Afeções da coluna vertebral em dois indivíduos da...

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Afeções da coluna vertebral em dois indivíduos da necrópole alto-medieval do Laranjal (Séc. VI-XIII), Torre de Moncorvo, Bragança Os dois casos paleopatológicos que vamos aqui expor são de dois indivíduos provenientes da necrópole do Laranjal. Esta é uma das necrópoles em estudo inserida no projeto de doutoramento “Quotidianos alto medievais entre o Tua/Tuela e o Douro – Arqueologia, paleobiologia, alimentação e mobilidade das populações entre os séculos V e X”. É das necrópoles alto medievais mais importantes escavada em Trás-os-Montes (VI ao XIII). Foram registadas 201 sepulturas de inumação, expondo 103 indivíduos em contexto primário e um NMI de 93 indivíduos em contextos secundários (6, 7). Os dois indivíduos que se apresentam foram identificados em contexto primário. Afiliação dos autores: * PhD em Antropologia Biológica (Universidade de Coimbra), bolseira FCT, investigadora do CIAS-UC e IEM-FCSH-UNL; ** ; Laboratório de Préhistória, CIAS - UC; UNIARQ - UL; CEF-UC. 2.2. Caso 2: Indivíduo da sepultura 160 (40-60 anos) Indivíduo adulto do sexo masculino, com uma idade à morte entre os 40 e os 60 anos. Apresenta sinais de spina bifida occulta, envolvendo o sacro e a L5 (Figs. 7 e 8): A spina bifida occulta (SOB) é uma patologia congénita comum, caracterizada pela fusão incompleta da linha posterior do arco vertebral. Estudos clínicos indicam que há uma maior prevalência dos casos em não-adultos e em indivíduos de sexo masculino (8). É frequente ocorrer associada à espondilólise (3, 8), o que não acontece neste indivíduo. No conjunto da amostra, poderão tirar-se inferências no que respeita à consanguinidade de uma população. I. Introdução O sítio arqueológico do Laranjal situa-se no lugar de Cilhades (Torre de Moncorvo, distrito de Bragança). Foi intervencionado no âmbito da implementação do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor (7). II. Descrição dos casos 2.1. Caso 1: indivíduo da sepultura 150 Indivíduo adulto do sexo feminino, com + de 50 anos de idade à morte. Apresenta uma fissura na pars interarticularis direita da L5 (fig. 2). Características observadas: Pelas características observadas o diagnóstico mais provável é uma espondilólise. Esta consiste numa fratura na pars interarticularis do arco neural vertebral, unilateral ou bilateral (4, 5). A unilateral é a menos comum (1), como no indivíduo em estudo (Figs. 2 e 3). Há casos em que se observou a fusão parcial ou total da fissura (2). Ocorre geralmente na coluna lombar e com maior incidência na L5 (85-95%) (4). Casos clínicos sugerem que é causada por stresse biomecânico, possivelmente influenciada por uma fragilidade congénita na estrutura da vértebra (9, 10). Esta patologia é observada em 3-6% da população atual (1). Pode ocorrer associada a spina bifida occulta (1, 5) (não observável no indivíduo). A espondilólise, devido à instabilidade causada pela fratura, pode levar a um processo de espondilolistese (deslocamento da vértebra) (5, 8), mais frequente quando a lesão é bilateral (1, 2). Neste caso, o abatimento do corpo da L5, provavelmente causado pela lesão, poderá ter provocado um ligeiro deslizamento do corpo vertebral (Figs. 4 e 5 ). III. Discussão O estudo da coluna vertebral oferece-nos um leque de informações sobre o indivíduo e a comunidade onde este se insere. Deste modo, o registo das alterações da coluna vertebral é muito importante para o conhecimento das populações antigas. Estes dois indivíduos apresentam duas afeções da coluna comuns que afetaram as populações passadas e que se mantêm na atualidade. As duas patologias possuem uma predisposição genética. A espondilólise apresenta-a na fragilidade da pars interarticularis que a leva à fratura por stresse biomecânico. Ao contrário, a spina bifida occulta (SOB) é congénita. Ambas aparecem frequentemente associadas. Existem estudos que apontam uma correlação entre a spina bifida occulta e a espondilólise, alegando que a SOB pode aumentar o stresse na pars interarticularis (3). Em ambos os casos aqui apresentados aparecem dissociadas. No caso 1, apesar de ser uma espondilólise unilateral, a patologia parece ter progredido para a espondilolistese (num grau baixo), observável sobretudo entre a L4 e a L5. É provável que o indivíduo tivesse sofrido a fratura muito jovem e a instabilidade na L5 ao longo dos anos fosse progredindo. No final do estudo, será importante verificar a frequência destas patologias nas comunidades em estudo (entre sexos, classes etárias, comunidades rurais e urbanas) e comparar com outras comunidades medievais europeias (5,9). IV. Bibliografia: 1. Beutler, W. J., Fredrickson, B. E., Murtland, A., Sweeney, C. A., Grant, W. D., & Baker, D. 2003. The Natural History of Spondylolysis and Spondylolisthesis. Spine, 28(10): 1027–1035. 