A utopia política na Contra-Reforma

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A utopia política na Contra-Reforma Luigi Firpo 1 Tradução de Carlos Eduardo O. Berriel Luigi Firpo (1915-1989) foi um dos mais importantes historiadores italianos do sécu- lo passado. Renomado estudioso de Campanella, assim como de outros utopistas e do pensamento político e religioso dos séculos XVI e XVII, ensinou História das Doutrinas Políticas, primeiramente na Faculdade de Jurisprudência, e mais tarde na de Ciências Po- líticas da Università di Torino. Entre seus escritos, destacam-se Ricerche campanelliane, Sansoni, 1947; Lo stato ideale della Controriforma: Ludovico Agostini, Bari, Laterza, 1957; Il supplizio di Tommaso Campanella : narrazioni, documenti, verbali delle tor- ture, Roma, Salerno, 1985. Também organizou o volume Studi sull’Utopia, Firenze, Ol- schki, 1977. Coordenou, para a editora UTET, a célebre coleção de Classici del pensiero político e a Storia delle idee politiche economiche e sociali. 1 Este ensaio de Luigi Firpo foi traduzido a partir de “L’utopia política nella Controriforma”, in Quaderni di “Belfagor”. Diretti da Luigi Russo. Quaderno Primo. Contributi alla storia del Concilio di Trento e della Controriforma. Firenze: Vallechi, 1948. Resumo Neste estudo, hoje clássico, Luigi Firpo faz uma penetrante análise dos mais relevantes escritos utópicos do Cinquecento e, principalmente, daqueles que surgiram durante o período mais atuante da Contra-Reforma. Primeiramente, identifica os traços principais da utopia renascentista, como seu cunho marcadamente social, sua posição otimista quanto à capacidade da razão humana de criar formas novas, perfeitas, autárquicas de organização social, entre outros. A isto contrapõe, num segundo momento, o conjunto de valores advindos do novo clima espiritual instaurado pela Contra-Reforma (e suas conseqüências), detendo-se principalmente em autores como Agostini, Campanella e Zuccolo. Palavras-chave Utopia, Contra-Reforma, Pensamento Político, Campanella.

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A utopia política na Contra-Reforma

Luigi Firpo1

Tradução de Carlos Eduardo O. Berriel

Luigi Firpo (1915-1989) foi um dos mais importantes historiadores italianos do sécu-lo passado. Renomado estudioso de Campanella, assim como de outros utopistas e do pensamento político e religioso dos séculos XVI e XVII, ensinou História das Doutrinas Políticas, primeiramente na Faculdade de Jurisprudência, e mais tarde na de Ciências Po-líticas da Università di Torino. Entre seus escritos, destacam-se Ricerche campanelliane, Sansoni, 1947; lo stato ideale della controriforma: ludovico Agostini, Bari, Laterza, 1957; il supplizio di tommaso campanella : narrazioni, documenti, verbali delle tor-ture, Roma, Salerno, 1985. Também organizou o volume Studi sull’Utopia, Firenze, Ol-schki, 1977. Coordenou, para a editora UTET, a célebre coleção de classici del pensiero político e a Storia delle idee politiche economiche e sociali.

1 Este ensaio de Luigi Firpo foi traduzido a partir de “L’utopia política nella Controriforma”, in Quaderni di “Belfagor”. Diretti da Luigi Russo. Quaderno Primo. Contributi alla storia del Concilio di Trento e della Controriforma. Firenze: Vallechi, 1948.

Resumo

Neste estudo, hoje clássico, Luigi Firpo faz uma penetrante análise dos mais relevantes escritos utópicos do Cinquecento e, principalmente, daqueles que surgiram durante o período mais atuante da Contra-Reforma. Primeiramente, identifica os traços principais da utopia renascentista, como seu cunho marcadamente social, sua posição otimista quanto à capacidade da razão humana de criar formas novas, perfeitas, autárquicas de organização social, entre outros. A isto contrapõe, num segundo momento, o conjunto de valores advindos do novo clima espiritual instaurado pela Contra-Reforma (e suas conseqüências), detendo-se principalmente em autores como Agostini, Campanella e Zuccolo.

Palavras-chave

Utopia, Contra-Reforma, Pensamento Político, Campanella.

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Falou-se muito, ao se resenhar as fortunas da utopia política, e em particular da utopia citadina, de um filão italiano renascentista, de um florescimento – na verdade bastante denso – de escritos

publicados ou compostos no nosso meio entre o pleno Cinquecento e o primeiro Seicento, ao qual a crítica2 parece atribuir motivos e atitudes comuns, quase que um único substrato de aspirações, uma concórdia inconsciente de intenções, até mesmo uma monótona identidade de soluções revolucionárias propostas para sanar o difuso mal estar econômico e social do século. Ninguém notou, ao contrário, como esse fato – se verdadeiro fosse, e não apenas aparência, disfarce de ambíguos e contraditórios aspectos – deveria ser encarado como sendo completamente surpreendente, inconciliável mesmo por sua uniformidade e coerência, com todo o fermento de idéias do nosso grande século, que parece fracionado em sua metade por um corte radical. O Concílio de Trento, fulcro de um movimento europeu tão profundo como foi o da Contra-Reforma católica, e a paz de Castel Cambrese, grávida de tantas conseqüências para a Itália pacificada na servidão, teve entre nós influência decisiva no campo especulativo e no campo político: problemas antigos caíram na irrelevância, quase esvaziados de qualquer interesse e vitalidade (os belos castelos de cartas do estado misto, por exemplo, que eram simplesmente uma utopia sui generis), e surgiram novos problemas que, se novos realmente não eram, como tal apareceram à luz da exigência essencial e imperiosa do novo tempo: o moralismo, o confronto sistemático e escrupuloso entre os valores humanísticos do Renascença e os perenes valores ético-religiosos da tradição. De fato, na atitude utópica, na proposta confiante e convicta de modelos de sociedades perfeitas, auto-suficientes e felizes, existem elementos radicalmente incompatíveis com tal clima espiritual: antes de tudo um fundo de epicurismo latente, uma busca de felicidade na Terra, que está em contraste com a concepção cristã da cidade celeste, beatífica e perene, contraposta ao vale de lágrimas terreno, ao breve exílio no mundo da carne e da culpa; mas também devia, com a mais hostil repugnância, resguardar-se no novo clima o sentido otimista da utopia civil, a implícita exaltação humanística da razão e da autonomia do homem, o imanentismo recôndito que está no íntimo daquelas sociedades imaginárias, tão radicalmente autárquicas que poderiam subsistir sem nenhum pressuposto de transcendência, de forma que a própria religião tem da transcendência um caráter postiço e vago, com um deísmo genérico, sem dogma, aceita apenas em vista do valor social e moral das religiões e inclinado, portanto, a reconhecer nas diferentes crenças uma equivalência substancial. A essas tendências a Contra-Reforma contrapôs todas as complexas estruturas dogmáticas e teológicas do catolicismo positivo, e apagou a entusiástica fé nos ditames da razão humana com um gelo inesperado, que é o cansaço advindo dos generosos impulsos renascentistas - mas que é também a angústia arcana que está no fundo das religiosidades íntimas, o sentido trágico e desconfortável da precariedade e do pecado.

2 Conferir em particular: FRANCK (1881); BERTANA (1892); DE MATTEI (1927); ARCARI (1935); CURCIO (1941 e 1944). Conferir também os trabalhos de De Mattei e de Bobbio que citarei mais adiante e, do mesmo MATTEI (1938).

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O impulso de reforma político-social que se propaga na primeira metade do Cinquecento, ora genérico e cauteloso, ora explícito e radical, aquele tanto de pré-iluminismo e de pré-revolução que, em certas situações e em certas veleidades transparece, vê o seu impulso freado pela Contra-Reforma, como observa Curcio (1944, p. 28), desde que esta seja entendida não como movimento decorrente externo e reacionário, não como um tipo de abafador obscurantista, mas como crise e estado oscilante daquelas mesmas consciências, como sintoma de desconfiança nas reformas aplicadas às instituições e aos bens materiais, como necessidade de atuação mais sobre as almas do que sobre coisas, como consciência da precedência imprescindível de uma reforma moral: no século XVII a utopia se tornará, portanto, “débil, desprovida de qualquer conteúdo social”, porque a nova época não era mais da razão, mas queria herdar da remota tradição dogmático-escolástica os esquemas do viver associado. Mas para aceitar uma tal organização conceitual – excessivamente simétrica e óbvia, ainda que persuasiva – é preciso antes explicar e organizar as incongruências aparentes, pelo menos as cronológicas, que parecem colocar em risco o edifício. É bem verdade que Campanella “está a cavalo de dois séculos” (a Cidade do Sol foi com certeza rascunhada em 1602), mas então a Contra-Reforma já se tornara claramente operante e intransigente havia quarenta anos, e já era assim quando Ludovico Agostini, no penúltimo decênio do Cinquecento,3 a descrevia na sua “república imaginária”, para não falar da Evandria de Zuccolo, impressa com certeza em 1625.4 Pelo menos esses três pequenos enigmas precisam ser resolvidos, para que o discurso mantenha a desejada coerência.

1. características do utopismo do Renascimento

Em primeiro lugar, convém trazer ainda que brevemente à memória as mais vivas e evidentes sugestões que atuaram sobre os utopistas do Renascimento, os motivos compósitos que estão entrelaçados nas suas páginas, e distinguir dentre esses as questões – já em parte apontadas – que a restauração católica precisou obrigatoriamente repudiar, e quais questões que, no entanto, revividas ou disfarçadas, puderam sobreviver e frutificar na nova estação. Trata-se, em outros termos, de definir o clima espiritual do primeiro Cinquecento, os problemas político-sociais que por gravidade e urgência pareceram requerer soluções radicais – enfim, os modelos e as questões culturais nos quais aquelas soluções se inspiram, seja na substância das providências, seja na mera exposição literária.

A coloratura deste tempo, a corrente espiritual à qual as mais vivas e profundas consciências aderem é, sem dúvida, o racionalismo humanista, aquela ânsia e aquela alegria da autonomia humana, aquele orgulho da reconhecida supremacia e quase onipotência da inteligência, que se traduziu em otimismo operoso, no sentido desabusado e heróico da vida. Acostumado há séculos a comedir a própria ação com uma

3 Curcio localiza os Dialoghi dell’Infinito de LUDOVICO AGOSTINI nos anos 1575-1580 (1941, p. xviii; 1944, p. 115), mas no contexto (p. 172-4) encontram-se alusões e indicações descritivas, que parecem presumir um conhecimento direto do Oriente próximo e da Palestina em particular, onde se sabe que Agostini esteve em 1584. Creio, portanto que a datação dos Dialoghi deveria ser alterada em pelo menos um decênio.

4 Matteo Buonamico frequentemente comenta passeios por países imaginários nos seus Trattati della servitù volontaria (primeira edição: Napoli, 1572) e nesses comentários faz referência à idade de ouro. Mas a sua cidade de Nársida, com o templo da Liberdade cujos visitantes são miraculosamente liberados do império das paixões, nada tem de comum com a utopia política: trata-se de um decrépito alegorismo moralizante, que da longa tradição medieval havia jogado as últimas germinações com Fregoso e com Manfredi, nos começos do século XVI; uma tênue sugestão de alegorismo sobre a utopia certamente pode ser admitida, mas desde que não exagerada, como alguns pretendem, ao ponto de colocar entre as utopias Viaggio dei tre peregrini de Fregoso, que tem direito de cidadania não maior do que a Commedia dantesca. Duas breves passagens de Buonamico são reproduzidas por CURCIO (1944, p. 175-193).

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férrea norma positiva transcendente, o homem reconhece com estupor no mundo uma razão suficiente, intrínseca, capaz de assegurar-lhe toda harmônica operação: a natureza. E no próprio íntimo essa natureza se torna consciente, toma o nome de razão, torna-se guia e medida do agir: “virtù”, escreve Morus,5 é “viver segundo a natureza” e “segue o comando da natureza aquele que (...) obedece à razão”. Do impulso confiante de traçar por si mesmo o próprio caminho no mundo, de forjar o próprio mundo como criação da mente, surge a crítica da tradição, da estrutura histórica – aparentemente arbitrária e ocasional – do viver associado, a crítica à intrincada complexidade dos direitos positivos do decálogo bíblico ditado ao grupo comunitário. Em todos os campos a razão nutrida de experiência se põe confiantemente a ditar normas para todos os aspectos do agir prático: o Cinquecento é a idade dos manuais, incansável na busca de princípios normativos de valor geral e perene que coubessem em cômodos esquemas didáticos. No terreno político o retorno à natureza envolvia imediatamente o conceito de igualdade, e isso trazia consigo, imediatamente, o de legalidade; o despotismo desabusado da época dos tiranos, a brutal concepção do Estado absolutista, patrimonial, capaz de todas as arbitrariedades, contrastava de modo completamente evidente com a visão idílica da nativa concórdia fraterna dos homens; enquanto os desiludidos políticos realistas colocam a sua maliciosa preceptística a serviço dos príncipes, todas as páginas da corrente idealista soam como crítica severa à instituição monárquica e esboçam – não sem anacronismo – o feliz modelo da república aristocrática, que se inspira no mito, tenazmente renovado, da sábia e equilibrada Veneza. Essa aversão ao Estado-força renascentista tende por um lado à restauração dos princípios jurídicos subtraídos pelos arbítrios dos déspotas terrenos, e ao reconhecimento dos intocáveis direitos congênitos à pessoa humana, que amadurecerá com os teóricos do direito natural; mas no plano contingente essa aversão também trai o decorrente cansaço do século, a saciedade com a violência desenfreada, o desejo de um ordenamento que, no interior e no exterior dos Estados, assegure finalmente uma tolerável convivência e uma paz duradoura. Nos motivos políticos se mesclam aspirações de aberto conteúdo social: um aspecto da violência irracional é a insuportável especulação com os bens da terra, a desigualdade excessiva das riquezas; por toda parte a sociedade européia mostrava-se onerada por aqueles males que Morus apontava com desdém na Inglaterra de Henrique VIII: de um lado a nobreza frívola e ávida, o clero corrupto e ocioso, o parasitismo pululante, o ofício das armas reduzido à ladroagem de viciados, e do outro lado o pauperismo deprimente, a fome que induz ao furto e ao delito, a turba dos assaltantes e dos vagabundos. O amor pelo quieto viver deve, portanto, sugerir aos próprios privilegiados um senso de moderação e de renúncia, de adaptação a fortunas menores, porém mais seguras, de instauração de uma igualdade mais ou menos rigorosa que, atenuando as desigualdades, alivie certas classes de uma opressão intolerável e a outras prive de privilégios excessivamente injustos; a condenação da

5 Cito sempre a Utopia na versão de T. FIORE (Bari, 1942); conf. a p. 98.

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usura e do ócio, o desprezo pela vã acumulação de riquezas, a polêmica sobre o critério de nobreza (que se quer antes fundada sobre a virtù do que sobre a estirpe), os impulsos filantrópicos, são aspectos desta tendência, que encontrava no naturalismo inspiração para os seus projetos de medida, de equidade, de renúncia ao supérfluo. Nos utopistas, ao contrário, o projeto social terminará por prevalecer sobre o político, e o absolutismo, aprisionado na instituição monárquica, será reafirmado nos novos esquemas – frequentemente ainda mais maciço e inquisitorial, e muito mais opressor da autonomia individual – apenas para se proteger de qualquer evasão na direção daquela estrutura econômica igualitária, a meta precípua dos sistemas que estamos analisando.

