A volta do cigano Portal - fundaj.gov.br · 7 Conheço Sebastião ... ou menos como se ele dissesse...

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CONSELHO EDITORIAL

PRESIDENTE

Luiz Otávio de Melo Cavalcanti

COORDENADORA DA EDITORA MASSANGANA

Rosângela Mesquita

Ana Elyzabeth de Araujo FaracheAnco Márcio Tenório Vieira

Isaltina Maria de Azevedo Mello GomesPatrícia Maria Uchoa Simões

Rita de Cássia Barbosa de Araújo

Organizador: Paulo Gustavo

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ISBN 978-85-7019-660-6@ 2016 Do autor

Reservados todos os direitos desta edição.Reprodução proibida, mesmo parcialmente, sem autorização da Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco.

Fundação Joaquim Nabuco | www.fundaj.gov.brAv. 17 de Agosto, 2187 – Ed. Paulo Guerra – Casa ForteRecife, PE – CEP 52061-540 | Telefone (81) 3073.6363Editora Massangana | Telefone (81) 3073.6321Telefax (81) 3073.6319

Presidente da Fundação Joaquim NabucoLuiz Otávio de Melo CavalvantiCoordenadora da Editora MassanganaRosângela MesquitaProjeto Gráfico da Capa / Editoração EletrônicaAntonio LaurentinoCréditos das FotosAcervo Sebastião Vila Nova; Acervo da Fundação Joaquim Nabuco/Cehibra; Acervo pessoal do organizadorRevisãoEstagiários: Layanne Lopes e Mariana Loreto

Foi feito depósito legal. Impresso no Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Fundação Joaquim Nabuco)

G982v Gustavo, Paulo (Org.)A volta do cigano: crônicas, artigos e entrevistas literárias / Paulo Gustavo. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco: Editora Massangana, 2016.160 p.: il.ISBN 978-85-7019-660-6

1. Literatura brasileira, crônicas, poesia. 2. Entrevistas. 3. Música. 4. Vila Nova, Sebastião. I. Título. CDU 869.0 (81)

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Conheço Sebastião Vila Nova desde, seguramente, a segunda metade dos anos 1960. Guardo nítida lembran-ça dele como seminarista, muito magrinho e branquinho, vestindo uma batina branca. Isto, com toda probabilida-de, ainda em Olinda, em 1966. Logo, foi antes da transfe-rência do seminário e dos seminaristas para a “regional” de Camaragibe, prédio muito amplo, construído, com vultosos investimentos norte-americanos, em terreno doa-do por uma família muito católica e muito rica. Que Vila (como normalmente o chamo) estivesse de batina, repre-senta indicação certeira de que a chamada Teologia da Libertação, implicando num movimento generalizado de “mundanização” do Catolicismo1, ainda não estava muito avançada. Mas, já nem digo nos próximos anos, mas nos próximos meses, a tendência libertária ficaria cada vez mais forte. É difícil imaginar, cerca de 50 anos depois, o ímpeto desse movimento.

Em 1966, nada estava ainda muito definido. Pouco tempo depois, eu ouviria o reitor do Seminário declarar, sem alterar o tom da voz, que os seminaristas não esta-vam mais rezando. Isto ele dizia como se nada tivesse a ver com aquele processo, que já nem considero “mundani-zação”, mas puro e simples “desencantamento”. Era mais ou menos como se ele dissesse “Se não têm pão, comam os bolos”. Gilberto Freyre, por aquele tempo, gostava de destacar, inclusive em artigos de jornal, que não podia ha-ver religião sem alguma forma de encantamento2. E, se esse encantamento equivaler, como acho muito possível, ao que

Crônica e MetafísicaSebastião Vila Nova:

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Marx chamava “ópio do povo”, tanto pior para a religião, ou tanto pior para o marxismo. Parafraseando o Auto da Compadecida, mais do que isto, ao menos por enquanto, eu não sei nem quero saber, eu só sei que é assim.

Vila não passou mais do que alguns meses no se-minário. Aproveito a ocasião para enunciar minha tese básica sobre meu amigo3. E utilizo a palavra de Rubem Braga, comentado por Vila Nova, e, sobretudo, retomada por Paulo Gustavo, na introdução à presente coletânea. A palavra é cigano, à qual, na sequência de Paulo, atri-buo um significado psicológico e existencial. No sentido em que a adoto, é Vila Nova inteiro que busco descre-ver. Paulo se refere ao “intelectual versátil”. Fico de ple-no acordo e acrescento que essa versatilidade pertencia largamente ao espírito do tempo. Predominava ainda o projeto do “homem culto”, capaz de bem dissertar sobre vasta gama de assuntos, sem submeter-se a fronteiras rí-gidas entre as diversas disciplinas, pelo menos dentro da área das assim chamadas “ciências humanas”. No sentido mais favorável que pudermos dar a este termo, prevale-cia um certo diletantismo4. Para mim, exemplo eminente de diletante foi, em Pernambuco, repercutindo pelo Brasil inteiro e no exterior, o muito nosso Gilberto Freyre5. De estudos pós-graduados, Gilberto não tinha mais do que um ano de curso, um mestrado, em História, e não em Sociologia ou Antropologia. É verdade que isto aconte-ceu numa universidade de enorme prestígio internacional, Columbia University in the City of New York, como se chama oficialmente. Gilberto era um diletante, ou semidi-letante, e aí se escondia sua força criativa6. Creio que até mesmo no Recife tem havido mudanças nessa concepção do intelectual plurivalente. Mas este ainda foi o modelo seguido por Vila Nova, como foi, e é, também o meu7.

Mas é evidente que estou aqui usando Gilberto Freyre como metáfora de Sebastião Vila Nova. Voltemos

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ao “intelectual versátil” de Paulo Gustavo. Vila, conside-rando-se sua sensibilidade e o conjunto dos seus dons, está situado, não digo entre dois mundos, ou em dois mundos, mas em vários mundos. E isto, sem prejuízo de uma uni-dade fundamental, que não direi que se dispersa, porém antes que se refrata nesses mundos vários. Tanto tem ele de artista, ator, compositor, intérprete, poeta, como de pensador, teórico ou sociólogo. E, de tudo que eu sei, por-que me contaram o próprio Vila Nova ou seus familiares (sem falar de minhas próprias lembranças8), foi a arte que veio primeiro. Meu amigo foi um tanto menino-prodígio, trabalhando em novelas radiofônicas9.

Mais de uma década depois, houve (embora eu não re-corde exatamente o ano, ou os anos) sua colaboração com o Teatro Popular do Nordeste, dirigido por Hermilo Borba Filho e tendo como atriz principal a muito jovem Leda Alves, grande dama do teatro e da cultura em Pernambuco. Aí, já não se tratava do Vila Nova ator, mas do compositor de canções e de refrãos. Para O Cabeleira, peça de Sylvio Rabello – acho que estes foram a peça e o escritor –, Vila Nova compôs um refrão, terminado em “Doutor Crispim”, que ainda hoje se repete em minha cabeça.

Note o leitor que não estou enveredando pela obra poética nem sociológica de meu amigo e compadre10, que poderia me levar a digressões intermináveis, a Mil Histórias Sem Fim, conforme o título de um livro de Malba Tahan11,

com jeito de Mil e Uma Noites. Na verdade, o que eu mais quero é desenvolver um pouco mais minha tese básica so-bre Vila Nova. O Vila Nova cigano. O Vila Nova que po-deria fazer seus os versos de Mauro Mota, “procuro-me, e não me acho, não sei para onde fui”. No seminarista, compositor, poeta, sociólogo, professor, cronista, escritor at large, um tanto como Gilberto Freyre, sem precisar, ou sem querer, definir-se como escritor mais disso ou mais da-quilo, esconde-se o Vila Nova, ao qual se aplica o ditado

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de Aristóteles, “A alma é, de certa maneira, tudo”. A alma pode apreender tudo, porque de certo modo é tudo, através do seu conhecimento potencialmente infinito. E isto ultra-passa o nível de uma simples banalidade escolástica, ainda mais quando pensamos noutro ditado do mesmo autor: “O conhecedor, no ato de conhecer, é o próprio conhecido, no ato de ser conhecido.” As aplicações deste último dita-do são vastíssimas, inclusive nos domínios, estranhamen-te análogos, do erotismo e da mais alta mística, conforme podemos verificar no Cântico dos Cânticos e, talvez ainda mais (embora mais sutis), nos poemas de São João da Cruz.

Eu diria que o cigano Sebastião Vila Nova, o que afinal não é mais do que demasiadamente humano, esta-va em potência (continuo aristotélico) para muitas coisas, muitos lugares, muitas preferências intelectuais, muitas maneiras de exprimir-se. Sua história de vida, o espírito do seu tempo, não o conduzia a opções muito determinadas e bem recortadas. Daí um exemplo relativamente acessível para quem ler o volume organizado por Paulo Gustavo. Cronista ou articulista? O próprio Vila diz que é articulis-ta. Mas, neste ponto, eu me encontrando em acordo pro-fundo com Paulo Gustavo, não creio que nosso amigo, quando faz afirmações deste gênero, quisesse ser tomado ao pé da letra. Acho que ele ficaria até mesmo contrariado com uma interpretação literal de sua despretensiosa de-claração. Tomemos o caso de Se Eu Fosse Cronista, que, se não for o ponto mais alto de todo livro, chega muito perto. Sob o pretexto de explicar porque não é cronista, mas, sim, articulista, Vila Nova, certamente consciente de onde queria chegar (naquele tempo se dizia “fazer char-minho”), escreve uma das crônicas mais bonitas que me lembro de ter lido, não só de Vila, mas de qualquer autor.

Penso que meu amigo se revela muito nesse texto. Ele se refere ao cronista que se ocupa do “que não foi, mas poderia ter sido, do que foi e poderia ter sido diferente”.

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Estando num lugar, Vila sabe que poderia, naquele mes-mo instante, estar em outros. Ora, se estar em determinado lugar pode ser uma experiência alegre, a alegria se mistura com a tristeza de não estar noutro lugar. Fazer uma coisa implica no abandono de outra. Eu dificilmente me lembra-ria de ter lido uma só crônica de Vila Nova, incluindo os “artigos”, que não tivesse uma ponta de tristeza. Se esta percepção se aplica de modo especial a meu amigo, trata-se também de uma regra do gênero. O cronista se ocupa com o tempo: e, se o tempo se dissolve a cada instante, para todo o sempre, sua evocação, por mais felizes que tenham sido os momentos que passaram (e por isto mesmo), não pode deixar de suscitar a amargura do que se acaba.

Muitas vezes bem recôndito, existe o sentimento de culpa, a tristeza, quase o desespero de não termos feito ou sido o que poderíamos ter feito ou sido. E aqui atingimos uma contradição fundamental: se a alma, isto é, o ser hu-mano, através de sua infinita capacidade de conhecer e de amar, é, de certo modo, todas as coisas, essa totalidade só é entrevista, se tanto, “em espelho, como em enigma”12, em raras formas de transe místico.

O outro lado da contradição é que, dessa totalidade, cada um de nós só consegue lidar com partes muito pe-quenas e, ainda assim, umas em conflito com as outras. Eu não sei se fale mais em grandeza de alma, na virtude, tam-bém muito aristotélica da magnanimidade, ou na virtude muito cristã da humildade, necessárias para que aceitemos os limites, a contingência, a precariedade do que somos e, não menos, do que não fomos e jamais seremos.

Mas sou eu que, inspirado nos textos de Sebastião Vila Nova e nas considerações de Paulo Gustavo, estou me detendo em considerações amargamente metafísicas. Porque, se for verdade que não há crônica de Vila sem al-guma ponta de tristeza, ainda menos há as que não conte-nham alguma forma de humor. De bom exemplo sirvam as

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crônicas-artigos sobre o encontro e entrevista com James Mason, o ator inglês, que terminam com o misterioso desa-parecimento da personalidade-assunto, o autor permitindo que muitas dúvidas pairem na cabeça do leitor.

Roberto MottaPh.D. em Antropologia pela Universidade de ColumbiaCavaleiro das Artes e das Letras da República Francesa

1 Para usar a expressão de alguns analistas, entre eles Karl Löwith. 2 O que corresponde exatamente à minha própria opinião. 3 Nossa amizade era cheia de altos e baixos, afastamentos e reconciliações.4 Um autor alemão, Nicolaus Sombart, referindo-se ao Conde de Saint-Simon, socialista utópico e um dos fundadores da Sociologia, dizia, em tonalidade elo-giosa, que este nunca perdeu a graça do diletante.“Die Grazie des Amateurs nie verlor.”5 Tem muito de irônico que alguns profissionais da mais estrita observância, em São Paulo, nos Estados Unidos e até mesmo no Recife, passem ou tenham passado grande parte da vida tentando comentar ou refutar as teses do nosso diletante.6 Para ser sincero, eu não saberia dizer até que ponto Gilberto foi um grande criador por causa do seu diletantismo, apesar desse diletantismo, ou se por uma combinação do positivo e do negativo.7 Sobre mim, mais forte do que a de Gilberto ou do que qualquer outra, foi a influência de Padre Daniel Lima, que eu, por muito tempo, considerei o homem mais inteligente do mundo.8 O povo diz que o “diabo sabe das coisas, não por ser diabo, mas por ser velho”. 9 Se a minha memória não me trai e, portanto, não tome meu leitor esta informa-ção como dogma de fé, Vila emprestou a voz a personagens infantis ou juvenis na montagem de Os Miseráveis, versão radiofônica do romance homônimo de Victor Hugo. A novela, dirigida por Joel Pontes em 1950, fez sensação. Eu me lembro que às vezes não conseguia dormir, tão impressionado eu ficava. Mas se me lembro da novela, não me lembro de Vila “por aquél entonces”. Não é im-possível que eu esteja fazendo alguma confusão. “Se non è vero, è ben trovato”. 10 Vila e Teresa me deram a honra de convidar-me para padrinho da encanta-dora Mariana.11 Malba Tahan era o nom de plume de Julio Cesar de Mello e Souza, nascido no Rio de Janeiro e, por puro acaso, falecido no Recife em 1974. Li enormemente os contos “árabes” desse autor, entre infância, adolescência e além.12 São Paulo, 1ª epístola aos Coríntios, 13:12-13.

Notas

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Sebastião Vila Nova sonhava reunir suas crônicas e artigos de jornal num livro previamente intitulado O coração no porto. Naturalmente, ele mesmo escolheria os textos. O livro seria seu, isto é, de sua própria e exclu-siva autoria. O destino quis diferente, como tantas vezes costuma acontecer. Coube a mim, como amigo e seu co-lega da Fundação Joaquim Nabuco, organizar o presente livro, um privilégio por diversos motivos. Não é, claro, a coletânea sonhada pelo autor e, assim, não sendo, foi por fidelidade ao próprio Vila Nova que resolvi dar-lhe um outro título – A volta do cigano – que, acredito, seja tão rico de sentido quanto o título imaginado por ele, até porque remete a uma crônica homônima de sua autoria e à sua volta como escritor depois do já longo silêncio que lhe foi lamentavelmente imposto por uma enfermidade de cunho neurológico.

Sua volta é igualmente uma homenagem ao intelectual versátil e ao homem cordial que soube encarnar. Uma homenagem que divido com a instituição que ele amava – a Fundação Joaquim Nabuco – e em especial com a minha colega Rita de Cássia Barbosa de Araújo, historiadora social, que tanto me estimulou na realização deste trabalho.

Ao compulsar o arquivo de Vila Nova – hoje abri-gado na Coordenação Geral de Estudos da História Brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade (Cehibra) da Fundaj –, tentei selecionar não os textos que poderiam

O Cronista Vila Nova

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rastrear sua atuação profissional no campo da sociologia (o que refugiria totalmente à minha competência!), mas os textos que se voltam para as áreas de sua paixão: as artes, a música e sobretudo a literatura. Não obstante isso, dei-xei que entrassem na seleção alguns poucos textos especi-ficamente conjunturais, onde o olhar do sociólogo revela ou deixa entrever as angústias e problemas do seu tempo histórico e social.

Vila Nova escreveu suas crônicas ao longo da década de 1980. Foram anos – quem não sabe? – decisivos para o Brasil de hoje, a começar pela fundação de um partido político que tocaria cada vez mais a sensibilidade política nacional ressacada e ressequida pelo arbítrio da ditadura militar: o Partido dos Trabalhadores. Outros eventos, lu-tas e conquistas estavam reservados aos brasileiros daquele turbulento período: a campanha das Diretas Já, em 1984; a morte desoladora de Tancredo Neves; o frágil Governo José Sarney; a instabilidade econômica; a promulgação em 1988 de uma nova e inspiradora Constituição; a eleição de Fernando Collor para presidente da República. No plano internacional, a década seria concluída com a surpreen-dente Queda do Muro de Berlim. Vivíamos numa monta-nha-russa. De modo retrospectivo, é como se víssemos o Brasil um tanto desajeitadamente lançar-se às suas utopias. Apesar das bênçãos do papa João Paulo II em sua visita ao país em 1980, nada parece ter sido tranquilo para o Brasil daquele período. Tempos difíceis e interessantes para todos e, em especial, para aqueles que, como Vila Nova, se davam “ao luxo” de pensar e de desejar um país mais justo, mes-mo formando nas fileiras de Max Weber e não nas hostes de Karl Marx, estas tão presentes quanto multifacetadas na então comunidade intelectual e universitária do país. Como sociólogo atento e alinhado à brasilidade proposta por Gilberto Freyre, Vila Nova preferiu ficar longe dos ra-dicais de parte a parte e dos messiânicos que bem conhecia e até estudou. Sua intuição favoreceu o cronista que soube

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despertar em si mesmo. Vale dizer: o cigano, o poeta, o “homem que, havendo Deus lhe dado tudo,/ não acampou em parte alguma”, como escreveu Jorge de Lima.

Também o cronista, como o cigano, no dizer de Rubem Braga – o grande mestre do gênero –, acampa, mas logo desmonta a sua tenda e segue adiante. Seu coração parece nunca chegar ao porto ou não há porto para o seu coração. Daí talvez o sonho de meu amigo em imaginar um coração no porto. Mas o cronista não tem sossego: seu “nomadismo”, como entreviu mestre Rubem Braga, é sua própria razão de ser. Como o poeta, ele também erra pelos desvãos da realidade, ele também encontra humildes e reveladoras “moedas perdidas”, sem esbarrar nos “ele-fantes” – “tão fácil como descobrir continentes”, como sugeriu Mário Quintana em antológico poema.

Penso que as cinquenta crônicas selecionadas pode-riam ser inscritas em quatro grandes categorias: as que abordam temas literários; as que tratam de música (e aqui devo lembrar que Vila também foi compositor e um apai-xonado por violão); as que falam de arte e de artistas. Bem, e a quarta categoria? Esta seria constituída de temas diversos, distintos dos predominantes. Não obstante esse viés classificatório, é de se notar que várias de suas crô-nicas misturam esses grandes temas e, claro, não preten-dem qualquer pureza de estilo ou de assunto. Longe disso. Quanto ao estilo ou à forma, veja-se logo, no próximo parágrafo, a sensata e correta distinção que Vila Nova faz entre os gêneros artigo e crônica.

Lúcido e lido como poucos em seu ofício de escre-ver para a imprensa, Vila Nova, na crônica Se eu fosse cronista, faz uma distinção que, em anos mais recentes, vem como que se apagando na cabeça de muita gente boa. Engana-se, porém, o meu amigo, ao se dizer apenas arti-culista. Vejam o que escreveu no primeiro parágrafo da citada crônica.

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Não sou cronista. Articulista – o que é coisa muito diferente – é mesmo o que sou. Cronista fala da vida, preferencialmente da sua. Articulista não fala de gente, fala de ideia. Cronista não tem vergonha de falar de suas próprias emoções nem das emo-ções alheias. Cronista faz do sentimento matéria para o seu espaço. Cronista é pessoal, é passional. Articulista não. Articulista é frio e impessoal. Está acima – ou pretende estar – das suas próprias emo-ções e das emoções alheias. Dos sentimentos tam-bém. Por isto é que digo que não sou cronista. Sou articulista.

No trecho acima fala o articulista, e fala bem. Mas o autor (descontada a autoironia) se engana com relação a si mesmo, pois também foi irremediavelmente cronista. Dentre seus textos para a coluna que assinou durante a década de 1980 no Diario de Pernambuco, tanto se des-tacam os artigos quanto as crônicas. Mas não foi possível a Vila Nova escapar do seu próprio lirismo: nele embe-beu sua prosa. Todo o parágrafo inicial acima não é mais que, sob certo ponto de vista, um exercício de modéstia. De minha parte, estou convencido de que Vila Nova foi realmente cronista e grande cronista. Sabia muito bem, como se entrevê na citação (e se verá em várias crônicas), o que caracterizava o gênero e amava e lia continuamente os mestres que no século 20 fizeram da crônica o que ela é – um rico e plural patrimônio da literatura brasileira: Rubem Braga, Drummond, Vinicius, Nelson Rodrigues, Antonio Maria, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Não é preciso ser crítico literário para rastrear nas crôni-cas de Vila Nova os tijolos e o alicerce que foi colher junto a esses mestres nacionais do gênero. No gosto e no tempe-ro final, Vinicius de Moraes e Rubem Braga é que foram inelutavelmente os seus grandes modelos e gurus. É deles que descende em linha direta.

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O que alimenta o cronista Vila Nova não é apenas o cotidiano e sua conversa com a rua e a praça. Também o alimenta o diálogo com os poetas e escritores de sua predileção, portanto, com a subjetividade que aguça o olhar diante do real. Nas crônicas selecionadas, desta-cam-se alguns desses escritores “eleitos”, a exemplo de Dostoievski, Isaac Singer, Mário de Andrade, Nabokov. Mas isso sem descurar de músicos da Bossa Nova, do Quinteto Armorial ou de compositores pernambuca-nos, como Getúlio Cavalcanti, João Santiago e Capiba. Sem descurar de artistas plásticos, como João Câmara, Anchises e Guita, dentre tantos outros que cita e admira.

Num outro diapasão – no modo “articulista” de es-crever –, está presente o sociólogo em busca de respostas e de compreensão. O sociólogo que, sob a influência de Gilberto Freyre, vai se deter criticamente ou se inquie-tar ante os antagonismos brasileiros e as contradições do seu tempo social; a inquirir, por exemplo, sobre o lugar do poeta e do intelectual na sociedade, bem como sobre o lugar e os problemas dos velhos e da infância pobre e marginalizada. Rigorosamente falando, como vimos, vá-rios desses textos em que o sociólogo se faz ouvir não são crônicas, são de fato artigos, mas que nesta antologia con-fraternizam com suas irmãs quase siamesas: as crônicas.

Voltemos à literatura e, em especial, à página li-terária que Vila Nova soube tão bem escrever ao fazer, instado pelo caderno Panorama Literário, do Diario de Pernambuco (então editado por César Leal e Marcus Prado), uma série de entrevistas com importantes escrito-res brasileiros do seu tempo. Compulsando seu arquivo de recortes de jornal, pude me deparar com oito entrevistas literárias com importantes autores nacionais. Pensei que seria uma pena não anexá-las às suas crônicas – afinal, a seu modo, também essas entrevistas são a crônica de uma época e um registro notável do pensamento de escritores,

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como Josué Montello, Haroldo Bruno, Cassiano Nunes, José J. Veiga, Silviano Santiago, Edilberto Coutinho, Paulo de Carvalho Neto, todos eles bem atuantes na dé-cada de 1980. Sem falar na entrevista que lhe concedeu o grande pesquisador da cultura popular Liêdo Maranhão, tão do Recife e do povo pernambucano, que para o nosso entrevistador foi “um autêntico e refinadíssimo etnólogo, embora à la diable”.

Duas décadas e meia nos separam cronologicamente da publicação em jornal das crônicas de Vila Nova. Mas delas nada nos separa se dermos não só uma volta no porto do coração – onde batem em ritmo forte o lirismo, a subjetividade e uma certa ternura no modo de olhar o cotidiano –, mas também uma volta ou um passeio pela memória recifense e pelo que do passado ainda nos mira como alvo ou continuidade da aventura humana. Esta an-tologia é uma tentativa, ainda que modesta, de que a arte do escritor Vila Nova permaneça viva e vibrante como ele mesmo o foi quando escreveu suas crônicas.

De minha parte, que convivi cotidianamente com ele na Fundação Joaquim Nabuco, quero concluir dizendo que, ao ler e reler suas crônicas e artigos, parece que es-tou a ouvi-lo com sua voz de barítono, seus grandes olhos perscrutadores, sua gargalhada de menino e o seu riso tão maroto quanto fraterno, nos quais logo se adivinhavam o dionisíaco e o erudito, o mestre e o boêmio, o cigano que passava... O cigano cuja sombra se confunde hoje com a própria saudade de um belo tempo.

Paulo GustavoMestre em Teoria da Literatura,

membro da Academia Pernambucana de Letrase servidor da Fundação Joaquim Nabuco

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SUMÁRIOCRÔNICAS E ARTIGOS 21A lição de Drummond 23A literatura e a vida do escritor 25A propósito dos escritores de um distante país 27A vaca e o leão 29A volta do cigano 31A voz dos subúrbios 33Amor e justiça 34Anchises 36Arte e crise 38As razões do poeta 39Bossa-Nova: trinta anos 41De música e de praças 44De poetas e de poesia 46De presentes 48De verão e de sol 49Desculpa, Salomão 51Do santo e do nome dele 52Doistoievski, ainda e sempre 54Eu, Copa etc. 56Existe uma vanguarda musical brasileira? 58Fora com o leão! 59Getúlio e a música 62Getúlio e o povo 64Guita 65Intelectuais, trombadinhas e trombadões 67Isaac Bashevis Singer: poesia e mística 69João Santiago 71Macunaíma revisitado 73“Margaridas” 75Mason e eu 77

Nabokov e a vertigem da poesia 79No coração dos homens 81No Maxime 83Noturnamente Maria 85O Menino Jesus brinca de Carlitos 87O poeta e a crise 89O poeta Maiakóvski está triste 91Pacotes 92Por causa da noite 94Por quê? 96Por uma utopia 98Porque é brasileiro o Brasil 100Quinteto Armorial e a música brasileira 102Se eu fosse cronista 104Sucessos do Pina 106Tancredo Neves e a consciência nacional 109Tempo de adeus 111Velhos 112Viva Capiba! 114Vivamos! 116

ENTREVISTAS LITERÁRIAS 119Cassiano Nunes 121Edilberto Coutinho 126Haroldo Bruno 131José J. Veiga 135Josué Montelo 138Liêdo Maranhão 143Paulo de Carvalho Neto 148Silviano Santiago 153

FOTOS 159

SOBRE O AUTOR 163

CRÔNICAS E ARTIGOS

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A lição de DrummondNo próximo dia 31, o poeta Carlos Drummond de

Andrade estará completando seus oitenta anos. Por esta razão é que resolvo desencavar da memória uma antiga conversa que tive com o poeta de Itabira, a respeito da procura da poesia, o que vem a ser verdadeira anti-home-nagem, dada a sua conhecida discrição de anacoreta. Mas tenho certeza de que o grande artista brasileiro há de per-doar a vaidade do articulista de província que não resiste em revelar o conteúdo de uma inesquecível conversa de fim de tarde, em frente ao mar de Copacabana.

— Qual o papel dos acontecimentos da existência cotidiana na realização da poesia?— Não faças versos sobre acontecimentos.— ?— Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os inci-dentes pessoais não contam.— E os sentidos?— Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.— E os sentimentos?

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— Não me reveles teus sentimentos, que se preva-lecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.— E a terra da gente, a cidade onde a gente vive?— Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem: rumor no mar, nas ruas, junto à linha de espuma.— E a natureza?— O canto não é a natureza... — E a solidariedade humana?— ... nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.— E a infância, poeta?— Não recomponhas tua sepultada e merencória in-fância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.— Onde, então, poeta, buscar a poesia e o poema?— Penetra surdamente no reino das palavras. Lá es-tão os poemas que esperam ser escritos. Estão para-lisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio.— E o artesanato da poesia?— Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua for-ma definitiva e concentrada no espaço.— Quer dizer, poeta, que a palavra...

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— Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te per-gunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres: trouxeste a chave?— Mas a palavra... a palavra, poeta...— Repara: ermas de melodia e conceito, elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.— Ah, poeta, mas lutar com palavras...— Lutar com palavras é a luta mais vã.

Foi há muito essa conversa, numa tarde fria do Rio de Janeiro, foi há muito... Mas que alegria saber que, onde quer que ela esteja, a poesia existe! Que grande alegria saber que, a qualquer momento, a gente pode conversar com o poeta Drummond! Salve, Carlos Drummond de Andrade!

Diario de Pernambuco, 28 de outubro de 1982

A literatura e a vida do escritorQue a literatura de ficção se alimenta da vida, da ex-

periência existencial do escritor, é verdade que talvez não precise ser demonstrada: Proust retirou da sua experiência mundana a matéria dos seus romances; Hemingway fez de suas aventuras a “carne” do seu “guisado” literário; Dostoievski valeu-se da sua experiência de jogador para compor um dos seus romances; e os exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito. Mas Dostoievski, ao que se sabe, jamais matou nenhuma velhinha, ao contrário do seu conhecido personagem. E as irmãs Brontë? O que se sabe é que viveram a mais recatada e desenxabida das existências.

Que significa afirmar que a literatura depende da experiência do escritor? Que este só pode falar do que

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experimentou diretamente? Que o critério de avaliação da obra de ficção deve ser o da medida em que esta é transcrição da existência do escritor? Há quem acredite neste equívoco ultimamente estimulado pela literatura dos Bukovskis e Kerouacs da vida. O que seria, por exemplo, da obra de Proust sem a sua excepcional capacidade de penetração empática da experiência alheia? Que seria, afi-nal, da literatura sem a empatia e a imaginação transfi-guradora do artista literário? O equívoco da concepção relatorial da ficção, resultada, ao que parece, da reação saudável à literatura desvinculada da existência ou, para usarmos a expressão mais do que gasta, alienada. Daí a li-teratura chamada confessional, que teve em Henry Miller o seu mais significativo representante.

Entre o autor de Trópico de Capricórnio e Bukovski – para nos limitarmos a um único exemplo da concreti-zação do equívoco da concepção relatorial da literatura – a distância é enorme. Mais do que simples e superficial registro da experiência existencial do escritor, a obra de Miller é reflexão metafísica em torno da condição huma-na. Entende-se que a reação a uma literatura “sem vida”, beletrística, ornamental, descomprometida com a existên-cia, tenha gerado esse tipo de contrafação da literatura, segundo a qual só é boa ficção aquela em que o autor nada faz mais do que relatar os fatos da sua existência. E se essa existência fugir ao padrão do homem comum, como é o caso do carteiro-escritor, assim como de Burroughs, melhor ainda. Mas já é tempo de recuperar a empatia e a imaginação, sem a qual não pode haver literatura uni-versalmente válida, não apenas como manifestação estéti-co-literária, mas, do mesmo modo, como reflexão sobre a condição humana, que, afinal de contas, é o que termina sendo toda ficção digna do nome. E é precisamente por resultar do espanto do escritor diante do mistério da exis-tência e do convívio humano – matéria fundamental do

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escritor – que a literatura é antes tentativa de superação desse espanto e, portanto, portadora de uma inevitável dimensão metafísica. Ah, a inevitável metafísica! Que li-teratura pode passar sem ela? Só a meia literatura. A dos Bukovskis, dos Burroughs, dos Kerouacs.

Diario de Pernambuco, 5 de outubro de 1984

A propósito dos escritores de um distante paísCom sabedoria, observou Descartes que “é bom sa-

ber alguma coisa dos costumes dos diversos povos, para deste modo julgar mais saudavelmente dos nossos, para que não pensemos também que tudo o que é contra os nossos modos é ridículo e contra a razão, como soem fa-zer os que nada viram.” Lembro as palavras do grande filósofo e matemático a propósito de curiosíssima carta que, de longínquo e exótico país, manda-me o querido amigo João Sebastião da Silva, falando-me, perplexo, a respeito da atividade literária na estranha terra onde, há já alguns meses, se encontra. Trata-se de reflexão de interes-se ao mesmo tempo etnográfico, psicológico e filosófico, que passo a transcrever.

