Acoesetnicoraciais_livro

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Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais

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  • Orientaes e Aes para a Educao das Relaes tnico-Raciais

  • Orientaes e Aes para a Educao das Relaes tnico-Raciais

    Brasilia, 2006

  • Presidente da rePblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro de estado da educaoFernando Haddad

    secretrio-executivoJairo Jorge

  • Copyright 2005. Ministrio da Educao/Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (MEC/SECAD) permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.Tiragem: 50.000 exemplares

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeSGAS Quadra 607, Lote 50, sala 205Cep. 70.200-670 Braslia DF(61) 2104-6183 / 2104-6146

    EquipE TcnicaAna Flavia Magalhes PintoDenise BotelhoEdileuza Penha de SouzaMaria Carolina da Costa BragaMaria Lucia de Santana Braga

    SiSTEmaTizao E REviSo dE conTEdoSAlecsandro J.P. RattsEdileuza Penha de SouzaKnia Gonalves Costa

    REviSoXxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx

    capaNelson Olokof Inocencio

    iluSTRaES gEnTilmEnTE cEdidaS poR Nelson Olokof Inocencio

    cooRdEnao EdiToRial Edileuza Penha de SouzaMaria Carolina da Costa BragaMaria Lucia de Santana Braga

    pRojETo gRfico E diagRamao Carlos Emmanuel Rodrigues Fernandes

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Ficha catalogrfica

    Ministrio da Educao / Secretaria da Educao Continuada,Alfabetizao e Diversidade. Orientaes e Aes para Educao das Relaes tnico-RaciaisBraslia: SECAD, 2006.

    262 pg.; il.

    1. Educao Educao tnico-Racial 2. Segregao Racial naEducao Ensino Infantil, Fundamental, Mdio e Superior I. Ttulo

    CDU 370.19CDD 371.3

    82-296

    ISBN: 85-88507-XX-X

  • Sumrio

    Apresentao...................................................................................................................................... x

    Introduo .......................................................................................................................................... x

    EDUCAO INFANTIL ........................................................................................................... xxIntroduo ........................................................................................................................................ xx1. Alguns processos da Educao Infantil no Brasil ................................................................. xx2. Construindo referenciais para abordagem da temtica tnico-racial na Educao Infantil .................................................................................................................. xx

    ENSINO FUNDAMENTAL....................................................................................................... xxIntroduo ........................................................................................................................................ xx1. A Escola Contextualizao Terica e Metodolgica .......................................................... xx2. Os(as) estudantes do Ensino Fundamental ............................................................................ xx3. O trato pedaggico da questo racial no cotidiano escolar .................................................. xx

    ENSINO MDIO ......................................................................................................................... xxIntroduo ........................................................................................................................................ xx1. Ensino Mdio - orientaes, avanos, desafios ...................................................................... xx2. Propostas em dilogo com os projetos poltico-pedaggicos ............................................ xx3. Propostas e projetos ................................................................................................................... xx

    EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS ............................................................................... xxIntroduo ........................................................................................................................................ xx1. EJA: Concepes, avanos e desafios ...................................................................................... xx2. Sujeitos Presentes na Educao de Jovens e Adultos ........................................................... xx3. O Projeto Poltico Pedaggico e o currculo .......................................................................... xx

    LICENCIATURAS ........................................................................................................................ xxIntroduo ........................................................................................................................................ xx1. O campo das licenciaturas ......................................................................................................... xx2. Pesquisas e aes sobre relaes tnico-raciais na formao de profissionais da educao ......................................................................................................... xx3. Insero das Diretrizes nas Instituies de Ensino Superior (IES) .................................... xx

  • EDUCAO QUILOMBOLA ................................................................................................. xxxIntroduo ...................................................................................................................................... xxx1. Educao quilombola e relaes tnico-raciais: reflexes e prticas ................................ xxx2. O campo das reflexes ............................................................................................................. xxx3. O campo das aes ................................................................................................................... xxx

    SUGESTES DE ATIVIDADES ............................................................................................ xxxEducao Infantil .......................................................................................................................... xxxEnsino Fundamental .................................................................................................................... xxxEnsino Mdio ................................................................................................................................ xxxEducao de Jovens e Adultos .................................................................................................... xxxLicenciaturas .................................................................................................................................. xxxEducao Quilombola .................................................................................................................. xxx

    GLOSSRIO DE TERMOS E EXPRESSES ANTI-RACISTAS ................................. xxxDiretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana ........................................ xxxPARECER CNE/CP 003/2004 ................................................................................................. xxx

    RESOLUO CNE/CP N. 001/2004 ................................................................................... xxx

    LEI 10.639/03 ............................................................................................................................... xxx

  • Linha de Frente (Ians & Ogum)Coleo Particular - Maria das Graas Santos

    Apresentao

  • APRESENTAO

    O Ministrio da Educao, por meio da Secretaria de Educao Continu-ada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), tem o prazer de apresentar Orientaes e Aes para a Educao das Relaes tnico-Raciais.

    O presidente da Repblica Luiz Incio Lula da Silva, em uma de suas pri-meiras aes, promulgou a Lei n 10.639, em 9 de janeiro de 2003, instituindo a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-brasilei-ra. No ano de 2004, o Conselho Nacional de Educao aprovou o parecer que prope as Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Africanas e Afro-Brasileiras.

    Como um desdobramento coerente e adequado dessas aes institucio-nais, trazemos a pblico este documento, resultado de grupos de trabalho constitudos por vasta coletividade de estudiosos(as), especialmente, educa-dores/as, contando com cerca de 150 envolvidos(as). O trabalho foi cons-trudo em jornadas (Salvador, Belo Horizonte, Florianpolis e Braslia), nas quais se formaram grupos de trabalho, e em reunies das coordenadoras dos referidos GTs, entre dezembro de 2004 e junho de 2005. O processo incor-porou, ainda, a redao de vrias verses dos textos e passou por uma equipe de reviso e sistematizao do contedo.

    O texto de cada grupo de trabalho se dirige a diversos agentes do cotidia-no escolar, particularmente, os(as) professores/as, trazendo, para cada nvel ou modalidade de ensino, um histrico da educao brasileira e a conjuno com a temtica tnico-racial, adentrando na abordagem desses temas no cam-po educacional e concluindo com perspectivas de ao.

    Todo o material aqui apresentado busca cumprir o detalhamento de uma poltica educacional que reconhece a diversidade tnico-racial, em correlao com faixa etria e com situaes especficas de cada nvel de ensino. Esperamos que a publicao seja recebida pelas escolas, por gestores/as e educadores/as, como um importante subsdio para o tratamento da diversidade na educao.

    Linha de Frente (Ians & Ogum)Coleo Particular Maria das Graas Santos

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    A educao um ato permanente, dizia Paulo Freire, e neste sentido o Ministrio da Educao, por intermdio da Secad, entende que esta publica-o um instrumento para a construo de uma sociedade anti-racista, que privilegia o ambiente escolar como um espao fundamental no combate ao racismo e discriminao racial.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade

  • INTRODUOEliane Cavalleiro1

    As feridas da discriminao racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade do pas.

    Abdias Nascimento

    Valores civilizatrios dimenses histricas para uma educao anti-racista

    Em linhas gerais, alm de um direito social, a educao tem sido entendida como um processo de desenvolvimento humano. Como expresso nos Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a educao escolar corresponde a um espao sociocultural e institucional responsvel pelo trato pedaggico do conhecimento e da cultura. A princpio, estaramos, ento, trabalhando em solo pacfico, porque universalista.

    No entanto, como pondera Nilma Lino Gomes, em certos momentos, as prticas educativas que se pretendem iguais para todos acabam sendo as mais discriminatrias. Essa afirmao pode parecer paradoxal, mas, dependendo do discurso e da prtica desenvolvida, pode-se incorrer no erro da homoge-neizao em detrimento do reconhecimento das diferenas (GOMES, 2001, p. 86). Ao localizarmos o conceito e o processo da educao no contexto das coletividades e pessoas negras e da relao dessas com os espaos sociais, tor-na-se imperativo o debate da educao a servio da diversidade, tendo como grande desafio a afirmao e a revitalizao da auto-imagem do povo negro.

    E o kora encantou o sambaColeo Particular - Lydia Garcia

    1 Coordenadora-Geral de Diversidade e Incluso Educacional.

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    Como linha mestra da maioria das coletividades negras, o processo de educao ocorre a todo o tempo e se aplica nos mais diversos espaos. Afora isso, em resposta experincia histrica do perodo escravista, a educao apresentou-se como um caminho frtil para a reproduo dos valores sociais e/ou civilizatrios das vrias naes africanas raptadas para o Brasil e de seus descendentes.1

    A partir do sculo XVI, as populaes negras desembarcadas no Brasil foram distribudas em grande quantidade nas regies litorneas, com maior concentrao no que atualmente se denomina regies Nordeste e Sudeste, cujo crescimento econmico no decorrer dos sculos XVII, XVIII e XIX foi assegurado pela expanso das lavouras de cana-de-acar.. Esse proces-so garantiu aos senhores de engenho e latifundirios um grande patrim-nio, enquanto, em precrias condies de vida, coube ao povo negro, em sua diversidade, criar estratgias para reverenciar seus ancestrais, proteger seus valores, manter e recriar vnculos com seu lastro histrico, a fri-ca Genitora (LUZ, 1997) assim como reconstru-la sob o espectro da resistncia.

