquedos bacana, pelos meus carrinhos.

NAZÁRIO – Menino quer tudo o que vê.

ERASMO – E nem sempre o pai pode dar.

NAZÁRIO – Um dia vai ter todo o brinquedo que quiser.

ERASMO – Quando? Quando vai ser isso?

NAZÁRIO – Um dia... Quando..., quando eu estiver no quadro...

ERASMO – É mesmo? E quando tu vai entrar pra o quadro?

NAZÁRIO – Um dia...

ERASMO – Não sabe, não é? Pois eu vou te dizer. Quando tu tiver

balançando os ovos dos caras todinhos que mandam lá

no Sindicato! Quando eles já estiverem cheios de tua

aporrinhação! Quando tu já estiver velho e não servir mais

nem pra arranjar mulher pra eles! Quando...

NAZÁRIO – Cala a boca!

ERASMO – A tua ficha eu já conheço. Tô acostumado com gente como

você que gasta a vida toda se sujeitando a tudo,

bajulando, pra depois findar na merda!

NAZÁRIO – Eu posso findar na merda, mas não vou permitir que me

machuque, está ouvindo? Não vou fazer fila no Instituto,

com uma parte do corpo envolvida em gaze, mutilado, no

meio de um bocado de gente sem esperança. Você já viu

as pessoas nas filas do Instituto? Olhou bem na cara

delas? É uma gente que já morreu. Que não vive mais.

Nem olham as outras de frente. Ficam ali, humilhados,

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como bois no matadouro. É como se estivessem

recebendo um favor, uma esmola. A impressão que a

gente tem é que aquelas pessoas não sabem que aquilo

é um serviço, uma obrigação, um benefício assegurado

pela lei e não um favor. A gente morre aos poucos só de

ficar com aquelas pessoas. E isso não é vida de ninguém.

A gente tem que lutar por coisa melhor. Trabalhar, vencer

com o próprio esforço. E não ter que mutilar um pedaço

do corpo para poder viver. E para sustentar o ganho,

garantir o dinheiro do Instituto, alimentar a ferida. Não.

Isso não tá certo. A vida não é isso. Eu não posso aceitar

um risco desses. A morte está aí mesmo esperando,

esperando, esperando com paciência, que a gente se

descuide e trabalhe mais a ferida... Eu não posso aceitar

viver alimentando uma ferida para ter dinheiro para

alimentar minha família. Isso não tá certo. Não é pelo

crime que estou cometendo, enganando o Instituto, não.

É o crime contra mim e minha família. Isso eu não faço.

Não me interessa. Podia estar embarcado se tivesse

machucado o dedo, como Catarino, e me encostado no

Instituto. Mas não me interessa, ouviu? Não me interessa!

ERASMO – Resultado: ele está aí na boa, e você na merda! Tudo por

causa da tua covardia!...

NAZÁRIO (De golpe armado com o martelo) – Quer experimentar,

hein? Vem! Tu não gosta de cantar goga? Vem ver quem

é covarde!

ERASMO – Sai dessa! Não tô a fim de brigar contigo! Que papo é esse?

VOZ (De cima, fora de cena) – Já vai! Já está pronto! O pessoal vai

descer!

NAZÁRIO (Recompõe-se. Veste a camisa) – Conserto o resto lá fora.

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ERASMO – É... Eu ajeito com cuidado na lingada (objetos que se

unem de uma vez).

NAZÁRIO (Põe o martelo na cintura) – É só arrumar as latas no

caixote e botar o caixote no meio da lingada, imprensado

pelos outros: não cai.

ERASMO (Já bem próximo de Nazário) – Se preocupe, não. E o

garoto?

NAZÁRIO – O que é que tem ele, hein? Que te interessa? Esqueça meu

filho!

ERASMO – Deixa de tolice. Quero dar um brinquedo pra o garoto. Vai.

Diz o nome dele.

NAZÁRIO (O pé na escada para subir) – Cícero. (Grita para cima).

Aguenta aí, que eu vou subir! (Erasmo aproveita o

momento de distração, bate-lhe com o ferro na mão

esquerda. Nazário contorce-se de dor, segurando a

mão, enquanto o sangue espirra). Filho da puta!

ERASMO – A dor passa logo. Veja que bacana a cor do teu sangue.

Uma beleza! Serviço legal. Não se esqueça de me

procurar. Amanhã. Não. Amanhã não. Amanhã vou meter

uma praia legal. Depois. Depois de amanhã. (Ri).

