ADALGISA NERY OS DESDOBRAMENTOS DO NADA … · na obra de Nietzsche e organizadas por Deleuze ......

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Edição 21 – 1º Semestre de 2016 Artigo recebido até 20/06/2016 Artigo aprovado até 15/06/2016 ADALGISA NERY OS DESDOBRAMENTOS DO NADA Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS) RESUMO: Esposa de um aclamado pintor modernista e figura consagrada até em poema de Drummond, Adalgisa Nery permanece como uma desconhecida do grande público. Essa invisibilidade aumenta no que toca a sua contística, composta de apenas dois volumes, visto que a autora é reconhecida mais por seus poemas e pelo romance A imaginária. Por isso o objetivo principal dessa comunicação é apresentar os contos da escritora, especificamente, aqueles que constam do volume 22 menos 1. Dona de uma miríade de textos singulares e de uma profundidade filosófica e crítica notável, Adalgisa continua ignota nas livrarias e mesmo nos centros acadêmicos, não há reedições de seus volumes e os volumes publicados se esgotaram há tempos. Dentre as marcas mais visíveis de sua escrita, figuram a abordagem niilista da realidade e o protagonismo feminino. Publicado em uma época terrível de nossa história, os anos de ferro da ditadura, a coletânea escolhida oscila entre a denúncia direta e indireta das mazelas que esvaziavam o sentido da vida nesse país tropical. Para basear as reflexões sobre a escrita niilista da autora será utilizada a teoria do absurdo, de Camus e as definições de niilista encontradas na obra de Nietzsche e organizadas por Deleuze. É também intento da comunicação lançar uma reflexão sobre a representação e a representatividade feminina na contística brasileira dos anos 70. PALAVRAS-CHAVE: Adalgisa Nery; Albert Camus; Friedrich Nietzsche; Representação Feminina; Representatividade Feminina. Introdução Reconhecida quase sempre apenas como poetisa e pelo romance A imaginária, Adalgisa Nery é uma das muitas escritoras que, apesar de possuir uma obra variada e de muita qualidade técnica e relevância temática, permanece como desconhecida completa do público. Mesmo em ambientes acadêmicos e na crítica literária profissional, ela é uma estranha que merece apenas uma linha: “Adalgisa Nery (1905-1980), jornalista de pulso e poeta temperamental (Poemas, 1937; A mulher ausente, 1940; Erosão, 1973).” (STEGAGNOPICHIO, 2004, p.567). Segundo Acízelo de Souza (2011, p.34), o papel da crítica literária acadêmica é propor análises das obras literárias, bem como aferir a qualidade delas. É por concordar com essa visão da crítica literária que se busca, nessa comunicação, apresentar essa autora tão pouco lida, apresentar a qualidade de seus

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Artigo recebido até 20/06/2016

Artigo aprovado até 15/06/2016

ADALGISA NERY – OS DESDOBRAMENTOS DO NADA

Ronaldo Vinagre Franjotti (CPTL/UFMS)

RESUMO: Esposa de um aclamado pintor modernista e figura consagrada até em poema

de Drummond, Adalgisa Nery permanece como uma desconhecida do grande público.

Essa invisibilidade aumenta no que toca a sua contística, composta de apenas dois

volumes, visto que a autora é reconhecida mais por seus poemas e pelo romance A

imaginária. Por isso o objetivo principal dessa comunicação é apresentar os contos da

escritora, especificamente, aqueles que constam do volume 22 menos 1. Dona de uma

miríade de textos singulares e de uma profundidade filosófica e crítica notável, Adalgisa

continua ignota nas livrarias e mesmo nos centros acadêmicos, não há reedições de seus

volumes e os volumes publicados se esgotaram há tempos. Dentre as marcas mais visíveis

de sua escrita, figuram a abordagem niilista da realidade e o protagonismo feminino.

Publicado em uma época terrível de nossa história, os anos de ferro da ditadura, a

coletânea escolhida oscila entre a denúncia direta e indireta das mazelas que esvaziavam

o sentido da vida nesse país tropical. Para basear as reflexões sobre a escrita niilista da

autora será utilizada a teoria do absurdo, de Camus e as definições de niilista encontradas

na obra de Nietzsche e organizadas por Deleuze. É também intento da comunicação lançar

uma reflexão sobre a representação e a representatividade feminina na contística brasileira

dos anos 70.