2. Crawford, C.; Ledonio, C.; Bess, R.; Buchowski, J.; Burton, D.; Hu, S.; Lonner, B.; Polly, D.; Smith, J.; Sanders, J. 2014. Current Evidence Regarding the Etiology, Prevalence, Natural History, and Prognosis of Pediatric Lumbar Spondylolysis: A Report from the Scoliosis Research Society Evidence-Based Medicine Committee. Spine Deformity, 3: 12-29. 3. Fredrickson B., Baker D., McHolick W., Yuan H., Lubicky J. 1984. The natural history of spondylolysis and spondylolisthesis. J Bone Jt Surg Am, 66:699–707. 4. Gagnet, P.; Kern, K.; Andrews, K.; Elgafy, H.; Ebraheim, N. 2018. Spondylolysis and spondylolisthesis: A review of the literature. Journal of Orthopaedics, 15: 404-407. 5. Mays, S. 2006. Spondylolysis, Spondylolisthesis, and Lumbo-Sacral Morphology in a Medieval English Skeletal Population. American Journal of Physical Anthropology, 131: 352-362. 6. Pereira, S., Sastre Blanco, J., Amorim, A., Roiz, A., Espí, I., Liberato, M., Cosme, S., Rodrigues, Z., Paniagua Vara, E. 2015. Espaços funerários no sítio de Crestelos do Baixo Império à Idade Média (Mogadouro, Portugal). in Quirós Castillo, J. A., CastelhanosS, S. (Dirs.). Identidad y etnicidad en Hispania. Propuestas teóricas y cultura material en los siglos V- VIII (DAM 8), Vitória/Gasteiz: 161-180. 7. Santos, F.; Rosselló, M.; Santos, C.; Carvalho, L.; Rocha, F. 2016. Aspetos da morte no vale do Sabor. O mobiliário funerário Tardo Antigo das inumações do Laranjal de Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). Achegas à cronologia de uma necrópole de longa duração. Arqueologia Medieval, 13:17-34. 8. Urrutia, J.; Cuellar, J.; Zamora, T. 2016. Spondylolysis and spina bifida occulta in pediatric patients: prevalence study using computed tomography as a screening method. Eur Spine J, 25: 590-595. 9. Ward, C.; Mays, S.; Child, S.; Latimer, B. 2010. Lumbar Vertebral Morphology and Isthmic Spondylolysis in a British Medieval Population. American Journal of Physical Anthropology, 141: 273-280. 10.Yurube, T.; Kakutani, K.; Okamoto, K.; Manabe, M.; Maeno; K.; Yoshikawa, M.; Sha, N.; Kuroda, R.; Nishida, K. 2017. Lumbar spondylolysis: A report of four cases from two generations of a family. Journal of Orthopaedic Surgery, 25 (2): 1-5. Fissura com os rebordos arredondados e suaves; Ausência de porosidade; Fissura completa do processo espinhoso da L5 (Fig. 9); Fusão incompleta da linha posterior do arco ventral entre a S3 e S5 (Fig. 10); Cedência do corpo da vertebral à esquerda; Curvatura lateral da coluna lombar (Fig.6); Patologia degenerativa (exceto no corpo); Fig. 1: Localização geográfica do sítio arqueológico. 2 3 4 5 6 Figs. 2 e 3: Fissura na pars interarticularis direita da L5; Fig. 4: Abatimento do corpo da L5 À esquerda; Fig. 5: Algum grau de deslizamento do corpo vertebral – possível espondilolistese entre a L4 e L5. Fig. 6: Curvatura da coluna lombar à esquerda. Fig. 7: Sacro e L5 em posição lateral/vertical, onde se visualiza a spina bifida occulta; Fig 8: Sacro na posição posterior. Fig. 9: L5 onde é visível a fissura no processo espinhoso. Fig 10: L5 na posição inferior onde se observa a fissura do processo espinhoso. 7 8 9 10

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Afeções da coluna vertebral em dois indivíduos da necrópole alto-medieval do Laranjal (Séc. VI-XIII),

Torre de Moncorvo, Bragança

Os dois casos paleopatológicos que vamos aqui expor são de dois indivíduos provenientes

da necrópole do Laranjal. Esta é uma das necrópoles em estudo inserida no projeto de

doutoramento “Quotidianos alto medievais entre o Tua/Tuela e o Douro – Arqueologia,

paleobiologia, alimentação e mobilidade das populações entre os séculos V e X”.

