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1 RATOS DE ESGOTO Texto de Vieira Neto

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RATOS

DE

ESGOTO Texto de Vieira Neto

2 PERSONAGENS

NANDO

BIRA

CARCEREIRO

PRIMEIRO ATO

Cela de presídio para dois. Nando, deitado fita o teto

despreocupadamente. De compleição franzina, 30 anos

aproximadamente. Abre-se a porta da cela e o Carcereiro faz

entrar Bira, 23 anos, estatura mediana, insinuante,

mancando de uma perna: a esquerda.

CARCEREIRO – Taí ó cara: uma bela companhia pra você. (Ri

maldosamente.) Você agora já não pode mais se queixar de

solidão... (Sai gargalhando.).

BIRA – Diga aí, meu chapa. O meu nome é Ubirajara... mas

todos me chamam de Bira: ‘O Terror das Garotas!’ E você?

NANDO (Sem dar muita atenção) – Meu nome é Nando e só.

Mas vou te dizer uma coisa: não gosto de muita conversa mole.

Papo furado pra cima de mim não dá pé, tá bom?

3 BIRA – Puxa: mas eu mal abri a boca ainda, o cara...

NANDO – E é bom conservar fechada: em boca fechada não

entra mosca, sabia?

BIRA – Mas se vamos viver juntos temos que ser bons amigos,

não?

NANDO – Eu não preciso de amigos!

BIRA – Companheiros, então?

NANDO – Companheiros?... Bem... vá lá, o que eu cismo

mesmo é com esta palavra: amigo... vem de amizade, não é

assim?

BIRA – Claro.

NANDO – Todos os que se dizem amigos de alguém deviam

gostar de verdade, não é mesmo? Mas o que se vê? São

justamente aqueles que batem no peito e dizem: ‘sou seu

amigo, pode confiar em mim’... Pois bem, são justamente esses

que quando menos você espera, ó: tão lhe sacaneando no duro!

BIRA – É: de fato! Não se pode confiar em ninguém hoje em

dia.

NANDO – Hoje em dia só, não. Sempre foi assim. Olha: eu não

estudei, mas conheço a história de Judas, o traidor. Minha mãe

sempre contava do beijo da traição e tudo o mais. Por confiar

muito e acreditar que o sacana do Judas era seu amigo, o

Cristo, ó: terminou do jeito que todo mundo sabe.

BIRA – É verdade. E tem a história de Tiradentes: você

conhece?

4 NANDO – Tiradentes?

BIRA – Tiradentes é como era chamado Joaquim José da Silva

Xavier, o maior herói da História do Brasil. Ele queria livrar o

Brasil do domínio português, se juntou com alguns

companheiros, mas teve um que o traiu, acho que realmente

aquele em quem ele mais confiava: um tal de Silvério dos Reis.

NANDO – Quem lhe contou isso?

BIRA – Eu estudei até o quarto primário, e tá lá na História do

Brasil.

NANDO – E o que foi que aconteceu com ele?

BIRA – Ele quem?

NANDO – O tal de Tiradentes?

BIRA – Morreu enforcado.

NANDO – E os outros?

BIRA – Bem: uns foram desterrados, presos, mas só Tiradentes

morreu, porque se declarou o único culpado, pra salvar os

companheiros. Um grande homem!

NANDO – Qual é cara?... Um grande idiota, isso sim!

BIRA – Não, não acredito que ele tenha sido um idiota. Acho

que era um homem muito inteligente.

NANDO – Inteligente... morrendo pelos outros?...

BIRA – Aí é que você se engana. Ele morreu pelo Brasil.

NANDO – E isso adiantou alguma coisa?

5 BIRA – Não sei: mas acho que valeu a pena.

NANDO – Valeu a pena porque não foi você quem teve a

cabeça decepada, sua besta!

BIRA – Você não sabe o que diz.

NANDO – Eu posso não ter estudado que nem você, mas sei o

que estou falando. Sacrifício mais besta esse! De que adiantou:

se vive hoje melhor do que naquele tempo?

BIRA – Até certo ponto você tem razão, cara. Mas é bonito se

ter um ideal e lutar por ele, mesmo sabendo que tudo tá perdido.

NANDO – Isso é papo careta, meu chapa! Se tudo tá perdido

mesmo, se se vive atolado na merda sem poder sair dela, não

se tem nada pra fazer. É se deixar afundar e pronto! (Tempo.).

BIRA – Por que você tá aqui?

NANDO – Não é da sua conta.

BIRA – Desculpe: não precisa se irritar. Já não tá mais aqui

quem falou. (Tempo.).

NANDO – Hoje é domingo, dia chato pra gente que vive aqui

dentro, um dia como outro qualquer... pior, bem pior ainda,

porque não se faz nada e se corre o risco de pensar demais.

BIRA – É bom pensar.

NANDO – Você não dirá isso mais tarde. Você tá chegando

agora e acho que nunca entrou em cana antes. Não sabe o que

é passar dias e noites apodrecendo neste buraco fedorento que

nem rato de esgoto!

6 BIRA – Há quanto tempo você tá aqui?

NANDO – Não lhe interessa.

BIRA – Você é foda, hein, meu camarada?...

NANDO – Não gosto que me façam perguntas.

BIRA – Tá bem, desculpe: já não tá mais aqui...

NANDO (Cortando bruscamente) – Chega de pedir desculpas,

seu imbecil! Você até parece que não sabe fazer outra coisa.

(Imitando Bira.) ‘Desculpe, desculpe, já não tá mais aqui...’ Ora,

caralho: desculpas quem pede é mulher. Homem não. O homem

pra ser homem tem que ser durão, falou tá falado, se não

gostou: foda-se! É assim que tem que ser. O resto é frescura!

BIRA – Mas...

NANDO (Cortando) – Não tem mas nem meio mas... Você tem

muito que aprender, garotão. Pra ser homem no duro mesmo, a

gente tem que esquecer a saia da mamãe e toda aquela

conversa fiada de que a gente deve ser bonzinho, delicado com

os outros, aquela frescura toda. Nada disso: o negócio é partir

pra quebrar, escreveu não leu o pau comeu! O nego que te ver

assim com essas delicadezas todas, esses salamaleques, esses

não-me-toques, vai dizer no ato que você é bicha, sacou? E se

você fraquejar ó: entra por um cano que não tem mais tamanho.

BIRA – Escuta aqui ó, meu chapa: eu sou muito homem, tá

sabendo?