“Escritor – diz o João –, palavra mais enigmática não pode haver por estas bandas. Que significa ser es-critor neste país? Quem é escritor nesta terra? Quem se considera escritor nesta estranha sociedade? São questões que me têm, ultimamente, inquietado a partir do conví-vio com esta misteriosa gente. Ao que parece, a expressão é, por aqui, mais ou menos sinônimo de intelectual, que, nestas plagas, é termo que tanto serve para a vastíssima população dos filósofos de mesa de bar quanto para os professores, sem excluir os adivinhos que, a todo momen-to, nos assediam pelas praças públicas. Já se vê daí a elas-ticidade conotativa da palavra escritor neste país. Houve até o caso da tentativa de fundação de uma sociedade de

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escritores que terminou por não ir adiante em razão do grave problema semântico que a denominação constitui. Os que pretendiam organizar a tal sociedade por estas bandas desistiram do empreendimento ao concluírem que ela terminaria por corresponder a uma vastíssima socieda-de dos alfabetizados, semialfabetizados e semianalfabetos em geral, o que não teria sentido.

“Alguém já chegou – continua o João Sebastião – a afirmar que nesta terra só é digno de ser chamado escritor aquele que publica romance, ou contos, ou, enfim, dedi-ca-se à ficção de modo geral. E parece que é assim mesmo que aqui se considera. Até mesmo o poeta, que é o que não falta por aqui, este não é denominado pelo termo forte e altissonante de escritor. Poeta é poeta, e pronto. Depois do ficcionista, vem, ao que parece, o ensaísta como o outro tipo de gente que, de algum modo, dedica-se à atividade de escrever a merecer o prestigioso título. Como quer que seja, a denominação de escritor dá mais prestígio que qualquer outra que diga respeito a alguma atividade intelectual espe-cífica, técnica ou humanística, que possa vir a resultar em alguma espécie de produção literária. E como geralmente acontece nas sociedades onde a retórica ornamental é fonte de prestígio, como é o caso deste país para onde me trou-xeram os fados, aqui todo mundo quer ser escritor. E como todo mundo que se tenha beneficiado do privilégio de se tornar capaz de, bem ou mal, assoletrar alguma coisa quer ser escritor nesta terra, e a poesia seja por aqui considerada o gênero literário mais fácil de ser cometido, acontece que, entre esta gente, os “poetas” brotam com a mesma rapidez com que, no tempo das chuvas, surgem os cogumelos. O diabo é que a concepção romântica do artista, que aqui parece imperar de modo algo distorcido, leva as pessoas a acreditarem que para fazer poesia basta papel, caneta e algum sentimento, preferencialmente os de encanto ou de frustração amorosa e os de revolta social. E quanto mais ignorância da tradição da arte poética, pensam muitos dos

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“poetas” que tenho conhecido pelos bares e repartições pú-blicas desta terra, melhor. É que neste país a ignorância, ao que parece, é tida como virtude. Aliás, para muitos, parece constituir a virtude suprema, e, como quer que seja, nos círculos intelectuais desta terra, é moda e lei.

“E como seja grande o número de analfabetos por aqui, chega-se à desconcertante conclusão de que en-quanto uma metade da população do país é constituída de escritores, a outra metade é composta de analfabetos. Dessa maneira, como aqui a regra é que os escritores se-jam inimigos uns dos outros, apesar dos sorrisos e abraços de aparente cordialidade quando se encontram nos lan-çamentos dos livros que publicam, neste país o escritor não possui leitor além dele próprio. De modo que fico a me perguntar por que razão as pessoas publicam, nesta exótica terra, o que escrevem, pois, apesar do prestígio que muitos acreditam usufruir da condição de ser escritor, atividade mais inglória e vã não pode haver.

“E assim concluo que, vivendo entre esta boa, mas estranha gente, quanto mais julgo conhecer os motivos humanos, mais me convenço do grande mistério que as ações dos filhos de Deus constituem. Ah, quanta saudade do nosso amado Brasil, onde as coisas são bem diferentes do que se costuma fazer nesta curiosa terra na qual, não sei por que misteriosos desígnios, hoje me encontro.”

Acho que vale meditar sobre a narrativa do João.

Diario de Pernambuco, 1º de maio de 1985

A vaca e o leãoCreio que foi Gilberto Amado quem afirmou, se não

me engano em Infância, que começou a amar as palavras, a descobrir a sua vocação literária, através do dicionário. E não pode haver livro mais importante para quem quer que aspire – escritor profissional ou não – a dominar a

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expressão verbal do que o dicionário. Mas tenho a im-pressão de que, com a crescente emergência de uma civi-lização predominantemente televisiva, as pessoas têm se tornado cada vez mais preguiçosas para abrir qualquer livro e, portanto, mais avessas ao dicionário. E, como a nossa percepção do universo e a nossa capacidade pen-sante estão positivamente correlacionadas ao nosso acer-vo verbal, o fato é que a maioria das pessoas, ao menos no Brasil que eu conheço, está se tornando cada vez menos capaz de raciocinar sobre as coisas do mundo.

Esse é um fato que muitos, preocupados com a in-teligência nacional e não apenas com a língua, têm la-mentado, inclusive através desta página. Mas é tamanha a sua gravidade que não é demais voltar ao assunto. É hoje inegável que a Etnologia e a Psicanálise puseram por terra a ideia iluminista do homem como animal racional. O homem não é apenas um animal racional. No entan-to, se o homem não é um bicho puramente racional no seu comportamento, não há dúvida de que as condições neurocerebrais típicas da nossa espécie permitem um ní-vel de inteligência extremamente superior ao de qualquer outra espécie e que essa inteligência depende em altíssimo grau da aquisição de um acervo simbólico-verbal. Assim, deterioração de linguagem é, para qualquer sociedade ou indivíduo, o mesmo que deterioração da razão, da inteli-gência. Mas qualquer um pode, hoje, observar que, para as gerações mais novas, usar bem as palavras, dominar a língua, possuir um bom acervo verbal, chega a ser moti-vo de zombaria, pois é coisa careta, coisa de velho, fora de moda, como usar um terno antiquado. Ao que parece, quanto mais jovem o indivíduo, maior a sua obrigação de usar o mínimo possível de palavras. Palavras, por isso mesmo, mais que polissêmicas: palavras hiper, superpolis-sêmicas. Paralelo a esse fenômeno, há ainda o fato de que ser ignorante, não estar informado, não conhecer a própria

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língua, são coisas que viraram moda. Sim, é isso mesmo. O estudante universitário, até mesmo ele, orgulha-se de aparecer aos outros como alguém que não lê, que conhece as coisas pela sua experiência imediata, pois que ler é care-ta. Não há dúvida, creio eu, de que essa atitude de aversão à tradição guardada nos livros e no idioma (todo idioma é catalogação da experiência cultural de um povo) deri-va dos equívocos românticos da contracultura. Mas tudo isto, afinal, está mais próximo da vaca do que do leão, como observou Anthony Burgess, no seu 1985, essa cora-josa e apaixonante paródia do célebre romance de George Orwell. É que, explica Burgess, “levaremos muito mais tempo para conseguir pastando as mesmas proteínas que obteríamos rapidamente ao comer um pedaço de carne”. Enfim, conclui, “nós, os velhos, oferecemos a carne da educação; a contracultura prefere voltar ao pasto”. Ou, simplesmente, como já dizia o Dr. Samuel Johnson a um defensor, à sua época, de primitivismo semelhante: “Tudo isto é muito triste, senhor. É pura selvageria!”.

Diario de Pernambuco, 11 de março de 1983

A volta do ciganoEm uma de suas crônicas, observa Rubem Braga que

“há homens que são escritores e fazem livros que são ver-dadeiras casas, e ficam”, enquanto “o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma a sua tenda e pela ma-nhã a desmancha e vai”. Não é o caso do “cigano” Rubem, que, fazendo crônica de jornal, realizou obra mais duradou-ra do que a de muito autor de livro que não fica. É conferir o seu Recado de primavera, publicado agora pela Record. Reunindo trinta e sete crônicas inéditas em livro, algumas dos anos quarenta, mais alguns textos curtos, Recado de primavera é lição de simplicidade e bom gosto numa época em que a preocupação com originalidade pela originalidade fez banir para muito longe aquelas virtudes imprescindíveis à boa literatura.

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Já notou Antonio Cândido que a crônica “sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desen-volveu”, e, de fato, embora observe o mesmo crítico que “não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancis-tas, dramaturgos e poetas”, a literatura brasileira tem se notabilizado, desde José de Alencar e Machado de Assis até Carlos Eduardo Novaes e Lourenço Diaféria, pelos seus cronistas. E, entre todos, sobressai o mestre Rubem Braga.

Lugares, lembranças da infância, gente importante e homens do povo, mulheres e passarinhos desfilam através da “conversa mole” (toda crônica digna de nome deve ter algo de “conversa mole”) do poeta (todo bom cronista é, a seu modo, poeta) de Cachoeiro do Itapemirim. Há ain-da a ressaltar em Recado de primavera a dimensão inevi-tavelmente memorialística, com os indefectíveis flagrantes de gente importante com quem o cronista conviveu: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, entre outros. Mas, acima de tudo, fica a agudeza da percepção poética do cro-nista maior de nossas letras, até mesmo na crônica quase ensaio que é Fumando espero aquela..., em torno da pre-sença do cigarro na literatura e na música popular no Brasil.

Recado de primavera é a reafirmação da importân-cia da coloquialidade para a literatura erudita – lição que todos os grandes (e só os grandes) artistas da palavra sou-beram entender – e de que, ao contrário da crença dos fiéis do monumental em arte, a crônica não é um gênero menor somente por ser curta e escrita para jornal. É ler o “cigano” Rubem. E o que seria do Brasil e de todas as suas repúblicas sem sabiás, bicudos e galos-de-campina, sem a música de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, sem as crônicas de Rubem Braga?

Diario de Pernambuco, 8 de março de 1985

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A voz dos subúrbiosUm pobre homem de subúrbio a lembrar a mulher

amada, tragicamente morta por atropelamento ao atra-vessar a rua; um rapaz como tantos outros, talvez ope-rário, talvez empregado no comércio, que não pode se demorar o quanto gostaria com a namorada do subúrbio distante, porque depende do trem das onze; um sujeito que lembra, saudoso, o tempo em que, juntamente com mais dois companheiros de pobreza, morava num velho palacete abandonado, em lugar onde fizeram construir um grande edifício. Quem não lembra dos temas singe-los que o grande artista ingênuo dos subúrbios, Adoniran Barbosa, pintou, com pungente lirismo, nas suas canções?

Ao morrer, na semana que passou, Adoniran Barbosa deixou um pouco da sua grande poesia no cora-ção de muito brasileiro que, pelos bares de subúrbio, pelos modestos parques de diversão do Brasil pobre, pelo rádio, ouviu, cantou e emocionou-se com a sua arte. Filho de imigrantes italianos, foi, até na origem, um típico brasilei-ro de São Paulo. Cantando o cotidiano dos subúrbios de São Paulo, Adoniran, no entanto, retratou os sentimentos do homem suburbano de todos os Brasis. Sua música não será, provavelmente, recebida nos salões; não entrará nas salas de concerto; não será lembrada pelos que se dizem de elite (que será elite?), mas há de permanecer, por esses Brasis pobres dos subúrbios, como a voz que Adoniran soube emprestar aos que não têm voz nem vez para cantar seus sentimentos, suas dores e suas frustrações.

Sua vida foi como a de qualquer outro brasileiro pobre, fazendo de tudo para sobreviver. Ainda menino, começou a trabalhar ajudando o pai a carregar lenha. Já rapazote, ganhou a vida como carregador de marmita. Já se encontrava, então, na acanhada São Paulo das primeiras décadas deste século. Depois, empregou-se como varredor em uma fábrica de tecidos. Foi pintor, tecelão, encanador,

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serralheiro e mascate. E foi como mascate – conta ele – que percebeu que tinha jeito para compor. E distraía-se fazendo sambas, enquanto caminhava pelas ruas de São Paulo, levando suas bugigangas. Foi, ainda, garçom, na casa de Pandiá Calógeras, que, pouco depois, viria a se tornar ministro do Exército. Atormentado pela constan-te ameaça de desemprego, resolveu aprender um ofício: tornou-se metalúrgico ajustador. Mas deu-se mal com o ofício que terminou por lhe criar problemas para os pul-mões. Foi quando, em meados da década de trinta, meteu-se a trabalhar em rádio, começando na Rádio Cruzeiro do Sul e passando, em 1941, para a Rádio Record, onde foi locutor, humorista, cantor e coisa como o diabo.

Em meio a tanta tristeza, a tristeza da morte do gran-de poeta dos subúrbios, mas também a tranquila alegria da certeza de que a música de Adoniran, como de outros grandes sambistas do Brasil, permanece no nosso coração e nos ajuda a caminhar sobre a esperança.

Diario de Pernambuco, 2 de dezembro de 1982

Amor e justiçaReencontro, para alegria do meu coração, a esperan-

ça. Era uma tarde de domingo. Em um muro de rua trans-versal, meus olhos se deparam com o imperativo: “amor neles”. Trata-se, o autor, de um espírito jovem. Jovem e franciscano. E, portanto, acima de qualquer partido. Por isso, acredita e proclama que a solução é responder sem-pre com o amor. O amor é, enfim, o seu partido. Não tenho ideia de quem seja o franciscano autor do grafite. Mas estou com ele. Pode existir partido mais forte, com programa mais consequente, do que o partido do amor? Não vi inscrição mais bonita, mais veemente, dentre todas que o último 15 de novembro motivou. E, além do mais, o amor é um partido no qual a gente deve e pode votar a

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qualquer dia do ano, a todo momento, em todos os minu-tos e segundos da nossa vida. O amor é o grande partido e o grande candidato da existência. Portanto, “amor neles”.

Mas o autor continuava. E, no mesmo muro, pouco mais adiante, proclamava: “a injustiça é breve”. Foi aí que fiquei a matutar. Será mesmo? E lembrei que a História não confirma a afirmação. Não. A injustiça não tem sido breve. Ao contrário, a História da Humanidade não tem sido outra coisa senão precisamente a História do amor contra a injustiça. A injustiça tem sido muito, muitíssimo longa. Mas o que seria de nós se não acreditássemos que ela, a injustiça, não passa de uma exceção?

A injustiça entra pelos nossos olhos, está exposta nas ruas – principalmente nas ruas das cidades como o Recife. A injustiça grita pelas praças. A injustiça dorme debaixo das marquises, nas noites de chuva. A injustiça incomoda os nossos planos para as próximas férias. A injustiça nos aborda, sem nenhum escrúpulo, nos restaurantes em que tentamos nos esquecer que ela existe. A injustiça é onipre-sente. Tem olhos fundos e corpo esquelético. Entra em nos-sas casas, descaradamente, pelos jornais, pela televisão. Vai conosco até o nosso leito. É o mais perfeito desmancha-pra-zer. É ela quem nos serve à mesa. Prepara a nossa comida. Lava a nossa roupa. Engraxa os nossos sapatos. Está sem-pre à nossa espreita. Foi ela quem construiu as nossas casas. É ela quem faz as nossas roupas e adorna de mil objetos os nossos aposentos. Dormimos sobre a injustiça; vestimos nosso corpo de injustiça; nos alimentamos da injustiça. É ela quem estraga os nossos domingos.

E, no entanto, meu franciscano amigo, acreditas e proclamas a quem quer que leia a tua confiante declara-ção que “a injustiça é breve”. Ah, se todos acreditassem na tua verdade! Ah, se todo mundo percebesse que, apesar de todas as evidências, tu estás com a razão! Aí, então, já não nos alimentaríamos da injustiça, nem ela seria a nossa

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roupa, nem o nosso teto, nem a nossa cama. Mas se ela está aí, se ela nos estende a mão todos os dias, que se há de fazer? Amor nela!

Diario de Pernambuco, 12 de maio de 1983

AnchisesAtravés de Liêdo Maranhão de Souza, o grande et-

nólogo do povo do Recife, vim conhecer pessoalmente, há poucos dias atrás, a grande figura humana do pintor Anchises. Já conhecia a sua arte. E me perguntava por onde é que andava o personalíssimo artista recifense. Neste te-dioso panorama de figurativos adocicados e anacrônicos, Anchises permanece um artista singularmente cônscio da sua arte como técnica e expressão. Se já admirava a arte de Anchises, o convívio com a sua personalidade inquie-ta e permanentemente em busca de sua síntese expressiva deu-me o conhecimento de outras dimensões de sua arte. E é sob o impacto da personalidade do artista Anchises e da sua pintura que escrevo este artigo.

Se o figurativismo tem, nos últimos anos, não só res-surgido, porém, sido levado às suas últimas consequências através do hiper-realismo, Anchises prefere acreditar que o figurativo está morto desde que, de uma vez por todas, Picasso concluiu a revolução iniciada por Da Vinci. E não poderia ser de outro modo, pois quem conhece a arte de Anchises percebe que não pode haver dúvida alguma a respeito da evidência de que ela já encontrou seu cami-nho. E há muito tempo. Um caminho de busca obstinada, chegando às vezes à angústia, do essencial; um caminho no qual, portanto, não pode haver lugar para os atrati-vos fáceis das aparências enganosas das coisas, por mais que se nos afigurem sedutoras em suas formas e cores; um caminho também marcado pelas visões de outros que o percorreram com a mesma obstinação e angústia na busca

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do essencial – de Velásquez a Matisse, sem excluir Hegel. Até chegar à compreensão de que a percepção verdadei-ramente poética – no sentido amplamente hegeliano que dá à poesia a dimensão de qualidade presente em todas as expressões de arte – é a que consegue ver além das apa-rências. E nisto a síntese da poesia/pintura de Anchises chega a ser científica, já que, se arte e ciência pretendem descobrir os mecanismos ocultos da máquina do mundo, arte e ciência possuem, em última instância, mais do que um vasto campo de intersecção, um objetivo comum.

De progressivo despojamento do pitoresco e do ex-crescente, dos malabarismos da técnica pela técnica, até al-cançar a simplicidade do essencial do círculo, do triângulo, das linhas verticais, até a libertação de todos os matizes desnecessários em favor das origens de todos os matizes – do amarelo, do vermelho e do azul – tem sido o caminho do pintor Anchises. Um caminho não apenas em busca de solução para os problemas técnicos de uma arte, mas em busca da geometria essencial da existência. E agora, liberto das seduções da aparência do mundo, Anchises pode voltar até mesmo ao figurativo sem trair a sua opção pelo essen-cial, mas fazendo dos seus retratos motivo para exercício da sua própria metalinguagem, pintando a sua própria pintura. Como todo grande pintor, Anchises não retrata simplesmente o que vê, mas o que quer é mostrar e ensinar de tudo quanto olhou e aprendeu do mundo. Como um músico barroco, despreza a confusão dos matizes e compõe a sua obra a partir dos timbres puros das cores primárias e do contraponto das formas geométricas simples.

Trabalhando na obscuridade da sua oficina de artista inteiramente avesso às glórias fáceis dos salões, Anchises prefere a alegria duradoura da busca da sintonia entre o que ele é e o que a sua arte expressa. Tive o privilégio de conhecer de perto as suas mais recentes descobertas e in-venções. É preciso, porém, que outros possam ter a visão

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dos mistérios e revelações da sua pintura. Quando é que o Recife vai voltar a ver o mundo de Anchises?

Diario de Pernambuco, 2 de setembro de 1982

Arte e criseNunca esteve o homem tão cercado pela arte quan-

to na atualidade. A arte sempre esteve presente na vida humana como resultado da inclinação natural da espécie para embelezar as coisas à sua volta. É verdade, contudo, que determinadas circunstâncias sociais são mais propí-cias ao desenvolvimento da arte. A criação artística, como a criação filosófica, depende de ócio. E ócio pressupõe de-terminadas condições tecnológicas e econômicas.

Mas a presença da arte (ou, no mais das vezes, da sua contrafação) na vida cotidiana do homem contempo-râneo decorre, antes, da transformação da obra de arte em mercadoria na sociedade capitalista. E a sua transfor-mação em mercadoria, estimulada pela possibilidade de sua reprodução em série – tão bem estudada por Walter Benjamim, o filósofo-sociólogo de Frankfurt –, destituiu a arte de sua aura de sacralidade. O indivíduo que, no século passado, ouvia, por exemplo, um concerto tinha consciência de que somente em outra ocasião especial como aquela poderia voltar a ouvir a mesma música. E talvez nem sequer voltasse a escutá-la. Hoje, o apreciador de música sabe que o disco fonográfico lhe permite ouvir quando bem entenda a música de sua preferência, privan-do-se apenas do ritual do concerto. E essa possbilidade tende a dessacralizar a obra de arte.

Isso sem falar nas novas formas de expressão artís-tica engendradas pela economia industrial, com base em uma tecnologia crescentemente sofisticada. Como igno-rar, por exemplo, no Brasil de hoje, o folhetim eletrônico da telenovela? Como ignorar o fenômeno sem precedentes

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da ascensão social da canção popular, sobre o qual Mário de Andrade tão bem discorre?

São alguns dos temas que estarei abordando, nos dias 8, 15, 22 e 29 de setembro próximo, no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda, em cur-so de conferência sobre arte, cultura e sociedade. Temas que, se não chegam a ser do interesse de todo mundo, ao menos dizem respeito à vida cotidiana da maioria das pes-soas, quer tenham ou não consciência.

Aos espíritos mais grosseiramente pragmáticos, que julgam inoportuno falar de arte em meio à crise econômi-ca que, hoje em dia, preocupa todo mundo, sem distinção de classe social, pergunto se a Segunda Guerra Mundial diminuiu a importância das catedrais. A arte é necessária porque humaniza, porque apura a capacidade humana de compreender o mundo e o outro, porque completa a ciên-cia e a filosofia, como instrumento de reflexão sobre a con-dição humana. O mundo não precisa apenas de tratores: precisa também de violinos. Não precisa de economistas burocratizados, mas precisa de poetas. Seguramente, não precisa de fuzis e tanques de guerra, mas precisa de canções.

Diario de Pernambuco, 23 de agosto de 1984

As razões do poetaCreio que foi o cronista Rubem Braga – saravá –

quem disse que existem escritores que constroem casas, edifícios sólidos – os autores de livros –, enquanto outros, semelhantes a ciganos, armam sua tenda hoje, para ama-nhã desarmar e ir para outro lugar – os cronistas. Ora, o mestre Rubem por certo há de saber que essa compara-ção resulta apenas da sua modéstia, pois a sua obra de cronista – sólido e belo edifício – demonstra precisamen-te o contrário. A literatura brasileira, aliás, é riquíssima de cronistas, desde o mestre Machado de Assis até, por

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exemplo, Carlos Eduardo Novais. A crônica é gênero de primeira necessidade a todo leitor de jornal. No cronista, o leitor encontra, por assim dizer, alguém com quem con-versar a respeito de tudo e de nada, dos acontecimentos políticos mais graves e das coisas do cotidiano, da econo-mia e do jogo de futebol, dos presidenciáveis e do travesti da moda, da religião e do sexo, do desequilíbrio ambiental e da novela de televisão, pois cronista é para isto mesmo: para falar de tudo em tom de conversa de fim de tarde, sem sisudez de editorialista.

Lembro dessas coisas a propósito de acontecimen-to da maior importância nacional e que, com a discussão da questão da sucessão (meu Deus, quanto “ão”!) presi-dencial, talvez tenha passado despercebido a muitos. Falo do fato de que o mestre Carlos Drummond de Andrade deixou a crônica de jornal, ao menos a crônica de perio-dicidade semanal. Todos nós, seus leitores, entendemos as razões do poeta, mas sentimos sua falta, a falta da sua opinião de sábio excepcionalmente dotado da capacidade de percepção poética das coisas.

Nossa época é da ação, da ação pela ação, do medo e do desprezo à reflexão. Daí o emprego usual da deno-minação de “poeta” para classificar um tipo de “doidice” inofensiva caracterizada sobretudo pela irresponsabilida-de. É isto que se quer lembrar quando se diz, em geral com desprezo mal disfarçado em complacência, que “fulano é um poeta” ou que “sicrano é um filósofo”. Temos medo da poesia e da filosofia, porque elas revelam o que não queremos ver, a realidade mais íntima das coisas. Mas os poetas, como os filósofos, são, por isso mesmo, imprescin-díveis a qualquer sociedade e mais importantes que qual-quer tecnocrata arrogante, que é o que não falta hoje em dia pelo mundo afora.

Por tudo isso, quero hoje louvar o sábio Carlos Drummond de Andrade, o irmão de Itabira, o mestre do

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idioma, o conhecedor dos nossos sentimentos e anseios mais profundos, o amoroso consolador das nossas dores, o indicador de rumos para a nossa desorientação. Que seria da República sem os poetas, os músicos, os artistas de todas as artes, os prestidigitadores e os saltimbancos?

Diario de Pernambuco, 4 de outubro de 1984

Bossa-Nova: trinta anosHá trinta anos tinha início o movimento denomi-

nado bossa-nova na música popular brasileira. A bossa-nova começa com um disco gravado por uma cantora que nada tinha e, ainda hoje, nada tem de bossa-nova no estilo de cantar. O disco gravado pela Festa, de propriedade de Irineu Garcia, foi Canção do amor demais, interpretado por Elisete Cardoso. Acontece que o disco é inteiramen-te composto por canções assinadas pela dupla Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, papas da bossa-nova. Conforme opina Ary Vasconcelos, “nada nele [no disco] é bossa-nova exceto uma coisa: o violão de João Gilberto que acompanha Elisete e que apresenta uma batida dife-rente nos sambas Chega de saudade e Outra vez. Nessas duas faixas – continua Ary Vasconcelos – podemos per-ceber bem as duas correntes: a tradicional, na divisão da cantora e do baterista, e a nova, na divisão revolucioná-ria de João Gilberto. Nasceu, então, a batida bossa-nova. Elisete poderia ter sido a primeira cantora da bossa-no-va se tivesse aderido – catequese que João Gilberto ten-tou, aliás, fazer na hora da gravação. Mas a cantora não conseguiu – ou não quis – cantar na nova divisão. E as-sim ficou adiado para o ano seguinte o nascimento da bossa-nova vocal: para março de 59, quando surgiu na praça o LP Odeon Chega de saudade, em que fez sua es-treia, como cantor, o até então violonista João Gilberto”. (Vasconcelos, Ary. Panorama da música popular brasilei-ra. São Paulo: Martins, 1964, vol.1, p. 27).

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Liderado por João Gilberto, Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, o movimento da bossa-nova tem origem na influência crescente de um certo tipo de músi-ca popular norte-americana – a cantada por Bing Crosby e Frank Sinatra, por exemplo; a das canções de George Gershwin e Cole Porter, também – durante a chamada “política de boa vizinhança”, após a Segunda Guerra Mundial. Antes de Antônio Carlos Jobim, no entanto, um jovem pianista negro destaca-se como verdadeiro precur-sor da bossa-nova: Johnny Alf, que ainda hoje toca na noite carioca. Mas é com a dupla Jobim-Vinicius que essas tendências esboçadas no samba durante a década de cin-quenta são codificadas, sistematizadas.

A bossa-nova, no entanto, não se caracteriza apenas, como quer Ary Vasconcelos apressadamente, pelo estilo do acompanhamento do violonista João Gilberto. Esta é uma ideia musicologicamente falsa. Além da famosa bati-da de João Gilberto ao violão, há, ainda, a nova concep-ção de harmonia com influências do jazz e de modernos compositores eruditos, como, notadamente, Débussy e Ravel. Há igualmente o modo de cantar sem vibratos, bai-xinho, intimista, como o de Chet Baker, que influenciou João Gilberto, e, no Brasil, o de Mário Reis, o do cantor-violinista Fafá Lemos e, last but not least, Noel Rosa. Há também a inovação temática das letras, refletindo uma vi-são de mundo otimista própria do período JK, marcado pela ingênua crença desenvolvimentista. É este, aliás, tema digno de ser explorado em profundidade: a comparação entre os temas e a linguagem da canção discográfica popu-lar brasileira antes e depois da bossa-nova.

Foi enorme a influência da bossa-nova na música popular brasileira a partir de 1958. A nova sintaxe har-mônica, o estilo vocal de João Gilberto, o novo padrão rítmico, a renovação temática das letras estarão presentes em todos, literalmente todos, os grandes compositores,

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intérpretes, orquestradores e letristas a partir do históri-co disco de Elisete Cardoso (a quem interessar informo que o disco da Festa foi, pouco tempo depois de lançado, vendido à Copacabana e, posteriormente, lançado, ainda, pela CBD Phonogram, através do selo Fontana Special, na série Edição Histórica, que inclui outros discos represen-tativos da história da bossa-nova).

Embora surgida no Rio de Janeiro, a bossa-nova não é música apenas carioca, mas nacional. No Recife, a partir de 1964, intérpretes, instrumentistas e compositores serão revelados através de shows realizados em auditórios uni-versitários, como os da Faculdade de Filosofia do Recife, sob a liderança do professor Jomard Muniz de Brito. Mas foi a partir das Feiras de Música (a primeira delas realiza-da em 1966), promovidas pelo Grupo Construção, “que surgiram os mais significativos compositores do Nordeste, nos últimos anos”, como observa o compositor e estudioso de música popular brasileira Marcus Vinicius, paraibano há muito radicado na cidade de São Paulo (ver “Algumas notas sobre música no Nordeste”. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, vol. XLVI, nº 9, nov. 1972, 33). É atra-vés das Feiras de Música, poucos talvez hoje saibam, que são revelados compositores, intérpretes vocais e instru-mentais do porte de Geraldo Azevedo, Marcelo Melo (hoje o líder do Quinteto Violado), o próprio Marcus Vinicius, o letrista Carlos Fernandes, o cantor e compositor Paulo Guimarães, o compositor e letrista Walter Silva (por onde anda o talentoso autor do belíssimo Felicidade?).

Vou aqui fazer uma sugestão: por que o Instituto de Ação Cultural – Inac, da Fundação Joaquim Nabuco, tão atuante sob a orientação competente e sensível de Frederico Pernambucano de Mello, não programa uma comemoração dos trinta anos da bossa-nova com intér-pretes, instrumentais e vocais do Recife, aqueles que par-ticiparam das manifestações desse movimento a partir

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de 1963, na nossa cidade? É programar para depois do Carnaval, sem esquecer – já ia eu omitindo criminosamen-te – a colaboração do jornalista Washington França, hoje na Televisão Universitária, que muito contribuiu para a difusão da bossa-nova entre nós, através do programa ra-diofônico que manteve na Rádio Jornal do Commercio, no início dos anos sessenta.

Diario de Pernambuco, 14 de janeiro de 1988

De música e de praçasSanta Cecília, padroeira dos músicos, juntamente com

Santa Inês e Santa Luzia, “é uma das mais veneradas santas desde os primeiros séculos da era cristã”. É o que explica um antigo missal que guardo comigo há alguns anos. E continua dizendo o missal que “nobre cristã, converteu Valerianos e Tibério ao cristianismo” e que “com os dois foi ela deca-pitada”. Mas acontece que “como o golpe não tivesse sido mortal [vejam só quanto atrocidade!] ainda viveu alguns dias [é o que conta o missal], deitada em sua casa”. Finalmente, conclui o texto, “na mesma posição foi enterrada e seu corpo foi assim encontrado intato em 1599”. Só não consegui foi saber por que razão a santa mártir vem a ser padroeira da música e dos músicos, cujo dia, juntamente com o martírio da santa, hoje, aliás se festeja.

Não sou de ter simpatia por negócio de dia disso, dia daquilo, mas como qualquer pretexto me serve para falar de música – a mais sofisticada invenção da cultura ocidental, a conjugação mais perfeita da sensibilidade com a razão –, valho-me desta data para lembrar a afirmação de Otto Maria Carpeaux de que “a música, assim como a entendemos, é um fenômeno específico da civilização do Ocidente”, o que, aliás, não é ideia de modo algum origi-nal, pois, lembra o próprio Carpeaux, antes dele, Spengler e Toynbee já haviam feito a observação. Argumenta o escri-tor austríaco-brasileiro que “em nenhuma outra civilização

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ocupa um compositor a posição central de Beethoven na história da nossa civilização; nenhuma outra civilização produziu fenômeno comparável à polifonia de Bach”. Em nenhuma outra civilização, podemos acrescentar, atingiu a música o grau de autonomia social alcançado por essa arte no Ocidente, no sentido de que, mesmo em civiliza-ções muito desenvolvidas material e espiritualmente, como, por exemplo, a chinesa, a música sempre esteve dependen-temente vinculada a atividades não artísticas, aos rituais religiosos, ao trabalho, à magia, etc. No mundo ocidental, porém, a música ganhou autonomia institucional, passou a valer por si mesma, acrescentando-se o fato de que, aqui, associou-se, a partir do século XVI, cada vez mais à mate-mática e à física. Vale, a propósito, citar o sempre saudável Weber (apesar da psicose de que foi vítima o grande soció-logo alemão), tão lucidamente (alguns podem achar etno-centricamente) encantado com a civilização ocidental, no que ela tem de inegavelmente superior, embora grasse uma certa moda masoquista de só enxergar coisas negativas no Ocidente, tais como consumismo, destruição da natureza, competição exacerbada e por aí vai indo, fruto das inge-nuidades e anacronismos da contracultura. Mas vamos à citação de Max Weber.