NAZÁRIO (Apanha o martelo que caíra quando Erasmo o atacara, e

investe contra o outro) – Desgraçado!

ERASMO (Lutando com Nazário) – Ah, ficou brabo, foi? (A luta

prossegue por algum tempo. Ora agarrados, ora

separados, Nazário golpeando o ar, procurando

atingir Erasmo, que se esquiva com muita facilidade.

Depois de algum tempo, Erasmo consegue tomar o

martelo de Nazário. Deita-se de costas no chão e arma

um golpe com o martelo. O seu braço fica parado no

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ar por algum tempo. Desfaz o golpe e desata numa

gargalhada cínica. Sai de cima de Nazário e sobe nos

caixotes. Atira o martelo na direção de Nazário, que

começa a se erguer, segurando a mão esquerda, e

fica de joelhos).

NAZÁRIO – Você ainda me paga por isso!

ERASMO – Vê o que faz da vida, negão, senão tu tás engrupido

comigo. Dessa vez deu sorte... (Deita-se nos caixotes, e

fuma tranquilo).

NAZÁRIO (Contorcendo-se de dor) – Não vou trabalhar pra você! Nem

pra você nem pra ninguém. Não vou também entrar pra

fila do Instituto... Não vou morrer em vida..., levar a morte

na cara... Vou lutar... Lutar contra isso, contra você,

contra..., contra... (Ergue-se e apanha o martelo e

coloca na cintura). Vida safada! O que fazer meu Deus?

(Dirige-se para a escada. Ouvem-se os sons do

guincho se movimentando. Catarino desce apressado

pela escada).

CATARINO – Erasmo: depressa! Te manda que os tiras tão a fim de te

engrupir.

ERASMO – Que papo é esse?

CATARINO – Me deram a dica. Vim te avisar.

ERASMO – Ah! Micha esse papo, negão! Não tá vendo que isso é papo

furado? Sou barra limpa. Tô firme com os meninos da

justa.

CATARINO – Te alcaguetaram.

ERASMO – Quem te disse isso?

CATARINO – Ora: eu tenho meus amigos!... Te manda: depressa.

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ERASMO – Foi Sebastião. Deve ter cantado debaixo do pau.

NAZÁRIO – Bem que te disse que tu devia ter dado uma luz a ele.

ERASMO – Ah, cavalo não tem vez! Agora ele vai entrar bem comigo.

CATARINO – Não foi ele. Não foi Sebastião. Vamos: depressa.

ERASMO – Como tu sabe que não foi ele?

CATARINO – Olha: esquece quem foi como eu sei das coisas, tudo. O

que tu precisa é te mandar daqui. Os ingratos já tão vindo

te buscar. Tem gente que te quer ver fora do negócio...

ERASMO – Otávio! Foi ele. Alcaguete safado. Mas..., ele vai se

estrepar. Vou à forra com ele. Apago aquele curura duma

vez, que alcaguete não merece outro tratamento.

CATARINO – Sai dessa, negão! Deixa esse papo pra outra hora. Os

ingratos tão aí, chegando!

ERASMO – Deixe vir. Tiro de letra. Sei me virar. Me safo.

CATARINO – Coisa nenhuma! Tu tem que te mandar enquanto pode.

Os tiras estão a fim de te apagar.

ERASMO – Que onda cabrera é essa?

CATARINO – É o que tô te dizendo. Uns e outro escorregaram uma

nota firme para os ingratos te fecharem o paletó. Te

manda enquanto é tempo.

ERASMO – O que é isso, meu chapa? Quer me apavorar? Não sou

menino Buxudo pra embarcar numa canoa dessas.

CATARINO – Tô te falando. Tu tá dando uma de otário. Dormindo de

touca. Uns e outros não querem te ver mais no negócio,

atrapalhando a vida dele. Arranjou um jeito lá com os

chapas dele. Tô por dentro de tudo. Vão te dar sumiço.

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Se tu não quer ouvir conselho, o problema é teu. Mas tô

aqui para te avisar. Te manda enquanto é tempo.

ERASMO – Alcaguete filho da puta! (Sobe apressadamente pela

escada).

CATARINO (Só então nota que Nazário está ferido) – Que foi isso,

negão? Machucou-se?

NAZÁRIO – Me descuidei..., o martelo bateu no dedo...