NANDO – Ah é?... Então tem que provar isso, dizer só, não

basta! Não a mim, mas a todo mundo aqui dentro. Escuta ó

7 cara: você vai conhecer gente da pior espécie aqui nesta joça, e

se você sai com essa de garoto educado, eles vão lhe cagar na

cara e ai de ti se isso acontecer, eu já disse!

BIRA – Se preocupe com você: eu sei me cuidar.

NANDO – É: espero que saiba mesmo...

BIRA – Peraí, ó cara: o que é que você quer dizer com isso,

hein?...

NANDO – Nada não. Pelo que tô vendo você é bem mais burro

do que eu pensava.

BIRA – Se você pensa que vai continuar me ofendendo desse

jeito, tá muito enganado, sô...

NANDO – E dizer a verdade ofende?

BIRA – É porque você é tão burro ou mais do que eu, se não,

não estaria aqui. Só os burros se deixam prender que nem

passarinho no alçapão.

NANDO – Ué: mas você falou agorinha mesmo que esse tal de

Tiradentes era inteligente...

BIRA – É diferente, cara... ele não era um criminoso comum

como eu, como você. O seu ‘crime’ foi defender o seu país.

Acuado, ele confessou e se deixou enforcar, agindo

inteligentemente por uma causa, por um ideal.

NANDO – Ora, não diga tolices! Inteligente seria ele escapar,

lutar e vencer!

8 BIRA – Sozinho ele nada podia fazer... uma andorinha só, não

faz verão.

NANDO – Isso é papo furado. Lá vem você com frescuras!

Palavras... palavras... ora pombas... vá pra o raio que o parta,

você e o seu Tiradentes!...

BIRA – Você tá nervoso.

NANDO – Nervoso uma ova! Você me chama de burro e ainda

por cima vem me dizer que eu tô nervoso? Você é mesmo uma

graçinha... não?

BIRA – Você me chamou de burro, primeiro.

NANDO – Chamei e repito: você é o cara mais burro da

paróquia!

BIRA – Você é mais do que eu e vou lhe provar.

NANDO – Provar?... tô pagando pra ver!

BIRA – Quanto?

NANDO – O quê?

BIRA – Quanto é que você me paga se eu te provar que você é

mais burro do que eu?...

NANDO – Ora: você me acha com cara te trouxa, seu idiota?

BIRA – Pois eu vou provar. Escuta aqui: qual a cor do cavalo

branco de Napoleão?

NANDO – Ora, sei lá: vê se não me amola, tá bom?

9 BIRA – Tá vendo? Você não sabe nem que a cor de um cavalo

branco é branca e ainda quer me dizer que não é burro. Aliás,

burro só pode entender mesmo de burros, não entende nunca

de cavalos... (Ri estrepitosamente, o que mais irrita Nando.).

NANDO – Você tá me gozando, ó cara? Vê lá hein? Você não

me conhece!

BIRA (Ainda rindo sem poder se conter) – Não tô lhe gozando

coisa nenhuma... Você é um cara engraçado: eu acho que

vamos nos entender...

NANDO – Engraçado é elefante de calçinhas e macaca de

ceroula, sua besta! E quem se entende com homem é puta: tá

sabendo? Não me faça perder a paciência!

BIRA (Irônico) – Se você perder eu ajudo a procurar. Tô aqui

pra te ajudar: amigo é pra essas coisas...

NANDO – Não sou seu amigo nem preciso de sua ajuda. E

agora vê se me deixa em paz!

BIRA – Tá bem: se você quiser assim... (Tempo.) Puxa vida,

como é escuro aqui, hein? Você nunca pensou em fugir deste

esgoto?

NANDO – Me deixa em paz, já disse.

BIRA – Acho que não ficarei mofando aqui por muito tempo.

NANDO – E o que é que você pretende fazer?

BIRA – Ainda não sei, mas vou pensar. E acho que você vai ter

de me ajudar.

10 NANDO – Você tá louco, ó cara... Corta essa! Ninguém nunca

conseguiu se safar daqui!

BIRA – Há sempre uma primeira vez pra tudo.

NANDO – Ah: você fala demais!

BIRA – Você não vai me dedurar, não é mesmo?

NANDO – Quem é que você tá pensando que eu sou? Não me

interessa o que você faça ou deixe de fazer. É não sou dedo-

duro ou alcagüete pra dedurar ninguém! Faça o que você quiser,

só não tente me meter nessa jogada!

BIRA – Mas eu ainda não falei nada, disse apenas que vou

pensar...

NANDO – E quando tiver suas idéias fique com elas pra você

mesmo e dane-se!

BIRA (Fitando Nando por algum tempo, com olhar de

comiseração) – Tenho pena de você, meu chapa, pode crer.

NANDO – Pena?...

BIRA – Sim: você é um cara acomodado, vencido, não tem

coragem de lutar e ainda se julga mais homem do que os

outros...

NANDO – Não falei que sou mais homem do que os outros. Só

sei que não sou covarde nem um fraco como você tá pensando.

Só não quero é sair daqui com um balaço nas costas... Eu quero

viver, entende?

BIRA – E quem te disse que eu não vou sair vivo?

11 NANDO – Outro cara falava assim que nem você: fez a besteira

de tentar escapar e ó... se fodeu. Passava da meia-noite quando

a gente foi acordada por um tiro de fuzil! A bala acertou em

cheio e o bicho não deu nem um gemido. Morreu como um rato

na ratoeira armada por ele mesmo. Aqui não há jeito de

escapar, garotão. As saídas são vigiadas dia e noite, guardas

armados até os dentes em tudo quanto é canto, não dão sopa...

são que nem cão treinado pra matar!

BIRA – Eu prefiro não falar mais sobre isso. Eu já te disse que

não vou fazer a coisa assim sem método. Vou pensar primeiro...

NANDO – Cuidado para não estourar os miolos de tanto pensar,

sua besta!

BIRA – Não se preocupe. (Tempo.) Agora tô com fome: não se

come aqui?

NANDO – Se come, mas não tá na hora.

BIRA – E que tal o rango?

NANDO – É picadinho quase todo o dia.

BIRA – Ué!... e ninguém reclama?

NANDO – Você tá louco? Reclamar o quê?

BIRA – Poderia se fazer uma greve de fome pra melhorar o

rango.

NANDO – Morreria todo mundo, que ninguém tá se importando

com a gente. Rato de esgoto tem direito a reclamar de alguma

coisa, seu imbecil? Tem mais é que se satisfazer com a sujeira

12 que a cidade joga fora. Nós somos ratos, garotão: ratos de

esgoto. Vê se compreende isso, tá legal?

BIRA – Não sou rato: sou gente e exigirei que me tratem como

tal.

NANDO – Aqui ninguém tem esse direito. E afinal, quem é você

pra falar assim?