    At 1888, ano da abolio formal da escravido no Brasil, por meio da chamada Lei urea, a populao negra escravizada vivenciou a experincia de ter seus poucos direitos, assinalados em vrios documentos oficiais, sob a tutela dos senhores de terra e do Estado (CHALHOUB, 1990; MATTOS, 1997). No entanto, a srie de barreiras forjada nesse contexto no impediu as populaes negras de promover a continuidade de suas histrias e suas culturas, bem como o ensinamento de suas vises de mundo.

    Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, ir-mandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimnio da educao dos afro-brasileiros. Apesar das precrias condies de sobrevivn-cia que a populao negra enfrentou e ainda enfrenta, a relao com a an-cestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reproduo de um senso de coletividade, por exemplo, possi-bilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistncia das diversas comunidades afro-brasileiras.

    Os 118 anos que nos separam da Lei urea no foram suficientes para resolver uma srie de problemas decorrentes das dinmicas discriminatrias forjadas ao longo dos quatro sculos de regime escravocrata. Ainda hoje, per-manece na ordem do dia a luta pela participao eqitativa de negros e negras

    1 Uma interessante abordagem acerca da importncia da educao na experincia histrica da popu-lao negra brasileira apresentada em SILVA (2004).

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    nos espaos da sociedade brasileira e pelo respeito humanidade dessas mu-lheres e homens reprodutores e produtores de cultura. Com essa finalidade, setores da sociedade civil tm atuado intensamente contra o racismo e as dis-criminaes raciais, tomando a linguagem africano-brasileira como ancoragem e lapidando as relaes sociais emergentes no entrecruzar dessa cultura com a cultura eurocntrica da sociedade (LUZ, 1997).

    Um pas de muitas leis e direitos limitados

    De 1815 quando Portugal concorda em restringir o trfico ao sul do Equador a 1888 com a Lei urea, a populao escravizada recorreu a uma gama de formas de resistncia para que seus limitados direitos fossem reconhecidos e assegurados. O processo de transformao da mo-de-obra dos trabalhadores escravizados em trabalhadores livres foi paulatino, e leis como a do Ventre Livre (1871), Saraiva - Cotegipe ou Lei dos Sexagenrios (1885), que a rigor deveriam favorecer a populao negra, caracterizaram-se como mais um instrumento de controle em prol da ordem escravocrata. As-sim tambm, impediu-se a integrao da populao negra liberada, mediante vrias outras leis que, ao serem incorporadas ao trato cotidiano, acabaram por tornar-se meios de promoo dos grupos hegemnicos (SILVA JUNIOR, 1998)2 , em detrimento da populao negra que delas deveria beneficiar-se.

    Durante quase todo o sculo XX, quando se operou a expanso do ca-pitalismo brasileiro, nada de realmente relevante foi feito em termos de uma legislao para a promoo da cidadania plena da populao negra. Mesmo aps as experincias das I e II Guerras Mundiais, apenas em 1951, pela Lei Afonso Arinos, a discriminao racial caracterizou-se como contraveno pe-nal. Foi tambm apenas na segunda metade do sculo XX que, na perspecti-va acadmica, os trabalhos de Abdias Nascimento, Clvis Moura, Florestan Fernandes, Llia Gonzalez, Otavio Ianni, Roger Bastide, entre outros, sobre as condies de vida da populao negra no Brasil, fizeram contraponto s teorias de Slvio Romero, Oliveira Viana, Jos Verssimo, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre3.

    Numa perspectiva global, a dcada de 40 foi marcada pela criao da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 1945, e pela proclamao, em 1948, da Declarao Universal dos Direitos Humanos da qual o Estado

    2 Para uma abordagem jurdica conferir SILVA JR. (1998). 3 Para um panorama da produo intelectual desses ltimos, conferir MUNANGA (2004).

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    brasileiro foi signatrio , cujo texto se propunha como ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as naes e dizia que todos os povos tm direitos livre determinao. Mesmo assim, permanecia aqui o no-constrangimento diante do fato da reduzidssima presena ou da no-presen-a de pessoas negras em locais de prestgio social.

    Diante da srie de reivindicaes apresentadas por entidades do Movimen-to Negro Brasileiro, o reconhecimento da Conveno n 111 da Organizao Internacional do Trabalho (1958); do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos (1966); do Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (1966); da Conveno Internacional Sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial (1968); a promulgao da Constituio Federal de 1988, considerando a prtica do racismo como crime inafianvel e impres-critvel, e as manifestaes culturais como um bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao; e a publicao da Lei n 7.716/89, a Lei Ca, que define os crimes resultantes de discriminao por raa ou cor; no campo educacional, a publicao da Lei 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da educao para incluir no currculo oficial a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-brasilei-ra, assinalam o quadro de intenes da parte do Estado brasileiro em eliminar o racismo e a discriminao racial. A partir da III Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de In-tolerncia, realizada em Durban, frica do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001, esse procedimento mantido, sendo o Estado brasileiro signatrio da Declarao e do Plano de Ao resultantes desta conferncia.

    Movimento Negro e Educao

    Alm de muitos estudos dos livros, a pessoa educada capaz de produzir conhecimento e necessariamente, respeita os idosos, as outras pessoas, o meio ambiente. Empenha-se em fortalecer a comunidade, na medida em que vai adquirindo conhecimentos escolares, acadmi-cos, bem como outros necessrios para a comunidade sentir-se inserida na vida do pas (SILVA, 2000, p. 78-79).

    A educao formal sempre se constituiu em marco no panorama das reivindicaes do Movimento Negro na luta por uma sociedade mais justa e igualitria. Ao longo do sculo XX, a imprensa foi intensamente utiliza-da como instrumento de suas campanhas, com destaque para os peridi-cos O Baluarte (1903) O Menelik (1915), A Rua (1916), O Alfinete (1918), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Getulino (1923) e o Clarim dAlvorada

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    (1924). Essas empreitadas desembocaram na criao da Frente Negra Brasi-leira (FNB), que, segundo Florestan Fernandes, foi o primeiro movimento de massa no perodo ps-abolicionista que teve o objetivo de inserir o negro na poltica.(FERNANDES, 1978).

    No limitando seus esforos a seus prprios membros, setores da Frente Negra Brasileira (FNB) criaram salas de aula de alfabetizao para os tra-balhadores e trabalhadoras negras em diversas localidades (GONALVES, 2000). Outra experincia importante na luta pela educao foi empreendida pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). De acordo com Abdias Nasci-mento, o TEN:

    (...) iniciou sua tarefa histrica e revolucionria convocando para seus quadros pessoas originrias das classes mais sofridas pela discriminao: os favelados, as empregadas domsticas, os operrios desqualificados, os freqentadores de terreiros. Com essa riqueza humana, o TEN edu-cou, formou e apresentou os primeiros intrpretes dramticos da raa negra atores e atrizes do teatro brasileiro (NASCIMENTO, 2002).

    Como expresso no jornal Quilombo vida, problemas e aspiraes do negro, o TEN manteve, em salas de aulas cedidas pela Unio Nacional dos Estudantes, vrias aulas de alfabetizao, sob a chefia do professor Ironides Rodrigues. Cerca de seiscentos alunos freqentavam esse cur-so, interrompido, infelizmente, por falta de local para funcionar (...) (TEN, 1948, p. 7).

    Nessa trajetria, destacam-se ainda as experincias do Movimento Negro Unificado (MNU), a partir do fim da dcada de 1970 e seus desdobramen-tos com a poltica anti-racista, nas dcadas de 1980 e 1990, com conquistas singulares nos espaos pblicos e privados das frentes abertas pelo Movi-mento de Mulheres Negras e do embate poltico impulsionado pelas Comu-nidades Negras Quilombolas. Ou seja, no percurso trilhado pelo Movimento Negro Brasileiro, a educao sempre foi tratada como instrumento de grande valia para a promoo das demandas da populao negra e o combate s de-sigualdades sociais e raciais.

    Educao e Direitos Humanos Lei n 10.639/2003

    A III Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerncia catalisou no Brasil um acalorado debate pblico, envolvendo tanto organizaes governamentais quanto no-governamentais e expresses de movimentos sociais interessadas

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    em analisar as dinmicas das relaes raciais no Brasil, bem como elabo-rar propostas de superao dos entraves postos em relevo pela realizao da conferncia. A entrada do novo milnio contou mais uma vez com o reco-nhecimento e a ratificao da necessidade dos povos do mundo em debater e elaborar estratgias de enfrentamento de um problema equacionado no trans-correr da Modernidade. Ademais, a conferncia marca o reconhecimento, por parte da ONU, da escravizao de seres humanos negros e suas conse-qncias como crime contra a humanidade, o que fortalece a luta desses po-vos por reparao humanitria.

    No Documento Oficial Brasileiro para a III Conferncia4, reconheci-da a responsabilidade histrica do Estado brasileiro pelo escravismo e pela marginalizao econmica, social e poltica dos descendentes de africanos, uma vez que:

    O racismo e as prticas discriminatrias disseminadas no cotidiano brasileiro no representam simplesmente uma herana do passado. O racismo vem sendo recriado e realimentado ao longo de toda a nos-sa histria. Seria impraticvel desvincular as desigualdades observadas atualmente dos quase quatro sculos de escravismo que a gerao atual herdou (BRASIL, 2001).5

    Admitidas essas responsabilidades histricas, o horizonte que se abriu foi o da construo e da implementao do plano de ao do Estado brasileiro para operacionalizar as resolues de Durban, em especial as voltadas para a educao, quais sejam:

    Igual acesso educao para todos e todas na lei e na prtica.Adoo e implementao de leis que probam a discriminao baseada em raa, cor, descendncia, origem nacional ou tnica em todos os n-veis de educao, tanto formal quanto informal.Medidas necessrias para eliminar os obstculos que limitam o acesso de crianas educao.

