Água, agrotóxicos e saúde

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Água, agronegócio e agrotóxicos: prejuízos à nossa saúde 1 Raquel Maria Rigotto Alice Maria Correia Pequeno Marinho O Brasil está consumindo mais de um bilhão de litros de agrotóxicos por ano e, desde 2008, vem recebendo o triste título de campeão mundial de consumo de venenos. O uso intensivo de agrotóxicos é consequência da forma de produção do agronegócio, que parte do desmatamento e da destruição da biodiversidade dos biomas para implantar o monocultivo de commodities em grandes extensões, através da imposição de intenso ritmo de produção à terra. Faz parte das transformações em curso nos processos de produção e nas relações de trabalho no campo, a partir da mecanização agrícola, da superexploração da força de trabalho e da introdução da biotecnologia com organismos geneticamente modificados, como é o caso dos transgênicos. Fortemente apoiado pelas políticas de desenvolvimento agrícola dos governos (financiamento, infraestrutura, flexibilização da legislação, impunidade, entre outros), este complexo de sistemas agrícolas, industriais, de mercado e financeiro controlado por corporações transnacionais gera impactos que repercutem sobre toda a população brasileira. Entretanto, os riscos desse modelo de produção e a distribuição de seus danos atingem territórios, segmentos e classes sociais de forma desigual, constituindo um evidente processo de injustiça ambiental. Primeiro porque esses danos recaem diretamente sobre as populações mais vulnerabilizadas pelo processo contínuo de destruição e de apropriação da natureza, em que os bens naturais são reduzidos a mercadorias para fins que geram exclusão e expropriação. Segundo porque aos povos do campo é negado ou há um acesso desigual a esses bens, sobretudo à terra e à água, acarretando diversas transformações nos seus modos de vida. Os trabalhadores certamente são os mais intensa e diretamente atingidos pelos agrotóxicos, seja nas fábricas químicas ou na sua comercialização; seja na saúde 1 Texto elaborado pelas autoras com base em publicações prévias para a Agenda da CPT 2012 e para o livro Conflitos no campo no Brasil - 2012

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Artigo de Raquel Maria Rigotto (professora adjunta do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo TRAMAS - Trabalho, Meio Ambiente e Saúde) e Alice Maria Correia Pequeno Marinho (Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, membro da ABRASCO e participante do grupo de estudos do Núcleo TRAMAS sobre exposição humana aos agrotóxicos).

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Água, agronegócio e agrotóxicos: prejuízos à nossa saúde1

Raquel Maria Rigotto

Alice Maria Correia Pequeno Marinho

O Brasil está consumindo mais de um bilhão de litros de agrotóxicos por ano e,

desde 2008, vem recebendo o triste título de campeão mundial de consumo de

venenos.

O uso intensivo de agrotóxicos é consequência da forma de produção do

agronegócio, que parte do desmatamento e da destruição da biodiversidade dos

biomas para implantar o monocultivo de commodities em grandes extensões, através

da imposição de intenso ritmo de produção à terra. Faz parte das transformações em

curso nos processos de produção e nas relações de trabalho no campo, a partir da

mecanização agrícola, da superexploração da força de trabalho e da introdução da

biotecnologia com organismos geneticamente modificados, como é o caso dos

transgênicos. Fortemente apoiado pelas políticas de desenvolvimento agrícola dos

governos (financiamento, infraestrutura, flexibilização da legislação, impunidade, entre

outros), este complexo de sistemas agrícolas, industriais, de mercado e financeiro

controlado por corporações transnacionais gera impactos que repercutem sobre toda

a população brasileira.

Entretanto, os riscos desse modelo de produção e a distribuição de seus danos

atingem territórios, segmentos e classes sociais de forma desigual, constituindo um

evidente processo de injustiça ambiental. Primeiro porque esses danos recaem

diretamente sobre as populações mais vulnerabilizadas pelo processo contínuo de

destruição e de apropriação da natureza, em que os bens naturais são reduzidos a

mercadorias para fins que geram exclusão e expropriação. Segundo porque aos povos

do campo é negado ou há um acesso desigual a esses bens, sobretudo à terra e à água,

acarretando diversas transformações nos seus modos de vida.