Neste conjunto inicial de idéias e de aspirações mesclam-se tradições culturais, experiências históricas, sugestões de modelos literários. Voltar-se para a natureza para dela requerer normas incorruptas de vida coletiva significava entregar-se ao mito pagão da idade do ouro, à tradição religiosa do paraíso terrestre, à doutrina estóica da ingenuidade feliz no estado da natureza – aquela mesma que será logo idealizada na musicalidade sensual da poesia pastoral. Platão e Virgílio por um lado, Sêneca e Cícero por outro, sugerem temas eficazes; a República platônica torna-se o modelo típico, com o seu comunismo que exercerá atração sobre o das fraternidades religiosas, das ordens de cavalaria, das comunidades anabatistas, com a sua idealização da cidade-estado, que se espelha na tradição comunal italiana, no mito da Veneza feliz. Cláudio Ptolomeu, Ludovico Guicciardini, Botero, observadores e analistas do real, disputam sobre o melhor posicionamento da cidade; os arquitetos racionalistas, Alberti, Filarete, Leonardo, traçam esquemas urbanísticos inspirados em abstratas simetrias funcionais; os duques da Toscana devaneiam transformar Portoferraio em Cosmópolis e fundar uma paradisíaca e erudita “Cidade do Sol”, na qual não seria necessário falar outra língua além do latim. O século é tão permeado de radicalismo reformista que a utopia chega a fazer fronteira com a história, e muitas vezes o ideal parece estar a ponto de materializar-se na realidade. Quando esses devaneios se fazem palavra escrita, óbvias sugestões literárias dirigem a pena dos utopistas: são os poemas alegórico-didáticos do Tre e do Quattrocento, as fabulosas peregrinações medievais em busca do paraíso terrestre, as correrias romanescas dos ciclos de cavalaria, os recentes relatos de viajantes e de navegantes, tão inclinados à idealização dos remotos países de recente descoberta: nasce destes elementos compósitos um “gênero” literário, uma fórmula destinada a repetir-se até os nossos dias com uma fortuna constante, e que ainda não mostra sinais de declínio.

Dupla é, portanto, a aspiração que o Renascimento revela através dessas descrições de cidades ideais: a restauração da legalidade na vida política, e o saneamento do agudo mal estar econômico causado pelas graves desigualdades na distribuição da riqueza. Mas se trata de vozes isoladas de precursores, sendo tênue o eco no vivo emaranhado da história: são ainda extremamente eficientes as forças sociais que defendem os

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privilégios econômicos, e extremamente antitética a base política da nova época, voltada para as fortunas dos principados absolutos e para os rígidos centralismos nacionalistas. A história desmentia a utopia, que se humilhava – rebaixando os generosos propósitos erasmianos do humanismo cristão – ditando vagas idealizações do pio monarca nos untuosos “espelhos de príncipes”; a Contra-Reforma não era o único motor daquela história, de forma que possa ser identificada, com simplismo apressado, a causa única de um indubitável desfibramento do idealismo utópico. Na realidade a Contra-Reforma visou essencialmente à restauração daqueles valores religiosos, ou antes, daquela específica e positiva religiosidade católica que o pensamento renascentista havia renegado ou, pior ainda, mortificado em compromissos esquecidos. Em meados do Cinquecento, tais valores, tendo recuperado seu caráter intransigente e imperativo, encontraram-se justapostos nas consciências aos valores humanístico-naturalistas, e muitas vezes pretenderam até rejeitá-los bruscamente e suplantá-los: na realidade foram obrigados a submetê-los a uma filtragem sistemática, a aceitá-los em parte, a reconciliar-se com eles e a estabelecer, não uma substituição pura e simples, mas uma síntese.

No campo das doutrinas políticas, em particular, as duas aquisições fundamentais do Renascimento e da Reforma foram, por um lado, a reconhecida categoricidade dos valores utilitários, definida por Maquiavel, e a doutrina contratual e democrática dos astuciosos monarquistas calvinistas. Portanto, a reação católica não rejeita esses aportes, nem retorna pura e simplesmente aos esquemas da política tomista: troveja contra Maquiavel, mas com os agentes silenciadores e com os teóricos da razão do Estado tenta conciliar a instância utilitária com a restaurada exigência moral, e acolhe de fora, com Mariana e com Suarez, as apaixonadas reivindicações dos polemistas huguenotes, tornadas mais sistemáticas nos esquemas jurídicos da reflorescente escolástica.

Nas correntes do utopismo político a intransigência pós-tridentina não encontra, portanto, motivo de escândalo - nem nas reivindicações democráticas, nem nas aspirações de igualitarismo econômico: da república eletiva governada pelos mais dignos fornecia o exemplo a própria hierarquia eclesiástica; às teorias igualitárias e majoritárias haviam fornecido impulsos eficazes as doutrinas conciliares do século XV; a polêmica contra a riqueza, a aspiração de um retorno à pobreza evangélica eram revividas de século em século como um tema perene da espiritualidade cristã. O que a nova era renega é, ao contrário, o excessivo otimismo racionalista, a tendência do utopismo em degenerar do hedonismo individualista (que Morus, por exemplo, compensa – não sem desconcertante antítese – com uma ética da coletividade) até o mais grosseiro materialismo, o que é comprovado por Doni; a pintura do homem constituído in puris naturalibus não pode por si mesma causar escândalo, se era tema obrigatório dos teólogos nas Summae, quando nas seções dedicadas à criação tratavam “de conditione hominis in statu innocentiae”,6 mas a tese implícita naquelas pinturas é a de uma

6 Por exemplo, S. TOMÁS, in Suma Teológica, I, qaest. 94-102.

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auto-suficiência da lex naturae, para a qual qualquer adição é degenerescência, ou pelo menos superfluidade, aí compreendida a própria lei divina positiva. A imaginação da ilha desconhecida, do país remoto no qual prospera a cidade ideal, não é apenas imaginação literária, artifício fantástico, mas se revela expediente sutil para subtrair em bloco, com a desculpa da ignorada revelação cristã, a inteira estrutura ético-religiosa da república imaginária do imperativo, inevitável confronto com a moral e a dogmática da Igreja. A religião simplificada e genérica das cidades ideais da Renascença tende a resolver-se no deísmo: não valem desculpas ou reticências que possam desviar a renovada intransigência dos homens da Contra-Reforma, a qual torna evidente que o radicalismo da revolução político-social pressupõe uma análoga revolução moral, e que esta por sua vez não pode senão coincidir com a instância de uma renovação religiosa ab imis: não se trata de um aspecto particular da utopia cinquecentesca, mas um caráter constante do extremismo utópico, voltado necessariamente para uma transformação que não pode ser coerente a não ser com a condição de ser total.7 Entre os temas da utopia renascentista, este, malgrado todo expediente dissimulador, é o único que a nova época sente como verdadeiramente intolerável: será oportuna uma sumária averiguação através dos Estados ideais do primeiro Cinquecento para clarear os termos da insanável antítese.

A Utopia de Morus viu a luz no fim de 1516. No ótimo Estado que foi delineado, pode-se dizer que é modesto o lugar reservado à religião: um regime de larga tolerância consente as crenças mais variadas e tutela toda forma de pacífico proselitismo; algumas delas veneram os planetas, outras deificam ilustres homens desaparecidos, mas a maioria concorda no culto de um deus único, eterno, incognoscível, onipresente, causa e fim de todas as coisas. É comum a todas as convicções religiosas essa veneração do ente supremo, e apenas a ele é tributado o culto público nos templos, por ocasião das 26 festividades anuais; o ritual compreende o uso de vestimentas imaculadas para o povo, e recamadas de penas coloridas com desenhos simbólicos para o sacerdote, a genuflexão silenciosa e devota, o canto de louvor a Deus com acompanhamento de instrumentos musicais, e enfim a recitação coletiva de uma oração que inspira sentidos propiciatórios e de gratidão. Consideram, além disso, como forma de culto aceitável por Deus a contemplação da natureza, o que é fácil explicar, visto que cada um “admite, qualquer seja para ele o ser supremo, que é sem dúvida a mesma natureza”. Não existem dogmas, mas, em vista de sua eficácia social no encaminhamento do homem para as boas ações, é vetado negar publicamente “alguns princípios extraídos da religião com a filosofia”, que se reduzem à crença na imortalidade da alma, criada por bondade divina para a felicidade, na recompensa e na pena reservadas no além para as boas e as más ações, enfim na providência divina; quem nega tais princípios não é punido, a não ser com a exclusão dos cargos e com a proibição de propagar ao povo o seu erro. Trata-se, afirma Morus, de “crenças próprias da religião”, e, com efeito, os utopianos “crêem que para a verdadeira

7 Sobre a constante repetição destas características do utopismo, destinada a envolver inclusive a esfera religiosa, conferir para a concepção iluminista e jacobina D. CANTIMORI (1943, p. 17-19).

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busca da felicidade a razão, por si só, seja insuficiente e fraca”; mas logo reafirma que “a razão é aquela que nos conduz a admiti-las e a acreditar nelas”. Nenhum dogma revelado, nenhum preceito positivo interrompe, portanto, o genuíno deísmo que impera em Utopia; Morus não exclui hipoteticamente essa intervenção sobrenatural e, quase para justificar o hedonismo dos habitantes da ilha feliz, observa que tal doutrina é o que de “mais verdadeiro” se pode atingir por via da razão: “apenas uma religião mandada do céu poderia instilar no homem algo mais santo”. Mas nem mesmo a justificação evasiva da ignorância como fruto do isolamento parece se sustentar depois do desembarque, na ilha, de Rafael Itlodeu e dos seus companheiros aventureiros; da sua boca a revelação cristã é ecoada no mundo da pura razão, colocando com urgência indeclinável o problema da aceitação ou da rejeição. Morus se apressa em assegurar que muitos utopianos já começaram a abraçar o Evangelho, estimulados pela afinidade de sua religião natural com o cristianismo, e contentes com as concordâncias do próprio estatuto social com o comunismo apostólico e conventual; e logo acrescenta que muitos receberam o batismo, que permaneceram privados dos outros sacramentos apenas por ausência de sacerdotes, que para a propagação da nova fé – já que privada da intolerância fanática – não encontra hostilidade de nenhuma espécie; mas estamos sempre diante de um compromisso dilatório, não de uma coerente sublimação do natural em sobrenatural. O escritor não diz de que maneira aqueles neófitos conciliariam as suas existências de cristãos – desta forma votados com empenho total para a própria restaurada e santificada natureza – com as estruturas sociais delineadas pela sabedoria terrena: como consentiriam com o divórcio, com a escolha popular dos sacerdotes, com a crença na alma imortal dos animais, com a cremação dos cadáveres, com o matrimônio dos sacerdotes, com o sacerdócio feminino, com a proibição das imagens, com o culto coletivo que rejeita e mortifica no recôndito das habitações privadas qualquer manifestação de culto particular. O cristianismo que pode existir em Utopia é uma larva da religião católica apostólica romana, com suas tradições e seus dogmas, os seus preceitos e os seus ritos, a sua universalidade e a sua intransigência. A ingênua e generosa esperança do irenismo humanístico que flutua por sobre estas páginas, a tentativa de preparar um terreno favorável ao entendimento entre os dissidentes sobre a base do dogma simplificado e racionalizado, eram destinados a receber da restauração tridentina o mais duro desmentido.

Treze anos depois da impressão da Utopia, Antonio de Guevara publicava o seu celebrado Libro llamado Relox de los príncipes, no qual um breve episódio narra a imaginária visita de Alexandre Magno ao povo dos Garamantes; estes, pela boca de um de seus sábios, infligem ao Macedônio uma longa repreensão que soa como áspera condenação do ativismo heróico, da sede de luta e de conquista, exaltando ao contrário a vida modesta e pacífica, a moderação virtuosa, os ideais da pobreza feliz na caridade e na concórdia. Dirigidos por poucas e simples leis em regime de estrito comunismo igualitário, o povo dos Garamantes

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goza de uma relativamente larga liberdade em matéria religiosa, e cada qual é livre de escolher para si o culto que preferir, desde que o pratique com sinceridade de coração e não venere mais do que dois deuses, “um para a vida e o outro para a morte”.8 A obra de Guevara foi traduzida e em parte refundida entre nós por Mambrino Roseo na sua Instituzione del principe cristiano, cuja primeira impressão aparece em Roma em 1543: dez anos depois viam a luz quase simultaneamente em Veneza os dois típicos escritos utópicos do nosso Renascimento: o “Mondo savio e pazzo”,9 nos Mondi de Doni, e a Città felice10 do Patrizi dalmaciano; no intervalo, em 1548, o mesmo Doni se fizera editor da primeira versão em vulgar do escrito de Morus, realizada por um outro scapigliato de seu tempo, Ortensio Lando.

O mundo imaginário de Doni é um esquema sumário, em traços grosseiros, mas inspirado por inflamado extremismo revolucionário: o comunismo econômico da Utopia se torna radical, corrói a própria instituição familiar, que Morus havia consagrado como pedra angular do viver associado, e inclui o comunismo sexual. O organismo urbano funciona tendo por objetivo a satisfação exclusiva das necessidades corporais, a vida afetiva é sufocada como incentivadora de paixões desagradáveis, e sobretudo impera o mais maciço materialismo. No centro da cidade está um grande templo, servido por cem sacerdotes, a quem cabe a última manifestação de poder político que sobrevive no automatismo daquela vida coletiva, reduzida a meras funções vegetativas, mas trata-se porém de sacerdotes de um culto rudimentar. Narra Doni que a cada sete dias, à semelhança do nosso domingo, aqueles cidadãos “faziam a sua festa (...) e naquele dia não se fazia outra coisa a não ser estar no templo com grande devoção”: gente realmente ruim do ouvido, se o recolhimento não fosse perturbado pelos “cem tipos de música” que justamente naquele sétimo dia se entrecruzavam debaixo da grande cúpula. Além disso, também “pela manhã todos visitavam o templo”, e era certo que em tal ocasião cada sacerdote, voltado para os habitantes da rua da qual era preposto, lhes ensinava “a conhecer Deus e a agradecer-lhe por tantos dons e por se amarem uns aos outros”.11 É tudo: também existe aqui um vago deísmo, uma religião sem dogma e desprovida de qualquer conteúdo positivo; como único preceito o amor ao próximo, o culto da solidariedade humana.12

No plano social Patrizi está no extremo oposto: na sua Città felice, tecida com motivos aristotélicos mais do que platônicos, sublinha uma identidade de aspirações entre a oligarquia da polis e a do domínio vêneto, e visivelmente se compraz no gesto. Constrói uma apologia restritiva e reacionária na qual o mais vivo impulso do utopismo renascentista, a rebelião contra a injustiça social, aparece brutalmente rejeitado. O racionalismo continua a elaborar formas mais oportunas de convivência organizada, mas para completo benefício de uma minoria exígua, para quem a auréola da “operação virtuosa” dá o direito de explorar a turba servil dos camponeses, dos artesãos, dos comerciantes, privados de todo direito civil, compreendidos apenas para prover os

8 Ver o texto da contrafação de Roseo em Curcio (1944, p. 43-55). Ver ainda a tradução para o português de BERRIEL, Carlos E. O. O Elogio dos Garamantes de Mambrino Roseo – 1543. Morus – Utopia e Renascimento, Campinas, nº. 2, p. 105-121, 2005 (N. do T.).

9 Traduzido para o português por BERRIEL, Carlos E. O. Uma utopia plebéia do Cinquecento: Mondo Savio e Pazzo. Morus – Utopia e Renascimento, Campinas, nº. 1, p. 129-145, 2004 (N. do T.).

10 Traduzido para o português e analisado por Helvio Moraes em seu mestrado o Pensamento Utópico de Francesco Patrizi da cherso em La città Felice, realizado sob orientação de Carlos Eduardo O. Berriel e defendido no DTL/IEL/UNICAMP em 2005, e publicado na revista Morus – Utopia e Renascimento, Campinas, nº. 1, p. 103-127, 2004 (N. do T.).