“O ouvido musical era, aparentemente, até mais de-senvolvido em outros povos do que atualmente entre nós: certamente não o era menos. (...) Mas, música racional – tanto o contraponto como a harmonia –, a formação da sonoridade na base de três tríades com o terceiro harmô-nio; nossa cromática e enarmônica interpretadas não em termos de espaço, mas, desde o Renascimento, de harmo-nia: nossa orquestra com seu quarteto de cordas como nú-cleo e com a organização do conjunto de instrumentos de sopro; nosso acompanhamento de graves, nosso sistema de notação (...); nossas sonatas, sinfonias, óperas e os ins-trumentos básicos que lhes servem de meio de expressão: o órgão, o piano, o violino só existiram no Ocidente (...)”.

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E por falar em civilização, quero lançar o meu protesto contra o vandalismo de que, com o beneplácito do pároco de Casa Forte, se tem cometido em relação à praça daquele bairro, criação original do grande paisagista Burle Marx. Já não chega que os poderes públicos não deem a atenção que as nossas praças, que são tão poucas, merecem? Já não chega que as famigeradas feirinhas típicas estejam acaban-do com as praças do Derby, do Entroncamento e do Treze de Maio? A Praça de Casa Forte, a mais bonita que temos (ou tínhamos?) já não possui as vitórias-régias (aliás, não tem mais nem água nos seus tanques) que tanta beleza lhe davam. Mas o que não dá mesmo para entender é como a Igreja, a quem tanto deve a civilização, esteja na pessoa do padre Edvaldo, ao lado da incivilização, da destruição da praça e do verde, através da realização de uma festinha de subúrbio que só contribui mesmo para enfeiar Casa Forte e o Recife. Volto, na próxima semana, ao assunto.

Diario de Pernambuco, 22 de novembro de 1984

De poetas e de poesiaPouco ou nada poético é o mundo que experimenta-

mos no trânsito diário pelas ruas da nossa vida, é o mundo que entra em nossa casa sem pedir licença através do apa-relho de televisão. E é por isso que ela, a poesia, é cada vez mais necessária não apenas como instrumento de deleite es-tético, mas também como forma de conhecimento do mun-do e da existência. Talvez seja também pela mesma razão que, a cada dia, mais e mais pessoas procuram a linguagem da poesia para expressar seus sentimentos, sua inevitável perplexidade. Mas quem, por acaso, sabe dizer o que é a poesia? Quem pode saber onde ela se encontra? No mundo exterior, na realidade objetiva? Ou dentro de nós mesmos, nos olhos de quem vê o mundo? Não estará ela também no feio, no injusto, no aparentemente degradante?

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De qualquer modo, uma coisa que me intriga é que tanta gente, não contente em fazer versos, se compraz em proclamar aos quatro ventos que é poeta. Afinal, esse ne-gócio de fazer poesia, como se entende comumente a poe-sia, é uma temeridade, uma loucura. É coisa para abalar a reputação de qualquer um. Antes de mais nada, porque fazer poesia é subverter uma das coisas mais caras ao ho-mem, o seu instrumento básico de comunicação: a lingua-gem verbal. Por isso é que a poesia, a partir do fato de que ela se baseia na subversão do sentido cotidiano das pala-vras, é uma atividade não só marginal, mas antissocial. Por isso, também, é que quem se mete com esse negócio de andar fazendo e principalmente publicando poesia deve ter a consciência do estigma que a sociedade reserva a esse tipo de transgressor. A maioria das pessoas, os homens “sérios” e práticos, os sensatos, os virtuosos de domingo costumam olhar, no mínimo com tolerância, quando não com desdém, para quem perde seu tempo com essa “coisa inútil”. Quem não sabe o que é que se quer dizer quando se afirma, em geral com algum desprezo mal disfarçado em condescendência, que “fulano é um poeta”?

Imagina-se, em geral, que se trata, a mania de fazer versos, de um resquício da adolescência. E, no fundo, não deixa mesmo de ser. Felizmente. Não que todo poema de adolescente seja bom. Em geral, não o é. O mais comum é que seja o resultado mal expresso e sublimado da des-coberta de novos sentimentos. Mas acontece que a poesia, toda poesia, guarda a mesma atenção, a mesma valoriza-ção dos sentimentos como é própria da juventude. A poe-sia, afinal, guarda a mesma valorização do sonho como uma possibilidade concretizável.

Mas, para o “filisteu”, toda arte, e não só a poesia, é apenas uma coisa tolerável. Como também quem a faz. Ele é incapaz de compreender o quanto poesia e poeta jamais serão demais no mundo. Porque, como dizia Elliot,

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apreendendo ou atribuindo novos matizes de significação às palavras, o poeta concorre para o refinamento da sensi-bilidade dos homens e, portanto, para o aperfeiçoamento do convívio, para a civilização. E por isso é que a poesia, acho que Elliot tinha razão, tem uma função social.

Talvez ainda volte ao assunto.

Diario de Pernambuco, 15 de março de 1984

De presentesOriginal, mais que original, surrrealista, foi o pre-

sente recebido no fim do ano por um sujeito das minhas relações de amizade: um jornal do dia, um galo e um maço de cigarros. Sim, paciente leitor, isto mesmo que acabas de ler. Teus olhos não te enganam: um galo, uma carteira de cigarros e um jornal. Por que a estranha combinação? Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que se trata, o presenteador, de um refinado filósofo. Há, sem dúvida, toda uma mensagem, todo um simbolismo riquís-simo, na sua escolha.

Por que um galo e não uma galinha? Lembra-te, san-to leitor, que Sócrates devia um galo a Asclépio, conforme aprendemos de Platão. Por que teria Sócrates pedido um galo, e não uma galinha, por empréstimo a Asclépio? Seria o patriarcalismo grego tão forte a ponto de preferirem os homens o galo à galinha como petisco? Ou teria a prefe-rência alguma relação com o conhecido homossexualismo masculino na Grécia ao tempo do filósofo? Nada disso. Longe com as especulações bizantinas. O galo, indispen-sável leitor, é o símbolo da austeridade. “Fulano está co-mendo um galo”, costuma-se dizer de alguém que esteja passando alguma dificuldade, alguma provação. Deseja o presenteador que ao presenteado não falte o alimento e, por extensão, os bens materiais necessários à sobrevi-vência, mas que, de qualquer modo, esteja o presenteado

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atento para a possibilidade de ter de enfrentar as dure-zas que o próximo ano, segundo se espera, reserva para a maioria das pessoas que habitam este conturbado planeta, principalmente as que vivem em sociedades com elevada dívida externa. Enfim, diz o doador, é melhor comer um galo do que não comer nada; ou ainda: mais vale um galo na mesa do que uma galinha no quintal do vizinho. E se tens que comer um galo, que o faças com dignidade.

E o jornal do dia? Com o jornal do dia parece o doador querer lembrar o amigo da necessidade de estar consciente da sua situação no mundo, de não descuidar do espírito, de ter o coração também no sofrimento do irmão, de ter consciência de que é parte insubstituível da humanidade, de que está na aventura da história humana e não apenas da sua existência individual, de conhecer a si mesmo através do outro. Como se vê, o doador não esqueceu nada na mensagem sutilíssima, mensagem de sá-bio, do seu presente de fim de ano. Mas vamos adiante.

Chegamos ao maço de cigarros. Com este elemento, diz o doador ao amigo que também deseja que não lhe fal-te o prazer, a satisfação dos sentidos, o ópio; que a mesa não lhe sirva só à alimentação e a cama ao sono, ao me-recido repouso, mas sirvam igualmente à plena satisfação das necessidades do paladar, do olfato, do tato e de outras mais que o recato me impede de declinar. Tão inteligente foi o presente, tão tico de simbolismo, que, além de tudo, ainda deu matéria a este pobre articulista. Ciao!

Diario de Pernambuco, 5 de janeiro de 1984

De verão e de solDa minha janela, vejo que já está firme o verão. O

que quer dizer que a nada esotérica seita dos adoradores do sol já retomou seu alegre ritual, devidamente paramen-tada – ou antiparamentada –, pelas praias da vida. Não

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tenho as qualidades necessárias para ser admitido nessa seita, mas, à distância, sou simpatizante dos seus dogmas, dos seus rituais, e bem que gostaria de ter jeito para ser um adorador do sol.

Afinal, somos ou não somos um povo tropical? De onde virá a nossa extroversão? Será sensato deixar de lado os condicionamentos ecológicos do nosso jeito de ser? O fato é que a maioria dos brasileiros vive sob o signo do sol. Talvez seja por isso que sejamos mais da rua do que da casa, mais do bar do que do lar, mais da extrover-são do que da introversão. Para nós, o inverno não chega, mesmo quando mais rigoroso, a ser uma estação, porém a suspensão momentânea do verão.

O verão é uma das referências fundamentais do bra-sileiro. O verão e a praia, tão asssociada ao verão. Somos uma civilização – quem pode esquecer? – fundamental-mente litorânea, predominantemente voltada para o mis-tério do oceano. Vivemos como caranguejos, como já disse, se não me engano, Gilberto Freyre. Quando distan-tes do litoral, sentimos a nostalgia do oceano, dos verdes e azuis, que são muitos, do cheiro forte do mar. Mar e sol formam o binômio ecológico fundamental, a referência natural básica do brasileiro.

Memória atávica de um povo oriundo de outros po-vos litorâneos, de outros povos tropicais, portugueses e afri-canos, principalmente? Talvez. Como quer que seja, é no verão que a gente pode realizar mais integralmente o ideal de comunhão com a natureza, através do contato do corpo com os elementos naturais: a terra sob os pés descalços, o fogo do sol sobre o corpo nu, a água dos banhos que o corpo reclama e o ar cheio de odores misteriosos enchendo os nossos pulmões. É no verão que conversamos com todos os gênios da natureza, de cada um dos seus elementos, os elementais, como chamam os esoteristas. Os adoradores do sol, na sua aparente brincadeira pelas praias da vida, são,

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na realidade, adoradores da natureza toda, através de todos os seus elementos, sem excluir nenhum.

Não haverá alguma coisa de arquetípica na sedução universal do verão e do mar? Os povos setentrionais so-nham com a visão das águas do mar oceano sob a luz ca-rinhosa do sol. Os europeus do norte correm em busca do sol e do Mediterrâneo. Outros, mais audaciosos, sonham com ensolaradas ilhas do Pacífico. Foi o caso de Gauguin.

Viva o sol! Viva o mar!

Diario de Pernambuco, 27 de setembro de 1984

Desculpa, SalomãoDesculpa, velho Salomão, a irreverência, mas é que,

não sei por que razão, andei lembrando a frase que dizem que disseste, que nada há de novo sob o sol. Desculpa, Salomão, mas tenho que discordar, do chão da minha ig-norância, diante da tua sabedoria de filósofo, da tua sen-sibilidade de poeta. Mas é que, agora mesmo, olhando da janela, surpreendi o verde canto de umas árvores (ora, direis, ouvir mangueiras...) sob o sol, um canto que jamais os meus olhos haviam escutado. Acaso, velho Salomão, te aconteceu alguma vez ouvir mangueiras, jaqueiras, pés de fruta-pão, coqueiros, como as mangueiras, as jaqueiras, os pés de fruta-pão, os coqueiros que cantam lá fora a sua música de verde luminoso? Não, amigo Salomão, não creio que nada exista de novo debaixo do sol. Ainda on-tem, uma meninazinha cantava na vizinhança uma canti-ga de fim da tarde. Era uma canção triste, de uma tristeza sem fim, que há muito eu não escutava: “Capineiro de meu pai, não me corte meus cabelos...”. A canção não é nova. Eu já a conhecia desde os meus dias de menino de Cachoeira, brincando às margens do Mundaú. Requinte, inovação, não havia. Era apenas uma meninazinha can-tando uma canção no fim da tarde. E, no entanto, nada

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poderia existir de mais novo sobre a face da Terra. Ouvir aquela canção no fim da tarde era descobrir o universo, era entender que nada há de velho sob o sol.

Um dia destes, por exemplo, descobri, nos olhos de um cãozinho de minhas relações, evidências de uma sabe-doria que, seguramente, contraria toda a ciência disponí-vel a respeito dos bichos ditos irracionais. Era também um fim de tarde, e dificilmente haveria sinal de maior poder de compreensão do que o que emanava do olhar calmo e profundo daquele amigo que só não fala, porque, com os olhos que possui, não precisa de palavras. Talvez, amigo, eu esteja enganado, mas será que tudo é realmente velho e repetido? Não creio. Muitos cães podem já ter olhado muitos homens como aquele me olhou, porém somente aquele me olhou, naquele momento de fim de tarde, da-quele modo. E isso é inteiramente novo, absolutamente novo. Outra vez, aconteceu-me de receber, sem que eu sequer pedisse, a carícia generosa de umas mangas for-mosíssimas que me envolveram com seu terno perfume. Estavam, as tais mangas, no mesmo recinto em que eu lia alguma coisa. E aquela carícia lembrou-me o olhar afetuo-so da mulher amada. Outra vez, senti na palma da mão a luminosidade intensa e doce de uma pele acariciada na penumbra. E eu pude sentir na minha própria mão todas as luzes do universo, a via láctea, vários sóis. Não sei não, meu amigo, mas pelo que eu lhe conto bem podemos ver que, para mim, nada há de velho debaixo do sol.

Uma ocasião, por exemplo... mas é melhor deixar alguma coisa para outro momento.

Diario de Pernambuco, 27 de outubro de 1983

Do santo e do nome deleComo eram graves as semanas santas da minha in-

fância! E olhem que não faz tanto tempo assim, podem

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crer. A atmosfera era de uma tristeza mortal. Não se can-tava, não se brincava. O roxo imperava. As emissoras de rádio caprichavam na música erudita mais tristonha. Mas as coisas mudaram com uma rapidez enorme. Aliás, as coisas têm mudado com muita rapidez. E hoje a semana santa já não tem a atmosfera pesada daqueles tempos.

E por falar em semana santa, volto ao santo Francisco da cidade de Assis, a respeito de quem tanta coisa desen-contrada tem dito este escriba. Primeiro afirmei que o jo-vem Francisco convertera-se durante grave doença. Depois expliquei que quem se convertera não fora Francisco, po-rém Giovanni, pois era este o nome de batismo do pobre-zinho de Assis. E agora tenho que explicar que a coisa não foi bem assim, mas também não deixou de ser, depois de conversar com o meu franciscano amigo Giuseppe Stacone. Já me explico.

Acontece que o comerciante Piero Bernardone, pai do santo, era pessoa muito ligada à Provença. De tal modo que fora lá buscar a mulher que escolhera para esposa. E sucedeu que, estando a mulher para dar a luz ao menino que viria se tornar o grande renovador do cristianismo no século XIII, teve Piero que fazer viagem súbita à França, ou melhor, à Provença, onde tinha negócios urgentes a tratar. Ao voltar, encontra o filho já batizado com o nome de Giovanni, coisa que o aborrece, pois projetara chamar o filho de Francesco. Ordena, então, que, mesmo batizado Giovanni, seja o filho chamado pelo nome de Francesco. E assim é feito. Ocorre que, sendo a mãe de Francesco nas-cida na Provença, o menino aprende as canções galantes daquela terra. E é naquele idioma, o provençal, que poste-riormente irá compor suas próprias canções. Assim, toda uma atmosfera provençal cercava o menino Francesco desde a infância. De sorte que, quando ele se converte, já era pelo nome de Francesco que acodia. Está, portanto, feito o necessário reparo ao reparo já feito.

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Mas não falo do santo de Assis apenas para corrigir informações que, de qualquer modo, são de menor impor-tância. Falo do pobrezinho de Assis, porque nunca é demais lembrar a sua passagem neste mundo cada vez mais contur-bado, cada vez mais carente da sua lição. Falo do santo da Úmbria, porque dificilmente terá existido quem tenha sido mais radical na prática do amor. Filho de burgueses, sem compromissos, portanto, com o poder da Igreja Católica Romana, pôde redefinir revolucionariamente o cristianis-mo na sua historicidade. Poucos terão sido mais profun-dos na compreensão do sentido da caridade cristã. Seus poemas de louvor à criação divina e de exortação à prá-tica do amor só encontram paralelo em alguns trechos do Evangelho. Mas é na sua vida, nos seus atos, que vamos encontrar o grande poema da cristandade entendida como modo de estar no mundo.

Diario de Pernambuco, 19 de abril de 1984

Doistoievski, ainda e sempreFruto do sentimento de perplexidade diante da exis-

tência, a ficção literária é, conscientemente ou não, refle-xão filosófica em torno da condição humana e, portanto, expressão da consciência. Daí o inevitável substrato éti-co e metafísico, sem o qual não existe grande literatura. Intenções filosóficas, contudo, não fazem, por si mesmas, obra literária digna do qualificativo de artística. Sem o estético, a obra de ficção, por mais ostensiva, consciente e elaborada que seja a sua dimensão filosófica, permanece no limbo incômodo situado entre Arte e Filosofia. Se bas-ta o estético para justificar um certo tipo de ficção – a que tem o fim deliberado de apenas divertir o leitor –, refle-xão filosófica, apenas, não faz bom romance – nem conto, nem poema, nem literatura dramática.

É o que, provavelmente, tenha levado o Graham Greene a classificar seus romances em duas categorias: a

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dos romances sérios e a dos que se destinam à pura diver-são. É a mesma razão pela qual a sobrecarga de metafísica torna maçantes as incursões nem sempre felizes, ao menos artisticamente, de um Sartre, como, notadamente, em A náusea, que, como reflexão filosófica, não chega a merecer figurar entre as grandes realizações no campo da literatu-ra artística, embora o mesmo não aconteça com outros escritores, preocupados, portando, com uma postura filo-sófica diante do mundo, como foi o caso de Camus.

Como quer que seja, equilibrar o filosófico e o ar-tístico na obra de ficção constitui, provavelmente, um dos maiores desafios para o artista literário e talvez se possa afirmar que é esta capacidade – a de conciliar reflexão fi-losófica com fins artísticos ou, mais acertadamente, de ca-muflar o ético e o metafísico sob o estético – que distingue o grande escritor de ficção. É, pelo menos, o que se conclui da leitura de um Dostoevski – ainda e sempre.

A recente publicação, através da Editora Cultrix, da seleção de contos do mestre insuperável de Crime e Castigo traz à tona, para o leitor brasileiro, a reflexão sobre as relações entre Filosofia – Ética e Metafísica principalmente – e Arte Literária. Como em toda a lumi-nosa produção de Dostoievski, os contos selecionados e traduzidos por Ruth Guimarães nos mostram o quanto as preocupações morais e metafísicas do grande escritor russo constituem elemento fundamental na sua obra, sem o qual pouco ou nenhuma razão haveria para lembrá-lo. Não que sejam originais as suas concepções éticas, nem, muito menos, que estas predominem sobre o artista. Sua concepção voluntarista do humano, expressa no clássico O subsolo, não tem respaldo na ciência do comportamen-to contemporâneo, da Psicanálise, por exemplo, para cujo nascimento, no entanto, ele tanto contribuiu. Podemos não compartilhar da sua torturada visão cristã do mundo, mas dificilmente podemos escapar à constatação de que

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poucos artistas literários alcançaram a sua capacidade de dar expressão artística às ideias morais.

Inovador, talvez à la diable, da literatura de ficção de sua época, Dostoievski é o genial antecipador – sabe qualquer apreciador da boa ficção – das experiências de um Kafka, como demonstram contos como O Subsolo – o estranho monólogo de um espírito que busca desesperada-mente dar sentido à existência –, que abre a coletânea. É, no entanto, em A propósito da neve fundida e Krotkaia que, seguramente, nos deparamos com o que de mais alto e depurado realizou Dostoievski. Aí, como em Crime e casti-go e Os irmãos Karamazov, a Literatura ocidental alcança o seu mais elevado momento como expressão estética da superação filosófica da perplexidade em face da existência.

Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, 30 de agosto de 1986

Eu, Copa etc.“Vagou, vagou noite adentro até se dar conta de

que, por mais que buscasse a mulher amada, por mais que buscasse Deus, encontraria sempre a si mesmo por todos os bares do mundo, em todas as ruas, em todas as cidades, em todos os hotéis, em todos os livros, em todos os tragos, e, de repente, achou estranho como não havia percebido isso antes, e que, agora, lhe parecia tão claro (os analistas, pensou, chamam a isso de insight). E viu, no fundo do seu coração, que não estava só, porque esteve sempre consigo mesmo, e que, no mais íntimo de si mesmo, ele próprio jazia plácido como um lago submerso sob o mar revolto dos seus gestos desnecessários, das palavras sem sentido”.

— Literatice, pura literatice, meu caro — disse para si mesmo. — Não posso entender como é que te falta assunto. E as Malvinas? E no Líbano? E a Copa do mundo? E os problemas ecológicos? Se não entendes

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de política internacional, se nada sabes de futebol, se te falta sensibilidade para os grandes problemas da nossa época — como os problemas ecológicos —, por que se comprometer com o jornal para escrever cinquenta linhas por semana? Agora essa literatice pseudopoética é que não dá mesmo para convencer ninguém! “Lago submerso”, “mar revolto”! Não te parece uma retórica já um tanto cansada para o be-nevolente do leitor?— Mas fique sabendo que há muito leitor que gosta de “lagos submersos” e “mar revolto”, e que falar da minha subjetividade também é opinião. Afinal, o mundo não se resume às Malvinas, ao Líbano e aos problemas ecológicos. E digo mais. Quando o leitor abre o jornal pela manhã, ainda tem, fresquinho na memória, o noticiário da televisão que ele assistiu na véspera. Por mais que o jornal corra, não vai jamais alcançar a televisão. Se eu botar a palavra Malvinas no título do meu artigo...— Ou crônica?— Crônica, vá lá... Se eu botar a palavra Malvinas na minha crônica, sabe o que acontece? O leitor passa por cima. O que ele quer mesmo é ler quem fale das suas emoções cotidianas, dos seus sentimen-tos diários, porque o coração da gente também tem suas Malvinas, seus Líbanos e seus desequilíbrios ambientais...— Agora foi demais. Mais respeito com os pobres palestinos e com os nossos irmãos involuntariamente envolvidos na disputa pelas Malvinas! Acho melhor procurar as tuas imagens pretensiosamente poéticas em outras regiões do planeta.— Mas é isso mesmo que eu lhe digo. Quando me meto a sério nos meus artigos (ou crônicas, como quer você), ninguém comenta, ninguém dá bola,

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ninguém me diz nada. Mas quando eu falo dos meus grilos (que você acha sem importância), aí todo mundo fala. E se fala é porque pelo menos leu, não é mesmo?— Sei lá! Só sei é que você, com essa história de “lago submerso” e “mar revolto”, com Malvinas ou sem Malvinas, com Líbanos ou sem Líbanos, já es-creveu sua crônica (será mesmo?) e levou o leitor na conversa. Toma jeito, seu Vila Nova!

Diario de Pernambuco, 17 de junho de 1982

Existe uma vanguarda musical brasileira?O maior problema da nossa vanguarda musical e ar-

tística em geral é que ela comumente pouco ou nada tem de brasileiro, pois é quase sempre importada. E importada em caravelas, como dizia o Oswald de Andrade. A mim me parece curiosíssima a falta de nativismo dos nossos músicos tidos como de vanguarda. Acho que ainda não descobrimos o Brasil, exatamente porque preferimos inconscientemente ser europeus e olhar o Brasil desse modo. É engano ima-ginar que os movimentos modernista e regionalista deram um novo rumo à cultura erudita brasileira. Não por culpa desses movimentos nem dos seus mentores e seguidores. Mas o fato é que, no plano da música, continuam os nossos artistas supostamente de vanguarda a namorar os experi-mentalismos eletrônicos e aleatórios de franceses e alemães. Os músicos populares se extasiam com sons eletrônicos de guitarras anglo-saxônicas e proclamam a universalidade desses sons, confundindo ingenuamente cosmopolitismo com universalidade. Ora, será o chiclete universal somente porque é imposto pelas metrópoles econômicas do mundo? E ainda desconhecemos o Brasil.

A meu ver, uma vanguarda musical brasileira so-mente merecerá o adjetivo, na medida em que proponha

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uma música realmente nascida da nossa tradição musical popular. É preciso que as elites se voltem para esse mundo musical que ela em geral prefere desconhecer ou conhecer como coisa exótica, pitoresca, folclórica e nada mais. É preciso descobrir e respeitar a sabedoria musical do povo, para daí chegarmos a uma autêntica vanguarda musical brasileira, o que significa a criação de um idioma musical brasileiro. Brasileiro em suas escolhas, em seus ritmos, em seus timbres, em suas formas. Pois, na realidade, ainda falamos um idioma musical europeu. Villa-Lobos pen-sou ter descoberto esse idioma. Mas fez uma música mais impressionista que brasileira. Não tenho dúvida de que o que de mais avançado conseguimos na realização do idioma musical brasileiro em nível erudito – porque ele já existe na cultura popular, só precisa ser descoberto – é a experiência do Quinteto e da Orquestra Armorial. Trata-se de um modelo de lucidez e coragem na afirmação de uma vanguarda musical brasileira. Não sou o primeiro, é claro, a observar essas coisas. Nada mais faço que repetir o que Mário de Andrade e Ariano Suassuna – as duas pes-soas que mais profundamente refletiram sobre o problema – defenderam, em épocas diferentes, de modo brilhante.

Jornal Universitário – órgão oficial da UFPE, nº 12, ano VII. Recife, agosto de 1975

Fora com o leão!Fui ao leão. Prestei contas dos meus parcos ganhos,

ainda mais desbastados pelo apetite voraz do bicho, ape-tite de leão. Todos os meses, antes mesmo de alimentar os que me são mais caros, dou de comer ao leão, que quer mais, sempre mais, que a cada dia abocanha um pedaço maior do que me custa cada vez mais em energia, em tra-balho diário, para ganhar. O leão é insaciável e impiedo-so. A ele só interessa mesmo a sua vontade. O resto que se

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dane. E a nós, seus servos, só cabe dar o que ele exige, ou melhor, toma. Pois, afinal, o leão é o leão.

Por que a metáfora – pergunto-me –, a meu ver des-cabida, embora compreensível, que associa “o mais co-nhecido dos mamíferos da ordem dos carnívoros” (é o Aurélio quem explica) ao fisco e, por extensão, ao Estado como um bicho selvagem, terrível e implacável, pronto a abater e devorar quem se atreva a lhe contrariar a vonta-de? De que mente terá saído a ideia de associar o Estado ao temível carnívoro? Será esta a metáfora mais apropria-da ao que acreditamos, desde a Revolução Francesa, que o Estado deve ser? Não creio, mas suspeito de que se tra-ta de símbolo mais do que revelador do que os que têm controlado a máquina do Estado no país acham que ele, o Estado, deve ser – um leão, uma fera ameaçadora, fon-te de medo, de terror, de insegurança e de angústia para o indefeso do cidadão –, como estou certo de que não pode haver símbolo menos adequado ao conceito ideal de Estado, ao menos a partir da consolidação da queda do absolutismo, em 1789. Que Hobbes entendesse o Estado como um monstro, o Leviatã, vá lá...

E se o conceito ideal de Estado democrático não cor-responde e talvez jamais tenha correspondido ao que, de fato, é e tem sido o Estado nas sociedades organizadas segundo o modelo da democracia liberal, ou outro qual-quer modelo, isto não justifica a atitude fatalista de quem não entende que democracia não é nenhum estado final, mas um processo permanente de busca da concretização de um ideal de convívio humano, de organização da vida social, de vida civilizada. A democracia, como a civiliza-ção (e como dissociar, hoje, civilização de democracia?), está sempre além do que se conquistou como forma mais justa, mais compatível com a dignidade humana, de or-ganização política da sociedade. Por mais que tenhamos conseguido em realização do ideal democrático de socie-dade, a democracia está sempre no amanhã.

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Mas voltemos ao leão, ou melhor, à metáfora leo-nina do Estado, pois cabe refletir sobre o que ela revela do inconsciente (e não será toda metáfora revelação do inconsciente?) de quem a criou e explora. Em primeiro lu-gar, ela revela que os seus adeptos acreditam que o Estado não é mais que uma terrível entidade (ainda o Leviatã dos tempos do absolutismo?) à espreita do indefeso cidadão (ou súdito?) e que este não passa de pobre servidor da vontade da “fera”. Em segundo lugar, nos revela que, na medida em que o Estado é identificado com o fisco, o ci-dadão, na mente de quem inventou a metáfora e acredita na sua legitimidade, fica reduzido à condição de simples contribuinte: aquele a quem cumpre apenas dar ao Estado o que ele exige em impostos, sem nada receber em troca além do que ele, o Estado, do alto de sua onipotência e onisciência, decide por si mesmo conceder.

Se é como leão que o Estado é concebido, já não há lugar para o cidadão, mas tão somente para servos e súdi-tos, segundo o modelo aristocrático tradicional, inconciliá-vel com o ideal democrático de sociedade. Por outro lado, a metáfora leonina do Estado, revivescência paleontológica do conceito hobbesiano, não pode ter lugar em nenhuma sociedade que se pretenda democrática.

Ora, a condição de cidadão é que deve anteceder a de contribuinte. O contribuinte é apenas uma face do cida-dão, pois a cidadania não deve estar reduzida a obrigações, muito menos às estritamente fiscais, mas implica direitos cujo usufruto por parte do cidadão cabe ao Estado assegu-rar. Isto, bem entendido, quando o Estado não é concebido como um leão e o cidadão não está reduzido à condição de contribuinte. Já não será tempo de esquecer essa anacrô-nica metáfora? Por que tratar os cidadãos como se fossem zebras e antílopes, as presas preferidas do feroz carnívoro?

Fora com o leão!

Diario de Pernambuco, 22 de março de 1985

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Getúlio e a músicaEm artigo de jornal publicado em 1932, Mário de

Andrade, observando que “no geral é muito raro o homem público que gosta de música”, pois “os nossos homens de governo só se preocupam de mandar”, conclui que “o Sr. Getúlio Vargas é fortemente musical”. “O ditador e a mú-sica” é o título do artigo, que está em Música, doce mú-sica. Fazendo questão de ressaltar que não está “fazendo nenhuma ‘intriga da oposição’”, insiste o genial pai de Macunaíma que “o ditador, atual soberano de todas as nossas soberanias, é um ser muito musicalizado”. Mais do que isso: “vive, por assim dizer, assombrado pela música”. E ainda mais: “a música o obceca”, pois “nos momentos mais agudos da sua existência, a doce música o envolve, o prende nas suas malhas consoladoras, e o ditador principia falando em imagens da mais conspícua essência musical”. E para demonstrar a musicalidade de Getúlio, transcreve tre-cho da plataforma lida pelo próprio, quando ainda candi-dato da Aliança Liberal: “Realizada esta [a estabilidade da moeda], tornava-se necessário um compasso de espera para que em torno da nova política cambial se processasse o rea-justamento da nossa vida econômica”. E comenta o mestre Mário: “raramente mesmo tenho visto metáfora tão exata, demonstrando tamanho conhecimento técnico da matéria que serve de imagem”. E arremata: “é perfeito”.

Poucos poderiam ter usado de ironia mais depurada do que o poeta da Pauliceia desvairada, sobretudo quan-do, no mesmo artigo, mostra-se preocupado em saber “se o Brasil ainda está esperando que se acabe esse compasso desesperante pra entrar no coral das nações civilizadas”. Como quer que seja, já não é in o emprego de metáfo-ras provenientes do jargão musical nos comunicados dos nossos homens públicos, cada vez mais afeiçoados ao eso-terismo do economês. Mas haveria metáfora mais cabí-vel para os dias que hoje vivemos no Brasil do que a do

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compasso de espera? E há quanto tempo estamos nesse compasso de espera, suspensos, na expectativa da músi-ca? E que música? As preocupações com a estabilidade da moeda, a política cambial e o reajustamento da nossa vida econômica, presentes na plataforma do candidato da Aliança Liberal, não apenas persistem, mas se aguçaram e retêm a batuta do imponderável maestro em um compas-so de espera que não tem mais fim. Quanto a mim, pobre mortal, ignorante dos misteriosos meandros do economês, bem que gostaria de ver, ou melhor, ouvir os nossos ho-mens públicos retomarem as metáforas musicais ao modo do pai (ou filho?) da República Nova, que, sem dúvida, seriam mais compreensíveis ao comum dos brasileiros do que a linguagem hoje em moda e somente acessível a uma meia dúzia de iniciados.