Os trabalhadores certamente são os mais intensa e diretamente atingidos pelos

agrotóxicos, seja nas fábricas químicas ou na sua comercialização; seja na saúde

1 Texto elaborado pelas autoras com base em publicações prévias para a Agenda da CPT 2012 e para o livro Conflitos no campo no Brasil - 2012

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pública – por exemplo, em campanhas como a da dengue –; seja em ocupações

urbanas; e, principalmente, na agricultura e na pecuária. No caso destes, é importante

distinguir ainda contextos de risco diferentes para os camponeses e agricultores

familiares que trabalham de forma autônoma, para aqueles que produzem de forma

integrada ao agronegócio e reproduzem seu pacote tecnológico, para os que são

empregados dele e se expõem a volumes elevados de ampla gama de ingredientes

ativos de agrotóxicos. Até mesmo os agricultores em transição agroecológica são

atingidos pelo problema, na medida em que seus territórios encontram-se cada vez

mais cercados por contaminação advinda das grandes plantações, inviabilizando sua

produção.

Também as famílias moradoras do entorno das fábricas de agrotóxicos e das

grandes empresas agrícolas, ou em áreas atingidas por pulverizações aéreas são

contaminadas através do ar e da água principalmente, neste caso expostas dia e noite,

durante todos os meses do ano.

Fortalecendo a assertiva dos agrotóxicos como um grave problema de saúde

pública no Brasil, é preciso levar em conta que todos os brasileiros, ao consumir

alimentos, estão ingerindo também venenos, já que os dados oficiais da ANVISA

mostram a presença de agrotóxicos em 63% das amostras de frutas, legumes e

verduras examinadas em 2012.

Os agrotóxicos podem causar contaminação dos solos, do ar, das águas

superficiais e subterrâneas e dos alimentos. No Brasil, são autorizados e registrados

cerca de 430 ingredientes ativos de venenos, 750 produtos técnicos e 1.400

formulações de agrotóxicos, sendo que dos 50 produtos mais utilizados nas lavouras,

22 são proibidos na União Europeia, por exemplo, por terem comprovadamente

efeitos que potencializam a ocorrência de cânceres, distúrbios endócrinos e genéticos.

O agronegócio, além de consumir 72% da nossa água, também a contamina: os

agrotóxicos têm sido apontados como uma das principais causas da contaminação das

águas superficiais e subterrâneas. Segundo dados do IBGE (2011), publicados no Atlas

de Saneamento e Saúde, “considerando os municípios que declararam poluição ou

contaminação, juntos, o esgoto sanitário, os resíduos de agrotóxicos e a destinação

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inadequada do lixo foram relatados como responsáveis por 72% das incidências de

poluição na captação em mananciais superficiais, 54% em poços profundos e 60% de

poços rasos”.

Vários estudos têm evidenciado a contaminação da água para consumo

humano, a exemplo da pesquisa realizada em Limoeiro do Norte, cujos resultados

mostraram a presença de pelo menos três e até dez ingredientes ativos de agrotóxicos

diferentes em cada amostra analisada, fato que caracteriza a exposição múltipla aos

produtos, ampliando o risco de intoxicação. Além disso, observou-se que vários

princípios ativos identificados nas amostras de água foram ou estão sendo reavaliados

pela ANVISA, com vista à proibição ou restrição do uso.

No Mato Grosso, pesquisadores detectaram a presença de agrotóxicos em 82%

dos poços de 12 escolas, em 56% das amostras de água da chuva e em 25% das

amostras de ar. Além desses resultados, o estudo analisou a presença de resíduos de

agrotóxicos no leite materno colhido em 62 mulheres que estavam amamentando,

sendo detectado pelo menos um tipo de agrotóxico, podendo ser oriundos da

exposição ocupacional, ambiental e alimentar do processo produtivo da agricultura.

Tanto na Chapada do Apodi-CE quanto em Mato Grosso-MT, a aplicação dos

agrotóxicos ocorre por meio da pulverização aérea em áreas do agronegócio, que

desconsidera a existência das comunidades na áreas de entorno dos plantios, expondo

as mesmas a “chuvas de veneno”2 , alcançando inclusive a produção de pequenos

produtores que não adotam tal prática, ampliando a ocorrência de queixas referentes

à saúde e a contaminação ambiental.

Levando-se em conta que os agrotóxicos foram detectados na água da chuva e

que é uma prática comum nos municípios de regiões semiáridas o acúmulo da água da

chuva em cisternas de placa para o suprimento das famílias no período de seca, faz-se

necessário considerar o risco à saúde, quando há contaminação por agrotóxicos por

2 Em função do uso indiscriminado de água pelas empresas do agronegócio e pela contaminação provocada pela utilização de agrotóxicos em larga escala, está em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará o Projeto de Lei nº 18/2015 que visa a proibição da pulverização área de agrotóxicos em todo o território cearense.