    4 Documento oficial levado III Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerncia, que serve para orientar as polticas de governo. Foi elaborado por um comit preparatrio, nomeado pelo presidente da Repblica. O Comit reuniu representantes do governo e da sociedade civil e foi presidido pelo secretrio de Estado de Direitos Humanos, o embaixador Gilberto Sabia.5 O governo federal estabeleceu um Comit Nacional, composto prioritariamente por representantes de rgos do governo e da sociedade civil organizada. Tambm, entidades dos movimentos negro, indgena, de mulheres, de homossexuais, de defesa da liberdade religiosa mobilizaram-se intensa-mente nesse dilogo. Com o trmino da Conferncia, diante da Declarao e do Programa de Ao, estabelecidos em Durban, exige-se da sociedade civil o monitoramento para que os resultados sejam respeitados e as medidas reparatrias sejam implementadas (BRASIL, 2001).

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    Recursos para eliminar, onde existam, desigualdades nos rendimentos educacionais para jovens e crianas.Apoio aos esforos que assegurem ambiente escolar seguro, livre da violncia e de assdio motivados por racismo, discriminao racial, xe-nofobia e intolerncia correlata.Estabelecimento de programas de assistncia financeira desenhados para capacitar todos os estudantes, independentemente de raa, cor, descendncia, origem tnica ou nacional a freqentarem instituies educacionais de ensino superior.

    Coerentemente com suas reivindicaes e propostas histricas, as fortes campanhas empreendidas pelo Movimento Negro tem possibilitado ao Esta-do brasileiro formular projetos no sentido de promover polticas e programas para populao afro-brasileira e valorizar a histria e a cultura do povo negro. Entre os resultados, a Lei n 9.394/96 foi alterada por meio da insero dos artigos 26-A e 79-B, referidos na Lei n 10.639/2003, que torna obrigatrio o ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas no currculo oficial da Educao Bsica e inclui no calendrio escolar o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Conscincia Negra.

    Tendo em vista os desdobramentos na educao brasileira, observam-se os esforos de vrias frentes do Movimento Negro, em especial os de Mulhe-res Negras, e o empenho dos Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) e grupos correlatos criados em universidades, que buscam a estruturao de uma poltica nacional de educao calcada em prticas antidiscriminatrias e antiracistas.

    Vrias pesquisas, nesse sentido, tm demonstrado que o racismo em nossa sociedade constitui tambm ingrediente para o fracasso escolar de alunos(as) negros(as). A sano da Lei n 10.639/2003 e da Resoluo CNE/CP 1/2004 um passo inicial rumo reparao humanitria do povo negro brasileiro, pois abre caminho para a nao brasileira adotar medidas para corrigir os danos materiais, fsicos e psicolgicos resultantes do racismo e de formas conexas de discriminao.

    Diante da publicao da Lei n 10.639/2003, o Conselho Nacional de Educao aprovou o Parecer CNE/CP 3/2004, que institui as Diretrizes Curriculares para a Educao das Relaes tnico-Raciais e o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a serem executadas pelos estabelecimentos de ensino de diferentes nveis e modalidades, cabendo aos sistemas de ensino, no mbito de sua jurisdio, orientar e promover a

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    formao de professores e professoras e supervisionar o cumprimento das Diretrizes.

    A diversidade tnico-racial na educao

    A sociedade civil segue desenvolvendo importante papel na luta contra o racismo e seus derivados. Compreender os mecanismos de resistncia da populao negra ao longo da histria exige tambm estudar a formao dos quilombos rurais e urbanos e das irmandades negras6, entre tantas outras for-mas de organizaes coletivas negras. A populao negra que para c foi tra-zida tinha uma histria da vida passada no continente africano, a qual somada s marcas impressas pelo processo de transmutao de continente serviu de base para a criao de estratgias de sobrevivncia.

    A fuga dos/das trabalhadores/as escravizados(as), a compra e a conquista de territrios para a formao de quilombos materializam as formas mais reconhecidas de luta da populao negra escravizada. Nesses espaos, as po-pulaes negras abrigaram-se e construram novas maneiras de organizao social, bastante distintas da organizao nas lavouras.

    A religio, aspecto fundamental da cultura humana, emblemtica no caso dos(as) negros(as) africanos(as) em terras brasileiras. Por meio desse mpeto criativo de sobrevivncia, pode-se dizer que a populao negra pro-moveu um processo de africanizao de religies crists (LUZ, 2000) e de recriao das religies de matriz africana.

    Cabe, portanto, ligar essas experincias ao cotidiano escolar. Torn-las reconhecidas por todos os atores envolvidos com o processo de educao no Brasil, em especial professores/as e alunos(as). De outro modo, trabalhar para que as escolas brasileiras se tornem um espao pblico em que haja igualdade de tratamento e oportunidades.

    Diversos estudos comprovam que, no ambiente escolar, tanto em esco-las pblicas quanto em particulares, a temtica racial tende a aparecer como um elemento para a inferiorizao daquele/a aluno/a identificado/a como negro/a. Codinomes pejorativos, algumas vezes escamoteados de carinhosos ou jocosos, que identificam alunos(as) negros(as), sinalizam que, tambm na vida escolar, as crianas negras esto ainda sob o jugo de prticas racistas e discriminatrias.7

    6 Para saber mais sobre o assunto, pode-se visitar os trabalhos sobre irmandades negras de QUIN-TO (2002 a & b).7 Para um debate mais abrangente sobre a relao racismo e educao, conferir: OLIVEIRA (1999); CAVALLEIRO (2001) e SOUZA (2001).

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    O subdimensionamento dos efeitos das desigualdades tnico-raciais em-bota o fomento de aes de combate ao racismo na sociedade brasileira, visto que difunde a explicao da existncia de igualdade de condies sociais para todas as pessoas. Sistematicamente, a sociedade brasileira tende a fazer, ainda hoje, vistas grossas aos muitos casos que tomam o espao da mdia nacional, mostrando o quanto ainda preciso lutar para que todos e todas recebam uma educao igualitria, que possibilite desenvolvimento intelectual e emocional, independentemente do pertencimento tnico-racial do/a aluno/a. Com isso, os(as) profissionais da educao permanecem na no-percepo do entrave promovido por eles/as, ao no compreenderem em quais momentos suas atitudes dirias acabam por cometer prticas favorecedoras de apenas parte de seus grupos de alunos e alunas.

    Um olhar atento para a escola capta situaes que configuram de modo expressivo atitudes racistas. Nesse espectro, de forma objetiva ou subjetiva, a educao apresenta preocupaes que vo do material didtico-pedaggico formao de professores.

    O silncio da escola sobre as dinmicas das relaes raciais tem permitido que seja transmitida aos(as) alunos(as) uma pretensa superioridade branca, sem que haja questionamento desse problema por parte dos(as) profissio-nais da educao e envolvendo o cotidiano escolar em prticas prejudiciais ao grupo negro. Silenciar-se diante do problema no apaga magicamente as diferenas, e ao contrrio, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimento muitas vezes estereotipado do outro que lhe diferente. Esse entendimento acaba sendo pautado pelas vivncias sociais de modo acrtico, conformando a diviso e a hierarquizao raciais.

    imprescindvel, portanto, reconhecer esse problema e combat-lo no espao escolar. necessria a promoo do respeito mtuo, o respeito ao ou-tro, o reconhecimento das diferenas, a possibilidade de se falar sobre as di-ferenas sem medo, receio ou preconceito. Nesse ponto, deparamo-nos com a obrigao do Ministrio da Educao de implementar medidas que visem o combate ao racismo e estruturao de projeto pedaggico que valorize o pertencimento racial dos(as) alunos(as) negros(as).

    Diante do panorama das ferramentas de que j dispomos, a Constituio Federal define como competncia da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios a promoo do acesso cultura, educao e cincia. A Educao Bsica, de competncia do Estado, compreendida pelos nveis infantil, fundamental e mdio, sendo o Ensino Fundamental de carter obri-gatrio e gratuito. Recentemente, estruturam-se propostas de modificaes

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    para os livros didticos e revises nos Parmetros Curriculares Nacionais. Contudo, preciso dar continuidade a polticas pblicas amplas e consolida-das que trabalhem detalhadamente no combate a esse processo de excluso social.

    Vale lembrar que o processo de formao de professores/as deve estar direcionado para todos(as) os(as) profissionais de educao, garantindo-se que aqueles/as vinculados(as) s cincias exatas e da natureza no se afastem de tal processo.

    Ao criar o Grupo de Trabalho para a discusso e a insero das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira, a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), por intermdio da Coordenao-Geral de Diversidade e Incluso Educacional (CGDIE), re-afirma seu objetivo de valorizar e assegurar a diversidade tnico-racial, tendo a educao como instrumento decisivo para a promoo da cidadania e do apoio s populaes que vivem em situaes de vulnerabilidade social. Ade-mais, os trabalhos desenvolvidos durante as jornadas tiveram como horizonte a construo do Plano de Ao para a Insero das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, tomando como base os seguintes princpios:

    Socializao e visibilidade da cultura negro-africana.Formao de professores com vistas sensibilizao e construo de estratgias para melhor equacionar questes ligadas ao combate s discriminaes racial e de gnero e homofobia.Construo de material didtico-pedaggico que contemple a diversi-dade tnico-racial na escola.Valorizao dos diversos saberes.Valorizao das identidades presentes nas escolas, sem deixar de lado esse esforo nos momentos de festas e comemoraes.

