ae25_resenhas1

download ae25_resenhas1

of 10

Transcript of ae25_resenhas1

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    1/10

    198 Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 25 | maio 2013

    RESENHAS

    Crary, Jonathan. Tcnicas do observador:

    viso e modernidade no sculo XIX. Rio

    de Janeiro: Contraponto. 2012. 166 pginas.Mauro Trindade

    Focado nas transformaes do modelo de viso,

    Tcnicas do observador: viso e modernidade no

    sculo XIX, de Jonathan Crary, tem sido vastamen-te utilizado nas ltimas duas dcadas. Da a impor-tncia de sua chegada ao Brasil, no final de 2012,

    pela editora carioca Contraponto. A traduo emportugus de Verrah Chamma mantm as qualida-

    des do original, que prima pela clareza, objetivida-de e ausncia de preciosismo vocabular e de exces-so de notas de p de pgina. O lanamento auxilia

    a transposio de barreiras lingusticas e amplia oacesso a um texto fluente e de grande importncia

    para os estudos em histria, fotografia, cinema, li-teratura e artes visuais.

    Com a interdisciplinaridade dos cultural studies,

    Tcnicas do observadorinvestiga as relaes entre

    sociedade, tecnologia e pensamento para tratar da

    construo histrica da viso moderna no sculo19, cujas transformaes mais evidentes ocorreram

    na arte e no entretenimento. Para o autor, essas

    modificaes estavam no bojo de uma vasta reor-ganizao do conhecimento e das prticas sociais

    que (....) modificaram as capacidades produtivas,

    cognitivas e desejantes do ser humano.

    O livro investe contra a concepo do modernismo

    como fenmeno cultural isolado em ambiente nor-mativo, ante o qual ele representa ruptura e trans-

    formao. Segundo Crary, a inveno da fotografiae os movimentos artsticos, de Turner aos impres-sionistas, so sintomas tardios das mudanas na

    sociedade europeia do sculo 19, na qual ocorrem

    inflexes na percepo e na qual se prepara o ob-

    servador em duplo sentido para novos arranjos

    de poder. E esse observador , ao mesmo tempo,

    causa e efeito da modernidade, entendida como

    desestabilizao e mobilizao de signos, cdigos,

    identidades sociais e atividades produtivas de for-ma sistmica.

    Grande parte do livro fundamenta-se em Michel

    Foucault, Gilles Deleuze e, mais perifericamente,em Walter Benjamin. Crary recorre ao primeiro, es-pecialmente a Vigiar e punir, para sua anlise de

    processos e instituies que modernizaram o sujei-to e do modo como novos mecanismos de poder

    alteraram a subjetividade. Assim ele se aproxima

    do conceito de dispositivo desenvolvido por Fou-cault e problematizado por Deleuze , que rene

    leis, discursos, visualidades, enunciados cientficos

    e proposies filosficas organizados em rede. Em

    grandes pocas histricas altera-se, com a forma

    existncia coletiva da humanidade, o modo da suapercepo sensorial, escreve Benjamin em Peque-

    na histria da fotografia, o que poderia servir de

    epgrafe ao livro.

    Crary volta no tempo para estudar a cmera escura

    como modelo de viso adotado pela Europa du-

    rante os sculos 17 e 18, e que foi definidor das

    relaes entre o observador e o mundo. Para oescritor, o regime de objetivao e distanciamento

    do sujeito em relao ao real que imperava com a

    camera obscura substitudo pela subjetividade

    corprea do espectador, transformao que o au-

    tor identifica na anlise das ps-imagens descritas

    em Doutrina das cores, de Goethe, e na filosofia de

    Kant. O colapso do antigo modelo de observador

    coincide com o processo de racionalizao e mo-

    dernizao que acomete o sculo 19 e molda os

    novos tempos da sociedade industrial.O livro ainda aponta a profunda reconfigurao

    das relaes entre o sujeito que observa e os mo-dos de representao ocorridos a partir dos anos

    80 com a chegada dos computadores pessoais, dos

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    2/10

    19RESENHAS

    exames clnicos de imagem e dos simuladores de

    voo, entre outras novas tecnologias. A dissociao

    contempornea de viso e observador humano im-plica novos arranjos de fora e radical transforma-o nos modos de representao a partir do digital.O que indicativo da perenidade e do alcance de

    Tcnicas do observador.