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perto, uma vez que essa se constitui na única forma de abastecimento de muitas

famílias.

Como isto compromete a saúde?

As intoxicações agudas acontecem logo após exposições a concentrações

significativas de agrotóxicos por um período curto tempo: quando o trabalhador(a) do

agronegócio é obrigado, por exemplo, a entrar na plantação logo depois que aplicou o

veneno, sem respeitar o período de re-entrada, ou quando ele mesmo aplicou com o

trator; ou o camponês que prepara a calda tóxica e expurga com o pulverizador costal.

Pode acontecer também nas comunidades vizinhas das fábricas de venenos ou das

empresas do agronegócio, especialmente quando usam pulverização aérea (por avião).

Os sintomas vão depender do tipo de veneno que está sendo aplicado – cada um

prejudica o nosso corpo de um jeito diferente, e são mais de 400 tipos autorizados no

Brasil (fora os ilegais que também circulam...). Muitas vezes aparecem sintomas de

irritação ou de alergia da pele e das mucosas: coça a pele e os olhos, arde a garganta, o

nariz e os olhos, lacrimeja, a respiração fica difícil. Outras vezes os sintomas são mais

gerais: a dor de cabeça é muito freqüente, dor de barriga, náusea e vômito, tonteira,

fraqueza, tremor, confusão mental. Dependendo da intensidade da exposição, pode

haver perda de consciência, convulsões, coma e até morte. De fato, a literatura

científica aponta estes efeitos agudos para diferentes grupos químicos de agrotóxicos,

como os organofosforados e carbamatos, organoclorados, piretróides sintéticos e

ditiocarbamatos. Na comunidade, quando a gente observa que várias pessoas estão

tendo queixas semelhantes, após um episódio de contaminação do ar, da água ou dos

alimentos, ganha força a hipótese de se tratar de intoxicação aguda pelo veneno. As

crianças, as gestantes e os idosos são os mais vulneráveis nestes casos.

Isto acontece mais do que a gente imagina. No estudo epidemiológico que

fizemos no Ceará, que teve uma amostra de 545 trabalhadores examinados, 43,3%

deles tinham relatos compatíveis com episódios de intoxicação aguda em algum

momento de suas vidas. Foi triste ver que mais da metade deles sequer procurou

assistência, seja porque o serviço de saúde está longe e não funciona no horário em

que eles saem do trabalho, seja porque muitas vezes não encontram lá respostas

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suficientes para os seus problemas. E aqui já dá para a gente ver como as estatísticas

oficiais realmente não refletem a realidade, pois estes casos todos não foram

notificados...

Além das intoxicações agudas, os venenos causam também um amplo leque de

efeitos crônicos. Aqui a gente precisa prestar mais atenção ainda, pois são doenças

que acontecem por outras causas também, e refletem a exposição “ao veneno nosso

de cada dia” – um tempo mais longo, doses mais baixas. É o que acontece conosco, por

exemplo, através da ingestão de alimentos e de água contaminada – cada dia um

pouquinho, misturando vários ingredientes ativos de venenos diferentes. Acontece

também com aqueles que trabalham por mais tempo com agrotóxicos – não só no

campo, mas também na dedetização de casas ou de madeiras, na capina química nas

cidades (um absurdo!) e até nas campanhas de saúde pública, como a da dengue! E

ainda com os moradores do entorno de fábricas e fazendas.

O câncer, que tanto nos preocupa e que cada dia aparece mais: ele pode se

manifestar 5, 10 ou até 20 anos depois do início da exposição. Há diversos estudos

epidemiológicos que provam certa relação entre alguns tipos de câncer e a exposição

ocupacional ou ambiental a venenos. Para a leucemia mielóide, o linfoma não-

Hodgkin, o mieloma múltiplo há fortes evidências de correlação. Em nosso estudo,

comparando agricultores e não-agricultores no Ceará, a leucemia apareceu seis vezes

mais entre os agricultores. Há suspeitas também para o câncer de cérebro, de tireóide,

sarcomas, etc.