    O Plano de Ao: Ensino de Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira

    Os textos a seguir, por nvel/modalidade de ensino, giram em torno da construo de Orientaes e Aes para o Ensino de Histria e Cultura Afri-

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    cana e Afro-brasileira, buscando orientar os(as) profissionais que trabalham com a educao, na implementao da Lei n 10.639/2003 em todas as esco-las deste pas.

    O texto do GT Educao Infantil, coordenado por Patrcia Maria de Sou-za Santana, parte do perodo etrio e das especificidades da educao infan-til, para questionar a imagem das educadoras que trabalham nas instituies infantis. Em seguida constri as perspectivas histricas da educao infantil, dentro das relaes tnico-raciais, chegando aos dias atuais como uma pri-meira etapa da Educao Bsica, sendo dever do Estado, direito da criana e opo da famlia. Nesse contexto o cuidar e o educar constituem as relaes afetivas e passam necessariamente pelas afinidades com as famlias e por to-dos os grupos em que a criana est inserida.

    O texto do GT Ensino Fundamental, coordenado por Rosa Margarida de Carvalho Rocha e Azoilda Loretto da Trindade, traz consideraes comuns aos dois ciclos, chamando a ateno para a escola e alguns contextos relativos a uma educao anti-racista neste nvel do ensino, a exemplo do currculo, da interdisciplinaridade, das relaes entre humanidade e alteridade, cultura negra e corporeidade e entre memria, histria e saber. Logo adiante, o texto se volta para as diferenciaes entre os(as) estudantes e, por fim, adentra em aes para o Ensino Fundamental, envolvendo uma srie de recomendaes para a abordagem da temtica tnico-racial no cotidiano escolar, desde a sele-o de temas at a preocupao com recursos didticos.

    O Grupo de Trabalho do Ensino Mdio, coordenado por Ana Lcia Silva Souza, formulou um texto que discute as questes tnico-raciais no Ensino Mdio e trata da juventude como sujeito ativo e criador do seu universo plural. Discutindo as diversidades que envolvem essa etapa da vida escolar, o texto prope uma linguagem em que os cdigos das relaes culturais, sociais e po-lticas relativos escola e juventude estejam construdos numa expectativa de relao entre presente e futuro, apresenta a escola de Ensino Mdio como ambiente de construo e desenvolvimento das identidades de negros(as) e no negros(as). Posteriormente, reafirma o cotidiano escolar como um espa-o de fazer coletivo no qual professores/as, estudantes e demais profissionais da educao se reconheam como sujeitos co-responsveis pelo processo de construo do conhecimento e do currculo, que deve ser concebido para atender diversidade e pluralidade das culturas africana e afro-brasileira.

    O texto do GT Educao de Jovens e Adultos (EJA), coordenado por Rosane de Almeida Pires, foi dividido em trs partes. Primeiramente, tece um histrico da trajetria da educao de jovens e adultos nos sistemas de ensino

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    formais e no formais, tratando dos avanos e desafios da EJA e aproximan-do a questo tnico-racial das aes do Movimento Negro no Projeto Poltico Pedaggico e Currculo. Em seguida, entrelaando a EJA numa perspectiva de educao anti-racista e democrtica, o texto enfatiza as linguagens dos(as) jovens e adultos(as) com o ensino de histria e cultura africanas e afro-brasi-leiras, estabelecendo os vnculos no que se refere aos lugares de constituio de identidades da populao negra. Por fim, enuncia vrias possibilidades de colocar o/a jovem e o/a adulto/a no centro de todos os movimentos da edu-cao para que, de fato, ele/a se torne sujeito de seu processo educativo.

    No que se refere s Licenciaturas, o texto do GT coordenado por Rosa-na Batista Monteiro, inicialmente nos situa no contexto da implementao da temtica tnico-racial entre os contedos e as metodologias nesse campo. Temos em seguida, um quadro das pesquisas e aes acerca da questo em foco e sua relao com a formao de profissionais da educao. Por lti-mo, aborda-se a implementao das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais nas Instituies de Ensino Supe-rior, no que diz respeito aos projetos pedaggicos, matriz curricular e s disciplinas.

    O texto que resultou do GT Educao Quilombola, com a coordenao de Georgina Helena Lima Nunes, dirige-se tanto s escolas situadas em reas de remanescentes de quilombos, quanto quelas que recebem quilombolas. Passa de uma introduo histrica ao tema e ao termo quilombo, para o vn-culo entre educao quilombola e relaes tnico-raciais, chegando a descor-tinar um campo de aes.

    Aps os textos dos GTs, essa publicao traz um glossrio de termos e expresses. Trata-se de notas indicativas e explicativas a temas e subtemas que surgem na abordagem da temtica tnico-racial na educao.

    Aps a sistematizao e reviso dos Contedos, especialistas de cada nvel de ensino, bem como professores e professoras que esto atuando em sala de aula elaboraram pareceres e sugestes, colaborando para que os textos apre-sentassem uma linguagem acessvel a todos os(as) educadores/as.

    Por fim, publicamos o Parecer do Conselho Nacional de Educao, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes t-nico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), a Resoluo CNE/CP 1/2004 e a Lei 10.639/2003, que constituem os principais contedos norteadores de todo este trabalho.

    Certamente este trabalho um primeiro passo para as Orientaes e Aes para o Ensino de Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira. Es-

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    peramos que ele seja um impulsionador de reflexes e aes no cotidiano escolar, indo alm do silncio acerca da questo tnico-racial e das situaes que eventualmente ocorrem, e possibilitando um cenrio de reelaborao das relaes que se estabelecem dentro e fora do campo educacional.

    Referncias

    BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U de 10/01/2003BRASIL, MINISTRIO DA EDUCAO. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Parecer CNE/CP 3/2004, de 10 de maro de 2004. ______. Resoluo CNE/CP 1/2004. Seo 1, p.11. D.O. U. de 22 de junho de 2004, BRASIL, Relatrio do Comit Nacional para a Preparao da Participao Brasileira na III Conferncia Mundial das Naes Unidas Contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata. Braslia, 2001.CAVALLEIRO, Eliane. Do silncio do lar ao silncio escolar. So Paulo: Contexto, 2000.CHALHOUB, Sidney. Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas da escravido na Corte. So Paulo: Companhia das Letras, 1997.FERNANDES, Florestan. A integrao do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova era. Vol. 1. So Paulo: tica, 1978.GOMES, Nilma Lino. Educao cidad, etnia e raa: o trato pedaggico da diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.). Racismo e anti-racismo na educao: repensando nossa escola. So Paulo: Selo Negro, 2000.GONALVES, Luiz Alberto Oliveira. Negros e Educao no Brasil. In: LOPES, Elaine M. Teixeira (Org.). 500 anos de Educao no Brasil. Belo Horizonte: Autntica, 2000.LUZ, Marco Aurlio de Oliveira. Agad: dinmica da civilizao africano-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2. ed. 2000.LUZ, Narcimria. O Patrimnio Civilizatrio africano no Brasil. In: SANTOS, Joel Rufino (org.). Negro Brasileiro Negro. Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, n. 25, 1997, p. 199-209.MATTOS, Hebe Maria. Laos de famlia e direitos no final da escravido. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). Histria da vida privada no Brasil: Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, Vol. 02. 1997.

    E o kora encantou o sambaColeo Particular - Lydia Garcia

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  • Educao Infantil

    Maternidade (Oxum)Acervo do artista

  • EDUCAO INFANTIL Coordenao: Patrcia Maria de Souza Santana1

    Introduo

    Todas as meninas e todos os meninos nascem livres e tm a mesma dignidade e os mesmos direitos.

    Nenhuma vida vale mais do que a outra diante do fato de que todas as crianas e todos os adolescentes do

    planeta so iguais.2

    Cada fase da vida apresenta suas especificidades, requerendo de quem lida com o ser humano uma ateno especial s necessidades que ca-racterizam cada momento. No perodo em que consideramos a educao infantil, isto , em que a criana tem de zero a seis anos, fundamental ficar atento ao tipo de afeto que recebe e aos modos como ela significa as rela-es estabelecidas com e por ela. Desde o nascimento, as condies mate-riais e afetivas de cuidados so marcantes para o desenvolvimento saudvel da criana.

    com o outro, pelos gestos, pelas palavras, pelos toques e olhares que a criana construir sua identidade e ser capaz de reapresentar o mundo atribuindo significados a tudo que a cerca. Seus conceitos e valores sobre a vida, o belo, o bom, o mal, o feio, entre outras coisas, comeam a se constituir nesse perodo.1 Mestre em Educao pela Faculdade de Educao da UFMG, graduada em Histria (FAFICH-UFMG), professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, coordenadora do Ncleo de Relaes tnico-Raciais e de Gnero da Secretaria Municipal de Educao de BH e autora do livro Professoras Negras, Trajetrias e Travessias pela Editora Mazza,2004.2 O Relatrio da 27 Sesso Especial da Assemblia Geral das Naes Unidas, maio de 2002, intitu-lado Um mundo para as crianas.

    Maternidade (Oxum)Acervo do artista

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    Faz-se necessrio questionar a imagem que a educadora3 traz de criana e de infncia, pois tais imagens traduzem a relao adulto criana, e se refletem na organizao das atividades nas instituies e especialmente, nas variadas formas de avaliao utilizadas. Promover a reflexo sobre a ima-gem de criana que d suporte s prticas dos(as) educadores/as possibilita a compreenso das singularidades e potencialidades de cada criana, podendo contribuir para promover condies de igualdade.