É das necrópoles alto medievais mais importantes escavada em Trás-os-Montes (VI ao

XIII). Foram registadas 201 sepulturas de inumação, expondo 103 indivíduos em contexto

primário e um NMI de 93 indivíduos em contextos secundários (6, 7). Os dois indivíduos

que se apresentam foram identificados em contexto primário.

Afiliação dos autores:* PhD em Antropologia Biológica (Universidade de Coimbra), bolseira FCT, investigadora doCIAS-UC e IEM-FCSH-UNL; ** ; Laboratório de Préhistória, CIAS - UC; UNIARQ - UL; CEF-UC.

2.2. Caso 2: Indivíduo da sepultura 160 (40-60 anos)

Indivíduo adulto do sexo masculino, com uma idade à morte entre os 40 e os 60 anos.Apresenta sinais de spina bifida occulta, envolvendo o sacro e a L5 (Figs. 7 e 8):

A spina bifida occulta (SOB) é uma patologia congénita comum, caracterizada pela fusãoincompleta da linha posterior do arco vertebral. Estudos clínicos indicam que há umamaior prevalência dos casos em não-adultos e em indivíduos de sexo masculino (8).É frequente ocorrer associada à espondilólise (3, 8), o que não acontece neste indivíduo.No conjunto da amostra, poderão tirar-se inferências no que respeita à consanguinidadede uma população.

I. Introdução

O sítio arqueológico do Laranjal situa-se no lugar de Cilhades (Torre de Moncorvo, distritode Bragança). Foi intervencionado no âmbito da implementação do AproveitamentoHidroeléctrico do Baixo Sabor (7).

II. Descrição dos casos

2.1. Caso 1: indivíduo da sepultura 150

Indivíduo adulto do sexo feminino, com + de 50 anos de idade à morte. Apresenta umafissura na pars interarticularis direita da L5 (fig. 2). Características observadas:

Pelas características observadas o diagnóstico mais provável é uma espondilólise. Estaconsiste numa fratura na pars interarticularis do arco neural vertebral, unilateral oubilateral (4, 5). A unilateral é a menos comum (1), como no indivíduo em estudo (Figs. 2 e3). Há casos em que se observou a fusão parcial ou total da fissura (2).Ocorre geralmente na coluna lombar e com maior incidência na L5 (85-95%) (4). Casosclínicos sugerem que é causada por stresse biomecânico, possivelmente influenciada poruma fragilidade congénita na estrutura da vértebra (9, 10). Esta patologia é observada em3-6% da população atual (1).Pode ocorrer associada a spina bifida occulta (1, 5) (não observável no indivíduo).A espondilólise, devido à instabilidade causada pela fratura, pode levar a um processo deespondilolistese (deslocamento da vértebra) (5, 8), mais frequente quando a lesão ébilateral (1, 2). Neste caso, o abatimento do corpo da L5, provavelmente causado pelalesão, poderá ter provocado um ligeiro deslizamento do corpo vertebral (Figs. 4 e 5 ).

III. Discussão

O estudo da coluna vertebral oferece-nos um leque de informações sobre o indivíduo e acomunidade onde este se insere. Deste modo, o registo das alterações da coluna vertebralé muito importante para o conhecimento das populações antigas.Estes dois indivíduos apresentam duas afeções da coluna comuns que afetaram aspopulações passadas e que se mantêm na atualidade. As duas patologias possuem umapredisposição genética. A espondilólise apresenta-a na fragilidade da pars interarticularisque a leva à fratura por stresse biomecânico. Ao contrário, a spina bifida occulta (SOB) écongénita. Ambas aparecem frequentemente associadas. Existem estudos que apontamuma correlação entre a spina bifida occulta e a espondilólise, alegando que a SOB podeaumentar o stresse na pars interarticularis (3). Em ambos os casos aqui apresentadosaparecem dissociadas. No caso 1, apesar de ser uma espondilólise unilateral, a patologiaparece ter progredido para a espondilolistese (num grau baixo), observável sobretudoentre a L4 e a L5. É provável que o indivíduo tivesse sofrido a fratura muito jovem e ainstabilidade na L5 ao longo dos anos fosse progredindo.No final do estudo, será importante verificar a frequência destas patologias nascomunidades em estudo (entre sexos, classes etárias, comunidades rurais e urbanas) ecomparar com outras comunidades medievais europeias (5,9).