Mas, para que não fiquemos apenas na fina ironia do mestre Mário, neste momento de comemoração do cente-nário de nascimento de uma das mais interessantes e enig-máticas figuras da nossa história política, vale lembrar que Vargas foi, sem dúvida, um governante interessado pela música como poucos no nosso país, segundo atesta o im-pulso ao canto coral dado no Brasil dos anos trinta, sob a orientação de Villa-Lobos.

Mas, que Getúlio haveremos de lembrar, além do amante da música, no centenário do seu nascimento? O dissimulado representante, como querem uns, dos interes-ses da burguesia urbana ascendente no Brasil dos anos 30? O político sempre sensível às novas tendências da socie-dade brasileira? O ditador fascinado pelo poder? O “pai” dos trabalhadores brasileiros, como ainda hoje cultuado por muitos que, na pobreza dos subúrbios, colocam o seu retrato na parede de modestas salas de visita, lado a lado com o Coração de Jesus? O mais hábil de todos os po-pulistas da história brasileira? O nacionalista preocupado com a afirmação econômica nacional através, sobretudo,

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da riqueza de nosso solo? O mais carismático de todos os políticos que o Brasil já conheceu? O político capaz de fazer a si mesmo uma intocável legenda nacional, até mesmo na grandeza do seu último gesto? Como fugir à perplexidade diante da figura de Vargas? E não será esta perplexidade a demonstração mais evidente da grandeza de uma personalidade que continua, ainda hoje, a desafiar intérpretes da nossa história política, políticos e mesmo a nossa própria vida política?

Diario de Pernambuco, 20 de abril de 1983

Getúlio e o povoNa noite do próximo dia 8, estará a Fundação Joa-

quim Nabuco prestando uma homenagem a esse grande artista pernambucano que tanto tem homenageado a sua terra: Getúlio Cavalcanti, um dos mais inspirados compo-sitores do nosso Carnaval. E não só do Carnaval. Mas é so-bretudo como compositor de frevos de bloco que o Getúlio tem entrado no coração do povo. Agora, o Getúlio vai as-sumir o cargo de embaixador do país de sol do Recife na fria e desvairada Pauliceia.

Getúlio Cavalcanti é um compositor popular. De ver-dade. E não um simples compositor popularizado à custa da máquina promocional. Nem um dos tantos composito-res popularescos que a indústria do disco, centralizada no sul maravilha, tem extraído do Nordeste para deleite fácil do público global ávido de exotismos enlatados: baiões, aboios, repinicados de viola, cirandas e não-há-quem-a-guente-mais. Porque ser compositor popular, brigando contra todas as adversidades – como é o caso do Getúlio – que o comum compositor do Nordeste enfrenta, não é fácil. Ser compositor popular não é simplesmente entrar na máquina, gravar discos, dar entrevistas, aparecer na televisão. Ser compositor popular é, isto sim, fazer música

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que o povo canta, é estar no coração do povo. E é este o caso do Getúlio. Getúlio é um dos poucos artistas da sua geração que o povo sabe de cor, tem no coração. Nada tem de vanguardice besta de quem, à falta de talento, quer inovar por inovar. Não. O que o Getúlio quer – basta ou-vir suas canções – é fazer música que o povo cante, é fazer o povo cantar, é, enfim, fazer música musical, como diz o mestre Jobim. E o que o povo quer é que o Getúlio faça música para ele cantar pelo Carnaval, pela vida afora. E caiu a sopa no mel. Mas o que acontece é que o Getúlio tem o Recife no seu coração.

Getúlio sabe o Recife todo. E, como o mestre Antônio Maria, que ele homenageou em uma de suas canções, onde quer que ele esteja, nele estará o Recife. Onde quer que esteja, Getúlio estará no Recife, na boca do povo, no cora-ção do folião. Quem da sua geração foi capaz de se iden-tificar tanto quanto o Getúlio com o Carnaval do Recife e seus grandes artistas? Poucos, sem dúvida. Como Nelson Ferreira, Capiba, Antônio Maria, Sebastião Lopes, sem fa-lar em Banhistas do Pina e no Boi Castanho, que ele tão bem soube louvar, Getúlio está definitivamente no coração do povo do Recife, no coração do Carnaval de sol da nossa cidade, no Carnaval do ensolarado coração do folião.

Viva Getúlio!

Diario de Pernambuco, 3 de fevereiro de 1983

GuitaSerá que o figurativismo está mesmo morto na pin-

tura contemporânea? Se a resposta positiva funciona bem para um artista do porte de Anchises, para outros é inútil. Não me refiro, é claro, aos pintores figurativos repetido-res de fórmulas fáceis, tão ao gosto de quem – artista ou apreciador – busca na obra de arte apenas motivo de os-tentação, mas, aos grandes artistas, como, para ficarmos

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apenas no Recife, um Lula Cardoso Ayres, um Adão Pinheiro, um João Câmara, um Gilvan Samico, um José de Barros, um Francisco Brennand ou uma Guita. Quem pode botar a criação artística dentro de regras? Não creio que o figurativismo, por si mesmo, esteja morto, embo-ra respeite a solução de um mestre como Anchises, hoje, sem sombra de dúvida, um dos mais criativos e originais pintores do Brasil. Morto, isto sim, está o figurativismo adocicado, cheio de cacoetes, estereotipado, redundante, como o de muito “artista” que nada mais faz do que aco-modar-se a um mercado de gosto discutível.

Não é este o caso de Guita. A arte de Guita é sem-pre uma descoberta e uma revelação. Da natureza, princi-palmente. Guita sempre foi uma artista da natureza, das forças animais e vegetais do mundo. Cavalos possantes, insetos maravilhosos, homens e mulheres, árvores, raízes, tatus, folhas, borboletas fazem o encanto do mundo de Guita. Imagino os olhos luminosamente claros da própria Guita espantados diante do mundo maravilhoso que ela vai descobrindo e inventando com sua pena, seus pincéis e suas tintas, fazendo de sua arte microscópio e telescópio mágicos do universo. A arte de Guita transcende os limites materiais de comunicação da pintura, indo além do pura-mente visual, pelo que transmite de cheiros e mesmo de sonhos: os odores e a música da natureza.

A história pessoal de Guita é um exemplo de contí-nuo aperfeiçoamento artesanal, de domínio crescente do material de sua arte, de refinamento da consciência e da emoção de estar no mundo. É impressionante a sua capa-cidade de descoberta de novas e infinitas possibilidades de desdobramentos e fixação do seu tema: a natureza. Jamais submeteu-se às insinuações espúrias contrárias à sua ver-dade e ao seu caminho, como, por exemplo, as do merca-do. A ela não interessa o registro fácil – a quem como ela domina o artesanato do seu ofício – das sugestões deco-rativas do mundo. Não. Sua arte é busca permanente do

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essencial no existencial. E onde melhor encontrar a repre-sentação sensível do permanente do que na natureza? O mundo do artifício, da cultura, do histórico, do contin-gente, das aparências do social não desperta o interesse de Guita. Por isso é que a sua arte vai repousar sobre a silenciosa sabedoria das plantas, dos corpos nus, dos pás-saros, das raízes e das folhas. Sua lógica é a da natureza; seu discurso é o das pulsações do universo. Viva Guita!

Diario de Pernambuco, 27 de abril de 1983

Intelectuais, trombadinhas e trombadões Que representa hoje o intelectual no Brasil? Nada.Ao tempo da cultura dos bacharéis, houve um lugar

e uma função mais claros para o intelectual entre nós; sa-bia-se o que esperar dele. Hoje, porém, não existe um pa-pel consistentemente definido para o intelectual no Brasil; não se sabe o que dele esperar.

O exercício do pensamento – na ciência, na filosofia, na literatura, nas artes – é coisa exótica para a sociedade brasileira, para o brasileiro médio. Ou, mais precisamen-te, a atividade intelectual é inconciliável com a sociedade do trombadinha e do trombadão de gravata. Numa socie-dade na qual a concentração de renda levou à polarização da visão de mundo e do estilo de vida do trombadinha miserável das ruas e do trombadão dos gabinetes alcati-fados, não há nem pode haver lugar para a atividade in-telectual. No império do “salve-se quem puder”, não há espaço para a reflexão. Aí, toda e qualquer atividade do espírito outra coisa não é senão “frescura”, atividade no mínimo pouco viril.

Cercado de miséria por todos os lados, o intelectual sente-se culpado de ser intelectual. Então, ou assume uma concepção messiânica, profética da sua identidade (fe-nômeno bastante comum entre intelectuais do Terceiro

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Mundo, sobretudo os que se dedicam às Ciências Sociais), ou resvala para a irracionalidade do alcoolismo e outras fugas. Se para um grande número de indivíduos, a crise social termina por se desdobrar em crise pessoal, para o intelectual no Brasil de hoje, a situação atinge limites into-leráveis, pois, para ele, não existe sequer um papel social (no sentido rigorosamente sociológico da expressão).

A universidade e o ensino, por sua vez, não consti-tuem de modo algum uma alternativa digna de ser consi-derada pelo intelectual, pois representam precisamente o oposto de toda e qualquer atividade do espírito entre nós. Se alguém no Brasil tem aversão à atividade intelectual, então que se dedique ao ensino, principalmente universitá-rio. Aliás, outra fuga mais perniciosa do que o alcoolismo e a ilusão de uma identidade messiânica é o autoconfina-mento do intelectual ao círculo restrito da universidade, passando, então, a dirigir-se tão somente aos seus pares, em detrimento do público de verdade, que é o que se en-contra fora dos muros da academia.

Por equivocada que seja, no entanto, é compreensí-vel a fuga universitária, pois, na ausência de um público para a mercadoria cultural somente possível em uma so-ciedade democrática – e não pode haver democracia com o nível de concentração crescente de renda do país –, o in-telectual termina por apegar-se à tábua de salvação espiri-tual das expectativas do círculo dos seus pares. Mas nada pode existir de mais melancólico do que o escritor que es-creve para outro escritor. (É tema, o do autoconfinamento do intelectual ao mundo acadêmico, tratado recentemente por Russel Jacoby).

Como quer que seja, numa sociedade de trombadi-nhas e trombadões, o intelectual não pode ser senão um marginal. Mas a injustiça e a miséria que asfixiam a gran-de maioria da população brasileira não é simplesmente fruto do capitalismo, porém, antes, da forma espúria de

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capitalismo em uma sociedade visceralmente oligárquica. E, afinal, cultura não afina com miséria, isto é, com con-centração de renda, com sistema de castas, com oligarquia.

Diario de Pernambuco, 16 de novembro de 1990

Isaac Bashevis Singer: poesia e místicaA literatura de ficção norte-americana, não há como

negar, muito deve aos escritores judeus. Arthur Miller, Norman Mailer, J. D. Salinger, Lillian Hellman, Bernard Malamud, Cinthia Ozick, Delmore Schawarz, Tillie Olsen, Jerome Weidman, Saul Bellow, Philip Roth, entre outros, estão, seguramente, entre os nomes definitivos da literatura dos Estados Unidos, uma das mais significativa-mente expressivas e inovadoras entre as literaturas nacio-nais do presente. Isaac Bashevis Singer, Prêmio Nobel de Literatura de 1978, constitui, no entanto, uma figura sin-gular entre os escritores judeus dos Estados Unidos. E não apenas pelo fato superficialmente pitoresco de escrever, ainda hoje, em iídiche e de fazer, ele mesmo, a tradução dos seus textos para o inglês. Nada identificado com a agressividade iconoclástica de um Philip Roth, ou o osten-sivo cosmopolitismo de um Saul Bellow ou um Norman Mailer, por exemplo, Isaac Bashevis Singer filia-se à tra-dição dos escritores judeus da Europa Oriental, amoro-samente voltados para a reconstituição lírica da vida das pequenas aldeias de camponeses, como, notadamente, Mendele Mocher Sforim, J. L. Peretz e Scholem Aleichem, tradição da qual é, contudo, considerado um inovador.

Amor e exílio (L&PM, 1985), seu livro mais recen-te em português, representa uma experiência inteiramente diversa de tudo o que o leitor brasileiro conhece até agora desse escritor excepcional. Conhecido como o imaginoso narrador de fábulas – bem ao estilo tradicionalmente ju-daico – ambientadas no mundo superficialmente simples

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das aldeias rurais da Polônia, Singer revela, com Amor e exílio, a face do memorialista. Constituído de Um menino à procura de Deus, originalmente publicado em 1975, e Um jovem à procura de amor e Perdido na América, pu-blicados pela primeira vez em 1981, Amor e exílio cons-titui o que seu autor denomina de uma “autobiografia espiritual, ficção contrastando com um fundo de verda-de, ou contribuições para uma autobiografia” que, afinal, não pretende, segundo confessa, escrever.

Cobrindo a existência do autor, da infância aos trinta anos, Amor e exílio relata, como insinua o título, a experiência amorosa de Singer na juventude e os seus pri-meiros meses como imigrante nos Estados Unidos. Mais do que simples relato autobiográfico, Amor e exílio está, no entanto, entre as mais apaixonantes reflexões em for-ma de ficção em torno da condição do judeu, do oprimido e, por extensão, da condição humana. Localizada em um espaço social e geográfico no qual os judeus foram vítimas da segregação porventura mais irracional que se presen-ciou na História, a narrativa de Singer representa, além do mais, um relato de excepcional importância histórica e sociológica enquanto registro e, sobretudo, depoimento a respeito do drama, do sofrimento e das contradições dos judeus na Varsóvia das três primeiras décadas do século.

Embora situado em espaço social e período histórico definido, Amor e exílio, no entanto, possui a transcendên-cia metafísica que toda grande obra de ficção termina por alcançar. Não se trata de puro e ressentido exercício de autopiedade através da literatura em torno da experiên-cia de alguém que conheceu de perto as adversidades das condições de vida de um judeu na Varsóvia do início do século. Trata-se, antes de mais nada, de reflexão poética sobre o estar no mundo.

Formalmente marcada pelo chassidismo, a narrativa de Singer se enriquece com a mais empaticamente poética

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perspectiva de todas as criaturas, como bem transparece na patética constatação de que “seria preciso ser totalmen-te indiferente com relação a homens e animais para ser feliz”. Amor e exílio representa, ainda, a concretização de um modo de conceber a literatura como expressão de vida e não, como tantos imaginam, como puro malabarismo verbal, o que não surpreende em um autor que “decidira há muito tempo que os poderes criativos da literatura não estavam na originalidade forçada produzida pelas varia-ções de estilo e maquinações de palavras, mas nas incontá-veis situações que a vida cria o tempo todo, especialmente as estranhas complicações entre homem e mulher”. E não se dá por acaso que Amor e exílio tanto se aproxime, em alguns momentos, da prosa poeticamente delirante e mís-tica do Henry Miller de Trópico de Capricórnio.

Amor e exílio, realização da mais plena maturidade, é obra de um excepcional artista literário, mas, sobretudo, de um sábio.

Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, 16 de novembro de 1985

João SantiagoFoi no dia 5 de junho de 1932 que foi fundado o Bloco

Batutas de São José, resultado de uma desavença na diretoria do Bloco Batutas da Boa Vista. Desse modo, é no Carnaval deste ano que o Batutas de São José estará comemorando os seus cinquenta anos de existência. E no seu já tradicio-nal Baile dos Artistas será prestada homenagem ao grande músico, chefe de orquestra e compositor João Santiago, que, aliás, tanto já tem homenageado com sua arte o bloco do seu coração. Na mesma ocasião, será lançado o disco João Santiago e os cinquenta anos do Bloco Batutas de São José.

Comecei o dia de hoje ouvindo o disco de João Santiago, o guru da Torre. Para dizer a verdade, tive o

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privilégio de escutá-lo antes mesmo de ser prensado, ainda em fita magnética, na casa do próprio João, numa manhã de sábado regada a cerveja e, principalmente, amizade. Não há dúvida: é disco já antológico, indispensável, obrigató-rio a quem se interessa pelas coisas da cultura e da gente do nosso Recife. Lá estão reunidas algumas das mais boni-tas composições do grande artista que é o João Santiago: Vou com Valdemar, Reminiscência, Relembrando o pas-sado, Sabe lá que é isso (conhecida como Hino do Batutas de São José), entre outras. Além das composições do João, o disco inclui a bela composição de Augusto Bandeira, o alfaiate que foi o principal fundador do Batutas: Regresso.

O disco do mestre Santiago é crônica afetuosa e poé-tica de mais de duas décadas da história do Batutas e, por-tanto, de parte significativa da história do Carnaval do Recife. E, de quebra, o guru da Torre ainda dá na contra-capa do seu disco uma deliciosíssima crônica da fundação do Batutas: “(...) amanheceu chovendo a cântaros (...) O Pátio de São Pedro ficou cheio d’água”. Mas o pior é que “na hora de começar a festa os músicos do Monte-Pio (con-tratados para tocar na solenidade) desistiram. E foi um cor-re-corre para arranjar outra banda”. Foi quando “debaixo de chuva torrencial, Bandeira e Cícero Vidal correram ao Quartel do 21 BC, cuja banda era famosa, ali encontran-do apenas um oficial do dia, que nada podia fazer, pois os músicos estavam de folga...”, mas “o mesmo oficial arran-jou o endereço do maestro da Banda do 21 BC, o saudoso tenente João Cícero, em Olinda, e para lá tocaram os dois. (...) E enquanto eles corriam para Olinda, atrás do maestro tenente João Cícero, a casa do Pátio de São Pedro 33 ia se enchendo de convidados e curiosos. Valdevino, o dono da casa, atrapalhado, esbodegado, apreensivo com a história da banda de música atendia aos que chegavam. E a chuva caindo em cataratas, enchendo o Pátio de São Pedro, a Rua das Hortas, as Águas Verdes. Em Olinda, cansados, esba-foridos e ensopados, Bandeira e Cícero Vidal, conseguiram

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localizar a residência do maestro tenente João Cícero. Um trabalhão para convencer o tenente a aceitar a ‘tocata’ na casa de Valdevino”.

E continua Santiago: “Acontecia que, às 17 horas, a banda do 21 BC iria se apresentar no Pátio de Santa Cruz. Conseguiram a promessa do tenente: depois da apresen-tação do Pátio de Santa Cruz, os músicos que conseguis-sem reter debaixo da chuvarada iriam tocar na festa de Batutas. Bandeira e Cícero Vidal voltaram-se um para o outro, aliviados. E nem discutiram o preço combinado: oitenta mil réis... uma pequena fortuna. E voltaram satis-feitos. Quando reapareceram na casa de Valdevino, até a chuva começou a melhorar. Os despeitados do Batutas da Boa Vista, que estavam por perto antevendo o fracasso da inauguração do novo bloco, assumindo já atitude de ridi-cularia e gozação, baixaram a crista diante do foguetório que foi ensaiado à volta dos dois emissários”. E conclui Santiago: “Um heroico feito carnavalesco”.

Salve Batutas de São José! Salve João Santiago, gran-de guru da Torre!

Diario de Pernambuco, 27 de janeiro de 1983

Macunaíma revisitadoGraças à louvável iniciativa da Funarte, que tanta

coisa boa tem feito pela cultura artística brasileira, pude me deliciar com algumas canções que o mestre, indefec-tivelmente mestre, Mário de Andrade fez, sozinho ou de parceria com músicos do porte de um Francisco Mignone ou um Camargo Guarnieri. Que bom contar com esse registro discográfico da obra daquele que representa um dos mais fulgurantes momentos da inteligência brasileira! Refiro-me ao álbum discográfico intitulado Mário trezen-tos, 350, recentemente lançado pela Funarte, que é reali-zação oportuna e de extraordinária importância em um

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panorama – o da música popular brasileira – no qual o critério mercadológico tem ascendência sobre o artístico, quando a mercadoria disco vale mais que o seu conteúdo e razão de ser.

A beleza do álbum já começa pelo apuro gráfico, a partir das sugestivas caricaturas de autoria de grandes ar-tistas nacionais no gênero, gente do primeiríssimo time: Cássio Loredano, Scliar, Chico Caruso. A iconografia do caderno que acompanha o álbum, embora bem concebida, poderia ter sido enriquecida com outras fotografias do pró-prio Mário. Muito boa a escolha de Lenita Bruno e Teca Calazans para interpretar as canções, que são lindíssimas. Entre estas, destaque especial cabe para a famosa Viola quebrada, também conhecida como Viola da Maroca. Esta é, ao que se sabe, a composição que, sem parceiro, Mário nos legou. Há uma outra de que se tem notícia. Trata-se, porém, de uma brincadeira, fruto de requintado senso de humor e de autocrítica do mestre paulista. É o Hino do Grupo do Gambá, alusão satírica aos símbolos totêmicos do Movimento Modernista: a anta, inicialmente, e, depois, o jaboti. Muito inteligente foi a ideia de dar ao ouvinte a oportunidade de ouvir três diferentes concepções harmô-nicas de Viola quebrada: a de Villa-Lobos, a do próprio e, para a interpretação de Teca Calazans, a do jovem violo-nista Maurício Carrilho. Do mesmo modo, vale ressaltar a pertinência do registro das duas versões musicais do poema de Manuel Bandeira, Azulão: a de Jayme Ovalle (esse gran-de e misterioso artista que preferiu dedicar-se a elaborar a obra de arte que foi sua vida, em vez de se meter com essa coisa nem sempre agradável que é a chamada “vida artís-tica”) e a de Radamés Gnattali.

Agora, algumas restrições, pois que, afinal, o diabo da raposa de Saint-Exupéry, embora beirando a pieguice, estava mesmo com a razão. Ao álbum faltam notas que deem ao ouvinte as referências que justificam a inclusão

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das canções. Por que não esclarecer que as modinhas Quando as glórias que gozei..., Vem cá, minha compa-nheira..., Róseas flores da alvorada e Hei de amar-te até morrer estão nas Modinhas imperiais, livro encantador, joia finíssima da obra de Mário? Por que não transcre-ver mesmo os comentários do próprio Mário a cada uma dessas modinhas? Por que não dar ao ouvinte jovem a oportunidade de saber quem é Lenita Bruno e da sua im-portância na música brasileira?

Apesar dessas lacunas, Mário trezentos, 350 é álbum para se curtir brasileiramente, com vagar, numa rede, de preferência. Para se curtir e guardar.

Diario de Pernambuco, 22 de março de 1984

“Margaridas”Hoje começo contando uma história passada na

Paraíba. Conta-se que uma daquelas figuras excêntricas populares de João Pessoa, que viviam pelas ruas a decla-mar poemas da própria lavra e a discursar, envoltas pelo carinho de toda a gente da cidade – não me lembro se foi Mocidade ou Caixa d’Água, mas creio que foi o primeiro –, era protegido de João Agripino, quando este era gover-nador do estado. E o João Agripino é quem lhe dava de comer, de vestir e de morar. Um belo dia, vai alguém e diz ao governador que o seu protegido andava a falar mal do seu governo. Isso publicamente, discursando pelas ruas e praças da cidade. Para todo o mundo ouvir. O governador condescende. Quem sabe poderia haver algum exagero na informação. Mas a história se repete e mais informações vão chegando aos ouvidos do magoado governante – me-cenas a seu modo – sobre as incompreensíveis catilinárias do ingrato afilhado. Aí não houve mais jeito de contornar. E, antes ferido que irado, resolve o munificente João cha-mar o protegido ao palácio. E lá chega o exótico orador.

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— Mas que história é essa, Mocidade, de você andar por aí falando mal do meu governo? — pergunta-lhe o João Agripino, um tanto constrangido pela pró-pria magnanimidade. — Afinal, quem é que lhe dá dinheiro, quem é que lhe dá de comer, de vestir e de morar? Não sou eu?— É sim, senhor.— E então, meu amigo, você acha que é certo o que anda fazendo por aí? E onde é que fica a nossa amizade?— Mas doutor João, me diga uma coisa — avança muito calmamente o incômodo orador. — E o se-nhor não é governo?— E daí?— Pois então? Governo é pra sofrer.Termino a história que, para mim, encerra pelo

menos duas grandes lições de política, democracia e ci-dadania. A primeira é de que a prática da democracia e o exercício da política exigem que se distinga, o quanto possível, as relações de amizade da função pública. O que, é bem verdade, nem sempre é fácil. A segunda lição é a de que o exercício da função pública, muito mais do que privilégios, implica o ônus de ter que prestar contas de to-dos os atos junto aos concidadãos, de admitir o direito de crítica por parte de todo e qualquer governado, ônus que somente pode ser suportado pelo estoicismo imprescindí-vel a qualquer homem público.

Conto essa história e faço este comentário, porque confesso que não posso deixar de sentir uma certa difi-culdade em dissociar o meu relacionamento pessoal com o atual prefeito da nossa cidade do cargo que ele exerce. Que jeito? Mas sei que o senso de cidadania me obriga hoje a falar em nome das “margaridas”, essas flores obs-curas que têm por ofício cuidar da limpeza e da beleza da

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nossa cidade. Fui informado de que as “margaridas” do nosso amado e sofrido burgo já não recebem os sapatos e as luvas especiais necessárias ao seu trabalho. E creio que até mesmo as suas antes vistosas vestes andam já um tanto surradas. E o problema não é só das “margaridas”, mas também dos homens que trabalham na limpeza pública. Essa é uma gente de todo merecedora da nossa mais afe-tuosa e justa atenção.

Amigo Jorge Cavalcanti, veja a situação das “margaridas”.Diario de Pernambuco, 5 de agosto de 1982

Mason e euMuito relutei em te contar, enfastiado leitor, o episó-

dio em que fui buscar o assunto desta crônica. Foi no ano distante de 1964, e o Mason do título outro não é senão o famoso ator inglês recentemente falecido, James Mason, com quem convivemos, eu e o Fernando Spencer, em lon-gínqua noite de outubro, lembro bem, daquele ano.

Ora, se deu que, tendo ido à procura do amigo Fernando no Diario de Pernambuco encontrei-o de saída, à porta da redação, apressado, dizendo-me, antes que o cum-primentasse, que o acompanhasse, que tinha uma entrevista “bomba” para fazer, mas que não tinha problema nenhum que eu estivesse presente. A pessoa a ser entrevistada estava no Grande Hotel, de modo que poderíamos ir a pé. A noite apenas começava. O Recife, vale lembrar, era cidade bem menos confusa do que hoje, limpa e agradável.

A caminho do hotel, não resistiu à minha curiosidade e revelou: tratava-se, nada mais nada menos, do que do grande intérprete do professor Humbert Humbert, perso-nagem do polêmico romance de Vladimir Nabokov, Lolita. Passava incógnito pelo Recife, onde encontrava-se há já cinco dias, sabe-se lá por que cargas d’água, e a notícia che-gara ao Fernando através de um dos tantos contatos de que

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ele, às expensas do próprio bolso, dispunha nos principais hotéis do Recife, com o fim de informá-lo a respeito da pre-sença de celebridades cinematográficas que, como Mason, queriam passar despercebidas pelo Recife. Acontece que, tendo sabido da presença do ator inglês no Grande Hotel, pôde o Spencer, graças à notória vocação diplomática do seu contato naquele hotel, rapaz muito letrado e poliglota, hoje servindo eficientemente ao Brasil como cônsul em dis-tante país oriental (não ouso declinar-lhe o nome, que é de ilustre e tradicional família pernambucana, embora àquela época ganhasse a vida e custeasse os estudos trabalhando estoica e honradamente na portaria daquele hotel, onde, de qualquer modo, aperfeiçoou seus conhecimentos linguísti-cos), pôde o Spencer, dizia eu – curioso leitor, o período longo e desarrumado –, assegurar-se de que, mesmo a con-tragosto, Mason o receberia. E lá fomos nós.

Embora doido por cinema desde as matinês da in-fância, lendo com religiosa atenção os livros que o Spencer recomendava e emprestava – os de George Sadoul, do Pe. Guido Logger, o de Chartier e Desplanques, o do gran-de Pudovkin, entre outros –, não lembrava de ter visto o Mason a não ser como o capitão Nemo do romance de Júlio Verne, adaptado em produção de Walt Disney.

Era fino nos gestos, estava em mangas de camisa, aliás, um típico slack de cores espalhafatosas destoando dos modos britanicamente suaves, comedidos. Mesmo assim, havia uma ponta de irritação no cenho levemen-te franzido e no insistente tamborilar dos seus dedos fi-nos, de unhas bem tratadas, no braço gasto da poltrona. Mesmo assim, com a ajuda do nosso diplomático amigo, que já havia terminado seu expediente do dia no hotel, soube o artista colocar os três provincianos à vontade. Perguntou se eu também era jornalista, e o Spencer expli-cou tratar-se de um amigo, grande admirador da “sétima arte” (lembro-me bem, foi essa a expressão que ele usou).

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Estava aborrecido com o fisco lá dos Estados Unidos e que a sua presença no Recife era puro acaso, capricho talvez de quem sente curiosidade de saber o que se esconde sob um nome exótico lido casualmente no mapa, mas que di-rigia-se à Argentina, onde tinha amigos que o esperavam. Subitamente, pediu desculpas, tão ao modo inglês, dizen-do que, como não almoçara, gostaria de comer alguma coisa, frutos do mar talvez. Não haveria algum restau-rante agradável do nosso conhecimento onde pudéssemos conversar à vontade? Como ele próprio falara em frutos do mar, o Spencer lembrou o Maxime. E fomos todos, o Mason, o futuro diplomata, o Spencer e eu, ao Pina. A noite era morna. Too hot, too hot, repetia como que para si mesmo o elegante artista.

Mas deixo para a próxima semana, benevolente lei-tor e curioso, os sucessos do Pina.

Diario de Pernambuco, 30 de agosto de 1984

Nabokov e a vertigem da poesiaApesar das crendices vanguardistas a que o indivi-

dualismo e a competição conduziram a arte na civilização ocidental, a inovação não constitui, por si mesma, critério de qualidade da obra literária. Grandes escritores podem trabalhar dentro de padrões tradicionais sem nenhuma preocupação em inovar, enquanto artistas menores (na realidade, pseudoartistas) procuram compensar a medio-cridade criativa através do ostensivamente novo, quando não do cansativamente modernoso. Que novidade existe nos recursos narrativos utilizados por Graham Greene, um dos maiores ficcionistas do século? Não é a capacida-de de inovação dos meios expressivos, portanto, que faz um grande ficcionista.

Escritores excessivamente preocupados em inovar são, com frequência, cerebrais, destituídos da emoção sem

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a qual não existe verdadeira obra de arte. Poucos são os ficcionistas formalmente inovadores que conseguem atin-gir a difícil harmonia entre o cálculo consciente da ino-vação e a preservação da carga emotiva que, em última instância, permite o encontro mágico entre escritor e lei-tor. Será o caso de James Joyce e, entre nós, de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Dalton Trevisan. Como é seguramente o caso de Vladimir Nabokov de Fogo pálido (Ed. Guanabara, 1985).

Muito raramente consegue um escritor conciliar o alto nível de burilamento formal e a requintada capacida-de de inovação estrutural com a densidade emotiva como Nabokov em Fogo pálido. Poema dentro do poema, so-nho dentro do sonho, fantasia dentro da fantasia, ficção dentro da ficção, o romance de Nabokov é, mais do que a possibilidade de contato com uma das obras mais ori-ginais e estilisticamente polidas do romance contemporâ-neo, experiência da vertigem no luminoso abismo que não termina – como só acontece com as grandes obras de arte – com a leitura da última linha.

Aparentemente simples, Fogo pálido é constituído dos comentários ao último poema composto por um dos seus personagens, John Francis Shade, antecedidos pelo próprio poema, está, na realidade, entre aqueles roman-ces nos quais mais se deve atentar para as entrelinhas. Erudição, senso de humor, pleno domínio do artesanato da palavra, empatia, imaginação, capacidade de recria-ção poética convergem, em Fogo pálido, para a concre-tização de uma totalidade fascinante e misteriosa como, talvez, só encontrável, na ficção da atualidade, em Jorge Luís Borges.

Apresentado com significativo atraso ao leitor brasi-leiro, Fogo pálido tem ainda, na edição da Guanabara, o mérito de uma tradução cuidadosa e de bom gosto raro nas apressadas traduções cometidas ultimamente entre nós,

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e está, sem dúvida, entre as mais importantes realizações editoriais, no campo da ficção, em 1985, no Brasil.

Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, 28 de junho de 1986

No coração dos homensCreio que uma condição necessária à compreensão

do outro, de nós mesmos, do homem em geral, é a ca-pacidade de distinguir o modo como as pessoas são de fato, com todos os condicionamentos a que estão subme-tidas, do modo como nós achamos que elas devem ser; é a capacidade de distinguir as nossas concepções morais do comportamento real que constatamos nos indivíduos; é a capacidade, enfim, de distinguir o ser do homem do que, sabe lá por que razões, achamos que ele deve ser. Muito conflito – qualquer pessoa pode constatar apenas pela introspecção – deriva exatamente da eterna incompatibi-lidade entre o que, por um lado, constatamos no compor-tamento do outro e, sobretudo, no nosso próprio e, por outro lado, as nossas ideias morais, as nossas concepções valorativas do humano. É claro que a coisa não é tão sim-ples assim, na medida em que, no caso da nossa espécie, ser e dever ser se confundem, já que o nosso modo de ser, de conviver, de agir, de satisfazer necessidades é artificial, aprendido através do chamado processo de socialização. Somos animais capazes de transformar o dever ser em ser.