    Documenta (13)

    Fernanda Pequeno

    A primeira pergunta formulada quando se

    chegava Documenta 13, de Kassel, era para

    quem a exposio havia sido feita. Quem teria a

    possibilidade de passar pelo menos uma semanavisitando a exibio? Sim, porque, se voc se

    dispusesse a ver todos os trabalhos na ntegra,

    seria esse o mnimo de tempo necessrio. Ansiosa

    em minha primeira Documenta, preocupava-me

    com o pouco tempo que teria para ver tanta coisa.

    Alm do grande nmero de artistas e trabalhos,

    a mostra espalhara-se pela cidade movimento

    j iniciado em edies anteriores, mas enfatizado

    em 2012 , o que exigia o deslocamento fsico

    para fora dos espaos institucionais, localizadosperto do museu principal. A isso, somava-se a

    grande quantidade de vdeos, com em mdia uma

    hora de durao, e a forte presena de trabalhos

    textuais, que demandavam tempo enorme de

    leitura. Embora a cidade no seja grande, esse

    descentramento trouxe pontos positivos, mas

    tambm gerou certa angstia nos visitantes,

    que se viram impossibilitados de visitar todos os

    trabalhos integrantes dessa edio.

    Passado o estranhamento inicial, foi necess-rio, ento, criar um roteiro que coubesse dentro

    dos quatro dias disponveis, priorizando algumasobras em detrimento de outras, deixando, no en-tanto, espao para improvisos e imprevistos, que

    ocorrem em qualquer viagem. Seria impossvel ver

    tudo. Mas assim como h muita gente produzin-do no mundo atualmente e a diretoria artstica

    oferecia seu recorte, cada espectador precisaria

    fazer seu prprio roteiro. Com o desenrolar da

    visita, percebamos que a grandiosidade da mos-

    tra no era megalomania curatorial, mas sim atentativa de mostrar um panorama da relevante

    produo em arte contempornea, embora a Do-cumenta no se pretenda global.

    Devido limitao de uma resenha, optamos por

    destacar apenas algumas das diversas experincias

    vividas nessa imerso em arte contempornea. Os

    trabalhos que mais marcaram foram os montados

    no Parque Karlsaue e nos arredores da antiga prin-cipal estao de trem, a Hauptbahnhof. Entretan-

    to, espaos institucionais como o Museu Frederi-ciano e a Nova Galeria merecem destaque e sero

    brevemente comentados a seguir.

    Quando adentramos o Museu Fredericiano, nos

    deparamos com vento que, embora suave, no

    passou despercebido. A seguir, ao entrar nas

    duas amplas salas, descobrimos que essa brisa

    na realidade eraEu preciso de algum significado

    que possa memorizar (a fora invisvel), do artis-ta britnico Ryan Gander. Como algo invisvel e

    prosaico como o vento se pde materializar de

    forma to potica e surpreendente? O trabalho

    funcionou como boas-vindas e preparao para

    o que encontramos adiante. Na sala esquerda,

    exposta numa vitrina, estava a carta de um artista

    recusando-se a participar da Documenta. A opo

    em expor a correspondncia, endereada a Ca-rolyn Christov-Bakargiev que assinou a diretoria

    artstica da mostra de 2012 demonstrou trans-

    parncia nos critrios utilizados para selecionar

    os participantes, em uma curadoria que deixou mostra o processo de negociao e pesquisa que

    antecedeu a montagem da exibio. Nesse sen-

    tido, muitos trabalhos contavam tambm com

    folders explicativos, esboos, projetos, cartas e

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    3/10

    200 Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 25 | maio 2013

    outros documentos, que complementavam seu

    sentido, sendo mesmo acessveis online.

    No museu encontrava-se tambm o fortssimotrabalho do francs Kader Attia, O reparo doOcidente s culturas extraocidentais, instalao-

    arquivo formada por estantes com livros antigos,projees de slides que mostravam deformaes

    e reparaes cirrgicas de guerra, esculturastradicionais em madeira do Senegal, fotografias

    originais de poca, elementos metlicos, jornais e

    revistas antigos, tradicionais esttuas em mrmore

    de Carrara etc., em que o artista discutiu questes

    relacionadas colonizao e (im)possibilidade

    de reparao dos traumas de guerra, tendo paraisso criado a ambincia de um museu.