BIRA – Eu sou gente, já disse: nem melhor nem pior que os

outros. Gente!

NANDO – Uns dias de solitária a pão e água farão, você mudar

de idéia. Espere só...

BIRA – Nunca!

NANDO – Veremos...

BIRA – Escuta aqui, ó cara: você fala como se quisesse ver a

minha caveira. O que é que você tem contra mim, hein?

NANDO – Eu falo pro seu bem... (Recompondo-se) Embora

pouco esteja me importando com o que possa lhe acontecer.

BIRA – Por que você fala assim?

NANDO – Poxa: será que você não entende, ó filho de uma

jumenta? Aqui não é muito diferente do mundo lá fora. Se você

grita demais tem sempre alguém pra abafar seus gritos pra que

outros não possam ouvir. Lá como aqui é a mesma coisa, a

mesma merda, garotão!

BIRA – Se todos gritarem de uma só vez, eles não poderão

fazer nada.

13 NANDO – Quem grita mais alto: o homem ou a metralhadora?

BIRA – Não entendo...

NANDO – O que pode um grupo de homens desarmados diante

de uma metralhadora?

BIRA – A gente pode descolar armas...

NANDO – Você pode me dizer como?

BIRA – Os soldados dormem, certo? Enquanto eles estão

dormindo...

NANDO (Cortando) – A tente tá nas grades.

BIRA – Pode-se arranjar um meio de conseguir pelo menos a

chave de uma cela e o resto será mais fácil.

NANDO – Você pode?...

BIRA – Não sei, quem sabe, né? Temos que tentar.

NANDO – Você tentará. Já disse pra não me meter em seus

planos idiotas!

BIRA – Você é um covarde!

NANDO (Furioso, avançando para Bira, agarrando-o pelo

pescoço) – Se tu me chamar outra vez de covarde, eu te

arrebento, sua besta! (Empurra Bira, que cai. Bira levanta-se

logo em seguida. Avança para Nando tentando esbofeteá-lo.

Este o domina com um golpe de braço.).

BIRA (Gritando) – Me larga: você está me machucando!

NANDO – Isto é pra você aprender, seu veado descarado!

14 BIRA – Tá bem: eu peço...

NANDO (Cortando) – Não, não peça desculpas, seu frouxo!

(Larga Bira. Tempo.).

BIRA (Murmurando entre dentes) – Você me pagará!...

NANDO – Hein?... O que foi que você disse?

BIRA – Nada não.

NANDO – Escuta aqui, ó garotão: eu não ouvi o que você falou,

mas se foi uma ameaça, você vai se dar mal comigo!

BIRA (Temeroso) – Não foi isso... eu... eu estava me queixando

do meu braço que tá doendo.

NANDO – Venha cá.

BIRA (Desconfiado) – O que é?

NANDO – Venha cá, já disse. Deixe eu dar uma olhada nesse

braço.

BIRA (Aproximando-se receoso) – Pronto: o que é que você

vai fazer?

NANDO – Deixe eu ver. (Pega o braço machucado de Bira e

dá um jeito, numa espécie de massagem.) Melhor agora?

BIRA – É... melhorou, sim. Obrigado.

NANDO – De outra vez poderá ser pior.

BIRA – Eu não lhe darei essa chance.

NANDO – O que você quer dizer com isso?...

15 BIRA (Recompondo-se) – Nada não. Esqueça. (Tempo.).

NANDO – Não sei por que tô conversando com você, sabia?...

Não sou de muita conversa, não falo muito com ninguém aqui

dentro e o último cara que esteve nesta cela também não era de

muita conversa e por isso a gente se entendia bem, cada um

vivia a sua vida e o resto que se dane!

BIRA – O que houve com ele?

NANDO – Morreu.

BIRA – Morreu?

NANDO – Por que o espanto? Não se pode morrer na cadeia?

Pegou uma fraqueza... vivia tossindo dia e noite, mal comia.

Mandaram ele pra enfermaria e em poucos dias esticou o

esqueleto. (Tempo.) Tinha mulher e filho, o pobre diabo: vivia

sempre com o retrato da mulher no bolso, muito bonita! E de

noite dormia com ele debaixo do travesseiro, passava horas e

horas fitando aquele retrato seboso. E chorava... um frouxo, eu

detestava ele por isso, mas...

BIRA – Mas?...

NANDO – Era um bom homem.

BIRA – Você gostava dele, então?

NANDO – Que é que há, ó sua besta? Vê se eu tenho cara de

quem gosta de homem!

BIRA – Ué: não vejo nada demais nisso.

NANDO – Não vê porque você é bicha.

16 BIRA (Quer reagir, mas tenta conter-se) – Tenho pena de

você, meu chapa, porque você é muito mais infeliz do que eu,

sabia? Você vive brigando com você mesmo, numa guerrinha de

nervos que não tem fim, com receio de demonstrar seus

sentimentos. Você é bom e se envergonha disso. Sim, tenho

muita pena de você!

NANDO – Eu roubei, matei, não sou nem posso ser um homem

bom, nem homem eu sou, sou rato! Eu sou mau, Bira, desde

cedo aprendi a ser assim. Você lê jornal? Tá aqui ó... (Mostra

um recorte velho de jornal.) Saca essa, vai. (Bira pega o

recorte e lê.).

VOZ (Em off, em estilo de noticiarista policial de rádio) –

“Nando perseguido, mata policial. Depois de praticar um assalto

a um casal de namorados, deixando-os completamente pelados

na Quinta da Boa Vista, por volta da meia-noite, o perigoso

assaltante Nando, conseguiu escapar do cerco policial, ferindo

mortalmente um representante da lei, enquanto outro continua

internado no Hospital Miguel Couto, em estado grave. Os dois

policiais de serviço naquele logradouro foram atraídos ao local

do assalto, pelos gritos da moça, em estado de pânico. O

meliante está sendo procurado pela polícia do Rio e de Niterói,

mas o seu paradeiro continua ignorado.”

NANDO – Tá vendo aí o retrato? Sou eu: Nando, o perigoso

bandido das noites cariocas; Nando, o terrível!

BIRA – Tô vendo sim, mas você não é isso que os jornais

dizem.

17 NANDO – Não? Experimenta Bira, experimenta... Bem se vê

que você não me conhece, não pode mesmo imaginar do que

eu sou capaz.

BIRA – Você roubou, matou, e daí? Nem por isso deixa de ser

gente que pensa, gente que pode gostar, que pode ter alguém...

NANDO (Cortando) – Chega Bira! Você já falou demais!

BIRA – Pense bem e você verá que tenho razão.

