Agnes Heller Em Perspectiva

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Estudos sobre Agnes Heller.

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  • Aspectos da teoria do cotidiano:

    Agnes Heller em perspectiva

  • Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul

    Chance ler: Dom Dadeus Grings

    Reitor: Ir. Norberto Francisco Rauch

    Conselho Editorial: Antoninho Muza Nai me

    Antonio Mario Pascual Bianchi Dlcia Enricone Jayme Paviani

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    Diretor da EDIPUCRS: Antoninho Muza Naime

  • Gleny Terezinha Duro Guimares (org.) Idlia Fernandes

    Marina Patrcio de Arruda Marisa S. Z. Mendiondo

    Michele Ruschel Ruthe Corra da Costa Schnorr Zlia Maria Ferrazzo Farenzena

    Aspectos da teoria do cotidiano:

    Agnes Heller em perspectiva

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    ~ EDIPUCRS

    Porto Alegre, 2002

  • EDIPUCRS, 2002

    Capa: Clarissa Furlan Zabka

    Preparao de originais: Eurico Saldanha de Lemos

    Reviso: dos Autores

    Editorao e composio: Suliani Editografia

    Impresso e acabamento: Grfica EPEC

    Dados Internacionais de Catalogao na Publ icao (CIP)

    H477 Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Heller em perspec-tiva I Gleny Terezinha Duro Guimares, org.; Idlia Fernandes ... [et al.].- Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 147 p.

    ISBN 85-7430-316-X

    1. Filosofia Hngara. 2. Heller, Agnes - Crtica e Interpre-tao. 3. Cotidiano - Aspectos Sociais. I. Guimares, Gleny Terezinha Duro. II. Femandes, Idlia.

    CDD 199.439 301.2

    Ficha Catalogrtica elaborada pelo Setor de Processamento Tcnico da BC-PUCRS

    Proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem autorizao expressa da Editora.

    EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681- Prdio 33

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    E-mail : [email protected]

  • Apresentao Jayme Paviani

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    A constituio de uma rea de conhecimento, especialmente de uma rea relativamente nova como a do Servio Social ou da Assis-tncia Social, requer uma adequada definio de domnio terico e metodolgico. Uma teoria cientfica, no sentido formal, um con-junto de enunciados logicamente coerentes a respeito de um deter-minado objeto; sob o aspecto material, as teorias podem ser classi-ficadas de diferentes modos, podem ser macro ou micro teorias. Microteorias so aquelas que pertencem a uma disciplina e, em ge-ral, s funcionam nos limites de suas possibilidades. Macroteorias so por natureza transdisciplinares. reas de conhecimento que tra-dicionalmente provm de conhecimentos de reas consolidadas co-mo a economia, a sociologia, a psicologia, a pedagogia, a filosofia e outras, requerem, ao mesmo tempo, o estudo de macro e micro teorias.

    A presente obra organizada pela professora Dra. Gleny Terezi-nha Duro Guimares, Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Hei-ler em perspectiva, pe-nos diante de uma macroteoria e, por isso, de grande relevncia para o avano dos conhecimentos cientficos na rea do Servio Social. uma teoria que pode apontar proble-mas e solues que, por sua vez, podero exigir a elaborao de ou-tras teorias, ainda mais especficas, para dar conta das exigncias da rea. Uma teoria uma especulao racional que possibilita a for-mulao de hipteses ou conjecturas objetivas e adequadas e, igualmente, possibilita mtodos de investigao eficazes e coerentes.

  • Os dois artigos miciais da organizadora da obra, professora Gleny Guimares, definem com clareza o conceito de cotidiano que a palavra-chave de todo o livro e apresentam o contexto do pen-samento de Agnes Heller ao investigar os conceitos do O no-cotidiano do cotidiano e o Cotidiano e cotidianidade: limite tnue entre os reflexos da teoria e senso comum. Os demais captulos re-digidos por Idlia Fernandes, Marina Patrcio de Arruda, Marisa S. Z. de Mendiondo, Michele Ruschel, Ruthe Corra da Costa Schnorr e Zlia Maria Ferrazzo Farenzena desenvolvem aspectos especfi-cos da teoria da cotidianidade, assim, oferecendo uma contribuio indispensvel para quem se dedica a essa rea de estudos e de atua-o profissional.

    Um dado notvel dessa obra coletiva o fato dos estudos e dos ensaios que formam seus captulos terem sido desenvolvidos a par-tir de uma disciplina ministrada no Programa de Ps-graduao em Servio Social, da PUCRS, enfocando a teoria do cotidiano da vas-ta obra de Agnes Heller. Se todas as disciplinas de nossos cursos de ps-graduao produzissem uma obra assim, haveria uma maior so-cializao dos conhecimentos cientficos. Essa indicao mostra ao mesmo tempo a natureza e o alcance dos estudos. Programas de en-sino que integram o ensino e a pesquisa, que refletem sobre o que est sendo estudado, realizam efetivamente a aprendizagem. Quan-do se pode pensar e usar o que est sendo aprendido, as informa-es so transformadas em conhecimento real.

    Se a vida cotidiana, como diz Agnes Heller, constitui a vida do homem inteiro, envolvendo todos os aspectos de sua individualida-de e de sua personalidade, espera-se que esses estudos, e a atividade de suas autoras, sejam tambm compreendidos e avaliados como uma reflexo sobre a prpria cotidianidade da investigao cientfi-ca. Por isso, s posso saudar mais essa contribuio na rea dos es-tudos do Servio Social. Fazer cincia um processo permanente. No importa se os conhecimentos ainda no amadureceram o sufi-ciente, o decisivo continuar a investigao, a busca do aprofun-damento dos temas, o rigor terico e metodolgico. Instaurado o processo preciso mant-lo vivo, sob a vigilncia da crtica e os cuidados da reflexo.

  • Sumrio

    --------~---------Introduo 9 1 O no-cotidiano do cotidiano 11

    Gleny Terezinha Duro Guimares 2 Cotidiano e cotidianidade:

    limite tnue entre os reflexos da teoria e senso comum 27 Gleny Terezinha Duro Guimares

    3 A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas 37 Idlia Fernandes

    4 O papel social do professor universitrio 61 Marina Patrcio de Arruda

    5 Institucionalizao do idoso: observncia ou transgresso de sistemas normativos? 83 Marisa S. Z. de Mendiondo

    6 Aproximando-se de Agnes Heller: interpretando sentimentos e afetividade 101 Michele Ruschel

    7 A questo cotidiana do trabalho e suas interfaces com a terceira idade 109 Ruthe Corra da Costa Schnorr

    8 A construo de preconceitos na diversidade humana 139 Zlia Maria Ferrazzo Farenzena

  • Introduo

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    s artigos apresentados a seguir, foram desenvolvidos a partir da disciplina "A Categoria do Cotidiano em Agnes Heller", ministrado no Programa de Ps-Graduao em Servio Social, para mestrandos e doutorandos. Esta disciplina vem sendo desenvolvida desde 1997.

    Para todos os alunos era a primeira vez que entravam em conta-to com a vasta literatura desta autora fascinante e como seus textos no so simples e pressupem conhecimentos tericos a priori de filosofia, um embasamento que a maioria dos alunos, formados em Servio Social, no possuem o aprofundamento necessrio nesta rea de formao.

    O primeiro desafio era pensar em elaborar um artigo, o que por si s j contm um grau de dificuldade, pois para muitos era a pri-meira vez que se dispunham a escrever. Neste momento contamos com a valiosa colaborao da Professora Dr Solange Medina, da Faculdade de Letras e atual Pr-Reitora de Graduao da PUCRS, que nos ministrou excelentes aulas de como se elabora um artigo.

    O objetivo dos artigos era realizar uma articulao entre um dos temas da teoria de Agnes Heller com a temtica estudada pelo alu-no, demonstrando ser possvel compreender um contedo a partir da teoria helleriana.

    Outra grande contribuio foi a do Prof. Dr. Juan Mosquera que tambm participou de alguns debates sobre o tema, trazendo uma interessante compreenso sobre a teoria dos sentimentos em Agnes Heller.

    Introduo 9

  • Ao introduzir a disciplina no programa, obtivemos tambm como resultado vrias produes tericas, tanto as dissertaes de mestrado como as teses do doutorado, comearam a utilizar pressu-postos tericos da teoria de Heller. A maioria dos alunos que escre-vem esses artigos tambm a utilizaram em suas produes acadmicas.

    Apesar de Heller desenvolver vrias temticas como a ps-modernidade, a teoria dos sentimentos, a questo do valor, etc., a temtica central neste livro recai sobre a teoria do cotidiano. Sabe-se que caracterstico desta autora, tratar seus temas de forma inte-grada; geralmente sua produo no aborda apenas um dos temas, mas ele se relaciona com todos os demais. Talvez por isso, alguns iniciantes considerem sua leitura difcil, pois tambm uma de suas caractersticas no ficar conceituando o que est dizendo, ela pres-supe que seu leitor j tenha um certo conhecimento sobre a temti-ca. Ela desenvolve suas idias, fazendo comentrios e crticas a ou-tros posicionamentos, para depois apresentar o seu. Um aluno desa-visado, pode pensar que ela disse alguma coisa, quando na verdade ela est construindo argumentos suficientes para contestar uma de-terminada posio. Portanto, a leitura de suas obras merece cuidado e anlise. No possvel devorar seus livros, pois eles so digeridos lentamente em funo do grau de complexidade e relaes feitas, tanto no que diz respeito ao contedo, como autores, posies, his-tria, etc. Cada vez que se rel uma obra, mais coisas se apreende e se "enxerga" o que antes tinha passado despercebido, pois temos que considerar o prprio amadurecimento intelectual dos leitores que passam cada vez mais a fazer novas relaes, portanto novas anlises e interpretaes.

    O fato de tentarmos traduzir suas idias para um mbito nico e traduzir seus conceitos, vai contra a prpria produo da autora. No entanto, fazemos isso com uma preocupao didtica para facilitar a leitura dos novos leitores, no queremos que a conseqncia disso seja um "engessamento" da teoria da autora, mas apenas um estmulo para que o leitor v fonte, entenda com maior facilidade e compreenda as contribuies da genialidade desta autora.

    Esperamos que o conjunto destes artigos sirva de estmulo aos futuros iniciados, leitores hellerianos, para que possam aprofundar cada vez mais seus estudos a partir dessa brilhante terica contem-pornea.

    1 O Aspectos da teoria do cotidiano

  • 1

    O no-cotidiano do cotidiano Gleny Terezinha Duro Guimares*

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    A teoria da cotidianidade procura trazer novos elementos para se pensar o prprio cotidiano e que permite ir alm das formas de pen-samento do senso comum. Pois o prprio nome sugere que o coti-diano, palavra que vem do latim cotidie ou cotidianus, significa to-dos os dias, o dirio, o dia-a-dia, o comum, o habitual.