11 Veja-se o texto de Doni em CURCIO (1941, p. 1-15, em part. p. 10, 13 e 15).

12 Note-se em confronto este conceito de Morus: “Procurar a própria vantagem sem violar estas leis [públicas] é sabedoria, procurar a vantagem para todos é religião”.

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privilegiados de toda abundância de subsistência e de recursos. Entre esses privilegiados, juntamente com os soldados e os magistrados, estão também os sacerdotes: a religião, de fato, é tão própria do homem quanto o instinto social, e na cidade perfeita a aspiração ao divino deve encontrar adequado acolhimento: “para a satisfação de todas as almas dos cidadãos devem existir nas cidades pessoas que sigam as leis divinas, cuidem dos mistérios e com os sacrifícios tornem benignos e aplacados os deuses, e para isso sejam pelo público edificados templos e igrejas onde o culto a deus possa ser rendido”; na sua linguagem alegórico-mística Patrizi define os sacerdotes como aqueles “que com a sua obra se empenham para que, com o favor e a graça divina, saia este povo da solidão e do deserto” e venha a conseguir a felicidade.13 Outra coisa não diz o autor das crenças e do culto na sua cidade beata, mas basta ler, um pouco mais adiante, que três são os meios para conseguir a virtù (ou seja, natureza, hábito e razão), para constatar mais uma vez quão remota é, dos mais íntimos motivos cristãos, uma tal concepção da vida moral; a sua mencionada explicação racionalista da experiência religiosa, a desenvolta aproximação na mesma frase dos “sacrifícios aos deuses” e do “culto a deus”, a função essencialmente propiciatória e utilitária atribuída ao culto e aos seus ministros, bastam para revelar o caráter compósito e nebuloso desta concepção na qual se misturam, permanecendo dissociados, motivos pagãos e cristãos, naturalismo e misticismo, senso do transcendente e fé exclusiva na razão.

O utopismo renascentista, colocado diante do problema religioso, alcança, portanto resultados substancialmente concordes: o homem, guiado pelo puro lume natural e movido pela instância religiosa que é nele inata, segue nas suas crenças um caminho evolutivo que Morus bem delineou, ao descrever os cultos dos utopianos: primeiro venera os astros (isto é, os fenômenos cósmicos e meteorológicos), depois os homens insignes (idade mítica), e enfim alcança o conceito monoteísta do ente supremo, único, invisível e onipotente, criador do mundo e juiz no além-túmulo das almas imortais. Para além desse deísmo a esfera humana, a razão solitária, não tem asas para superar: para além está a esfera do milagre e da graça, o mistério revelado, o preceito positivo. Não se pode crer que nesta definição da religião natural estivessem inseridas questões polêmicas, motivos heréticos, com o objetivo de contrapor o deísmo, qual forma de religiosidade em si perfeita e suficiente, ao cristianismo positivo. Essas idéias não interrompem a santidade de Morus, o episcopado de Guevara, o sacerdócio de Doni. Trata-se antes de tudo de indicar da forma mais ampla o fundamento racional do próprio cristianismo, a coincidência em amplo aspecto de razão e revelação: estamos na trilha do platonismo renascentista, nos rastros de Marsílio e de Pico – este último, sabe-se, é fonte direta para Morus – com um acordo rigorosamente ortodoxo, reavivado nos primórdios do Cinquecento com as esperanças irênicas, no qual quase afirmam que os alicerces racionais da fé podem fornecer a primeira base da sonhada concórdia cristã. Logo as fissuras da consciência religiosa européia,

13 Ver o texto em CURCIO (1941, p. 121-142). Sobre os conceitos religiosos de Patrizi conferir o citado trabalho de ARCARI (1935, p. 90-91 e 135).

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não sanadas, tornar-se-ão ao contrário irreparáveis, despedaçando a ilusão do humanismo cristão, que de fato em Morus e no seu amigo Erasmo tiveram as suas vozes mais altas. Renegado pela história, esse tema cada vez mais se refugia na utopia e sugere veladamente, com a simplificação das estruturas teológicas e das hierarquias eclesiásticas, o retorno à austeridade cândida do cristianismo primitivo. Depois de uma disputa dramática e desfibrante a Igreja de Roma assume, ao invés, outro acordo: o da intransigência dogmática e disciplinar, da reação sem acordos em todos os campos: missionários e apologetas, diplomatas e gente de armas se fazem soldados da mesma batalha: Inácio dá ao papado a Companhia de Jesus, Bellarmino as Controversiae, Baronio os Annales; motivos extra-teológicos de descontentamento são sanados com as rigorosas normas sobre a seleção e preparação do clero, a distribuição dos benefícios, a residência dos bispos, as visitas pastorais; até mesmo o agudo mal estar econômico encontra parcial resolução nas grandes iniciativas filantrópicas de largo âmbito social. A utopia do Renascimento foi uma livre busca de soluções racionais para os complexos problemas da convivência humana; a Contra-Reforma impôs a grande parte daqueles problemas uma sua já pré-ordenada solução, retirada das Escrituras e da tradição, e subtrai à livre investigação o inteiro campo religioso: dogma e preceito ético, ritual e sacerdócio, serão a priori definidos por um magistério absoluto, imune a toda crítica. Apenas no exíguo terreno residual a razão poderá tentar as suas últimas provas, antes de depor desmoralizada, as armas.

2. novos aspectos da utopia no Seicento

É necessário agora comprovar, textos à mão, a validade das teses. Não sem, todavia, apontar antes para uma tentativa de verificar por outra via os caracteres salientes da utopia seicentista. Sustentava De Mattei, em um breve ensaio juvenil,14 dever-se reconhecer no áureo modelo veneziano de uma república completa em si mesma, com ordenamentos de mecanismo minucioso e exato, a mais direta sugestão atuante sobre os nossos utopistas do século XVII, que se diferenciam singularmente dos seus precursores quinhentistas pela maior seriedade do conteúdo filosófico, pelo propósito de atuação prática que faz dos seus escritos o esboço de um “experimento” contra o “devaneio doutrinal”, contra o “exercício acadêmico” próprio da mentalidade renascentista. Já ARCARI (1935, p. 79-83) observava nessa tese uma contradição interna, segundo a qual o processo que vai do devaneio ao experimento, a tentativa de realização do ideal, é de fato contrário à mitificação de Veneza, segundo um processo inverso de idealização do real; mas convém sublinhar ainda mais nessa antítese a inconsistência de um e outro argumento. A idealização dos ordenamentos da Sereníssima, a transformação literária de estruturas civis, nascidas de um secular processo histórico contingente, em modelo racional de perfeição, aquilo que em suma foi o mito tenaz da sábia e livre Veneza, é fruto genuinamente quinhentista:

14 Conferir em DE MATTEI (1929, p. 414-425); sobre a idealização de Veneza, De Mattei retorna inclusive com um artigo paralelo (DE MATTEI, 1930, p. 391-401). Ambos foram reimpressos em Ricerche di storia del pensiero politico, Roma, 1934.

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os seus textos capitais são da primeira metade do século, e carregam na fronte os nomes de Contarini e de Giannotti;15 isso inspira por tais vias, com se viu, o utopismo renascentista, e se no Seicento perdura, por certo vai definhando, em uníssono com as fortunas políticas e econômicas da cidade lagunar, para não falar do grave golpe infligido pelos polemistas eclesiásticos ao tempo da grande disputa do interdito.

Quanto à presumível antítese entre o exercício literário e acadêmico dos quinhentistas e o propósito de atuação prática dos seicentistas, trata-se de uma velha tese de FRANCK (1881, p. 187-8), enunciada em uma comparação limitada a Morus e Campanella, já discutível nessa restrita acepção, mas certamente falaz quando se pretende conhecer as típicas características diferenciadoras dos dois séculos. O próprio De Mattei ressalta intuitivamente uma carga de anacronismo na Cidade do Sol campanelliana, que “fecha em certo sentido o ciclo das utopias humanísticas”, e dessa forma fica colocada em um quadro anterior ao ciclo propriamente seicentista. Isso admitido – e logo teremos ocasião de definir conceitualmente essa exata escansão – torna-se totalmente arbitrário assumir o próprio Campanella como expoente da atitude dos seicentistas; mas, sobretudo, deve-se considerar como já insustentável a tese que visa reduzir a Utopia a mero exercício literário, a “devaneio abstrato”: trata-se de uma interpretação que é movida por uma causerie de Erasmo – o segundo livro da Utopia teria sido escrito “per otium” –, testemunho ambíguo de modo algum probatório, mas que encontrou fortuna entre uns poucos inadvertidos apologetas do Chanceler, temerosos de ver-lhe a santidade arranhada pelo radicalismo social. Toda a crítica mais iluminada concorda hoje em reconhecer o profundo conteúdo construtivo do escrito de Morus, a concretude das reformas desejadas, o senso vigilante dos males que afligiam a Inglaterra contemporânea – numa palavra, a historicidade e a seriedade do seu pensamento. Disso à fé na concretização, daí ao impulso de ação prática, tem muito chão. Caráter saliente, porém distintivo da utopia, é de fato o radicalismo, a abstração de toda historicidade nas soluções propostas – não nas questões! –, a intransigência revolucionária que deriva não da inflamada paixão política, mas da contemplação do ideal na esfera do absoluto, sem compromissos. A reforma moderada e concreta não é própria do utopista, que não pode fazer de seu modelo uma meta da ação sem perder sua natureza, transformando-se em agitador político ou social, isto é, um homem que na esfera prática vê uma passagem aberta para por em contato realidade com ideal. Para o verdadeiro utopista o hiatus é ao invés insuperável, as instituições presentes não oferecem aquele ponto de menor resistência sobre o qual fazer pressão com a ação direta para a sua subversão; a única esperança de ação é aquela que se abre no íntimo das consciências especulativas, como convite à reavaliação do real, como antítese crítica da história, para chegar depois a refluir na vida somente através desse lento e indireto trâmite ideal, quando – amadurecidos os tempos, transformada em aspiração difusa aquele solitário ideal – outros farão do modelo sonhado a meta de ação.

15 A Della repubblica de’ Veneziani de GIANOTTI foi impressa em Roma por Blado em 1540; a De magistratibus et republica Venetorum de CONTARINI aparece postumamente em Paris, em 1543. Sobre a idealização dos ordenamentos vênetos conferir em CURCIO (1934, p. 90 ss).

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Para sustentar que no Seicento o utopismo manifesta propósitos de ação prática, isto é, muda sua natureza em reformismo ou em revolução, seria necessário captar pelo menos um vislumbre de tal propósito em Bacon ou em Andréa, em Zuccolo ou em Vairasse d’Alais: empresa completamente vã. Mais uma vez se retorna, portanto, a Campanella, que foi utopista e que em uma confusa rebelião tentou erigir sobre um monte calabrês a sua cidade do Sol; parte dele a errônea tese e nele se encontra a solução: a fé na concretização da utopia não é sinal de uma evolução do utopismo de um século para outro, mas fruto singular e personalíssimo de ingenuidade e de entusiasmo, tão anti-histórico e absurdo como a conjura de 1599, concebida fora de qualquer cálculo político e militar, confiada apenas ao messianismo individual do seu chefe e na chegada iminente de uma espantosa palingêsese cósmica.

Permanece ao invés, em De Mattei, o mérito de haver agregado um último caráter à utopia seicentista, que lhe é realmente peculiar: o cientificismo. As ciências experimentais são elevadas em grande honra nas novas comunidades imaginárias, resolvem antigos problemas com o avanço técnico, criam com a abundância e as comodidades a visão otimista e fervorosa do “progresso”: singularmente vivos em Campanella, estes motivos logo se tornarão quase exclusivos no fragmento da Nova Atlântida baconiana, eco das fantásticas ilhas da nova ciência emergente. Sob este aspecto tome-se o cuidado, entretanto, de não falar em antíteses com as construções quinhentistas: trata-se de um desenvolvimento coerente e contínuo do racionalismo humanista que, inspirando confiança no livre intelecto indagador, havia determinado a rebelião contra o princípio de autoridade e, portanto, o florescimento através da pesquisa experimental da nova ciência. É de fato na amorosa investigação da natureza que se perpetua a obra da razão, ferozmente combatida sobre o terreno ético-religioso.

3. ludovico Agostini e a República imaginária

A primeira utopia pós-tridentina é a República Imaginária, que Ludovico Agostini, de Pesaro, descreveu no penúltimo decênio do século XVI nos seus Dialoghi dell’Infinito, e que permaneceram inéditos até poucos anos atrás. Gentil-homem e doutor em leis, Agostini sonhou uma reforma dos tribunais, mas não exerceu a profissão senão para defender gratuitamente os pobres, e transcorreu grande parte de sua longa vida (nascido em 1535, morreu em 1612) retirado em uma vila sobre uma colina em Soria, perto de Pesaro, dividindo o seu tempo entre as ocupações literárias, o recolhimento ascético e as obras de caridade; parece, entretanto, fruto de um mal entendido a notícia de uma sua parcial tentativa de instauração de uma convivência ideal através de um regime coletivo de fundo religioso, praticado na sua vila acima mencionada.16

Como escritor este pio jurista certamente merece a escassa fortuna que suas páginas receberam: cansativo e retorcido, polvilha os

16 Um longo trecho dos Dialoghi foi publicado por CURCIO (1941, p. 143-207), e a tal edição me refiro. Na página 172, falando de espaços públicos de alimentos cozidos, o autor define como “soriana” tais práticas, e o editor comenta: “e esse é costume dos habitantes da vila onde Agostini viveu por algum tempo”; mas trata-se, ao contrário, como aparece claro no contexto, de prática de uma outra e mais conhecida Soria, que é no século XVI o nome corrente da Palestina. Reimprimindo três anos depois, com algumas omissões o mesmo trecho (1944, p. 119-172) Curcio modificava oportunamente a nota (p. 172), mas nas páginas introdutórias (p. 115) se apoiava de fato na interpretação errônea precedente ao se referir ao “sistema de vida coletiva” que Agostini teria instalado na própria vila.

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seus períodos de citações bíblicas e eruditas a mancheias, abarrotando-as com pedante método de definições escolásticas convencionais, esquece-se de digerir sentenças aristotélicas apenas para abandonar-se às conceituosas extravagâncias, aos seicentismos desmedidos;17 sendo a sua desenvoltura ao cunhar vocábulos empolados igual à facilidade com a qual se perde em digressões: está falando do furto, e pula num piscar de olhos para as eleições dos cardeais, para os abusos eclesiásticos, para o fausto da Igreja, e daí para os “pecados dos príncipes seculares e dos seus súditos, obstáculo à divina graça”, para a infalibilidade do Papa, a doação de Constantino, o seu desejo de “humilhação” dos hereges e maometanos (ibid., p. 155-8); feito o desabafo, retoma tranquilamente o seu tema. Mais adiante, depois de ter falado sobre os ordenamentos sanitários, corre logo a tratar dos médicos das almas e faz uma prolixa divagação sobre confessores (ibid., p. 183-4); ou então explica as razões pelas quais Deus permite a derrota de tantos exércitos cristãos contra os infiéis (ibid., p. 191-2); faz-nos saber que as freqüentes pestilências do Levante não acontecem apenas por causas naturais, mas “pela divina permissão, que talvez assim queira para que não aumente excessivamente aquele povo inimigo de Cristo” (ibid., p. 174); longamente disserta sobre a distinção entre artes nobre e artes vis (ibid., p. 201-4). Estranhas ao tema da república ideal, semelhantes divagações são mais significativas para delinear os caracteres mentais deste homem profundamente impregnado de motivações contra-reformistas, em tudo zelo ortodoxo e devoção ao papado, execrador de hereges e de infiéis e apoiador intransigente de um moralismo severo. Mas superada a barreira da forma ingrata, da desordem expositiva, Agostini se revela escritor merecedor de atenta consideração:18 mesmo prescindindo da validade de algumas de suas teses, da engenhosa e às vezes precursora oportunidade de algumas soluções, aquilo que surpreende nesta ingênua e límpida natureza é a imediaticidade com a qual as exigências do tempo novo assumem o problema político-social, a sensação tão precisa nele da antítese entre a idade concluída e a idade emergente, tanto que aparecem ambas de forma abstrata, quase em simbólica alegoria. O grande drama do século – natureza e sobrenatural, razão e revelação – nessas páginas que apenas de longe tendem ao sereno modelo do diálogo socrático, torna-se elementar e absoluto, personifica-se, torna-se apólogo. Natureza e sobrenatural, Finito e Infinito são os dois interlocutores: pelo primeiro fala a razão humana, o lume natural, e no segundo a sapiência sobre-humana, o preceito divino; cada um dos dois personagens predomina nas duas seções do diálogo:19 primeiramente Infinito, com indiscutível precedência, enuncia as regras fundamentais da convivência ideal, enquanto Finito se limita a cautelosas objeções, a tímidas requisições de explicações posteriores; depois de haver dado “leis civis” à república “para as quatro partes divinas” (isto é, visando permear o corpo social das quatro virtudes cardeais da prudência, temperança, justiça e fortaleza), ele cede a palavra a Finito para que se ocupe das “outras quatro humanas sobre a base da sanidade, da forma, da força e das riquezas”. Posto assim

17 Veja-se, por exemplo, o horripilante paralelo (p. 189) entre as defesas materiais e as espirituais da cidade.

18 Curcio, ao contrário, apesar de lhe ter dedicado agudas anotações, considera-o figura “sem grande relevo” e que “não agrega provavelmente grande coisa à história do pensamento político” (1944, p. xviii).