    De outra ordem, mas tambm interessante, eramEu no era novo e Projeto tela, obras do italianoFabio Mauri: tapetes com inscries dispostos no

    cho (2009) e desenhos (dcada de 1950). Oriun-da dos anos 50 na Itlia e pertencente gerao

    que antecedeu a Arte Povera, a pesquisa de Mauri

    pareceu apontar para os caminhos que a arte italia-na tomaria a partir dos anos 60 e 70, com Marisae Mario Merz, Pino Pascali, Alighiero Boetti e ou-tros. Este ltimo, alis, foi um artista-chave para a

    direo artstica dessa edio. Com livro publicado

    sobre Arte Povera, Christov-Bakargiev no apenas

    trouxe Mapa, o famoso tapete que Boetti realizou

    com artesos afeges em 1971, como montou otrabalho do mexicano Mario Garcia-Torres, que foi

    a Cabul na tentativa de reconstituir a histria perdi-da do One Hotel experincia que Boetti realizou

    entre 1971 e 1977 na capital afeg, espao que

    funcionou como sua segunda casa, hospedaria e

    lugar de trabalho. Mapa fora inicialmente produ-zido para integrar a Documenta 5, mas s chegou

    Europa em 1972, e a ideia de traz-lo a Kasselem 2012 foi tanto de Garcia-Torres, para comple-mentar o sentido de sua projeo Voc j viu a

    neve?, quanto da curadoria. Em sua videoinstala-o com minuciosa narrao, o artista empreendeu

    uma anlise de imagens do One Hotel e de Cabul,

    misturando dados coletados e suposies, criando

    uma fico em torno de sua histria.

    A fila para a rotunda considerada o crebro da

    exposio, abrigando uma espcie de smula dos

    interesses e pensamentos que guiaram a concep-o da Documenta 13 era sempre grande; nes-sa pequena rea circular, estavam montados tra-balhos da fotgrafa Lee Miller que, comissionada

    pela revista norte-americana Lifedurante a Segun-da Guerra Mundial, visitou campos de concentra-o e estava hospedada no apartamento de Hitler

    poca de seu suicdio; pinturas, garrafas, livrose outros objetos pertencentes ao italiano Giorgio

    Morandi; Princesas Bactrianas, figuras femininas

    sentadas provenientes da civilizao que, durante

    o final do terceiro milnio e incio do segundo mi-lnio antes de Cristo, habitava a parte central dasia. Nesse quebra-cabea havia, ainda, alm de

    trabalhos de artistas contemporneos, obras de

    Man Ray e tambm peas arqueolgicas prove-nientes do Museu Nacional de Beirute, queimadas

    durante a guerra civil libanesa. A juno desses e

    diversos outros artefatos, aparentemente desco-nexos, funcionou como metonmia da complexa

    rede de referncias que compunham a exibio.

    Na Nova Galeria, espao institucional que tam-bm merece destaque, alm de sua coleo, que

    por si j valeria a visita, a instalao Folhas de gra-ma, do canadense Geoffrey Farmer, compunha-se

    de centenas de recortes fotogrficos retirados da

    revista Lifeentre 1935 e 1985. Misto de fotomon-tagem em trs dimenses e bonecos de sombra, otrabalho impressionou pelo acmulo: imagens de

    atrizes e atores mesclam-se a carros, personagens,

    animais e comidas, em ambincia surrealista. No

    subsolo da Galeria estavam Observaes, do eslo-vaco Roman Ondk, e Cabaret cruzadas: o cami-

    nho para o Cairo, do egpcio Wael Shawky. A pri-meira obra constituiu-se de pequenas e lacnicas

    fotografias em preto e branco recortadas de livro

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    4/10

    20RESENHAS

    cujas legendas abriam possibilidades de interpre-

    tao, reiteravam sentidos da prpria imagem ou

    os ironizavam. A segunda era um filme com ma-

    rionetes no qual o artista poeticamente recontava

    a violncia das Cruzadas no Oriente Mdio. Essa

    projeo de Wael Shawky ali se complementava

    com outro vdeo (tambm com marionetes, Oar-

    quivo do show de horror) e uma pequena insta-

    lao (uma espcie de maquete, Palco): a poesia

    no tornou os trabalhos menos contundentes, e

    sua aparente delicadeza no abrandou a cruelda-

    de pica da histria egpcia, recontada em atmos-

    fera de pesadelo.

    O trabalho de Anna Maria Maiolino, Aqui & L,

    estava montado em uma das entradas/sadas do

    Parque Karlsaue, a principal e maior rea verde dacidade, na qual inmeros outros projetos dessa

    edio da Documenta estavam expostos. Anna

    Maria escolhera a casa, tpica alem, para ocupar

    no apenas o interior mas tambm o entorno. Ao

    nos aproximar da construo, comeamos a ouvir

    sons de pssaros, que no se encaixavam naquela

    paisagem. Mais perto, descobrimos que os sons

    eram apenas uma parte do trabalho e, ao adentrar

    a casa, vimos no andar trreo uma ocupao feita

    com argila modelada em formas orgnicas (e no

    queimada), disposta ao longo dos cmodos, cho,

    mveis e paredes, em forma que lembrava tanto

    minhocas ou outros smbolos de alimento e vida

    (como salsicha, macarro) quanto excrementos.