NANDO – Não vou pensar coisa alguma, nem admito que você

se meta na minha vida.

BIRA – E pra que mostrou o recorte do jornal, então?

NANDO – Pra você sacar quem eu sou.

BIRA – Será que você é esse cara do jornal, mesmo?

NANDO – Você duvida?

BIRA – Claro que sim.

NANDO (Tomando o recorte das mãos de Bira,

abruptamente) – Se esse cara não sou eu, quem pode ser, seu

imbecil? E tem mais: pode perguntar pra quem você quiser. Aqui

dentro todos me conhecem. Eu sou o Nando, o terror das noites

cariocas!

BIRA (Calmo, persuasivo) – Você foi o Nando...

NANDO – Fui não: eu não mudei, e a o sair daqui você ainda vai

ouvir falar muito de mim, nos jornais, na rádio e na televisão,

com fotografias coloridas e o cacete. Você vai ver: falta só um

ano e pouco...

18 BIRA – Bobagem Nando. Você amoleceu. Você já não é mais

aquele: se convença disso. Você já não tá mais naquela...

NANDO – Por que você diz isso?

BIRA – Eu sou muito mais esperto do que você pensa. Não

estudei muito, quase nada, cedo tive que ganhar a vida de tudo

quanto foi jeito, pra sustentar irmãos menores, com o pai

sempre bêbado e a mãe se matando de lavar roupa pra fora.

Desempregado, sem especialidade, cedo entrei pra onda do

crime: roubei, matei pra não morrer, fiz o diabo! Mas sempre fui

bom observador, tenho facilidade de ver o que vai lá por dentro

das pessoas, olhando de frente pra elas, olho no olho, assim

como encaro você agora e vejo: uma criança grande que tem

vontade de chorar, mas não chora, porque lhe disseram que

homem não deve chorar; uma criança grande que quer ser

agradável às vezes, com as pessoas, mas tem receio que os

companheiros lhe chamem de ‘mulherzinha’, ‘maricas’, veado,

bicha... (Tempo.) Quantos anos você tem?

NANDO (Desatento) – Eu?... Trinta e dois.

BIRA – Taí: parece ter menos, sabia? Isso porque você ainda

não cresceu, precisa crescer Nando, pra entender que não

adianta a gente fingir, bancar o durão a todo o instante. Eu

tenho apenas vinte e três anos, mas sei que é preciso a gente

bancar o machão de vez em quando, pra impor o respeito, a

moral, ou qualquer coisa assim. Principalmente no meio em que

a gente vive. Mas sei também que há momentos em que a gente

não deve ocultar o que se tem de bom lá por dentro. Eu não sei

se você me entende, porque eu não sei falar bem, tenho

19 dificuldade de me expressar... eu sinto o que se passa com

você, quero te ajudar, mas não sei como, é difícil, sabe?

NANDO – Você tá falando besteira, pura besteira. Não lhe pedi

sua opinião a meu respeito e nem estou precisando da ajuda de

ninguém.

BIRA – Está sim, Nando, está.

NANDO – Vamos lá então: o que é que você pode fazer por

mim?

BIRA – Não sei: acho que você tem que se abri comigo...

NANDO (Cortando) – Quem se abre pra macho é mulher, sua

besta! Vê como fala comigo, tá?

BIRA – Você não é tão burro assim, você sabe o que eu quero

dizer com isso. Se abrir é falar mais sobre você mesmo,

enquanto eu falo de mim e assim nos entenderemos melhor.

Você vai falar, eu sei.

NANDO – Não vou falar droga nenhuma! E vê se não me enche

o saco!

BIRA – Tá bem: vamos mudar de assunto. (Tempo.) Puxa,

como tá demorando sair esse rango... tô com uma fome

desgraçada! A que horas se come?

NANDO – Não sei: daqui a uma hora, talvez.

BIRA – Ainda?

NANDO – Você tá pensando que isso aqui é hotel?

20 BIRA – É: já saquei que não é mesmo. Tenho que me

acostumar. Por falar em hotel, cara, me lembro como se fosse

ontem: num desses fins de semana consegui chutar uma grana

violenta de um otário e me mandei pra Cabo Frio, muito bem

acompanhado! Hotel de primeira, piscina, café na cama e tudo o

que a gente tem direito. Que vidão, seu moço, eu me sentia

como se fosse o rei do petróleo! Banho de mar e de piscina,

scotch legítimo, comida, cama e... e altas trepadas! A gatinha,

então, não queria outra coisa, só vendo que mulher, só... pra

nego nenhum botar defeito! E vá ser tarada assim no raio que a

parta!

NANDO (Rindo) – É, deve ter sido engraçado...

BIRA – Engraçado o quê, posso saber?...

NANDO – Você e essa dona tarada.

BIRA – Mas onde está a graça, me diz?

NANDO – É que não imagino que você tenha jeito pra essas

coisas...

BIRA – Tu tá pensando que eu sou bicha, ó cara?

NANDO – Eu não falei isso...

BIRA – Mas tá insinuando.

NANDO – Nada disso: apenas acho você meio desajeitado pra

isso.

BIRA – Mas como? Você nunca foi pra cama comigo pra saber!

21 NANDO (Furioso) – Seu puto: vê como fala comigo. Eu já

disse: você não tá lidando com nenhuma piranha do mangue!

Eu sou muito homem para te quebrar os ossos!

BIRA (Irônico) – Puxa Nando: não se pode brincar com você é?

Eu tava brincando, homem...

NANDO – Não curto esse tipo de brincadeira!

BIRA – Essa sua mania de se julgar mais homem do que todo

mundo é meio perigosa, você não acha? Tome cuidado!

NANDO – É uma ameaça?

BIRA – Não. Um conselho de amigo, só.

NANDO – Eu não tenho amigos.

BIRA – Então considere como uma advertência.

NANDO – Ora, vá pra casa do caralho!

BIRA – Só se você me ensinar onde ele mora...

NANDO – Foda-se!

BIRA – Engraçado: você exige que lhe trate com respeito e não

sabe respeitar os outros. Isso não é justo.

NANDO – Não me interessa saber o que é justo ou injusto e

nem você sabe também, pra querer me dar lição de moral. Afinal

quem é você? Rato igual a mim, tão podre quanto eu. Eu sou

assim e se você tá incomodado peça pra lhe mudarem de cela e

suma-se de minha vista!

BIRA (Irônico e perspicaz) – Será que é isso que você quer

mesmo?

22 NANDO – Ora: pouco se me dá. O que eu quero é que você me

deixe em paz. Tá ouvindo: em paz!