19 Na verdade o texto corre contínuo, sem repartições, e Curcio trabalhou bastante para intercalar títulos sumários de sua própria mão, dada a desordem da matéria com relação aos nossos esquemas conceituais: na realidade a ordem é rigorosíssima, desde que se aceite os esquemas do autor: antes os ensinamentos de Infinito e depois (a partir da p. 165) os de Finito. Cada uma destas duas seções se divide depois em quatro parágrafos, como logo direi.

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sobre o seu terreno, Finito se reanima, defende com calor as próprias teses, continua a reconhecer a supremacia de Infinito, mas não sem acenos de independência e de crítica; é o próprio Infinito que reconhece como sua “própria cognição a ciência das coisas humanas”, e a admitir a suficiência “na advertência de tão útil matéria” da “prudência” ou lume natural (ibid., p. 165). Finito, com a razão, cuida do útil, mas dentro dos limites do dever imposto pela sapiência divina de Infinito: o utopismo renascentista está em uma mudança de direção decisiva.

Para expor brevemente as estruturas da “república imaginária”, convirá seguir de preferência a trilha de Finito, seja pela sua maior aderência aos problemas especificamente políticos, seja porque, por azar, uma boa parte do discurso de Infinito permanece até agora inédito no pouco acessível códice pesarense.20 O primeiro argumento é o da “sanidade”, sob o qual são tratados problemas higiênicos e sanitários, alimentares e de abastecimento, urbanísticos e econômicos. Quanto à escolha do mais idôneo local para a construção da cidade, Finito deseja apenas que ele seja salubre e fértil, e as colinas da sua pátria lhe parecem lugar ideal: em paz com a Igreja e com a própria consciência, Agostini não tem necessidade de refugiar-se em ilhas imaginárias, o ar de sua casa lhe apraz, e são os italianos de seu tempo que ele quer reformar, pura e simplesmente. Depois que Infinito recomendou o desprezo pelos bens terrenos, e após se mostrar tolerante com relação a uma modesta busca do bem estar, Finito pode cuidar da organização das habitações urbanas: todas as casas devem ser construídas com recursos públicos, com pelo menos duas fachadas, expostas ao ar e ao sol, dotadas de esgoto e despensa, e que todo o povo more junto, ficando nos planos baixos a plebe e nos superiores a nobreza. Se um rico deseja uma residência separada poderá construí-la por sua própria conta, mas segundo o desenho do “arquiteto da cidade”, que a inserirá oportunamente no plano urbanístico geral: a fim de suprimir tolas disputas ambiciosas, uma lei suntuária limitará a altura das construções privadas ao nível comum. Cada casa terá uma face dando para a rua, com comprimento de fachada pré-fixado, e terá nos fundos, indo até a sucessiva avenida paralela, espaço para pátio ou jardim; quem quiser casa mais ampla poderá ocupar tal espaço, mas não poderá estender a frente do edifício, e em toda parte tais ampliações deverão ser ditadas pelo número crescente dos familiares, e não pelo capricho. As casas serão construídas segundo as regras da arte, amplas o suficiente para uma “família mediana”, dotada de “toda comodidade necessária” (ibid., p. 167-170).

Disposições ainda mais rigorosas vigem no tocante ao abastecimento; Infinito já havia estabelecido, “dando modo ao comércio de todas as coisas”, que todos os preços do comércio no varejo fossem fixados e sustentados pelo erário, e que tal comércio se desenvolvesse exclusivamente no mercado público, com pesos e medidas controlados pelo Estado; ainda que anunciadas de maneira geral, as providências para a supervisão, principalmente das provisões, são justificadas com o intento de livrar os pobres do sofrimento das carestias (p. 146). Por conta própria, Finito agrega um controle público sobre a venda dos alimentos,

20 Curcio omitiu, na primeira seção, toda a parte dedicada à “prudência” e fração daquela dedicada à “temperança”.

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para garantir a sua sanidade, maturação e frescura, e quer o registro “em mesas públicas, segundo a aprovação da nossa província” das qualidades sazonais dos alimentos que deverão ser escolhidos; mas, não contente, Infinito objeta que deste modo permanece ainda possível condescender com a gula no recôndito das paredes domésticas, e docilmente Finito concorda com as providências: se introduzirá antes de tudo a prática oriental das cozinhas públicas, compostas de uma única sala aberta, para completo controle, nas quais cozinheiros munidos de atestado público de higiene e maestria confeccionarão e venderão os alimentos; para todos os outros gêneros vigerá um credenciamento rigorosíssimo, pois cada chefe de família receberá “do conservador público o atestado do número da sua família”, e a ninguém será lícito comprar nem mesmo um centésimo a mais.21 Entretanto, duas vezes por semana, todos os adultos, excluídos os velhos e os enfermos, se alimentarão uma única vez, observando um jejum parcial salutar (ibid., p. 170-3 e 180).

Severo quanto à alimentação, Agostini não brinca nem mesmo sobre o tema “dos confortos e dos repousos”, visando tolher “as comodidades supérfluas dos nobres e diminuir a indigência dos pobres”. É verdade que não existirão pobres na república ideal, não sendo tais “aqueles que pelo público serão em todas as suas necessidades socorridos”, tanto assim que a mendicância será “interdita a todos”. Ninguém, portanto, terá o direito de dormir mais de sete horas, de deitar-se no leito senão à noite, de possuir colchão de penas ou mais de um cobertor; sinais determinados indicarão as horas das refeições e de repouso, e nos intervalos a isso destinados é proibido vagar pela cidade sem um motivo urgente, “tanto de dia como principalmente de noite”; em contrapartida, cabem “ao governador das armas” e aos “chefes de bairro” percorrerem as ruas desertas ao som de tambores, pífaros, tímpanos e trompas. É concedida uma hora para as refeições, com o começo e o fim assinalados por três tiros de canhão, e enquanto dura, “sobre os parapeitos dos palácios públicos” ocorrem “concertos de vozes e de todo tipo de instrumentos” para alegrar os comensais; logo depois todos retomam o trabalho, sendo o ócio concedido apenas aos doentes e aos decrépitos; de uma meia hora de repouso suplementar gozam os nobres e os “cientistas contemplativos” (ibid., p. 175-180).

Acurada é a organização sanitária: em todos os bairros da cidade residirão um herborista e um médico “douto e prático”, que será sempre acompanhado de um cirurgião; os médicos jovens deverão por um qüinqüênio, na função de assistentes, seguir os médicos velhos, não tanto para praticar a arte, mas principalmente para aprender a conhecer a complexão dos habitantes do quarteirão: antes de tal término poderão exercitar a profissão fora da cidade, ou ser conduzidos aos vilarejos, mas dentre esses, cada médico ancião deverá escolher um jovem substituto, que lhe permanecerá ao lado com adequado pagamento; o paciente que o desejar pode recorrer ao médico de outro quarteirão, sendo inclusive prescrito que nos casos graves sejam consultados todos os médicos da cidade (ibid., p. 181-2).

21 Serão livres de restrições de abastecimento os regulares religiosos, os hospitais e os enfermos; direito de dispensa é concedida pelo prelado ordinário por ocasião de núpcias e outras festas. À p.181 se especifica que cada quarteirão da cidade deve ser abastecido de dois centros de distribuição de alimentos, sendo indeterminado o número das cozinhas públicas.

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Exaurido o tema da “sanidade”, Finito passa a tratar da “forma” e estrutura política do Estado. Segundo o ensinamento de Infinito, o regime ideal é o da aristocracia de base larga, temperada, entretanto, pelo reconhecimento de alguns direitos para a plebe. Severamente deplorado é o arbítrio exclusivista da oligarquia veneta,22 e deseja “proclamar uma lei de completa e tremenda severidade contra aqueles que, estando em igualdade de cidadania, no dizer ou no agir almejarem qualquer marca de superioridade pela antiguidade de sua civiltà ”. Eliminada toda e qualquer pretensão de supremacia da nobreza maior sobre a menor, Infinito não quer que seja reconhecida outra proeminência além daquela do magistrado sobre o ente privado e, entre privados, a proeminência do mais velho: em particular, a supremacia da idade se traduz na preferência que é dada ao mais velho na “república imperial”, enquanto aos mais jovens cabem os encargos da “república exequial”;23 aos velhos cabe, em suma, fazer leis e ensinar, e aos jovens aplicá-las e aprender (ibid., p. 152-4).

Dentre os gentis-homens, todos assim equiparados nos direitos políticos e nomeados às vezes “senadores”, Finito deseja que se elejam as seis magistraturas que governam a república, todas elas anuais “e não mais”; todas “devendo mudar e fazer rodízio por ordem e número dos senadores em infinito”. O primeiro magistrado é o “príncipe”, a quem cabem meras funções representativas e de coordenação, além do direito de graça para as penas corporais e pecuniárias mais leves; depois vêm os “doze conselheiros” que compõem o “senado”, assembléia que tem a faculdade da graça ilimitada, e funciona sob apelação (concedida apenas por “evidência de erro”) contra a sentença dos primeiros juízes, como um tribunal de segunda e última instância; as deliberações são tomadas por maioria de votos, e oito reuniões mensais do senado são destinadas a tais funções judiciárias. A terceira magistratura é a dos “juízes”, seis para as causas civis e seis para as criminais, que deliberam também por maioria; a quarta é a dos “doze tribunos” prepostos ao abastecimento; a quinta, a dos “seis fiscais extraordinários” que supervisionam sobre a leal execução dos comércios e das artes, cuida da repressão ao vício e superintendem a moralidade citadina; a sexta e última é a dos “seis conservadores” que possuem funções compósitas, têm assento como juízes de paz, compõem litígios e matrimônios, superintendem à higiene, aos estabelecimentos sanitários, à limpeza urbana, às instalações e aos serviços públicos. Todos estes 49 magistrados se reúnem, para o exercício dos seus cargos, duas vezes ao dia (ibid., p. 185).

Que dotes são requeridos para aspirar às magistraturas? Aqui é novamente Infinito que dita as normas: não basta, para comandar os outros, ser cidadão irrepreensível, respeitoso de todos os preceitos negativos, mas é necessário possuir o dote positivo da valentia ou coragem, que não é temerária audácia, mas fortaleza cristã, coração intrépido no fazer o bem; a maior valentia não é a do soldado na guerra, mas aquela que cada um experimenta na luta consigo mesmo, na resistência viril, no rechaço das tentações, no viver como verdadeiro cristão: existe a

22 Confronte-se com aquilo que acima apontava a respeito do declínio do mito de Veneza; Agostini cita três vezes os ordenamentos da Sereníssima (ibid., p. 147, 150, 152) e sempre com evidente desaprovação.

23 Basta este exemplo para mostrar a desenvoltura lexical de Agostini.

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valentia civil, não menos heróica que a bélica, que resplende nas obras de caridade, no ensino aos ignaros, no aconselhamento dos que padecem de dúvidas, no consolo dos aflitos, na ajuda aos necessitados, na recondução dos errantes. No exercício de tais virtudes deverão ter excelência os governantes da república (ibid., p. 161-4).

Quanto à modalidade de suas eleições, Infinito quer que ocorra em primeira seleção “por pública aclamação”, anotando-se em fichas os nomes daqueles que “serão considerados dignos”, designados assim por uma genérica vox populi, por uma boa fama bastante vaga: tal procedimento deve dar, logicamente, antes exclusão que escolha, conduzindo a uma eliminação preventiva dos indignos; os nomes dos sobreviventes depois desse primeiro peneiramento, colocados na urna, são em seguida confiados à designação da sorte (ibid, p. 148-9). Os camponeses e os artesãos não participam da direção da coisa pública, mas também não vivem naquela condição de servidão que Patrizi considerava ideal; aos agricultores é reconhecida para “cada castelo” uma “congregação de universalidade”, isto é, uma personalidade jurídica coletiva para as circunscrições territoriais particulares, cada uma das quais dispondo de um procurador na cidade para a tutela de seus interesses. Do mesmo modo cada arte constitui na cidade uma corporação igualmente reconhecida, cada qual com o seu “tribuno” e com seu “protetor e procurador com grau de nobreza”. Tanto as “universidades” agrícolas quanto as “fraternidades” de artesãos cuidam da preparação técnica dos seus membros, vigiam para “que católicos sejam, e de boa vida, condição e fama”, indenizam com fundos comuns os danos sofridos por cada um por furto, e ressarciam em moeda sonante os danos causados a terceiros por um de seus membros, se o culpado permanecer ignorado (ibid., p. 154 e 200).

Finito volta-se então para tratar do terceiro ponto, isto é, da “força”, sob a qual recolhe o conjunto dos problemas militares. Seja, portanto, o terreno da cidade adequado para uma fortificação eficaz, dispondo de água de moinho, com abundantes estoques de víveres e de munições, provido de armas brancas, de fogo e de defesa; milhares de cidadãos escolhidos mantenham-se prontos para combater a cavalo, a pé os outros, sem exceção nem por idade nem por cargo; todos os aptos para as armas devem reunir-se uma vez ao mês, nos lugares e sob os “mestres” designados, para parada e exercício. Infinito não deixa de exortar a que se confie mais nas armas do espírito do que nas materiais, mas Finito se justifica com o “ajuda-te que Deus te ajudará” (ibid., p. 187-190). Em tal sentido torna-se esclarecedor, para iluminar o espírito que anima a obra como um todo, trazer à mente uma precedente disposição de Infinito: todos na república imaginária devem ser soldados, mas sendo previsto que entre estes exista uma ordem distinta, com o “grau militar” conferido apenas a quem houver completado um dos quatro empreendimentos seguintes: ter guerreado por cinco anos contínuos sob estipêndio de “príncipes que por ordem ou adesão ao Santo Pontífice” movam as armas contra hereges ou infiéis: ter defendido a pátria com a mão, a língua ou o senso; ter libertado um cidadão das mãos dos infiéis

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ou dos inimigos; ter enfim salvado uma mulher de boa fama da violência “de desenfreados luxuriosos” (ibid., p. 161): não é, portanto, a destreza das armas que assegura a dignidade militar, mas a nobreza das intenções, a dedicação à causa do bem.