    No andar superior, duas portadas cobertas com

    folhagens, numa espcie de cerca viva, impediam a

    entrada. Por fim, no subsolo, de uma ambientao

    ecoava a gravao de belssimo texto da artista, por

    ela mesma recitado: Escolhi viver e vivo morrendo.

    (...) O silncio vem conversar comigo, sussurra

    baixinho, mas eu sou surda.

    Ainda no Parque Karlsaue, numa clareira da rea

    florestada, os canadenses Jeanet Cardiff e George

    Bures Miller apresentavam a instalao Para mil

    anos: a audincia era convidada a sentar e acom-

    panhar a narrativa de cerca de 20 minutos que se

    desenvolvia at o desfecho com sons de bombar-

    deamento. O posicionamento dos alto-falantes e

    a variao dos sons faziam com que nos movsse-

    mos como se estivssemos diante de cena viva. A

    melancolia que assolava o espectador se asseme-

    lhava quela que se sente diante de outro trabalho

    da dupla, pertencente ao acervo do Inhotim Ins-

    tituto de Arte Contempornea e Jardim Botnico.

    Durante um dia inteiro o Parque Karlsaue perma-

    neceu fechado. Fora encontrada uma bomba da

    Segunda Guerra Mundial, e o risco de sua remo-

    o levou a polcia a cercar a enorme rea, impe-

    dindo a entrada. Para uma brasileira, a quem a

    noo de guerra parece um tanto abstrata ape-sar da luta pela sobrevivncia ser diria e de haver

    insegurana e violncia urbanas, aparentemen-

    te no estamos habituados com conflitos dessa

    proporo , a experincia de guerra mundial

    s nessa hora foi parcialmente vivenciada, o que

    causou assombro.1 Enfatizando ainda mais essa

    percepo, Arrebatamento da rapina, da dupla

    Allora e Calzadilla (Jennifer Allora, norte-ameri-

    cana, e Guilermo Calzadilla, cubano), projetado

    num bunker desativado, funcionou muito bem.Filmado em altssima resoluo, o vdeo trazia

    Bernadette Kfer, uma flautista especializada em

    instrumentos pr-histricos, tocando uma flauta

    de 35 mil anos atrs o instrumento musical mais

    antigo at hoje encontrado que feito do osso

    da asa de um abutre fusco , na presena de uma

    ave de espcie semelhante. O enquadramento em

    close, o som agudo da flauta e a qualidade da

    filmagem realaramm a atmosfera fria e mida

    que a caverna evocava, tanto por sua localizaosubterrnea em forma de tneis quanto por seu

    uso como abrigo antibombas durante a Segunda

    Guerra Mundial, o que ciclicamente salientou o

    aspecto sombrio de ambos.

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    5/10

    202 Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 25 | maio 2013

    Montados na antiga estao de trem de Kassel,

    a Hauptbahnhof, merecem destaqueA recusa do

    tempo, do sul-africano William Kentridge, uma

    impressionante pera que, projetada nas dife-rentes paredes de um armazm cenografado deforma a enfatizar a imerso, misturava teatro de

    sombras, metrnomos, megafones a complexaambientao musical, trazendo elementos pre-sentes em outros trabalhos do artista (maquin-rio, relgios, autorretrato) e assim reiterando seu

    campo de interesse e pesquisa; e o trabalho deCardiff e Miller, intitulado Estao modificada

    videocaminhada, para ser visualizado em ipodsdisponibilizados ao pblico. A obra colocou os

    espectadores em pontos centrais da estao, fun-cionando como espcie de videoguia e causando

    confuso: olhando para o dispositivo tinha-seuma histria se desenrolando, olhando ao redor,

    deparava-se com outra realidade, o que props

    ao espectador uma suspenso e a transposio de

    temporalidades diferentes.

    Outro trabalho fora dos espaos institucionais

    que merece destaque Arranhando coisas que eu

    poderia negar, do libans Walid Raad. Montada

    num antigo armazm reconstrudo para tornar-se

    uma mesquita (o que ainda no foi efetivado), a

    instalao mesclava documentaes e reflexespoticas do artista sobre a histria da arte no

    mundo rabe, atravs de grficos, maquetes, tex-tos, desenhos e documentos.

    A proposio de Tino Sehgal foi surpreendente.

    Embora presente no ndice e no mapa do catlo-go, ao buscar mais informaes, percebemos que

    a pgina referente ao artista no estava impressa.