IV. Bibliografia:

1. Beutler, W. J., Fredrickson, B. E., Murtland, A., Sweeney, C. A., Grant, W. D., & Baker, D. 2003. The Natural History of Spondylolysis and Spondylolisthesis.Spine, 28(10): 1027–1035.

2. Crawford, C.; Ledonio, C.; Bess, R.; Buchowski, J.; Burton, D.; Hu, S.; Lonner, B.; Polly, D.; Smith, J.; Sanders, J. 2014. Current Evidence Regarding the Etiology,Prevalence, Natural History, and Prognosis of Pediatric Lumbar Spondylolysis: A Report from the Scoliosis Research Society Evidence-Based MedicineCommittee. Spine Deformity, 3: 12-29.

3. Fredrickson B., Baker D., McHolick W., Yuan H., Lubicky J. 1984. The natural history of spondylolysis and spondylolisthesis. J Bone Jt Surg Am, 66:699–707.4. Gagnet, P.; Kern, K.; Andrews, K.; Elgafy, H.; Ebraheim, N. 2018. Spondylolysis and spondylolisthesis: A review of the literature. Journal of Orthopaedics, 15:

404-407.5. Mays, S. 2006. Spondylolysis, Spondylolisthesis, and Lumbo-Sacral Morphology in a Medieval English Skeletal Population. American Journal of Physical

Anthropology, 131: 352-362.6. Pereira, S., Sastre Blanco, J., Amorim, A., Roiz, A., Espí, I., Liberato, M., Cosme, S., Rodrigues, Z., Paniagua Vara, E. 2015. Espaços funerários no sítio de

Crestelos do Baixo Império à Idade Média (Mogadouro, Portugal). in Quirós Castillo, J. A., CastelhanosS, S. (Dirs.). Identidad y etnicidad en Hispania.Propuestas teóricas y cultura material en los siglos V- VIII (DAM 8), Vitória/Gasteiz: 161-180.

7. Santos, F.; Rosselló, M.; Santos, C.; Carvalho, L.; Rocha, F. 2016. Aspetos da morte no vale do Sabor. O mobiliário funerário Tardo Antigo das inumações doLaranjal de Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). Achegas à cronologia de uma necrópole de longa duração. Arqueologia Medieval, 13:17-34.

8. Urrutia, J.; Cuellar, J.; Zamora, T. 2016. Spondylolysis and spina bifida occulta in pediatric patients: prevalence study using computed tomography as ascreening method. Eur Spine J, 25: 590-595.

9. Ward, C.; Mays, S.; Child, S.; Latimer, B. 2010. Lumbar Vertebral Morphology and Isthmic Spondylolysis in a British Medieval Population. American Journal ofPhysical Anthropology, 141: 273-280.

10. Yurube, T.; Kakutani, K.; Okamoto, K.; Manabe, M.; Maeno; K.; Yoshikawa, M.; Sha, N.; Kuroda, R.; Nishida, K. 2017. Lumbar spondylolysis: A report of fourcases from two generations of a family. Journal of Orthopaedic Surgery, 25 (2): 1-5.

Fissura com os rebordos arredondados e suaves;Ausência de porosidade;

Fissura completa do processo espinhoso da L5 (Fig. 9);Fusão incompleta da linha posterior do arco ventral entre a S3 e S5 (Fig. 10);

Cedência do corpo da vertebral à esquerda;Curvatura lateral da coluna lombar (Fig.6);Patologia degenerativa (exceto no corpo);

Fig. 1: Localização geográfica do sítio arqueológico.

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Figs. 2 e 3: Fissura na pars interarticularis direita da L5; Fig. 4: Abatimento do corpo da L5 À esquerda; Fig. 5: Algum graude deslizamento do corpo vertebral – possível espondilolistese entre a L4 e L5. Fig. 6: Curvatura da coluna lombar àesquerda.

Fig. 7: Sacro e L5 em posição lateral/vertical, onde sevisualiza a spina bifida occulta;Fig 8: Sacro na posição posterior.

Fig. 9: L5 onde é visível a fissura no processoespinhoso.Fig 10: L5 na posição inferior onde se observa afissura do processo espinhoso.

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