A Vida Como Ela e Maria Elizabeth Barros de BARROS

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A VIDA, COMO ELA É? Life, how is it like? MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS Doutora, Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. E-MAIL: [email protected] PUBLICADO EM: Revista de Psicologia Clínica (Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 15, n.1, p. 25-39, 2003.

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A VIDA, COMO ELA É?

Life, how is it like?

MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS

Doutora, Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.

E-MAIL: [email protected]

PUBLICADO EM: Revista de Psicologia Clínica (Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 15, n.1, p. 25-39, 2003.

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A VIDA, COMO ELA É?

Life, how is it like?

RESUMO

Na nossa atualidade discursiva encontramos diversas abordagens sobre “uma nova forma de ser humano”, “novos estilos de vida” e “novas formas de gerir a vida”. Em cada uma delas a vida recebe diferentes formulações. Em meio a essa diversidade ético-política de tematizações esse texto busca criar alianças com aquelas que afirmam modos de existência estética. Para a construção desse projeto, convocamos alguns autores que possibilitam dar visibilidade à questão da vida em seu movimento de criação, em sua potencia de invenção, que são Nietzsche e Canguilhem. Esses autores, numa postura que é também a que adoto nesse texto, atribuem à existência a beleza de uma obra de arte.

PALAVRAS CHAVE: Vida, saúde, processos de subjetivação.

ABSTRACT

In our nowdays speech, we found several theories about “a new form of human being”, “new styles of life”, and “new forms of managing life”. In each one of them, life receives different aspects. Into this diversity of ethical-political themes, this text searches to create alliances with those topics that affirm esthetic modes of existence. To build this project we studied authors that make possible to give visibility to the issue of life in its creation movement, in its invention power, such as Nietzsche and Canguilhem. These authors, in an attitude that I also adopt in this text, attribute to existence the beauty of a work of art.

KEYWORDS: life, health, subjactivation processes.

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A VIDA, COMO ELA É?

“Modos de pensar criam maneiras de viver”

(Gilles Deleuze 1981).

Na nossa atualidade discursiva encontramos diversas abordagens sobre “uma nova

forma de ser humano” e “novas formas de gerir a vida”. Em cada uma delas a vida recebe

diferentes formulações. Em meio a essa diversidade ético-política de tematizações sobre o

processo vital é preciso criar alianças com aquelas que afirmam modos de existência estética, “...

que desertem ativamente a máquina de sobrecodificação [...] e inserir-se no movimento de

reativação da força de invenção a contrapelo de seu esvaziamento vital” (Rolnik, 1989, p. 25).

Para a construção desse projeto, comungamos de algumas perspectivas que possibilitam dar

visibilidade à questão da vida em seu movimento de criação, em sua potencia de invenção de

“subjetividades astuciosas”.i Para essa empreitada convidamos dois autores que têm sido nossos

aliados nessa tarefa: Nietzsche e Canguilhem. Esses autores, numa postura que é também a que

adoto nesse texto, atribuem à existência a beleza de uma obra de arte.

Nietzsche nos convida a sair do torpor, da submissão aos valores instituídos e, ao

nos sacudir, nos faz tremer e nos desestabiliza, afirmando-nos como vontade, manifestação das

forças da vida, mutiladas pela moral convencional que nos é oferecida no âmbito dos valores

burgueses. Nos convoca a combater a complacência e a mornidão das posições adquiridas, que o

comodismo intitula moral.

Na sua concepção, há uma luta permanente entre a vida que se afirma e a que

vegeta, sendo que esta última é produzida pelos valores rotinizados da burguesia, que ao abriga-

los, afirma mais comodismo e resignação moral e não vontade ativa. Como nos indica Escobar

(2000a), Nietzsche se aspira como subversão radical frente aos valores do capital, um combate

militante aos valores hegemônicos.

Assim como Marx (1983), busca a transmutação dos valores sociais e morais

reconhecendo o equipamento de civilização que os produz. A via de construção de uma outra

humanidade implica riqueza coletiva, que envolve todos os humanos. Tal construção implica,

nesse sentido, nos vincular ao filósofo e ao artista, fazendo da atividade criadora não uma

obrigação intelectual, mas um passear livremente pela vida. Pensamento afirmativo, pensamento

afirmando vida.

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O homem, dizia ele, é um criador de valores, mas ao esquecer sua própria criação,

vê neles algo transcendente, eterno e verdadeiro, enquanto os valores são “humanos,

demasiadamente humanos”. Deste modo, sendo a vida criação de valor, nos convoca a avaliar a

verdade a partir da dimensão das forças no campo social.

Propõe a superação incessante do ser da conjuntura, ou seja, o que somos num dado

momento, buscando estados outros de ‘humanização’, que vai se traduzir na sua proposta de

produção do super-homem, pois o homem, conforme nos diz, é o ente que deve ser ultrapassado.

O super-homem em Nietzsche é superação, ultrapassagem, é um novo modo de sentir, de pensar,

de avaliar; uma nova forma de vida, um outro modo de subjetividade. Poderíamos arriscar dizer

com Souza (1983), que visa uma expansão das energias de que somos portadores.