    Faremos uma diferena para nossos interlocutores: quando nos referimos ao cotidiano, estamos falando sob o prisma da represen-tao social do dia-a-dia, ou seja, falar em cotidiano num primeiro momento nos leva a pensar diretamente em aes que dizem respei-to a nossas rotinas, a tudo que se realiza empiricamente, repetida-mente, o viver o dia-a-dia de uma forma quase que banal.

    No entanto, pensar o cotidiano de um prisma terico implica descobrir o incomum no repetido. descobrir que a essncia do co-tidiano est no no-cotidiano ou na cotidianidade.

    Quando nos referimos cotidianidade estamos pressupondo uma teoria que evoca uma srie de elementos que a comparam, cujos conceitos baseiam-se principalmente na fi losofia. Neste senti-do temos a contribuio de vrios autores. 1

    Prof" Dr em Servio Social da PUCRS. 1 Vrios autores, desde o incio do sculo passado, tm teorizado sobre o cotidiano.

    Numa perspectiva fenomenolgica encontramos Mafesoli como representante. Na teoria do materialismo histrico encontramos os autores Lefebvre, Marcuse, Kosik,

    O no-cotidiano do cotidiano 11

  • Para Heller a vida cotidiana a constituio e reproduo do prprio indivduo e conseqentemente da prpria sociedade, atravs das objetivaes. O processo de objetivao se caracteriza por essa reproduo, que no ocorre do nada para se efetivar, ela pressupe uma ao do homem sob o objeto, transformando-o para seu uso e benefcio. Assim tudo pode ser objetivado, pois tudo est em cons-tante mutao, em todas as dimenses da vida. Por ex., a rvore transformada em papel; o leite se transforma em bolo; o tijolo se transforma em casa; o recm-nascido balbucia e se transforma na criana que domina a linguagem me. Portanto tudo o que se realiza objetivao. Porm estas objetivaes no ocorrem no mesmo n-vel.

    Chama-se de objetivaes em si aquilo que constitui a coisa por si mesma, ou seja, ela aquilo porque no outra coisa. Ex.: a me-sa mesa porque temos uma representao do que ela significa, tanto em nossa linguagem, quanto em nossa cultura, que lhe d um determinado uso social. E sabemos que mesa no armrio, assim como no todas as outras coisas. Logo, a mesa possui uma consti-tuio em si que a faz ser mesa independente de seus atributos co-mo forma, cor, textura, volume, densidade, etc.

    A objetivao em si que est presente no cotidiano do senso comum e a que cria as condies para vivermos em determinada sociedade com seus costumes, ritos, etc. Adquirir e dominar a lin-guagem materna uma objetivao em si, portanto tudo aquilo que nos rodeia e que transformado para nosso uso uma objetivao.

    Se pensarmos uma cultura como a dos ndios, que utilizam a palha seca para construir o barco, os cestos, o invlucro para arma-zenar as comidas, suas casas, etc., percebemos o processo de obje-tivao quando ocorrer a transformao da palha em outros objetos, cuja ao s possvel, porque realizada pelo homem. Temos a uma objetivao em si.

    A objetivao em si "indispensvel a todo homem enquanto processo formativo em si mesmo, constante e permanente, de que o homem necessita apropriar-se como condio bsica para a vida na sociedade e na poca em que vive" (Guimares, 2000, p. 29).

    Luckcs e Heller. Um estudo mais detalhado sobre esses autores encontra-se no prximo artigo "Cotidiano e cotidianidade: limi te tnue entre o senso comum".

    12 Aspectos da teoria do cotidiano

  • Para Heller, as objetivaes em si, compreendem basicamente a apropriao dos instrumentos e produtos, costumes e linguagem. Os instrumentos e produtos so tudo aquilo que est nossa disposio na sociedade; por exemplo, a colher, o microcomputador, o caf, o arroz, etc. Os costumes dizem respeito quilo que apropriado para a sociedade em que se vive, como tomar chimarro, tomar banho diariamente, dar trs beijos no rosto para cumprimentar, etc. E sem a linguagem no possvel a comunicao; portanto, domin-la uma questo de sobrevivncia.

    Essas objetivaes em si proporcionam "sucesso" na vida coti-diana, ou seja, as pessoas conseguem sobreviver em sua sociedade. Por exemplo, se um esquim chegasse hoje em nossa cidade, pro-vavelmente teria muita dificuldade em se comunicar, comprar ali-mento, sacar dinheiro no banco, tomar chimarro. Portanto, se me aproprio de algo, sou capaz de lidar com isso e conseqentemente terei sucesso em seu uso.

    Explicando melhor: o conjunto das atividades que permitem a reproduo do indivduo podem ser chamadas como as caractersti-cas da vida cotidiana, porque dizem respeito s particularidades humana. Estas caractersticas expressam a forma como os indiv-duos pensam, agem e se relacionam na sociedade, assim classifica-das: heterogeneidade, hierarquia, repetio, economicismo, espon-tanesmo, probabilstica, entonao, precedente, imitao, pragma-tismo, analogia, juzos provisrios como preconceito e ultragenera-lizao.

    A heterogeneidade se caracteriza por sermos todos diferentes; no h pessoas iguais, a alteridade a partir do singular.

    O cotidiano se baseia numa escala de valores que lhe do uma hierarquia, pois no podemos fazer tudo ao mesmo tempo, nem es-colhermos tudo. necessrio, selecionar e as escolhas acabam por determinar uma hierarquia de valores e por conseqncia de aes.

    A repetio est presente em dois nveis, tanto no particular, escovamos os dentes todos os dias e vrias vezes ao dia; seu proce-dimento se caracteriza por uma repetio de movimentos j treina-dos e assimilados, a ponto de podermos realiz-lo mesmo "esque-cendo", isto , sem concentrao e sem estar pensando nele. aqui-lo que fazemos ao trancar uma porta sem pensar; depois de algum

    O no-cotidiano do cotidiano 13

  • tempo temos que voltar e verificar se realmente fechamos a porta ou desligamos o ferro. A ao estava ligada ao ato repetitivo, no "automtico".

    O economicismo, permite que sejamos mais rpidos e breves no decorrer da vida cotidiana, como, por exemplo, para obter alimen-tos, no preciso plantar, esperar crescer, colher, vou direto ao su-permercado e compro o que desejo. Portanto, o tempo e o esforo dispensados a uma atividade bem menor, porque, a cada inovao facilita o uso prtico na sociedade. Cada vez mais em que a tecno-logia se aprimora, mais o uso das coisas se tornam facilitadas e economizam tempo, estrutura, pois cada vez, no reinvento a roda, utilizo direto o ltimo conhecimento aplicado a ela e me aproprio do seu uso. Aquilo que pode ter levado anos para ser descoberto, depois que est em uso na sociedade, basta alguns minutos para uti-liz-lo.

    O espontanesmo que est presente no comportamento do coti-diano, diz respeito s aes no planejadas; elas se caracterizam pe-lo seu espontanesmo e em decorrncia daquele momento especfi-co que est sendo vivido, sem considerar as conseqncias futuras. A opo imediata, a vontade satisfeita no ato, o comportamento natural e espontneo em oposio ao racional ao planejado, ao preventivo. Na linguagem popular "se faz e depois se v o que acontece", "o que vale o aqui e o agora" e em funo disso os comportamentos so definidos e as aes so gerenciadas.

    A probabilidade o que caracteriza a ao e o pensamento em-prico, ou seja, para realizar uma ao no o fao atravs da fsica e da matemtica, calculando o tempo, a distncia, etc., simplesmente se faz. Por exemplo, para subir uma escada, ningum pra e calcula o tamanho, o ngulo, as medidas para poder subir, simplesmente se sobe a escada, e se no meio tiver um degrau com distncia menor e no for visto, a pessoa tropea. O mesmo sucede quando se atraves-sa a rua, empiricamente se percebe se d ou no para atravessar, embora se saiba dos riscos de acerto e erro. Se estiver certo, atra-vessa, se errado, atropelado. Mas ningum calcula a distncia, a velocidade, etc. Portanto, a probabilidade a possibilidade de uma ao emprica dar certo ou errado e geralmente o sucesso alcana-do e esse ato passa a ser sempre repetido, isto , posso passar a vida

    14 Aspectos da teoria do cotidiano

  • toda executando aes sem nunca ter feito um clculo sequer, e sempre ter xito, at que um dia, um dos mesmos sentidos j no to alerta, erra na escolha da possibilidade ...

    A entonao aquele jeitinho dado por cada um, o tom dei-xado pela pessoa, ou melhor, a marca da pessoa. s vezes a gente diz: "isso s podia ser coisa do fulano", porque est impregnado de sua entonao que somente ele poderia dar. Assim, as pessoas po-dem fazer as mesmas coisas, podem at imitar, clonar, dublar, mas no ser a mesma coisa, pois tem a marca registrada de quem o fez, e que somente poderia ter sido feito daquela maneira por aquela pessoa. a irrepetibilidade da singularidade de cada um. Assim como todo mundo conhece o "jeitinho brasileiro", que o faz dife-rente das outras nacionalidades. Isso entonao e que faz parte da prpria constituio da identidade, seja de um povo, como de uma pessoa. A entonao no permite que ningum seja substitudo, po-de ocupar o mesmo lugar ou funo ou espao, mas jamais ser igual, pois cada um caracterizado por sua nica entonao, sua marca registrada. Assim, todos tm polegar, porm a entonao do polegar so as digitais, ningum consegue ter as mesmas curvas e caractersticas. A entonao marca a diferena em nosso corpo fsi-co, biolgico, psicolgico e mental. Eis o paradoxo: somos uma es-pcie de iguais, no entanto, totalmente diferente uns dos outros.

    Precedente significa uma ao que j precedida de outras, que j aconteceram anteriormente. uma caracterstica que se ope ao novo, a criao e por isso que, quem fica preso aos precedentes, ao j estabelecido, tem muita dificuldade de criar, soltar a imaginao, pois vale mais colocar tudo dentro dos quadrados. Podemos dizer que a nossa justia geralmente baseia-se nos precedentes, nos j acontecidos e que tornam a ser reproduzidos. No geral, qualquer procedimento de rotina, seja a de um dentista ou a de um vendedor ambulante acontece sempre da mesma forma, precede um compor-tamento de sempre fazer uma obturao do mesmo jeito ou de con-vencer o cliente a comprar da mesma maneira. Se todo o dia re-crissemos uma tcnica diferente de ao, certamente o precedente continuaria existindo, porque, no se cria do nada, at mesmo a criao so novas combinaes de velhos precedentes. Porm, o pe-rigo e a tendncia geral do precedente a acomodao e a perma-

    O no-cotidiano do cotidiano 15

  • nncia da mesmice. Tudo aquilo que se sabe fazer, feito do mes-mo modo. At o trajeto de carro que realizamos, tem a tendncia a ser o mesmo de sempre, depois que se cristalizou o precedente des-te trajeto. No senso comum este precedente traduzido quando as pessoas dizem "se deixar, o carro vai sozinho para casa".