    Tal igualdade pressupe o reconhecimento das diferenas que sabemos existir. Para tanto necessrio ter informao sobre os direitos que necessi-tam ser assegurados a todas as crianas. Isso exigir um olhar mais atento e maior sensibilidade, pois as diferenas se manifestam no cotidiano e carecem de leitura (decodificao dessas manifestaes)4 pela educadora, seja na relao criana criana, adulto criana, criana famlia, criana grupo social.

    A educadora, por sua vez, um ser humano possuidor de singularidades e est imersa em determinada cultura que se apresenta na relao com o outro (igual ou diferente). Manifestar-se contra as formas de discriminao uma tarefa da educadora, que no deve se omitir diante das violaes de direitos das crianas. Mobilizar-se para o cumprimento desses direitos outra ao necessria. Essas atitudes so primordiais s educadoras que buscam realizar a tarefa de ensinar com responsabilidade e compromisso com suas crianas.

    importante destacar que a garantia legal dos direitos no promove sua concretizao. So as atitudes efetivas e intencionais que iro demonstrar o compromisso com tais direitos. Reconhecer as diferenas um passo funda-mental para a promoo da igualdade, sem a qual a diferena poder vir a se transformar em desigualdade.

    1. PROCESSOS DA EDUCAO INFANTIL NO BRASIL

    A Educao Infantil no Brasil caracteriza-se como primeira etapa da Edu-cao Bsica, dever do Estado, direito da criana e opo da famlia5, no sendo, portanto, obrigatria.

    3 Utilizaremos a partir daqui o termo educadora, por considerar que as mulheres so maioria na educao infantil.4 No sentido que Paulo Freire d a essa palavra, ou seja, a capacidade de ler o mundo.5 Ao utilizarmos o termo famlia, estamos nos referindo ao texto da LDB 9394/96. Faz-se necessrio considerar que muitas crianas no possuem famlia (crianas que vivem em instituies como orfa-natos, abrigos etc.); nesse caso, o mais apropriado em substituio ao termo famlia grupo social.

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    Vrios fatores contriburam para isso: em primeiro lugar observa-se um avano do conhecimento cientfico sobre o desenvolvimento infantil, alia-do ao reconhecimento da sociedade acerca do direito da criana educao nos primeiros anos de vida. Em segundo lugar, a participao crescente da mulher na fora de trabalho, notadamente por meio do movimento sindical e de mulheres, passou a exigir que instituies de Educao Infantil fossem ampliadas para dar conta dessa nova condio social feminina. Em terceiro lugar, e como conseqncia dos itens anteriores, o processo de democrati-zao da sociedade e da educao no Brasil tornou possveis o acesso e a permanncia de considervel nmero de crianas de zero a seis anos de idade em diversas instituies educativas, das pblicas s privadas, sendo contem-pladas nessas ltimas as instituies filantrpico-assistenciais, comunitrias e totalmente privadas.

    Longe estamos de garantir cobertura de atendimento em Educao In-fantil para a grande maioria da populao brasileira. De acordo com dados do Unicef, a populao indgena e negra so os segmentos mais excludos do acesso educao na faixa etria dos zero aos seis anos.

    Creches e pr-escolas buscam integrar educao e cuidados, necessrios a um perodo etrio vulnervel como o da criana pequena, traduzindo dessa forma a perspectiva de que tais crianas so portadoras de direitos desde que nascem.

    importante considerar que os direitos a que nos referimos so resul-tantes de longo processo histrico e social de mais de quatro sculos. No perodo colonial, a educao das crianas se dava principalmente em mbito privado nas casas e em instituies religiosas. As crianas abandonadas eram encaminhadas para a roda dos expostos6 e acolhidas por instituies de ca-ridade. Essas crianas eram, em sua maioria, pobres, bastardas. A roda foi utilizada pelas mulheres escravizadas como meio de livrar suas crianas do cativeiro ou ento pelos senhores que pretendiam se isentar das responsabi-lidades e encargos da criao dos filhos(as) de suas escravas. De acordo com Mott:

    A roda recebia crianas de qualquer cor e preservava o anonimato dos pais. A partir do alvar de 31 de janeiro de 1775, as crianas escravas, colocadas na roda, eram consideradas livres. Este alvar, no entanto foi letra morta e as crianas escravas eram devolvidas aos seus donos, quando solicitadas, mediante o pagamento das despesas feitas com a criao. Em 1823, saiu um decreto que considerava as crianas da roda

    6 Em algumas localidades do Brasil utiliza-se o termo enjeitados como sinnimo de expostos.

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    como rfs e assim filhos dos escravos seriam criados como cidados, gozando dos privilgios dos homens livres (1979:57).

    Com relao s crianas negras no Brasil escravista, observamos crianas pequenas antecipando-se s exigncias e responsabilidades dos adultos, en-cerrando-se a fase de criana aos cinco ou seis anos, inserindo-se no mundo adulto por meio do trabalho escravo. Nos momentos finais da escravido, com a Lei do Ventre Livre 2.040/1871, as crianas nascidas aps 28 de se-tembro de 1871 seriam consideradas livres, no entanto deveriam permanecer at os oito anos sob a posse dos senhores. Ao completar oito anos poderiam ficar sob a guarda do senhor at os 21 anos, ou poderiam ser entregues ao Estado e encaminhadas para instituies como asilos agrcolas e orfanatos (FONSECA, 2001). Vemos que a situao das crianas negras no perodo da escravido era muito difcil, e na maioria das vezes no tinham acesso instru-o. A educao estava restrita ao aprendizado das tarefas demandadas pelos senhores. Desde que nasciam eram carregadas pelas mes para o trabalho. A despreocupao com a criana escravizada pode ser demonstrada pelos altos ndices de mortalidade infantil nesse segmento. Existe uma naturalizao da falta de investimento e ateno nesse perodo.

    No contexto mundial, a partir dos sculos XVII e XVIII, com o surgi-mento dos refgios, asilos, abrigos de crianas e filhas de mes operrias, podemos demarcar o contexto em que a infncia no mundo passa a ser con-siderada como uma etapa da vida que merece ateno. No incio do sculo XX, as instituies que atendiam criana pequena o faziam como medida de sade pblica, como resposta aos altos ndices de mortalidade infantil, ficando por vrias dcadas pulverizadas nas reas da sade, assistncia social e educao as verbas destinadas criana pequena.

    O debate poca evocava a necessidade de educar, moralizar, domesticar e integrar os filhos de trabalhadores. Tais idias traduziam uma concepo de infncia como um perodo de ingenuidade, inocncia, da facilidade de mode-lao do carter. As famlias eram ensinadas a adquirir posturas adequadas com relao s crianas, calcadas em valores rgidos embasados no cristianis-mo e nos valores morais burgueses7. Tambm a escola e as instituies de ca-ridade eram consideradas como um espao de controle social, procurando-se evitar a vadiagem e a delinqncia infantil, com a preocupao voltada para sua integridade fsica e moral. Esta concepo baseada apenas no cuidado 7 No perodo do Renascimento europeu essa idia se solidificou e a infncia foi repensada, sendo associada a elementos como a pureza, a simplicidade, a necessidade de amor, a ingenuidade, a male-abilidade e a fragilidade, passando as crianas a serem valorizadas e amadas.

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    est vinculada prtica assistencialista que marcou as creches neste perodo e ainda se encontra presente em muitas instituies de Educao Infantil. Tal viso compromete a perspectiva dos direitos das crianas, pois ao se restringir a aspectos ligados aos cuidados, ficam desviadas as dimenses da socializa-o, da aprendizagem, da vivncia cultural, privilegiadamente fundamentada na diversidade.

    Tambm era pensamento corrente que as crianas deveriam ficar com suas mes. Nessa perspectiva, as instituies que guardavam as crianas eram encaradas como um mal necessrio: na ausncia da me (trabalhadora, inexistente, incompetente, moral e/ou economicamente), as creches cum-priam o papel de cuidar das crianas, desconsiderando as variadas formas de as famlias criarem seus filhos. As preocupaes de carter pedaggico e cognitivo estavam distantes dos objetivos dessas instituies que abrigavam crianas pequenas. Prevalecia igualmente a quase exclusiva preocupao com os cuidados: higiene, alimentao, sono, com rotinas rgidas.

    No perodo correspondente s dcadas de 1940 a 1960 do sculo XX foram criados programas compensatrios, de preveno sade e de garantia ao trabalho feminino, assim como rgos governamentais de implementao de polticas para essa rea.

    O perodo de 1970 a 1990 do mesmo sculo representou avanos na pers-pectiva dos direitos das crianas. na dcada de 1970, em meio efervescn-cia dos movimentos sociais e o clamor pela liberdade e garantia de direitos, que manifestaes por esses direitos tomam fora. No sem razo, diversos movimentos de mulheres surgem neste perodo, em uma conjuntura na qual a dinmica dos movimentos sociais trazem cena novos personagens (SADER, 1988) reivindicando no s mudanas nas relaes de trabalho, mas melhores condies de vida (saneamento bsico, transporte coletivo, habitao, educa-o), entre eles, os movimentos populares de luta por creches, exigindo do Estado a criao de redes pblicas de Educao Infantil8. Destaca-se nesse perodo, para alm do movimento de mulheres por creches e pr-escolas, o movimento negro criticando o modelo de escola que desconsiderava o pa-trimnio histrico cultural da populao negra, alm de denunciar o racismo existente nas escolas, o que contribua para a evaso e o fracasso escolar das crianas negras (MELO & COELHO, 1988).