    Seria um erro? Encaminhamo-nos, ento, para oespao indicado e fomos arrebatados numa expe-

    rincia. Essa variao acontecia numa sala escu-ra, com algumas arquibancadas em sua periferia.

    Nesse espao havia pessoas cantando, e a primei-ra sensao foi de arrepio. O artista nos tirara ocho, ao nos colocar num ambiente sem ilumi-

    nao, para em seguida nos restituir uma experi-ncia epifnica, a um s tempo amedrontadora e

    prazerosa, ao nos envolver com canes. O artista

    evita o registro de suas aes, de forma que foisua a opo de no participar do catlogo, para

    que no houvesse fotos de sua proposio, o que

    lhe diminuiria o impacto.

    Em Duas danas, verso filmada de Teatro Defi-ciente, em que dois atores portadores de sndro-me de Down danam, cantam e atuam, o core-grafo francs Jrme Bel salientou seu interesse

    porperformersamadores. Trabalhando com ato-res do Teatro Hora, de Zurique, Bel performou eprojetou sua pea no antigo Cinema Kaskade, no

    Centro de Kassel.

    Houve intensa programao paralela, no oficial,da qual destacamos a ocupao de uma casa por

    jovens artistas, durante o ms de julho, em que

    aconteciam oficinas, shows, conversas, festas

    etc. e, em sentido mais cmico, o projeto Kassler

    Dokumente, que fotografava pessoas degustan-do comida alem. A pequena cidade, portanto,

    pulsava arte e pensamento, em propostas que

    resgatavam espaos, promoviam encontros e re-cuperavam lugares.

    Em entrevista de 2008, quando perguntadasobre o que seria fascinante na organizao

    da Documenta, Carolyn Christov-Bakargiev

    explicou que o tempo estendido para fazer a

    pesquisa (cinco anos) seria o grande diferencial,

    possibilitando que algo significante fosse

    montado. Da mesma forma, a exposio pareceu

    exigir de ns um tempo grande de processamento,

    como se as proposies e operaes conceituais

    dos participantes e da curadora precisassem de

    decantao e amadurecimento para assimilaopelo visitante. Nos dias atuais, em que

    multiplicam-se feiras de apenas quatro dias ou

    uma semana, ou eventos efmeros que valorizam

    a espetaculizao, uma exposio que leva cinco

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    6/10

    20RESENHAS

    anos para ser montada, que fica quase trs

    meses em cartaz e que demanda tempo, esforo

    e disponibilidade do pblico, tanto para visit-

    la quanto para l-la e degluti-la, funcionou

    como frtil campo de pesquisa. Alm disso, as

    publicaes, os programas de visita guiada e a

    ampla presena de impressos que acompanhavam

    os trabalhos parecem ter compensado a falta de

    sinalizao da localizao dos trabalhos pela

    cidade.

    Nesse sentido, a diretoria artstica da Documenta

    13 foi audaciosa e no s trouxe questes que

    esto na ordem do dia, mas das quais pouco se

    fala, como tocou feridas ainda no cicatrizadas,seja pelos alemes ou por naes devastadas por

    guerras atuais. A histria de Kassel e da Alemanhaforam (re)discutidas, e outras arqueologias foram

    empreendidas, mas, como aponta Jacinto Lageira

    no texto Reparando, resistindo sobre o traba-lho de Kader Attia , a possibilidade de reparaoda arte diante das narrativas histricas e represses

    sociais ainda pequena. No entanto, ao abordar

    temas urgentes e atuais, a autoria dessa edio

    da maior e mais importante exposio de arte con-tempornea do mundo disse a que veio e quais

    eram suas matrizes polticas e tericas. A publica-o dos cadernos, tanto quanto a programao de

    filmes e a participao de coregrafos, ativistas,

    msicos e intelectuais, alm da presena estrita de

    artistas, s corroboraram, alis, a importncia des-sa edio da Documenta, que ocorreu em Kassel,mas tambm em Cabul e Bamiyan, Afeganisto,

    em Alexandria e no Cairo, Egito, e em Banff, Cana-d, fosse por meio de aes artsticas, seminrios,

    workshops ou parte da exposio. Tambm o ato

    simblico da curadora de replantar uma macieira

    proveniente de um campo de concentrao emDachau de 1944, embora no apagasse os horro-res da guerra, no deixou de funcionar como uma

    espcie de mea culpa, ainda difcil de ser feita pe-los alemes. Por fim, a larga presena de trabalhos

    polticos e conceituais e menos formais e a grande

    participao de artistas do Oriente Mdio e do Ex-tremo Oriente pareceram demonstrar o quanto a

    arte, a cultura e o pensamento constituem, ainda

    hoje, o campo do possvel.

