Alba Valdez e Rachel de Queiroz: a palavra da mulher na Literatura e Imprensa Cearense

22
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA UFPB KEYLE SAMARA FERREIRA DE SOUZA A PALAVRA DA MULHER NA HISTÓRIA DA LITERATURA E DA IMPRENSA CEARENSE: REPRESENTAÇÕES, MEMÓRIAS E ESCRITA DE SI NA CRÔNICA DE ALBA VALDEZ E RACHEL DE QUEIROZ Área: Literatura, Cultura e Tradução Linha de pesquisa: Estudos Literários da Idade Média ao século XIX Possível Orientadora: Socorro de Fátima Pacífico Barbosa JOÃO PESSOA - PB 2014

description

Projeto de Pesquisa de Keyle Samara

Transcript of Alba Valdez e Rachel de Queiroz: a palavra da mulher na Literatura e Imprensa Cearense

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA UFPB

    KEYLE SAMARA FERREIRA DE SOUZA

    A PALAVRA DA MULHER NA HISTRIA DA LITERATURA E DA IMPRENSA

    CEARENSE:

    REPRESENTAES, MEMRIAS E ESCRITA DE SI NA CRNICA DE

    ALBA VALDEZ E RACHEL DE QUEIROZ

    rea: Literatura, Cultura e Traduo

    Linha de pesquisa: Estudos Literrios da Idade Mdia ao sculo XIX

    Possvel Orientadora: Socorro de Ftima Pacfico Barbosa

    JOO PESSOA - PB

    2014

  • KEYLE SAMARA FERREIRA DE SOUZA

    A PALAVRA DA MULHER NA HISTRIA DA LITERATURA E DA IMPRENSA

    CEARENSE:

    REPRESENTAES, MEMRIAS E ESCRITA DE SI NA CRNICA DE

    ALBA VALDEZ E RACHEL DE QUEIROZ

    Projeto de pesquisa apresentado

    Universidade Federal da Paraba-UFPB, para

    anlise na rea Literatura, Cultura e Traduo,

    na linha de pesquisa Estudos Literrios da

    Idade Mdia ao sculo XIX, como requisito

    para participar da seleo para Doutorado em

    Letras, 2015.1.

    Possvel Orientadora: Socorro de Ftima

    Pacfico Barbosa.

    JOO PESSOA - PB

    2014

  • SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................................................. .3

    1 OBJETO DE ESTUDO............................................................................................. .6

    2 MARCO TERICO ................................................................................................. .9

    3 CRONOGRAMA ...................................................................................................... 18

    REFERNCIAS ....................................................................................................................19

  • INTRODUO

    H uma grande relevncia em se aprofundar nas pesquisas sobre as relaes

    histrico-culturais entre a Literatura e a Imprensa, uma vez que, os peridicos possibilitam

    revisar a histria literria, como tambm ir alm dos cnones vigentes, no pela

    desconstruo, mas pela insero de escritores, e principalmente de escritoras que foram

    silenciadas e esquecidas pela histria da literatura, assim como, pela incluso de gneros

    textuais como a crnica, que foi durante muito tempo considerado um texto no literrio.

    Essas circunstncias tambm caracterizam a Literatura e a Imprensa cearense,

    principalmente a situao das escritoras e jornalistas da Terra da Luz. Nessa perspectiva, o

    estudo da crnica cearense de autoria feminina possibilita a renovao ou at a criao de

    novos cnones, que podem coexistir, no se restringindo a novos nomes ou novas obras, mas

    tambm a novos gneros anteriormente excludos e inferiorizados, como a crnica.

    As caractersticas hbridas da crnica podem ser anlogas aos de jornalistas e

    escritores ou escritoras que transitam habilmente entre a imprensa e a literatura, de forma que

    o processo de escrita e sua prpria escritura so influenciados por seus respectivos suportes.

    Nesse contexto, importante buscar respostas para a seguinte problemtica: Como rastrear o

    processo de incluso da crnica de autoria feminina na histria da Literatura e da Imprensa

    Cearense?

    Considerando esta questo central, este trabalho pretende ultrapassar os registros

    histricos, para analisar tambm a construo da ntima relao e das tnues e permeveis

    fronteiras entre o literrio e o jornalstico, para buscar a compreenso da simbiose dos

    discursos, das transformaes mtuas entre essas narrativas. Assim como tambm, caminhar

    pelos campos ainda pouco explorados da escrita da mulher nos jornais, reconhecendo como

    estes peridicos influenciaram na sua escritura.

    No Cear, a Literatura e a Imprensa, desde o sculo XIX, caminharam de mos

    dadas, de forma que no se pode estudar um sem considerar o outro, escrita literria e

    jornalstica se retroalimentaram nas terras alencarinas. E apesar da pena ser um ofcio

    dominado pelos homens, as mulheres cearenses tambm escreveram e publicaram. Elas

    estiveram presentes em todos os movimentos e associaes literrias que vingaram no Cear e

    muitas ousavam frequentar os cafs e redaes de jornais, inclusive fundando peridicos para

    defender os direitos femininos.