O último argumento de Finito é o das “riquezas”, o mais delicado e complexo, pois implica a inteira estrutura econômica do Estado. Três são as fontes da riqueza segundo Agostini: agricultura, comércio e indústria,24 razão pela qual a prosperidade da república será assegurada por “três leis afirmativas e três negativas”. Vejamos, antes de mais nada, a lei agrária: tendo por pressuposto que o território do Estado deve ter amplitude e fecundidade, para assegurar a independência com relação ao exterior no que tange aos produtos da terra, e reconhecido aos nobres apenas o direito de possuir terrenos, é estabelecida taxativamente a exploração racional do solo, com culturas obrigatórias prescritas “pelos mestres dos campos assalariados do poder público, e pelos arquitetos”; para tais funcionários é prevista uma vasta e acurada preparação nas ciências agrárias; o proprietário que careça de capitais para investir nas melhorias oportunas recorre sobretudo ao erário, que provê até mesmo a sua manutenção, pagando depois com as colheitas (ibid., p. 193-4).

A troca mercantil é atividade própria do “cidadão não senador”, isto é, daquela burguesia abastada que não pode participar da vida pública, mas desdenha das artes manuais: Agostini deseja que fique neste ponto diferenciado o comércio de importação (lícito apenas para introduzir no território colheitas agrícolas que nele não sejam produzidas ou que sejam insuficientes) e aquele exercido com fins especulativos, entre um e outro mercado exterior. O primeiro é vinculado a um rigoroso protecionismo, tanto que as mesmas mercadorias de importação autorizada devem ser vendidas a um preço estabelecido pela autoridade; já o segundo é livre, e claramente encorajado pelo Estado, que envia aos maiores mercados mundiais hábeis cidadãos abastecidos com dinheiro privado e público, mas que depois avoca para si todo o lucro daquelas operações.25 Os riscos inerentes ao transporte de produtos serão cobertos por seguros mantidos exclusivamente por banqueiros estrangeiros, para evitar as eventuais crises decorrentes do prejuízo de um assegurador concidadão; por outro lado, o originário caráter de ilícito moral do lucro mercantil será sanado destinando um décimo dos lucros ao resgate dos escravos cristãos das mãos dos infiéis. A honestidade comercial deverá ser observada escrupulosamente; “avaliadores públicos” controlarão qualidade, genuinidade e preços das mercadorias; a habitual desonestidade dos juízes de “perdas” será extirpada; juízes, notários e avaliadores serão escolhidos mediante o costumeiro sorteio, inclusive entre os não nobres, mas “entre os melhores e os mais cientes e práticos”; os fraudadores serão punidos com o “exílio perpétuo” (ibid., p. 195-98). O comerciante forasteiro será acolhido e bem tratado, podendo introduzir qualquer mercadoria da qual a cidade seja privada e vendê-la a preço livre, visto que ninguém será obrigado a comprá-la se não lhe convier, mas não poderá fixar residência estável no território da república para exercer

24 Conceito notável, que supera o preconceito segundo o qual apenas a terra produz riqueza, e reconhece a função valorizadora do trabalho: trata-se de um ponto de vista não originalíssimo (entre nós, por exemplo, Botero o sustentava naqueles anos), mas no século XVI e mais tarde não era coisa comum.

25 No texto a afirmação tem caráter absoluto: se deverá com toda plausibilidade entender que o Estado avocará para si o lucro excedente uma pré-estabelecida e equânime margem de lucro, já que faltaria em caso contrário todo incentivo à atividade mercantil. Tal é por outro lado o critério habitual que regula a intervenção estatal em matéria econômica na “república imaginária”.

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as suas trocas (ibid., p. 197): é essa norma geral imposta por Infinito aos forasteiros, dispondo que sejam “respeitados e em toda coisa e lugar bem tratados”, mas excluídos de todos os cargos públicos, consentindo, porém que “por residência continuada”, nos termos estabelecidos pela lei, possam conseguir a cidadania (ibid., p. 149 e 152). A preocupação que dita essas normas é com a desunião, com o cosmopolitismo agnóstico diante dos ideais da pátria ou da coletividade, que Agostini afirma com acalorada convicção: “me refiro a povo, e não desunido”; quer ditar os seus preceitos e pretende “acomodar não as ações particulares nos indivíduos dos homens, mas num corpo universal da república” (ibid., p. 146-7).

A terceira fonte de riquezas são as indústrias “de ciências e de artes”, aquelas abertas a todos, próprias do “trabalhador mecânico plebeu” (ibid., p. 193). Essa colocação no mesmo plano das “artes nobres e mecânicas”, consideradas no mesmo plano como simples atividades econômicas (ibid., p. 199) não deve surpreender; Agostini não mostra a mínima consideração pelos estudos e pelas artes – excluída a música por seus reflexos sociais – e os ideais humanistas são nele completamente apagados: nenhuma palavra pode ser dita sobre os ordenamentos escolásticos da sua república, e a sua tese cardeal é “que aos jovenzinhos se deve ensinar nas escolas públicas mais os exercícios das virtudes morais que as ciências das artes liberais” (ibid., p. 181); mestres e professores não comparecem à cena, mas são instituídos os “preceptores dos costumes”, que ensinam aos discípulos a modéstia da compostura (ibid., p. 148). O moralismo intransigente, aqui, realmente apaga os mais altos valores da Renascença.

Na cidade, todas as artes não infames serão consideradas não ignóbeis, e todas elas deverão ser exercidas, de forma que apenas os gêneros de luxo devam ser importados, e ao pobre seja lícito abastecer-se do necessário no próprio local onde mora. Sendo o ócio banido com todo rigor, todo cidadão, quando chega ao décimo quarto ano, deve escolher para si uma profissão: as artes liberais ou as armas, o comércio ou o artesanato; quem se coloca neste último caminho entra a fazer parte de uma corporação, situada em um bairro para que a vizinhança do trabalho gere emulação, sob a vigilância técnica e moral de um “chefe de bairro”; prêmios públicos são entregues a quem ascende a grande excelência na sua arte. Inclusive os preços dos produtos industriais são estabelecidos pelo Estado, com cálculos periódicos que levam em consideração os custos das matérias primas, e reservam ao trabalho uma equânime remuneração, da qual – deduzidas as despesas de alimentação e vestuário – um dízimo será descontado em benefício dos pobres (ibid., p. 199-201).

A regulamentação negativa não repete a correspondência simétrica da positiva, que organiza a produção da riqueza. A economia rigorosamente controlada que Agostini auspicia visa sanar a praga do pauperismo: toda especulação é vetada, toda mercadoria que o produtor não vá consumir é cedida ao Estado “a justo preço”, para ser por igual preço revendida aos necessitados; severa é a proibição da usura e das

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suas “invenções satânicas”; obrigatório o registro em recenseamento público da faculdade de todos os cidadãos, com anotação diária das variações e penas severas aos transgressores; fiscalizada a instituição de um montepio, financiado pelo Estado, que empresta gratuitamente sob penhor ou hipoteca (ibid., p. 204-7). O mesmo cuidado posto no socorro do pobre é dedicado a evitar o desperdício do rico: leis suntuárias severas erradicam as pompas e o jogo, “duas principais portas da pobreza infame dos homens”, e nem mesmo a dança é permitida; malgrado as insistências de Finito, que deseja salvar algumas distrações honestas, Infinito se mostra intransigente (ibid., p. 179 e 207).

A coroar este edifício ideal estão os supremos valores religiosos. Para Infinito a hierarquia é esta: antes de tudo honrar a Deus, depois a honra do mundo, depois a vida, e por último os bens de fortuna; a religião inspira e vigia cada ato dos cidadãos e é, no coração da “república imaginária”, uma religião inteiramente histórica e positiva: o catolicismo romano, com características do mais intransigente exclusivismo; aos judeus, cismáticos e infiéis estão fechadas as portas da cidade ideal (ibid., p. 175). Pela manhã, antes de dedicar-se ao trabalho cotidiano, todos devem assistir à missa (ibid., p. 147); depois da hora destinada à refeição os sinos “soam nove toques melancólicos e distintos em comemoração às almas dos mortos”, e está sujeito a graves penas quem então não se ajoelhar em oração (ibid, p. 176); toda corporação de ofício é devotada a um Santo protetor (ibid., p. 155); todas as maiores ordens religiosas possuem conventos na cidade, e neles são preparados “doutos e fervorosos” missionários (ibid., p. 196). Tido em grande honra é o sacerdócio: os seus membros devem andar ornados daquelas mesmas virtudes que distinguem os magistrados (ibid., p. 161), gozam de isenção das normas de abastecimento (ibid., p. 173), compondo uma hierarquia espiritual que se iguala à civil com acentuado paralelismo e não menores poderes (ibid., p. 185-6). Ao lado do príncipe está o bispo, que recebe diariamente os párocos da cidade – um por quarteirão (ibid., p. 181) – e uma vez ao mês aos da diocese, para ouvir e resolver todos os casos de sua competência; em analogia com o “senado” civil, tem assento ao lado do bispo o capítulo dos canônicos da catedral, cujos membros cumprem inspeções periódicas à diocese depois que o bispo a tenha visitado pelo menos uma vez ao ano; junto ao tribunal laico está o eclesiástico, não reservado ao julgamento dos religiosos, mas competente para punir todos aqueles cidadãos que “presumivelmente farão coisa que à honra de Deus e da Igreja católica seja contrária” (ibid., p. 159); os mesmos canônicos, à semelhança dos tribunos, cuidam para que aos pobres não falte o necessário (ibid., p. 205); outros prelados, à semelhança dos fiscais, vigiam a boa fé dos contratos e a repressão da usura; outros enfim, à guisa dos conservadores, cuidam de reconduzir ao rebanho os pecadores, de pacificar os inimigos, de converter os infiéis, de reconciliar as famílias desunidas, de reprimir em todo o território o vício, o jogo, a blasfêmia.

Esta é a “república ideal” de Agostini: um texto escrito deliberadamente para comprazer o historiador, tal é a clareza com a

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qual nele se lê, linear como um paradigma, o encontro dos dois motivos típicos do Renascimento italiano. A Contra-Reforma intransigente, o moralismo rigoroso, malgrado certos aspectos extrínsecos e formais, a defesa em excesso de todas as posições da Igreja católica, o exclusivismo tão fervoroso que chega a ser injusto e mesquinho, são questões presentes nestas páginas: e, no entanto, apesar da reação maciça e da limitação própria do homem, que neste pequeno episódio se tornam expoente, evidenciam, contudo a vitalidade tenaz de alguns temas renascentistas, que sobrevivem no novo clima. Agostini se mostra completamente insatisfeito com o mundo que o Cinquecento estava forjando, no qual não vê senão “confusão infernal”, mas não é pessimista nem fanático: não propõe nenhum despotismo, nem mesmo com a finalidade de obtenção do bem. Com seus remédios ele não pretende “violentar nem um fio de cabelo do livre arbítrio dos homens”, convicto como é de que todo mal é culpa do “mau hábito”, que o vício outra coisa não é que costume maldoso, confiando que “o arbítrio dirigido pela razão facilmente se curva à eleição do seu melhor”, e com o bom costume o homem pode “mais prontamente e quase que naturalmente fazer aquilo que, fora do hábito, parece não menos difícil que contrário à natureza” (ibid., p. 147). Palavras que se poderia esperar serem repudiadas permanecem no auge: “razão”, “natureza”. Na realidade, ambas sobrevivem, desde que aceitem a posição de Finito; continuam simplesmente a procurar soluções, e cogitar sistemas, mas prontas a acolher como verbo indiscutível a força de Infinito. Desde que seja respeitado até o último iota da revelação, ninguém sonha em repudiar a razão: o racionalismo, que antes passeava a céu aberto, e da cidade terrena ascendia até contemplar o mistério de Deus, agora se move em um horizonte fechado de postulados que transcendem toda investigação e discussão.

Isso dá a Agostini a sensação de mover-se não em uma prisão, mas de seguir uma pista: a Igreja lhe fornece norma ética e direção social, modelos de hierarquias eletivas e impulsos de caridade fraterna. Cai o comunismo, mas a propriedade sofre limitações esmagadoras; perdura o preconceito aristocrático, mas direitos fundamentais são reconhecidos para as classes mais humildes. Questões de severo ascetismo se casam com um espírito operoso, com um sentido vigilante dos problemas concretos; o sucesso mundano não é desprezado desde que o fim contingente não afaste o temor de Deus, sendo este um outro aspecto típico da religiosidade da Contra-Reforma, mortificada e ao mesmo tempo ansiosa por conquistas práticas, incapaz de uma verdadeira renúncia ao mundo. Como bem observou Curcio (1944, p. 116), nesta teocracia com fundo social o século tenta conciliar burguesia e filantropia, capitalismo e caridade, bem-estar na terra e salvação das almas no céu; mas o espírito realmente novo que anima essas palavras relativas às utopias renascentistas é a fulgurante luz da caridade cristã, o sentido do vínculo posto na consciência antes que na lei, a certeza de que a felicidade não está nos bens materiais, mas na virtude: finalmente, é evidente que a reforma do homem interior é pressuposto necessário

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à reforma da sociedade. Seria muito fácil agora dissecar esta cidade ideal, colocar em evidência a fragilidade de certas conexões, a artificiosa economia, o regime da meticulosa caserna, a tétrica e interminável série das jornadas de trabalho sem distração nem pausa; ponto particularmente débil, que provoca em Finito uma preocupada interrogação (CURCIO, 1941, p. 186), é o da convivência entre duas hierarquias, a interferência contínua do poder civil no poder religioso, a cotidiana sobreposição das jurisdições: mas aqui, como em outros pontos, Infinito é otimista: uma e outra magistratura viverão “concordes como Aarão e Moisés”, sem sombra de atrito. Cândida ingenuidade, mas ainda com fé na celeste inspiração que guia a pia comunidade nos caminhos da paz concorde, sanando os defeitos das instituições e as imperfeições dos homens.

4. A Cidade do Sol no sistema de campanella

Se a nova época é refletida nas páginas de Agostini como em um espelho fiel, o mais evidente anacronismo parece caracterizar as de Campanella; a Città del Sole, escrita em 1602, publicada em 1623, reimpressa ainda pelo autor em texto definitivo em 1637, irmã das utopias renascentistas que a precedem de quase um século, ignora o longo trabalho da reforma católica, e propõe novamente – aparentemente intactos – os velhos temas do comunismo dos bens e do naturalismo religioso, juntando-se às propostas extremistas de Doni no tema do comunismo sexual. Platão e Morus são de fato os modelos que inspiram o stilese26 com explícitas referências, e o Mondo savio e pazzo, mesmo não sendo citado expressamente, certamente está entre as suas fontes, visto que Campanella pôs em versos o conto da epístola do proêmio, compondo um soneto não desprovido de amargas alusões autobiográficas.27 Para não ir além do aspecto religioso das cidades solares, é inegável a redução das crenças ao mero deísmo,28 com uma extensão máxima da investigação racional: à devoção genérica ao Criador (CAMPANELLA, 1941, p. 73), à crença na providência divina, na imortalidade da alma, na recompensa e na condenação no além (ibid., p. 79), alicerce da religião de Utopia, os solarianos somam até mesmo a racionalização do mistério da Trindade (ibid., p. 106), mas cada aspecto positivo e dogmático é excluído rigorosamente. O culto compreende a oração individual (pela manhã “fazem a oração brevíssima voltados ao levante, como o Pater noster”)29; a oração coletiva no templo, decorado como refiguração do universo (ibid., p. 57-58), é realizada pelo sumo sacerdote30 voltado para os quatro pontos cardeais, e depois outra mais longa, ao zênite (ibid., p. 98); enfim a oração continua com os 24 sacerdotes-astrólogos, que fazem orações por uma hora cada um por turnos (ibid., p. 96). Não se adora nenhuma criatura, o próprio sol é honrado apenas como imagem sensível de Deus (ibid., p. 100), e é tão grande o temor da idolatria que os cadáveres são cremados (ibid., p. 97); o sacrifício incruento dos voluntários, que para expiação

26 Campanella é natural da pequena cidade de Stilo, Calábria. N. do T.

27 É o soneto Senno senza forza de’ savi delle genti antiche esser soggetto alla forza de’ pazzi (in CAMPANELLA, 1939, p. 37). À parte o regime sacerdotal, que tem em Campanella motivos bem íntimos, são evidentes os ecos de Doni na Cidade do Sol: a estrutura circular da cidade, as avenidas radiais, o grande templo central com cúpula, etc.