    A imitao pode ser considerada como a primeira ao do coti-diano, pois antes de os sujeitos terem conscincia, obedecerem a regras e normas, etc., existe o comportamento que se constitui por imitaes e que se faz presente a partir dos primeiros anos de vida das pessoas. "A imitao ou mimese, nos termos hellerianos, se constitui no primeiro momento de assimilao das relaes sociais" (Guimares, 2000, p. 57). A imitao constitui-se numa objetivao em si, porque, a partir da imitao de um comportamento ou pen-samento, passo a me apropriar de algo ou de alguma coisa. Esta ca-racterstica pode permanecer presente durante toda a vida das pes-soas, pois um comportamento, que muitas vezes reforado so-cialmente. Um exemplo concreto a moda, quando todos passam a se vestir e calar igual; tambm a imitao de comportamento de grupos como os tatuados ou os que s vestem preto, e assim por di-ante. Esta caracterstica traz aos sujeitos uma sensao de pertenci-menta e aceitao daqueles grupos com os quais ele se relaciona ou os imita. O sistema capitalista, possui uma particularidade em rela-o a esta caracterstica, pois ele a incentiva atravs do consumo, e todos passam a consumir a mesma coisa, se no conseguem, sen-tem-se excludos. Esta caracterstica pode ser banal e ingnua (imi-tar uma criana chupando bico) como pode se tornar perigosa (basta lembrarmos dos seguidores de Hitler, ou daqueles que assistem a um filme, o imitam nas aes matando vrios na escola) e ela se torna mais perigosa, quando praticada em grupo, pois a tendncia imitar o que o outro do grupo faz, e como fao parte do grupo, tam-bm o imito (basta lembrar o grupo de homens que colocou fogo no corpo de um ndio que dormia na rua).

    O pragmatismo aquela ao baseada num pensamento essen-cialmente prtico, emprico, que no necessita de teorias que expli-quem, pois a prtica diria confirma que aquilo o verdadeiro. o que normalmente chamamos de ao pela ao, no existe raciona-lidade. tambm aquilo que caracteriza a dicotomia entre ao e

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  • discurso, pois pratica uma coisa, mas se tiver que explicar cientifi-camente, pode significar outra coisa. Ou seja, a ao baseada na prtica e que permite sucesso em sua vida diria. Nesta caractersti-ca existe uma tendncia no-reflexo ou crticas dos atos, pois se a prtica confirma o sucesso, porque considerado cotTeto e por-tanto uma prtica que se reproduz permanentemente.

    A analogia uma caracterstica que se manifesta para manter a repetio de um mesmo procedimento. Por ex., se resolvi uma si-tuao a partir de uma atitude, tentarei resolver as demais situaes que aparecem com o mesmo comportamento. Neste sentido, a ana-logia se relaciona com os juzos provisrios, pois ao no considerar uma crtica da ao, pode manter um padro de comportamento preestabelecido e preconceituoso. a utilizao de um saber popu-lar para resolver qualquer situao enfrentada, uma vez que esta te-nha dado certo ou signifique sucesso nos resultados almejados.

    Os juzos provisrios so assim considerados porque no pos-suem nenhuma teoria que os sustentem, ou seja, so pensamentos empricos baseados na experincia cotidiana e social das pessoas, sendo que a prtica os confirma como verdadeiros.

    A base desses juzos o senso comum, um pensamento cotTi-queiro que no "conhecedor de causa", geralmente ele se confir-ma porque os outros acreditam e assim tambm passa a ser acredi-tado. Ele determinado pelas experincias dirias, pela convivncia com grupos que compartilham de um mesmo juzo provisrio.

    Segundo Heller os juzos provisrios podem ser de dois tipos: os juzos ultrageneralizadores e os preconceitos. A caracterstica bsica que os diferencia que o primeiro est baseado na confiana e o preconceito na f. A f se caracteriza por sua inabalvel consis-tncia, ou seja, no existe argumento que os faa mudar de posio, um acreditar cego que nem sempre tem justificativa ou razo. Acredito porque acredito. Baseia-se na certeza absoluta de que aquilo em que acredita o certo e os demais devem tambm faz-lo. Um exemplo tpico so os crentes que acreditam de olhos fecha-dos que eles detm o caminho da salvao. tambm uma certeza intuitiva que no requer explicaes. A f tambm se baseia nos sentimentos de amor e dio, sendo identificado aquilo que verda-deiro eu amo, aquilo que eu no compartilho, eu odeio.

    O no-cotidiano do cotidiano 17

  • A ultrageneralizao, alm de se basear na confiana, o seu significado engloba a todos. Pelo fato de que se fui roubado por um menino de rua, vou achar que todos os meninos de rua so ladres. uma justificativa baseada numa experincia prpria, cujo concei-to se generaliza para uma categoria, envolve tambm o sentimento de confiana, pois nunca mais terei confiana nos meninos de rua.

    Estas caractersticas acabam dando sucesso, porque as aes do cotidiano so conseguidas. Todas as caractersticas se relacionam entre si e acabam reproduzindo o indivduo porque se realizam atravs das objetivaes em si, ou seja, o homem se reproduz a si mesmo e em ltima instncia, sua prpria espcie.

    Segundo Heller (1987), a reproduo da vida cotidiana, por ex-celncia deveria ser a famlia, como ncleo central e natural, ou se-ja, a vida cotidiana o lugar natural de reproduo das caractersti-cas da particularidade da vida cotidiana, isso ainda assegurado nas caractersticas como imitao que envolve os primeiros anos de vi-da.

    Porm a autora nos mostra que, historicamente, atravs das prprias conquistas da mulher (movimento feminista, revoluo se-xual) e todas as suas conquistas enquanto lei, a partir do surgimento da sociedade civil (garantindo direitos como voto, emprego, divr-cio, etc.) paradoxalmente acaba por "tirar" esta funo social e afe-tiva da prpria famlia e sua reproduo da vida cotidiana.

    Hoje, como as caractersticas da famlia mudaram radicalmente, ou seja, no se tem mais uma famlia constituda e patriarcal, onde o marido manda, a esposa obedece e cria os filhos. A famlia est assentada em novas bases e composies, algumas so constitudas de apenas mulheres: a me, a av e os filhos; outras so compos-tas por geraes distintas como avs e netos; como tambm um agregado de vrias famlias que aos novos casamentos vo se agru-pando com outros filhos e parentes. Hoje, a maior parte do tempo no passado em famlia e sim para muitos na rua, ou no trabalho, ou na escola, ou com os amigos. Enfim, as formas de reproduo da vida cotidiana se tornaram de mltiplas fontes. Mas fato que elas continuam se reproduzindo e caracterizando as aes e pensamen-tos que compem a particularidade da vida cotidiana de cada um e de todos.

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  • "O fenmeno que se tem pela frente o da dissoluo da famlia. A casa no mais o lar, mas um albergue [ ... ].o progresso se fez acom-panhar do casamento de curta durao [ ... ] vo se difundindo cada vez mais as relaes livres e temporrias [ ... ]. At as responsabilida-des desapareceram. As pessoas, enfim independentes, no as parti-lham mais: um no responsvel pelo outro e nem pelos fi lhos [ ... ] privam-se de sua importante funo de reproduzir a vida cotidiana da famlia" (Heller, 1987, p. 17 -19).

    A superao do cotidiano

    O extraordinrio do cotidiano superar o prprio cotidiano, em outras palavras: "o extraordinrio do cotidiano era a cotidianidade finalmente revelada[ .. .]" (Lefebvre, 1968, p. 15).

    Esse extraordinrio inclui a dimenso da cotidianidade ou do no-cotidiano, porque um cotidiano que tem que extrapolar sua particularidade, sua umbilicalidade, sua centralidade.

    O no-cotidiano pressupe relacionar-se com objetivaes pa-ra-si, que se direcionam ao humano genrico, espcie humana. O elemento que o faz pertencer espcie a conscincia humana, pois seno, o que o conduziria seria a "atividade vital animal".

    A conscincia por si s, no garante o processo de superao. A conscincia no mbito da particularidade tem como objetivo a auto-conservao da espcie, garantindo assim a reproduo da particu-laridade. A conscincia da genericidade desempenha uma funo bem diferente, que colocar de forma consciente a ligao da parti-cularidade com a genericidade.

    Na perspectiva Helleriana (1991) algumas reas cognitivas que, por excelncia, compreendem as objetivaes genricas para-si, so a filosofia, as artes, a moral, a cincia. A filosofia baseia-se na crti-ca da realidade, a arte baseia-se na esttica, a moral na base da ao do homem, a cincia baseia-se no conhecimento. Portanto nenhuma dessas reas se efetivam na reduo do emprico e sim na conscin-cia mxima dos atos do ser humano e na sua prpria essncia. " um contato consciente e intencional com a genericidade" (Guima-res, 2000, p. 30).

    A arte considerada uma dimenso do no-cotidiano, porque atravs dela possvel liberar a criatividade e a imaginao, pos-

    O no-cotidiano do cotidiano 19

  • svel romper com regras e normas estabelecidas, ela representa a fronteira sem limites, onde tudo possvel a todos, portanto, em igualdade de condies. uma dimenso que representa o rompi-mento com o institudo, a ruptura com as amarras do cotidiano par-ticular; o grande "vo" do homem.

    Segundo Heller, esse processo no pode ser dimensionado a partir da tica da criao ao nvel do particular, mas como conse-qncia do processo histrico. Ela cita como exemplo, o rompimen-to com a era do pr-moderno, pois "depois que a grande transfor-mao terminou e o arranjo social moderno foi considerado natural, a velocidade da inovao artstica tambm diminuiu e a era da grande produo artstica terminou" (1999, p. 17).

    interessante observar que, para a autora esse tipo de coment-rio possvel, porque uma "percepo ps-moderna" de como analisamos e interpretamos os fatos ou como "o mundo registra este estado de coisa". Dito em outras palavras, a ps-modernidade a forma como percebemos e concebemos a viso de modernidade e pr-moderno.

    A cotidianidade que consegue a supremacia atravs da arte, se torna grandiosa.

    "[ ... ] nossa vida cotidiana realmente cinzenta, mesquinha, e ento inventamos um mito que fala de uma vida que no mesquinha, que grandiosa e que, talvez, no tenha nunca existido. [ ... ] Esse romantis-mo inveno nossa. S pode haver para ele um tipo de remdio: tor-nar mais 'grandiosa' a prpria vida tal como , desenvolver as formas da grandeza humana nas circunstncias existentes, transformar a vida prosaica em poesia. S assim no teremos mais necessidades de mi-tos" (Heller, 1982, p. 195). A arte se ope a uma vida cotidiana que acredita em mitos. A

    vida cotidiana quando "cinzenta e mesquinha" que se tem ne-cessidade da busca de mitos, etc.

    Em relao filosofia, ela pode ser uma das formas de supera-o do cotidiano porque uma das caractersticas da filosofia "cri-ticar a inessencialidade do ser".