Alguns venenos estão sendo estudados porque conseguem enganar as nossas

células, fingir que são hormônios sexuais, e desta forma interferir no nosso sistema

endócrino (glândulas): como o DDT, clorpirifós, endosulfan, lindano, atrazina, brometo

de metila e o glifosato - este o responsável por quase a metade dos venenos que

consumimos no Brasil a cada ano. Isto é muito preocupante porque eles são capazes

de, com pequeníssimas doses administradas em períodos críticos da gestação, causar

alterações graves e permanentes na vida adulta. Estudos mostram efeitos em animais,

como ausência de testosterona (hormônio masculino) em panteras, feminização da

conduta sexual de machos e masculinização de fêmeas, etc.

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Entre humanos há evidencias de interferência também na reprodução. Vários

venenos podem fazer diminuir o número de espermatozóides no sêmen, ou causar

alterações neles que vão implicar em infertilidade dos homens (carbofurano, diazinon,

malatión, cipermetrina, endosulfan, abamectina, hexaconazol, 2,4 D, entre outros) –

um estudo na Dinamarca mostrou a redução de 50% da média de espermatozóides no

sêmen entre 1930 e 1992. Nas mulheres, podem ser causa de puberdade precoce,

aborto, parto prematuro, morte fetal, baixo peso ao nascer e até mesmo de

malformações congênitas.

O estudo realizado pela Universidade Federal do Mato Grosso, sob orientação

do Prof. Pignati, encontrou pelo menos um agrotóxico em 100% das amostras de leite

materno que colheu, e em 85% delas tinha mais de um tipo de veneno (este é um

dado que nos obriga a pensar para onde este modelo de desenvolvimento está nos

levando!). Ele encontrou também neste mesmo grupo de mulheres, que a ocorrência

de aborto estava associada à presença de β-endossulfam, aldrim e deltametrina no

leite. Outros trabalhos realizados por sua equipe confirmaram dados internacionais de

alterações congênitas em sapos, peixes e porcos em regiões de elevada contaminação

ambiental por agrotóxicos. Em seres humanos, tem sido encontrada correlação entre

hidrocefalia, malformações no coração, lábio leporino, defeitos no pênis e nos

testículos, espinha bífida.

Agrotóxicos do grupo dos organofosforados são responsáveis por efeitos

neurológicos subagudos e crônicos. Pode ser uma polineuropatia periférica, que se

manifesta por fraqueza nas pernas, dificuldade de caminhar, redução dos reflexos,

formigamento. Podem também ser sintomas do estado mental e comportamento:

dores de cabeça persistentes, redução de memória, falta de concentração, fraqueza

muscular, irritabilidade, depressão. Podem causar também a Síndrome de Parkinson e

os piretróides vêm sendo associados à hiperatividade em crianças. Número crescente

de suicídios vem sendo observado em populações cronicamente expostas a

agrotóxicos – não só porque eles têm fácil acesso a eles, mas porque a ideação suicida

faz parte do quadro de intoxicação.

Há ainda doenças respiratórias (descritas para o Paraquat, por exemplo);

doenças dos rins, doenças tóxicas do fígado. No Ceará, estudamos o caso de um

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trabalhador do agronegócio do abacaxi que por três anos e meio preparou caldas

tóxicas todas as noites: ele adoeceu aos 29 anos e morreu em quatro meses, por uma

hepatopatia crônica tóxica, como demonstraram os dados clínicos, toxicológicos,

epidemiológicos e ocupacionais.

Estas doenças podem ter outras causas, como outros poluentes ambientais ou

do trabalho, fatores genéticos, hábitos de vida. Mas é importante a gente observar a

presença dos venenos em nossa vida, debater este assunto na comunidade, buscar

mais informação, levar o problema aos profissionais de saúde.

E o Estado?

A Vigilância da Qualidade da água para consumo humano é uma atribuição do

Ministério da Saúde, por meio da Portaria 2914/11, que estabelece um padrão de

potabilidade para substâncias químicas que representam risco à saúde, ou seja,

permite que estejam presentes na água de consumo humano 27 princípios ativos de

agrotóxicos!

Isto já é muito grave, mas na verdade esta legislação não vem sendo cumprida

adequadamente: a Portaria exige o monitoramento de apenas cerca de 5% dos

ingredientes ativos registrados no país (430). Além disso, faltam laboratórios públicos

para fazer estas análises, e faltam condições mínimas para garantir a realização de

ações de vigilância de populações expostas a agrotóxicos.

Muita luta temos pela frente para defender o direito à saúde... Ainda bem que já

temos um caminho a seguir: a agricultura familiar e camponesa, a agroecologia, que

junta Saúde com Justiça e Bem-viver!