28 Para todas as citações me refiro à edição curada por N. Bobbio, 1941.

29 Conf. à p. 89; recorde-se também a oração especial para ter prole excelente (p. 71) e o costume de “depois de comer rendem graças a Deus com música” (p. 97).

30 Que possui vestes sacerdotais simbólicas e de várias cores, como na “Utopia”.

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coletiva se sujeitam a um rigoroso ascetismo, é o único admitido; vige a confissão pública e anônima com intenções mais ético-sociais que religiosas (ibid., p. 95-6). O regime teocrático dos solarianos está aparentemente em contraste com essa redução racional da religião: “todos os oficiais são sacerdotes”, diz Campanella (ibid., p. 95), e o “chefe de todos em nível espiritual e temporal” é um príncipe sacerdote, chamado Sol (ibid., p. 59), que acima de todos brilha pela vastidão de saber e que, via de regra, é escolhido entre os 24 religiosos do templo dedicados à oração e à reflexão (ibid., p. 96). A contradição aparente se desmancha quando se percebe que esse sacerdócio, investido de poder político, deve o seu prestígio à própria sapiência metafísica, à própria experiência histórica e técnica, com antecedência à impecável conduta moral, e certamente não ao seu ministério - ainda que o distinga uma ordem sacramental e uma investidura divina. O termo teocracia torna-se impróprio para tal regime de probos filósofos, antes de tudo sacerdotes da augusta verdade, e não de uma religião positiva.

Naturalismo e deísmo são, na Cidade do Sol, o aspecto evidente, a primeira casca: para inserir a opereta sob este ângulo visual na história das veleidades reformadoras expressas em forma utópica, isto é, naquela linha que acima busquei expressar com continuidade e coerência, não existiria outro caminho além daquele há pouco indicado: reconhecer o patente anacronismo e tentar depois justificá-lo. Coisa não difícil para um homem como Campanella, que sob alguns aspectos nos parece estar fora de seu tempo, sempre envolvido com idéias superadas ou então prematuras, precursor ou reacionário, mas sempre em posição singular no quadro da história presente. Por toda a vida ele levou consigo essa marca da sua formação juvenil, amadurecida em um duplo exílio: a da Calábria nativa, supersticiosa e remota, excluída dos centros vivos da cultura, e a marca do claustro dominicano, com seus opressivos esquemas escolásticos. Na evasão desses limites Campanella vai, com fervoroso ímpeto, superar o alvo: Nápoles, Roma, Florença e Pádua lhe parecem faróis do saber a serem alcançados a qualquer custo, a intolerância disciplinar torna-se rebelião, a ânsia de livre investigação filosófica gera a dúvida religiosa, e ao fim negação altiva. Temas ideais já exauridos, como o platonismo da Academia florentina, o alcançam com atraso, com sugestões isoladas ainda mais perturbadoras e febris; magia e astrologia, profetismo e expectativa quiliástica31 nele fermentam como heranças espirituais remotas da sua terra, colocando-se lado a lado em absurdo sincretismo com a investigação positiva, o racionalismo naturalista, os esquemas aristotélico-tomistas. De elementos tão disparatados e irreconciliáveis nasce uma imagem típica de Campanella, que de modo fascinante estimulou muita crítica, inclusive recente, e que não é desprovida de fundamento, desde que não se queira nessa imagem resumir todo o Campanella, e nem mesmo o Campanella mais genuíno. Aquela figura rebelde, tumultuada e ávida, pode corresponder, grosso modo, ao jovem fugitivo de ‘89 e de ’92, ao processado de ’94, ao conjurado de ’99; e já se sente, admitindo isso, como fica inadequado 31 Milenarista (N. do T.)

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um esquema necessariamente simplista em um decênio intenso, de evolução rapidíssima. Depois, no cárcere napolitano, principalmente na “fossa” de S. Elmo, outro é o homem que encontramos diante de nós, e uma análise bem mais sutil será necessária para penetrá-lo. Isto significa que explicar a Cidade do Sol como fruto tardio do racionalismo humanista seria a redução de Campanella a um perpétuo anacronismo, seria identificar nele nada mais que um último e solitário reformador, iludido e disfarçado ao mesmo tempo, ora satisfeito com seu cauteloso nicodemismo, ora ingenuamente confiante em poder, por dentro, desmantelar a instituição eclesiástica até anular a Igreja na negação de si mesma, o dogma do deísmo.

Torna-se evidente, portanto, que não convém tentar uma interpretação isolada da Cidade do Sol, se não for por outro motivo, pelo fato de que nestas conhecidíssimas páginas muitos críticos acreditaram encontrar a chave exegética do pensador por inteiro, reduzindo todo o Campanella ao mito solar; é preciso, ao contrário, assentar sobre base documental bem mais ampla as diretrizes do sistema campanelliano e, portanto, nele inserir apenas como parte do todo o “dialogo di propria repubblica”. Para tal fim é necessário, antes de qualquer coisa, desembaraçar o campo de antigos preconceitos: não ficou sem graves conseqüências no plano teórico, por exemplo, a interpretação psicológica de Campanella delineada pelo seu maior biógrafo, Luigi Amabile (1882; 1887), autor de uma “vida” do stilese que é ainda hoje insubstituível viático para toda primeira aproximação do assunto. O insigne médico napolitano, anti-clerical e positivista, foi leitor tão pouco atento aos textos campanellianos, sob o aspecto especulativo, quanto foi escrupuloso indagador de cada episódio biográfico, chegando porém a uma interpretação parcial e deformada. Recolocando a chave do sistema campanelliano na utopia solar, lendo nela o esquema programático da revolta calabresa de 1599, dissolvendo na vaidade conceitual e na mortificação moral de uma metódica simulação cautelar todas as páginas não redutíveis àquele módulo, Amabile esgota Campanella no naturalismo religioso, conclui a sua viva especulação às portas do Seicento, anula os operosos quarenta anos nos quais ele pensou e infatigavelmente escreveu, acorrentando-o numa paciente e estéril ficção oportunista, visando manter válidos os postulados da religião sem dogmas e do racionalismo naturalista, dentro do hostil ambiente da Contra-Reforma. Para fazer cessar a perseguição e para inviabilizar as novas suspeitas, Campanella teria mentido por oito lustros. Prolongando assim o momento localizado e justificado da simulação confessada (a loucura fingida para salvar a vida) para a totalidade da existência do filósofo, Amabile, que tão apaixonadamente lhe exaltava a força de ânimo e a grandeza moral, minava as próprias bases do seu edifício. O sacrifício das convicções profundas à cautela prática não é outra coisa senão mortificação e negação de si mesmo, a pertinaz mentira exterior não guardando a tutela do verdadeiro interior, mas a extinção do verdadeiro no falso, a redução do ser ao não ser.

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Consciente da insustentabilidade de tal tese à luz de uma mais larga experiência textual, Blanchet (1920), colocado diante da vasta e coerente sistematização do pensamento campanelliano maduro, posterior às páginas deísticas e naturalísticas, admitiu por sua vez a sinceridade da filosofia religiosa do segundo Campanella, aquela que localiza no cristianismo o valor supremo; mas tentou resolver a segunda posição na primeira, atribuindo ao stilese a convicção da equivalência do seu cristianismo positivo, oportunamente simplificado e purificado, com a religião natural da Cidade do Sol. Campanella teria assim permanecido no seio da Igreja na ingênua esperança de poder reduzir o catolicismo ao deísmo com uma reforma progressiva, interna e pacífica, tentando um absurdo “sincretismo monstruoso entre o dogma e a sua negação” (AMERIO, 1941, p. 557). Se a velha tese retirava Campanella da sua missão, a nova reduz esta missão a divagação ilusória, fruto de ingenuidade pueril e de crassa ignorância.

Além dessas posições, por muito tempo os estudiosos italianos, inclusive aqueles bem mais versados em questões filosóficas que Amabile, não souberam como proceder: os maiores entre esses, crescidos na escola idealista, com particular correspondência de ressonância interior, procuraram e iluminaram em Campanella as posições imanentistas, a racionalização dos dogmas, os pontos de mais obstinada discórdia com o magistério eclesiástico: elementos que no seu espantoso corpus, tão variado nos motivos e nos tempos, são fáceis de isolar, para recompor depois em unidade fictícia, em arbitrário sistema. O núcleo vivo do pensamento de um filósofo não é um mosaico de sentenças aparentemente concordes, mas o sentido último de seu filosofar, o epílogo daquele itinerarium mentis que nenhuma de suas etapas renega, mas a todas supera numa linha evolutiva – às vezes intrincada e ondeante – para assumir apenas na foz o seu significado definitivo.

À luz de uma exploração rigorosíssima das fontes, estendida pela primeira vez inclusive nos fundamentos inéditos da maturidade, a Theologia e o Reminiscentur, Romano Amerio ofereceu uma bem mais coerente e persuasiva chave exegética: a da evolução campanelliana, já operante na época juvenil – “quando ignorei e neguei”, recorda Campanella (1939, p. 125) – mas tornada trabalhosa e dramática nos anos imediatamente posteriores ao processo napolitano, quando a completa falência prática, a morte e dispersão dos companheiros, o próprio aniquilamento físico da prisão sem saída, induziram o pensador a rever as próprias posições de audaz messianismo individual, a intrépida segurança do inovador inspirado chamado à grande gesta dos vaticínios e dos presságios astrais. No desabamento da antiga soberba, na mortificação do orgulho fraturado, as convicções originais permanecem: a renovação do século, a purificada república reconduzida às leis da natureza, a monarquia universal da idade de ouro vindoura: mas o radical materialismo juvenil amadurece, reconhecendo “como a razão lê não mais de fora ou contra, mas dentro da religião revelada a realização de si mesma”.32 Mais do que de conversão, com aquele tanto de antítese e de negação do passado que

32 Conf. AMERIO (1941, p. 557). A tese de Amerio é exposta com largueza nos ensaios seguintes: Ritrattazione dell’ortodossia campanelliana, “Rivista di filosofia neo-scolastica”, XXI, 1929, p. 410-430; Le dottrine religiose di T. Campanella, ivi, XXII, 1930, p. 435-461; La diagnostica della religione positiva in T. Campanella, ivi, XXIV, 1932, p. 174-179; Di alcune aporie dell’interpretazione deistica della filosofia campanelliana, ivi, XXVI, 1934, p. 605-615; Il problema esegetico fondamentale del pensiero campanelliano, ivi, XXXI, 1939, p. 368-387.

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o termo poderia implicar, pode-se falar de iluminação reveladora, de alegre reconhecimento de uma identidade na qual se resolve o antigo dissídio entre fé e razão. A doutrina do Cristo Primeira Razão, isto é, a racionalidade humana entendida como emanação do Verbo, conciliando natureza e sobrenatural, filosofia e dogma, aplaca finalmente a tumultuosa ânsia especulativa de Campanella, e torna-se fulcro do seu sistema definitivo; com o Recognoscimento filosofico della vera universale religione (1605) ele inicia a radical apologia do cristianismo à qual dedicará o melhor da sua maturidade, certo então de servir verdadeiramente à própria missão arcana que havia subentendido e desnaturado nos anos do erro juvenil.

Malgrado a largueza da documentação em parte inédita e a coerência das argumentações, a tese de Amerio encontrou obstinadas resistências, inspiradas pelo seu próprio caráter revolucionário com relação às opiniões correntes, e da injustificada suspeição de tendenciosa reivindicação confessional. É certo que o diligente editor recente da Cidade do Sol, Norberto Bobbio, preferiu não levá-lo em consideração e retornar à interpretação psicológica de Amabile, reafirmando que o único modo de entender o texto campanelliano consiste em inseri-lo na biografia do seu autor, lendo não o evangelho revolucionário do conspirador, mas a idealização póstuma, depois do desengano avassalador, da conjura calabresa miseravelmente falida no plano da história e resgatada, portanto, em estéril idolatria entre as nuvens do ideal. Neste aprofundamento de uma tese não nova Bobbio colocou de seu aquela coerência que faltou a Amabile: reconduzindo o único Campanella sincero à Cidade do Sol, todo o resto da sua vida e da sua obra se esgota na ficção oportunista, a aura de heróica grandeza moral se dissolve, ficando o cínico e despudorado mentiroso, o visionário petulante, o orgulhoso e obstinado reformador puerilmente iludido de ser chamado a agir no coração daquela história, destinada a esmagá-lo, ignorando-o. Se a este denegrir sistemático do homem se somar a não menos radical subestimação da sua obra, julgada impiedosamente por Bobbio como fraquíssima e fútil, desordenada e mesquinha, outra coisa não nos resta além de perguntar se realmente valia a pena dedicar àquelas páginas toda uma amorosa paciência, uma iluminada cautela que um sério trabalho filológico requer, e que Bobbio de fato realizou com rigor exemplar. Apenas reduzida dessa maneira às suas mais extremas conseqüências a tese da simulação tornou evidente as suas aporias, constringindo a crítica a um esforço interpretativo mais coerente, voltado não mais a sublinhar as contradições aparentes do pensamento campanelliano para melhor contrapor a convicção íntima à enunciação oportunista, mas empenhado, ao contrário, em conciliar tais contradições resolvendo-lhe na unidade viva do pensamento, que ao aprofundar-se se altera e não se renega: preciosos são, neste sentido, um último ensaio de Amerio (1944, p. 28-59) e duas importantes contribuições de Solari.33 Trata-se de duas direções interpretativas que, sem propriamente coincidir, convergem, e podem já – resolvidos os aparentes pontos de atrito e

33 Conf. SOLARI (1941 (e também a resenha do mesmo in “Atti dell Accad. delle Scienze”, Torino, vol. 77, 1941-2, p. 4-14; 1946).

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oportunamente integrados na argumentação – constituir base segura para uma exata definição do pensamento campanelliano. A tal resolução e integração visam as poucas páginas seguintes.

5. Auto-interpretação evolutiva do mito solar

O problema político e o religioso são completamente estranhos – como se sabe – aos horizontes fechados da primeira especulação campanelliana; colocado em contato com o saber livresco nos claustros calabreses, o stilese, adolescente, percorre o curriculum studiorum prescrito aos noviços, comentando os compêndios escolásticos de lógica, a Physica e o De anima aristotélicos. O seu primeiro interesse é, portanto, gnosiológico e ontológico, e é um interesse que a sistematização deixa insatisfeito, em um crescendo de interrogações reprimidas, de desafio aos superiores, de intolerância disciplinar. A aspiração de Campanella é a de poder colecionar indistintamente todos os ditames do pensamento antigo – somados aqueles excluídos da sistematização aristotélico-tomista – e de poder saborear aquelas sentenças à luz da experiência sensível sobre a única pietra de paragone34 não ilusória, o livro vivo da natureza. A entusiástica adesão a Telésio coloca um ponto firme naquela primeira busca tumultuosa, cristalizando em forma imediatamente definitiva a física de Campanella e provocando indiretamente a sua ruptura com a ordem dominicana. É certo, entretanto, que em meados de outubro de 1592, quando o stilese expõe em Florença a Bacio Valori as próprias teses e elenca os próprios escritos realizados ou concebidos,35 apenas o problema do conhecimento e o do ser estão presentes em seu espírito em uma direção sensualista e naturalista, o que fez então da sua física uma construção distante de toda experiência, uma pura metafísica de ingênuo sabor pré-socrático.