    "A filosofia uma utopia racional que ordena o mundo segundo o cri-trio de dever-ser do Bem e do Verdadeiro. Ela constitui o seu Bem e Verdadeiro, o seu valor supremo, que tem por misso guiar o homem,

    20 Aspectos da teoria do cotidiano

  • indicar-lhe como deve pensar, como deve agir, como deve viver. A utopia da filosofia uma utopia da racionalidade com relao ao va-lor" (1983, p. 54). "[ ... ]a funo da filosofia como satisfao do carecimento de raciona-lidade com relao ao valor, de uma racionalidade liberta de precon-ceitos" (1983, p. 55). tambm funo da arte acabar com os preconceitos; por isso

    Heller diz que "em determinado tipo de recepo parcial - a recep-o iluminadora - a arte e a filosofia passam ser funcionalmente equivalentes" (1983, p. 55).

    A objetivao mediadora entre a em-si e para-si, constitui a ob-jetivao para-ns.

    O homem no pode viver sempre na esfera do no-cotidiano, ou seja, no passar o tempo todo num processo de superao da sua relao de indivduo com as formas de atividade que lhe do suces-so e mobilidade na vida cotidiana. Somente um homem excepcio-nal, um gnio, que se mantivesse sempre superando as experincias da vida cotidiana que estaria na esfera do no-cotidiano. Esta si-tuao muito rara e dos gnios que conhecemos atravs da hist-ria, como Beethoven e outros, por certo tambm faziam a relao com a particularidade.

    Ento, nosso desafio enquanto profissionais, tentar atingir e atuar na esfera da tenso. Muitos casos podemos citar, como de uma senhora que surda, cega e muda, mas mora sozinha, limpa sua casa e ptio, cozinha, enfim, realiza tudo como se a falta dos sentidos no lhe faltassem. Isso exemplo de superao. Exemplo de pessoas cegas e com outras deficincias que conseguem levar uma vida normal, isto , realizam tudo como se aquele limite fsico no existisse.

    Um dos aspectos ressaltados por Heller, de que sua proposta est voltada para a liberdade, portanto se contrape a todas as for-mas que levam a relaes do tipo de escravido. Exemplo do quan-to somos escravos no cotidiano so muitos, por exemplo o depen-dente qumico, que se torna escravo do hbito; da mulher que sofre violncia em casa e escrava da dependncia econmica do mari-do, etc.

    O no-cotidiano do cotidiano 21

  • "J que imagino a nova forma de vida como uma forma livre, no consigo imaginar a possibilidade de que a construo dessa nova for-ma de vida seja obra de homens que se tornam escravos de um hbi-to" (1982, p. 189). Portanto, o cotidiano ao nvel da particularidade pode estar

    amarrado a todo o tipo de dependncia ou escravido, de formas su-tis que muitas vezes nem temos conscincia delas, porm no mbito do no-cotidiano, estas amarras so rompidas, so inescrupulosa-mente arrancadas, porque o que prevalece a autonomia e a liber-dade.

    Segundo Heller, "devemos desenvolver formas de vida genera-lizveis" (1982, p. 190), em outras palavras significa diversidade no que se faz.

    Uma outra questo que atravessa a vida cotidiana so os movi-mentos feministas , que deles Heller a favor, desde que seus obje-tivos de luta sejam pela igualdade entre homens e mulheres. Geral-mente as mulheres que j conseguiram uma independncia financei-ra, uma carreira, no tm tanta necessidade de participar destes mo-vimentos. Porm, aquelas mulheres que no tiveram acesso cultu-ra e independncia financeira, que as deixa escravas de seus mari-dos, estas tm maior necessidade de participar destes movimentos feministas e constitu-los; pois "na maioria dos casos, as mulheres instintivamente se calam quando os homens falam, aceitando assim o papel predominante deles, [ ... ] e que, no fundo, aceitaram por muito tempo o silncio e, por causa disso no so capazes de se ex-pressar" (1982, p. 196).

    A dimenso do no-cotidiano, passa por elemento essencial que a moral nas aes. Porm no podemos entender o que Heller diz se pensarmos a partir de pressupostos de moralidade ou de classifi-caes naquilo que moral ou no. Esses pressupostos do senso comum, no servem para se compreender a teoria helleriana. Por-tanto necessrio suspender esta concepo e estar aberto para en-tender que a moral uma dimenso da ao que ir fazer a media-o entre o cotidiano e o no-cotidiano.

    a esfera que mantm a tenso permanente entre estes dois elementos do senso comum e da superao. O objetivo no a pie-

    22 Aspectos da teoria do cotid iano

  • nitude e sim a manuteno nesta faixa de tenso entre o genrico e o particular.

    A moral pressupe valores que se baseiam na conscincia tanto tica quanto social e que acabam por definir toda ao e comporta-mento. Ou seja, a moral subjaz toda ao. Porm a grande diferena est em esta ao ser ou no do cotidiano particular. Para que ela se caracterize pela no-cotidianidade necessrio que a ao tenha um contedo moral.

    Segundo Heller (1991 , p. 133-138), existem quatro fatores que caracterizariam o contedo moral das aes, a saber: a elevao das motivaes particulares, que se definiriam por uma opo ao que se refere genericidade em oposio a sua particularidade; a escolha de fins e contedos, voltados genericidade, ou seja, os fins e con-tedos da ao no devem ser definidos pelo interesse do eu parti-cular; a constncia na elevao s determinadas exigncias, isso significa que, buscar a superao dos interesses da particularidade deve ser uma opo constante e busca consciente, no deve ser um impulso de momento e a finalmente a capacidade de aplicar estas exigncias em todas as situaes de vida, ou seja, uma busca consciente desta elevao que deve ter aplicabilidade nas situaes concretas da vida, no uma dimenso puramente etrea ou abstra-ta, ela deve se materializar no prprio cotidiano.

    A teoria da cotidianidade est esquematizada na Figura 1.

    O no-cotidiano do cotidiano 23

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  • Referncias bibliogrficas GUIMARES, Gleny T. D. Historiografia da cotidianidade: nos labirintos do discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. HELLER, A. Uma crise global da civilizao: os desafios futuros. In: --- et ai. A crise dos paradigmas em cincias sociais e os desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.

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    O no-cotidiano do cotidiano 25

  • 2

    Cotidiano e cotidianidade: limite tnue entre os reflexos da teoria

    e senso comum

    Gleny Terezinha Duro Guimares*

    --------------------

    objetivo deste artigo compreender a gnese da discusso so-bre o tema do cotidiano, pois, vrios autores j contriburam com este debate. O importante identificar suas concepes e diferen-as, podendo desta forma se perceber no que se identificam ou dife-renciam da contribuio de Agnes Heller.

    Foram escolhidos textos de autores que tradicionalmente so considerados da corrente marxista. A anlise realizada, diz respeito exclusivamente ao que se referem teoria do cotidiano, portanto no estamos nos propondo a uma anlise de toda a obra desses au-tores. Os textos so: Lefebvre (1968), A vida cotidiana no mundo moderno; Kosic (1963), Dialtica do concreto; Lukcs (1966), Es-ttica.

    A discusso sobre o cotidiano no se inicia com a sistematiza-o que reconhecidamente lhe dada por Lefebvre, na dcada de 40, tambm no se restringe a autores marxistas ou neomarxistas. O tema tambm est presente em outras perspectivas como a fenome-nolgica e socioantropolgica. Muitos autores, em suas produes, nas artes, na literatura, no cinema, entre outros, foram inspirados

    Prof" Dr em Servio Social da PUCRS.

    Cotidiano e cotidianidade 27

  • para retratar, relatar e dimensionar aspectos da vida cotidiana, desde a ao mais concreta at as mais abstratas e sentimentais. O cotidia-no configura-se como a fonte primeira da criao e da inspirao dos mais diversos autores e artistas.

    Lefebvre ao teorizar sobre o cotidiano no mundo moderno, busca demonstrar atravs de personagens de destaque da literatura alguns aspectos que marcaram cenrios distintos da vida cotidiana. Ulisses, personagem de Homero na obra "Odissia", retrata a vida cotidiana da Grcia Antiga entre o sculo 8 e 7 aC. Mesmo assim, a cotidianidade acaba sendo negada, porque Ulisses aparece como heri, como mito, como a transfigurao do homem em sobre-humano, como o "antpoda da nanao que articula figuras estereo-tipadas" (Lefebvre, 1968, p. 7).

    Um parmetro comparativo utilizado a narrativa de Joyce, uma obra da literatura da modernidade, em que o autor procura en-tender o homem a partir da histria do incio do sculo XX. Estes personagens, embora anos os distanciem, possuem um aspecto em comum, que a revelao do cotidiano de uma forma mtica, de um imaginrio que encobre e revela a riqueza escondida do cotidiano ou de um mundo real, duro e emprico, relatado pela escrita metaf-rica. Joyce e Ulisses retratam o expoente, o incomum que traduz o prprio comum da vida cotidiana, sendo assim, o cotidiano em si to banalizado que se torna, ao mesmo tempo, insignificante. Sendo o cotidiano a fonte primeira de tudo, torna-se significante, na medi-da em que traz tona sua prpria insignificncia.

    O contnuo vir-a-ser heraclitiano, entre objetividade e subjeti-vidade, j traduzia os movimentos cclicos, inepetveis e alienares, que caracterizam a cotidianidade.

    "O conceito de cotidianidade provm da filosofia e no pode ser compreendida sem ela. Ele designa o no-filosfico para e pela filo-sofia [ ... ]. O conceito de cotidianidade no vem do cotidiano nem o reflete: ele exprime antes de tudo a transformao do cotidiano vista como possvel em nome da filosofia. Tambm no provm da filoso-fia isolada; ele nasce da filosofia que reflete a no-filosofia, o que sem dvida o arremate supremo da sua prpria superao!" (Lefeb-vre, 1968, p. 19).

    28 Aspectos da teoria do cotidiano

  • Na perspectiva lefebvriana, o nico meio possvel de se analisar o cotidiano, de desvelar a sua essncia ou desnudar a sua decadn-cia atravs da filosofia. O autor chama a ateno para alguns as-pectos: a filosofia por si s, deslocada do cotidiano, como um pa-tamar superior passvel de anlise, torna-se uma filosofia alienada. Ao mesmo tempo, se o cotidiano ficar isolado em si mesmo, se apresentando como no-filosfico, caracteriza-se como cotidiano alienado.

    O desafio posto para que no haja a bipolaridade pendular entre cotidiano e filosofia "gerar" a fuso circular entre ambos. pen-sar o cotidiano a partir da reflexo filosfica mostrando a dualida-de, riqueza e misria do mesmo.

    Lefebvre, numa crtica ao sistema capitalista, observa que a vi-da cotidiana da modernidade, em seus diversos "tentculos", domi-na atravs da tirania da moda, do consumo, da opresso sexual, da publicidade, etc. Apresenta como sada a "revoluo cultural per-manente" onde a funo da filosofia definir uma revoluo terica desencadeadora de uma revoluo cultural em vrios segmentos: a revoluo sexual, a revoluo urbana e a revoluo da dominao do cotidiano.