PALAVRAS-CHAVE: Adalgisa Nery; Albert Camus; Friedrich Nietzsche;

Representação Feminina; Representatividade Feminina.

Introdução

Reconhecida quase sempre apenas como poetisa e pelo romance A imaginária,

Adalgisa Nery é uma das muitas escritoras que, apesar de possuir uma obra variada e de

muita qualidade técnica e relevância temática, permanece como desconhecida completa

do público. Mesmo em ambientes acadêmicos e na crítica literária profissional, ela é uma

estranha que merece apenas uma linha: “Adalgisa Nery (1905-1980), jornalista de pulso

e poeta temperamental (Poemas, 1937; A mulher ausente, 1940; Erosão, 1973).”

(STEGAGNOPICHIO, 2004, p.567). Segundo Acízelo de Souza (2011, p.34), o papel da

crítica literária acadêmica é propor análises das obras literárias, bem como aferir a

qualidade delas. É por concordar com essa visão da crítica literária que se busca, nessa

comunicação, apresentar essa autora tão pouco lida, apresentar a qualidade de seus

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escritos e propor uma leitura para eles. A tarefa não é fácil por vários problemas, além da

dificuldade do texto de Adalgisa, e o principal é o acesso as

suas obras.

Por serem pouco lidas e pertencerem a uma autora quase desconhecida, tais obras

não possuem novas edições ou relançamentos, nem mesmo os livros mais conhecidos

como os volumes de poemas e o romance supracitado. Mesmo recorrendo a sebos do país

todo, é difícil encontrar alguma de suas obras à venda e é comum ver preços exorbitantes

nos raros volumes disponíveis (alguns na casa de centenas de reais). Apesar de toda esta

dificuldade, o primeiro impulso desta pesquisa foi o de encontrar uma obra em prosa, em

vez dos volumes de poemas que são mais comuns, visto que o pesquisador analisa a prosa

contemporânea. Assim foi adquirido o volume 22 menos 1, o segundo de apenas dois

livros de contos da autora, o primeiro foi OG, lançado em 1943, o outro saiu apenas em

1972, quase trinta anos depois. Como proposta de análise, buscou-se uma ferramenta que

auxiliasse na racionalização dos textos escolhidos e, por sua profundidade reflexiva

acerca de questões fundamentais, chegou-se à filosofia. As narrativas do volume

escolhido mostram, desde o conto de abertura, uma intensa carga de niilismo, logo,

percebeu-se a importância de ligar análise de tais textos aos filósofos que discutem e

iluminam o termo. Foi assim que se chegou à obra de Nietzsche e de Camus, este ajudará

a pensar a presença do absurdo e aquele como se configuram os niilismos nas narrativas

de Adalgisa.

Desenvolvimento

Logo na primeira impressão, no conto que abre o volume, “Duas mulheres e

Ágata”, a escrita de Adalgisa chama a atenção pela frieza das mulheres postas em cena e

por seu caráter reflexivo. Duas colegas de uma república se preparam para o baile de

carnaval. Uma delas se apronta, já fantasiada e toda animada, enquanto a outra se mostra

reticente e questiona a colega se acaso ela não pensa em Ágata, outra colega que dividia

o quarto mas que se suicidara no mês anterior. O conto é constituído em sua quase

totalidade por esse diálogo tenso e estranho para um dia de festa. Finalmente, a colega

introspectiva é convencia a ir se divertir no baile de carnaval, ela se arruma (usa uma

fantasia masculinizada) e sai, ainda antes da colega. Esta, ao se ver sozinha no quarto,

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começa a refletir sobre o absurdo da existência que a outra mencionara e a recordar Ágata.

Ela entra em frenesi, ouve vozes, acha um revólver e se suicida.

O niilismo presente no conto é calcado no conceito de que a vida é absurda, vazia

e sem sentido. Coincidentemente, há um filósofo e escritor que se ocupou da relação entre

o absurdo da vida humana frente a morte da metafísica e sua relação com o suicídio:

Albert Camus. Na obra O mito de Sísifo, Camus (1942, p. 10) afirma que só há um

problema filosófico realmente sério, o do suicídio. Decidir se a vida vale ou não a pena

ser vivida é o grande anseio e finalidade da filosofia. É também esse o grande projeto

filosófico de Camus.