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

Mesmo cenário. Bira anda de um lado para o outro,

cantarolando Marina, de Dorival Caymmi. Deita-se e canta e

assobia a melodia com certo saudosismo.

BIRA (Cantando) – Marina, morena Marina / Você se pintou /

Marina, você faça tudo / Mas faça um favor... (Continua

assoviando.) Você sabe Nando: Marina foi a minha primeira

trepada... sete anos mais velha do que eu, a Marina... Eu estava

com 14 anos, me lembro bem – e ela tinha 21, mas parecia ter

muito menos. A Marina era de todos... mas duas noites por

semana era só minha, entende?... Foi ela quem me ensinou

esta música e também outras coisas... Ela não era bonita, não,

mas também não era feia, tinha um certo charme, um não-sei-o-

quê que me deixava louco, piradão! Depois a Marina sumiu ou

fui eu quem sumiu, sei lá, só sei que nunca mais a vi. Também

foram pintando outras no pedaço, eu esqueci. Não sei por que

me lembrei dela agora. Troço esquisito esse... (Assovia a

música.) Me diga uma coisa, meu camaradinha: você é

casado?

23 NANDO (Meio distraído) – Não.

BIRA – Mas você teve também a sua Marina, certo?

NANDO – Ela não se chamava assim, é claro. Mas nem me

lembro do nome dela. Era uma mulher da vida também, mas pra

mim ela era diferente das outras.

BIRA – É... quando a gente gosta é assim.

NANDO – Assim como?

BIRA – Quando a gente gosta de uma pessoa... quer dizer, de

uma mulher, ela parece melhor que todo o mundo. Isso é gostar,

amar, gamar. Nando olhaí: tá vendo como você amou alguém?

NANDO – Ah, mas isso foi há muito tempo, eu era quase guri

ainda. Hoje tudo mudou.

BIRA – Não meu chapa: não mudou nada. É só questão de

tempo. Quando menos você esperar, ó: tá gamado outra vez!

NANDO – Eu tenho coisas mais importantes pra fazer quando

sair daqui.

BIRA – E mulher não é importante?

NANDO – É, mas atrapalha, não dá pedal...

BIRA – Ora meu chapa: não vai me dizer que você...

NANDO – Não é isso, sua besta: vê se te manca. Mulher a

gente tem quando quer, sem precisar viver com nenhuma delas!

BIRA – Quer saber de uma coisa? Se a minha intuição não

falha, acho que você já recebeu chifres.

24 NANDO – Já sim... e daí? Ela não prestava mesmo: foi a última

que eu tive, uma vagabunda que hoje deve andar pelo mangue

cheia de gonorréia!

BIRA – Eu sabia.

NANDO – Parecia direita no começo, não pedia nada, era meu

bem pra cá, meu bem pra lá... e eu, como um trouxa, me deixei

apanhar: até casa lhe dei. É bem verdade que não era lá grande

coisa, mas era uma casa. Um dia descobri tudo: ela me

enganava, a descarada, com o padrasto, um cara nojento!

Quase matei os dois e foi a mãe dela, que chorando, me pediu

que eu não fizesse aquilo. A mãe pedindo pela filha que lhe

traía, descaradamente, ali na sua casa, na sua cara! Me

afrouxei, tive pena da velha que lembrava minha mãe e saí dali

com vontade de vomitar, de nojo!...

BIRA – E ela?

NANDO – Ela quem?

BIRA – A mulher que lhe corneou.

NANDO – Sei lá.

BIRA – Mas nem todas as mulheres são assim...

NANDO – Eu sei que não são. Mas eu não confio mais, não

posso, não confio em ninguém.

BIRA – Nem mesmo em mim?

NANDO – E por que deveria confiar em você? Eu nem te

conheço!

25 BIRA – Em mim você pode confiar.

NANDO – Confiar uma ova! Acho que você é louco!

BIRA – E quem não é louco neste mundo, meu chapa? Eu sou

louco, você é louco, todos nós somos loucos neste mundo

louco! (Imitando o Chacrinha, de modo hiper-hilariante.)

Alô... Terezinha!... Fonfom... Ai... ai... o Nando vai ser papai!...

NANDO – Se eu fosse louco já teria te matado. Não ficava

ouvindo tanta besteira.

BIRA – Você teria coragem?

NANDO – De quê?

BIRA – De me matar? Responda: você teria?

NANDO – Se eu fosse louco, teria. Mas não sou: eu quero sair

daqui e por isso não te mato. A prova taí: se eu fosse louco,

pouco tava me importando em sair ou não daqui. Acabava com

você e ficava novamente só, em paz, entende?

BIRA – Você quer ficar só?

NANDO – O que é que você acha?...

BIRA – Eu lhe incomodo?

NANDO – Não: você não me incomoda – você torra! Eu já tô, ó,

até aqui! (Aponta a garganta.).

BIRA – Você tá fugindo.

NANDO – Fugindo de quê?

26 BIRA – De você mesmo, cara. Mas não adianta: ficar sozinho

não resolve e você sabe muito bem disso.

NANDO – Eu não tô fugindo de nada, eu gosto de viver sozinho!

BIRA – Ilusão, pura ilusão. Você precisa ter alguém sempre ao

seu lado, que lhe dê segurança, mesmo que você não confie...

NANDO – Eu não preciso de ninguém: já disse!

BIRA – Você quer se convencer de que não precisa. Mas todos

nós precisamos: você principalmente. Você foi traído, sofreu

paca com isso, sofre ainda, precisa esquecer. E sozinho você

não consegue.

NANDO – Já esqueci.

BIRA – E por que me contou?

NANDO – Sei lá: foi você com aquela conversa mole, aquela

música, não sei. Tudo isso me irrita e me deixa grilado!

BIRA – Confesse.

NANDO – Mas confessar o quê, seu idiota?

BIRA – Que você precisa de mim.

NANDO – Escuta aqui, ó garotão: que papo diferente é esse

agora, hein?

BIRA – Já sei: vai me chamar de bicha, né?

NANDO – Se você é bicha o problema é seu: não tenho nada

com isso! Não gosto de bicha!

BIRA – Eu tenho pena de você, Nando.

27 NANDO – Ora, vá pra casa do caralho!...

BIRA – Isso: diga palavrão! Tente provar que é homem, você

precisa disso, eu não. Aí é que tá a diferença entre nós. Uma

grande diferença, diga-se de passagem...

NANDO – A diferença é que eu sou homem e você...

BIRA (Cortando) – E eu sou bicha: vamos... não é isso o que

você ia dizer?

NANDO – Sim, é isso mesmo... e daí?