É grande a sabedoria cristã a esse respeito, pois, ao mesmo tempo que propõe uma moral, uma concepção do dever ser do homem, que, no caso, confunde-se com uma concepção ontológica do humano, como acontece com toda concepção religiosa do humano; ao mesmo tempo em que propõe uma moral, dizia eu, entende e ensina que “no coração dos homens nem os anjos penetram, mas, apenas Deus”. Deriva daí que não temos direito algum

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de julgar, em última instância, os atos alheios. No entan-to, o catolicismo (que nem sempre significa cristianismo), quando esquecido desse ensinamento, tem dado margem a muita intolerância e hipocrisia inteiramente incompatíveis com a lição evangélica. Intolerância que, não se conten-tando, em se voltar contra os vivos, não hesita em ferir a memória dos mortos. Claro que é necessário, igualmente, distinguir o catolicismo das suas distorções decorrentes da fraqueza humana.

Lembro essas coisas a propósito, ainda, do suicídio do grande Pedro Nava e de expressões de primário e ar-rogante desrespeito, em tudo inconciliável com a atitude cristã, em relação ao trágico gesto do inigualável memo-rialista. Não pode o cristão aceitar o suicídio porque ele nega a esperança, que, no entanto, mais que uma virtude, é uma graça. Que direito temos nós, portanto, de julgar quem não a tem? Que direito temos nós de extrair cômo-das lições do desespero alheio? Que sabemos nós dos co-rações afogados no desespero? Se no coração dos homens, como nos ensina o Evangelho, nem os anjos penetram, em nome de que temos o direito de interpretar o gesto de desespero do nosso irmão? Existe acaso maior expressão de oportunismo espiritual do que pretender beneficiar a nossa própria existência com interpretações apressadas do gesto de desespero do nosso irmão? Ah, que detestável a arrogância mal disfarçada em piedade, muitas vezes ro-tulada de cristã, dos que, sabe-se lá por que misteriosos desígnios da Providência, conseguem sobreviver! Nada justifica a nossa intenção de aumentar o conforto de nosso espírito com a dor do nosso irmão.

O heroísmo é sempre digno de admiração, mas a fra-queza é digna de todo o nosso respeito, pois o heroísmo é a exceção, mas a fraqueza é a regra. A fraqueza é o pão nosso de cada dia. É o caminho inevitável. É o leito notur-no. É o fruto do nosso pomar. É a flor cotidiana do nosso

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jardim. Está em nossa carne, em nosso corpo, em nosso espírito. Contra ela, apenas a graça e a misericórdia divi-na. Mas é comum que se exija do semelhante – não de nós próprios – o heroísmo. Heroísmo da franqueza a qual-quer preço, da coerência incondicional, da vontade férrea. Do outro exigimos o heroísmo, mas em nós mascaramos a fraqueza essencial. Se não conseguirmos chegar ao he-roísmo, contentamo-nos com o bom-mocismo hipócrita. Pobre moral esta, elaborada em nome de um “cristianis-mo” adocicado, piegas, despojada de carne e de sangue, mais preocupada com as glórias passageiras do mundo!

Com a palavra, para terminar, o poeta Fernando Pessoa: “Toda a gente que conheço e que fala comigo / nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida... [...] /Arre, estou farto de semideuses!/ Onde é que há gente no mundo?”

Diario de Pernambuco, 25 de maio de 1984

No MaximePensei comigo mesmo: por que o Spencer inventou

de trazer o Mason logo para o Maxime? Por que é que não lembrou do Cassimiro, na Camboa do Carmo, para onde já havíamos levado tanta gente importante, em cir-cunstâncias semelhantes, como, por exemplo, o Richard Burton? Falo, paciente leitor, de longínqua noite na qual fomos, o amigo Fernando Spencer, o famoso ator inglês James Mason, um jovem poliglota de nossas relações que viria a se tornar diplomata de grande prestígio e este arti-culista, jantar no famoso quanto aprazível restaurante do Pina que dá título a esta crônica.

Como a noite apenas estivesse no começo, o restau-rante era quase despovoado. Somente um casal, a um can-to, esperava o jantar, conversando com recato. Tomamos

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um dos reservados, que o leitor por certo há de conhecer. A peixada estava magnífica, perfeita na combinação dos seus elementos, como perfeito estava o vinho de proce-dência portuguesa que, segundo a manifesta preferência do companheiro britânico, pedimos. O silêncio reverente da celebridade, apenas interrompido por exclamações de elogio à preciosa iguaria, era a evidência inequívoca do seu prazer.

— Os bons restaurantes — começou a discorrer em tom grave e solene — são os verdadeiros templos da civilização.Lembrei Gilberto Freyre e Blaise Cendras.— É na mesa e na cama que se expressa, em toda a sua profundidade, o sentido da civilização e a reve-rência ao mistério da natureza — continuou.A sua voz melodiosa enchia o reservado como se decla-

masse um monólogo de Shakespeare. Éramos só ouvidos.— Na mesa, diante do alimento, como na cama, diante do corpo que se oferece, estamos diante do grande mistério da natureza, da continuação da vida. Daí a necessidade de etiqueta, de ritual, nas duas ocasiões, pois a consciência desse mistério só nos é possível pela civilização. No mais íntimo de nós mesmos, temos certeza da sacralidade desse ine-vitável reencontro com as forças da natureza. A civi-lização, a verdadeira civilização, ao contrário do que imaginavam os iluministas, não é contrária à natu-reza. Observe que, como num círculo, a civilização mais requintada se encontra com as mais elementa-res expressões da capacidade humana de reelabora-ção da natureza, precisamente no que as chamadas sociedades primitivas possuem em comum com as sociedades mais sofisticadas quanto à compreensão do sentido da natureza na existência. Daí porque es-tamos, os humanos, condenados à civilização, o que

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é uma maneira de dizer o mesmo que disse Sartre. Somos livres para criar a civilização.Tudo isso por causa de uma boa peixada. Quem di-

ria que, em lugar de uma entrevista, teríamos uma lição de Antropologia Filosófica?

Vieram os digestivos. Elegante, o brilhante compa-nheiro levantou-se, enquanto explicava ter de satisfazer ir-reprimível e prosaica necessidade fisiológica. Demorou-se mais do que o normal. Um dos garçons veio à nossa mesa para explicar que Mr. Mason tivera que voltar sozinho ao hotel. A conta estava paga. Fui até a calçada. Respirei longamente. A noite era profunda.

Diario de Pernambuco, 13 de setembro de 1984

Noturnamente MariaViveu despudoradamente, mergulhou fundo na pai-

xão de viver, vagou suas dores pelas ruas do Recife e do Rio de Janeiro; noturnamente, afogou as mágoas pelos bares, cantou as suas mágoas de amor – e as dos outros também – em canções que permanecem nas noites dos Brasis, riu espalhafatosamente, foi feliz como o menino grande que sempre foi pela vida, jamais desistiu da paixão de conhecer o mundo por dentro, amou loucamente, fez dos seus dias a busca incansável da beleza, até partir, no-turnamente, de tanto amar.

Seu nome: Antonio Maria, o Maria, como era cha-mado pelos amigos. Há vinte anos que deixou de cantar as suas e as mágoas de amor de tanto gente espalhada pelas noites escuras da existência, de consolar os fracassados do amor, com suas canções.

Ó vós, que medis o valor das pessoas pela conta ban-cária, por certo sentireis dificuldade em compreender a homenagem a quem foi na vida destituído do senso prático das coisas, não amealhou, não construiu nenhum império,

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não subiu na vida. E vós que vos acreditais superiores pelo sobrenome, não entendereis seguramente por que falar de quem teve como único título de nobreza a capacidade de amar e se entregar à vida. E vós que viveis para a compe-tição, não podereis entender por que lembrar alguém que viveu para o amor e não passou por cima de ninguém, não ocupou cargos importantes. E vós que estais fundassen-tados no conforto dos gabinetes alcatifados, acreditando na ilusão de comandar vidas, que podereis entender dos que vivem para o grave ofício de reinventar a beleza que o Criador nos legou? E vós cujo orgulho está no automóvel de luxo que vos conduz pelas avenidas do mundo sem que se quer olheis para os que passam a um palmo dos vossos olhos, que podereis saber de quem se perdeu pelas ruas da vida, noturnamente? E vós que jamais derramastes uma lágrima sequer pelo irmão, que haveis de saber de quem chorou sozinho, na solidão dos bares, noturnamente, por uma mulher? E vós que estais sempre certos dos vossos sentimentos, que podereis saber da alma dos que de tanto amar se perderam nos caminhos confusos da paixão? E vós que andais sempre em linha reta, que sabeis dos que não podem escolher por onde andar? E vós que jamais cantastes uma canção de amor no fim da tarde pela mu-lher que se foi com seus olhos de mel e de luz numa noite distante, que sabeis de quem viveu para inventar canções de amor para mulheres que partiam? E vós que não sabeis o que é o fracasso, que podereis saber dos fracassados do amor? E vós que apagastes para sempre a infância nas vossas vidas de executivos da existência, que podereis en-tender dos que são e sempre serão meninos grandes? E vós que jamais cantastes um samba-canção de Antonio Maria, o anjo da noite, que sabeis da vida?

Não, decididamente não é a vós, virtuosos de do-mingo, donos de qualquer verdade, que imaginais possuir o direito de julgar o irmão, que imaginais dirigir a própria existência quando conduzis o vosso automóvel, que lembro

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aquele que, como ninguém, soube falar e cantar aos que, como ele, não temem os caminhos do coração. Falo aos tocados pela graça de compreender que, acima das ideolo-gias e das religiões, de todas as vaidades e interesses, está o humano, com tudo o que ele implica de belo, imprevisível e doloroso. Esses, só esses, são capazes de compreender e amar o irmão Antonio Maria, que amou e sofreu, noturna-mente, e soube como ninguém fazer canções para os que, como ele, preferiram a vida e a ela se entregaram sem medo.

Dorme, menino grande!

Diario de Pernambuco, 18 de outubro de 1984

O Menino Jesus brinca de CarlitosCharles Chaplin morreu, mas não morreu Carlitos.

Lembro que a primeira coisa que escrevi para publicação, ainda ginasiano, assim pelos meus 13 anos, foi exatamen-te sobre Chaplin. Um pequeno artigo publicado em um jornalzinho de colégio – chamava-se O Clarin – com pre-tensões à crítica cinematográfica. O título do artigo era A volta de Carlitos e nele eu dizia – sob a influência das lei-turas de George Sadoul – algo mais ou menos assim: que Carlitos era um homenzinho sem camisa que fazia rir os sem camisa, uma alusão à fábula do homem feliz que não tinha camisa; um homenzinho que era feliz só por bus-car a felicidade. E eu lembrava aquela última e antológica cena de Tempos Modernos, quando escrevia essas coisas. De tal sorte que, sendo Chaplin um dos meus ídolos de adolescência, não tenho a isenção para falar dele como terá um crítico de cinema, que, de resto, nunca fui, enfim, para falar com a objetividade da razão.

Mas Chaplin não é assunto para crítica cinematográ-fica nem para crítica de espécie alguma. Primeiro, porque a sua grandeza é daquelas que jamais será sequer roçada por qualquer juízo de valor que dele se faça. Tudo o que

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se disser estará infinitamente aquém de sua arte. Segundo, porque Chaplin não foi um cineasta, simplesmente. Foi, antes de tudo, um poeta. Acho que era Hegel que dizia que todas as artes aspiram à poesia – antes qualidade pre-sente em toda e qualquer grande obra de arte do que gê-nero literário. E, se alguns cineastas chegaram a atingir em uns poucos momentos – às vezes até à la diable – a poesia essencial de toda obra de arte, Chaplin foi, por excelência, o poeta da câmera cinematografia. Meu Deus! Meu Deus! Que mistério terrível é o da cena da dança dos pães de Em busca do ouro?

Mas o que talvez engrandeça mesmo a obra de Chaplin é que ela é – pondo de lado o deslize de A Condessa de Hong Kong –, antes de mais nada, a história dos sem história: a comédia dos sem comédia. E por isso, criando o Carlitos – que é um Hardy porém diferente no que tem de carregado de esperança –, Chaplin tocou no que há de mais fundo no homem: a amargura do fracasso; o medo do fracasso que ronda todos os homens, ricos ou pobres. Fracasso na profissão, na saúde, na família, no amor. Mas não ficou na amargura de Hardy. Não. A temática chapliniana não é só a do fracasso, porém, da oposição entre o fracasso e a esperança, esta, não por acaso, uma virtude cristã. Tenho medo, sempre tive medo da retórica da morte, do ridículo de discursar, de brilhar sobre cadáveres. Mas, como cris-tão – cristão sem dúvida nada exemplar –, fico pensando no estranho sinal que é a morte de Chaplin, principalmen-te quando se comemora o nascimento de Cristo. Parece que, talvez, com isso, o Senhor tenha dado ao Cantor da Esperança a graça de renascer com o seu Filho. Se tenho a certeza de correr o risco de parecer piegas numa época em que não é de bom-tom acreditar e falar na Revelação cristã, por outro lado, tenho também a convicção do meu dever de testemunhar a minha crença nesses sinais do Criador.

Mas já pareço um padre, talvez mais cônego, se fa-lar assim de Chaplin. Mas o que quer que se diga sobre o

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artista Chaplin será puro lugar-comum. Que ele fez o ci-nema essencial, o cinema-imagem? Que ninguém como ele compreende essa essencialidade da sua arte? Que ele é a própria história do cinema (em sentido quase literal)? Que ele foi a expressão máxima da contenção do comedimen-to, do antivirtuosismo, do antimalabarismo no cinema? Que ele foi o artista total?

Não. Só posso falar com emoção. Com a emoção de quem não esquece aquele sorriso: sorriso infantil de cara toda, sorriso de menino escondendo trela ou ganhando presente. Com a emoção de quem se sente rico somente por lembrar aqueles olhos, os olhos mais bonitos de toda a história do cinema, abertos no espanto da alegria ou do medo, encrustados nas olheiras da pobreza e no alvaiade reluzente da esperança. Como devem ter sido o sorriso e o olhar daquele menininho pobre de Belém, que, sem que ele suspeitasse, foi o herói de todos os seus filmes.

Diario de Pernambuco, 28 de dezembro de 1977

O poeta e a criseAs crises tendem a limitar a nossa percepção da con-

juntura. Mas é nos momentos de crise que, mais do que nunca, é necessário preservar a perspectiva histórica dos acontecimentos, e essa atitude requer, compreensivelmente, um esforço racional e consciente para que o espírito, na-turalmente inclinado a submergir nos fatos do momento, possa atravessar com altivez as tensões a que está exposto.

Se assim não fosse, não estaríamos, desde o dia 17 último, voltados para o “encantamento” do poeta Carlos Drummond de Andrade. Que faz um poeta? Qual a con-tribuição do poeta à sua sociedade? Um poeta não cria leis, nem empregos. Produz, é bem verdade, um bem notoriamente escasso, cada vez mais escasso no mundo em que vivemos: a poesia. O poeta – acreditam os mais

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pragmáticos e utilitaristas – vive lá entregue às suas mu-sas, aos seus sentimentos, às suas emoções, alheado do mundo. Já outros fazem a concessão equivocada (para não dizer burra) de tolerar o poeta apenas enquanto ele faça poesia chamada engajada, poesia dita participante, nos moldes da solução do desditado Maiakóvski.

O que justifica a nossa reverência, neste momento em que a dívida externa, a inflação, a confusão políti-co-partidária são motivos de preocupação de todo brasi-leiro consciente da gravidade do momento histórico que atravessamos, o que justifica a nossa reverência à memó-ria do grande poeta? Ora, se a história de uma sociedade não se resume à história de sua economia, da sua política e das suas classes, não se resume igualmente à história de sua literatura, da sua poesia, mas é também a história da sua arte. Acredito, com Elliot, que o poeta contribui para nos fazer mais conscientes dos nossos sentimentos, da nossa situação no mundo e, desse modo, para aper-feiçoar o nosso espírito. E é nesse sentido que nenhuma poesia, sendo verdadeira, é alienada. Alienação implica desconhecimento da realidade da nossa situação no mun-do. A poesia é, afinal, o resultado da necessidade humana de ver além das aparências. Na sua teleologia, a poesia não difere muito da ciência, pois ambas pretendem encon-trar os nexos ocultos do que acontece sob a superfície da realidade. Outro grande poeta, Benjamin Péret, afirmou, com razão, que se hoje o poeta “só pode ser maldito”, dia virá em que ele “sairá do seu esconderijo forçado para se pôr à cabeça da sociedade logo que ela, sacudida de alto a baixo, haja reconhecido a origem humana comum à poe-sia e à ciência (...)”.

Identificado com a experiência coletiva – e não apenas com a concepção estreita da poesia panfletária –, um poeta como Drummond contribui para a formação e consolida-ção da nacionalidade, precisamente porque, empenhado no

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trabalho cotidiano de aquisição de uma consciência mais aguda da realidade, nos dá, pronta, a experiência do seu es-pírito. E que poeta poderia, no Brasil, melhor personificar a consciência poética do mundo e inevitavelmente da nossa experiência histórica do que Drummond?

A poesia de Drummond não vai resolver o problema da inflação brasileira, não vai saldar a nossa dívida exter-na, não vai conduzir nenhum partido ao poder, mas nos torna mais humanos e mais brasileiros.

O poeta “encantou-se”. Viva o poeta!

Diario de Pernambuco, 27 de agosto de 1987

O poeta Maiakóvski está tristeO poeta Maiakóvski está triste. Anda triste o poeta

Maiakóvski. Pelas ruas frias da cidade, carrega a pureza inconsciente dos seus vinte anos. Mãos nos bolsos, sonha com terras distantes, ensolaradas terras, como sonhara Gauguin. Um estranho nome em exótica língua há dias que não lhe sai da cabeça, evocação de verdes tropicais, de eterno verão, de praias selvagens e mulheres douradas: Brasil. E repete para si mesmo os versos que ultimamente têm lhe ajudado a enfrentar o tédio, o inevitável tédio dos invernos da sua cidade: “dizem que em algum lugar, pare-ce que no Brasil, existe um homem feliz”.

O poeta Maiakóvski está triste. Mas sua tristeza não vem dos dias de inverno da sua cidade, apenas. Nem só dos dias que vêm e vão sem novidade, sem as emoções de que precisa o seu jovem coração de poeta. Sua tristeza é a tristeza do seu povo, da gente oprimida pelo czar de todas as Rússias. É a tristeza dos humilhados e ofendidos, dos sufocados pela tristeza animal da fome e da doença nos cortiços de todas as Rússias. Sua tristeza é antes a más-cara da revolta, de uma revolta surda pedindo explosões, extravasando em poemas e tragos e mais tragos de vodca.

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Sua tristeza vem da mesma revolta que terminara por le-var o santo e puro Dostoievski à degradação do trabalho forçado nos lugares mais frios e distantes entre todas as Rússias do czar. “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.

O poeta Maiakóvski está triste. Para muito além da neve espicha o olhar pela janela do quarto. E sonha com uma terra de gente boa e sempre alegre como os seus dias de sol, terra de palmeiras ao vento em calmas tardes de verão, de coloridas aves e vegetal perfume, de gente que conta as estrelas do céu no silêncio das noites mornas e ciciantes, que dança pelas praias e se delicia com os frutos das suas árvores e os peixes dos seus rios, que dorme feliz e acorda todos os dias para a alegria da liberdade. O poeta Maiakóvski sorri: “dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.

O poeta Maiakóvski está triste. Anda triste o poe-ta Maiakóvski. Sua tristeza, porém, é muito antiga, vem de muito longe, de muitos povos, perpassa os séculos, vai muito além dos poucos anos da sua vida. Sua tristeza é também a tristeza do povo de um país distante e ensolara-do que ele sequer chegou a conhecer e onde imaginou que houvesse um homem feliz.

O poeta Maiakóvski está triste. Ah, como anda tris-te o poeta Maiakóvski!

Diario de Pernambuco, 23 de fevereiro de 1984

PacotesO homem é um bicho fascinado eternamente pela

magia. E por isso encanta-se e encanta com as palavras. Existirá magia mais poderosa do que a das palavras? A palavra é o elemento primário e fundamental de toda magia. A depender da situação, o homem cria e propaga hipérboles, eufemismos – o que parece mais frequente –,

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metáforas, metonímias, como instrumento de transforma-ção mágica da realidade. A palavra não apenas denomina o mundo, mas, principalmente, cria um outro mundo. Ao menos na cabeça das pessoas. Mas a cabeça das pessoas também é o mundo.

É a propósito de “pacote” que me chegam à cabe-ça estas reflexões um tanto desarrrumadas. Eufemismo? Hipérbole? Metáfora? Metonímia? Perplexo, vou, pobre e ignorante mortal, ao amado “pai dos burros”. Quem sabe não encontro no valioso livro, depositário de todos os ar-canos, alguma luz para as minhas dúvidas? Vamos a ele!

“Pequeno maço, embrulho”, é o que encontro no livro do meu ilustre conterrâneo. Mas, pelo embrulho, chego à embrulhada. Ah!, vai ver que é isso mesmo: em-brulhada! Uma metáfora, portanto. Eu bem que descon-fiava. Mas, vejam só, quem diria que os nossos tecnocratas fossem dados a tão sofisticadas sutilezas de linguagem! Mas a coisa não para por aí. Esclarece ainda o Mestre Aurélio que pacote quer dizer também “logro, embuste, engano”. Meu Deus! Não posso, sinceramente, acreditar seja esta a acepção a que se refere a palavra na sua moda mais recente. Que Deus nos livre dessa possibilidade! E diz mais o lexicógrafo-mor da República: que a palavra também significa “grupo de cinquenta peixes, entre os pescadores do litoral”. Tenho quase certeza de que não se trata dessa deliciosa e talássica acepção. Mas bem que poderia ser uma generosa referência ao fato contado no Evangelho. Afinal, não seria má ideia multiplicar peixes para a nossa população. Quem sabe não se trata de um formidável pacote ecológico, destinado a fazer estancar a poluição das nossas águas, a fim de que os peixes voltem, para alegria de todo mundo, a se multiplicar como quer a mãe natura?

Mas tenho a impressão de que o sentido da miste-riosa palavra (misteriosíssima, diria o agregado José Dias)

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tem mesmo é a ver com o seu emprego no campo da Física, como na expressão “pacote de ondas”, isto é, “conjunto finito de ondas que transporta energia de um para outro ponto do espaço; grupo de onda, trem de onda”. Sei não, mas esse negócio de transportar energia de um para ou-tro espaço deve ter alguma coisa com a maldita palavra. O que não sei. Mas que tem, lá isso deve ter. Há ainda o fato de que onde, segundo informa o mestre dicionaris-ta, é brasileirismo que significa “confusão, complicação, embrulhada”. Olha aí a embrulhada: pacote leva a em-brulhada e a onda: onda leva a embrulhada e, portanto, a pacote. É por aí, deve ser por aí.

Mas o pior ainda está por vir. É que fico sabendo que a expressão “ir no pacote” quer dizer “ser enganado, deixar-se lograr”. Pra que é que eu fui inventar de ir atrás do sentido oculto de palavra tão mágica, esotérica? Magia é magia, afinal. Se não tiver mistério, não é magia. E ai de quem quer penetrar nos seus arcanos insondáveis. Saio, enfim, mais perplexo do que quando entrei no sagrado livro da magia das magias que é a palavra. Toda palavra, qualquer palavra. Como a palavra pacote, por exemplo. Ir ou não ir no pacote, that is the question! Ah, a eter-na atualidade de Shakespeare! Que tal voltar ao Hamlet? Mas por que não Lady Macbeth ou Julius Cesar?

Diario de Pernambuco, 16 de junho de 1983

Por causa da noitePor causa da noite, uma mulher botou no papel toda

a tristeza que acumulara pelos caminhos da sua vida, para jamais mandar aquela carta a quem não mais poderia vol-tar às suas noites. E pensou consigo mesma que, afinal, aquela não era a última noite da sua vida. Por causa da noite, um menino reparou, pela primeira vez, no misterio-so silêncio do azul do céu. E, com a cabeça no colo da mãe,

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sentiu medo das estrelas. Por causa da noite, o burocrata malsucedido resolveu tirar a poeira do violão abandonado entre antigos papéis. E percebeu que o seu coração andava tão desafinado e poeirento quanto o instrumento que já lhe dera tanta paz em meio às atribulações do mundo. Por causa da noite, um sujeito de meia idade decidiu fazer a extravagância de cuidar das plantas que davam alegria ao apartamento. E invejou a tranquilidade vegetal daquelas criaturinhas que, na sua humildade, pareciam retribuir o seu gesto com um afago silencioso de reconhecimento. Por causa da noite, o cantador reencontrou a velha Bíblia que ganhara da mulher há muitas noites atrás e releu o salmo que lhe falou de paz, de água fresca e de verdes campos. E dormiu tranquilo como há muito não fazia na certeza de que somos todos frágeis crianças a correr de um lado para o outro sob o olhar complacente do Pai. Por causa da noite, o adolescente calado resolveu tomar o ônibus e ir até o bairro distante onde morava a moça que lhe cum-primentara naquela manhã de chuva, para ficar postado em frente à sua casa, na vã esperança de que ela ao me-nos abrisse a janela. E compreendeu que o que lhe parecia amor é feito de muitos caminhos, de muita viagem, de muita esperança.

Por causa da noite, uma mulher se surpreendeu de-sejando rever a tristeza do rosto do homem que lhe fizera redescobrir a alegria durante o Carnaval. E sentiu uma sau-dade boa da melancolia canina dos seus olhos. Por causa da noite, um sujeito descuidado descobriu no jeito maquinal da mulher lhe perguntar o que fizera durante o dia que a vida não é apenas feita de caminhos, mas também de mui-tos descaminhos, veredas e encruzilhadas. E se perguntou aonde chegaria pelo caminho para o qual a vida agora lhe empurrava. Por causa da noite, a mulher ferida sentiu uma ternura inexplicável pelo homem que lhe dera tantos filhos e tanto sofrimento. E pensou no quanto ele, na sua

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incompreensível inquietação, era tão frágil e que mais frágil parecia quando, agora, o cabelo começava a lhe cair da cabeça. Por causa da noite, a menina de olhos vivos desejou que o pai lhe permitisse criar o cachorrinho que haveria de lhe receber todos os dias com a sua alegria desajeitada e mal cheirosa, quando ela voltasse da escola. E adorme-ceu imaginando-se Alice no país das maravilhas. Por causa da noite, a mulher de olhos luminosos desejou ser apenas a alegria do homem magro e triste que lhe despertara a vontade de se enfeitar com o par de brincos que guardava somente para ocasiões muito especiais. E sentiu-se alegre como há muito não se sentia quando ele, feliz, notou que fora exatamente para ele que havia botado aqueles brincos. Por causa da noite. Por causa da noite, o sujeito intoxicado de tanta culpa lamentou que tudo na vida fosse irreversível, absolutamente irreversível. E desejou poder apagar todo o sofrimento que, na sua insensatez, fora capaz de causar à mulher que, para ele, sempre fora a casa aconchegante dos dias de chuva da sua vida. Por causa da noite, a mulher que morava na tristeza compreendeu que tinha direito à felicidade e se sentiu protegida ao olhar o esguio perfil do homem que, confiante, a conduzia pela noite, no seu au-tomóvel como se fosse um deus, o belo deus da noite. E se sentiu orgulhosa de se dar ao deus impetuoso de cabelos grisalhos saído da noite, enquanto, pacificada, aspirava o cheiro de mar e da madrugada que chegava.

Tudo por causa da noite.

Diario de Pernambuco, 30 de setembro de 1982

Por quê?Que é que está acontecendo? Que planetas se con-

jugaram para que, precisamente hoje, viesse a acontecer o indesejável? Vou até a janela, olho o tempo, detenho o olhar no horizonte, vasculho o verde, distraio-me com

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um avião que passa, e não consigo entender. E quem con-segue, de fato, entender alguma coisa no universo? Mas deixemos para lá a metafísica. O que importa é encontrar uma explicação ou, pelo menos, uma pista para banir a perplexidade. E quem pode acaso evitar a perplexidade? Não adianta: sou um metafísico inevitável. Mas voltemos ao problema. Por que hoje, exatamente hoje? O fato é que cheguei mesmo a buscar a resposta nos livros que cer-cam a minha existência. E o que encontrei? Nada. Ali, uma pista; mais adiante, uma sugestão; naquele outro, so-mente trevas. Mas, enfim, de concreto nada. Vasculhei a memória. Sim, a memória. Quem sabe não retenha ela a solução para o meu problema? E, através do caminho da memória, percorro a infância – a infância é um repositório de respostas a questões como essa –, revejo antigos luga-res, volto a sentir aromas perdidos, escuto canções que há muito se foram, reencontro amigos – alguns dos quais já se foram para sempre –, revivo alegrias que ainda hoje me ajudam a viver, mas que de nada servem hoje para me ajudar a encontrar a solução para o problema em que, de repente, me vejo mergulhado.

Quem sabe uma voltinha pela rua não resolve? Saio para o dia de sol. Olho as pessoas que passam. Encontro um amigo que há muito não via. E, por um momento, penso ter encontrado a resposta. Chego a consultar direta-mente, sem nenhum escrúpulo, o amigo a respeito do meu problema, e o que recebo, fruto da sua visível boa vonta-de, de nada me vale. Despeço-me e continuo a carregar o problema pelas ruas do meu bairro. Mas estou seriamente empenhado em dominá-lo, em derrubá-lo na arena como faz o corajoso toureiro com o resfolegante e pesado bicho. Por um momento, chego a me sentir um toureiro, na arena da vida, diante do perigo da natureza selvagem. Mas vem o medo de ser vencido pela fera que me afronta sólida e ameaçadora. Um homem é um homem, um gato é um

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gato, repito para mim mesmo para manter a serenidade.Ah, um trago, quem sabe um bom trago não há de

me ajudar a encontrar a resposta para o problema? Qual? Nem um trago nem dois. Resolvo tirar uma soneca para dar condições ao inconsciente de melhor buscar uma so-lução. Desperto e descubro-me no mesmo impasse. Não adianta forçar. Que é que há? Eu bem que poderia estar melhor preparado para enfrentar um problema que, mais dia menos dia, haveria de aparecer, pois quem se mete a escrever por obrigação, em dias certos, pode muito bem prever que algum dia não vai ter assunto. Mas por que hoje, precisamente hoje, foi me faltar assunto para o meu artigo semanal?

Diario de Pernambuco, 13 de abril de 1983

Por uma utopiaCostumo dizer, repetindo teorema bastante conhe-

cido – embora contestado por muitos –, aos meus alunos, que a sociedade não é apenas o que as pessoas fazem entre si, mas que ela é também o que as pessoas pensam que ela seja e, principalmente, o que as pessoas acham que ela, a sociedade, deve ser. Trata-se, a meu ver, de um das verdades sociológicas de maior utilidade na vida prática. Todo mundo conhece, hoje em dia, a chamada “profecia que se cumpre por si mesma”, tão bem exemplificada por William Thomas, quem foi que primeiro falou nessa ideia, com aquela história do banco próspero que, no entanto, vai à falência somente porque alguém espalhou o boato de que o banco estava à falência. O banco estava forte, possuía grande capital, mas, como de repente todo mundo passou a acreditar que o banco estava à beira da falência, ele realmente quebrou.

É história que merece, nos dias de hoje, toda a nossa atenção. Que estamos atravessando uma fase de grandes

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provações, é coisa que qualquer criancinha já sabe. Mas a única crise a afetar a vida da maioria das pessoas em quase todas as sociedades do presente não é econômica, material, financeira. Atravessamos, o que é muito grave, uma crise de ideias, uma crise de pessimismo e de desesperança. Não ocorre simplesmente que nos atemorizemos com o futuro. O mais grave é que não compartilhamos, a nível coletivo, de projeto algum para o futuro. E aquilo que acontece no plano da vida coletiva tende a refletir-se na experiência in-dividual. O mundo em que vivemos já não propicia o sur-gimento de Willy Loman algum. Talvez tenhamos passado, infelizmente, a época dos grandes projetos para os nossos filhos. Mas não se pode, quer em nível individual, quer em nível coletivo, viver sem fantasia, sem utopia.