Segundo Camus (1942, p. 12), pensar é ser minado, o homem que se questiona

é confrontado com o absurdo da vida e sente inevitável tendência ao suicídio, pois não há

Deus, alma ou transcendência, todos somos fadados à morte e ao desaparecimento. É

justamente esse o percurso apresentado no conto de Adalgisa. Enquanto se prepara para

o baile, Susana está entretida pela vida e pelo prazer que se anuncia. No entanto, quando

Lídia começa a questioná-la e, principalmente mais tarde, quando ela fica a sós com sua

mente, o horror do absurdo chega de modo pungente e vai, aos poucos, minando sua força

de vontade.

Pode-se fazer também uma ligação com a filosofia de Nietzsche que nos ajuda a

pensar a postura de Susana. Segundo Deleuze (2001, p. 170), que categorizou quatro

modalidades de niilismo a partir da obra de Nietzsche, ela poderia ser enquadrada como

uma niilista passiva. O niilismo passivo é aquele em que a vontade de potência (ou o

tesão, para usar uma expressão do filósofo Clóvis de Barros Filho) se esgotou. Não há

mais nada do sujeito, ele se rende ao vazio da vida e de sua existência, por isso, assim

como Camus sugere, ele é uma presa fácil para o instinto suicida. Essa crise se origina da

percepção, segundo Nietzsche, de que “O homem é quem pôs valores nas coisas com a

intenção de se conservar; foi ele quem deu um sentido às coisas, um sentido

humano”(2007a, p. 48). Ao confrontar essa ausência de essência nos valores

fundamentais da sociedade, o pensador é convidado a questionar a própria finalidade

dessa sociedade e da vida humana, ele está entregue ao absurdo e, caso não consiga reagir,

convidado a flertar com a morte.

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Susana, após o confronto com o absurdo que se dá não só pela fala de Lídia mas

por sua ausência e pela solidão, se esvazia de sentido e de vontade, esse vazio é

personificado pelo fantasma de Ágata:

Quando ficou inteiramente só, começou a sentir uma espécie de

presença e domínio da morta. Ouviu nitidamente sua voz repetindo os

argumentos de Lídia. O desenho do corpo de Ágata plasmava-se nas

paredes, na cama, no chão e, quando Susana olhou para o espaço através

da janela aberta, em vez de reparar no céu estrelado, percebeu Ágata,

deitada, com a cabeça esfacelada e as pernas nuas. (NERY, 1972, p. 16)

Nesse momento, o conto, que até então apresentava uma narrativa seca e

verossimilhante, flerta com o fantástico, daí em diante é a própria Ágata que atormentará

Susana, sussurrando e sugerindo o absurdo, minando a vontade de Susana e, por fim,

levando a ao suicídio. A surrealidade do suicídio se encontra diminui frente ao absurdo

da existência, Susana cede e, ao encontrar um revólver entre suas coisas, escolhe acabar

com a dor.

O próximo conto, que, coincidentemente, é o segundo do volume, intitula-se “A

gargalhada” e trata do que hoje chamaríamos de feminicídio. É importante marcar a

vanguarda da escritora ao descrever tal caso em uma época em que a violência contra a

mulher era tão comum na cultura nacional que sequer era nomeada. A estória apresenta

um grupo de amigos, todos homens, que se encontram conversando em um bar. Esse

cenário e situação é muito comum nos contos e textos da época, Luiz Vilela, por exemplo,

escreveu vários contos que partem dessa moldura, um romance, Entre amigos (1982), e

uma novela, Choro no travesseiro (1979). Gaspar, André e Maurício estão conversando

animadamente, tanto que Gaspar se incomoda:

— Não grita, por favor.

— Não estou gritando. Estou rindo.

— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É manifestação de

animalidade que a minha natureza não suporta. Vocês conhecem a

minha fascinação pelas mulheres. Nada para mim tem um poder de

atração maior do que uma mulher. Porém a mulher mais linda, a mais

perfeita, a mais fascinante, falando alto ou gargalhando, faz crescer em

mim um ímpeto monstruoso e sinto que sou capaz de abrir com as mãos

o seu pescoço. Fico desvairado; é uma repulsa incontida. Só os animais

se expressam com alarido, só as criaturas desclassificadas, moral e

espiritualmente, falam aos gritos e riem com a garganta. (NERY, 1972,

p. 19)

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O que se esconde por detrás do discurso de Gaspar, que não tolera barulho, é

claramente um sentimento misógino. Note que ele não fala dos homens, como se um

macho não fosse capaz de gargalhar, mesmo tendo iniciado sua elocução por conta do

comportamento exagerado de André. Em uma sociedade em que o tratamento dado às

mulheres é tão desigual e preconceituoso fica fácil perceber o absurdo da existência

humana. A conversa procede a partir dessa fala de Gaspar como se o que dissera fosse

algo comum, trivial. Maurício, aparentemente o intelectual do grupo, começa então sua

fala.

Enquanto conversam, os três agem como flaneurs. Walter Benjamin, a partir da

poesia de Baudelaire, formula esse conceito, para ele, o flaneur seria aquele sujeito que

se sente completamente à vontade na rua e nos lugares públicos pois considera a vida e o

comportamento humano sua fonte maior de curiosidade e de prazer (BENJAMIN, 1989,

p.35). Maurício, especialmente, é quem se enquadra melhor nessa descrição, usando a

fala de Gaspar como gancho, ele demonstra seu método de análise das pessoas: observar

as mãos e a nuca. Ele examina um casal e traça um perfil psicológico de ambos pelos

aspectos de suas mãos e nucas. A mulher é subserviente e o homem, que aparentemente

abusa dela, é um explorador. Note que a personagem ser descrita como inferior ao

companheiro e infeliz não pode ser mera coincidência, é, antes disso, marca de uma

sociedade opressora e patriarcal.

A aparente elegância e o refinamento dos argumentos de Maurício e seus colegas

reflete, de modo irônico, o preconceito arraigado contra a mulher na sociedade de então,

tanto que o intelectual “justifica” a postura de Gaspar:

— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir alguém gritar ou dar

gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua

sensibilidade. As suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos

inesperados devem variar dependendo da sua receptividade brutalizada

por risos estridentes e barulhos fortes. A reação da sensibilidade de cada

pessoa pode encaminharse para o estoicismo ou para o crime. (NERY,

1972, p. 22).

O discurso pomposo de Maurício serve apenas para tentar produzir uma fala que

legitime a barbárie de Gaspar. Anunciado desde o início do conto, e confirmando o que

Poe dizia sobre se ter em mente, desde a primeira frase, o desfecho da narrativa, o

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feminicídio acontece na sequência. Após essa última fala, os três silenciam e surge uma

mulher jovem:

Não era bela nem feia. Era uma mulher de bar. Gaspar segurou-lhe o

braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu

afirmativamente.

— Para onde vai?

— Para casa.

— Espere, vou com você.

Saíram os dois.

Num hotel barato, os hóspedes ouviram a porta de um quarto fecharse.

Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente, uma gargalhada

inundou o corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio

absoluto. (NERY, 1972, p. 24)

A despersonificação da mulher ocorre desde a primeira menção a ela, uma jovem

que nem é bela nem feia, é uma mulher de bar. Classificar as mulheres e valorizá-las pela

etiqueta imposta é uma marca do patriarcado, moças que se conhece na igreja “são para

casar”, moças que se encontra no bar, “para o prazer”. A própria personagem aceita esse

papel que lhe é imposto ao topar sair com Gaspar mesmo após essa rude abordagem.

Decisão fatal que culminará com sua morte. Todo o conto parece ser construído para que

se justifique a atitude de Gaspar e se culpabilize a vítima, Adalgisa apela para o absurdo

justamente como forma de compor um argumento por oposição, visto que, mesmo com

os diálogos intrincados e reflexivos, a brutalidade do assassinato se sobressai.

Quanto ao niilismo presente no conto, os amigos no bar devem ser vistos como

reativos, para eles a vida é só existência, sem essência ou subjetividade. A própria visão

que Maurício compõe sobre os estranhos no bar e sobre Gaspar é um indício disso. Eles

não creem em Deus mas elegeram a si mesmos como substitutos dessa divindade,

colocando-se acima do bem e do mal, juízes da vida que trazem consigo e da vida alheia.