    Na metafsica da vida cotidiana, para Kosik, o elemento pri-mordial da economia adie Sorge- a "preocupao com". A preo-cupao, neste contexto, seria o elemento que perpassa todas as re-laes objetivas e subjetivas da vida cotidiana e que do mobilidade e xito s aes dirias.

    A ocupao e a preocupao esto presentes em todas as ins-tncias da vida diria e, na viso kosikiana, isso expressa a

    "prxis das operaes dirias, em que o homem empregado no sis-tema das 'coisas' j prontas, isto , dos aparelhos, sistema em que o prprio homem se torna objeto de manipulao. A prxis da manipu-lao transforma os homens em manipuladores e objetos de manipu-lao" (Kosik, 1963, p. 64). Na vida cotidiana, o fato de o homem ter xito nas operaes

    dirias, seja atravs dos hbitos, das aes repetitivas, da realizao de alguma(s) atividade(s), traduz apenas uma forma de manipulao do "ethos" do sistema, como da reproduo da prpria manipula-o, o que ele chamaria de uma "prxis no seu aspecto fenomnico

    Cotidiano e cotidianidade 29

  • alienado", isto , uma forma utilitarista de fazer uma determinada apropriao da realidade.

    A prxis utilitarista, segundo o autor, consiste nas aes que permitem mobilidade ao homem no sistema de cdigos e usos his-toricamente estabelecidos em determinada poca e local. Essas aes so direcionadas por um conjunto de representaes ou cate-gorias do senso comum e proporcionam uma mobilidade utilitarista dos aspectos fenomnicos da realidade. Ou seja, prxis utilitria e senso comum orientariam as aes repetitivas, automatizadas, irre-fletidas e "naturais" da vida corriqueira. Longe estariam da noo de compreenso da realidade e de superao do cotidiano.

    As representaes do senso comum, que consubstanciam a pr-xis utilitarista, seriam o invlucro da pseudoconcreticidade da vida cotidiana. Comparativamente, o que Lefebvre chama de cotidiano alienado o que Heller chamaria de petrificao das caractersticas da vida cotidiana no mbito da particularidade, em ltima instncia um cotidiano alienado.

    Para Kosik, a pseudoconcreticidade da vida cotidiana seria co-mo um cotidiano nebuloso e de sentido ambguo, cuja essncia fe-nomenal aparece de uma forma parcial, s vezes distorcida, dando uma falsa idia de verdadeiro. Isto , na pseudoconcreticidade os fenmenos externos aparecem de uma forma superficial, fetichiza-da, manipulativa, com uma ideologia mascarada e cujas formas de produo dos objetos nem sempre so "reconhecidos como resulta-do da atividade social dos homens".

    Este pseudoconcreto aparente assumido pela conscincia dos indivduos como um aspecto natural da realidade, e a manifestao da essncia do fenmeno confundida com a prpria aparncia do fenmeno. Da que a ao da vida cotidiana ocorre no mundo fe-nomnico da pseudoconcreticidade.

    Este mundo cotidiano, caracterizado pela familiaridade, mobili-dade e aparncias, possui uma fronteira que, para Kosik, a Hist-ria, send que esta a guerra. A guerra se situa fora da cotidianida-de (embora tambm tenha o seu cotidiano) porque "vive no hori-zonte, na memria e na experincia da vida de cada dia" (1963, p. 70) rompendo e destruindo o curso normal do cotidiano. nesta fronteira que se rompe com o cotidiano. Lefebvre acredita que este

    30 Aspectos da teoria do cotidiano

  • rompimento ocorre atravs da filosofia. Kosik - sem desconsiderar a importncia da filosofia-, rompe o cotidiano atravs da Histria.

    O rompimento que a Histria produz no cotidiano sobrevm porque, enquanto este se manifesta num mundo fenomnico, a His-tria produz uma ciso com o fetichismo que envolve a realidade.

    "Se a cotidianidade a caracterstica fenomnica da realidade, a supe-rao da cotidianidade reificada no se processa como salto da coti-dianidade autenticidade, mas como destruio prtica do fetichismo da cotidianidade e da histria, isto , como eliminao prtica da rea-lidade reificada, tanto nos seus aspectos fenomnicos como na sua es-sncia real" (Kosik, 1963, p. 73). Lefebvre e Kosik coincidem no aspecto de que atravs da filo-

    sofia que se pode perceber a cotidianidade, ou retirar o cotidiano da pseudoconcreticidade. A raiz deste ponto em comum est em Marx - O Capital -, ao considerar como funo da cincia o desve-lamento da essncia do fenmeno, sendo a filosofia uma atividade indispensvel.

    Outro aspecto comum entre Kosik e Lefebvre a tirania da cul-tura na sociedade capitalista que Kosik denomina de manifestao da "anonimidade como tirania do poder impessoal, que dita a cada indivduo seu comportamento" (1963, p. 73). Este anonimato de "algum-ningum" contribui para a coisificao do cotidiano no mundo fenomnico.

    O pensamento do senso comum, que permeia a constituio da vida cotidiana, em Kosik chamada de prxis utilitria, o mundo da mistificao; em Lefebvre o cotidiano banal, acrtico, o mun-do da manipulao, e em Lukcs e Heller representa as caractersti-cas do cotidiano ao nvel da singularidade do indivduo.

    Enquanto Lefebvre apresenta como sada a "revoluo cultural permanente", Kosik apresenta a "crtica revolucionria da prxis da humanidade" atravs do rompimento da pseudoconcreticidade.

    Lukcs, numa premissa epistemolgica, critica a falta de aten-o dos tericos para o "pensamento vulgar cotidiano", manifesta-es estas peculiares que tambm traduzem os reflexos cientficos e estticos da realidade. Porm, numa viso metafsica, no seria pos-svel encontrar um mtodo histrico-sistemtico que contemplasse uma abordagem terica do cotidiano.

    Cotidiano e cotidianidade 31

  • Na viso lukacsiana, a arte e a cincia seriam por excelncia as estruturas das objetivaes. No entanto, na vida cotidiana tambm acontecem objetivaes decorrentes da inteno humana, entre as quais, a linguagem e o trabalho. De uma tradio marxista, o traba-lho pressupe uma finalidade ou teleologia e portanto uma reflexo e ao sobre a realidade. O trabalho portanto, torna-se um aspecto fundamental da vida cotidiana.

    Embora os reflexos cientficos e estticos estejam em plos dis-tintos, num movimento pendular contnuo, eles se diferenciam con-forme tempos histricos, tipos de sociedade e, principalmente, de acordo com as necessidades caractersticas da vida cotidiana. Estes reflexos, ao fundirem-se com as manifestaes do cotidiano, tornam estas como palco da diversidade e da riqueza dos acontecimentos.

    Portanto, para se entender o pensamento da vida cotidiana, im-porta visualiz-lo a partir da interao simultnea com os reflexos cientficos e esttico-artsticos, considerando que estas trs dimen-ses refletem a mesma realidade, considerando que esta, sob o en-foque do materialismo dialtico, nica e unitria. Nas palavras de Lukcs "os reflexos reais surgem na interao do homem com o mundo externo" (1966, p. 36).

    A caracterstica geral do pensamento cotidiano tem como gne-se o trabalho e a linguagem, pois estes distanciam o homem do es-tgio natural e animal. A necessidade animal a satisfao imediata e a do homem planejada, pois atravs do trabalho prev no futuro a satisfao da necessidade.

    A vida cotidiana por excelncia o lugar em que se desenvolve a vida humana. Na viso lukacsiana, a principal dificuldade consis-te no fato de o cotidiano ter sido objeto de estudo filosfico, face s objetivaes que no ocorrem da forma intensa como se manifes-tam na cincia e na arte.

    Lukcs no est afirmando que na vida cotidiana no ocorrem objetivaes, pois estas se manifestam por intermdio do trabalho, da linguagem, do pensamento, do sentimento, da ao e reflexo do homem. O aspecto central, em que o autor levanta suas questes, o "reflexo da realidade objetiva na cotidianidade".

    A ao do homem atravs do trabalho, enquanto um princpio teleolgico "pressupe certo grau de reflexo da realidade objetiva

    32 Aspectos da teoria do cotidiano

  • na conscincia do homem" (1966, p. 40). O trabalho na cincia e na arte, possui uma objetivao que constantemente se transforma, j o trabalho na vida cotidiana, embora tambm seja uma objetivao, no possui a mutabilidade existente na cincia e arte; ou seja no ca-pitalismo a cincia transformada na tecnologia.

    Na vida cotidiana aparecem todos os reflexos da totalidade das atividades humanas, sejam as objetivaes na cincia e na arte, se-jam as que se fazem nas instituies sociais. Na verdade, a cincia e a arte esto em contraste permanente com a vida cotidiana e at mesmo podem ser consideradas esferas diferentes do cotidiano. Ao mesmo tempo, no podemos dizer que alguma objetivao exista fora do cotidiano, como uma instncia diferenciada a constituir a cotidianidade. Neste sentido, para Lukcs, cotidiano e cotidianidade no significam a mesma coisa. A cotidianidade caracteriza-se por objetivaes mais elaboradas, onde ela, nada mais que um cotidi-ano mais elaborado. "O trabalho, como fonte permanente de desen-volvimento da cincia, alcana provavelmente na vida cotidiana o grau de objetivao supremo da cotidianidade" (1966, p. 43).

    Entre o limite tnue do cotidiano e da cotidianidade, o trabalho caracteriza-se pelas objetivaes cientficas, e o pensamento e a ao, baseados no espontanesmo, os costumes ou tradio caracte-rizam a dimenso subjetiva da cotidianidade.

    Na vida cotidiana, as respostas a funcionamentos prticos fa-zem parte e do mobilidade de ao no dia-a-dia. Isso no quer di-zer que a vida cotidiana se caracteriza apenas pelo imediatismo, ao contrrio, a mobilidade est permeada por um "sistema de media-es" que se desdobram e ampliam segundo as caractersticas so-ciais, econmicas e culturais das sociedades que, ao mesmo tempo em que so introjetadas, passam a ter caractersticas imediatistas.

    A fonte das mediaes a prpria cincia, portanto existe uma constante e ntima relao entre cincia, arte e vida cotidiana. "Os problemas que nascem da cincia nascem direta ou mediatamente da vida cotidiana, e esta se enriquece constantemente com a aplica-o dos resultados e dos mtodos elaborados pela cincia" (1966, p. 45).

    Uma das caractersticas do pensamento cotidiano se manifesta atravs das representaes que o homem possui, sejam msticas ou

    Cotidiano e cotidianidade 33

  • no, o que Lukcs chama de materialismo espontneo, ou seja, a representao vem do senso comum, da imediaticidade e do aparen-te, no se caracterizando como um processo dialtico. Portanto, as rdeas do cotidiano so, entre outras, a espontaneidade, o imedia-tismo e a analogia.