A força do pensamento de Nietzsche nos faz trazê-lo como aliado fundamental na

tarefa de pensar a saúde no seu sentido ampliado, na medida em que para o filósofo “o corpo não

seria um corpo completo, cujos ângulos são retos, feitos com o esquadro e a saúde a retidão, a

confiabilidade e a completude que colocará à prova todos os valores e todos os desejos”

(Almeida Filho & Coelho, 1999, p. 24).

Saúde, no contexto de sua obra, implica doença no confronto e na superação das

tendências mórbidas. Nietzsche rompe com a idéia de que a saúde é algo individual, privado.

Para ele, nem a saúde nem a doença são entidades, as diferentes dicotomias são apenas jogos de

superfície. Entre doença e saúde há continuidade, diz Nietzsche, a doença é um desvio interior à

própria vida, não há fato patológico em si. Conforme seu depoimento, “Na verdade, a doença

pode ser saúde interior e vice-versa. A saúde é aquilo que pode ser útil a um homem ou a uma

tarefa, ainda que para outros signifique doença..Não fui um doente nem mesmo por ocasião da

maior enfermidade” (Nietzsche, 1995, p.56).

Não concebe a doença como um acontecimento que afeta de fora um “corpo-objeto,

um cérebro-objeto”. Da saúde à doença, da doença à saúde, esta mobilidade é uma saúde

superior e este deslocamento, esta ligeireza no deslocamento é o sinal da “grande saúde”. Ficar

doente é perder essa mobilidade, ou seja, perder esta arte do deslocamento que não pode mais,

pela saúde, fazer da doença um ponto de vista sobre a saúde.

Nietzsche, inspirando-se na experiência dos gregos, povo que, segundo ele, longe de

ser um povo sereno e simples, é extremamente sensível, capaz de grande sofrimento e vulnerável

à dor, afirma que o sofrimento não é aquilo que deve ser mascarado ou considerado como

estranho à existência. Oferece-nos uma interpretação da tragédia e da própria cultura grega onde

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a arte contribui para criar uma tênue membrana de alegria sobre o “escuro horror”, sem a

necessidade de mascarar os terrores e atrocidades da existência. “A tragédia é bela na medida em

que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artístico,

com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emocionante e de impressionante na

tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo”

(Nietzsche, 1992, p. 54).

No mito trágico o acontecimento épico glorifica o herói combatente, lutador, que vê

no sofrimento existente no seu destino e em seus triunfos mais dolorosos, a manifestação

suprema da vontade. Assumir o destino trágico é dizer sim à vida como ela é, sem introduzir

oposição de valores, afirmando poeticamente seu eterno retorno. Apesar de todo sofrimento a

afirmação do eterno retorno torna o herói trágico fundamentalmente alegre, pois a finalidade da

tragédia ao exibir o sofrimento do herói é produzir alegria. Conforme Nietzsche (1992, p. 142):

“O dizer sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos: a vontade de vida,

alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isto chamei

de dionisíaco, ou seja o oposto de um filósofo pessimista”.

A tragédia é a experiência da vida como força e nela a vida é “liberdade que se

advinha irremovível do factum que ela também afirma, que ela cria ao afirma-lo, lá onde ela se

quer e se avoluma. É uma criação pela afirmação, e não uma mentira, é uma criação por

solidariedade à vida e não uma fuga” (Escobar, 2000a, p. 112).

Nessa direção de análise, considera que o adoecimento está relacionado com a idéia

de que a vida é um ciclo, em que tudo volta, ou seja, de que tudo é igual. Ao contrário, a saúde é

a compreensão de que o que retorna abrange o desigual e a seleção, a plenitude da existência é

ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento. Esse último é

apenas a outra face da alegria. Por isso, afirma Nietzsche (1992), os homens não têm de fugir à

vida como pessimistas, mas vive-la como alegres convivas de um banquete que desejam suas

taças novamente cheias, dizendo à vida: mais uma vez! A afirmação do múltiplo e do devir em

lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão. O círculo não repete e o que

retorna é sempre diferente, e até mesmo a finitude e corporeidade retornam não como um igual,

mas como o absolutamente diferente. Trata-se de um retorno para esta vida com sua grandeza e

sua pequenez, o que não significa uma vida melhor ou semelhante.

Desse ponto de vista,

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Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, é o que torna a vida mais leve. Mas, para que o criador exista, são deveras necessários o sofrimento e muitas transformações. Sim, muitas mortes amargas deverá haver em vossa vida, ó criadores! Assim, sereis intercessores e justificadores de toda a transitoriedade. Se o criador quer ser ele mesmo a criatura, o recém-nascido, então, deve querer, também, ser a parturiente e a dor da parturiente (Nietzsche, 2000, p. 115).

O sofrimento não pode ser vivido como uma objeção contra a vida e um motivo

para condená-la, a afirmação incondicional de cada instante vivido dá à existência a beleza de

uma obra de arte. O fundamental é a positivação da dor e do sofrimento, pois, fazem parte da

vida. “Aprecio a potência de uma vontade pelo quanto de resistência, sofrimento, tortura tal

vontade suporta e sabe transformar em vantagem própria; com base neste critério, deve estar bem

longe de mim a idéia de reprovar à existência o seu caráter perverso e doloroso” (Nietzsche, apud

Escobar, 2000b, p. 165.).