Essa visão maniqueísta da realidade que coloca o homem como centro e finalidade de sua

vida não passa de uma nova corrente e, como disse Nietzsche, “livre, não quer dizer

propriamente outra coisa senão o fato de não sentir novas correntes” (2007b, p. 22),

mesmo presos, os três se julgam livres, talvez até, numa expressão popular hoje,

libertários.

O terceiro conto escolhido para análise é, talvez, o mais reflexivo do volume e

ele põe em discussão vários aspectos interessantes, seu título é “O sentimento da morte”

e ele é narrado em primeira pessoa por uma mulher, Camila. Essa narradora autodiegética

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principia falando de uma notícia de jornal que comunicava a morte de um conhecido dela

cujo nome era Tiago. O absurdo da morte e, por consequência, da vida que se esgota

repentinamente é o mote inicial do texto. O conto coloca em perspectiva a visão que se

tem da mulher na sociedade brasileira:

Conversávamos, sem a menor restrição de assuntos, e por mais

escabrosos que eles se apresentassem – era interessante – nunca se

tornavam imorais. Durante as nossas conversas, jamais recordávamos

que éramos de sexos diferentes. Havia uma tal unidade que o detalhe

sexual não nos trazia nenhuma preocupação. (NERY, 1972, p. 42)

Camila deixa claro que, para a sociedade purista e patriarcal de então, era

completamente inusual uma mulher e um homem se reunirem para conversar, a não ser

que essa conversa tivesse como fundo algum tipo de interesse sexual ou romântico. Uma

das coisas que se pode depreender dessa cena é que ver uma mulher como pensadora e

interlocutora capaz de articular os mais variados temas era também uma coisa fora do

padrão da época. Outra coisa que chama a atenção é que, nessa relação de Camila e Tiago,

é ela quem se destaca intelectualmente e o personagem tem a narradora como uma espécie

de símbolo, exemplo moral e intelectual a ser seguido. Ao ler o obituário, Camila recorda

a última conversa que teve com o falecido em um restaurante barato. O início do diálogo

é revelador da postura intelectual de ambos:

— Então, o que há de novo? O que tem feito dos seus dias? Da sua

vida?

—perguntei.

— Nada — respondeu. — O que mais importante estou fazendo agora

é a minha desumanização. Todos cultiva a própria humanidade e

aproveitam as migalhas de bem que conservam no seu interior, para se

levantarem diante dos seus semelhantes e diante de si próprios. Eu estou

justamente fazendo o contrário. Quero ver se, ficando cada vez mais

desumano, absolutamente desumano, consigo a paz e a comodidade e

me levanto diante de mim mesmo. Esta história de não fazer o mal é

muito incômoda e, afinal, sempre por mais esforço que se faça, acha-se

fazendo o mal pela metade, o que é ridículo. Ora, ser humano, procurar

amparar os outros é fazer um mal medíocre e ficar num incômodo

constante. Afinal, por que é que só havemos de fazer o bem? Por que é

que eu não devo fazer o mal se o aceitam e muitas vezes dá até prazer

a quem o recebe?

— Bem, pelo que vejo, você está em ebulição, e é justamente por este

motivo que vim conversar com você. Não porque pretenda fazer o bem,

aconselhando-lhe paciência ou adaptação, mas porque estou

necessitada de ouvir coisas fora do normal. Você é a única pessoa com

quem consigo passar horas conversando, sem me fatigar. Foi por esta

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razão que eu telefonei para que viesse almoçar comigo. Vê que eu

também estou sendo desumana e concordo que é bem interessante. Pelo

menos dá a impressão de força. Mas você não acha que a desumanidade

é mais incômoda que a humanidade? Porque, finalmente, o poder

também é incômodo! (NERY, 1972, p. 43-44)

A fala de Tiago começa com o vocábulo nada. Esse ímpeto niilista pode ser

percebido na fala de ambos, no entanto, podemos dizer também que eles professam

vertentes distintas de niilismo. Ele é um niilista reativo, tanto Tiago quanto Camila partem

do pressuposto que as verdades postas na sociedade são arbitrárias e que o se

convencionou chamar de humanidade, nada mais é que um ponto de vista que esconde

uma relação de poder. É incrível como um texto publicado no início dos anos 70 do século

XX possa dizer tanto da sociedade quase cinquenta anos depois, é fácil perceber hoje a

ânsia do politicamente correto, só quem defende o bem e os valores, sejam quais forem,

é humano. Acontece que no século XX, após a ascensão da ciência e as várias revoluções

tecnológicas pelas quais a humanidade passou, não há uma verdade inquestionável.