    8 Ressalta-se que o modelo de pr-escola brasileira que estimulou a criao das redes pblicas, im-plementada pelos governos, a partir da dcada de 1970, teve como referncia o modelo americano de preveno do fracasso escolar (educao compensatria) motivado pelos altos ndices de evaso e repetncia na escola elementar das crianas negras e filhas de populaes migrantes.

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    Os governos municipais em muitos casos, em regime de colaborao com outras esferas governamentais, implementam programas pr-escolares, criando redes prprias de instituies para esse fim. Em contrapartida, em diversas regies do pas, diante da pouca receptividade dos governantes, sur-gem novas modalidades de Educao Infantil organizadas por moradores, clubes de mes, associaes de bairros e/ou grupos ligados s instituies religiosas. Nesse mesmo perodo, os movimentos populares que demandam escola pblica despontam em todo o pas e as suas principais reivindicaes dizem respeito ampliao de vagas nas escolas e melhoria da qualidade educacional.

    Na segunda metade da dcada de 1980, com as movimentaes em torno do debate pela Assemblia Nacional Constituinte, os movimentos sociais al-canaram maior xito. A partir desse perodo, em decorrncia de longo pro-cesso de lutas e conquistas, a infncia colocada na agenda pblica, enten-dendo a criana como sujeito de direitos, reforando a concepo da criana cidad, da infncia como tempo de vivncia plena de direitos. Falar em di-reitos supe considerar condies bsicas de exerccios de uma educao de qualidade para todos em nvel dos sistemas educativos, como das instituies de Educao Infantil, em dilogo e parceria permanente com outras reas de apoio: sade, educao, bem-estar social, Ministrio Pblico, Conselhos Tutelares e de Defesa dos Direitos da Criana.

    Na perspectiva de que o Estado garanta esses direitos, a Constituio Federal de 1988 (BRASIL, 1988) traz pela primeira vez a expresso educao infantil para designar o atendimento em creche e pr-escola, e traz a garantia constitucional do dever do Estado com esse atendimento etrio, no apenas como poltica de favorecimento ou benefcio das mes, mas antes um direito das crianas (artigo 208, inciso IV). A lei reconhece o carter educativo das creches, antes pertencentes rea da assistncia social passando a se incor-porar rea da educao. No incio da dcada de 90, o Estatuto da Criana e do Adolescente (BRASIL, 1990), considerada uma das leis mais avanadas do mundo no que se refere proteo das crianas, aponta direitos que devem ser garantidos e respeitados por toda a sociedade, reforando os preceitos com relao educao infantil assinalados na Constituio Federal (BRA-SIL, 1988).

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (BRASIL, 1996) amplia ainda mais a esfera dos direitos, ao assumir que a Educao Infantil oferecida em creches e pr-escolas parte integrante da educao bsica, compreendida como a primeira etapa.

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    9 Hasenbalg & Silva (1990, 1999); Hasenbalg & Silva (1999), Rosemberg (1999); Barcelos (1992); Henriques (2001), para citar alguns.

    1.1 A Educao Infantil e a educao para as relaes tnico-raciais

    Em que pesem os esforos para que conquistas fossem garantidas no mbito legal, a realidade no se mostra to promissora para as crianas brasi-leiras, em especial para as crianas negras. De acordo com dados do Unicef, a mdia nacional de 38,6% fora da escola esconde iniqidades: entre as crianas brancas, o dado mais favorvel (36,1%); entre as crianas negras, porm, 41% no freqentam a pr-escola. Essa disparidade demonstra a desigualda-de entre brancos e negros desde o incio da escolaridade.

    Independentemente do grupo social e/ou tnico-racial a que atendem, importante que as instituies de Educao Infantil reconheam o seu papel e funo social de atender s necessidades das crianas constituindo-se em espao de socializao, de convivncia entre iguais e diferentes e suas formas de pertencimento, como espaos de cuidar e educar, que permita s crianas explorar o mundo, novas vivncias e experincias, ter acesso a diversos ma-teriais como livros, brinquedos, jogos, assim como momentos para o ldico, permitindo uma insero e uma interao com o mundo e com as pessoas presentes nessa socializao de forma ampla e formadora.

    A ampliao da oferta de vagas na Educao Infantil em todas as regies do pas traz ainda a urgncia da reflexo em torno da diversidade do pblico atendido nessas instituies. Considerando a diversidade tnico-racial, sabe-mos que existe uma concentrao maior de crianas negras em instituies como creches comunitrias e filantrpicas. Portanto, no podemos descon-siderar que a desigualdade racial no sistema educacional apontada em vrias pesquisas9 est presente na Educao Infantil, considerando-se o acesso a essas ofertas de atendimentos, a qualidade do trabalho realizado, as condi-es de trabalho dos(as) profissionais que ali atuam e principalmente a sua formao. Rosemberg nos chama a ateno para as diferentes formas de aten-dimento na Educao Infantil, que tem desdobramentos no perfil da clientela atendida e nas trajetrias educacionais de crianas brancas e negras.

    (...) a expanso catica e a baixo custo da Educao Infantil no Brasil durante os anos 80 cristalizou a tendncia histrica da convivncia de trajetrias duplas para o atendimento de crianas pequenas: uma mais freqentemente denominada creche, geralmente vinculada s instn-cias da assistncia, localizadas nas regies mais pobres da cidade, ofe-recendo um atendimento de pior qualidade, sendo freqentada princi-

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    palmente por crianas pobres e negras; a outra, mais freqentemente denominada pr-escola ou escolas de Educao Infantil, vinculada s instncias da educao e que, mesmo apresentando por vezes padro de qualidade insatisfatrio, por sua localizao geogrfica tende aco-lher uma populao infantil mais heterognea no plano econmico e racial (1991:28).

    As desigualdades nas trajetrias educacionais das crianas so demons-tradas no s pelo tipo de atendimento, como tambm na forma como so avaliadas nessas instituies. A LDB 9.394/96, no artigo 31 afirma que a avaliao na Educao Infantil deve ser realizada na forma de acompanha-mento e registro do desenvolvimento da criana, sem objetivo de promo-o, uma avaliao processual10. No entanto, Rosemberg (1999) nos chama a ateno para questo alarmante elucidada por suas pesquisas com relao reteno de crianas na Educao Infantil: crianas na faixa etria de sete a nove anos permanecem na pr-escola, quando deveriam cursar o Ensino Fundamental.

    Em sua maioria, essas crianas so negras refletindo a histrica desi-gualdade racial no Brasil, de modo geral, e na educao, em especial. No interior das instituies de Educao Infantil, so inmeras as situaes nas quais as crianas negras desde pequenas so alvo de atitudes preconceituosas e racistas por parte tanto dos profissionais da educao quanto dos pr-prios colegas e seus familiares. A discriminao vivenciada cotidianamente compromete a socializao e interao tanto das crianas negras quanto das brancas, mas produze desigualdades para as crianas negras, medida que interfere nos seus processos de constituio de identidade, de socializao e de aprendizagem.

    2. CONSTRUINDO REFERENCIAIS PARA ABORDAGEM DA TEMTICA TNICO-RACIAL NA EDUCAO INFANTIL

    2.1 Cuidar e Educar

    A educao de crianas de zero a seis anos comporta especificidades que precisam ser consideradas. Essas especificidades de acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI ), so afetivas, emocio-nais, sociais e cognitivas.

    10 Avaliar um processo em andamento que prope novas posturas a cada etapa trabalhada, sem finalizaes sugeridas por notas ou por conceitos.

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    Em todas as etapas da Educao Bsica, esses dois elementos que com-pem a prtica educativa se interconectam e ao mesmo tempo possuem ca-ractersticas bem particulares. O Referencial Curricular Nacional para a Edu-cao Infantil considera que educar :

    (...) propiciar situaes de cuidados, brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para o desen-volvimento das capacidades infantis de relao interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude bsica de aceitao, respeito e confiana, e o acesso, pelas crianas, aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural (1998a: 23).

    Falar em cuidado na Educao Infantil diz respeito ao apoio que a criana necessita para se desenvolver em sua plenitude. Cuidar diz respeito ao zelo, ateno e se desdobra em atividades ligadas segurana e proteo necess-rias ao cotidiano de qualquer criana, tais como alimentao, banho, troca de fralda e outros em relao higiene, proteo, consolo. Esses cuidados no podem ser compreendidos como algo dissociado do ato de educar, pois todas essas atividades e relaes fazem parte do processo educativo e so traduzidas em contatos e interaes presentes no ambiente educativo.

    Em todas as dimenses do cuidar e educar necessrio considerar a singularidade de cada criana com suas necessidades, desejos, queixas, bem como as dimenses culturais, familiares e sociais. O ato de cuidar e educar faz com que ocorra uma estreita relao entre as crianas e os adultos. As crian-as precisam de educadores afetivos que possibilitem interaes da criana com o mundo. Um mundo que transita permanentemente entre o passado (as tradies, os hbitos e os costumes) e o novo (as inovaes do presente e as perspectivas para o futuro).