Chama de doente a uma vida reduzida aos seus processos reativos e onde a negação

leva a melhor, ou seja, o triunfo do não sobre o sim. Na doença a vida torna-se adaptativa e

reguladora e o não agir é seu funcionamento predominante; é o triunfo da negação e a afirmação

é apenas a segunda, subordinada à negação. “As contradições, as afrontas, a desconfiança alegre,

a zombaria são sempre sinais de saúde: todo tipo de absoluto indica patologia” (Nietzsche, 1983,

p. 270).

Aqueles que sofrem da superabundância da vida fazem do sofrimento uma

afirmação. “O homem, o mais corajoso, o mais apto ao sofrimento de todos os animais, não

rejeita o sofrimento em si: ele até o procura, desde que lhe mostremos a razão de ser, o porquê

deste sofrimento. O não-sentido da dor, e não a própria dor, é a maldição que até agora pesou

sobre a humanidade – ora, o ideal ascético lhe dava um sentido!” (Nietzsche, 1983, p. 297). Cabe

destacar, que a alegria não é mascaramento da dor, nem resignação, mas expressão de uma

resistência ao próprio sofrimento, que faz parte da vida. Nesse sentido, afirma o prazer eterno da

existência e a eternidade da vontade.

A essência do universo é um impulso, que denomina vontade, ávida e insaciável,

que determina o surgimento e a transformação de todo estado de coisa. A vontade é força

criadora do mundo. Como nos fala Escobar (2000b, p. 71): “A vontade de potência legisla, cria,

impõe, e por isso, o pensamento nela (e como ela) não é descoberta da verdade, mas invenção

estética”.

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Frente ao drama da existência propõe uma postura corajosa que vivencia suas

atrocidades e as dores do mundo sem necessidade de subterfúgios moralistas, mas dominando as

situações que fazem sofrer, de forma a transfigurar em beleza seus horrores. O bem-estar, a

comodidade e a ausência de sofrimento passam a sinalizar mediocridade e as diferentes formas

de nivelamento ou uniformização precisam ser recusadas.

O ser da força é o plural, portanto, em Nietzsche, o conceito de força é o de uma

força que se relaciona com uma outra força e, sob esse aspecto, a força chama-se vontade e o que

uma vontade quer é afirmar sua diferença, é vontade de potência, que é múltipla e motor da vida

e não fuga de dor.

Evitando a destragicização da leitura de Nietzsche, é importante destacar que não

fala de homem ou de humanidade ao falar da vontade de potência. Ela é sobrehumana,

disposição política. Quando fala de uma experiência consigo mesmo, não está se referindo a um

centro ou a um sujeito, mas da consciência de uma sensibilidade que se adquire no deserto

(Escobar, 2000a). Fala de um corpo coletivo. “A grandeza do homem é que ele é uma ponte e

não um fim; o que podemos amar no homem é que ele é transição e perdição. Amo aqueles que

não sabem viver senão sob a condição de morrer, porque ao morrer, ultrapassam-se” (Nietzsche

apud Deleuze, 1976, p. 70-71).

Ele substitui o conceito de ser pelo de vida, pois sua concepção do ser é

interpretação e a vida é avaliação. Daí afirmar que os valores não se referem ao sujeito nem à

consciência. Não busca o ser do homem, mas dos valores que o move e que inventa. Os valores

não têm verdade nem existência em si, não são realidades ontológicas e, sim, resultado de uma

criação humana; não são fatos, são interpretações introduzidas pelos humanos no mundo.

Tampouco são eternos, imutáveis, inquestionáveis, o pretenso caráter em si dos valores, o

postulado metafísico da identidade entre valor e realidade, deve ser recusado. Os valores são

históricos, sociais, produzidos, têm valor.

Seu projeto de transvaloração dos valores tem como perspectiva mais importante a

oposição aos valores superiores, e mesmo à negação desses valores. Nesse campo ético-político

formulado por Nietzsche, fica a proposta de criação de novas possibilidades de vida, que

expressa uma desvalorização dos valores dominantes e uma valorização dos valores

subordinados, negados pelo niilismo. Esse projeto, portanto, significa, a mudança do princípio de

avaliação e a vitória da vontade afirmativa de potência, da superabundância da vida, sobre os

valores dominantes do niilismo.

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As questões que apresenta são um convite para pensar a vida como instinto de

crescimento, de duração, de acúmulo de forças, de potência e a questão do valor como questão

das condições de intensificação ou conservação, de aumento ou diminuição da vida. “Onde

encontrei um ser vivente, lá encontrei vontade de poder. E este mistério segredou-me a própria

vida: ‘Veja’, disse ela, ‘eu sou aquela que sempre tem de superar a si mesma’” (Nietzsche, 2000,

p. 14).