Diante desse quadro, Tiago reagem reativamente, ou seja, ele se coloca como o novo

totem a ser adorado, tudo deve convergir para ele, a desumanização que propõe nada mais

é que um processo de megalomania. Sua atitude egoísta não é melhor ou mais lógica do

que a antiga moral que ainda é vigente na sociedade.

Camila, no entanto, está além dessa atitude, ela é uma niilista ativa. Ela

ressignificou todas as posturas, incluindo a sua, ela percebeu que, se repetir o padrão de

“bondade” proposto pela sociedade é uma falácia, transformar o oposto em um novo

padrão, automático, é a mesma coisa. Em suma, o niilista que escolhe, ideologicamente,

um caminho qualquer, torna-se escravo desse caminho como qualquer outro ser em

qualquer outro molde. De pronto, ela assume um papel de superioridade lembrando a

Tiago que o convocara e ressalta que o fez para seu bel prazer — essa declaração deve

ser vista, aliás, como uma clara provocação à moral vigente, segundo a qual a mulher é

sempre dona de um papel secundário e submisso. É só a partir dessa fala inicial que então

ela lança a dúvida mortal sobre Tiago: o poder não é mais incômodo? Ou seja, como diria

Camus, como você suporta o fardo de ser livre? Camila consegue fugir a esse fardo, ela

segue, como Camus descreve, o rito de Sísifo:

Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo,

vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem

nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de

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sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da

origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que

sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo

continua a rolar. (CAMUS, 1942, p.72)

Ao aceitar seu julgo, sem ódio e sem medo, Camila encontra o caminho que a

liberta, a liberdade total não reside em negar o absurdo mas em abraçá-lo e procurar, nos

poucos momentos em que se é realmente livre (como no diálogo com Tiago), viver com

intensidade e alegria essa vida sem sentido. A superioridade intelectual e niilista da

narradora acaba por oprimir Tiago que, consternado, encerra o diálogo afirmando que ela

conseguira aquilo que ele se propunha a fazer: desumanizar-se a ponto de não perceber

ou se importar com a destruição que impunha aos outros. Camila, por sua vez, encerra a

narrativa se perguntando de modo impessoal sobre as últimas ações do falecido e qual

seria sua aparência na urna funerária, ou seja, ela, mesmo nesse instante final de reflexão,

se recusa a ser sentimentalista e dar à vida ou à morte mais sentido do que elas têm,

nenhum.

O último conto analisado neste trabalho se intitula “O homem sem mundos” e,

como se verá, ele representa um choque entre o niilismo reativo e o ativo em face do

absurdo da vida e do cotidiano. Narrada em terceira pessoa, a narrativa é centrada na

figura de Macário, um pacato funcionário público que vive num pacato subúrbio e leva

uma vida pacata:

Macário chegara aos cinquenta anos de idade e até aquele momento

vivera uma existência pacata, tímida e retraída. Sóbrio, incapaz de um

gesto ou uma palavra de rebeldia contra a vida ou contra alguém, tinha

feito do cotidiano uma forma de gastar os dias sem emoções dentro dos

mais rigorosos e monótonos preconceitos. Casara-se com Ana depois

dos trinta e cinco anos, mais pela necessidade de ter que lhe pregasse

os botões na roupa, quem lhe preparasse os alimentos com cuidado, do

que propriamente pela necessidade de ter uma companheira, uma amiga

ou uma ternura para seu coração. Para Macário, a vida era como um

emprego público, no qual o funcionário não deve chegar atrasado na

hora do ponto, não deve levantar os olhos para o chefe da repartição e

não permitir que uma enfermidade manche, com a ausência de um dia,

a folha de serviço. (NERY, 1972, p. 67-68)