Mas eis que em ’93, o ano de liberdade transcorrido por Campanella em Pádua, um vasto interesse novo se acende e lhe deixa um escrito de capital importância, cuja infausta perda é a razão não última de tantos mal entendidos: a Monarquia de’ Cristiani.36 O conteúdo do livro, inclusive bastante evidente à luz das contínuas reelaborações sucessivas, deve ser reconhecido, por cautela exegética, apenas à luz das citações próximas e diretas: desde 1595, Campanella escrevia que o “livro da Monarquia cristã... trata com razões divinas e humanas desta monarquia doada ao Papa, e futuramente a mostra em um só rebanho e um só pastor, como disse o oráculo de Jesus Deus”; e em outro lugar: “aquele século de Adão-inocente vem restituir-me Cristo como Inocente... porque se cada um observasse inteiramente as suas leis, cessar-se-iam as guerras, carestias e pestilências, como escreveu aquele amigo que compôs a Monarquia cristã”; e ainda a própria Monarchia é citada como escrita “ao pontífice” e sendo “conveniente e futura”. O ideal universalista campanelliano é desde o seu nascimento delineado em módulos definitivos, e o primeiro texto político do filósofo de vinte

34 Pedra de comparação: no sentido de “termo de comparação” (N.do T.).

35 Veja-se a carta de Valori a Ferdinando I de Medici in CAMPANELLA (1854, Vol. I, p. LXXV-VI).

36 Para informações externas sobre a obra indico FIRPO (1940, p. 177-8). A data, suspeita de oportunista retro-datação nas citações tardias, pode, no entanto tomar-se como certa, porque a Monarquia é citada cinco vezes em CAMPANELLA (1911, p. 99, 149, 152, 159, 172) e quatro em CAMPANELLA (1944, p. 95, 130, 133, 184).

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e cinco anos propõe, com absoluto brilhantismo, os temas que por nove lustros animarão o seu longo solilóquio apaixonado: a feliz inocência primeva no estado de natureza, uma queda daquele estado, que é a causa de todos os males do mundo, uma esperada regeneração cósmica que reconduza a humanidade ao século de ouro, quando, canceladas as divisões perturbadoras, se instaurará uma única monarquia ecumênica, sacerdotal e cristã, destinada a governar o mundo na era pacífica e beata. Trata-se de aspirações perfeitamente ortodoxas no grande sulco do universalismo católico; a queda que despedaçou o idílio paradisíaco é identificada com o pecado de Adão, e à vinda de Cristo é reconhecida a virtude redentora, que permanece, todavia, potencial e não imediatamente eficaz no plano político-social – assim como é, por outro lado, para o fim da salvação individual – sem uma eficaz colaboração do homem; e esta é de fato até agora ausente, porque as leis de Jesus não são “intactamente” observadas, conseguindo a duras penas um mitigado retorno da paz e da felicidade sobre a terra. Para apressar o evento Campanella não apenas predica a vinda certa, atestada pelas profecias das escrituras, mas se empenha em remover os obstáculos, seja sobre o plano político internacional, ao qual a Monarchia parece que visasse principalmente, seja sobre o plano da organização eclesiástica, que deveria renovar-se e purificar-se dos abusos para assumir dignamente a sua função diretiva no ecúmeno unificado: a esta última finalidade visava o tratado síncrono Del governo ecclesiastico.37

Se o inesperado acender-se do interesse político é um problema não resolvido da obscura juventude campanelliana, não menos ambíguo nele é o nascimento da heterodoxia, a gênese daquela fratura breve e violenta, que amadureceu por contraste próprio nos anos da mais áspera repressão inquisitória, e no qual se observa como convergentes os temas mais heterogêneos: intolerância disciplinar, jactância de um libertinage epidérmico e verbal, fascínio pelas ciências ocultas, grosseiras sugestões materialistas de uma tradição que, de Demócrito a Telésio, tendia a reduzir a alma humana a espírito corpóreo e caduco, a concepção do pecado como violação da ordem social e racional, punido pela mesma desordem que com esse se produz. Difícil é isolar, com tanta penúria de testemunhos, as atitudes de rebelião filosófica, a reação psicológica necessariamente excessiva às perseguições, da crítica meditada do dogma. Mais que frente a este ou àquele aspecto do catolicismo, Campanella parece relutante frente à inteira religião positiva, completamente imerso na descoberta alegre de uma auto-suficiência da natureza e de uma religião natural que racionalmente a coroa. Consolidado esse ideal universalista, mas no grande drama da queda e da salvação, Adão e Cristo não são mais os protagonistas: esse novo ponto de vista será atribuído alguns anos depois aos solarianos, e se tornará altamente significativo; estes habitantes crêem de fato na primitiva inocência e numa corrupção remota do mundo, em uma ainda não sanada desestruturação da machina mundi, e conhecem bem as várias causas míticas cogitadas para explicá-la; entre outras coisas, também as oferecidas pelas Escrituras, considerando

37 Perdido na vasta redação original, sobreviveu em um tardio compêndio, mas que não faz parte de um contexto em torno de seu pensamento juvenil; a mesma data de redação encontra testemunhos discordantes nas páginas autobiográficas: decisiva é, porém a mudança da datação da Poetica italiana (p. 145-6), que mostra a redação original anterior a 1595.

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“que é feliz o cristão que se contenta em crer que tenha ocorrido por causa do pecado de Adão tanto tumulto” (p. 106-7). Os solarianos, portanto, não crêem no pecado de Adão – como o jovem Campanella –, e é inclusive óbvio indagar por que, sem prevaricação, não é dada a redenção. Campanella tem pronta uma nova doutrina para explicar a desordem das coisas humanas, a dos ciclos cósmicos, governados pelos “números fatais”; assunto já presente na Monarchia, mas tornado agora preeminente depois do desaparecimento do tema da regeneração cristã. Pouco antes de pôr as mãos na Cidade do Sol, em torno de 1601, escrevia nos Aforismi politici:

Pois como serão mudadas todas as seitas e religiões e os modos dos principados e de outras comunidades, necessariamente virá o primeiro governo natural divino, em que reine apenas um rei sacerdote... como eu disputei na Monarchia cristiana, que convirá ser pela profecia, e pelo círculo das coisas chegado ao primeiro estado inocente natural.38

Evidente é a equiparação no plano caduco de todas as religiões positivas, e a irrelevância da encarnação e da paixão de Jesus para os fins da fatal economia da criação. Parece de fato que nesse grave terreno, núcleo essencial do cristianismo, seja necessário determinar os limites da incredulidade juvenil de Campanella: não apenas se imputou ao stilese ter disputado de fide com um judaizante (tocando portanto na identifica-ção de Cristo com o Messias), de haver escrito o De tribus impostoribus: Mosè, Christo et Mahumed, de haver composto um ímpio soneto “que fa-lava de Cristo como um trabalhador braçal”; são acusações não compro-váveis e – com exceção da primeira – provavelmente infundadas. Como certa permanece a documentada hostilidade de Campanella ao culto do Crucifixo (explicada depois como exaltação do Cristo triunfante, mas não alheia na sua origem a uma atitude de desprezo); resta um soneto, de atribuição ao menos provável, que louva os aspectos sociais do culto de Jesus, “se bem que não seja do Pai Eterno o filho”; restam os teste-munhos evidentes da Cidade do Sol, na qual não apenas se é incrédulo acerca do pecado de Adão, mas se vê Cristo honrado com os apóstolos e tido em grande consideração, qual um homem insigne e nada mais, entre os “inventores das leis e das ciências e das armas”, ao lado de Moi-sés, Osíris, Júpiter, Mercúrio e Maomé; Mauricio de Rinaldis, o chefe secular da conjura, confessou sentir-se escandalizado ao ouvir da boca de Campanella “que Jesus Cristo era um homem de bem”.

Na sua concepção original a Cidade do Sol era, portanto, vasta como a terra toda, e só a sugestão e o artifício literário a inseriram mais tarde, no momento da composição, no sulco tradicional da utopia citadina; era por outro lado uma utopia peculiar, pois não propunha intenções críticas (exceto sugestões indiretas) nem satíricas, não avançava hipóteses ou modelos, não visava persuadir: era, ao contrário, a previsão científica, nítida, de um evento certo e fatal, destinado a realizar-se na economia cósmica no ponto de sutura do grande ciclo das coisas, lá onde princípio e fim coincidem, onde a soma de todas as experiências e de

38 Conf. o aforismo 92 na edição por mim curada: CAMPANELLA (1941, p. 121-2).

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todas as aberrações é anulada na segunda inocência beata. Desta forma a Cidade do Sol permaneceu, enquanto suscetibilidade e ambição, orgulho messiânico e profetismo supersticioso não turvaram a límpida posição especulativa de Campanella com ímpetos de ação prática. Tomado por uma eletrizante alucinação, ele acredita ler nas órbitas astrais e nos ingênuos prodígios os sinais do evento iminente, vê o descontentamento econômico, as disputas jurídicas, o banditismo indiscriminado na sua pobre terra e os acredita sinais de uma tensão já intolerável; no próprio horóscopo lê presságios de poder e se crê chamado a instaurar o século de ouro, sublevando as pessoas com a palavra arrebatadora para despedaçar as velhas estruturas corroídas, e reger depois com iluminada sapiência a filosófica república natural da nova era. Esse messianismo individual que se apresta, armado de milagres mágicos, para extirpar os abusos da Igreja de Deus, é o fermento da conjura calabresa: mas a maior parte dos cúmplices, a massa da indigesta mistura não é mais do que superstição e ignorância, mal entendimento grosseiro e instintos vulgares desenfreados. A coincidência entre as resultantes processuais e os módulos da Cidade do Sol, que tanto impressionou os leitores modernos, é mais genérica e extrínseca do que substancial: vige, é verdade, tanto no programa da conjura como na cidade ideal, o regime republicano e comunista, o governo sacerdotal, a religião simplificada; concordam o tecido urbano construído sobre uma colina, as vestes uniformes, o culto solar, as práticas astrológicas, as orações rituais, a racionalização da Trindade, a humanização de Cristo; mas os conjurados afirmavam a casualidade do mundo, a mortalidade da alma, a inexistência do inferno e do paraíso, o livre comércio sexual, enquanto os solarianos crêem, ao contrário, na providência, na imortalidade, na recompensa, e praticam o mais rigoroso controle sobre a geração, entendida como função social. Para Bobbio estas discordâncias são fruto de atenuações introduzidas na busca da idealização do falido movimento insurrecional, e parece a ele “excessivamente cômoda” (CAMPANELLA, 1941, p. 33) a tese de Amabile, que quer atribuir ao lugar tenente Frei Dionísio Ponzio as enunciações mais grosseiras e comprometedoras: trata-se em substância de um primeiro fruto daquele “ingrato trabalho de revisão”, que coincide com a mentira sistemática com fins utilitários e se explica “no quadro da evolução ou melhor talvez involução espiritual de Campanella”. A mim parece, por outro lado, que tais discordâncias sejam íntimas e originárias, não ditadas por atenuação oportunista, da qual não se chega a ver a finalidade, se a vulgata da Cidade do Sol parece feita justamente para comprometer, com as coincidências sublinhadas e as graves admissões, aquele que por todos foi designado como cabeça da conjura; por este motivo bem observa Solari que, se Campanella teve no movimento papel de protagonista, não está realmente provado que as metas perseguidas pelos conjurados, os desenvolvimentos do complô, coincidissem com as suas intenções genuínas: sabe-se com quanta amargura ele lamentava no cárcere a Ponzio: “loquebaris quae minus intelligebas”.39 Durante todo o angustiante calvário dos processos e das tentativas de liberação, 39 Conf. FIRPO (1947, p. 184).

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Campanella persiste em não delatar os cúmplices, em não separar a sua responsabilidade da deles, e o mais desconfiado leitor, mesmo percorrendo com desconfiança aquelas páginas de trabalhosa autodefesa, não pode permanecer surdo a certos sinais de desespero implorante e não atendido. Para Solari, que crê na sinceridade de Campanella, provada pela sua indestrutível resistência moral em meio à desventura, a Cidade do Sol torna-se um documento para o esclarecimento das intenções, um texto escrito para definir e resgatar as próprias idéias religiosas, filosóficas e sociais, os próprios projetos, para uma reforma da Igreja e das instituições políticas. Apenas esse acordo pode explicar a gênese do libreto enquanto documento literário, desde que se evite atribuir-lhe imediatas finalidades auto-apologéticas: a Cidade do Sol não foi certamente, à diferença da quase sincrônica Monarchia di Spagna, texto feito para circular nas mãos dos juízes e dos poderosos em busca de proteção ou favores; redigida no segredo do cárcere, essa obra não foi outra coisa que reavaliação composta sobre o belo sonho fracassado, testemunho da sobrevivência da espera do “novo século” introduzido pelas iminentes “conjunções magnas”: não idealizações, portanto, mas reivindicação das torturas e dos mal-entendidos grosseiros, necessidade de pôr no papel, em desenho firme, um devaneio que outros haviam deformado e envilecido sem compreender-lhe a pureza e a dignidade. Não convence sustentar a tese da simulação no livro, pois sua transparente inspiração deísta e naturalista era mais apta a provocar perseguições do que vantagens: a composição da Cidade do Sol é, portanto, límpido ato de fidelidade a um ideal.

No cárcere logo se delineia a crise resolutiva das experiências campanellianas; fracassado o plano de fuga, reconhecidas como falsas as revelações dos espíritos demoníacos evocados, verificadas como sem efeito as grandes conjunções planetárias de dezembro de 1603, desabam as esperanças de liberdade e de resgate, o messianismo orgulhoso é abatido pelo total insucesso, impõe-se uma reavaliação mais cautelosa dos motivos antigos, depurados das veleidades práticas imediatas. A transferência para a horrenda “fossa” subterrânea do Castel S. Elmo configura inclusive materialmente essa mortificação última, essa dilaceração do homem antigo sob o cúmulo das desventuras, para que o homem novo surja: se a primeira comparação que a própria situação lhe sugere é para Campanella a de Prometeu no Cáucaso, a última será a de Jó: as poesias acompanham esse itinerário de sofrimento e de aprofundamento interior, quase um tipo de diário lírico, com traços grosseiros, em clima rarefeito, do Soneto do Cáucaso à Canção de arrependimento. A reconciliação com o cristianismo que amadurece nele naqueles anos não é aquiescência servil, renúncia ao próprio pensamento autônomo, muito menos conformismo oportunista: Campanella vê a sua nova posição não como antítese da antiga, mas como transformação desta em realidade e integração, sublimação espontânea de natureza em sobrenatural. Também no campo político, como bem disse Solari, mesmo assim hesitante na aceitação da tese da ortodoxia religiosa do Campanella

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maduro, “a conversão não é palinódia, mas maturação, não é regressiva, mas progressiva, é reavaliação das exigências doutrinais implícitas na Cidade do Sol em sentido realista e concreto, isto é, católico”.