    O acolhimento da criana implica o respeito sua cultura, corporeida-de, esttica e presena no mundo. Contudo, em muitas situaes as crianas negras no recebem os mesmos cuidados e ateno dispensados s crianas brancas (CAVALLEIRO, 2001). Precisamos questionar as escolhas pautadas em padres dominantes que reforam os preconceitos e os esteretipos. Nes-sa perspectiva, a dimenso do cuidar e educar deve ser ampliada e incorpo-rada nos processos de formao dos profissionais que atuam na Educao Infantil, o que significa recuperar ou construir princpios para os cuidados embasados em valores ticos, nos quais atitudes racistas e preconceituosas no podem ser admitidas. Nessa direo, a observao atenciosa de suas pr-prias prticas e atitudes podem permitir s educadoras rever suas posturas e readequ-las em dimenses no-racistas. importante evitar as preferncias

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    e escolhas realizadas por professores/as e outros profissionais, principalmen-te quando os critrios que permeiam tais preferncias se pautam por posies preconceituosas (DIAS, 1997; GODOY, 1996; CAVALLEIRO, 2001). No silenciar diante de atitudes discriminatrias eventualmente observadas um outro fator importante na construo de prticas democrticas e de cidadania para todos e no s para as crianas. Tais condutas favorecem a consolidao do coletivo de educadores na instituio.

    Os Referenciais Curriculares para a Educao Infantil nos apresentam a dimenso acolhedora do cuidar

    No ato de alimentar ou trocar uma criana pequena no s o cuidado com a alimentao e higiene que esto em jogo, mas a interao afetiva que envolve a situao. Na relao estabelecida, por exemplo, no momento de to-mar a mamadeira, seja com a me ou com a professora da Educao Infantil, o binmio dar e receber possibilita s crianas aprenderem sobre si mesmas e estabelecerem uma confiana bsica no outro e em suas prprias compe-tncias. Elas comeam a perceber que sabem lidar com a realidade, que con-seguem respostas positivas, fato que lhes d segurana e que contribui para a construo de sua identidade (1998b:16).

    As dimenses do cuidar e educar nos permitem compreender a impor-tncia das interaes positivas entre educadoras e crianas. Relaes pautadas em tratamentos desiguais podem gerar danos irreparveis constituio da identidade das crianas, bem como comprometer a trajetria educacional das mesmas.

    2.2 O Afeto

    Um sorriso negroUm abrao negro Traz felicidade...

    Adilson Barbosa, Jorge Portela e Jair Carvalho

    J destacamos a dimenso afetiva do ato de educar e cuidar na Educao Infantil. A dimenso do afeto, para ser praticada tambm nos processos edu-cativos, precisa estar contemplada na formao dos profissionais da educa-o, muitas educadoras tm dificuldades em expressar esse afeto.

    Faz-se necessrio que as demonstraes de afeto sejam manifestadas para todas as crianas indistintamente. Colocar no colo, afagar o rosto, os cabelos, atender ao choro, consolar nos momentos de angstia e medo faz parte dos

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    cuidados a serem dispensados a todas as crianas. A educadora a mediadora entre a criana e o mundo, e por meio das interaes que ela constri uma auto-imagem em relao beleza, construo do gnero e aos comporta-mentos sociais.

    Na perspectiva de muitas culturas, e tambm da africana, o processo de aprendizagem se d por toda a vida, sendo importante considerar aqui a va-lorizao da pessoa desde o seu nascimento at a sua velhice. O respeito aos mais velhos um valor que precisa ser transmitido s crianas, sendo tambm um valor de destaque na cultura afro-brasileira e africana. A ancestralidade um princpio que norteia a viso de mundo das populaes africanas e afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os mais antigos, os mais velhos so referncias importantes para as famlias, comunidades e indivduo. Portanto, o processo de aprender no possvel fora da dimenso da relao, da inter-relao entre os mais novos e os mais velhos. Os adultos so fundamentais nesse processo de caminhada para a compreenso da vida e das relaes com o mundo que as crianas iniciam desde que nascem. De acordo com Gonal-ves e Silva, para aprender necessrio que algum mais experiente, em geral mais velho, se disponha a demonstrar, a acompanhar a realizao de tarefas, sem interferir, a aprovar o resultado ou a exigir que seja refeita (2003:186).

    A dimenso de educao em muitas culturas e tambm na africana tem um sentido de constituio da pessoa e, enquanto tal, um processo que per-mite aos seres humanos tornar-se pessoas que saibam atuar em sua sociedade e que possam conduzir a prpria vida. Compreendendo que esse tornar-se pessoa no tem sentido dissociado da compreenso do que somos, porque no vivemos sozinhos, porque estamos em sociedade.

    O princpio da solidariedade que esteve presente na histria de resistncia e sobrevivncia do povo negro no Brasil tambm precisa ser considerado. No existe aprendizagem sem solidariedade, sem troca, sem afeto, sem cui-dado, sem implicao consciente e responsvel dos adultos que esto frente desse processo. Romo (2003) nos chama a ateno para a importncia da pesquisa e do estudo por parte dos(as) educadores/as no processo de cons-truo de uma educao anti-racista:

    Ao olhar para alunos que descendem de africanos, o professor com-prometido com o combate ao racismo dever buscar conhecimentos sobre a histria e cultura deste aluno e de seus antecedentes. E ao faz-lo, buscar compreender os preconceitos embutidos em sua postura, linguagem e prtica escolar; reestruturar seu envolvimento e se com-prometer com a perspectiva multicultural da educao (2001: 20).

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    Nas instituies educacionais, o papel das educadoras est relacionado tambm busca de formas que possibilitem atuar para romper com os pre-conceitos, por meio de pesquisas, levantamentos, assim como do contato com os familiares das crianas, para permitir maior conhecimento da histria de vida das mesmas.

    2.3 A relao com as famlias

    Um modo pelo qual possvel ensinar e aprender sobre as demonstraes de cuidados por meio da leitura de contos, histrias e mitos africanos (ver sugesto de atividades).

    Existe uma histria que guarda profundos ensinamentos a respeito da famlia, da relao das mes com seus filhos, do sentimento da responsabi-lidade pelo conforto e segurana dos mesmos. a histria de Eu11, aquela que se tornou fonte de gua para saciar a sede de seus filhos. Eu uma me provedora, protetora, que tem os filhos em sua companhia. Me que faz e promete comida gostosa aos filhos, me que trabalha e mantm a guarda de suas crianas, que reza para que seus filhos sejam protegidos e salvos. Me que se transforma em fonte de vida que salva os filhos da morte. A famlia de Eu uma famlia alegre, feliz; me e filhos brincam e sonham. Sofrem juntos e buscam/esperam por solues juntos.

    necessrio que a relao das instituies de Educao Infantil com as famlias seja pautada primeiramente pela compreenso da diversidade de or-ganizao das famlias brasileiras. Organizaes essas que, em sua maioria, nas populaes pobres e negras so dirigidas por mulheres; mulheres como Eu, que muitas vezes no tm com quem deixar os filhos para poder traba-lhar; mulheres que s vezes se desesperam por no ter como dar comida aos filhos; mulheres fortes e ao mesmo tempo fragilizadas por relaes que as colocam em lugar de inferioridade.

    A exemplo de outros grupos tnico-raciais, entre a populao negra, o sentimento de pertencer a uma famlia muito valorizado. A famlia um esteio, porto seguro, que d segurana para enfrentar as dificuldades prprias do pas em que vivemos. Vidas muitas vezes marcadas por uma luta incans-

    11 Eu ou Ew uma divindade africana das guas, celebrada entre os Yorub junto com as Iyabs (orixs femininos). Ew mulher guerreira definida, gosta de cultivar a natureza, luta por seus ideais de bem e progresso comunitrios. Enfrenta qualquer obstculo, jamais abandona uma luta. Sabe enfrentar os homens sem medo (SIQUEIRA, 1995:41).

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    vel pela sobrevivncia, pelo medo da violncia, pelo medo da fome, da falta de moradia e de trabalho.

    Foi e na famlia constituda por laos de sangue ou por laos de iden-tidade que a populao negra12 viveu e resistiu escravido, ao racismo, a explorao, perseguio. As famlias desfeitas no perodo escravista deram lugar a outras famlias que uniam povos de regies diferentes da frica, com lnguas e crenas diferentes, numa unio pela saudade da terra, da casa, da famlia, como reunir-se para sobreviver, resistir e lutar com laos familiares reconstrudos e ressignificados13.

    2.4 A famlia brasileira hoje

    Mama frica (a minha me)

    me solteiraE tem que fazer mamadeira todo dia

    Alm de trabalhar

    Como empacotadeira nas Casas Bahia

    Chico Csar

    A partir da letra de Mama frica, podemos refletir sobre a situao de muitas famlias brasileiras que no podem ser enquadradas em modelos uni-versais, perfeitos e corretos. So vrias as possibilidades de se constituir famlias, e a diversidade que permeia a existncia dos seres humanos tambm estar refletida nas organizaes familiares.

    Muitas famlias brasileiras so chefiadas por mulheres que, com os pr-prios meios, geralmente acumulando jornadas de trabalho, criam seus filhos sozinhas, s vezes confiando-as a instituies de Educao Infantil, esperan-do um atendimento que promova educao, cuidados, segurana e conforto.

    Tanto as instituies de Educao Infantil quanto as famlias podem pro-porcionar momentos de reflexo sobre as mudanas que ocorrem nas formas de organizao familiar, permitindo maior conforto e confiabilidade para as crianas, evitando-se comparaes negativas e preconceituosas.

    A creche no pode ser considerada como um espao que ir substituir a famlia, mas uma ao complementar famlia e comunidade. Nesta pers-pectiva, estabelecer uma relao estreita com as famlias das crianas possi-bilita o dilogo e a construo de caminhos para que a criana se desenvolva em sua plenitude. 12 Sobre famlias negras ver: Giacomini, 1988; Barbosa, 1983; Amaral, 2001; Mott, 1979; Leite, 1996.13 A esse respeito ver texto de quilombos.

