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8/3/2019 a_decolonizaçao_da_america_latina http://slidepdf.com/reader/full/adecolonizacaodaamericalatina 1/3 DEBATE ABERTO A descolonização da América Latina e os direitos indígenas Se revisarmos a história, recordaremos que, no período colonial, os colonizadores diziam que os índios não tinham alma. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente. Data: 15/05/2008 O Equador, no momento atual, se caracteriza pelo fato de que as forças progressistas assumiram a bandeira empunhada pelo movimento indígena na década de 90 para a elaboração de uma nova Constituição, que reconheça a diversidade de uma maneira profunda através da plurinacionalidade. Os avanços nos últimos 20 anos permitiram passar da invisibilidade à visibilidade, da resistência à proposta e agora da interculturalidade à plurinacionalidade. É importante levar isso em conta para se analisar o atual processo constituinte. A Constituição é simplesmente um papel que foi fonte de frustração durante muito tempo. Vários direitos foram incluídos, porém, os povos continuam sendo excluídos, empobrecidos, invisibilizados e oprimidos. Estamos diante de um novo tipo de constitucionalismo, que implica um diferente projeto político de país, outra forma de cultura, de convivência, de territorialidade, de institucionalidade do Estado. Trata-se de uma nova época, interessante, mas muito difícil, já que existem muitos inimigos internos e externos que estão muito bem organizados. Lamentavelmente, as forças progressistas não se organizam tão bem como seus opositores. O atual modelo de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Essa idéia de homogeneidade predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Daí a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada. A unidade não tem porque ser homogênea e tampouco a diversidade tem que significar desintegração. Esses são os desafios que deve enfrentar a nova Constituição, para que efetivamente o atual processo político implique uma importante ruptura com o colonialismo que não terminou com as independências. As diversas iniciativas políticas que estão emergindo no continente só podem ser entendidas reconhecendo a existência de um profundo racismo na sociedade. Por exemplo, não podemos entender os conflitos na Bolívia sem antes recordar que, para suas elites, um índio é só um índio, e não concebem que tenha chegado a ser presidente, pois, segundo elas, não é competente. Se revisarmos a história, recordaremos que na colônia acreditavam que os índios não tinham alma, e foi um papa, em 1537, quem teve de reconhecer que tinham. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente. Na Venezuela também existe racismo, basta observar muitas das críticas lançadas contra o presidente Hugo Chávez, que o chamam de macaco e de não pertencer às elites brancas da sociedade dominante. Por isso a importância do reconhecimento da continuidade do colonialismo e de que, no processo constitucional, a plurinacionalidade é um ato de pós-colonialismo que rompe com essa herança colonial. A independência foi dada, concebida, conquistada pelos descendentes dos colonizadores, não pelos povos originários, quer dizer, não foi realmente descolonizadora. Na África, aconteceu o contrário, as independências se deram por territórios, pelos povos originários, com exceção da África do Sul, que conquistou sua independência em meados dos anos 90. Colunista: Boaventura de Sousa Santos 04/07/2009 Página 1 de 3 Coluna - A descolonização da América Latina e os direitos indígenas 4/7/2009 http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaImprimir.cfm?coluna_id=3890

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DEBATE ABERTO

A descolonização da América Latina e os direitos indígenasSe revisarmos a história, recordaremos que, no período colonial, os colonizadores diziam que os índios nãotinham alma. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índiofosse eleito presidente democraticamente.D ata : 15 /05 /20 08

O Equador, no momento atual, se caracteriza pelo fato de que as forças progressistas assumirama bandeira empunhada pelo movimento indígena na década de 90 para a elaboração de uma novaConstituição, que reconheça a diversidade de uma maneira profunda através daplurinacionalidade. Os avanços nos últimos 20 anos permitiram passar da invisibilidade à

visibilidade, da resistência à proposta e agora da interculturalidade à plurinacionalidade. Éimportante levar isso em conta para se analisar o atual processo constituinte.

A Constituição é simplesmente um papel que foi fonte de frustração durante muito tempo. Váriosdireitos foram incluídos, porém, os povos continuam sendo excluídos, empobrecidos,invisibilizados e oprimidos. Estamos diante de um novo tipo de constitucionalismo, que implica umdiferente projeto político de país, outra forma de cultura, de convivência, de territorialidade, deinstitucionalidade do Estado.