E é isso precisamente de que precisamos: de uma boa utopia. Uma utopia que nos ajude a acreditar no futuro. Nenhuma sociedade vive apenas do seu passado e do seu presente. Toda sociedade depende do seu futuro, do que os seus membros imaginam como provável ou desejável para os dias que virão. O mundo secularizado em que vi-vemos já não dispõe das utopias de origem religiosa (sem que eu queira, eu que sou, bem ou mal, católico, subesti-mar a importância da religião na vida pessoal e coletiva). As grandes utopias secularizadas perdem o seu encanto – a última delas foi a da contracultura. E, de repente, ao homem médio só restou ver televisão.

Se é verdade que a sociedade é também o que nós pensamos que é ou deve ser, o que pensamos hoje a respeito da nossa sociedade? Que projetos existem na mente dos ho-mens para a sua sociedade? Que condições são dadas por aqueles que têm a incumbência de dá-las para que tais pro-jetos existam e deem sentido à existência? Onde as utopias?

Diario de Pernambuco, 28 de julho de 1983

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Porque é brasileiro o BrasilSe não se pode afirmar que o problema do caráter

social do brasileiro esteja, hoje, entre os temas mais fre-quentes da Ciência Social; entre nós, não há, contudo, ra-zão para supor que seja este um tema datado na história da Antropologia e da Sociologia nacionais. É só ler O que faz o Brasil, Brasil (Rio de Janeiro, Rocco, 1986), um dos mais recentes livros do consagrado autor de Malandros, carnavais e heróis, o antropólogo Roberto da Matta.

Qual o significado socioantropológico da experiên-cia cotidiana do brasileiro? Esta é a questão que, desde Ensaios de Antropologia Social – no qual já se esboçam algumas das suas ideias fundamentais em torno da nossa identidade cultural –, Roberto da Matta vem enfrentando com destemor, para usarmos a sua própria autoavaliação.

Se Mário de Andrade não foi além da perplexidade diante do seu herói sem nenhum caráter e Gilberto Freyre foi buscar no trinômio família-monocultura-mão de obra escrava as bases da formação do nosso modo de ser como povo, enquanto Sérgio Buarque de Holanda encontrou na cordialidade (que, vale lembrar, não se confunde com a crença ingênua em uma suposta “bondade fundamental do brasileiro”) a marca básica do nosso caráter, é na opo-sição entre a casa e a rua, na complementaridade dos cha-mados ritos de inversão do Carnaval e ritos de reforço das festas religiosas e patrióticas que Roberto da Matta vai procurar a matéria-prima de sua interpretação.

Partindo da constatação de que “existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira”: o descritivo quantitativista, no qual o que conta são “as estatísticas demográficas e econômicas, os dados do PIB, PNB e os números da renda per capita e da inflação”; e o que ousa penetrar nos sentimentos mais cotidianos do brasileiro e que, em lugar da frieza dos números, prefere voltar-se para “a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade

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que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que per-mitem resistir a tudo”, o autor de Relativizando escolhe o segundo caminho. E, retomando a tradição ensaística de uma Ciência Social hoje tida como superada pela me-diocridade bem comportada da nova pesquisa social no Brasil, vai buscar na empatia o instrumento metodológico fundamental da sua investigação.

Se é verdade que, como já observamos (ver Vila Nova, S. Ciência Social: humanismo ou técnica? – Petrópolis: Vozes, p. 60), “o ensaio é hoje tido pelo – comum do cientista social no Brasil como coisa do passado, inferior e superada” e que “seu lugar foi tomado pelo relatório de linguagem asséptica, para não falarmos no incômodo pedantismo colegial das teses compulsórias”, Roberto da Matta não está, seguramente, entre os seguidores dessa Ciência Social na qual os métodos, de um lado, e de ou-tro, o dogmatismo economicista importam mais do que o conhecimento de uma realidade, a humana, que dificil-mente será alcançada através da estreiteza quantitativista, nem, muito menos, pelos esquemas simplistas de teorias apriorísticas. E não há como negar o assumido destemor do autor de O que faz o Brasil, Brasil? em recuperar um estilo de Ciência Social que não tem por que temer o bom gosto literário, em um cenário dominado pela aridez da linguagem relatorial pseudoacadêmica somada à redun-dância informativa.

“O declínio do ensaísmo na Ciência Social brasilei-ra – como já observamos em outra parte (Ibid, p. 61) – não reflete apenas o desinteresse pela forma literária de apresentação dos resultados da investigação, mas refle-te, sobretudo, a emergência de um determinado estilo de pesquisa social, no caso, o do empirismo abstrato (a ex-pressão é de Wright Mills) cada vez mais voltado para o estudo de situações sociais isoladas do contexto macrosso-cial no qual elas ocorrem”. Mas se é possível discordar em

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alguns pontos da interpretação do Brasil desenvolvida por Roberto da Matta (a identificação do brasileiro em geral, com o carioca, por exemplo), não há como negar a impor-tância do seu trabalho como lúcida e corajosa retomada da tradição dos clássicos da Ciência Social, jamais descui-dados do princípio da totalidade, sem o qual, como enten-deu Mauss, não é possível Sociologia nem Antropologia.

Por tudo isso, O que faz o Brasil, Brasil?, persona-líssimo exemplo da Sociologia existencial, como a enten-de Gilberto Freyre, já está entre aquelas obras, raríssimas na Ciência Social do Brasil contemporâneo, que, além de provocarem a inteligência para as sutilezas, para o aparen-temente banal do cotidiano do brasileiro, se lê com prazer.

Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, 28 de março de 1987

Quinteto Armorial e a música brasileiraDesde os “vandrelismos” de festival que a música

nordestina – ou tida como tal – deixou o estreito círculo de ouvintes suburbanos de origem rural e conquistou as “boas graças” do consumidor de classe média (se não é pleo-nasmo falar em consumidor de classe média). Acabaram-se os festivais. Mas permaneceu a curiosíssima espécie de música surgida com eles. E, dentro dessa espécie de composição, a que mais se destaca é, muito provavelmen-te, a música antes nordestinosa que nordestina, cheia de exotismo: de sons de viola até queixada de burro. Música devidamente empacotada para consumo apressado e re-gado a batida de frutas igualmente exóticas, entre exalta-das e definitivas exclamações de “sensacional” e “genial”. E, com a descoberta pela indústria do disco e pela classe média das delícias de um Nordeste primitivo e pitoresco, surge a moda da pesquisa, ou antes da palavra “pesqui-sa”, palavra magicamente arrotada ostensivamente como

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sinal do inquestionável valor da composição. E passa-se, então, a imaginar que a autenticidade da origem folclórica é o critério absoluto de avaliação da canção. A chama-da “pesquisa” – geralmente de fim de semana – da mú-sica folclórica autêntica passa a ser tida como superior à própria criação artística em si mesma. E tome frevismos e cirandismos, como sucedâneos dos guitarrismos cos-mopolitas e pretensamente universais. E acontece que o compositor, devidamente manipulado pelo empresário do disco, muitas vezes consegue a curiosa combinação das duas tendências – a do cosmopolitismo deslumbrado e a do regionalismo maldosamente ingênuo – misturando fre-vo, ciranda e sons eletrônicos para a manufatura de um produto vendável porque exótico. Mais exótico mesmo do que a matéria-prima folclórica.

A verdade é que, desde Catulo até os compositores contemporâneos, o Nordeste brasileiro não tem partici-pado na indústria da música discográfica nacional senão como fornecedor de matéria-prima folclórica para a ma-nufatura de um tipo de música devidamente estilizada e adaptada aos padrões de gosto “fabricado” das classes médias de todas as regiões do Brasil e, obviamente, das próprias regiões fornecedoras dessa matéria-prima. Como o compositor nordestino, pela sua condição social, perten-ce antes à subcultura urbana brasileira que tem seus focos de difusão no eixo Rio-São Paulo, é através dos padrões de gosto dessa subcultura que ele olha a música da sua re-gião. E a música nordestina se torna tão exótica e pitoresca aos olhos do compositor, do músico e do público nordes-tino quanto aos olhos do consumidor carioca e paulista, os quais, no final de contas, representam a parte quanti-tativamente mais significativa do consumidor nacional. E, afinal, quem sai ganhando nisso tudo é o empresário do disco e não a música popular nacional. O “exotismo” ma-nufaturado da música do Nordeste não é mais que um dos

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muitos ingredientes necessários à fabricação de “sucessos do momento”. Não somente os nossos “exotismos”, mas os próprios artistas que alimentam a indústria do disco com tais “exotismos”. E a música popular da região não é tratada com a dignidade que merece.

Dentro desse panorama, poucos são os artistas nor-destinos que conseguem desenvolver um trabalho antes comprometido com a realização de uma música brasileira do que com os interesses dos industriais do disco. Poucos são os artistas como os que fazem o Quinteto Armorial da Universidade Federal de Pernambuco – Antonio José Madureira e Antonio Carlos Nóbrega de Almeida, os jo-vens compositores do Quinteto – que conseguem, ao lado do arrivismo, do oportunismo e do curiosismo dos que fornecem “carne” para a indústria da música popular, fa-zer uma música nordestina sem exotismos picantes, sem o caráter passageiro dos “sucessos do momento”, música plenamente universal. E universal porque feita através da recriação de uma linguagem musical marginalizada dentro da cultura urbana brasileira: a linguagem musical da nos-sa região. Recriação e não apenas exploração oportunista para obtenção de glórias mundanas. Trabalhando para a construção de uma linguagem musical brasileira, na qual escalas, modos, timbres, ritmos e formas constituem a pró-pria estrutura dessa linguagem, e não apenas acessórios pitorescos para uma música urbana impingida como nor-destina, o Quinteto Armorial é, sem dúvida, a mais signifi-cativa de todas as experiências musicais de uma vanguarda verdadeiramente brasileira no momento presente.

Diario de Pernambuco, 25 de novembro de 1973

Se eu fosse cronistaNão sou cronista. Articulista – o que é coisa mui-

to diferente – é mesmo o que sou. Cronista fala da vida,

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preferencialmente da sua. Articulista não. Articulista não fala de gente, fala de ideia. Cronista não tem vergonha de falar de suas próprias emoções nem das emoções alheias. Cronista faz do sentimento matéria para o seu espaço. Cronista é pessoal, é passional. Articulista não. Articulista é frio e impessoal. Está acima – ou pretende estar – das suas próprias emoções e das emoções alheias. Dos senti-mentos também. Por isso é que digo que não sou cronista. Sou articulista.

Ah, se eu fosse, se eu pudesse ser cronista! Se eu fos-se cronista ia é falar mesmo do verde além da minha ja-nela, do tédio da tarde de domingo, do silêncio da noite, da noite dentro da noite, do coração do meu coração, das praias distantes que se foram, dos céus azuis, da brisa da tarde sobre o rosto, do sol das almas, da conversa besta com o amigo, do cheiro bom de mato à beira da estrada, do sol sobre o corpo, da gente comum que a gente vê pelas ruas (articulista não fala de gente comum; só fala de gente importante), do amor e da amizade, da esperança, dos me-dos mais recônditos do meu peito, da alegria de estar vivo e de ver o sol e outras estrelas, do amor que move – como já disse o poeta – o sol e outras estrelas, dos dias de chuva, da fatalidade de tudo o que acontece de mais importante na existência de todo mundo, das recordações da infância (cronista que é cronista mesmo de verdade gosta muito da infância), do amigo que se foi, da falta de assunto para a própria crônica (esse continuará sendo um dos mais caros e interessantes temas dos cronistas), da minha insônia, do cansaço, do estranho reencontro da cidadezinha onde a gente viveu a infância, do branco das nuvens pela janela do avião, do cheirinho bom do lençol na noite de chuva, do pão novo sobre a mesa, do cronista preferido (cronista gosta muito de falar de cronista), do poeta preferido (cro-nista gosta muito de falar de poetas preferidos), da mulher amada (todo cronista quer mesmo é ser poeta), da nossa

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ignorância essencial sobre todas as coisas, sobre as con-jugações astrais e sua relação com os fatos de nossa exis-tência (de acordo com as conveniências, o cronista tende a oscilar entre o mais enfastiado ceticismo e a superstição mais ingênua), do trago domingueiro, dos anos que pas-sam, do samba preferido (todo cronista tem uma queda inevitável pelo popular), da conversa entreouvida no ôni-bus ou no botequim (quando não tem queda alguma pelo que é popular, o jeito é o cronista fingir que a tem para conviver ou dizer que convive com o povo), da gracinha do filho (cronista que é mesmo cronista não deixa passar nada que dê crônica), da última viagem (viagem, então, é uma beleza para o cronista) do que não foi mas poderia ter sido, do que foi e poderia ter sido diferente...

Mas como eu não tenho mesmo jeito para esse negó-cio de crônica...

Diario de Pernambuco, 25 de março de 1982

Sucessos do PinaPrometi, ansioso leitor, contar-te os sucessos do Pina

em longínqua noite na qual quiseram os fados nos condu-zir – James Mason, Fernando Spencer, o jovem poliglota e futuro diplomata e este canhestro escriba – até aquele sítio. Por certo, estás lembrado de que o Acaso – esse ca-prichoso e inevitável companheiro que nos conduz pelos mais inesperados caminhos – nos fez encontrar o famoso ator hospedado em tradicional hotel do Recife e que, em seguida, nos empurrou para o não menos tradicional e aprazível restaurante da cidade, o Maxime.

Tão logo tomamos o táxi, pergunta o ator se o res-taurante para onde nos dirigíamos era lugar discreto, se não havia o risco de que lá viesse alguém a reconhecê-lo. Ficasse tranquilo, responde convicto o futuro diplomata, pois que tratava-se de lugar frequentado por pessoas da

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mais fina educação e incapaz da menor indiscrição, ao que nos entreolhamos, eu e Spencer.

Ao atravessarmos a antiga ponte, o cheiro forte da maresia fez com que o centro das nossas atenções lem-brasse o tempo que, poucos anos atrás, passara em uma ilha do Caribe, nas locações para filmagem dos exteriores de um de seus filmes de menor importância. Foi o que comentou com o futuro diplomata, que, sendo o único dos provincianos a falar inglês, fazia pose de muito impor-tante, bem compatível com o prestigioso cargo que, anos depois, viria a ocupar.

A brisa que, súbito, nos acariciou a todos na noite morna tirou do nosso célebre companheiro de noite um suspiro quase imperceptível de quem, afeito a tempera-turas bem mais baixas que a dos Trópicos, sente o pra-zer do momentâneo alívio do calor. E desabotoou a parte superior da camisa para melhor sentir o vento da noite. Fez-se um silêncio breve e pesado, de repente, entre nós, que só foi quebrado quando um freio súbito do táxi em que viajávamos nos tirou do quase torpor em que o calor da noite nos mergulhara. Que foi, que não foi, ficamos sabendo, pelos gritos do motorista que nos conduzia, que um “filho da mãe” qualquer por pouco não provocara um grave acidente. O diabo é que o tal “filho da mãe”, achan-do-se inocente nessa história toda, para o seu automóvel e se dirige para o nosso veículo aos berros, desafiando o nosso motorista, mulato gordo e já não muito jovem, ca-lejado do volante. Não fosse a pachorra deste último que, tempos depois, vim a saber que acudia pelo nome de João Sebastião, a coisa tinha sido muito feia, mas muito feia mesmo, pois o brutamontes trazia ameaçadoramente al-guma arma improvisada em uma das mãos, uma alavanca de ferro, talvez. What’s happening? What’s happening?, perguntava, atônita, a celebridade. Acalmados os ânimos, quem estava zangado era o inglês. Nada de entrevistas.

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Nada de jantar, queria voltar imediatamente para o hotel, please, please, repetia aborrecido.

Dessa vez, coube ao diplomata em perspectiva ajei-tar a situação, convencendo o Mason a continuar conosco até o restaurante. É quando o Spencer resolve recomendar ao motorista ter mais cuidado, pois, afinal, ele não trans-portava um passageiro qualquer.

— O senhor não tem nem ideia de quem está viajan-do no seu carro.— E quem é o gringo aí atrás? — perguntou o pobre homem.— Acho que o senhor não conhece não. Gosta de cinema? Se gosta, já deve ter visto algum filme com James Mason — explicou o Spencer.— E é ele? Ora, o senhor quer me fazer de besta, é? Pois não está vendo que eu não vou acreditar nessa conversa? Ora, e o que andaria fazendo um artista de cinema famoso dentro do meu carro, na ponte do Pina?— Pois é ele mesmo. Se quiser, pode olhar de perto. Veja.— Meu Deus do céu! — exclamou o homem acen-dendo a luz do interior do automóvel. — E não é que é ele mesmo! Ah, quando a gente chegar no res-taurante, o senhor vai me dar um autógrafo — dizia, o rosto quase colado ao rosto de um James Mason mais do que perplexo.A essa altura, foi muito difícil convencê-lo a prosse-

guir conosco, pois como é que o próprio Spencer revelava a sua identidade ao motorista do táxi?

Mas chegamos ao Maxime. Nem tão sãos, mas, de qualquer modo, salvos. E é do que lá se deu que hei de falar, surpreso leitor, na próxima crônica. Ciao.

Diario de Pernambuco, 6 de setembro de 1984

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Tancredo Neves e a consciência nacionalNunca, seguramente, passou o povo brasileiro por

tão dura provação espiritual. Ponto culminante de mui-tas outras provações, o sofrimento de toda a Nação por aquele em quem foi depositada a esperança por um Brasil melhor, mais justo e mais humano – Tancredo de Almeida Neves – prolongou-se por longos e penosos trinta e nove dias. Mas Tancredo Neves permanece no mais profundo do coração de todos os brasileiros que acreditam na demo-cracia como a forma de governo mais compatível com a dignidade humana. Como a semente de mostarda, de que nos fala o Evangelho, sua lição de confiança na democra-cia, de tranquilo espírito de luta pela causa do povo bra-sileiro e da nossa soberania, há de crescer como frondosa árvore solidamente enraizada no solo fértil da consciência nacional, uma consciência desenvolvida através de uma longa história na qual tanto se tem buscado sufocá-la, su-primi-la. Não pode haver, contudo, consciência nacional, sem democracia, como, analogamente, não há possibili-dade de democracia sem consciência nacional. A luta pela democracia como sistema de organização política e estilo de convívio social é não apenas uma luta pelos direitos fundamentais de todos os cidadãos, por uma vida digna para todos os que fazem a Nação, mas também uma luta pelo desenvolvimento de uma consciência de nacionalida-de no que esta possui de mais significativo para um povo, da sua dignidade, dos seus problemas, da sua soberania.

Na passagem, árdua e dolorosamente vivida, para o novo período da história brasileira que estamos viven-do, o calvário do Presidente Tancredo Neves tem um peso simbólico, provavelmente mais importante do que o suicí-dio de Getúlio Vargas. Se a campanha pelas Diretas, ini-cialmente, e depois pela escolha de Tancredo Neves para a Presidência da República tiveram um papel de enorme sig-nificado no processo de desenvolvimento da consciência

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nacional, o seu sofrimento e a sua morte sedimentaram no povo brasileiro a consciência da necessidade de mudança, de instauração da plena democracia na vida política, eco-nômica e social, em geral, na Nação.

Com Tancredo Neves, seu sofrimento, seu calvário, sua morte, renasce o Brasil. Inefável sinal este da prova-ção a que, no início de uma nova era da história nacional, foi submetido aquele que, não tendo sido escolhido pelo voto direto, o foi pela unânime e inequívoca aclamação do povo brasileiro! Inefável sinal este da provação a que foi submetido todo cidadão brasileiro que tem na democracia a expressão máxima de todas as conquistas da civilização, maior do que qualquer invenção no plano da tecnologia, dos instrumentos de sobrevivência!

A democracia, como a civilização, não é um estado fi-nal, mas antes um processo que requer consciência, confian-ça no futuro e espírito de luta. A democracia, por maiores que sejam as conquistas de um povo, jamais está no hoje. A democracia está sempre no amanhã, no que ainda pode e deve ser conquistado. Para os brasileiros, contudo, este ama-nhã está hoje mais próximo. E o calvário, o sofrimento e a morte de Tancredo Neves, seu exemplo de serena confiança no futuro do povo brasileiro, de espírito combativo, nos fez mais fortes e mais conscientes da nossa dignidade essencial enquanto povo e nação.

Quis a Providência partisse Tancredo na mesma data em que um outro mineiro, mártir da liberdade e da sobe-rania nacional, se foi, em 1792, deixando para sempre a semente da justiça e da liberdade que ele, heroicamente, plantou. Inefável este sinal da Providência que fez asso-ciar, na história nacional, dois dos mais puros heróis que conheceu a Nação em todos os tempos: Tancredo Neves e Tiradentes!

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Tancredo permanece entre nós. Como o sentido da liberdade, da justiça e da dignidade do povo brasileiro. Como a democracia.

Diario de Pernambuco, 24 de abril de 1985

Tempo de adeusDepois do dia, vem a noite. Não há como fugir ao

ritmo do tempo. Ele é mais forte do que a nossa alegria e a nossa dor. Ele carrega a nossa alegria e a nossa dor. E o melhor mesmo é nos entregarmos à sua correnteza. E esperar. E no entanto ele parece não existir. Não existe sinal algum da sua existência. O relógio não é o tempo. Só podemos falar do tempo através do que ele não é: através do movimento do ponteiro dos relógios, do envelhecimen-to do nosso corpo, por exemplo. Mas nada disso é o tem-po. O movimento do ponteiro dos relógios não passa de uma convenção mecânica para simbolizar a passagem dos dias e das noites. O envelhecimento do nosso corpo não é um sinal do tempo, mas apenas um fenômeno biológico que tomamos como referência para medi-lo. O calendário também não é o tempo, mas um símbolo convencional do tempo. E no entanto ele existe. Ou não?

A noite é a grande mãe e a grande cúmplice. A noite é o inconsciente, o dia é a razão. A noite conhece a nossa verdade mais profunda; o dia vive de aparências e mentiras. Os medrosos temem a noite porque evitam o encontro com a própria face. É à noite que o tempo se mostra aos homens; durante o dia, ele se esconde nos relógios e calendários.

Só existe mesmo o presente. É nele que vivemos entre duas ficções: o passado e o futuro. Mas o presente também não existe. Tão logo a gente acaba de pensar no presente ele já é passado. O tempo existe apenas porque temos consciência da fragilidade de todas as coisas: da amizade, do amor, da beleza, da alegria. Tudo está por

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um triz. Nada tem a solidez que, às vezes, gostaríamos que as coisas tivessem. Não adianta arrumar a gaveta porque o tempo se encarregará de jogar fora os papéis que jun-tamos pela vida com a mesma seriedade da criança que brinca de adulto. No íntimo, somos eternas crianças que nada sabem a respeito do mundo, que têm medo do mun-do, que precisam desesperadamente do apoio do outro, mas que são obrigadas a enfrentar o mundo para sobrevi-ver, a se fazer de fortes para amparar e proteger as novas crianças do mundo. Pobres crianças somos nós! Crianças que se envergonham de ser crianças, crianças enrugadas, crianças autossuficientes, crianças mentirosas, crianças si-sudas, crianças que não sabem nem brincar nem chorar.

Tudo está por um triz. Vivemos em contagem re-gressiva. Estamos sempre à espera do fim. Tudo é adeus. Vivemos sob o signo do adeus. O adeus é irmão do tempo. O adeus cresce entre as flores do nosso jardim. O adeus nos desperta todos os dias. O adeus compartilha do nosso pão e da nossa alegria. O adeus guia os nossos passos. O adeus sorri complacente da nossa fragilidade e da nossa infantil necessidade de permanência.

Diario de Pernambuco, 27 de maio de 1982

VelhosMuito se tem falado, ultimamente, em discriminação

social. Muitos são os movimentos organizados de reinvin-dicação de direitos, de tratamento justo, por parte de cate-gorias sociais discriminadas (ou soi disant discriminadas, às vezes): negros, mulheres, homossexuais, índios, etc. Não se tem falado, contudo – ao menos com a frequência que merecia –, na questão da velhice, no problema do idoso. E, no entanto, trata-se de categoria social das mais injustiça-das, dentre as categorias discriminadas na nossa sociedade, e para a qual, cumpre, com urgência, chamar a atenção.

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Tão discriminada tem sido a velhice, tamanhos são os preconceitos em relação aos velhos, que até mesmo os mais sérios estudiosos do problema se mostram precon-ceituosos quanto ao próprio objeto de suas investigações ao preferirem o emprego de descabidos eufemismos para denominar o velho, tais como “terceira idade”, expressão internacionalmente consagrada, ou, mais frequentemente, “idosos”. Todos nós sabemos que o emprego de eufemis-mos na denominação de certas categorias sociais constitui, provavelmente, o mais significativo indicador de precon-ceito. É o caso, por exemplo, de preferir “moreno” em lugar de “negro”, de chamar pobre de “humilde”. É como se as palavras corretas para denominar essas categorias fossem ofensivas a quem a elas pertença.

Como vivemos, nas sociedades ocidentais contem-porâneas, submetidos à tirania do mito da juventude, ig-noramos, ou subestimamos, a problemática dos velhos. Os próprios velhos, por sua vez, rejeitam a sua condição, como se tem demonstrado através de inúmeras pesquisas de idoneidade indiscutível. Outras acreditam que, nos paí-ses em desenvolvimento, a questão dos velhos é irrelevan-te, em razão da baixa expectativa de vida. No entanto, é precisamente nas sociedades de transição, nas quais o tradicional e o moderno se chocam, que o problema dos velhos se apresenta, porventura, de forma mais dramática. Se é significativamente grave a problemática do velho nos países ricos, enquanto nas sociedades tribais e tradicionais em geral os velhos gozam o mais alto prestígio, nas so-ciedades em transição para formas urbano-industriais de organização a situação dos velhos é, compreensivelmente, a mais desvantajosa de que se tem notícia, pois, além da discriminação sociocultural, existe o fato de que o Estado não tem condições financeiras de lhes dar a assistência re-querida, somado à precariedade de um mercado de tra-balho que termina por ser favorável aos mais jovens, em detrimento dos velhos.

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Se, comparada com a situação dos países industriali-zados, é baixa a esperança de vida na sociedade brasileira, isto não diminui a gravidade da situação do velho entre nós. Trata-se, não pode haver dúvida, de categoria social merecedora da maior atenção por parte de todo mundo, mas, sobretudo, de quem se ocupe, quer no nível de in-tervenção social, quer no plano da pesquisa, diretamente das questões sociais. A questão é tão mais grave o quanto é hoje problemática a situação brasileira em matéria de previdência social. Falar de velho significa, na nossa socie-dade, falar de aposentado, e é preciso não sacrificar ainda mais uma categoria já tão cruelmente negligenciada.

Cuidemos dos nossos velhos; amemos os que deram a melhor parte de suas vidas pelo mundo em que nós vivemos.

Diario de Pernambuco, 24 de novembro de 1983

Viva Capiba!Dele afirmou o maestro Guerra Peixe tratar-se do

mais completo músico popular do Brasil. Falo de Capiba, que, este mês, completa seus oitenta anos. Creio que a maioria das pessoas conhece o Capiba apenas como com-positor de música carnavalesca e de canções sentimentais de meio de ano, como se costuma chamar, o autor de can-ções como É de amargar e Maria Betânia, por exemplo. Mas o Capiba é muito mais do que isso. Vale lembrar, além do compositor de música carnavalesca e de canções de meio de ano, o parceiro admirável de poetas, como Manuel Bandeira, Ariano Suassuna e Ascenso Ferreira. Já a sua parceria com Carlos Penas Filho, esta é bastante po-pularizada. Quem não conhece o samba Rosa Amarela? Essa, a meu ver, uma face do autor de A pisada é essa que devia ser mais difundida. A cantora Clara Nunes, lembro bem, teve a sensibilidade de incluir uma dessas canções em um dos seus discos. Refiro-me à belíssima Tu que me deste

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o teu cuidado, feita sobre poema de Manuel Bandeira. Volto a fazer a pergunta que, há algum tempo, lancei des-te espaço: por que um empresário sensível aos valores de nossa cultura artística não realiza um disco somente com essa parte das composições de Capiba? Seria preciso um Marcos Pereira, o grande Marcos Pereira que a fatalida-de nos roubou e que tantos serviços prestou à música e à cultura brasileira, tão solapadas pela rapinagem multina-cional. De qualquer modo, fica aí a sugestão.

Mas o Capiba não fica por aí. Quem por acaso desconhece o Capiba da “música de casaca”, da música erudita, o autor, entre outras composições, da Suíte nor-destina? Talvez muita gente pense que o Capiba passou a compor música instrumental de câmera a partir do Movimento Armorial, que teve como inspirador e líder o grande Ariano Suassuna. Mas isso não é verdade. Antes de compor Sem lei nem rei, gravada pelo Quinteto Armorial, o Capiba já fazia – ele que estudou com Guerra Peixe – esse tipo de música. E, como sempre, da melhor. É um ou-tro Capiba pouco conhecido, quase desconhecido, creio, e que também precisa ser divulgado para alegria de todo mundo. Vai aí outra sugestão para um disco necessário ao registro da nossa cultura musical, no que ela possui de mais alto e expressivo.

É por tudo isso que homenageamos o músico e poeta Capiba: por ter dado tanta alegria a tanta gente. Os tem-pos são negros. Torna-se cada vez mais difícil acreditar na bondade e na beleza em um mundo que premia os maus e os medíocres. A arte estimula e apura a sensibilidade, mas a sensibilidade não é o melhor instrumento de que pode um homem dispor para sobreviver. Mesmo assim, é preciso acreditar nos valores do espírito, sem os quais a existência humana não tem sentido.

O que seria da formiga sem a cigarra? Viva Capiba!

Diario de Pernambuco, 11 de outubro de 1984

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Vivamos!Feri e fui ferido. Tive uma bronquite. Algumas ve-

zes, cheguei a perder o encanto pela vida. Também tive medo. Tive insônia. Me senti só. Mas nem tudo foi triste-za. Sei que amei e fui amado. Não traí, não injuriei nin-guém. Meus olhos não se fartaram – como os do poeta bíblico – de olhar a beleza. Tive também as minhas peque-nas alegriazinhas. Dei ao corpo e à mente a dose de álcool de que precisam para sobreviver. Convivi com amigos. Conversei mole pela tarde adentro. Sonhei. Tive pregui-ça. Tomei sorvete num dia de sol. Tentei, a conselho do médico, fazer regime. Comecei a fazer exercícios, andar firme, correr, para baixar a barriga. Perdi uns quilinhos. Me animei com os elogios de quem me achou mais magro (ou menos gordo). Mas veio a chuva e a cama se tornou mais atraente do que a corrida matinal.

Recuperei a barriga. Viagens, fiz umas poucas a in-sípidas cidades que só me trouxeram cansaço e uma von-tade enorme de voltar aos meus chinelos. Fiz algumas besteiras. Fiz bons e firmes propósitos. Rezei. Enganei o Macunaíma que me ameaça todas as manhãs, principal-mente nas manhãs de verão – mas quando não é verão nesta terra, Deus? – e cheguei a conseguir escrever um li-vrinho. Mas não plantei árvore alguma. Nem mesmo a metafórica bananeira. Mas tive a alegria de ver uma cas-tanha transformar-se num lindo cajuzinho, em um peque-no vaso, deslocado – coitadinho – numa pequena varanda de apartamento, exatamente como na crônica do velho Rubem, o Braga. Tive a alegria de dar, numa manhã de domingo, esse cajueirozinho das minhas relações de ami-zade a um outro amigo, dono de um grande quintal, no qual ele – o cajueirozinho – há de crescer até dar a sua sombra, o seu aroma, o seu verde e os seus frutos como prova da generosidade essencial da natureza. Escrevi, em geral com grande dificuldade, uma porção de artigozinho

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feito este. Me vi, muitas vezes, sem assunto para espichar umas pobres quarenta ou cinquenta linhas para o jornal e – que Deus me perdoe! – impingi ao pobre do leitor o que me deu na telha só para cumprir o compromisso semanal.

Me refugiei na música, esse adorável ópio. Amei Jobim, João Gilberto, Rita Lee e Artur Moreira Lima. Mas voltei a me emocionar com Nazareth e Pixinguinha. Quis desistir. Quis voltar. Voltei. Fugi. Pra dizer a ver-dade, fiz o diabo. E poderia perguntar como o poeta de Palmares: pra quê? Pra nada! Devo ter sido ingrato com alguém. Devo ter esquecido o amigo quando ele de mim precisou. Seguramente, deixei de dar água ao sedento, co-mida ao faminto e roupa ao nu. Entreguei-me a alguns pecados capitais e cabeludos. Mas, algumas vezes, desejei ser São Francisco de Assis e não quis da vida mais do que ser apenas um instrumento da paz do Senhor. E me ima-ginei levando sempre o amor e o perdão onde só houvesse ódio e desamor. Mas, quando dei por mim, estava fazen-do tudo ao contrário.