    Para Lukcs, o materialismo filosfico seria a superao do ma-terialismo espontneo da vida cotidiana, porque possvel a supe-rao da

    "conexo imediata entre o reflexo da realidade, sua interpretao mental e a prtica, com o que conscientemente se inserta uma srie crescente de mediaes entre o pensamento - que assim chega a ser propriamente terico - e a prtica" (1966, p. 50). Uma das contribuies mais marcantes de Luckcs foi ter apre-

    sentado as caractersticas da vida cotidiana. Alm do imediatismo, da analogia, do espontanesmo, ele aponta tambm para as caracte-rsticas da heterogeneidade- a vida das grandes diferenas, a super-ficialidade - que nos impulsiona a lidar sempre com as aparncias, com as demandas emergentes; a falta de aprofundamento em parte explicvel em funo das demais caractersticas, pois atuamos na vida cotidiana enquanto seres singulares, onde existe uma predomi-nncia das necessidades particulares. Esta ltima uma das caracte-rsticas centrais do cotidiano, pois o que nos prende a ela a singu-laridade do particular e no a ao e o pensamento vinculado ao g-nero humano.

    Na singularidade do cotidiano, o homem est por inteiro nas suas aes, porm, quando ultrapassa a dimenso da cotidianidade na suspenso ao humano-genrico, o homem est inteiramente na ao. Isso aconteceu atravs do que mencionvamos anteriormente: por intermdio do trabalho criativo, da arte e da cincia. Na verdade da vida cotidiana se sai e a ela se retoma de uma outra forma.

    Uma das discpulas mais reconhecidas internacionalmente de Lukcs foi a filsofa hngara Agnes Heller, que nas suas diversas obras aprofunda algumas idias deste autor, principalmente no que diz respeito a uma teoria da vida cotidiana.

    Os autores apresentados assinalam para um aspecto em comum: o cotidiano a dimenso do senso comum, com todo o sofrimento, prazer, alegria, tristeza, destruio e construo que somente o ser

    34 Aspectos da teoria do cotidiano

  • humano capaz de viver. A dimenso da cotidianidade estaria no circuito de tenso permanentemente conectado com a possibil idade de sermos seres humanos melhores, a possibi lidade da grande trans-formao que somente o prprio homem poder realizar.

    Referncias bibliogrficas AZANHA, Jos. O estudo do cotidiano: alguns pontos a considerar. So Pau lo, USP, 1994. (Cadernos CERU, 5) HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana . Barcelona: Pennsula, 1977.

    KOSIK, Karel. Dialtica do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1963.

    LEFEBVRE, H. A vida cotidiana 1!0 mundo moderno. So Paulo: tica,l968. LUKCS, Georg. Esttica. Barcelona-Mxico: Grijaldo, 1966. NETTO, Jos; FALCO, Maria. Cotidiano: conhecimento e crtica. So Paulo: Cortez, 1986.

    TACUSSEL, Patrick . Crtica e compreenso da vida cotidiana. So Paulo: USP, Facu ldade de Educao. v. 19, jan./jun. 1993.

    Cotidiano e cotidianidade 35

  • 3

    A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas

    Idlia Fernandes*

    --------~----------Tudo indica pela histria da humanidade, que a vida associativa elementar. Desde que nascemos convivemos com a emergncia da presena do outro em nossa vida. Qui fosse possvel sobreviver sem algum a nossa volta, os animais at conseguem quando so abandonados pelas suas progenitoras, sair a alguns passos e se de-senvolver. Seres humanos, no entanto, so absolutamente depen-dentes uns dos outros.

    Este indcio nos leva a refletir sobre a complexa arte das rela-es humanas, pois, mesmo sendo quase natural "o ter que estar com algum", isto por si s no garante que as relaes humanas sejam satisfatrias para quem delas depende. H uma dialtica de opostos entre a necessidade de estar com o outro e a possibilidade de este "estar" ser algo agradvel, justo, equnime, enfim, algo bom de ser vivido.

    So grandes as dificuldades da vida associativa, da vida dos grupos, quase sem sada, porque sem os outros no pode existir o eu. Na complexa teia da interdependncia humana encontra-se,

    Professora e doutoranda da Faculdade de Servio Social da PUCRS; Assistente So-cial da Fundao de Atendimento ao Deficiente e ao Superdotado do RS, na rea de sade mental.

    A dialtica dos grupos e das re laes cotidianas 37

  • tambm, o potencial da existncia, da transformao, da possibili-dade de sada dos emaranhados que a vida proporciona a todos sem discriminao.

    Somos seres sociais, na origem de nossa vida at o final produ-zimos para um mundo j posto, rodeados por outros semelhantes a ns e ao mesmo tempo to diferentes. Criamos a ns mesmos crian-do o mundo, oferecendo a este o resultado da nossa prxis social. Nossa identidade pessoal traspassada pela coletividade e seu con-texto histrico, cultural, econmico, emocional.

    Os grupos, entendidos como seres interligados entre si por al-guma coisa em comum, podem constituir espaos de reconstruo da capacidade relaciona! das pessoas que ali compartilham alguma experincia. O dia-a-dia da vida de cada pessoa produz especficas experincias de singulares maneiras. Embora essas vivncias sejam nicas para cada indivduo em seu cotidiano, elas podem ser com-partilhadas entre diferentes pessoas. As pessoas so diferentes, as experincias so vividas particularmente, mas o que h em comum o fato da cotidianidade, ou seja, tudo aquilo que humano vivi-do, sentido objetivamente e subjetivamente.

    As experincias so processos em mutao, dialeticamente transformveis. Nesse sentido nos valemos, entre outros conceitos, dos conceitos categricos de Agnes Heller sobre a questo da coti-dianidade. Considerando o cotidiano ponto crucial para o desen-volvimento dos processos sociais e ponto alto para a superao da imediaticidade e superao da reificao do real e a transforma-o das relaes de opresso que subjugam as subjetividades e im-pem um ritmo desumano ao cotidiano das pessoas.

    Neste ensaio que aqui se apresenta, transitaremos pelos cami-nhos que nos levam aos grupos j constitudos ou aqueles que se pretende formar. Neste trnsito, situamos o grupo como espao de possibilidades para o sujeito fortalecer sua identidade, entender me-lhor a si mesmo e aos outros, reconstruir sua vivncia cotidiana atravs do espao reflexivo que sugere esta atividade.

    No percurso que ser trilhado nas pginas a seguir, o "grupo" se apresenta ao leitor, em seu conceito, sua dinmica, sua dialtica processual, suas fases, seu potencial terico-prtico. Este no uma entidade, mas, tambm no soma das partes, no o todo, nem

    38 Aspectos da teoria do cotidiano

  • tampouco, cada um sozinho. Quem sabe todos juntos formem esta unidade em totalidade?

    A incrvel arte da relao entre humanos

    Disse um pensador do sculo passado: "Embora o homem seja um indivduo nico - e justamente esta par-ticularidade que o torna um indivduo, um ser comuna] realmente in-dividual - ele igualmente o todo, o todo ideal, a existncia subjetiva da sociedade como pensada e vivenciada" (Marx, 1993, p. 119). Este pensamento "envelhecido" pelo passar dos anos que nos

    separam do mesmo, ainda intriga-nos em sua dimenso complexa, que nos coloca diante de uma ambigidade existencial. Somos indi-vduos, mas tambm somos o social; como podemos enfrentar tal permanncia de dois aspectos complementares e quase opostos?

    O enfrentamento do ser nas tramas relacionais dar o tom ao conjunto da sociedade onde esse ser se insere. Se o conjunto das pessoas de uma determinada sociedade estiver constitudo por pes-soas que tiveram acesso informao, educao, conscincia crtica, tender a formar um conjunto social de relaes democrti-cas. Onde o grupo social tende a poder exigir cidadania, pelo exer-ccio da participao. Ao contrrio, se uma minoria detm o conhe-cer, e a maioria desconhece a forma como se organizam os meios essenciais da vida social de seu contexto, esta sociedade tender a ser autoritria, monolista.

    Os grupos sociais vo se configurando de acordo com o movi-mento dos seus indivduos dentro deles, ao mesmo tempo esses in-divduos se movimentam num espao prefigurado, no qual tero menor ou maior dificuldade em transformar-se. Somos seres so-ciais, predestinados a comungar com todos os outros a nossa exis-tncia, pelo menos em alguns aspectos.

    As relaes humanas esto permeadas pelas contradies so-ciais e individuais, assim imbricam-se em constantes conflitos que, por vezes, no se resolvem de forma imediata. H uma necessria reconstruo da forma de viver em grupo que se precisar aprender. Talvez uma desconstruo da forma inicial da vida em grupo seja o caminho para novas perspectivas de formas relacionais.

    A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas 39

  • O primeiro exemplo da vida social a vida em famlia; nesta esto os primeiros passos em direo autonomia do indivduo e do seu fortalecimento, enquanto sujeito. Em grande nmero de vezes, na famlia aprendemos a ser submissos, a obedecer, reproduzindo a violncia social da dominao-dominado. De outra forma podemos experienciar, tambm na famlia, a ausncia de leis, de normas, de limites, o que no ser menos prejudicial para uma vida social, do que no primeiro caso.

    A famlia o primeiro grupo do qual participamos e deve poder nos dar o norte para a vida em coletividade, mas esta, tambm, est imbricada na teia relaciona! de um contexto sempre maior do que o seu horizonte pode abranger. A famlia que constitui o sujeito, constituda por outros sujeitos que continuam a constiturem-se e a constituir. H um processo dialeticamente inacabado, onde o ser social se insere, neste a relao que se estabelece tem uma base cognitiva e uma base de experimentao.

    Para Heller (1970, p. 18), "o homem nasce j inserido em sua cotidianidade [ .. .]". Entendemos que esta insero acontea de for-ma inclusiva. O sujeito faz parte da famlia, nela se insere pela exis-tncia e pela experincia, que parte da existncia. Em sua vivncia cada qual aprende com a repetio cotidiana de diversos atos e va-lores, ao mesmo tempo aprende com a inovao e a ruptura daquilo que se faz presente no dia-a-dia.

    A insero no cotidiano acontece de forma dialtica, pois, no se d s de forma "positiva", nem s de forma "negativa", no apenas afetiva, nem apenas cognitiva. Incluem-se todos estes aspec-tos e outros. Considerando o aspecto dialtico inclusivo e o proces-so de inacabamento das relaes sociais, o cotidiano poder ser re-inventado, desconstrudo, desaprendido e transformado.

    "A vida cotidiana a vida do homem inteiro; ou seja, o homem parti-cipa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela colocam-se em 'funcionamento' todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixes, idias, ideologias [ ... ]" (Heller, 1970, p. 17). De acordo com o pensamento de Heller exposto acima, jus-

    tamente o cotidiano o espao rico para que coloquemos a nossa

    40 Aspectos da teoria do cotidiano

  • ateno. Se no cotidiano h muita repetio, reproduo, a partir dele que se pode conquistar a superao das restries, porque nele o "homem est por inteiro" para aprender e desaprender, inventar e desinventar suas relaes cognitivas e afetivas.