Trata-se de uma nova época, interessante, mas muito difícil, já que existem muitos inimigosinternos e externos que estão muito bem organizados. Lamentavelmente, as forças progressistas

não se organizam tão bem como seus opositores. O atual modelo de Estado é homogeneizadorporque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Essa idéia de homogeneidadepredomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podemser aliadas nesse processo. Daí a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade,que não seja simplesmente aceita, senão celebrada.

A unidade não tem porque ser homogênea e tampouco a diversidade tem que significardesintegração. Esses são os desafios que deve enfrentar a nova Constituição, para queefetivamente o atual processo político implique uma importante ruptura com o colonialismo quenão terminou com as independências. As diversas iniciativas políticas que estão emergindo nocontinente só podem ser entendidas reconhecendo a existência de um profundo racismo na

sociedade. Por exemplo, não podemos entender os conflitos na Bolívia sem antes recordar que,para suas elites, um índio é só um índio, e não concebem que tenha chegado a ser presidente,pois, segundo elas, não é competente. Se revisarmos a história, recordaremos que na colôniaacreditavam que os índios não tinham alma, e foi um papa, em 1537, quem teve de reconhecerque tinham. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que umíndio fosse eleito presidente democraticamente.

Na Venezuela também existe racismo, basta observar muitas das críticas lançadas contra opresidente Hugo Chávez, que o chamam de macaco e de não pertencer às elites brancas dasociedade dominante. Por isso a importância do reconhecimento da continuidade do colonialismo ede que, no processo constitucional, a plurinacionalidade é um ato de pós-colonialismo que rompe

com essa herança colonial. A independência foi dada, concebida, conquistada pelos descendentesdos colonizadores, não pelos povos originários, quer dizer, não foi realmente descolonizadora. NaÁfrica, aconteceu o contrário, as independências se deram por territórios, pelos povos originários,com exceção da África do Sul, que conquistou sua independência em meados dos anos 90.

Colunista:

Boaventura de Sousa Santos04 /07 /2009

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Esse novo tipo de constitucionalismo é importante, porém não é exclusivo da América Latina. Nomundo existem vários países, como Canadá, Suíça, Bélgica e Espanha, que se reconhecem comoplurinacionais. Não se entende, portanto, por que o drama, o enfrentamento e as dúvidas. Emuma reunião do SENPLADES (Secretaria Nacional do Planejamento e Desenvolvimento), à qual fuiconvidado, ficaram preocupados que a plurinacionalidade desintegrasse e destruísse o país, comotambém ficou um jornal de grande circulação no Equador, e lhes expliquei porque não devem termedo. Primeiro, a plurinacionalidade tem como objetivo descolonizar o país, devido a essaherança colonial. Segundo, exige outra concepção do território e do controle dos recursosnaturais. É ali que surgem os temores com respeito à propriedade da terra, o controle dosbenefícios e lucros que produzem os recursos naturais.

Esse processo político significa uma nova visão de país, uma refundação do Estado equatoriano.Bolívia e Equador estão inventando outro tipo de Estado, um modelo que merece novasinstituições e novos territórios com um marco político diferente, que permita passar do discurso àprática e cujas mudanças se reflitam de maneira visível.

A plurinacionalidade é um ato fundacional ou de refundação do Estado e todos os outros atosfundacionais são de transição. Passar das velhas estruturas à construção de novos estados é umprocesso de transição que não é unicamente político, senão cultural e que pode provocarenfrentamentos, como está acontecendo no Equador e na Bolívia. São choques de memória entreaqueles que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Esta confrontação, que não épolítica, mas também cultural, exige que se construa outro tipo de memória.

O novo modelo de Estado implica uma nova institucionalidade, outra territorialidade, mas tambémoutro modelo de desenvolvimento. Daí a importância das concepções indígenas, que estãoganhando terreno porque vão além das reivindicações puramente étnicas. Hoje em dia, o ponto devista dos povos indígenas é importante no continente e não somente para eles, como tambémpara todo o país, pois o atual modelo de desenvolvimento está destruindo os recursos naturais, omeio ambiente, contaminando a água, particularmente no Equador, como é o caso da Texaco, quedurante 30 anos causou pobreza, destruição ambiental e contaminou as águas.