Ao contrário do famoso personagem homônimo da peça de Álvares de Azevedo,

esse Macário é um sujeito adaptado ao modo de vida capitalista. Ele vive para o trabalho

e não almeja nada mais, não sonha, como sugere o título, não possui outros mundos ou

realidades. O niilista negativo, segundo Nietzsche, é aquele que nega essa vida e essa

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realidade em prol de um outro mundo, o paraíso cristão, por exemplo. Macário não é

assim, ele, no entanto, também não é capaz de erigir para si valores que norteiem e deem

sentido à vida que leva, todo o sentido de sua existência decorre do mundo do trabalho,

ele é como um relógio. Macário é um niilista reativo, elegeu o escritório como seu novo

Deus e vive para cultuá-lo, dessa forma, ele consegue negar ou ignorar o absurdo.

Uma primeira reviravolta, no entanto, quebra essa estrutura de paz e

tranquilidade do protagonista, Ana adoece e morre. Em vez de sentir saudades ou

lastimar-se pela perda da

esposa, Macário fica contrariado por não ter mais quem lhe costurasse as roupas, pregasse

botões ou cozinhasse para ele, precisou mudar e se adaptar. Fez de modo a mudar o

mínimo possível, claro, a única mudança visível era que agora tomaria as refeições

noturnas em um restaurante no final da rua, é nesse espaço que se dará o grande evento

do conto:

Alguns dias depois de frequentá-lo às mesmas horas, sentar-se na

mesma mesa de canto e pedir a mesma qualidade de alimento, alguém

derrubou uma pilha de pratos. O barulho fez com que Macário

levantasse os olhos na direção do ruído e, ao fazê-lo, deu de frente com

o rosto jovem, risonho e quase belo de Lina, a empregada que atendia

aos pagamentos na caixa registradora.

Macário sentiu uma inesperada perturbação diante daquele rosto

alegre. Habituado a não viver nenhuma vida, nem a própria, tornou a

baixar os olhos para o prato de sopa. Porém constatou que as suas

pupilas haviam trazido impressas a candura e juventude da moça. Lina

boiava na fumegante sopa. (NERY, 1972, p. 71)

Como se pode adivinhar no trecho acima, Macário se apaixona de pronto por

Lina. Porém o cerne da narrativa não é essa atração mas o contraponto entre as

personalidades de Lina e Macário. Apaixonado e sem conseguir ignorar esse novo

sentimento, ele vence a si mesmo, muda sua rotina e aparência, deixa de lado o rigor com

o escritório e, dias depois, oferece-se para acompanhar Lina até em casa, após o

expediente. Ocorre então a última

grande virada do texto, Lina colhe no ar algo e finge comer, inquirida sobre o que mastiga,

ela diz se tratar de uma estrela madura que estava no galho de uma árvore. Macário fica

atônito, Lina é louca. Na sequência, ela vai dizer mais uma série de coisas inverossímeis

e desconexas, afirma que precisa chegar cedo em casa pois receberá a visita de um rio,

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que Macário lhe lembra o pai falecido, José (passa a tratá-lo assim, aliás), e que deseja

apenas dormir um sono contínuo para descansar do imenso trabalho no restaurante.

Após Lina tomar o bonde, Macário fica a refletir e conclui que não pode julgá-

la louca ou normal, afinal, ele nada conheceu e sempre se esforçara por sepultar todo

sentimento e desejo que pudesse desviá-lo daquele caminho a que se propusera. Lina

representa o niilismo ativo, ela não vive a mesma realidade dos outros, ela cria sua própria

realidade, como diria Schopenhauer, ela representa seu próprio mundo a partir de sua

vontade (2001, p. 288), Lina cumpre perfeitamente o processo que Nietzsche sugere

frente ao niilismo: a transvaloração.