Nesse patamar de discussão, vontade de poder não significa que a vontade queira o

poder ou deseje dominar, consiste em criar e em dar. O poder como vontade de poder não é o

que a vontade quer, mas aquilo que quer na vontade. O desejo da vida é superar-se a si mesma,

afirmar em vez de buscar sua solução ou justificação, rompendo a camisa-de-força em que a

encerrou a moderna civilização ocidental, ou seja, a rigidez da autoconservação a qualquer custo.

A afirmação da vida é um princípio plástico de todas as avaliações e força criadora de novos

valores.

Opõe a compaixão e a humildade ao orgulho, ao gosto pelo risco, pela criação e pelo

amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na

vontade de potência, que significa criar, avaliar. O negativo subsiste nela apenas como

agressividade própria à afirmação, como crítica que acompanha toda criação e, assim, a negação

é ação, instância a serviço da criação e, portanto, afirmativa.

Nessa direção, seria irrelevante saber se os juízos de valor sobre a vida são

verdadeiros ou falsos. Sendo a vida um princípio, o fundamento da criação de valores, ela não

pode ser julgada, seu valor não pode ser taxado. O que verdadeiramente importa é a força do

conhecimento e não a verdade, pois, essa última, pode ter um caráter negativo pelo fato de ser a

supressão de um erro, de uma ilusão que é uma exigência básica da vida. O falso pode ter uma

positividade se temos a vida como perspectiva.

Nietzsche critica a idéia de preservação da vida e faz da vontade de potência outra

coisa que uma natureza. A luta pela vida é aumento, extensão, força, ultrapassamento, conforme

esta ‘vontade de potência’ que é precisamente o querer viver, afirmando-a e potencializando esta

vontade de potência como experiência e criação e, desse modo, um trabalho sobrehumano capaz

de por a vida em perigo.

Útil, en sentido de la biología darwiniana, significa: lo que en la lucha con otros seres se considera ventajoso. Pero a mi me parece que ya el sentimiento de crecimiento, de devenir más fuerte, abstrayendo complemente la utilidad

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en la lucha, es el verdadero progreso: de este sentimiento nace precisamente la voluntad de lucha (Nietzsche, 1987, p. 355).

Faz sentido, então, lembrar que instinto é força, vontade, atividade, potência,

intensidade e que não há o instinto, mas instintos múltiplos e heterogêneos, que formam um

conjunto de forças em que uma força está sempre em relação com outra, se exercendo sempre

sobre outra, numa relação de luta, de domínio. O que expressa a vontade afirmativa de potência é

a criação de valores. “Ao criador não interessa reproduzir, mas produzir real” (Machado, 1997, p.

118). O espírito livre é aquele que reinventa o real, que transfigura a vida, que é aparência e onde

o falso tem positividade. Afirma a importância de se insurgir contra a possibilidade de um

julgamento da vida a partir de um critério de verdade: “Com a vida, contudo, não se trata de uma

liberdade arbitrária, nem da verdade ou da universalidade, trata-se nela ‘daquilo de que se trata’ e

que ela não pode se desfazer senão se fazendo (liberdade suja), a vida não pode contorna-la no

trabalho que afinal a instaura pela sua ‘verdade’: a vontade de potência” (Escobar, 2000a, p.

163).

A vida é aquilo que deve se superar em uma perspectiva para além do bem e do mal,

isto é, esforço sempre por mais potência, o passado não pode ser tomado como limite à vontade

de potência, mas como desafio.

Subir quer a vida e, subindo, superar a si mesma [...]. A vontade de potência como princípio pelo qual a vida se projeta para além de si mesma, pelo qual ela se auto-supera, o que permite compreender por que a vida pode se apresentar como mutável. Assim, o único critério de avaliação é a própria vida, segundo a qual a própria vida nos coage a instituir valores; a própria vida avalia através de nós, quando instituímos valores (Nietzsche, 1983, p. 330)

Para Nietzsche querer que o instante vivido se eternize, afirmando seu eterno

retorno, é desejar a vida, a cada instante, em toda sua intensidade e plenitude. Esse estado

supremo de aquiescência à vida é a única forma de ultrapassar o niilismo, tanto como vontade de

nada quanto um nada de vontade. “A vontade torna leve o peso das coisas” (Machado, 1984, p.

145). A grande saúde não procura evitar nem mesmo a doença. Conforme Escobar, (2000b, p.

111): “Nietzsche advinha que é já no ‘corpo’ que a liberdade se decide, e por isso conclui: ‘fiz da

minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia’...”.

Canguilhem (2000) parece simpatizar com essa perspectiva nietzschiana ao postular

que saúde e doença se implicam num confronto e superação permanentes das tendências

mórbidas. O vitalismo afirmado por Canguilhem convida a biologia a repensar alguns conceitos

filosóficos fundamentais, tais como o de vida. Pois, ao recusar os diferentes reducionismos

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físico-químicos, tanto nas abordagens sobre o meio quanto do organismo vivo, afirma uma

abordagem do vivo que contemple seu aspecto fundamentalmente imprevisível, criacionista e

normativo. Ou seja, busca afirmar a vida no seu aspecto de criação e expansão permanentes. E

essa filosofia, a nosso ver se encontra em Nietzsche.