    A relao cognoscitiva que se faz a partir do que podemos chamar de grupo de origem ou grupo familiar, requer por vezes um desaprender. O indivduo aprende determinadas formas de se rela-cionar que entram em contraste com seu grupo social. Por exemplo, uma criana que estabeleceu uma relao de poder com os pais, on-de ela quem, predominantemente, lana os ditames no seu "mun-do relaciona!'', de como devem ser as coisas, ter srias dificulda-des com um grupo de colegas. O contrrio tambm nos forneceria inmeros exemplos.

    preciso desaprender, em muitas situaes. Se uma criana foi tratada com desprezo, desconsiderao, desrespeito, rejeio, em funo de sua condio social, de limitaes fsicas ou motivos de ordem diversa, isto poder lev-la a uma insero social hostil ou submissa. A escola, as demais instituies, muitas vezes rejeitam crianas que no correspondem ao "grau de normalidade", exigido por um padro socialmente estabelecido. So tramas sociais tecidas e reproduzidas, que perpassam todas as esferas da sociedade, os in-divduos, as famlias, as instituies, at formarem um conjunto maior, uma totalidade.

    Esse conjunto, essa totalidade, porm, no absoluta, nem irre-vogvel e nem sempre perceptvel para ns que dela fazemos parte. O movimento dos indivduos dentro dela podem mudar sua face, se desaprenderem os preconceitos da relao cognitiva aprendida em seu grupo de origem e com os demais grupos. Aquela criana que aprendeu o pouco valor do ser humano, em condies difceis, na medida de um processo de conscientizao, de reflexo, poder re-aprender que tem direito a voz e a vez, que todo ser humano dever ter.

    Um grupo com fins operativos, teraputicos, de reflexo, de au-to-ajuda ou de outras alternativas, poder trabalhar estes aspectos referidos acima e ser um instrumento de uma nova reinscrio no social. Este um assunto que trataremos em um prximo item, no momento devemos voltar teia relaciona! de que nos ocupvamos.

    A dialtica dos grupos e das re laes cotidianas 41

  • Na complexidade do mundo social, em seu comear, na relao com a famlia, com os primeiros grupos afetivos, alm da relao cognitiva que d uma base para a constituio do indivduo, en-quanto ser social, tem-se uma base de experimentao. As primeiras experincias que temos no mundo dos objetos, na sua manipulao, nos permite avanar um pouco determinadas concepes.

    A exemplo do que foi dito, sobre a base de experimentao, podemos refletir sobre os primeiros anos da infncia, onde manipu-lamos com o mundo exterior e a partir da nos capacitamos para o crescimento intelectual. A atividade prtica que cada um de ns vai desenvolvendo dar o tom de nossa insero social, isto experimen-tamos na famlia, em um primeiro momento, onde acontecem as re-laes sujeito-sujeito.

    Por atividade prtica, entendemos todas as aes, criaes re-sultantes da relao sujeito-sujeito e sujeito-objeto. Os objetos so transformados pelo contato humano, no apenas pelo projeto que se possa ter daqui_lo que se quer mudar, mas, de uma determinao prtica do sujeito sobre o objeto. Assim crescemos e transformamos o mundo. Neste trmite se encontra o aspecto cognitivo e prtico do mundo das relaes .

    Marx, em seu pensamento secular, alertava-nos para o carter de prxis social1 que permeia as relaes entre os indivduos, veja-mos em sua assertiva:

    "Os animais s constroem de acordo com os padres e necessidades da espcie a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padres de todas as espcies e como aplicar o padro adequado ao objeto. Assim, o homem constri tambm em conformi-dade com as leis do belo" (Marx, 1983, p. 96). Seguindo este raciocnio, encontramos o ser social como ser da

    prxis social, aquele que transforma o mundo com suas aes e ao mesmo tempo se transforma com ele. O indivduo da prtica o in-divduo das relaes, nossa prtica para o mundo, com os outros, a partir dos outros e para alm de cada um.

    Para aprofundar o entendimento de prxis, ver Marx (1983 e 1993) e Vzquez (1977).

    42 Aspectos da teoria do cotidiano

  • Nascemos e vivemos a partir dos grupos de origem para conti-nuar a grande obra da vida humana. Essa grande obra, porm, se consolida em pequenas aes de cada qual para o seu meio e nos li-ames da possibilidade do aprendizado que o indivduo faz em seu contexto, tanto quanto na possibilidade de transposio deste. No desaprender, nas rupturas com o que est estabelecido na sociedade, poder estar contido o potencial de superaes histricas.

    As transformaes vo se dando na prxis social dos sujeitos, esse processo vai consolidando a possibilidade de expresso do ser, enquanto parte integrante, pertencente ao seu contexto. A identida-de pessoal e seu fortalecimento passa por esta mediao com con-texto, com os grupos onde cada um se faz pertencente. Na coletivi-dade, na fora do no ser apenas um, mas mais um com os demais, que se d a possibilidade das grandes alteraes histricas da forma de viver dos sujeitos sociais.

    O sujeito transita por uma contextualidade que lhe externa tanto quanto o constitui como sujeito, tornando-se parte dele. Neste sentido a arte de relacionar-se com os demais, tambm a arte de se encontrar em um mundo humano feito por quem o vive, ao mesmo tempo submetido a determinantes extra-subjetivos, que ultrapassam a sua possibilidade de escolha.

    A subjetividade humana est alm e aqum do indivduo, esta se produz num contexto de totalidade. A construo social da subje-tividade no fala de um engessamento do indivduo ao seu meio, mas da possibilidade de este se diferenciar, se individualizar a partir da interdependncia de todos os seres. A conscincia lcida e crti-ca sobre os determinismos sociais ser o fio condutor de uma vida sem determinismo.

    Escolhemos a nossa histria ao faz-la, repetimos a histria alheia ao reproduzirmos o que j est consolidado no tempo e no espao. Reconstrumos a vida social quando a colocamos em ques-to e encontramos fora de enfrentar tais questes de forma a reali-zar rupturas com o tempo e a histria. Tal fora, porm, encontra-remos em um caminho conjugado e no no isolamento ou na frag-mentao de atividades solitrias. Do grupo viemos e com os gru-pos consolidamos a romaria do Ser, especialmente deste lugar da subjetividade que no se contenta com o que est pronto.

    A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas 43

  • O espao cotidiano poder ser reconstrudo num movimento dialtico dos grupos, onde se fazem sempre novas relaes sociais, na teia relaciona! do cotidiano dos grupos.

    O grupo como espao social de reconstruo da cidadania e de (re)significao do cotidiano

    Situamos a importncia social dos grupos, na complexa arte das relaes, mas afinal o que um grupo, como se constituem? Como podem ser um espao social de reconstruo da cidadania e de (re)significao do cotidiano? Esta uma temtica que desenvolve-remos neste item. Ao caracterizar os grupos somos levados a encon-trar seu significado social para a expresso das individualidades e para alm disto, seu sentido libertrio, a possibilidade por interm-dio do grupo, de consolidar uma estratgia de fortalecimento do ser social. Este segundo aspecto, porm, ser melhor avaliado no ter-ceiro item, no que segue examinaremos mais especificamente a configurao terico-tcnica do que se chama grupo.

    "O ser humano gregrio, e ele s existe, ou subsiste, em funo de seus inter-relacionamentos grupais. Sempre, desde o nascimento, ele participa de diferentes grupos, numa constante dialtica entre a busca de sua identidade individual e a necessidade de uma identidade grupal e social" (Zimerman, 1993, p. 51). Muito embora esta caracterstica "gregria" do que humano,

    um conjunto de pessoas por si s no constitui um grupo, no senti-do que estamos dando ao mesmo. O aspecto fundante da congrega-o grupal vai ser definido por algo que se denomina vnculo, onde o nmero de pessoas presentes em um determinado contexto, se li-gam por objetivos em comum.

    A caracterstica vincular dos grupos se manifesta numa rede emaranhada pela complexidade das subjetividades de diferentes pessoas que se ocupam do mesmo espao. Isto no ser definido por um nmero de indivduos, nem pela soma total destes. um emaranhado complexo, dinmico, de integrao de interesses, mas que ao mesmo tempo no significa homogeneizao dos sujeitos.

    Nos grupos que se constituem enquanto grupo, desenvolvem um processo inclusivo de subjetividade e coletividade, o comum da

    44 Aspectos da teoria do cotidiano

  • congregao vai alm de cada um, a partir de cada um com o todo. Cada pessoa permanece com sua singularidade como indivduo, po-rm, esta singularidade estar mediada pelo grupo, em suas tarefas, nas atividades prticas a que se prope.

    Lapassade (1983, Cap. V) enfatiza a prtica dos grupos, como aquilo que d unidade a estes. O ns ao coletiva e no o subs-tancial do individual. O grupo tem uma prxis em comum e se constitui enquanto ato e no enquanto ser. Este ato no necessa-riamente uma ao concreta, absolutamente visvel, explcita. Em muitos casos a tarefa dos grupos est implcita, subentendida, laten-te, no aparente, mas existente.

    Vejamos um exemplo: suponhamos que um grupo de mulheres se rena semanalmente em um determinado espao institucional x, a discusso habitual fica em torno de questes do cotidiano, suas di-ficuldades em comum com os filhos, com o marido, no trabalho, nas instituies em que utiliza os servios, e outras questes que apaream e este grupo questiona suas dificuldades em relao ao que foi levantado, e em relao aos impedimentos que o contexto apresenta, para sua realizao pessoal. Neste caso, as situaes e a forma de enfrent-la so explcitas, as pessoas colocam sua forma particular de entender a problemtica, bem como, sua maneira de responder a tudo isto. O que poder estar implcito, justamente a tarefa do grupo, que ser, em conjunto encontrar novas maneiras para o enfrentamento de tais questes, de transformar aquela reali-dade, de se fortalecer enquanto sujeito de sua prpria histria.

    Com este exemplo, verificamos a dimenso prtica de um gru-po, como este pode estar num constante trabalho de elaborao dos empecilhos e ao mesmo tempo de construo de uma nova forma de inscrio no social. Sendo assim, pode-se repetir o que nos diz La-passade:

    "Todos os membros so 'terceiras pessoas' ao mesmo tempo que so todos scios em pares de reciprocidade; como terceira pessoa, cada um totaliza as reciprocidades de outrem. isso uma das mediaes que constituem o grupo" (Lapassade, 1983, p. 232).