Macário, após essa tormenta que é a paixão por Lina e a percepção de sua

inacessibilidade por conta de sua aparente loucura, fica tresloucado e melancólico, é

apresentando esse quadro que o narrador encerra o conto:

Ao entrar em casa, Macário teve a sensação exata de que voltava à

tumba. Mas pela primeira vez revoltado consigo mesmo. Revoltado

por não haver deixado a sua natureza frequentar todos os ambientes

da vida, todos os sentimentos da sua alma. Revoltado por haver

deliberadamente sepultado inutilmente todas as grandezas humanas

sob o egoísmo estéril. Tão estéril que nem ao menos lhe havia deixado

um pensamento bom diante da ideia da morte. (NERY, 1972, p. 77)

O niilismo reativo, em confronto com o absurdo da existência e com o brilho

ofuscante do niilismo ativo, perde seu referencial, se esvazia e se deprime, perde sua

vontade e se torna passivo, flerta com o suicídio. Enquanto a mulher vivia e ele era

absorvido/absolvido pela rotina que era seu ídolo mas a perda da esposa modifica sua

rotina e ele é convidado a pensar e pensar, como afirma Camus, é “começar a ser minado”

(1942, p.8). Pensando, Macário encontra o desejo, a paixão, cede a ela e, para seu espanto,

a vê ser repelida da pior forma possível, percebe que ele e Lina pertence a mundos

distintos que não se interligam pois nascem de vontades opostas e que agora é tarde.

Deprimido e acabrunhado, Macário assume uma postura de passividade e inação.

Conclusão

Revendo o percurso analisado, pode-se dizer com segurança que outros contos

do volume de Adalgisa Nery poderiam configurar o corpus deste artigo, o que foi decisivo

para a escolha de apenas quatro de um volume de vinte e um foi a extensão a que se

Edição 21 – 1º Semestre de 2016

Artigo recebido até 20/06/2016

Artigo aprovado até 15/06/2016

propunha este texto. Como se viu até aqui, “num universo subitamente privado de luzes

ou ilusões, o homem se sente um estrangeiro” (CAMUS, 1942, p. 9) e do confronto com

esse nada ele deve assumir uma postura. Valendo-se da análise que Deleuze fez da obra

de Nietzsche, dividiu-se as posturas das personagens nos contos analisados em quatro

categorias de niilismo: ativo, negativo, passivo e reativo.

Percebe-se que não há niilismo negativo em nenhum personagem descrito na

obra, isso mostra que, na época em que a obra foi produzida, a religião já perdera muito

de sua influência social no Brasil, tanto que permitiu a produção de vinte e uma narrativas

que não a mencionam. No entanto, é um erro achar que os personagens descritos são mais

livres ou que eles resolveram o problema do absurdo. A maioria deles oscila entre o

niilismo reativo, erigindo para si novos ídolos, seja o hedonismo ou o mundo do trabalho,

como se viu, respectivamente, nos personagens Susana e Macário (“Duas mulheres e

Ágata” e “O homem sem mundos”, respectivamente. Outra coisa muito interessante a ser

observada é que os personagens supracitados, mesmo pertencendo a contos distintos e

sendo de variadas formas muito diferentes entre si, fazem o mesmo percurso niilista: do

reativo para o passivo. Susana, ao ser confrontada com o absurdo da própria vida frente

ao suicídio de Ágata, perde a vontade de potência, como diria Nietzsche, e se mata.

Macário, após se abrir a um processo novo e ensejar uma transvaloração, recua e percebe

a impossibilidade de assumir uma nova perspectiva em sua vida, ou seja, perde também

toda a vontade de potência e é deixado pensando no suicídio.

Talvez a presença mórbida desse niilismo passivo que aponta para a dissolução

da própria vida seja uma marca da época em que o Brasil se encontrava, o início dos anos

de chumbo da ditadura de 64, talvez seja uma marca biográfica de Adalgisa Nery que teve

uma vida conturbada, mesmo ao lado do famoso pintor Ismael Nery, foi cassada pela

ditadura e terminou praticamente na miséria. Enfim, o que mais vale na leitura do volume

22 menos 1 é o prazer e a reflexão que ele suscita, seja por suas qualidades narrativas,

seja por sua densidade psicológica e filosófica, esse é um livro memorável que deveria

figurar entre os mais populares numa época, como a nossa ainda o é, tão carente de

sensibilidade e tão brutalista.

Bibliografia

ACÍZELO DE SOUZA, Roberto. Crítica Literária: seu percurso e seu papel na atualidade.

Edição 21 – 1º Semestre de 2016

Artigo recebido até 20/06/2016

Artigo aprovado até 15/06/2016

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