Enfim, passei o ano vivendo. Foi tudo o que eu fiz: viver, viver e viver. E o ano se foi. Mas eu estou aqui, ain-da firme, sobre a terra que Deus me deu, no meio de todos os irmãos, entre todas as criaturas, entre todos os frutos e aromas do mundo, para prosseguir, com alguma ponti-nha de mágoa no coração, com alguma culpa, com algum medo – confesso – da dor inevitável e do fracasso final de todo homem – a morte –, mas com firmeza para continuar a fazer o que sempre tenho feito pela vida afora: viver.

Eu vivo, tu vives, ele vive. Portanto, vivamos!Diario de Pernambuco, 31 de dezembro de 1982

ENTREVISTAS LITERÁRIAS

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Cassiano Nunes“A atual poesia brasileira é muito ruim”Diario de Pernambuco, 30 de abril de 1982“É um dos homens mais prestativos que conheci em

toda minha vida, um espírito de pobreza de um verdadei-ro franciscano”, afirma um dos seus amigos mais chega-dos, Edson Nery da Fonseca. A bondade desse autêntico eremita da cultura não o impede de usar o rigor crítico do erudito conhecedor da literatura que ele é, mesmo quando isso pode resultar em desagrado para quem seja atingido pelo seu juízo crítico, como quando, nesta entrevista, diz o que acha da chamada poesia independente ou marginal.

Nascido em Santos, Cassiano Nunes publicou seu primeiro artigo aos dezesseis anos na sua cidade natal. Graduado pela Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, esse filho de imigrantes portugueses que veio a se doutorar pela Universidade de Heidelberg e a ensinar em universidades norte-americanas, diz, no entanto, perten-cer ao “fim da era dos autodidatas”. É hoje seguramente o mais profundo conhecedor da controvertida figura de Monteiro Lobato, sobre quem prepara aquele que, sem dúvida, será o mais completo livro em torno do autor de Urupês. Atualmente professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, Cassiano Nunes está entre os mais respeitáveis críticos literários do país. Sua obra, compreendendo crítica e poesia, é hoje exemplo, pouco frequente no Brasil, de inteligência

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depurada pelo trabalho intelectual disciplinado, senão ascético.

A Sebastião Vila Nova, em entrevista exclusiva para o Diario de Pernambuco, Cassiano Nunes fala do seu tra-balho, da sua vida, da cultura e da literatura brasileira.

SVN – Quem é Cassiano Nunes?CN – Cassiano Nunes nasceu em 1921, numa casa de cômodos da Rua Júlio Conceição, em Santos. Filho de humildes imigrantes portugueses. Logo nos mudamos para outra rua, onde passei a infân-cia: a Rua Paraná, vila proletária, pitoresca, cheia de chalezinhos e valas, que pus no palco em duas peças, Sempre haverá anjos e As luvas de Ema (esta é a história de minha família, mas muita gente pen-sa que é ficção). O primeiro drama foi traduzido para o inglês e representado nos Estados Unidos. Mas continua inédito no Brasil. Nele, antecipei meu valoroso conterrâneo Plínio Marcos. Meu brinque-do na infância era escrever, imaginar teatro... Aos dezesseis anos, comecei a publicar prosa crítica na Tribuna de Santos. E não parei mais. Quarenta e tantos anos de batente, de vocação realizada. Mas parece que só agora começo a ser conhecido. Isto, não obstante ter publicado vários livros, escrito para jornais e revistas e feito umas das centenas de con-ferências literárias. Creio que sou um dos brasileiros vivos que mais conferências fez. Posso, pois, dizer com Oswald de Andrade: “Falei na Sorbonne e no Sindicato dos Padeiros”.SVN – Você descreve muito a sua vida como a de um autodidata. Mas como chegou à universidade?CN – Pertenço ao que se poderia chamar o “fim da era dos autodidatas”. A década de trinta. O Brasil foi um país de admiráveis autodidatas! A começar por Machado de Assis, pai de todos nós. Eu vivi,

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no jornalismo, rodeado de admiráveis autodidatas: Galeão Coutinho, Afonso Schmidt, Geraldo Ferraz, o contista fabuloso de KM 67. Mas chegou uma hora em que decidi tornar-me um estudante profissional. No nosso sistema, só encontrei um jeito: fazer-me professor. Aos trinta e um anos, ingressei como es-tudante na Faculdade de Letras da USP. Formei-me em 1954. É verdade que já estudara com bolsa, Literatura Americana, durante um ano, nos Estados Unidos. Terminando o curso, ganho outra bolsa. E vou para Heildelberg, na Alemanha, onde estudei Literatura Alemã e dei também um curso de Poesia Moderna Brasileira. Honrou-me como ouvinte o jo-vem lektor Léo Gilson Ribeiro, cuja cultura literária é hoje justamente celebrada no Brasil. Voltando ao Brasil, participei da turma fundadora da excelente Faculdade de Letras de Assis, com Antonio Cândido, Jorge de Sena, Erwin Theodor, José Ferreira Carrato, Júlio Morejón, Rolando Morel Pinto. Nessa cidade, festejei em sessenta a inauguração de Brasília com um discurso especial. Mal sabia que viria parar em Brasília! De 62 a 65, fui visiting professor na New York University. Mas a coisa que eu acho mais im-portante na minha vida foi a assistência literária que dei à Coleção Saraiva – o maior esforço de demo-cratização da leitura no Brasil –, em que tinha como companheiro o excelente Mário da Silva Brito. Certa vez folheando um livro do repórter policial Percival de Oliveira, sobre a Casa de Detenção de São Paulo, descobri que os livros favoritos dos prisioneiros ti-nham sido escolhidos por mim para a famosa cole-ção. Fiquei com os olhos umedecidos de lágrimas.SVN – Como você concilia a profissão de escritor com a de professor?CN – Não sei se concilio. Como professor, procuro ser antes de tudo um escritor. Isto é, transmitir total a

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vivência literária. Não sou manualesco, perfeitamen-te, rigorosamente didático. Mas como vivo a literatu-ra até quando durmo (a maioria dos meus sonhos só trata de livros, escritores, etc.), imagino que não tenha sido um professor inútil, embora é possível que emba-race aqueles que preferem as aulas “mastigadinhas”.SVN – O que acha da poesia brasileira atual?CN – Acho-a muito ruim, positivamente. A falta de leitura da atual geração chamada marginal (margi-nais somos todos nós, os escritores no Brasil), a falta de seriedade no trabalho, a falta de artesanato, faz com que essa poesia seja insubstancial, na verdade inexistente, não obstante os esforços publicitários das patotas. Não é a primeira vez que isto acontece no Brasil. Vocês mesmo aí no Recife tiveram no sé-culo passado a poesia científica, que não passa hoje de ferro-velho. No meu entender, essa poesia mar-ginal já nasce no ferro-velho. Mas reconheço que de um mau terreno pode surgir no futuro uma planta viçosa, exuberante. Foi o caso de Augusto dos Anjos. A sua poesia científica é ótima.SVN – A música popular brasileira contribuiu para a criação de boa poesia?CN – Evidentemente, a música popular brasileira concorreu para que fossem escritas muito boas letras – que são indubitavelmente bons poemas. Mas, em virtude do poderoso influxo propagandístico, essa participação da MPB foi muito exagerada nos cír-culos literários. Professores de literatura chegaram a dizer, muito modernosos, que os maiores poetas do Brasil estavam na MPB! Que tolice! Quem conhece um pouquinho de Teoria Literária pode constatar bem a diferença que há entre esses dois tipos de poe-sia! Não é fácil ver a diferença entre uma letra de Vinicius e uma das suas extraordinárias elegias?

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SVN – Como explica o seu interesse por Lobato?CN – A leitura da correspondência de Lobato, n’A Barca de Gleyre, revelou-me a exuberância da sua criatividade, a singularidade da sua personalidade. Era um homem – como eu sou – ao mesmo tempo atento a tudo o que acontece nos meios culturais e nas ruas. Nada de torre de marfim! A sua preocupa-ção pelo Brasil, o seu patriotismo do tipo pessimista, heroico, titanista, me seduziu. Lobato era um homem de paradoxos: porque, embora maldizendo o Brasil e os brasileiros, era não só um verdadeiro patriota, mas um patriota maior do que os tipos ufanista e triunfa-lista. Na verdade, ele era um Mestre de Esperança! Amo os seres contraditórios e as pessoas que, como Lobato, partem do sonho literário para a realização concreta, pragmatista, das suas utopias! É fácil, pois, compreender porque me dediquei a Lobato.SVN – Como vê a universidade?CN – Não sou daqueles que, por modismo, só veem mediocridade na universidade brasileira. Se a uni-versidade é ruim, o que fazem para melhorá-la? Ação política? Não é suficiente, declaro logo. É pre-ciso começar pela devoção ao próprio trabalho, por uma criatividade cultural que vença todos os germes negativos que hoje existem na comunidade universi-tária. Precisamos trabalhar mais, estudar mais, de-dicarmo-nos mais, para termos o direito moral de exigir. A mudança universitária deve começar em cada um de nós. Regimes injustos, haverá sempre. Temos que nos preparar espiritualmente para afron-tar qualquer um deles. Além do mais, a universidade deve ser lugar de convívio interdisciplinar, em vez de especialismos claustrofóbicos.

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Edilberto Coutinho“O escritor é o profissional da rebeldia”Diario de Pernambuco, 2 de abril de 1982Jornalista diplomado pelo World Press Institute, dos

Estados Unidos, Edilberto Coutinho publicou o seu primei-ro livro em 1954, no Recife. Formado em Direito, nunca advogou. E explica: “Em vez de dedicar-me ao foro, preferi foragir-me no Sul. Eram muitos e tristes os exemplos dos outros detentores daquele grande pergaminho de bacharel que se perdiam na província, fazendo política para usinei-ros e senhores de terras mal cultivadas, ou tentando pro-duzir sua boa poesia ou sua razoável ficção, enquanto se mantinham à custa de maus empregos públicos”. No Rio, trabalhou para o Jornal do Brasil. Foi correspondente da revista Manchete e do JB, na Europa. Na Espanha, conse-guiu entrevistar Ernest Hemingway, com quem conviveu. Representou o Brasil no International Writing Program da Universidade de Iowa. Tem realizado conferências em uni-versidades norte-americanas.

Vencedor do Prêmio Casa das Américas, com o seu livro Maracanã, adeus: onze histórias de futebol, Edilberto Coutinho fala a Sebastião Vila Nova, em entrevista exclu-siva ao Diario de Pernambuco, sobre o que pensa da lite-ratura e da cultura brasileira.

SVN – Quem é o escritor Edilberto Coutinho?EC – Alguém que procura, através do que escreve, se não mudar o mundo, despertar umas tantas cons-ciências para a necessidade de mudanças, no sentido de se estabelecerem entre as pessoas relações mais verdadeiras, menos convencionais.SVN – O que significa ser escritor no Brasil hoje?EC – No Brasil ou em qualquer parte, me parece que significa o mesmo: opor-se a todas as armas da des-truição e do obscurantismo. Você vê, portanto, que

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procuro atribuir uma importância fundamental ao lado conteudístico da obra literária. Mas o aspecto formal tem que ser também trabalhado com intensi-dade. Conteúdo e forma se completam e são indisso-ciáveis no rendimento do texto. Ser escritor significa um compromisso permanente, de quem se dedica a essa prática, com o seu tempo, a sua terra, a sua gente. Acarreta a responsabilidade de testemunhar e, algumas vezes, de denunciar. O escritor é, por de-finição, uma espécie de profissional da rebeldia, da contestação. Por isso, sua vida não tem sido fácil em regimes mais fechados, de radicalismos intransigen-tes, sejam de direita ou de esquerda. O escritor deve sempre manter a sua independência, para que possa ser um crítico eficaz da sociedade. Por isso, não se justifica seu engajamento em política restrita e restri-tiva, tipo filiação partidária, devendo, antes, assumir um compromisso ideológico mais amplo, sempre a favor do homem.SVN – O que significa a literatura no panorama da cultura brasileira?EC – Você, Vila Nova, que faz também sociologia da literatura, sabe perfeitamente que o avanço li-terário tem sido fundamental em nossa cultura. A literatura que se pratica hoje no Brasil pode ser com-parada com o que de melhor se produz no mundo. Que outra cultura apresenta um grupo tão notável de escritores como o que formam Gilberto Freyre, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, para ficarmos em apenas meia dúzia e neste século? É lamentável que o português seja um idioma tão pouco conhecido e tão negligencia-do fora de nossas fronteiras. Também lamentável é que o nosso Ministério das Relações Exteriores não

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mantenha um programa cultural mais eficaz e não coloque nossos produtos culturais ao alcance do mercado externo. Veja só: recentemente, participei de um seminário na Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, sobre a obra de Jorge Amado. E o exemplar de Gabriela que os estudantes utiliza-vam era de edição portuguesa, porque não haviam conseguido obter o produto original brasileiro. E veja que se trata de Jorge Amado.SVN – Como é que você, sempre tão ligado à ativi-dade jornalística, vê o jornalismo na sua formação de escritor e no seu trabalho literário?EC – O jornalismo foi, e continua sendo, fundamen-tal no meu trabalho. Ao contrário da maioria, publi-quei livros antes de ser jornalista profissional. Depois de ter os dois livrinhos adolescentes na rua (felizmen-te, em pequeníssimas tiragens, que mal chegaram às livrarias) é que fui para o batente de jornal. Ao jor-nalismo devo muito, inclusive uma maior autocríti-ca e exigência com o meu texto. Devo experiências fundamentais, como o contato com escritores que entrevistei, entre os quais Ernest Hemingway. Uso frequentemente o material original jornalístico em meus contos. No Sangue na praça (da coletânea do mesmo título, publicada pela Codecri-Pasquim, em 1979), trato da própria figura de Hemingway em ter-mos ficcionais. Outras personalidades-personagens surgem abundantemente nos contos de Maracanã, adeus, uma vez que as onze histórias de futebol, reu-nidas nesse volume, contém um fácil resgate do real, embora me parece que sejam indesmentivelmente fi-cções. Esse meu apego ao real, que vem em grande parte da atividade jornalística, evitou sempre, entre outras coisas, que me perdesse em qualquer tipo de beletrismo esterilizante.

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SVN – Passada a geração regionalista, como você vê o Nordeste na literatura brasileira do presente?EC – Com muito bons olhos. Tem sido notável, nas décadas mais recentes, a contribuição de autores nor-destinos. Muitos infelizmente obrigados por questão de sobrevivência a viverem fora de seus estados. Os nomes formariam uma imensa lista. Deixo de enume-rar para não cometer a injustiça das omissões, mesmo involuntárias. Mas os exemplos aí estão, em prosa e verso, e qualquer estudante de Letras pode fazer um apreciável levantamento dessa contribuição notável.SVN – Depois de ser publicado pelas maiores empre-sas do gênero no país, como a Civilização Brasileira, a Moderna, a Codecri e a José Olympio, você tem agora um livro saindo pelas Edições Pirata, do Recife. Por que essa opção quando o que se verifica, em geral, é o contrário, ou seja, que os autores pro-curem os selos editoriais de maior retumbância?EC – O movimento editorial da Pirata é importan-tíssimo. Sinto-me feliz que o Jaci Bezerra tenha que-rido incluir entre os títulos de sua pequena brava editora o meu volumezinho Memória demolida. O prestígio intelectual da Pirata é grande e seus títulos têm ressonância nacional, embora, é claro, devido às pequenas tiragens, como convém, no âmbito mais especificamente literário. São edições bem cuidadas, de aspecto gráfico convidativo à leitura. Por outro lado, ter um livro saindo pela Pirata significa uma vinculação a mais com um significativo movimento cultural do Recife. E você sabe que, mesmo afasta-do do Nordeste, tenho sempre procurado partici-par das atividades culturais nordestinas, não só em Pernambuco como em outros estados. Agora mes-mo, estão saindo dois livros sobre o meu trabalho na Paraíba e no Rio Grande do Norte. Em João Pessoa,

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o estudo de Jorge de Sá, professor de literatura bra-sileira da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, intitulado Edilberto Coutinho, o espaço do jogo; e em Natal, o volume Edilberto Coutinho no tenso futebol da existência, contendo ensaios da pro-fessora Dalma Nascimento, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Jon Tolman, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Tenho partici-pado frequentemente de seminários e congressos em várias cidades nordestinas, a exemplo dos festivais de arte da cidade de Areia, na Paraíba. E, como você sabe, a Paraíba acaba de distinguir-me com a escolha para ocupar a Cadeira 39 da Academia Paraibana de Letras, que tem como patrono José Lins do Rego, e cujo último ocupante foi o crítico Juarez Batista. Foi uma eleição em assembléia geral extraordinária da Academia Paraibana e, conforme comunicação oficial do presidente, Afonso Pereira, a proposta obteve voto unânime dos acadêmicos. Portanto, um gesto espontâneo e muito sensibilizador.SVN – E o seu trabalho sobre a obra de Gilberto Freyre, com o qual você obteve o título de Doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro? Como você vê essa obra?EC – A obra de Gilberto Freyre é um desafio, in-clusive para os que desejam enquadrá-la com rigor em qualquer sistema de classificação literária. Trato principalmente do Freyre ficcionista – ou, nos termos dele, “seminovelista” – com os livros Dona Sinhá e o filho padre e O outro amor de doutor Paulo (pelo au-tor denominadas de “seminovelas”). O levantamento do corpus literário gilbertiano permitiu constatar que, como ficcionista, ele continua a tratar sempre ima-ginativamente o fato histórico e, ao mesmo tempo, apontar uma brecha nos excelentes estudos anteriores,

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analisando pela primeira vez a sua ficção do ponto de vista da criação “em abismo”, com a técnica do livro-dentro-do-livro, como temos em artes plásticas os quadros-dentro-dos-quadros, a exemplo da célebre tela Las meninas, de Velásquez. Gilberto Freyre é um criador literário originalíssimo, e sua obra, sem dúvi-da, um monumento imperecível em nossa cultura.

Haroldo Bruno“Não faço da Literatura um passatempo”Diario de Pernambuco, 27 de agosto de 1982Em março deste ano, já às voltas com problemas

cardíacos e preparando-se para uma cineangiocoronario-grafia, Haroldo Bruno concedia-me longa entrevista, na qual discorria, com a profundidade do escritor maduro, sobre a sua experiência artística, a condição do escritor, os problemas da crítica literária no Brasil e, entre ou-tras questões, a indústria editorial. Não poderíamos sa-ber que essa seria, para consternação de todos os seus amigos e admiradores, a sua última entrevista. Deveria ter sido publicada no suplemento literário do Diario de Pernambuco, dentro de uma série na qual seriam também ouvidos outros escritores, tais como Silviano Santiago, Josué Montello, Edilberto Coutinho, entre outros. Mas, como a entrevista tivesse resultado muito longa para o espaço previsto do jornal, resolvi, mesmo autorizado pelo Haroldo para fazer cortes que permitissem a sua publica-ção no jornal, entregá-la ao poeta Jaci Bezerra para ser publicada na íntegra na revista José, das Edições Pirata, que este suplemento antecipa aos seus leitores, como uma homenagem póstuma a esse escritor nordestino que sou-be, com rara dignidade, lutar pelo engrandecimento da cultura intelectual brasileira.

Nascido no Recife, em 1922, Haroldo Bruno estudou até o quarto ano do curso ginasial no Colégio Salesiano,

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tendo, num gesto de rebeldia, se recusado a cursar a uni-versidade para dedicar-se inteiramente à atividade literá-ria. Publicou seus primeiros trabalhos de crítica literária no Diario de Pernambuco. Tendo, por mais de uma déca-da, interrompido a sua atividade de escritor, transfere-se em 1948 para o Rio de Janeiro, onde, praticando o jorna-lismo profissional, retoma o caminho da literatura.

Vencedor por duas vezes do Prêmio Walmap, pu-blicou, entre outras obras de ficção, os romances A me-tamorfose e As fundações da morte. Além das novelas infantojuvenis O viajante das nuvens e O misterioso rapto de Flor do Sereno, é autor de importante obra de crítica literária publicada em livros, jornais e revistas especializa-das. “Um crítico nato, de grande poder afirmativo e sen-tido de convicção” é o que dele afirma Fausto Cunha, seu companheiro de ofício e de geração.

SVN – Quem é o escritor Haroldo Bruno?HB – A autodefinição é sempre difícil e extrema-mente relativa. E envolve, para alguns, uma sedu-ção perigosa, que é o retrato narcisista, a exaltação, mesmo indireta e sutil, das próprias virtudes e a so-negação dos defeitos. Felizmente, não sou vaidoso; até pelo contrário, sou com frequência demasiado rigoroso comigo mesmo. Isso explica, por um lado, minha obra reduzida, os anos que passei sem es-crever nem uma palavra. Por outro lado, explica a quase completa ausência de referências pessoais em minhas entrevistas e declarações. Tenho a impressão que o melhor de mim mesmo encontra-se disfarça-do nas tramas e personagens de minhas narrativas. Tentarei, em todo caso, me autodefinir, consciente, no entanto, da pobreza de minha biografia.Embora não exista uma antítese escritor-homem, em verdade, os escritores, os artistas podem ser divididos em duas famílias: a daqueles em que predominam as

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qualidades intelectuais, o poder de abstração do real, a obcecação da própria obra (como se multiplicam os “gênios” neste país de medíocres e ingênuos!), e que atribuem a si mesmos uma missão de iniciados (sub-divisão que leva ao risco de comprometimento com a torre de marfim e com o nefelibatismo); e a dos que impregnam sua obra de substância humana, preo-cupados com o destino do homem de carne e osso, como dizia Unamuno, e para os quais a literatura é uma forma especial de conhecimento e um ato de so-lidariedade. Eu poderia me incluir no segundo grupo.Para mim, não há verdadeira criação estética que não traga uma proposta de antropologia espiritual, cuja leitura ou contemplação não alargue minha visão in-terior e objetiva das ações e virtualidades humanas. É uma posição que também apresenta os seus peri-gos, suas limitações, que seriam decorrências de uma concepção algo centralista e moralista do homem. Mas isso, no fundo, não importa em restrição. Toda obra realmente significativa é criação humanista e moralista. Veja, Vila Nova, para citar exemplos ex-tremos, o caso de Cervantes e do nosso Machado de Assis: são moralistas que expressaram em suas obras lição nova de humanismo e moral. Toda expressão é uma autodefinição que deve transcender nossa obs-cura autobiografia.Dentro dessa perspectiva, posso dizer que, como es-critor, não tenho sido senão uma criatura que busca – e buscará sempre – encontrar uma linguagem ideal, segundo certos preceitos e intuições que adotou, para traduzir pensamentos e emoções particulares, numa expressão universal, comum a todos os ho-mens. E que nem sempre, é óbvio, atinge essa clareza comunicativa. Contudo, sem qualquer falsa modés-tia, devo advertir que não me considero um escritor,

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mas aprendiz de. Ao menos no sentido profissional e cristalizado da palavra. Em compensação, não faço da literatura um passatempo burguês, a literatura re-duzida à sua elementar função lúdica; daí o desprezo em que tenho os livros picarescos e eróticos como tais. Malgrado o carreirismo e a fatuidade de muitos escritores, dos quais procuro guardar uma distância quilométrica, pois conspurcam a literatura, fazendo dela instrumento para obter honrarias e benesses, e que talvez representem a maioria, ainda acredito na sua força agregadora, nos domínios do sonho que ela possibilita e nas verdades que revela.SVN – O que significa ser escritor no Brasil de hoje?HB - Para responder a essa pergunta, é preciso antes caracterizar a posição do escritor em face da socie-dade. Ser escritor entre nós é a grande aventura do espírito. É muitas vezes investir contra a sociedade, que ainda tem com relação a ele uma série de pre-conceitos, alguns tão fortes hoje como há um século atrás. O escritor ainda não deixou de ser inteiramen-te o marginal em que se reconhecem algumas virtu-des inúteis e comprometedoras, mas a quem se trata com certa benevolência relutante. É uma criatura es-tranha e incômoda. Essa imagem pode transformar-se num elemento de prestígio para aqueles escritores carreiristas, que vivem a explorá-la.Escritor, no sentido profissional que distingue os escritores de nomeada, europeus ou americanos (atualmente podemos acrescentar os hispano-ameri-canos, pelo domínio territorial e cultural da língua), que vive para e de sua obra, que dispõe de um status reconhecido e admirado por todos e é capaz de in-fluir na opinião pública; nesse sentido independente e pleno, só muito recentemente começa a existir es-critor no Brasil. Assim mesmo, conta-se pelos dedos

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e não sei se sobreviveriam sem a colaboração na im-prensa, sem os “bicos”, até mesmo sem as sinecuras oficiais ou privadas. Condição que lhes impõe um deplorável estado de dependência moral e ideológi-ca, de subordinação ao poder político e econômico, a forças que em geral se opõem ao intelectual e ao ofício da literatura, ao espírito de liberdade que está em sua essência. Nesse ponto, e talvez de acordo com remanescentes de instituições e costumes antigos en-cravados em nossa estrutura socioeconômica, o es-critor brasileiro vive quase num regime de mecenato; só que os mecenas mudaram, não são mais príncipes nem mercadores opulentos, nem o cenário em que se exerce são os castelos e os palácios. Aqueles que não gozam de uma situação de privilégio amargam a soli-dão, o ostracismo, as incompreensões. Quando não as necessidades materiais mínimas, que lhe impedem a dedicação a sua obra. Como conciliar a reflexão, o ato de criar com os compromissos advindos de em-pregos e profissões que são sua própria negação?

José J. Veiga“Todas as sociedades precisam de escritores”Diario de Pernambuco, 20 de maio de 1983Um precursor do chamado “realismo fantástico”?

Um ficcionista a mais entre os tantos obcecados pela se-dução do tema do absurdo? Quem é José J. Veiga?

Se não chega a ser propriamente o que se possa cha-mar de um best seller, o autor de A hora dos ruminantes é, sem sombra de dúvida, o autor de uma das obras mais originais entre os ficcionistas brasileiros de todas as épo-cas. Nascido em Goiás, vive há muito no Rio de Janeiro, desde que aí chegou para estudar Direito. Tendo estreado em 1959 com Os Cavalinhos de Platiplanto, é hoje, no seu sétimo romance – Aquele mundo de Vasabarros –, dono de

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uma sólida construção romanesca, na qual a opressão, na forma de fantásticas e insondáveis forças, é uma ameaça constante ao conforto do cotidiano.

Avesso, como todo grande artista, a todo tipo de teo-rização sobre a arte – sobretudo sobre a sua própria arte –, o autor de Sombras de Reis Barbudos fala a Sebastião Vila Nova, em entrevista exclusiva ao Diario de Pernambuco, de seu trabalho de ficcionista, da condição social do escri-tor e de outras questões de literatura.

SVN – Quem é José J. Veiga?JJV – Sou um escritor que estreou tarde, depois dos quarenta, embora viesse me preparando desde mui-to antes, porque a literatura sempre me interessou e sempre fez parte da minha vida, para desaponta-mento de meu pai, que era um homem “prático”.SVN – Como você vê a situação do escritor brasilei-ro hoje?JJV – A situação do escritor brasileiro hoje é a mes-ma de todos os tempos e dos escritores de todos os países que já passaram pela etapa que estamos vivendo. Escrever foi difícil também para homens como Poe, Stephen Crane, Hawthorne, para falar apenas nos norte-americanos, que hoje parecem os donos da bola.SVN – O poeta Carlos Drummond de Andrade já observou que a literatura brasileira é uma literatura de funcionários públicos, desde Machado de Assis até ele próprio. Que é que você acha desse proble-ma? Será realmente um problema?JJV – Um dos escritores mais lidos no século passa-do e parte deste, Anthony Trollope, foi funcionário dos Correios até se aposentar. Não sou funcioná-rio – fui por breve período em minha mocidade –, mas não vejo na circunstância nenhum significado

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deprimente. Todas as sociedades precisam de escri-tores, senão para lê-los pelo menos para mostrá-los. Basta ver a quantidade de academias de letras que existem no país. Aquelas sociedades que não ofere-cem condições de existência autônoma a quem es-creve não estão cometendo nenhum ato escandaloso dando-lhe um emprego público. E o escritor não precisa ficar constrangido aceitando o emprego.SVN – E a crítica? Como tem sido o seu relaciona-mento com ela?JVV – O meu relacionamento com a crítica foi cor-reto. Quando havia crítica. Eu publicava livros, os críticos os comentavam. Por motivos que sempre me intrigaram, os comentários eram favoráveis. Agora que os críticos sumiram, sinto falta deles. Acho a crítica necessária para orientar o leitor.SVN – As situações dos seus romances fogem ao co-mum. Já lhe classificaram até mesmo como precur-sor do chamado realismo fantástico entre nós. Como você se classifica como ficcionista?JVV – Tenho mesmo me esforçado por escrever li-vros que digam mais do que se percebe numa pri-meira leitura. Tendo estreado tarde, como já disse, achei que não devia fazer o já feito, por melhor que o conseguisse do ponto de vista formal. Se tenho conseguido isso, não sei. Cada livro novo que pu-blico me deixa preocupado e apreensivo por algum tempo. Depois me conformo, por não ter mais jeito.SVN – A indústria editorial tem crescido muito ul-timamente no Brasil. Que benefícios esse fenômeno tem trazido ao escritor nacional?JJV – É um enigma o atual panorama editorial bra-sileiro. Há muita editora publicando muito. Mas para onde vão esses livros? Certamente não para as

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livrarias. O que menos se vê hoje em nossas livrarias é livro de autor brasileiro. Para comprovar isso, bas-ta entrar numa livraria.SVN – É sempre interessante saber das influências de um escritor. Quais as suas?JJV – Nesse capítulo das influências, me vejo em-baraçado. Sempre fui um leitor crítico, desde me-nino. E eclético. Li até Mme Delly. Mas li também Camilo, Herculano, Eça, Dumas, Hugo, Cervantes, Zola, Alencar, Bernardo Guimarães, Machado de Assis, Hugo de Carvalho Ramos – um goiano que pouca gente conhece fora do estado –, Mário de Andrade, Oswald, os russos, os ingleses – tanta gente! Quais deles me influenciaram? Acho que to-dos, num ou noutro sentido.SVN – Que conselho você daria a um jovem escritor?JJV – A um jovem escritor que me pedisse conselho, eu diria veementemente: vá em frente, quebre sua pedreira, enfrente seus monstros. Sem ouvir conse-lhos de ninguém. Só assim você poderá dar a sua contribuição à literatura.

Josué Montello“O escritor é a testemunha que está com a palavra”Diario de Pernambuco, 14 de maio de 1982Por pouco, Josué Montello, nascido em São Luís do

Maranhão, de família presbiteriana, não se tornou pastor protestante, como o seu pai. Mas a marca, espiritual e literária, da Bíblia, que ouviu durante muito tempo, na infância e na juventude, de sua mãe, haveria de ficar para sempre no seu espírito. Se a religião presbiteriana perdeu um pastor, a literatura brasileira ganhou um dos seus mais altos representantes.

Romancista e crítico literário de rara sensibilidade e requintada erudição, Josué Montello acaba de publicar,

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pela Nova Fronteira, o seu mais novo romance, Aleluia, uma singular reconstituição ficcional dos dias de Jesus sobre a Terra após a Ressurreição. No momento em que se prepara para viajar a Lisboa, onde já foi Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil, Josué Montello fala ao escritor e sociólogo Sebastião Vila Nova sobre a sua vida, o seu trabalho de escritor, a literatura e a cultura brasileira.

SVN – Quem é o escritor Josué Montello?JM – É o escritor Josué Montello. Tive outras ati-vidades, como a de professor (assim sou titular de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras Pedro II), como técnico de educação, mas sempre me man-tive fiel à minha vocação de escritor. Desde cedo me preparei para tornar a vocação em profissão. E só a uma certa altura da vida consegui concentrar nas letras todo o meu tempo disponível. Vivo para as letras. Por vezes elas me ajudam a viver.SVN – E a sua vida? Fale sobre ela.JM – Nasci em São Luís do Maranhão, em 1917. Morei em Belém, para onde me mudei em 1936, de-pois de ter passado em São Luís minha infância e mi-nha juventude. De Belém, me mudei para o Rio de Janeiro, no fim de 1936. E daqui tenho saído para morar no Peru, na Espanha, em Portugal e na França. Fui Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil em Paris, professor nas universidades de Lisboa, de Madri e de Lima. Fui diretor geral da Biblioteca Nacional, diretor do Museu Histórico Nacional, presidente do Conselho Federal de Cultura, reitor da Universidade Federal do Maranhão, membro do Conselho Federal de Educação.SVN – A indústria editorial brasileira tem crescido muito nos últimos anos. Qual o significado desse surto para o escritor nacional e, em particular, para o jovem escritor?