    A dialtica dos grupos e das re laes cotid ianas 45

  • Na relao de reciprocidade que vai consolidando os grupos, acontece um fenmeno denominado de "ressonncia",2 este indica a troca de sentimentos entre as pessoas, o compartilhar emoes co-muns. Isto acontece quando a fala de um rebate nos outros e os de-mais vo interagindo a partir daquele significado exposto por al-gum. Algum fala dos preconceitos vividos em determinado pe-rodo de sua vida, cada um levado a pensar nos preconceitos que j sofreu ou j teve em relao a algum. A temtica passa a ser "preconceito", todos se envolvem nela e numa tarefa de super-la de alguma forma. De uma situao singular passa-se s diversifica-das vivncias e a um contexto onde estas se do, seu meio social. Quem coordena um grupo deve ter a habilidade de perceber a tem-tica em comum e propiciar a expresso destas vivncias, neste cole-tivo.

    A propsito do emaranhado que se imbrica no vnculo grupal, Fernndez (1993) considera o "lao" como constituinte do grupo. H uma complexidade e multiplicidade nas inscries grupais. Cada singularidade se inscreve no contexto grupal, de uma determinada forma. O conjunto destas inscries permeado pelo vnculo que vai dinamizar a relao entre as pessoas. "Algo faz lao", liga os sujeitos entre si e d ao grupo uma caracterstica peculiar, prpria a ele mesmo.

    Para ilustrar o aspecto singular de cada grupo, pensemos em um batizado, por exemplo. Na cerimnia, os participantes do grupo so os pais, a criana, os padrinhos, amigos, o padre. Todos formam os personagens fundamentais para que ocorra o batismo. Mas alm de tudo, o conjunto deste grupo forma o "batismo" que no nem cada um em si, nem a simples soma de todos. algo que acontece, se re~ aliza, portanto, vai alm da participao dos seus integrantes, po-rm, s se realiza com sua participao. Este acontecer quase que um novo sujeito, no-humano -o grupo -constitudo ele a reali-zao de uma coletividade, que toma uma forma peculiar, prpria, a partir de um determinado lao.

    Observando a fora das congregaes, pode-se considerar o grupo como espao privilegiado para o "fortalecimento dos sujei-tos", para o exerccio da cidadania, da autonomia, que a participa-

    2 Sobre o "fenmeno da ressonncia", ver Zimerman, 1993, p. 94-95.

    46 Aspectos da teoria do cotidiano

  • o. , tambm um dispositivo teraputico importante. Como cada individualidade poder se beneficiar de um processo grupal? De que maneira o agente grupal poder contribuir para favorecer o pro-cesso dos grupos?

    H uma certa tendncia a cristalizarmos por determinado tem-po, mais ou menos longo, algumas situaes desagradveis, de opresso, de aprisionamento. Como se o nosso ser estivesse alheio, estranho a ns mesmos, nele no nos reconhecemos e repetimos a histria at que um dia tenhamos conscincia da possibilidade de transformar as condies que nos sufocam, inmeros so os exem-plos do cotidiano que demonstram este fato. Em psicanlise isto foi chamado de 'repetio neurtica', para Marx um processo de 'alie-nao', um estranhamento do sujeito na relao com a sociedade e consigo mesmo. 3

    Ilustraremos o pensamento acima recorrendo a uma figura da mitologia grega, o PAN, conhecido no Ocidente pelo nome de dia-bo:

    "A figura do diabo nos mostra um stiro - criatura metade homem, metade bode - danando ao som da gaita que est segurando com a mo esquerda. Na mo direita segura dois fios, amarrados ao pescoo de duas pessoas de tamanho menor. Essas pessoas - um homem e uma mulher - tambm tm chifres como os do stiro e, embora te-nham as mos e os ps livres para danar, esto presos s cadeias do medo e do fascnio pela msica. A cena tem lugar dentro de uma gru-ta escura. As figuras que danam, na realidade so livres se deseja-rem, pois as mos esto soltas para retirar as correntes a qualquer momento. A servido ao diabo uma questo que o consciente pode resolver" (Burke e Greene, 1988, p. 66). A histria deste mito grego se aproxima da vivncia de muitas

    pessoas e da sociedade em geral. H um aprisionamento psquico e social que nos impomos ou ao qual nos rendemos, quando no se tem clareza das possibilidades do ser de transformar sua prpria histria, a favor de si mesmo. Pan um grande fetiche, mas no absoluto, dele se pode afastar se a embriaguez de sua msica no mais exercer fascnio sobre ns. Em nossa sociedade so muitos os

    Para aprofundar o entendimento sobre "repetio neurtica", ver Zimerman, 1993. Sobre "alienao", ver Marx, 1983, I, II e III manuscritos.

    A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas 4 7

  • fetiches que nos afastam da conscincia, que nos levam reprodu-o de padres prefixados.

    O cotidiano, tomado em sua imediaticidade o lugar do "frag-mentrio, do microscpio, do efmero, do imaginrio", conforme Yamamoto (1997, p. 60). No grande fetiche do dia-a-dia, na em-briaguez que nos afasta da conscincia e de uma viso de totalidade da vida social, nos aprisionamos a diversas situaes que se repe-tem em nossa histria, como se estagnasse a vida. O movimento na-tural dos acontecimentos que devem mover a histria, nestas cir-cunstncias, parecem congelarem-se na rotina da vida que se faz "comum".

    Lukcs caracteriza as determinaes fundamentais do cotidiano como: "a heterogeneidade, a imediaticidade, e a superficialidade extensiva" (apud Netto, 1996, p. 67-67). Estas caractersticas cons-tituem o imediatismo de nossos dias, onde geralmente no nos des-locamos construtivamente em direo ao futuro. Ficamos presos e alheios ao processo ativo da vida que se faz em movimento.

    Para Kosik (1995, p. 73), "Todo modo de existncia humana ou de existir no mundo possui sua prpria cotidianidade ... Se a cotidianidade a caracterstica fenom-nica da realidade, a superao da cotidianidade reificada no se pro-cessa como salto da cotidianidade autenticidade, mas como destrui-o prtica do fetichismo da cotidianidade e da histria; isto , como eliminao prtica da realidade reificada, tanto nos seus aspectos fe-nomnicos como na sua essncia real".

    O fato de ser necessrio uma superao da "cotidianidade reifi-cada" no significa que no cotidiano s haja espao para a necessi-dade e a alienao, mas que este um espao onde a reificao se faz presente. Entretanto, o cotidiano espao rico de significados, no qual pode-se aprofundar a busca dos desvendamentos de seus enredos.

    Conforme Heller (1998, p. 53), "o cotidiano aparece como es-pao onde nossas experincias bsicas de vida podem desenvolver em ns necessidades pelas quais estamos dispostos a fazer reivindi-caes [ ... ]". Quando o sujeito busca, a partir da necessidade, a su-perao da vivncia cotidiana reificada, ento pode-se ter um mo-vimento que Heller (1998, p. 40-41) pontua como transformao da

    48 Aspectos da teoria do cotidiano

  • dimenso da carncia em autodeterminao. Onde o sujeito pode escolher os caminhos e fazer sua prpria histria.

    Faz-se, necessrio olhar para o dia-a-dia de forma crtica e pro-funda, para que dele se tenha um profundo conhecimento e reco-nhecimento de seus mltiplos significados e sinais. preciso en-contrar as brechas da cotidianidade para sua superao. Para Heller (1970, p. 26), o cotidiano apresenta "possibilidades de suspenso temporrias, estas se do no trabalho, na arte, na cincia e na mo-ral". Esses momentos no se do de forma parte do cotidiano, constituem-se em momentos produtivos do ponto de vista do pro-cesso da (des)alienao. Kosik (1995, p. 77) nos fala que a

    "destruio do mundo alienado da cotidianidade, no significa apenas a transformao revolucionria, conquanto forma superior, mas tam-bm, como alienao e como modificao existencial, 'solues' em nvel individual".

    Trabalhar com a finalidade de abrir um espao social para a re-construo da cidadania, para o (re)significar do cotidiano, para o "fortalecimento do sujeito" e o desenvolvimento de sua autodeter-minao, uma forma de sada da "dimenso da necessidade" e da alienao. Neste sentido o dispositivo grupal pode ser um recurso significativo. Justamente pelo fato de poder ter-se, nos grupos, um dos momentos de "trabalho e arte" que propicia a "suspenso tem-porria da cotidianidade".

    O recurso grupal, atravs de um processo de reflexo, dilogo, congregao, poder ser o momento de uma abertura para o proces-so de conscientizao do potencial do sujeito. De se redescobrir, de perceber "que as mos esto livres", que possvel sair, romper com a "alienao" e com a "repetio neurtica". A histria de cada indivduo e a histria da sociedade, em geral, estagnou naquele pro-cesso, tomar novo dinamismo com a sada do sujeito de seu casu-lo, no retorno a seu aspecto 'natural, o de ser um ser social.

    O coordenador ou um terapeuta de um grupo poder contribuir com o processo grupal, na medida em que propicia o espao para a reflexo e, tambm, quando exerce a funo de "continente" e de-senvolve uma "atividade interpretativa", assim denominados, por

    A dialtica dos grupos e das relaes cotidianas 49

  • Zimerman.4 uma disperso geral, a marca inicial de qualquer gru-po, aos poucos, este se encaminha para uma coeso, unidade. O co-ordenador ou o terapeuta vai auxiliar na juno das partes fragmen-tadas, sustentando e dando continncia ao contexto dos indivduos que se agrupam, isto se faz, tambm, com a "atividade interpretati-va".

    O grupo precisa de um sustentculo, especialmente no incio, algum que o "segure", que possa ter uma viso de conjunto, e ao mesmo tempo, localize as singularidades desses sujeitos, nesse con-junto. Nesta funo de agente grupal, considera-se a possibilidade de que, a partir de uma base de sustentao, o grupo possa desen-volver-se.

    Na continncia est, tambm, a necessria "atividade interpre-tativa", onde se tem uma interveno mais direta do coordenador ou terapeuta, esta atividade vai se estendendo aos demais membros do grupo, com o desenrolar do processo grupal. Mas, em que consiste tal "atividade interpretativa"?

    Tal atividade uma interveno dialogal, onde aspectos signifi-cativos do que j foi falado so pontuados e ressaltados para o gru-po, com o objetivo de clarificar determinadas questes que vo sur-gindo. Nesta interveno os participantes devem ser levados a no-vas perguntas e reflexes que os faam inscrever-se no processo do qual fazem parte. A finalidade desta atividade propiciar a partici-pao e a reelaborao das questes iniciais, para uma superao dialtica do momento anterior ao processo grupal.

    A dialtica dos grupos como alternativa para uma sociedade humanitria

    No trabalho com grupos, os profissionais desta rea se aproxi-mam do cotidiano das pessoas, do seu modo de viver as dificulda-des e as possibilidades da existncia. O cotidiano aparece em seu imediatismo, num primeiro momento, para que se possa ultrapassar esta esfera imediata. O viver de cada um est impregnado pela cu!-

    Sobre a "funo de continente do grupo" e sobre a "atividade interpretativa", ver Zimerman, 1993, cap. XVII e XX.

    50 Aspectos da teoria do cotidiano

  • tura, pela histria, pela economia, pela msica, pela mdia, por amores e desamores.

    A dinmica grupal traz o cenrio humano com toda sua expre