Malgrado o naturalismo e o racionalismo, Campanella é no íntimo um confirmador dos ideais da Contra-Reforma, pela sua aversão profunda ao agnosticismo incrédulo do Renascimento e ao individualismo anárquico do Protestantismo; o seu universalismo orgânico e hierárquico é de inconfundível estampa católica. Eram ortodoxos – é evidente – os conceitos da perfeição originária do homem, da decadência do estado de pureza feliz, da redenção através do cristianismo, da unificação das pessoas num único rebanho e sob um só pastor: astros, prodígios e números fatais retornam ao seu significado de símbolos anunciadores, não mais causas eficientes da mutação cósmica; o Cristo reaparece como instaurador do novo século, não nas roupagens do Encarnado crucificado, mas sob o semblante triunfal da segunda vinda, do debelador do Anticristo que reinará na terra no milênio feliz antes do fim do mundo. Os retoques acrescentados à Cidade do Sol nesses anos não são, portanto, como queria Bobbio, cautelosas atenuações insinceras, mas esclarecimentos das teses essenciais, que permitem a Campanella inserir no seu novo mundo o seu mundo antigo sem renegar uma palavra: tal doutrina, perfeitamente ortodoxa, nega toda antítese entre natureza e sobrenatural, e mostra como a razão preludia e aspira à revelação. Sob esta luz, a Cidade do Sol torna-se o “achado filosófico para demonstrar que a verdade do Evangelho está em conformidade com a natureza”; conformidade substancial e genérica, bem entendido, na qual permanecem discordâncias nas particularidades sobre a revelação, que enquanto único lume natural não seria infalível; permanece o fato de que os solarianos, porquanto vivem conforme a razão, são “quase catecúmenos da vida cristã”.40 Explica-se desse modo o título ampliado no “Diálogo de república, no qual se desenha a idéia de reforma da república cristã conforme a promessa de Deus feita a Santa Catarina e Brígida”, que impregna a Cidade do Sol na justa medida do sistema campanelliano, qual espelho do milênio de beatitude anunciado pelos vaticínios sacros e profanos, que Campanella havia com tanta diligência reunidos nos Articuli prophetales. Trata-se de reconhecer no modelo campanelliano não “a ordem soberana que restituirá à terra a idade de ouro”,41 mas o prefigurado desenho dos estatutos sociais que a vindoura idade de ouro instaurará sobre a terra: não estamos diante de um programa revolucionário, mas de uma anunciação messiânica. Não diversamente, o acréscimo trazido ao mais tardio dentre os códices italianos, lá onde se fala da comunidade das mulheres e da prontidão dos solarianos no reconhecimento e adoção de práticas eventualmente melhores do que as próprias, perde todo caráter de atenuação conformista; de fato diz Campanella: “quando souberem as razões vivas do cristianismo, comprovadas com milagres, consentirão, porque são dulcíssimos. Mas até agora vivem naturalmente sem fé revelada, nem tentaram ir além disso” (CAMPANELLA, 1854, vol. II, p. 78). Conhecimento do cristianismo não é – como bem sabia Campanella – mera notícia histórica e objetiva,

40 Assim nas Questioni sull’ottima repubblica, in CAMPANELLA (1854, vol. II, p. 289).

41 Assim a define DE MATTEI (1938, p. 431).

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mas iluminação sobrenatural, regeneração na graça: a noção extrínseca não é insuficiente nos solarianos, que têm em grande conta Jesus e os apóstolos, como vimos, louvam o comunismo conventual e apostólico (ibid., p. 77), conhecem a profecia de Cristo sobre o fim do mundo (ibid., p. 100); o que eles ignoram não são as razões mortas, mas são de fato as “razões vivas”, que entre eles ainda não são desenvolvidas. Tanto na primeira redação como na última, a relação entre religião natural e religião revelada permanece imutável, sem atenuações ou despistamentos; diz o texto italiano: “seguem apenas a lei da natureza”, mas “são tão próximos ao cristianismo, que coisa nenhuma falta à lei natural a não ser os sacramentos”; e ainda: “a verdadeira lei é a cristã e, subtraídos os abusos, será senhora do mundo” (ibid., p. 180); os solarianos limitam-se apenas à concepção racional da Trindade “porque não tiveram revelação” (ibid., p. 106); concluirá com plena coerência uma glosa ao texto latino de 1637: “vigor Evangelii non potest totus naturaliter nosci” (ibid., p. 136).

Se a Cidade do Sol, fechada em seu naturalismo, fosse o ideal secreto de Campanella, e a teocracia universal seu pseudo-ideal oportunista, haveria antítese entre os dois textos ao invés de complementação – como bem nota Amerio; ao invés disso, as estruturas sociais da utopia apenas aparentemente citadinas impregnam completamente os confins da monarquia ecumênica, os próprios solarianos predicam a “iminência da grande monarquia nova” (ibid., p. 109), e “dizem que o mundo terá de se adequar para viver como aqueles fazem” (ibid., p. 87); não atenuado, mas antes audaciosamente explícito, o texto latino estabelece: “vitam apostolicam in se et in nobis expectant” (ibid., p. 145). A urgência da reforma, no sentido de um retorno ao cristianismo genuíno das origens, é proposta àqueles que há muito tempo já tiveram a revelação: aquilo que para os gentios é apenas integração espontânea ao lume natural, para nós há de ser revisão de vida e restauração. No maduro sistema campanelliano, a convivência solar é retomada como modelo não superado de sociedade perfeita no estado de inocência, na coincidência inicial e final das remotas origens e do século de ouro futuro: como tal, em torno de 1609, essa convivência é defendida e corroborada por uma erudita argumentação nas Quaestiones politicae, e encontra lugar intacta, dez anos depois, no décimo quarto livro da Theologia, apenas com a renúncia à comunidade sexual que o direito positivo divino condena, mas que é, entretanto, defendida eficazmente apenas à luz do direito natural; longe de representar um resíduo da heterodoxia juvenil, trata-se de uma tese genuinamente tomista, superada mas não condenada pela moderna teologia católica42. Tornado assim parte vital do sistema político-religioso de Campanella, inserido no universalismo teocrático e na palingênese cósmica, o ideal da Cidade do Sol ilumina ainda os últimos anos da velhice e do exílio: “Civitas Solis per me delineata ac per te aedificanda perpetuo fulgore splendescat semper”, escreve a Richelieu o cansado filósofo em 1636, e dois anos mais tarde, sobre o berço do futuro Luis XIV, canta:

42 Sobre este assunto veja-se, no mais recente ensaio citado de AMERIO, as p. 45-47.

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Admirandam urbem, Solis de nomine dictam,me signasse tibi, puer, alto ex corde resigno...Convenient reges, populorumque agmina in urbem(“Helicam” dicent), quam construet inclytus heros.43

Sem ser símbolo genérico do Estado perfeito, apagada figura retórica44, mas evocação fiel de um ideal jamais renegado, generosa ilusão que nenhum insucesso pôde despedaçar, o mito solar sorri para a velhice campanelliana com imutável virtude consoladora: junto ao universalismo teocrático, ainda reafirmado em 1637 com De regno Dei – e se tacha de oportunista o homem que agitava tais idéias no coração da França racionalista, absolutista e galicana! – o idealismo social da Cidade do Sol permanece durante toda a vida de Campanella o valor mais alto da sua especulação política, a meta certeira do trabalho secular do homem saído dos tempestuosos particularismos que perpassam a história para voltar ao tempo fraterno, no qual o triunfo da razão e do amor instaurará sobre a terra o reino de Deus.45

Inserida assim nas correntes perenes do universalismo e da es-pera cristã, a Cidade do Sol se desvincula do seu aparente anacronismo: se permanece estranha aos aspectos reacionários da Contra-Reforma, é indubitavelmente uma alta expressão da construtiva reforma católica. Constrangido pela antítese aparente entre razão e revelação, entre na-turalismo e transcendência, Agostini se satisfizera em salvar o salvável, submissamente aceitando dogmas e preceitos, hierarquia e ritos da Igre-ja, satisfeito com aquela zona residual na qual a razão podia ainda cogi-tar os seus achados, movendo-se com uma humilde e respeitosa cautela. Já Campanella visa à conciliação total, à elisão de todo contraste em uma explícita continuidade gradual que conduz a filosofia da natureza a desa-guar no cristianismo. Ele aspira a mostrar como, na milenar elaboração do saber tradicional, as teses aristotélicas podem ser impunemente subs-tituídas por outras racionalmente mais válidas, sejam essas telesianas ou galileanas, sem que uma única sílaba da revelação seja abalada. Depostos os aspectos panteístas, hedonistas e materialistas, o naturalismo huma-nista reivindica para si a dignidade e legitimidade da própria investiga-ção racional, cuja espontânea convergência em sentido cristão é garanti-da ab aeterno pelo Verbo divino, Razão Primeira. Na auto-interpretação evolvente do mito solar Campanella supera o grande drama do século, mostrando que ciência positiva e metafísica católica, longe de divergir, são distintos graus cognoscitivos de uma mesma verdade.

6. ludovico Zuccolo e a República de Evandria

Falta agora deter o discurso, para não fugir ao assunto, em Ludovico Zuccolo, que nos seus Dialoghi publicados em Veneza em 1625 descreve um imaginário país abençoado na República de Evandria46. Mas trata-se na verdade de um pseudo-utopista, que vestiu propósitos moderados de reformas sociais com a agradável roupagem literária do

43 Conf. CAMPANELLA (1927, p. 374; 1939, p. 214).

44 Assim desejava Bobbio (CAMPANELLA, 1941, p. 37).

45 Sobre isso já apontei para um outro típico, ainda que menor aspecto da Cidade do Sol: o imperante cientificismo. Basta recordar sumariamente a rígida, contínua intervenção da ciência, através dos poderes públicos, regulando todos os aspectos da vida social, da geração aos métodos froebelianos na educação (CAMPANELLA, 1941, p. 61, 64-5, 74, 76), dos benefícios integrais trazidos pelas ciências aplicadas à agricultura (ibid., p. 85), das precauções higiênicas aos exercícios esportivos (ibid., p. 67). Por outro lado os solarianos equiparam a mulher ao homem nos esforços e nos perigos (ibid., p. 64, 68, 79, 81, 84), exaltam os trabalhos mas querem que sua duração seja limitada (ibid., p.65, 76), possuem museus de ciências naturais, hortos botânicos (ibid., p. 60-61), telescópios e amplificadores acústicos (ibid., p. 109), navios que se movem sem remos nem velas (ibid., p. 86), veículos aéreos (ibid., p. 109), instrumentos para guiar os cavalos com os pés (ibid., p. 86), armas de fogo de têmpera especial e artifícios bélicos não conhecidos (ibid., p. 81, 87). Notáveis a este respeito são as páginas de BRUERS (1941, p. 119-125; 1942).

46 Valho-me da reedição curada por De Mattei (ZUCCOLO, 1945), que é precedida de uma aguda introdução.

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romance político; cortesão e literato, elegante e culto, mas eclético e superficial, Zuccolo goza de uma efêmera fortuna recente, devida à descoberta croceana de algumas páginas agudas de sua autoria sobre a razão de Estado, que lhe valeram o apelativo – nada menos – de “o mais profundo filósofo político do seu tempo”. Trata-se na realidade de um culto e aberto engenho, em nada surdo aos problemas de sua época, mas disperso em acadêmicos deleites, em divagações diletantes, privado daquela coerência mordente que é a medida própria de um pensador; não é perspicácia que lhe faz falta, mas o interesse verdadeiro pelas coisas que toca, o fogo da paixão interior.

Ceticismo e moderação, aspectos evidentes do seu ser, são o que de mais remoto se possa reconhecer no utopismo, que exige fé absoluta e radicalismo drástico nas soluções. Zuccolo é, ao contrário, o homem da tepidez e da cautela, o incrédulo que rejeita as miragens da perfeição absoluta e do retorno à era Saturnina, não sendo insensível ao mal estar econômico, às desigualdades sociais e políticas da sua época, mas privado de fantasia construtiva, temeroso de cair a cada passo no artificioso e no irreal, ligado sempre aos dados imediatos de uma limitada experiência concreta. Explica-se assim a sua desconjuntada requisitória contra Morus no Aromatario, outro de seus diálogos, que trai uma total incompreensão do texto tomado para exame, reduzindo a crítica a uma seqüência de acusações de obscuridade, contraditoriedade e reticência, que nem mesmo de leve toca as teses capitais da Utopia. Desnecessário dizer que na sua Evandria o próprio Zuccolo será bem mais lacunoso e ambíguo, deixando sem resposta indagações muitíssimo mais urgentes. E inclusive fica mais bem explicado como, em busca do Estado perfeito, Zuccolo não vai longe, ficando plantado ao invés disso na porta de casa, sobre o desmoronado monte de San Marino, idealizando na Città Felice – retomada talvez polêmica, no sentido realístico, do título patriziano – aquele pequeno mundo comunal e agreste governado pela simplicidade, pela parcimônia, pela concórdia operosa. Assuntos vagos, que um ilusório desejo de concreção, de referência a instituições históricas comprovadas na realidade, acabava por dissolver no moralismo genérico, vão esforço de atribuir valor exemplar a uma exígua e esgotada experiência, fruto de condições e coincidências completamente únicas e intransferíveis.

Por isto Evandria não é utópica a não ser nas suas roupagens literárias: as suas estruturas, desprovidas de extremismos, são inspiradas em um brando reformismo, são ecos de aspirações difusas, realizações de instâncias habituais. Se quisermos fazer um balanço metódico, nenhuma das idéias de Zuccolo é peculiar, cada uma delas encontrando profundas raízes não apenas nos reformadores que o precederam, mas nos próprios políticos práticos, nos espelhos de príncipes, nos manuais de bom governo. Por mais de meio século essa literatura inspirada no cotidiano, esse empírico compromisso, se colocara à sombra da Contra-Reforma intransigente e ostentava – sem perder de vista a útil minúcia – uma devoção untuosa, um sacro zelo fictício. Zuccolo, prudentemente, não se aventura sobre o terreno religioso; apenas nos adverte que em Evandria os jovens são adestrados “a temer e reverenciar Deus” (ZUCCOLO, 1945, p. 48)47, mas no entanto o moralismo mais rígido, espelho fiel dos tempos, impera soberano. Amplíssimos poderes para inquirir a conduta

47 Uma única vez Zuccolo parece tomar alguma liberdade, quando parece admitir em casos extremos o divórcio (ibid., p. 54); atente-se, porém, para fato de que os censores de Evandria se limitam a “separar” os cônjuges, “não sem nota de vergonha e de vitupério”, nem é dito que estes possuam a faculdade de contrair novas núpcias.

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privada dos cidadãos são atribuídos aos censores (ibid., p. 54); rigoroso é o controle sobre a imprensa, sobre a exposição de obras de arte lascivas (ibid., p. 55), sobre o teatro, do qual a comédia é banida e é apenas tolerada a tragédia admoestatória (ibid., p. 50-55); a vagabundagem é reprimida, pois corrompe com o mau exemplo os costumes (ibid., p. 48), punidos com o confinamento os grevistas (ibid., p. 58), banido o luxo por severas leis suntuárias (ibid., p. 51), por “bons e honrados costumes” é essencialmente inspirada a educação da juventude (ibid., p. 49). Antiga e já instância convencional, que já havia sido ecoada, com muito mais convicta adesão interior, nas páginas de Agostini, tão mais grosseiras e tão mais sinceras.

Com Zuccolo a utopia italiana entra em seu ocaso, ou melhor, nela se revela já declinada, naquela época de desenvolvimento do espí-rito italiano que a aquiescência formal e o compromisso malicioso ca-racterizam: é o mais melancólico de todos os ocasos, o do entusiasmo moral. Por outras estradas caberá de agora em diante continuar a fortuna perene da utopia, em terras não sujeitas à drástica reductio ad unum da Contra-Reforma: será o pietista Andreä a transformar em alegoria mo-ralizante as estruturas da Cidade do Sol na sua Christianopolis (1619), Bacon historiará na Nova Atlântida (1620) o mito da idade feliz, atri-buindo ao progresso técnico a garantia do bem estar futuro, Winstanley tentará em Leis de liberdade (1651) contrapor ao comunismo absolutista um comunismo liberal, Harrington em Oceana (1656) dará nova voz à remota aspiração igualitária. Entrementes no além mar, nas virgens planuras do Paraguai, os aventurosos Jesuítas realizavam nas imensas reduções jesuíticas fecundadas pelo grande rio o primeiro experimento concreto, compondo costumes indígenas e preceitos religiosos, tempera-mentos empíricos e esquemas racionais, interesses capitalistas de empre-sa produtiva e zelo missionário de iluminação evangélica.

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