BIRA – Daí é que eu não acredito que você seja esse homem

todo!

NANDO – Pelo menos não vivo dando cantada em macho!

BIRA – Taí a sua mania de ver tudo por esse lado, aí é que está

o ‘x’ do problema. É por isso que eu desconfio dessa sua

macheza de que tanto você se orgulha. Quero lhe ajudar, sei

que você precisa de mim, falo nisso, você pensa: é cantada. Pra

você é cantada... Puxa, que vontade você tem, hein? O seu

caso é mais grave do que eu pensava...

NANDO – Então você me vem com essas frescuras de querer

me ajudar e o que é que eu posso imaginar então? Nunca vi

homem que é homem falar assim pra outro homem!

BIRA – Escuta Nando: se você pudesse não teria ajudado o seu

companheiro de cela?

NANDO – Que companheiro?

BIRA – O que morreu tuberculoso.

28 NANDO – Ah, era Rafael o nome dele!

BIRA – Pois bem: você não teria ajudado o Rafael se pudesse?

NANDO – É diferente: o homem tava doente, ora...

BIRA – Você também tá doente.

NANDO – Doente uma ova! Você está louco?...

BIRA – Está sim: é que a sua doença ó, tá lá dentro, ninguém

vê, mas eu vejo. Você está doente e a sua doença é mais grave

que a do Rafael.

NANDO – Você não sabe o que diz.

BIRA – Sei o que digo: a sua doença é pior que a dele, sim...

mas ainda tem cura. Só depende de você. Escuta Nando:

vamos fugir daqui, você vai lutar comigo pra conseguir a sua

liberdade, você vai confiar em mim e eu em você, você vai voltar

a ser Nando, o terror das noites cariocas! Você não pode

continuar sendo o Nando rato de esgoto, você não pode

apodrecer aqui dentro. A sua doença é grave, mas pode ser

curada ainda. Você não diz que é homem? Então, vamos lá:

prove que é. Falar só não resolve. Você tá é se matando!

NANDO – Já lhe disse que ninguém consegue escapar daqui

com vida, garotão. Um ano passa depressa, eu espero!...

BIRA – Até lá você não será mais aquele.

NANDO (Sem conseguir disfarçar a preocupação) – Serei

sim, serei...

29 BIRA – Não, não será. Sairá daqui com atestado de boa

conduta e acabará numa dessas fábricas como escravo, se

matando no trabalho por uma ninharia, pra encher cada vez

mais o cofre do industrial ganancioso que cuspirá na sua cara

quando você for lhe pedir aumento!

NANDO – Você tá muito enganado a meu respeito, sabia? E

depois, o que eu faço ou deixe de fazer quando sair daqui, não

interessa nem a você nem a ninguém. Sou dono da minha vida,

faço dela o que quiser, e chega, tá ouvindo, chega!

BIRA – Tenho pena de você, meu chapa!

NANDO – Ora: vá pra puta que lhe pariu!

BIRA (Furioso) – Olhe aqui, ó cara: você pode me xingar, pode

me chamar de bicha, pode dizer o que quiser de mim, tudo bem.

Mas não meta a minha mãe nesta jogada.

NANDO – Mas eu não falei na sua mãe.

BIRA – Falou.

NANDO – E sua mãe é puta?

BIRA – Não!

NANDO – Então não me amola!

BIRA – Proíbo você de falar de minha mãe, eu não admito, está

ouvindo? Não admito!

NANDO – E sua mãe é melhor do que as outras?

BIRA – Não interessa. É minha mãe e é o quanto basta!

30 NANDO – Papo furado, meu camaradinha, puro papo furado...

(Tempo.).

BIRA – Tô com uma fome dos diabos! Que raio de prisão é esta

onde não se come? (Gritando.) Tô com fome!...

NANDO – Pare com isso, seu idiota!

BIRA – Eu grito quando quiser, ora. (Grita.) Tô com fome!

NANDO – Pare com isso, já disse! Se eles ouvirem, você fica

sem comer e não é isso o que você quer, é? Se é isso, então

grita, sua besta!

BIRA – Eles não podem fazer isso comigo.

NANDO – Não?... Então grita: experimenta... vai.

BIRA (Desmunhecando intencionalmente) – Cansei...

NANDO – Cansou né?...

BIRA – Cansei bofe... que eu não sou de ferro, né?... (Nando ri

com a desmunhecada de Bira. Este também ri e logo os

dois caem numa gargalhada barulhenta, beirando o

nonsense.).

NANDO (Tentando a custo conter o riso) – Você é um

palhaço, Bira. Há muito tempo que eu não ria tanto assim.

BIRA – Tá vendo? E você queria que eu fosse embora...

NANDO – E ainda acho que seria uma boa idéia.

BIRA – O quê?

NANDO – Ora o quê... Você ir embora daqui, claro.

31 BIRA – Você quer se ver livre de mim, mesmo, então?...

NANDO – É que você me enche, com toda essa sua conversa

mole.

BIRA – Mas se não fosse eu, poderia ser outro bem pior.

NANDO – É, poderia...

BIRA – Dos males o menor...

NANDO – Como?

BIRA – Vai ver eu não sou tão chato assim: tem gente bem pior

do que eu.

NANDO – Será?

BIRA – Não duvide meu chapa.

NANDO – É, pode ser...

BIRA – Tenho certeza que você virá a gostar de mim, tenho

certeza...

NANDO (Cortando) – Quantas vezes, preciso lhe dizer que não

gosto de homem, seu...

BIRA (Irônico) – Sei, sei: eu tava brincando. Já não está mais

aqui quem falou. Não precisa ficar bravo!... (Tempo.).

NANDO – Escuta, ó cara: se você tá pensando em cair fora

daqui, por que não senta o rabo aí, fecha essa matraca e trata

de imaginar o seu plano?... Vê se assim você não me torra o

saco!

32 BIRA – Ainda é cedo, meu camaradinha. Você esquece que não

faz um mês que eu pintei no pedaço: tenho que sondar o

ambiente, primeiro... Você sabe: a coisa tem que ser feita com

muito método e muita calma...

NANDO – Sei: método e calma... pra depois receber de chofre

uma balaço nas costas e cair teso...

BIRA – Tô disposto a arriscar.

NANDO – Bem, isso é com você. Eu não quero mais falar nisso.

BIRA – Mas foi você quem puxou o assunto.

NANDO – Vê se esquece, então.