Canguilhem (1971), discutindo a concepção de vitalismo que dominou algumas

abordagens no âmbito das ciências da vida, afirma que esse termo serviu de etiqueta a

extravagâncias e passou a ter valor pejorativo para aqueles que buscam alinhar suas pesquisas ao

objeto de estudo das ciências exatas e/ou naturais, como a física, a química e a biologia. Ao

recusar os diferentes animismos e misticismos que acompanharam as abordagens vitalistas,

procura escapar dos reducionismos mecanicistas de abordagem da vida. Considera que os

cientistas não podem negligenciar a história das idéias e, nesse sentido, a literatura e a filosofia

precisam ser visitadas quando se tem como projeto estudar a vida, a história das ciências não

pode prescindir da história das idéias.

Em seu texto “Aspects du vitalisme” (1971) mostra que o essencial de uma máquina

é ser mediação, uma vez que um mecanismo não cria nada, o que caracteriza sua inércia. Tal

como Nietzsche, reconhece a originalidade da vida reconhecendo a atividade do vivente, não o

reduzindo a seus aspectos físico-químicos. A posição de um vivente se refere à experiência que

ele vive e que dá ao meio o sentido de condições de existência. Somente um ser vivo pode

coordenar um meio. O renascimento do vitalismo traduz a desconfiança permanente da vida

frente à sua mecanização. Conforme nos diz, a própria vida se rebela contra sua mecanização.

Desse ponto de vista, o vitalismo mais que uma doutrina é uma exigência que explica a

vitalidade, a espontaneidade, a vida como criação. Longe de afirmar qualquer tipo de

transcendentalismo ou misticismo, trata de dar ao vitalismo um caráter de estudo da vida que

afirma seu criacionismo e imprevisibilidade.

Na tendência teórico-metodológica que dá ênfase, o sujeito deve ser apreendido na

sua complexidade, pois, é muito mais amplo do que se supõe e, portanto, não pode ser reduzido a

uma questão de doutrina e de método biológico. Não é possível reduzir seu entendimento ao

entendimento das máquinas. O vitalismo, afirmado por Canguilhem (2001), próximo do que nos

indicou Nietzsche, é a recusa de duas interpretações metafísicas das causas dos fenômenos

orgânicos, que são o animismo e o mecanicismo. O reconhecimento da originalidade do fato

vital leva-o a considerar que um gênero vivo só é viável na medida em que se revela “fecundo”,

isto é, produtor de novidades, mesmo se imperceptíveis à primeira vista.

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Daí, num ser vivo não há propriamente faltas se admitimos que existem mil

maneiras de viver. Assim como na guerra e na política, diz ele, não há vitória definitiva na vida,

mas superioridade ou equilíbrio relativo e precário, também na vida não há sucesso que

desvalorize radicalmente outras tentativas que lhes façam parecer faltosas. “Todos os sucessos

são fracassos retardados, os fracassos dos sucessos abortados” (Canguilhem, 1971, p. 160.). É o

futuro das formas que decide o seu valor.

O termo normal não tem nenhum sentido propriamente absoluto ou essencial. O

vivo e o meio não são considerados normais separadamente, mas somente numa relação. Para

Canguilhem (1971, p. 162) “...normal signifie tantôt le caractère moyen dont l’écart est d’autant

plus rare qu’il est plus sensible e tantôt le caractère dont la reproduction c’est-á-dire à la fois lê

mainteien et la multiplication, révèlera l’importance e la valeur vitales”. O normal deve ser dito

instituidor da norma ou normativo, ele é prototípico e não mais simplesmente arquetípico. Uma

anomalia, variação individual sobre um tema específico, só é patológico nas suas relações com

um meio de vida e um gênero de vida, o problema do patológico no homem não pode ficar

restrito ao biológico, pois, a atividade humana, o trabalho e a cultura têm por efeito imediato

alterar constantemente o meio de vida dos humanos.

A história que construímos modifica as múltiplas situações experimentadas; a

espécie humana pode criar novos meios, logo não se pode supor uma passividade frente às

modificações experimentadas, na medida em que o homem é um vivente capaz de existência, de

resistência, de atividade técnica e cultural em todos os meios.

O normal é um conceito ambíguo que tanto designa um fato capaz tanto de

descrição por recenseamento estatístico como por um ideal, princípio de apreciação, protótipo ou

forma perfeita. Assim, o conceito de patológico não é o contrário lógico do conceito de normal,

pois, a vida no estado patológico não é ausência de normas, mas presença de outras. Patológico é

o contrário de sadio.

Na trilha de seu pensamento, podemos afirmar que para o homem viver não é

somente vegetar e se conservar, é afrontar riscos e triunfar. A saúde é precisamente um certo

jogo de normas da vida e do comportamento. O que a caracteriza é a capacidade de tolerar

variações das normas as quais só a estabilidade das situações e do meio confere um valor

enganador de normal definitivo. Os humanos não são verdadeiramente sadios se não são capazes

de muitas normas, se ele não é mais que normal. A medida da saúde é uma certa capacidade de

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se submeter às crises para instaurar uma nova ordem, diferente da anterior. A saúde é o luxo de

poder cair doente e de se curar. Aqui, também, lembramos Nietzsche.