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    A relao entre instituio de Educao Infantil e famlia no existe sem conflitos, mas precisa ser encarada e redimensionada na perspectiva do di-logo permanente, por meio da escuta sensvel e acolhedora que busca com-preender a histria de vida das crianas no atendimento de suas necessida-des. Quando as profissionais da Educao Infantil se dispem a conhecer as crianas com as quais trabalham, inevitavelmente tero de conhecer suas famlias, respeitando suas formas de organizao.

    Na relao com as famlias, alguns equvocos precisam ser superados. Um deles diz respeito idia de que as famlias pobres e negras no tm conhe-cimento, que no sabem ensinar seus filhos, que no se preocupam com a educao dos mesmos, que no tm noes de higiene, que no sabem como aliment-los, que so supersticiosos e que necessitam de algum de fora da famlia que os ensine a educar seus filhos.

    Se o aprender ocorre por toda a vida, sempre se aprende sobre vrias coi-sas, em vrios tempos, espaos e ambientes. Nas comunidades tradicionais, principalmente, os ensinamentos so transmitidos de gerao a gerao pelos familiares, pela comunidade, pela escola, sobretudo por meio da oralidade, da arte de contar histrias que trazem diferenciadas vises de mundo, lies para a vida, lembranas para a memria coletiva. Nessas culturas valoriza-se aquele que consegue armazenar histrias e fatos em sua memria. Em muitas culturas, especialmente as tradicionais africanas, os guardies da histria em diversas regies da frica desenvolvem grande capacidade de memorizar o maior nmero de informaes a respeito da linhagem de uma famlia, da or-ganizao poltica de um grupo, das funes de determinadas ervas utilizadas para a cura de doenas, da preservao das tradies: so os griots, contadores de histria, guardies da memria.

    Somos herana da memria

    Temos a cor da noite

    Filhos de todo o aoite

    Fato real de nossa histria

    Jorge Arago

    Muito do que tido como supersticioso carrega conhecimentos mile-nares, eivados de cientificidade. Assim, tratar algumas doenas com ervas e benzeduras faz parte da cultura de muitos povos no Brasil, principalmente os descendentes de indgenas e africanos e aqueles que vivem no meio rural. A sabedoria dos mais velhos recriada nos lares, nas irmandades, nos terreiros, nas igrejas, nas aldeias. Sempre reivindicamos o respeito aos mais velhos, e a tradio africana nos ensina esse princpio h muito tempo. Se essas ex-

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    perincias, vivncias, conhecimentos adentrarem as rodas de conversas com as crianas, os momentos de confraternizao famlia/escola, as pesquisas escolares, entre outros, podero contribuir para o alargamento, no s dos conhecimentos adquiridos, mas para uma convivncia ancorada no respeito diversidade. A sabedoria popular fonte inesgotvel de conhecimento.

    2.5 Religiosidade e Educao Infantil

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional/LDB (1996) afirma que a educao escolar laica, sendo da responsabilidade da famlia (entendendo famlia exatamente como o texto aborda) a formao religiosa da criana. No entanto, muitas vezes a religio se apresenta na escola como um elemento doutrinrio ou inibidor de diferentes experincias no contexto escolar. Fato que em muitas escolas de educao infantil existem srios conflitos origina-dos por esta questo, como as festas juninas, para citar um exemplo. Muitos alunos e alunas so impedidos pela famlia de participar destas festividades, em funo da conotao religiosa que o evento traz (homenagem a santos catlicos). Em conseqncia, limitam seu aprendizado, considerando a varie-dade de possibilidades de aprendizagem que o festejo proporciona.

    Percebemos que esta e outras festividades crists, apesar das contradies, possuem certa respeitabilidade (ou tolerncia) por parte de quase todos(as), independentemente das religies que professem. No entanto, o mesmo no se aplica s manifestaes religiosas de matriz africana. As crianas descen-dentes de famlias que professam essas religies dificilmente se manifestam neste aspecto, e muito menos so respeitadas quando da discusso do respei-to diversidade religiosa.

    Considerando que o prprio sentido da religio o de promover a paz, entendemos que as atividades pedaggicas tambm devem se voltar para esta perspectiva e favorecer a possibilidade do dilogo, do respeito e da va-lorizao das diferentes culturas que compem a formao da sociedade brasileira.

    2.6 A Socializao da Criana na Educao Infantil

    Segundo os dados do Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998), a auto-estima que a criana vai desenvol-vendo , em grande parte, interiorizao da estima que se tem por ela e da confiana da qual alvo. Disto resulta a necessidade de o adulto confiar, acre-

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    ditar e manifestar essa crena na capacidade de todas as crianas com as quais trabalha. A postura corporal, somada a outras linguagens do adulto, transmite informaes s crianas, possibilitando formas particulares e significativas de estabelecer vnculos.

    Falar em auto-estima das crianas significa compreender a singularidade de cada uma em seus aspectos corporais, culturais, tnico-raciais. As crianas possuem uma natureza singular que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito prprio. Dependendo da forma como entendida e tratada a questo da diversidade tnico-racial, as instituies po-dem auxiliar as crianas a valorizar sua cultura, seu corpo, seu jeito de ser ou, pelo contrrio, favorecer a discriminao quando silenciam diante da diver-sidade e da necessidade de realizar abordagens de forma positiva ou quando silenciam diante da realidade social que desvaloriza as caractersticas fsicas das crianas negras.

    Algumas atitudes invasivas por parte das educadoras (e at presente em normas institucionais), sob argumentaes da higiene, impem formas est-ticas padronizadas de apresentar o cabelo das crianas (para no pegar pio-lho, por exemplo). Aos meninos so sugeridos cabelos bem aparados, seno raspados. Muitas vezes, no permitido o uso de bons. Sabemos que vrios povos, inclusive os africanos, utilizam diversos ornamentos como turbantes, fils14, chapus, cotidianamente, sem restries. Tambm no meio rural as mulheres usam lenos, homens usam chapus.

    Para meninas, os cabelos lisos so positivamente referenciados nos pa-dres europeus; e muitas famlias negras, influenciadas por esse padro, ex-pem suas crianas pequenas a variadas formas de alisamentos como os qu-micos que podem, inclusive, prejudicar a sua sade e sua auto-imagem, e ainda danificar seus cabelos.

    Como a criana gostar de si mesma se traz em seu corpo caractersticas desvalorizadas socialmente? De acordo com Gomes:

    No Brasil foi construdo, ao longo da histria, um sistema classifica-trio relacionado com as cores das pessoas. O cabelo, transformado pela cultura como sinal mais evidente da diferena racial (...) nesse processo, as cores branca e preta so tomadas como representan-tes de uma diviso fundamental do valor humano superioridade/inferioridade (2003:148).

    14 Espcie de gorro africano, feito geralmente de tecido ornamentado com pinturas e/ou bordados.

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    Nessa perspectiva, inferioridade associa-se a feira e superioridade be-leza, reforando-se os esteretipos negativos com relao queles que fogem aos padres considerados ideais.

    A criana que vivencia situao semelhante de discriminao com relao ao seu corpo pode no construir uma imagem positiva de si mesma. Os refe-renciais da criana negra a respeito de seu corpo, cor da pele, tipo de cabelo devem ser modificados, para que seja aceita por colegas e educadoras descon-siderando-se assim a sua histria, sua cultura. De acordo com Romo, muitas crianas, para se tornarem alunos(as) ideais, negam constantemente seus re-ferenciais de identidade, de diferena, que em muitas situaes recebem uma conotao de desigualdade. Essas diferenas so tratadas no ambiente escolar como se fossem feira e/ou desleixo. As crianas que lidam com situaes de negao de sua identidade podero passar por muitos conflitos que podem comprometer sua socializao e aprendizagem.

    No podemos desconsiderar o papel da mdia de forma geral e da te-leviso como formadora de identidade. A rara presena de pessoas negras como protagonistas de programas infantis um exemplo de como atravs da invisibilidade a mdia demarca seus preconceitos, contribuindo para que tanto crianas negras como brancas no elaborem referenciais de beleza, de humanidade e de competncia que considerem a diversidade. Existe destaque de pessoas brancas na mdia, que normalmente apresenta pessoas com ca-belos loiros e olhos claros (azuis ou verdes). Esse tipo de beleza chega a ser reverenciado como padro ideal a ser alcanado e/ou desejado.

    Crespo cabelo tranado com a mais pura graaCriando mais belos caminhos na carapinha

    Mrcio Barbosa

    Faz-se necessrio que tanto as educadoras quanto as crianas e seus fa-miliares tenham acesso aos conhecimentos que explicam a existncia das di-ferentes caractersticas fsicas das pessoas, os diferentes tons de cor da pele, as diferentes texturas dos cabelos e formato do nariz, buscando valorizar tais diversidades.

    Outra forma de possibilitar uma viso positiva a respeito dos traos fsi-cos das pessoas trazer informaes e histrias sobre os penteados em diver-sas culturas. Por exemplo, fazer tranas nos cabelos faz parte da tradio da populao negra desde tempos antigos no continente africano, assim como em diversas regies do Brasil. A maioria das famlias negras adota esses pen-teados: crianas, jovens, adultos; homens e mulheres. Existe uma infinidade

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    de tipos de tranas. Esses penteados mais recentemente tm se estendido para outros grupos no-negros, principalmente jovens. Valorizar esse aspec-to da cultura trazido pelas crianas negras, supe observao cuidadosa por parte das educadoras.

    O mesmo cuidado deve ser dispensado s questes relativas cor da pele; da informaes sobre a melanina, que d colorao pele, devem ser estuda-das pelas crianas e compartilhadas com os adultos.

    Maternidade (Oxum)acervo do artista

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