    NOTA

    1 Kassel foi muito bombardeada durante a Segunda

    Guerra Mundial, e parece ser bastante comum en-

    contrar bombas quando se escava a cidade. Embora

    aparentemente recorrente, era para mim uma hip-

    tese abstrata, e a vivncia desse episdio real me

    foi espantosa. Muitos trabalhos dessa Documenta,

    dentre os quais destaco O que a poeira subir?, do

    norte-americano Michael Rakovitz, e Uma pequena

    histria de colapsos, da tambm norte-americana

    Mariam Ghani, tratavam diretamente dos bombar-deios em Kassel, das runas de seus monumentos e

    de arqueologias para suas reconstrues.

    Bishop, Claire. Artificial hells: participatoryart and the politics of spectatorship. London/

    New York: Verso, 2012. 386 pginas.

    Marlia Palmeira

    Um artista pagou ao pai de uma famlia da clas-se trabalhadora, composta ainda por me e filho,

    o dobro do que o homem ganhava diariamentepara que permanecessem em exposio sobre um

    pedestal num instituto de arte. Outro artista de-clarou que seu pas era sua obra de arte, seu ob-

    jet-trouv, entre o Natal e o Ano Novo incluindo

    todos os seus habitantes.

    Um artista pagou para que homens brancos pe-netrassem mulheres brancas e, num segundo

    momento, mulheres negras. Para que, ento,esses homens penetrassem outros homens igual-mente brancos e, depois, homens negros. Pagou

    para que homens negros penetrassem mulheres

    negras e, depois, outros homens negros. Pagou,

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    7/10

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    8/10

    20RESENHAS

    ticipativa, colaborativa, contextual, prtica social?

    O texto, embasado na articulao de Rancire

    entre esttica e poltica, comea com o reconhe-cimento de que no existe terminologia definida

    para designar o fenmeno estudado, assume otermo participao e anuncia a questo fulcral

    da obra: uma busca do instrumental crtico paradiscutir e estabelecer um juzo esttico alm dos

    critrios formal e moral para esse tipo de prtica.

    Pelo critrio formal, no importaria o contedo, a

    inteno, mas o simples fato de que a obra promo-ve, ou mesmo se torna pano de fundo para que

    se d uma relao. O critrio moral atrairia ainda

    mais complexidades, pois o fracasso/xito do traba-lho no pode ser simplesmente medido pelo fato

    de ter cumprido uma funo social e ser um bom

    modelo de participao. De uma contestao da

    passividade da sociedade do espetculo, se passa-ria facilmente etapa de cumprir uma funo no

    sistema neoliberal e, diametralmente, ativaode um pblico que coagido a participar assim

    como no capitalismo coagido a consumir. Em

    1968, o Atelier Populaire produziu um cartaz com

    os dizeres Je participe, tu participes, il participe,

    nous participons, vous participez, ils profitent.

    Embora Bishop procure caracterizar um fenmeno

    que emerge essencialmente na dcada de 1990 e

    na seguinte, define trs momentos histricos para

    balizar sua investigao: a vanguarda histrica eu-ropeia em torno de 1917, os acontecimentos de

    maio de 1968 e, como marco mais significativo

    beirando os anos 90, a queda do muro de Ber -lim em 1989. Concentra-se no contexto europeu

    e busca equivalentes artsticos para os processos

    polticos do sculo 20 mais luz do teatro, daperformance, do corpo individual e social posto

    em ao do que atravs das rupturas da pinturaou do ready-made.

    Nessa perspectiva, Bishop descreve seu segundocaptulo como uma pr-histria da participao

    contempornea, um microcosmo para desdobra-

    mentos futuros. Analisa a importncia da perfor-mance para o futurismo, asseratee suas estrat-gias de incitao emocional de uma audincia de

    massa dinamicamente destruidora, que respondiacom violncia, lanando ovos e vegetais, trazendo

    suas buzinas, sinos, apitos e cartazes agressivos,

    efetivando a participao via negao.

    Na Rssia ps-revolucionria, a autora aborda o

    patrulhamento contra a especializao e o individu-alismo da arte burguesa, e o esforo do teatro Prole-tkult para ser compreensvel. A seguir, concentra-se

    nos espetculos de massa, a exemplo da encenao

    da tomada do Palcio de Inverno em 1920, com oitomil participantes e dez mil espectadores.