BIRA (Inspecionando a cela) – Agora que tô reparando: este

buraco, além de fedorento é feio pra burro, hein, cara? Mas eu

vou dar um jeito nisso, você vai ver. (Tira debaixo do catre

umas revistas de mulheres nuas. Destaca várias fotos - as

mais provocantes - e vai colando na parede.) Agora sim,

melhorou o visual, você não acha? Olha só que mulheraço, meu

camaradinha, ó... que peitaço, meu Deus do céu! Será que isso

existe mesmo ou é miragem?

NANDO – Guri... você não passa de um guri abobado. Já tive

mulher bem melhor do que esta aí. E você, parece que sem falar

nesta tal de Marina, ó, só em retrato de revista. Você é uma

besta, mesmo!

BIRA – É o que você pensa, meu caro. Mas não me importa,

nem vou discutir com você esse assunto. Tá bem, eu sou guri, e

daí? Gosto de curtir retrato de mulher pelada e essas vão ficar

aí, pelo menos enquanto eu estiver por aqui. Isso não quer dizer

33 que eu não conheço mulher ao vivo. Talvez conheça mais do

que você.

NANDO – Taí uma coisa que eu gostaria de ver você provar.

BIRA – Não tenho interesse nenhum de lhe provar coisa

alguma. (Folheia nova revista, encontrando outra foto.) Oba!

Esta aqui está como o diabo gosta! É bem melhor ainda: vou

botar aqui. (Colando o recorte na parede.) Assim... tá bom,

legal pacas! (Assovia ‘Marina’.).

NANDO – No dia que eu me arretar arranco todo esse troço daí.

BIRA – Você não fará isso.

NANDO – Não?... Você vai ver...

BIRA – Se tu fizer isso eu te mato!

NANDO – Tô pagando pra ver. (Ri cinicamente.).

BIRA – Eu agora não estou brincando, Nando: estou falando

sério, de homem para homem!

NANDO – Ah... a boneca agora resolveu bancar o machão, é?

BIRA – Se você colocar as suas mãos imundas aí, eu acabo

com a sua raça!

NANDO – Veremos... (Canta ‘Marina’, imitando Bira.).

BIRA (Ajeitando os recortes na parede, cantando) – Marina,

você já é bonita / Com o que Deus lhe deu... /

NANDO – Puta que pariu... será que você não sabe outra

música?

34 BIRA – Não: só sei esta. Nunca me interessei por outra se você

quer saber. (Canta acintosamente.).

NANDO – E ainda por cima canta mal como o diabo!

BIRA (Irônico) – Você acha, é?... A Marina adorava!...

NANDO – Mas acontece que eu não sou a Marina!

BIRA – Claro que não... as pernas dela eram mais grossas que

as suas, ela usava calcinha e soutien... e você não. (Ri.).

NANDO – Muito engraçado... tô morrendo de rir, ó... (Ri,

imitando Bira.).

BIRA – Pelo menos você admite que eu sou engraçado.

NANDO – Um palhaço fodido é o que você é.

BIRA – Ainda há pouco você não pensava assim.

NANDO – Como?

BIRA – Ainda há pouco você riu comigo, me chamou de

palhaço, mas não disse que eu era um palhaço fodido.

NANDO – Vá à merda!

BIRA – Se você me permite, prefiro continuar ajeitando as

minhas mulheres... (Ajeita os recortes na parede.) Essa cola

não vale nada, parece que tá cheia d’água... olhaí, Nando, não

tá segurando direito.

NANDO – E eu com isso? Ora: isso é coisa de fresco, mesmo...

tem jeito não...

35 BIRA – Ué: se eu botasse aí uns caras quase pelados, correndo

atrás de uma bola, um desses jogadores aí, que ganham os

tubos pra não fazerem nada, era coisa de macho, que nem

muitos de vocês fazem: andam com retrato de tudo quanto é

jogador de futebol, dormem, comem e cagam pensando neles.

Acho que até ficam se punhetando na frente da fotografia do

ídolo querido...

NANDO (Cortando) – Eu nunca fui de pensar nessas frescuras,

seu idiota. Mas o futebol é esporte de homem, é diferente.

BIRA – Ah é?... E mulher é esporte de bicha, por acaso?

NANDO – Colar retrato de mulher nua em parede é frescura!

BIRA – Só porque você quer assim, não é mesmo? Tem

problema, não... pode deixar: eu sou fresco mesmo e não tem

mais papo, que-ri-di-nho...

NANDO – E que onda é essa agora de me chamar de

queridinho? Vê lá como fala comigo, sô...

BIRA – Esquece tá?... (Assovia ‘Marina’, enquanto folheia

uma revista. Tempo.).

NANDO – Agora quem tá ficando com fome sou eu.

BIRA – Minha mãe sempre dizia: ‘meu filho, tá com fome? Pega

um homem e come’. Ah, minha mãe é que era uma mulher

sábia!...

NANDO – E você?...

BIRA – Eu o quê?

36 NANDO – A sua resposta para ela?

BIRA – Pra minha mãe?

NANDO – Sim.

BIRA – Eu não respondia nada. Era muito ingênuo naquela

época, meio bocó, ainda. Hoje eu acho até que não seria má

idéia comer carne de gente. Que gosto terá, hein? Vai ver que é

até mais gostosa que carne de porco. Eu sou tarado por carne

de porco e você? Eu conheço um cara que come carne de gato,

sariguê, jibóia, gia, o diabo. Gente não sei se ele come, acho

que não, mas quem sabe, né? Nada é impossível nesse mundo

louco.

NANDO – Ele me teria feito um grande favor se tivesse comido

você.

BIRA (Sem ligar para Nando, com revolta crescente) – Às

vezes eu penso que a gente é bem pior do que qualquer animal

selvagem, desses que se matam uns aos outros pra sobreviver.

A gente, o homem, o animal mais inteligente criado por Deus e

pela natureza... mata por prazer, como nas guerras bestas que

andam por aí e que é assunto diário de todos os jornais...

NANDO – É: mas também se mata pra não morrer.

BIRA – O que vem a dar no mesmo. A gente mata se

defendendo pra poder continuar vivendo... pra ter o prazer de

viver... como se isso valesse alguma coisa... Viver!... No nosso

caso, por exemplo, será que valeu a pena?

NANDO – Eu nunca me arrependo do que faço: o que tá feito, tá

feito e pronto. Quem achar ruim que se dane!

37 BIRA – Eu também não, porra! Mas a gente pensa...

NANDO (Cortando) – Taí: o seu grande mal é esse, ó – pensar

demais.

BIRA – É... talvez você tenha razão.

NANDO – Quem pensa muito, termina ficando louco.

BIRA – Mas você já disse que eu sou louco...

NANDO – De fato: eu cá tenho minhas dúvidas.