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JM – Basta considerar o número de edições, o número das tiragens e o número das editoras, para reconhecer que a indústria editorial brasileira faz parte de grande contexto editorial do mundo moderno. Não creio que em outro país se tenha feito tantas edições sucessivas das Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, quanto no Brasil. Penso que se fizeram mais edições de Cem anos de solidão, em nosso país, do que em todos os outros países da América Latina, reunidos. Mas o surto editorial, que agora se verifica, precisa ser completado com duas providências básicas: me-lhor promoção do livro nos meios de comunicação de massa (o que se faz hoje é quase um favor, como se o livro não fosse elemento indispensável à própria existência do país) e melhor distribuição. Por que as universidades ainda não têm as suas grandes livrarias, tanto nos campi quanto fora dele?SVN – Sim, mas e o escritor?JM – É claro que o escritor nacional se beneficia naturalmente do surto editorial que hoje se verifi-ca. Mas somente um número pequeno de escritores é beneficiado por ele. No caso do escritor, convém distinguir dois tipos: o escritor acidental, que publica um livro e desaparece, e o escritor de vocação genuí-na, que publica livros sucessivos, balizando com ele uma carreira de homem de letras, como poeta, como romancista, como novelista, como ensaísta, como teatrólogo, como contista. Veja que hoje, com a tele-visão e o rádio, um grande nome nacional, e mesmo internacional, pode ser feito em vinte e quatro horas. Antigamente o nome se fazia com lentidão, quer nas revistas, quer nos jornais. Já os Goncourt observa-vam que a glória nada mais é do que o nome repetido.SVN – Como se relacionam o ficcionista e o ensaísta Josué Montello?

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JM – Harmonicamente. Há coisas que só posso di-zer num ensaio; outras, que reclamam o romance, o conto ou a novela. Coloco alguns de meus ensaios no mesmo plano em que coloco os meus melhores ro-mances. Por exemplo: o livro que escrevi diretamente em francês sobre Un maitre oublié de Stendhal, publi-cado em Paris pelo editor Segher; meu ensaio sobre Dom Quixote, romance inacabado; meu estudo sobre as fontes hamletianas do Só, de Antonio Nobre – além dos meus estudos sobre Machado de Assis. Quanto aos romances, reconheço que eles concentraram, ao longo da minha vida de escritor, o melhor do meu esforço e do meu cuidado. Somente agora, ao prepa-rar os três volumes de minha ficção para a Editora Aguillar, num total superior a quatro mil páginas, pude ajuizar do longo caminho percorrido, desde que estreei nas letras com um pequeno romance de inspi-ração maranhense, Janelas fechadas.SVN – E o que representa a experiência, o exercício da ficção para você?JM – A ficção me proporcionou horizontes mais am-plos, com a convergência de todos os gêneros para um gênero. Na verdade, cada romance meu é a reu-nião de muitos romances, unidos por um fio narra-tivo comum. Assim deve ser compreendida a minha ficção. Minha obra de ficção constitui uma opção lúcida – tanto na técnica, conciliando a tradição narrativa com os novos recursos técnicos, como o monólogo interior e o flashback, quanto na temáti-ca. Do meu conjunto de romances, apenas três estão desvinculados do Maranhão: A luz da estrela morta, na sua versão atual, se une a todos eles, por tratar o problema do tempo, que lhes é comum. O silêncio da confissão é romance do Rio de Janeiro, terra onde moro desde 1937. Aleluia é um livro de inspiração

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cristã, que se passa na Palestina, ao tempo da Paixão de Cristo; é o romance do discípulo obscuro, que a tudo assiste e se revolta, sem compreender. Ao fim, tem a revelação. Esse romance se prende à minha formação religiosa. Meu pai, desde cedo, queria fa-zer de mim um pastor protestante. Mas, já na minha adolescência, deixou que eu próprio escolhesse o meu caminho. Aleluia se liga a outro romance meu, Os degraus do paraíso, mas apenas na sua temática cristã. Em toda a minha obra romanesca, distingo estes livros que melhor me representam: Os tambo-res de São Luís; Os degraus do paraíso; A noite so-bre Alcântara; A coroa de areia e Largo do Desterro. Quanto a Aleluia, trata-se de um romance diferente do resto de minha obra, embora a esta se associe pelo cuidado formal e pelos recursos técnicos.SVN – Que significa ser escritor no Brasil de hoje?JM – Aquilo que sempre significou: a testemunha que está com a palavra. E a palavra escrita, que está associada à duração no tempo. Daí a responsabilida-de do nosso ofício: não somos apenas os intérpretes de nós mesmos, somos os intérpretes de nosso meio e de nosso tempo. Não podemos deixar de dizer a verdade. A nossa verdade.SVN – Que significam, no Brasil atual, os movimen-tos alternativos de literatura, como a chamada “poe-sia marginal”?JM – O que significam em todas as literaturas. Um processo de afirmação, à revelia de todos os óbices que se levantam no caminho das letras. O impor-tante é que o movimento alternativo continue a lu-tar. Um belo dia, insere-se naturalmente no processo geral.SVN – Está a par do movimento desencadeado pelas Edições Pirata, do Recife? Que acha desse movimento

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que tem provocado tanto entusiasmo entre escrito-res de todas as gerações do Brasil?JM – Considero-o da maior importância. O essen-cial é que o movimento continue. Que não seja um movimento transitório, mas uma atuação contínua.SVN – Quais os seus planos de trabalho?JM – Concluir um novo romance, Cinzas da me-mória, com o qual espero encerrar minha obra de ficcionista, e consagrar-me à redação final de meu diário, que se alonga por mais de trinta anos.

Liêdo Maranhão“Não há cultura popular com povo faminto”Diario de Pernambuco, 28 de maio de 1982Dificilmente alguém conhecerá a cultura do povo re-

cifense tão bem quanto ele. Nascido no bairro de São José, aí passou a infância e a adolescência e aí aprendeu a amar o povo. Inteiramente avesso a intelectualismo e dono de uma intuição inigualável para captar as sutilezas da cul-tura popular, Liêdo Maranhão de Souza é um autêntico e refinadíssimo etnólogo, embora à la diable. Seus livros são hoje obrigatórios a quem quer que se interesse por cultura popular no Brasil. Dono de uma das maiores coleções de literatura popular em versos do Nordeste – a literatura de cordel –, conhece intimamente tudo o que se faz e já se fez nessa área. Seu livro mais recente, O folheto popular: sua capa e seus ilustradores, explora pioneiramente um dos aspectos mais interessantes da arte do povo nordestino. Seu livro anterior, resultado de um raríssimo exercício de observação participante, trata do sexo entre as camadas mais desfavorecidas do Recife: O povo, o sexo e a miséria ou o Homem é sacana.

Dentista, abandonou, para desgosto dos pais, tempo-rariamente a profissão para viajar, com o dinheiro obtido na

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venda do consultório, em um navio de luxo rumo à Europa, onde fez de tudo: ganhou a vida tocando pandeiro e “fazen-do o passo” no sul da França, foi “índio” na Alemanha, etc. Mas foi na Espanha que veio a se fixar como bolsista da Universidade de Madri. Aí reencontrou seu velho amigo do Recife, o circunspecto estudante de Literatura Eduardo Portela. Na Espanha também casou-se.

A Sebastião Vila Nova, em entrevista exclusiva para o Diario de Pernambuco, Liêdo Maranhão de Souza fala do seu trabalho de escritor e pesquisador da cultura popu-lar, dos seus projetos e do povo recifense.

SVN – Para alguns, a literatura de cordel está defi-nhando; para outros, ela está mais viva do que nun-ca. E você o que acha desta questão?LMS – O problema a nosso ver não é se a poesia popular está definhando ou mais viva do que nun-ca. Esse “a todo vapor” de alguns estudiosos é uma cortina de fumaça para faturar. Até a denominação “de cordel”, como o amigo sabe, é uma criação in-telectual. Ninguém conhece mais os livrinhos como folheto ou livro de Athayde. E o que era “pra gen-te baixa e cabra safado”, como dizia contrariado o pretinho Emiliano com a sua barraca de folhetos na praça do mercado, passou a ser escrita por advoga-do, engenheiro agrônomo, jornalista, estudante de psicologia e estudante de direito. E, em vez de canta-da e vendida nas feiras do interior, passou a ser lan-çada no Bar do Ciço, na sofisticada praia de Piedade, com citações e elogios no serviço internacional da Rádio Bélgica. O mesmo fim da sua irmã francesa, conhecida na época como literatura de mascate ou literatura de “piniqueira” (femme de chambre) nas feiras de Troy, hoje transformada no grande filão de teses da douta Sorbonne e do Department of Foreign Languages, da Arizona State University.

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SVN – Como você vê a qualidade dos estudos, que não são poucos, a respeito da nossa literatura popu-lar em versos?LMS – Excetuando os trabalhos de Gustavo Barroso, Leonardo Mota, Francisco das Chagas Batista, Rodrigues de Carvalho (que no final do século pas-sado, em campanha pela nacionalização das nossas criações literárias, já combatia a influência da literatu-ra francesa e do orientalismo, “que nos perturbavam o bom-senso literário”), Câmara Cascudo, Casa de Rui Barbosa, Ariano Suassuna e Renato Carneiro Campos, tudo o que se faz sobre a nossa poesia de cordel, in-clusive os trabalhos de estrangeiros feitos em língua portuguesa, em forma de teses, monografias e livros, são superficiais e sem criatividade, servindo mais para a autopromoção. E vejamos o que diz Rodolfo Coelho Cavalcante, já em 1955, no seu discurso de abertura do I Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros, como presidente do certame: “Li Afrânio Peixoto, Leonardo Mota, Edison Carneiro, F. Coutinho Filho, Luiz da Câmara Cascudo, Theo Brandão, Jorge Amado e ou-tros nomes que seria enfadonho enumerar e tirei a se-guinte conclusão: os trovadores e violeiros do Brasil até então serviam de estudo para intelectuais brasilei-ros como espécie de algo pitoresco e regional e que de nenhum modo resolvia os seus principais problemas no campo profissional”.SVN – A chamada literatura de cordel anda um tan-to na moda. Como você vê este fato?LMS – Uma moda quando surge no rabo de foguete de outra moda que foi grande, como a poesia popular, se não for retomada por um grande escritor, ator ou artista plástico, a emenda ficará pior do que o soneto. É como diz Émile Bayard no seu livro O bom gosto: “Desconfiemos do falso sob todas as suas formas”. A

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não ser que seja um grande gravador, como o nosso Gilvan Samico.SVN – Como você vê o relacionamento do Estado, particularmente na nossa cidade, com a cultura popular?LMS – É um relacionamento elitista, cheio de “pra que isso”, com uma política cultural demagógica, no qual, na falta de conhecimento e de sensibili-dade, seus promotores, como magos isolados em seus laboratórios, entre seu atanor, seus elixires e seus pentáculos, destroem, distorcem e afrescalham o que é nosso. Quer no plano nacional, estadual e municipal. Bosques de pau-brasil, com mil mudas, são plantados no Parque Histórico dos Guararapes, com um cacho de pitomba, vendido este ano a cin-quenta cruzeiros, que é uma tradição de 325 anos. Com fôlderes preparados pela Empetur para o es-petáculo da Paixão, de Nova Jerusalém, enquanto a mendiga Patrícia Vasconcelos, de 30 anos, com duas filhas menores, vive há dois meses na calçada do Banco Francês. Campeonato de botão é promo-vido pela Prefeitura do Recife para concorrer à Taça Prefeito Gustavo Krause, este cavando uma frustra-da governança. E um Carnaval de pura badalação (“Carnaval Capiba” e “Carnaval Irmãos Valença”) com Frevança à la MPB Shell e uma Frevioca à la Trio Elétrico, onde o próprio criador desse trio, o músico amador Osmar Macedo, em declarações à nossa imprensa, em 1979, dizia que esteve aqui em 1959 com o seu trio elétrico e “o povo não gostou”. E o que vimos este ano foi uma Festa no interior de Gal Costa com 50 mil cópias do compacto vendi-das no Recife antes de aparecer o seu LP. Passado o Carnaval, arriada a máscara da demagogia, o que tivemos foi um fim melancólico para a capital do

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frevo: “A Recife FM, que foi a única a lançar mão da música regional (frevo), foi a emissora que mais caiu de audiência na última pesquisa que mostrou os resultados da época em que se frevo de meia em meia hora”, conforme notícia publicada no Diário de Pernambuco de 23 de março deste ano. O que não acontece com a TV Globo, do badalado Roberto Marinho: “A Globo, então, foi inteiramente sulista, com verdadeiro descaso para a nossa cultura carna-valesca” (DP 26/02/82).Faz-se um grande salamaleque com o tombamen-to da Torre do Zepelin e a preservação do seu sítio histórico, enquanto o Mercado de São José, com a sua velha arquitetura francesa do século passado e um fluxo de mais de 50 mil pessoas por dia, o lu-gar onde se faz a feira mais barata no Recife, está com um grande projeto do amigo arquiteto Geraldo Gomes engavetado desde 1979. O Mercado de São José, aliás, já está sendo mais do que alterado na sua arquitetura; está mesmo é sendo destruído por co-merciantes com as suas instalações de péssimo gos-to. E, o que é pior, com a permissão da Prefeitura. O Recife não dói como a Espanha de Unamuno. O Recife também fede, como bem disse um colunista deste Diario.SVN – Para alguns, os chamados intelectuais apoca-lípticos da classificação de Umberto Eco, o destino da cultura popular é ser tragada pela cultura de mas-sa. Como você vê esse problema?LMS – Não direi que a cultura de massa vai aca-bar com a cultura popular. Vivemos num verdadeiro caos econômico, esse é que é o verdadeiro proble-ma, e a cultura do povo não é nenhum esporo de bactéria resistente para suportar tanta agressão em um país que lidera uma inflação mundial. Antes de

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mais nada, para que esse povo sobreviva, devemos lutar pela reforma agrária, para evitar o êxodo rural – para mim, o maior fator de descaracterização da cultura popular –, por melhores salários e para aca-bar com o fantasma do desemprego. Depois é que poderíamos pensar em uma televisão regional, que possa levar ao telespectador, com montagens bem cuidadas de filmes, novelas, teatro, com situações, tipos e música essencialmente regionais. A luta con-tra a indústria do futebol e da música popular bra-sileira – êpa! Enquanto o povo morre por falta de assistência médica, enfrentando as filas da previdên-cia social, madrugada a dentro, correndo o risco dos assaltos, o senhor Telê Santana, técnico da seleção brasileira, ao receber alta do hospital em que esteve internado, declarou lépido e fagueiro para milhões de telespectadores do Jornal Nacional: “Fui bem as-sistido, bem tratado e bem medicado; e curado em tempo record”. O que deveria ser um direito de to-dos os filhos de um país que se preza. Não pode ha-ver cultura popular com o povo faminto.

Paulo de Carvalho NetoÉ escrevendo que eu me achoDiario de Pernambuco, 11 de junho de 1982Quem no Brasil conhece esse brasileiro de Sergipe,

atualmente professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e que já publicou quarenta livros sobre Folclore, Antropologia e Literatura fora do Brasil? Quem conhece o autor de Meu tio Atahualpa, romance pica-resco que mereceu do crítico José Guilherme Merquior a classificação de “uma das melhores narrativas bufas do nosso tempo”? Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo, Paulo de Carvalho Neto é hoje um dos mais conceituados estudiosos da cultura popular nos

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meios acadêmicos internacionais. Seu romance Meu tio Athaualpa foi originalmente publicado em 1972 no México e só depois traduzido para o português por ini-ciativa da Editora Salamandra, em 1978. Antes, porém, de aparecer no Brasil, já havia sido publicado em inglês, alemão e finlandês. De inspiração claramente cervantina, Meu tio Athaualpa é o resultado do profundo conheci-mento do seu autor a respeito do folclore dos índios equa-torianos. Meu tio Ahaualpa pertence à tradição dos heróis picarescos ibéricos e latino-americanos: Pedro Malazarte, Macunaíma, João Grilo. Espírito aberto a novas experiên-cias, diverte-se atualmente com um computador ultrasso-fisticado e “complicadíssimo para minha cuca” – diz ele – com o qual começa agora a escrever. “Talvez eu seja no momento o único escritor brasileiro a ter numa casa um computador para escrever seus trabalhos”, afirma ao so-ciólogo e escritor Sebastião Vila Nova, seu amigo, a quem concedeu esta entrevista.

Vivendo há anos nos Estados Unidos, onde já en-sinou nas Universidades da Califórnia (Los Angeles), Santa Barbara e Berkley, de West Florida (Pensacola) e de Indiana (Bloomington), Paulo de Carvalho Neto jamais perdeu o jeitão manso de nordestino. E é com esse jeitão que, da Califórnia, ele fala a Sebastião Vila Nova da sua experiência de escritor e dos seus projetos.

SVN – Quem é o escritor Paulo de Carvalho Neto?PCN – Você começa esta entrevista com uma per-gunta transcendental: quem é quem? Se eu soubesse exatamente quem sou, eu teria perdido o interesse na vida. Para encontrar a minha identidade, comecei a escrever aos quinze anos de idade. Poemas, natu-ralmente. A única coisa que posso lhe dizer é que escrevendo é que me acho. Penso que eu não po-deria ser outro tipo de indivíduo. O escritor Paulo de Carvalho Neto é, portanto, o indivíduo Paulo de

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Carvalho Neto. Não me encontro separado do que faço como escritor. Eu estou no que escrevo. Quem desejar me conhecer é só ler o que escrevo. Quem desejar ser meu amigo tem que ser amigo do escritor; noutras palavras, compreender o que eu faço para me afirmar psicologicamente e para ganhar o pão.SVN – Como você se sente hoje como um escritor brasileiro que mora nos Estados Unidos?PCN – Os espaços físicos não me afetam muito. Já morei em muitos países e me sinto sempre o mesmo, em essência. Mudar de país tem sido parte da minha própria procura como indivíduo. Mudar de país ace-lera essa procura, aprofundando-a, mas não a modi-fica em essência. Destarte, morar aqui nos Estados Unidos ou morar no Brasil, para mim é o mesmo, porque eu vivo dentro do meu próprio espaço psí-quico, o qual não sofre, como disse, modificações fundamentais por parte dos espaços físicos.SVN – Paulo, como é mesmo essa história de você ter publicado o seu romance Meu tio Athaualpa pri-meiro no estrangeiro e só depois no Brasil, com tra-dução alheia?PCN – O negócio é que Meu tio Athaualpa foi es-crito em espanhol e publicado primeiramente no México, pela Editora Siglo XX. O idioma espanhol, para mim, é como a minha própria língua, pois co-mecei a estudá-lo desde jovem. Este romance não poderia ter sido escrito em nenhum outro idioma porque ele reflete a vida do indivíduo andino acul-turado, com o seu linguajar característico na maior parte do livro. Para traduzi-lo ao português, eu pen-sei duas vezes. Eu teria que inventar um linguajar brasileiro que correspondesse ao referido linguajar andino. Não me atrevi. Além disso, eu teria corrido o risco de modificar o romance, pois os personagens

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sempre acabam fazendo o que eles querem. Quando eu disse que não iria traduzi-lo a Geraldo Jordão Pereira, o editor da Salamandra, então ele entregou a tarefa a Remy Gorga Filho, um grande tradutor. Devo-lhe grande parte do êxito, pois ele inventou a linguagem que fazia falta.SVN – E os seus livros de ensaios traduzidos?PCN – Com os meus livros de ensaio, a situação é diferente. Eu mesmo os traduzo. Neste momento, estou com um projeto de traduzir sete deles, entre os quarenta que tenho publicados. Para o portu-guês, estão traduzidos Folclore e Educação, que a Forense-Universitária, em coedição com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, lançou no ano passado; Conceito de Folclore, inédito; História do Folclore Ibero-Americano, a ser lançado em breve; O Folclore segundo o Espiritismo, inédito; Folclore e Psicanálise, em processo de tradução.SVN – Para você, quem é mais importante: o fic-cionista ou o folclorista Paulo de Carvalho Neto? Como os dois se relacionam?PCN – Nenhum é mais importante do que o outro, porque não estão em oposição. Complementam-se, são parte de uma só unidade. Eu sinto-me muito fe-liz de trabalhar tanto com o ensaio quanto com a ficção. São dois meios de expressão, o que me pro-porciona maior amplidão, maior campo. Em termos práticos, são simplesmente duas técnicas diferentes, mas em termos de essência são uma só realidade. Quisera eu dominar outros meios de expressão li-terária, como a poesia, por exemplo. Faço poemas, mas não mostro. Apesar disso, muitos amigos lati-no-americanos me conhecem como poeta. Também escrevo teatro, a mais difícil de todas as técnicas li-terárias. E também escrevo roteiros. Teatro e roteiro

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ajudam-me consideravelmente para passar uma his-tória a romance. Meu tio Athaualpa foi inicialmente uma peça de teatro.SVN – Como você vê a presença da literatura brasi-leira de ficção nos Estados Unidos?PCN – Somente Jorge Amado chega ao leitor das ruas, ou seja, suas obras estão nas livrarias, ouve-se falar dele sobretudo depois que seus romances começaram a ser transmitidos noutra técnica: a do cinema. Todos os outros autores brasileiros, no meu modo de ver, circulam num âmbito restrito, o âmbito acadêmico, o do leitor erudito. Deve faltar promoção, isto é, incentivo aos tradutores norte-a-mericanos, difusão da crítica sobre o romance brasi-leiro. Acima de tudo, deveria haver uma motivação para que o leitor norte-americano pudesse procurar conhecer a cultura brasileira massivamente.SVN – Qual a diferença entre ser escritor no Brasil e ser escritor nos Estados Unidos?PCN – Para mim não há diferença. Como eu já disse, Vila Nova, os espaços físicos não me afetam subs-tancialmente. Os temas humanos estão na vida em si mesma. Não estão nos lugares. Tanto é assim que você pode encontrar o mesmo sofrimento no Brasil como nos Estados Unidos ou em qualquer parte do mundo. O que o romancista procura escrever é so-bre o sofrimento, a alegria, as emoções em geral, sem que lhe interesse o lugar de um modo especial. O lugar é simplesmente acessório.SVN – Como folclorista de renome internacional que você é, como vê o problema da cultura popular em face da cultura de massa?PCN – A difusão massiva da cultura através dos meios mais sofisticados de comunicação é hoje um fato indiscutível e pertence ao progresso. A cultura

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popular também se difunde massivamente, porém por outros canais, os quais poderíamos chamar de canais do espírito. Os canais da difusão massiva da cultura popular não são canais técnicos. Há uma constante interação desses dois meios massivos de difusão da cultura. É evidente que ambos os canais estão em competição, mas não sou dos que creem que os meios técnicos de difusão acabarão com a cultura popular, pois eu dou prevalência às coisas do espírito. E como o espírito é indestrutível, o folclore é indestrutível por definição.

Silviano Santiago“Pela ficção comunico-me com o outro”Diario de Pernambuco, 19 de março de 1982Seu livro mais recente, Em Liberdade (Paz e Terra,

1981), é uma espécie de concretização da “história do que poderia ter sido e não foi”: um diário fictício de Graciliano Ramos nos meses que se seguem imediatamente à sua saída da prisão em 1937, no Rio de Janeiro. Para escrevê-lo, Silviano Santiago, atualmente professor de Literatura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro, gastou cinco anos pesquisando em jornais da época, consultando pessoas que conviveram com o escritor alagoano, verificando mapas e fotografias, viajando aos lugares onde viveu o autor de Vidas Secas.

Obra já controvertida no seu nascimento, é, no en-tanto, para o crítico Fábio Lucas, “uma proeza literária de vulto, uma forte empresa criadora, desafiando, na sua extrema abertura, a estratégia dos gêneros na literatura e as técnicas de revisão e de relato dos fatos históricos”.

Doutor em Letras pela Sorbonne, tendo ensinado durante anos em universidades norte-americanas, Silviano costuma realizar esse tipo de pesquisa para escrever os seus livros. Assim também aconteceu com o seu livro de poemas

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Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (Francisco Alves, 1978). A Sebastião Vila Nova, Silviano Santiago fala, em entrevista exclusiva para o Diario de Pernambuco, do seu trabalho de escritor.

SVN – Quem é o escritor Silviano Santiago?SS – A sinceridade não é e nunca foi o meu forte. Nunca gostei de fazer confidências. Sou antes de mais nada alguém que gosta de ler e de ouvir ficções e que também as faz. Pela ficção, comunico-me com o ou-tro, trazendo-lhe um entretenimento inteligente no momento do lazer. Pela ficção, exerço um comentá-rio crítico (com tendências à ironia) sobre a sociedade brasileira. É claro que estou dando à palavra “ficção” um sentido amplo, tão amplo que abrange o roman-ce e o poema elaborados pacientemente e também a mais despreocupada conversa de salão ou de bar.SVN – Fale do seu último livro. Como você o classi-fica? Será um diário ficcional?SS – Prosa-limite – creio que seria a melhor etique-ta para Em liberdade. É a biografia de Graciliano Ramos ao sair da cadeia em 1937, e não o é. É crítica literária, e não o é. É interseção de dados biográficos e culturais com crítica literária, usando como ele-mento catalisador o delírio e a liberdade da ficção.SVN – Como você vê, no quadro da literatura bra-sileira, o personagem principal do seu romance? Por que exatamente ele para o romance?SS – Não posso negar que sou crítico e professor uni-versitário. Como tal, sou levado a reler e a repensar os nossos autores modernistas com certa constân-cia, desarrumando e reorganizando a nossa curta e marcante tradição literária. Preocupei-me antes com a obra de outros escritores do modernismo, como Drummond, Oswald, João Cabral, e me manifes-tei de forma conveniente na época. Ultimamente,

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agigantava-se a figura de Graciliano Ramos. Não sabia como tratá-la, pois o viés mais interessante dele era o modo como o componente biográfico se acoplava a um texto forte e objetivo, de grande efei-to artístico. Tinha de recusar os métodos atuais de crítica literária, porque dissociam vida e obra; tinha de recusar as graças da biografia pura e simples, por-que o componente literário era também de grande interesse no caso. Optei, então, por uma abordagem ficcional da vida e da obra. Escolhi um momento crucial da sua biografia (quando saiu da cadeia em 1937, no Rio de Janeiro), momento este que não ti-nha sido explorado literariamente por ele próprio. Graciliano é o “pai” intelectual que me ofereço no momento. Por isso, é revelador do que existe em mim hoje de rebeldia e aniquilamento.SVN – E a crítica literária? Como você a vê no Brasil de hoje?SS – A crítica literária exercida nos jornais (que não deve ser confundida com a reflexão prático-teórica expressa em ensaios e teses) é uma forma de divaga-ção em torno de livros recém-publicados. Em si, ela é útil e deve ser incentivada, pois pode despertar no leitor já curioso pelas coisas literárias o gosto por uma nova e diferente leitura. Ela passa a ser nefas-ta quando, em lugar de descrever criticamente o ro-mance ou o livro de poemas, dá lugar a sentimentos mesquinhos de ordem pessoal, como a vingança.SVN – Como você, que é também professor univer-sitário, vê a universidade no panorama da cultura no Brasil de hoje?SS – A universidade deve ser, e felizmente tem sido, sensível às mudanças culturais que se processam no país. Querer, no entanto, que ela ocupe um papel de vanguarda é ridículo. Ela é antes de mais nada

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uma “instituição” e como tal é o lugar onde se pre-servam os objetos culturais e onde se reflete sobre eles. O compromisso maior (friso: maior) de uma universidade é com a cultura erudita de um povo, onde se encaixam todos os produtos que se expres-sam pela palavra escrita. Quando a universidade se aproxima com exclusividade do popular, há o ris-co do paternalismo, que deve ser evitado a qualquer preço. Com isso, estou querendo dizer que a uni-versidade não deve ser entronizada como soberana e única numa sociedade complexa como a nossa; ao lado dela, outros centros de saber e institutos de pesquisa, com funções distintas, devem existir e de maneira eficiente.SVN – Tenho a impressão de que seu processo de criação é muito racional. Explique aí.SS – Só consigo começar a escrever quando já tenho um plano geral da obra na cabeça. Por plano, enten-do, é claro, uma forma. Em geral, tenho uma ou vá-rias ideias na cabeça e fico batalhando em cima delas até chegar a um estágio que seria o da obra mental-mente escrita. Então, começo a botar as palavras no papel. A execução tem sido rápida, embora penosa, pois já sei o que vou dizer. O problema da criação, para mim, é o do amadurecimento. Fiquei uns cinco anos com o meu último romance na cabeça.SVN – O que significa ser ficcionista no Brasil de hoje?SS – Significa assumir os riscos e os perigos da in-tervenção crítica ficcional na sociedade. Significa ter uma voz e uma coragem diferentes da de um político da oposição, por exemplo. Durante o período da re-pressão forte, confundiu-se a voz do artista com a do senador. Hoje, a crítica da ficção não se dirige ape-nas às instâncias repressivas do poder central, mas

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às microestruturas de poder que só a ficção, através da dramatização da vida e dos fatos, pode revelar. A liberdade que a ficção exige não é apenas política (no sentido estreito), é a liberdade da criação que engloba esta, transcende-a e paira no ar como tro-voadas em dias de chuva.SVN – Como você relaciona a sua atividade univer-sitária com a sua atividade de criação literária?SS – Cada macaco no seu galho, mas a árvore é uma só.

Sebastião Vila Nova e uma de suas paixões: o violão.

Sebastião Vila Nova (em primeiro plano),

Gilberto Freyre e o reitor Paulo Maciel, em evento da Universidade Federal

de Pernambuco nos anos 1970.

Sebastião Vila Nova e Paulo Gustavo (organizador deste livro) em evento

da Fundação Joaquim Nabuco no fim da década de 1990.

O antropólogo Roberto Motta (à esquerda), prefaciador deste livro, com o autor e compadre.

Acima e ao lado:Três momentos do autor em

sua biblioteca particular.

No topo da página:Sebastião Vila Nova

coordenando uma reunião do Seminário de Tropicologia, no fim da década de 1990,

na Fundação Joaquim Nabuco.

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O autor num passeio à capital paraibana.

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Sebastião Vila Nova nasceu em Rio Largo, Alagoas, no dia 18 de janeiro de 1944. De origem pobre, ainda mui-to criança veio para o Recife, onde, até firmar-se como sociólogo e escritor, exerceu vários outros ofícios, dentre os quais o de radioator, office-boy e balconista de livra-ria. Em 1966, ingressou no Seminário de Olinda, onde fi-cou apenas por um ano. Em 1971, graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), cursando a seguir a pós-graduação no Programa Integrado de Mestrado em Economia e Sociologia da mesma univer-sidade. Compôs a parte musical de várias peças no extinto Teatro Popular do Nordeste. Foi professor na UFPE e na Universidade Católica de Pernambuco. Foi professor visi-tante na Universidade Internacional de Lisboa, no mestrado de Ciências Políticas da Universidade Lusófona, também em Lisboa, e no Departamento de Sociologia, da Universidade de Chicago. Na Fundação Joaquim Nabuco, da qual é apo-sentado, foi pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais, chefe do Departamento de Sociologia, diretor da Editora Massangana, superintendente do Instituto de Tropicologia e editor da revista Ciência & Trópico.

Vila Nova é autor de diversos livros, dentre os quais, Introdução à sociologia, que já conta com várias edi-ções, sendo a primeira de 1981; A realidade social da ficção: uma sociologia paralela (1975); Teoria completa dos dias e das noites (poesia, 1979); Desigualdade, classe e sociedade:

SOBRE O AUTOR

uma introdução aos princípios e problemas da estratifica-ção social (1982); Ciência social: humanismo ou técnica?: ensaios sobre problemas de teoria, pesquisa e planejamen-to social (1985); Sociologias & pós-sociologia em Gilberto Freyre: algumas fontes e afinidades teóricas e metodológi-cas do seu pensamento (1995); Donald Pierson e a Escola de Chicago na sociologia brasileira: entre humanistas e messiânicos (1998). Na imprensa pernambucana, colabo-rou no Jornal do Commercio e no Diario de Pernambuco.

Em dezembro de 2002, recebeu o título de Cidadão de Pernambuco, concedido pela Assembleia Legislativa do Estado.

Esta edição foi composta nas fontes Sabon e Futura BT, com miolo sobre papel Off Set 90 g/m² e capa em papel Supremo 250 g/m²,

impressa pela Texgraf Editora Ltda - EPP, para a Editora Massangana, em 2016.