CATARINO – Vamos. Precisamos cuidar disso.

NAZÁRIO – Você não tem medo que Erasmo cante? Ele pode

escorregar teu nome e os ingratos te engrupirem também.

CATARINO – Canário morto não canta.

NAZÁRIO – Mas ele está vivo.

CATARINO – Eu sei. Eu sei. Ele ainda está vivo... (Ouvem-se

correrias, gritos, barulho).

VOZ (Fora de cena) – Pare! Pare, senão eu atiro! Pare! (Tiros).

CATARINO – É. Ele já não está vivo. Não canta mais.

NAZÁRIO – Espere aí. Foi você quem preparou tudo? Você escorregou

a grana pra os tiras e botou no juízo dele que ele ia ser

morto... Como pode fazer isso? Você o matou. Mas por

quê? Por que tinha que fazer isso?

CATARINO – Que te importa saber? Vamos. Vamos cuidar do teu

ferimento.

NAZÁRIO – Você pagou para matarem um homem... Vem aqui, assusta

ele para que não se entregue, resista à prisão, dizendo

que vai ser morto se cair nas mãos dos tiras..., e fica

nessa tranquilidade, como se nada tivesse acontecido?

Por quê? Que mal ele te fez?

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CATARINO – Não soltei nota pra apagarem ele.

NAZÁRIO – Mas... Então, foi Otávio quem deu a grana?

CATARINO – Ninguém deu grana nenhuma. Esquece esse troço.

Vamos embora.

NAZÁRIO – Não. Espere. Se ninguém soltou a grana..., então era só

papo. Tu alcaguetaste Erasmo e ele ia se safar se não

tivesse acreditado no teu papo, não se apavorasse com

medo dos tiras apagarem ele.

CATARINO – Ah, deixa isso pra lá! O que é que tu quer? Dar uma de

bom menino é?

NAZÁRIO – Não. Deixa eu ver se entendo tudo. Otávio não tinha nada

com a história, certo? E se Erasmo não resistisse, fosse

preso, ia descobrir que tu estava mentindo, que o

alcaguete não foi Otávio. E aí te apagava: certo?

CATARINO – Nada disso. Se ele fosse preso não tinha quem tirasse da

cuca dele que não tinha sido Otávio o culpado. E os dois

se acabavam.

NAZÁRIO – E tu ficava só. Sem ter quem vendesse. Acho que foi

cavalice. Você brigou com Otávio e agora apagou

Erasmo. Quem vai passar a erva para você?

CATARINO – Depois a gente resolve este problema.

NAZÁRIO – Estou fora dessa jogada.

CATARINO – Vamos. Vamos cuidar do teu ferimento. Temos muito que

conversar.

NAZÁRIO – Não quero papo contigo.

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CATARINO – Que é isso? Sou teu chapa. Teu irmão. Vamos. Esse cara

teve o fim que merecia. Esquece ele. Vamos. Eu te ajudo

a subir. Deixa. Vamos.

NAZÁRIO – Já disse que não.

CATARINO – Olha. Vou te dar o serviço. Pois bem. Apaguei esse cara e

vou apagar Otávio também. Vamos ficar sozinhos. Nós

dois. Vai ser a maior onda. Com toda a nota em cima.

NAZÁRIO – Não... Não dá... Não é onda pra mim... Quero ficar de fora...

CATARINO – Tu sabe que não pode fazer isso. Tu não tem como

descolar uma grana firme. Grana de bagrinho é micha,

não dá pra viver... Tua mulher vai ficar te aporrinhando a

vida toda por tudo quanto é troço que ela entucar que tu

deve comprar. Tu sabe que ela não vai se conformar

nunca de não ter as coisas e fechar o bico. Pra que ficar

resistindo e padecendo mais tempo? Eu sou teu chapa,

teu irmão, tu me conhece. Não quero te forçar, só quero o

teu bem. Mas, tem uma coisa. Tu sabe que não vai poder

resistir a vida toda. Se tu não topa o negócio hoje comigo,

entra amanhã com outro, que pode te fazer uma falseta.

Quero fazer um trato legal contigo. Pense bem. A gente

agora não é mais menino. Vamos dominar a coisa aqui e

passar pra trás quem se meter. Vai ser legal. Vamos. Eu

te ajudo a subir... (Encaminham-se para a escada e

Nazário começa a subir, ajudado por Catarino).

FIM

Brasília 1975

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