No ser vivo, observam-se fenômenos de autoconstrução, de autoconservação, de

auto-regulação, de auto-reparação. No caso da máquina a construção lhe é estranha e supõe a

engenhosidade do especialista, assim como a regulação, manutenção, reparação, etc. No vivente

a pluralidade de funções pode se acomodar na unicidade do organismo, mas não se pode

desconsiderar suas potencialidades. A vida é experiência, isto é, improvisações, utilização de

ocorrências, tentativa em todos os sentidos. “ ...la vie tolère des monstruosités. Il n’y a pas de

machine monstre” (Canguilhem, 1971, p. 118) nem patologia mecânica.

Para Canquilhem (1971), a totalidade do organismo não é equivalente à soma de

suas partes nem seu funcionamento se efetiva pela composição de automatismos complexos.

Considera que compreender o funcionamento do organismo é se inscrever na história humana

escrevendo a história humana na vida, sem desconhecer ou ignorar que os humanos produzem

cultura e são, portanto, irredutíveis à simples natureza.

A noção de meio, em razão de suas origens, tem sido entendida no seu sentido

estritamente geográfico e físico. No entanto, ao falarmos sobre as relações dos humanos com o

meio é preciso que se considere que a reação dos humanos à provocação do meio é muito

diversificada, podendo apresentar uma multiplicidade de soluções a um mesmo problema

colocado. O meio propõe sem jamais impor solução e certas possibilidades não são ilimitadas

num estado de civilização e de cultura determinado. Falar do humano é falar do homem coletivo,

esclarece Canguilhem (2000), esse homem que produz suas próprias necessidades e

possibilidades, ou seja, que se baseia no que é desejável tendo como referência o conjunto de

valores.

Assim, a relação entre o meio e o ser vivo tem caráter histórico, uma vez que o

homem é criador de configurações geográficas e torna-se um fator geográfico, o que mostra que

os humanos não conhecem meio físico puro. O meio próprio dos humanos é o campo de sua

experiência onde suas ações são orientadas e regradas pelos valores imanentes às tendências nas

suas múltiplas relações.

Como afirma o filósofo, o meio do ser vivo é também obra do ser vivo que se furta

ou se oferece eletivamente a certas influências (Canguilhem, 2000). Tal como Nietzsche,

considera o universo de qualquer ser vivo, ou seja, nossa imagem do mundo, como um quadro

de valores. Daí, afirmar que, um sentido, do ponto de vista biológico e psicológico, é uma

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apreciação de valores em relação a necessidades determinadas. O vivente está sempre num

movimento para dominar o meio e organiza-lo segundo seus valores de ser vivo. A vida não é

apenas submissão ao meio, mas instituição de seu meio próprio, estabelecendo valores no meio

e no próprio organismo.

Ao ser vivo nada se impõe, pois ele se caracteriza pela possibilidade de propor

coisas, segundo certas orientações. “Um vivant ce n’est pas une machine qui répond par dês

mouvements à dês excitations, c’est um machiniste qui répond à sés signaux par dês opérations”

(Canguilhem , 1971, p. 144).

O meio provoca o organismo a orientar ele mesmo seu devir. O que o meio oferece

ao ser vivo é função de sua demanda. Entre o vivo e o meio, a relação se estabelece como um

debate onde o vivo aporta suas normas próprias de apreciação das situações, onde ele domina o

meio e se acomoda. Essa relação não consiste essencialmente numa luta, numa oposição, o que

caracteriza o patológico. Vida que se afirma contra é vida já ameaçada, “sem suavidade, sem

doçura”. Vida sadia é vida confiante na sua existência, nos seus valores.

Numa perspectiva política e social isso significa que autoriza a ação ilimitada dos

humanos sobre eles mesmos por intermédio do meio. Justifica-se, aqui, o espírito de uma

renovação experimental da natureza humana. O super-homem nietzschiano?

Para Canguilhem (2000) inventar é criar a informação, perturbar os hábitos de

pensar, o estado estacionário de um saber. O meio cultural humano é um efeito histórico, um

sistema de significações e não um dado natural. Os sentidos da vida humana podem ser

cerceados na avaliação das modificações que a doença inflige ao vivente humano.

Destaca em Nietzsche sua afirmação de que o patológico e o normal são

homogêneos, uma vez que para esse último, o valor de todos os estados mórbidos consiste no

fato de mostrarem, com uma lente de aumento, certas condições que, apesar de consideradas

normais, nem sempre são visíveis no estado normal (Canguilhem, 2000). E, nesse aspecto,

parece trilhar na mesma direção de Nietzsche. As idéias de norma, normalidade, normalização

sinalizam o poder de instituição de relações normativas na experiência da vida e a problemática

do julgamento de valor. Ele se aproxima de Nietzsche quando considera que a filosofia é uma

crítica de todos as forma de avaliação. Todo julgamento é julgamento de valor. Ele apreende de

Nietzsche a não inocência dos conceitos.