    Ainda em territrio vermelho, discorre sobre as

    inovaes na msica. As orquestras sem maestro,os msicos sentados em crculo para aumentar o

    contato visual e diminuir os inevitveis desencon-tros no se comparam Sinfonia das buzinas,

    iniciada pelo mesmo msico que props confiscare destruir todos os pianos. Nela, o regente, de um

    telhado, transformava a cidade num amplo au-ditrio para uma orquestra de rudos industriais.

    Conclui o captulo com Dad Paris. Assim comoos futuristas, os dadastas tambm foram belica-

    mente metralhados com objetos diversos: Tzaraorgulhosamente nomeia ovos, moedas, repolhose bifes. A influncia de Andr Breton, dirigidapara alm desse caos anrquico, resultou em ou-tros posicionamentos e na substituio do cabarpela rua. Aos trs casos de estudo, microcosmosdos pontos nodais do discurso contemporneoacerca da participao, corresponderiam trs po-sies polticas: o fascismo italiano, o bolchevismorusso e a rejeio ao sentimento nacionalista no

    ps-guerra francs.

    O terceiro captulo dedicado s propostas da

    Internacional Situacionista ao lado daquelas do

    Groupe de Recherche dArt Visuel Grav e dos

    happenings de Jean-Jacques Lebel, relacionando-

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    9/10

    206 Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 25 | maio 2013

    as a trs formas de posicionamentos polticos,respectivamente: um marxismo dogmtico,

    antivisual, um populismo tecnoflico de centro-

    esquerda e um anarquismo sexualmente liberado.

    O quarto captulo, Social sadism made explicit,

    mostra as facetas do artista como sadista, terroris-ta, torturador, manipulador. Desloca o foco para

    a Argentina dos anos 60 e 70, refletindo sobre

    a arte conceitual participativa realizada em Bue-nos Aires sob a influncia de Oscar Masotta. Tratatambm do Ciclo de Arte Experimental de Rosrio

    e das inovaes teatrais de um brasileiro exilado

    na argentina: Augusto Boal.

    No quinto captulo, volta-se para as prticas artsti-cas que valorizam a liberdade individual e os no to

    polticos atos e cerimnias cotidianas em pases deregime socialista sob a esfera de influncia sovitica.

    O perodo ps-68 no Reino Unido tema do sexto

    captulo, com destaque para duas estratgias a in-terao do artista colocado dentro de uma empresa

    ou rgo do governo atravs do APG, Artists Pla-cement Group, que realiza esse agenciamento, e a

    atuao de artistas em comunidades.

    A arte participativa como projeto no contexto

    europeu, a partir dos anos 90, examinada no

    stimo captulo, em que a autora reconhece o sur-gimento de um certo impulso de pensamento de

    esquerda na Europa ocidental aps o colapso dasgrandes narrativas polticas de 1989. A arte como

    projeto teria surgido, justamente, num momento

    de ausncia de um projeto social.

    O oitavo captulo assume tom menos histrico

    ao analisar e oferecer uma tipologia provisria

    de propostas atuais em que o artista nem sem-pre est presente, trazendo outros corpos cena

    e lhes delegando a ao. Esto includos nessegrupo artistas como Maurizio Cattelan, SantiagoSierra, Tino Sehgal, Dora Garca, Gillian Wearing,

    Artur Zmijewski e Phil Collins. A relao entre os

    projetos participativos e os educativos, como a

    Universidade Livre Internacional de Beuys ou aCtedra Arte de Conducta, de Tania Bruguera,

    tema do nono e ltimo captulo.

    Em escrita clara e direta,Artificial Hellsoferece um

    interessante, embora assumidamente incompleto

    panorama contextualizado das prticas participa-tivas recentes. obra reflexiva que aponta o ca-

    rter irreconcilivel da crtica artstica e da crtica

    social para afirmar a contradio inerente do re-

    gime esttico, sua situao de contnua tenso.

    Eu no o retirarei de meu purgatrio. Em alguns

    momentos, emergem esquemas simplificados das

    questes em jogo, como a afirmao categrica

    de que os melhores exemplos da arte brasileira

    dos 60 e 70 so sensoriais. Comparativamente, os

    argentinos convidariam ao pensamento analtico.Estou certa de que a arte produzida nesses pases

    mais multifacetada do que isso. Ao longo do

    texto, a autora britnica insiste tambm na opo-

    sio entre contextos ocidentais e no ocidentais

    (brasileiros, dirijam-se ao ltimo grupo). Revela,

    na introduo, sua motivao inicial de construir

    uma contra-histria (cujo centro , apesar das

    excurses no ocidentais, o Reino Unido), o que

    explicaria, junto a um argumento terico, as raras

    referncias ao contexto norte-americano.Merece ser lido, como motivao para criar outras

    contra-histrias.