Este é um velho modelo e é possível que as palavras do ‘desenvolvimento’ não sejam as maisadequadas. Então, por que não utilizar a palavra ‘reviver’, que tem uma conotação muito maisprofunda e que significa uma relação diferente com Pacha Mama? O conceito de natureza é muitopobre comparado com o de Pacha Mama, mais profundo e rico, pois implica harmonia ecosmovisão. Os indígenas colombianos costumam dizer "o petróleo é sangue da terra, é nossosangue, nossa vitalidade, se nos tiram o sangue, nos matam". Esta concepção, que para os povosindígenas é muito natural, começa a ter outra aceitação. Não está em jogo só uma crise docapitalismo, mas também a sobrevivência da humanidade, caso se mantenha o atual modelo dedesenvolvimento

Este ato refundacional tem uma enorme potencialidade para o estabelecimento de relações maisamplas e o movimento indígena tem de estar preparado para a construção de novas alianças.Trata-se também de outro modelo de democracia, porque a atual é muito excludente emarginalizou as grandes maiorias da mesa de negociações e decisões. Portanto, é necessáriodemocratizar a democracia com novas formas de participação, mais inclusivas, podendo ser deorigem ocidental, como a democracia participativa, ou de origem comunitária, como as formasindígenas. A Constituição boliviana, por exemplo, distingue entre democracia representativa edemocracia partidária e comunitária.

A democratização da democracia vem acompanhada de outro processo interessante que é o da ‘cidadanização’ da cidadania, ou seja, a ampliação da cidadania a formas de cidadania intercultural junto de diferentes formas de pertencimento. Quando me perguntam se a plurinacionalidade pode

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colocar em risco a unidade do país, respondo rotundamente que não, pois essa é minha largaexperiência com os movimentos indígenas deste continente, que, basicamente, mostram duascoisas: os povos indígenas são originariamente transnacionais, como é o caso dos aymaras,quéchuas, mapuches, que foram divididos em vários países e agora são chilenos, argentinos,peruanos, equatorianos ou bolivianos.

Em segundo lugar, eles reconhecem simultaneamente sua identidade nacional indígena e tambéma cidadania de seu país. Além do mais, mantiveram lealdade a seus países em guerrasfronteiriças, participando com muita valentia de exércitos nacionais. Um exemplo desse duplopertencimento podemos observar no Canadá, onde não é o mesmo ser canadense para um brancoe para um indígena. Mesmo assim, todos, de maneira muito distinta, são canadenses.

Existem várias maneiras de pertencimento e, portanto, formas de convivência. A unidade nadiversidade é uma nova solidariedade social, que pode ter um impacto muito forte nos territóriose recursos naturais. Podem produzir-se enfrentamentos, porém nas rupturas também existecontinuidade. Por isso é importante que esses conflitos sejam controlados dentro de um marcopacífico e democrático.

Passar da interculturalidade à plurinacionalidade é um salto muito grande, mas também nisso sedá uma continuidade. A atual Constituição Política do Equador estabelece as circunscriçõesindígenas, porém estas, lamentavelmente, não foram regulamentadas.

Quando insistem no risco de que a plurinacionalidade pode enfraquecer a unidade nacional,pergunto-me: aonde estão as provas, os resultados desses fenômenos? Pelo contrário, oagronegócio e grandes latifundiários de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, que defendem oseparatismo, é que constituem um grave perigo para a unidade do Estado. Portanto, adesintegração não vem dos povos indígenas.

O objetivo da plurinacionalidade não é somente a idéia do consenso, mas também doreconhecimento das diferenças, de outra forma de cooperação nacional com unidade nadiversidade. É um ato de justiça histórica que não pode ser resolvido como um problema degeometria da democracia representativa. Qual a quantidade de indígenas neste país, 30, 20, 7 milpessoas? Quanto menor a quantidade, mais demonstrado fica o nível de extermínio e, portanto,que a plurinacionalidade tem de ser mais profunda. Um desafio para a institucionalidade écompatibilizar a igualdade com a diferença. Difícil, mas não impossível.

* Originalmente publicado em http://alainet.org/ - Traduzido por Gabriel Brito.

Intervenção realizada no Encontro Internacional "Povos Indígenas, Estados Plurinacionais e Direitoà Água", em março de 2008, Quito, Equador.

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