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Uma norma só é possibilidade de uma referência quando foi instituída ou escolhida

como expressão de uma preferência e como instrumento de uma vontade de substituir um estado

de coisas insatisfatório por um estado de coisas satisfatório. As normas comparam o real a

valores, exprimem discriminações de qualidades de acordo com a oposição polar de um positivo

e de um negativo. Para apreciar o valor da regra é preciso que a regra tenha sido submetida à

prova da contestação, a regra não tem valor em si. Acompanhando Canguilhem (2000), não é

apenas a exceção que confirma a regra como regra, é a infração que lhe dá a oportunidade de ser

regra fazendo regra. Nesse sentido, a infração é não a origem da regra, mas a origem da

regulação. Propõe a condição de possibilidade da experiência das regras, que consiste em por à

prova, numa situação de irregularidade, a função reguladora das regras. É por seus desvios que se

reconhecem as normas, que são o que fixa o normal a partir de uma decisão normativa.

Quando o normal é considerado como índice de uma aptidão ou de uma

adaptabilidade é preciso indagar em relação a que circunstâncias e para que finalidade se deve

determinar a adaptabilidade e a aptidão. A norma, segundo ele, escapa da jurisdição do saber

objetivo, pois, não se dita cientificamente normas à vida. Na normatividade própria da vida há

um elemento subjetivo irredutível. Conforme Claude Debru, (1990, p. 113) “La philosophie de la

normativité, proche d’ une philsophie de la création”.

Canguilhem considera que para um ser vivo, o fato de reagir por uma doença a uma

anarquia funcional revela um fato fundamental, que é o da vida não ser indiferente às condições

nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de

valor, ou seja, que a vida é uma atividade normativa. Trata-se de um julgamento que aprecia ou

qualifica um fato em relação a uma norma que está subordinada àquele que institui normas.

Normal, dirá Canguilhem (2000), é normativo, que institui normas e, mas do que o

homem, é a própria vida que institui normas, que é condição de sua preservação e expansão e,

também, luta contra os perigos que a ameaça. Assim, a vida dita as normas que lhe permitem

manter-se e crescer e dita novas normas quando se vê ameaçada, por ex, através de normas

mórbidas.

As doenças são novas posturas da vida, novas formas de se expressar que revelam

novas possibilidades fisiológicas, são inovações. O patológico não pode ser deduzido

linearmente do normal. Patológico implica em pathos, sentimento direto e concreto de

sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. Não existe fato que seja normal ou

patológico em si. A anomalia e a mutação não são em si mesmas, patológicas. Elas exprimem

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Page 15: A Vida Como Ela e Maria Elizabeth Barros de BARROS

outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores, quanto à estabilidade, à

fecundidade e à variabilidade da vida, quanto às normas específicas anteriores, serão chamadas

patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes no mesmo meio ou superiores em

outro meio serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade e o

patológico não é a ausência de norma, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida

pela vida. Condições diferentes fariam surgir normas diferentes. A utilização de médias faz

desaparecer o caráter essencialmente oscilatório e rítmico do fenômeno vital.

Dessa forma, o doente é doente por só poder admitir uma norma, ele não é anormal

por ausência de norma e sim por incapacidade de ser normativo. A doença passa a ser uma

experiência de inovações positivas e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo. O

conteúdo do estado patológico não pode ser deduzido – exceto pela diferença de formato – do

conteúdo da saúde; ela é uma nova dimensão da vida. A doença é, ao mesmo tempo, privação e

reformulação. O doente deve sempre ser analisado em relação com a situação à qual ele reage e

com os instrumentos da ação que o meio próprio lhe oferece.

Cabe destacar que ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já

que o patológico é uma espécie de normal. Ser sadio significa não apenas ser normal numa

situação determinada, mas ser também normativo nessa situação e em outras situações eventuais.

O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal

momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas

em situações novas.

Saúde se mede pela normatividade, pela capacidade de fixar normas, e a vida não

está preocupada só em defender-se, limitando-se às normas que ela própria instituiu em

condições determinadas, mas expandir-se, enfrentando riscos e nesse enfrentamento instituindo

novas normas. Saúde não é só capacidade de evitar catástrofes, mas também a de criar novas

normas arriscando a própria vida, o que nos distancia da noção de saúde como estabilidade. O

normal é aquele que sente que pode arriscar porque tem a plasticidade necessária para fazê-lo.

Faz parte da saúde poder abusar da saúde. É o doente e não o são que economiza, pois ele tende a

reduzir suas normas e estabilizar suas condições de vida. A saúde seria a margem de tolerância às

infidelidades do meio

Canguilhem (2000) concluirá que a norma não é um fato, mas um valor estabelecido

pela vida em seu favor e, portanto, não se trata de um valor estatístico ou social. A normalidade é

declarada a título de valor, sob a característica de uma margem ou de uma capacidade de

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superação das normas. O campo teórico-político formulado por Canguilhem afirma uma teoria

do vivo em devir.