    Gerhard Richter Panorama

    Centre Pompidou, Paris

    6 de julho de 2012 a 24 setembro de 2012Curadoria parisiense de Camille Morineau

    Analu Cunha

    Gerhard Richter dispensa apresentaes: trs das

    mais importantes instituies de arte exibiram a

    retrospectiva Panorama em comemorao aos 80

    anos de seu nascimento. A mostra, que passou

  • 8/11/2019 ae25_resenhas1

    10/10

    20RESENHAS

    pela Tate Modern em Londres e pela Neue Natio-nalgalerie, em Berlim, abrange sua produo da

    dcada de 1960 de 2000. No Centre Pompidou,

    foram apresentadas cerca de 150 obras em ordem

    temtica e cronolgica.

    O desenho museolgico, com salas intercaladas poraberturas e paredes, oferece possibilidades variadas

    de leituras das obras e de aproximaes entre elas.No centro da montagem, um tringulo representa

    o ngulo de viso do olho humano. Na extenso de

    uma de suas faces internas, uma pincelada horizon-tal, ampliada ao paroxismo, leva o espectador a seu

    vrtice, onde uma pequena esfera de metal polido

    apreende sua imagem para devolv-la j imersa nopanorama, como que para lembr-lo de seu inelut-vel pertencimento ao reino das imagens.

    Na base do tringulo no centro da mostra, oposta

    ao vrtice em que repousa a esfera ocular, h, lado

    a lado, trs elementos: a pintura cinza e fosca Gris(1973), a reflexiva sobreposio de vidros de 11 pan-

    neaux (2004) e uma passagem. Por ela, num jogode enquadramentos, reflexos e transparncias, ve-mos as janelas do Beaubourg e, sim, a cidade l fora.

    O ttulo da exposio Panorama, do grego viso

    do todo solicita olhar o mundo sob um deter-

    minado ponto de vista. Panorama tambm umdos primeiros dispositivos de imerso na imagem,

    criado pelo irlands Robert Barker no sculo 18, aopintar a vista circular de Edimburgo. O panorama

    requisitava novo regime de ateno do espectador

    e a atrao no passou indiferente pela histria da

    arte. A mostra de Richter no est muito longe do

    recurso utilizado nas Nymphas, de Monet: a di-ferena que, agora, a pintura precisa mostrar-sepelo avesso, fazer-se dispersiva, esgarada, conta-

    minada; exibir-se como artifcio. Os jogos de opos-tos so caros ao pintor: Benjamin Buchloh, princi-pal terico de sua obra, sublinha os procedimentos

    dialticos (amnsia/memria, figurao/abstrao

    etc.) recorrentes em seu trabalho. Fotografia e pin-

    tura so confrontadas e interrogadas exausto,

    de todas as formas, postas face a face, seguida-menteen abme.

    A exposio comea com a produo dos anos60. Nas primeiras salas, Richter apresenta seus

    fantasmas e contradies: avies de guerra, recortesde revista, seu lbum de famlia, Stieglitz (Nuages,1970), Duchamp. Mais adiante, a imagem de doisde seus tios, Tante Marianne, 1965 (que o segura,ainda beb, no colo) e Oncle Rudi, 1965, oficialnazista morto na guerra. Muito prximo, seu sogro,o mdico nazista Heinrich Eufinger (Famille au bordde la mer, 1964), um dos provveis responsveispela esterilizao eugenista de sua tia Marianne,morta pelo programa de eutansia do TerceiroReich. Um dos quadros mais emblemticos

    dessa fase representa sua mulher, Ema (Nu sur unescalier,1966), que inicia o dilogo com Duchamp.Quase em frente, 4 panneaux de verre, 1967, levaadiante as questes sobre a pintura presentes emLe grande verre (1915-1923). A conversa comDuchamp prossegue at a produo mais recentee, tanto os panneaux quanto as pinturas em vidro

    pontuam a exposio at a ltima sala.

    Nela, ao lado de algumas abstraes, pinturas figu-rativas e digitais, esgarada, quase despercebida,

    Septembre, de 2005, nos lembra que a imagemem Richter como, alis, em Warburg mem-ria partilhada. A exposio apresenta as escolhas

    de um dos maiores cronistas contemporneos daimagem: o artista fez o inventrio imagtico dos

    ltimos 80 anos, o que implica, necessariamente,

    encerrar com a imagem do maior dos golpes con-tra [este] imprio do visvel.1

    NOTA

    1 Mondzain, Marie-Jos. A imagem pode matar?

    Lisboa: Vega, 2009, p. 70.