BIRA – Louco, meu chapa, eu já te disse, todo mundo é. O

problema não é esse, o problema é que se a gente pensa

demais termina ficando meio frouxo, entende?

NANDO – Entendo sim. Até que enfim você falou uma coisa

inteligente.

BIRA – Pra você ver que eu não sou tão burro assim...

NANDO – É... espero que a sua burrice ou loucura, sei lá, não

chegue ao ponto de levar você a cair na asneira de tentar fugir

daqui.

BIRA – Corta essa meu chapa! Espere só até ver o meu golpe

de mestre. Aí você vai querer embarcar na minha canoa.

NANDO – Eu não embarco em canoa furada, seu idiota.

BIRA – Canoa furada é?... Qual é, ó cara?... Você vai ver.

NANDO – Que o diabo se apiede de ti.

BIRA – Amém!

NANDO – Só o diabo é quem pode te ajudar.

38 BIRA – Tô com ele e não abro. Mas também tô com Deus. Você

não acredita em Deus?

NANDO – Deus não entra nessa jogada.

BIRA – Ué: por que não?

NANDO – Onde já se viu Deus ajudar criminoso que nem nós,

seu imbecil?

BIRA – A mim ele tem ajudado, e muito. É meu aliado, confio

nele, sabia? Pois é: até já fiz promessa ao Senhor do Bonfim, fui

atendido e tive que ira a Bahia pra pagar.

NANDO – Promessa? Você é uma besta, mesmo.

BIRA – Não senhor. Tá aqui, ó. (Mostra um crucifixo que traz

preso a uma corrente, no pescoço.) Daqui ele não sai, morro

com ele no pescoço.

NANDO – Bobagem, pura bobagem.

BIRA – Bobagem nada, meu chapa. Escute só o que eu vou lhe

contar: eu estava para morrer, fui ferido à bala, na perna

esquerda, aqui, ó... (aponta o lugar.) e o negócio tava feio, só

você vendo, meu camaradinha, parecia que ia virar gangrena,

manja gangrena? Pois é: a bala foi mal extraída ou extraíram

muito tarde, sei lá, só sei que tava nas últimas. Apelei pra tudo

quanto foi remédio, até rezadeira, tudo! Queriam cortar minha

perna, não deixei. Foi aí que me lembrei de minha mãe, ela é

baiana, devota do Senhor do Bonfim. Não sei rezar, mas me

peguei com o Santo e pedi a ele pra ficar bom e que se eu

ficasse curado mesmo, ia até a Bahia pra subir as escadas da

igreja de joelhos e acender uma vela bem grande pro Santo.

39 (Nando ri.) Você pode achar tudo isso muito ridículo, pode

zombar de mim, não me importa. O que interessa é que eu

fiquei bom de verdade.

NANDO (Sem conter o riso) – Não vai me dizer que você

acredita mesmo que foi o Santo quem lhe ajudou?...

BIRA – E quem mais podia ter sido, diz?

NANDO – E os remédios, sua besta?

BIRA – Que remédio coisa nenhuma. Se dependesse daquelas

drogas todas, eu tinha ido pra cucuia direto. Tô aqui vivinho da

Silva e vendendo saúde no atacado e no varejo, graças a Ele,

ao Senhor do Bonfim, o Oxalá dos candomblés da Bahia, do

terreiro da Mãe Menininha do Gantois. Terra boa, meu cara: eu

dia eu largo tudo aqui e vou morrer lá!

NANDO – Melhor do que o Rio eu não acredito.

BIRA – Você diz isso porque nunca pintou por lá. Pra nossa

profissão, o Rio é melhor, o campo é maior e tem muito mais

otários também. Mas pra viver mesmo, pra curtir uma de muito

mar, muito sol e morenas boazudas por todos os lados, acho

que como a Bahia não tem não senhor.

NANDO – Papo furado... pra viver a gente vive em qualquer

lugar.

BIRA – Papo furado pra você, pra mim, não. Gosto da Bahia e

um dia ainda baixo por lá e pra ficar!

NANDO – Ora: vá pro raio que o parta!

40 BIRA – Não senhor: eu vou é pra Bahia mesmo, e... quem sabe,

você virá comigo? Nós vamos fugir, não vamos? Ou você quer

continuar apodrecendo aqui neste esgoto, como rato

encurralado? Vamos, responda: é isso o que você quer? Não,

meu chapa, eu não acredito. Mas não acredito mesmo. Seja

sincero consigo mesmo, ao menos uma vez na vida! Lembre-se

Nando: você não é rato, você é gente. Ponha isso na sua cuca

de uma vez por todas, antes que seja tarde demais! Fuja

comigo, esta é sua grande oportunidade!

NANDO (Confuso) – Já lhe disse pra não contar comigo!

BIRA – Você não está sendo sincero, Nando. Sei que no duro,

no duro mesmo, você tá doido pra sair daqui, pra fugir comigo...

NANDO (Cortando) – Se eu fosse louco pra ter uma idéia

dessas, eu tentava sozinho, tá ouvindo? Não ia procurar apoio

de ninguém, não ficava que nem você, implorando ajuda, como

um idiota. Eu não preciso de muleta!

BIRA – Por Deus, Nando, eu não tô implorando nada. Só quero

te ajudar, quantas vezes você quer que eu repita isso?

(Gritando quase.) Eu quero te ajudar!...

NANDO – Não precisa gritar, nem precisa repetir coisa alguma.

Não te pedi ajuda, eu não te pedi nada!

BIRA – Mas você precisa: você tem que vir comigo!

NANDO – Não vou a parte alguma com você, sua bicha! Vá pro

diabo!

BIRA (Fora de si) – Covarde! Você não passa de um covarde!

41 NANDO (Avançando para Bira, como uma fera, quase

desfigurado) – Eu te avisei, eu te avisei! (Esbofeteia Bira. Este

reage. Os dois se atracam, brigam ferozmente, aos gritos,

como loucos. A certa altura, Bira agarra Nando pelo

pescoço e tenta estrangulá-lo. Nando faz esforço para livrar-

se. Não consegue. Surge o Carcereiro atraído pelos gritos

de ambos. O Carcereiro abre a porta da cela e, ao ver Bira

tentando matar o companheiro, não hesita e atira, atingindo

Bira pelas costas. Bira grita, solta Nando e cai. Nando olha

para o guarda, aturdido, e para Bira estendido no chão.

Grita.) Assassino! Covarde! Você matou Bira pelas costas!...

Assassino, covarde! Você matou!... (Pega Bira nos braços,

soluçando como um desesperado. Beija o companheiro na

boca, longamente.) Biraaaaaaa!...

FIM