Como Nietzsche, fala de uma filosofia da ação, que porta uma idéia da vida segundo

a qual ela é preferência e exclusão, o inverso de uma relação de indiferença com o meio.

Segundo François Delaporte (1990, p. 230), “Canguilhem parle du vivant comme Nietzsche

parlait de la musique”.

Dominique Lecourt (1990) considera que a noção de individualidade em

Canguilhem, nos seus últimos trabalhos, tem uma tonalidade nietzschiana: preserva-se de

qualquer ontologia substancialista, o indivíduo humano se encontra dessubstancializado. A

noção de indivíduo não terá mais um papel central e totalizante das primeiras obras. Referindo-se

a Simondon, a noção de indivíduo aparece como resultado de um processo de individuação, de

forma que seu princípio não está no resultado que a forma adquire e sim no pré-individual e no

transindividual; sua normatividade se afirma como uma capacidade de criar novas normas que se

instituem numa relação de forças que o atravessam.

Segundo a mesma perspectiva, a saúde se encontra redefinida no sentido mais

audacioso da ‘grande saúde’: não mais como simples margem, mas como risco afirmado e

assumido pelo indivíduo de ultrapassar seus limites para se abrir novos horizontes. O meio

humano se encontra repensado. “Une éthique du risque se profile, en franche opposition à toute

morale de l`equilibre et de la conservation” (Lecourt, 1990, p. 268).

Recusa a idéia que o pensamento e o espírito reduzem-se a uma operação ou

processo do cérebro. O cérebro não é uma máquina que trata a informação. O ser vivo está

sujeito a uma experiência através da qual ele é exposto, de maneira intermitente e permanente, à

possibilidade do sofrimento e do mal viver. Nesta perspectiva o vivente representa

simultaneamente duas coisas: inicialmente o indivíduo ou o ser vivo, apreendido na sua

singularidade existencial, mas também o que podemos chamar o vivente do vivente, que é esse

movimento polarizado da vida que em todo vivente, se desenvolve ao máximo “...il est en lui

d`etre ou d’exister” (Lecourt, 1990, p. 287).

Este vivo se qualifica pelo fato de que ele é portador de uma experiência. Para

Canguilhem (2000), a ciência ao invés de ficar se preocupando em procurar definir

objetivamente o normal, deve reconhecer a original normatividade da vida. Ou seja, as normas

não são dados objetivos e, como tais, diretamente observáveis, os fenômenos que as viabiliza não

são estáticos, de uma ‘normalidade’, mas dinâmicos, de uma ‘normatividade’.

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Experiência tem aqui o sentido de uma impulsão que tende a um resultado sem ter

garantias de se manter, é o ser errático do vivo, sujeito a uma infinidade de experiências que no

caso do vivo humano é a fonte positiva de todas suas atividades. Não é a vida que é submissa às

normas que se impõe sobre ela do exterior, mas são as normas que de maneira completamente

imanente, são produzidas pelo movimento da vida. Há uma essencial normatividade do vivo,

criador de normas.

A vida está muito longe de uma indiferença em relação às condições que lhe são

impostas. Há normas sãs e patológicas, que são de naturezas diferentes. É a vida que faz do

normal um conceito de valor e não um conceito estatístico. Viver, mesmo para uma ameba, diz

ele, é preferir e excluir que é o ponto de vista da normatividade.

Assim, se a saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio, cabe

afirmar que sua infidelidade é exatamente seu devir, sua história. Nada acontece por acaso, mas

tudo ocorre sob a forma de acontecimentos. A vida não é, portanto, para o ser vivo uma dedução

monótona, um movimento retilíneo, ela é debate com um meio em que há fugas, vazios e

resistências inesperadas. As categorias de saúde e doença só são reconhecidas no plano da

experiência. Enfim, o organismo vivo não está jogado num meio ao qual ele tem que se dobrar,

mas, ao contrário, ele estrutura seu meio ao mesmo tempo em que desenvolve suas capacidades

de organismo.

A normatividade é o sentido humano. O vital prima sobre o mecânico, e a vida é um

conflito sempre aberto, gerador de toda experiência e de toda história. As tentativas de

modulação que visam a homogeneização das formas de existência, de colocar camisas-de-força

no seu caráter imprevisível, criacionista e normativo não se efetivam com tranqüilidade. É

preciso estar sempre criando alianças com práticas que desativem essas máquinas que buscam

sobrecodificar a vida, inventando outras cenas, ativando forças de invenção na contramão das

tentativas de seu esvaziamento vital, do seu poder crítico e normativo. Na maneira como nos

colocam o problema do processo vital Nietzsche e Canguilhem nos sinalizam a importância de

ter como meta o contínuo projeto instituinte de criarmos e recriarmos a nós mesmos e ao mundo,

quando temos a vida como princípio ético.

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NOTAS:

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i Subjetividades astuciosas é uma expressão que utilizamos em outro texto para nos referir a processos de intensificação da força de invenção que favorece a construção de formas singulares de existência em consonância com o processo vital. È invenção de novas possibilidades de vida, que divergem em relação aos interesses dominantes na sociedade.