    Entretanto, devido s bases patriarcalistas da sociedade brasileira e cearense,

    muito da produo literria e jornalstica das mulheres cearenses ficaram a margem da

    3

  • histria, da leitura, dos estudos nas escolas e academias, configurando-se assim, a necessidade

    de se investigar a escrita feminina nos jornais na contemporaneidade. Neste universo literrio

    e jornalstico, para considerar a palavra da mulher cearense, preciso destacar a relevncia

    das escritoras e jornalistas Alba Valdez e Rachel de Queiroz.

    A escolha dessas duas mulheres oportunizar a constituio de um panorama

    scio-histrico-cultural da faceta da autoria feminina em diferentes suportes textuais: jornais,

    revistas e livros. Pois, se a escrita feminina se desenvolveu junto com a mulher, esse estudo

    permitir o acompanhamento desse processo no perodo do final do sculo XIX e no decorrer

    do sculo XX. Portanto, tem-se como objetivo geral desta pesquisa: rastrear o processo de

    incluso da crnica de autoria feminina e das escritoras/jornalistas Alba Valdez e Rachel de

    Queiroz na histria da Literatura e da Imprensa cearense.

    A escrita jornalstico-literria de Alba Valdez e Rachel de Queiroz implica na

    conduo da discusso para a escrita de autoria feminina na Literatura e na Imprensa, assim

    como para a anlise do gnero crnica, uma vez que ambas tem significativa produo nesse

    gnero. Todos esses aspectos so importantes para o reconhecimento da trajetria

    efervescente do fazer literrio e jornalstico cearense, em constante mixagem e perene

    mutao.

    Para tanto, tambm essencial definir objetivos especficos, que so formulados a

    partir das questes norteadoras: evidenciar as interseces entre a escrita literria e

    jornalstica no discurso das cronistas, analisando as relaes entre histria e fico; identificar

    as contribuies da trajetria biogrfica e bibliogrfica de Alba Valdez e Rachel de Queiroz

    para o panorama da crnica cearense; analisar em que medida os contextos histrico, social e

    cultural, presentes nas crnicas destas escritoras/jornalistas, legitimam o espao da mulher e

    da escrita feminina dentro da sociedade cearense e brasileira no final do sculo XIX e no

    decorrer do sculo XX; assim como, reconhecer a relevncia dos registros de memria e

    escrita de si na crnica de autoria feminina.

    Alba Valdez nasceu em 12 de dezembro de 1874, em So Francisco da

    Uruburetama, atual Itapaj, pequeno municpio do interior do Cear, todavia, ainda menina

    mudou-se com a famlia para Fortaleza, fugindo da seca devastadora de 1877 a 1879. Na

    capital, com nome de batismo Maria Rodrigues Peixe estudou, cresceu e se formou

    professora, mas, logo que inicia sua carreira de jornalista, cronista, crtica literria e

    romancista, adota o pseudnimo Alba Valdez.

    Embora no seja muito conhecida no cenrio literrio cearense, tampouco

    brasileiro, Alba Valdez teve textos seus traduzidos publicados para o francs, como o texto a

    4

  • A carta no jornal parisiense Le Matin, assim como, reconhecida e admirada pelos

    escandinavos, devido s tradues de seus textos na Sucia. Ela defendeu os direitos das

    mulheres, fundou em 1904 a primeira agremiao literria feminina, a Liga Feminista

    Cearense. A Liga possua seu prprio peridico, o que era uma marca dos movimentos

    literrios do Cear, e este colocou a literatura do estado em consonncia com as lutas

    feministas travadas no restante do pas. Foi a primeira mulher a entrar na Academia Cearense

    de Letras, episdio marcado por ruidosa polmica, como tambm ocorreu com a escritora dO

    Quinze, sua conterrnea.

    Rachel de Queiroz (1910-2010), conhecida romancista, primeira mulher a ser

    aceita na Academia Brasileira de Letras, como Alba Valdez tambm tem maior quantidade de

    publicaes em peridicos do que em formato de livro. A cearense Rachel de Queiroz tem,

    alm de sua obra literria j muito conhecida, inmeras crnicas publicadas apenas em

    jornais. Desse modo, as publicaes na imprensa de ambas escritoras as aproximam bem

    mais que as literrias. As cronistas Alba Valdez e Rachel de Queiroz suscitam a necessidade

    de pesquisas e buscas de textos que permanecem desconhecidos, pois caram na armadilha da

    efemeridade dos peridicos e da indiferena de uma sociedade patriarcal.

    As crnicas de Alba Valdez e Rachel de Queiroz so produes de grande valia

    para histria da crnica cearense, sendo, portanto, muito relevante para a Literatura e

    Imprensa feminina a pesquisa documental dessas escritoras/jornalistas. Localizar esses textos

    em acervos de jornais e peridicos, e analis-los possibilitar ter uma viso mais ampla da

    presena feminina na literatura e na imprensa, da memria e escrita de si de mulheres do

    sculo XIX e XX.

    Essa pesquisa, ento, possibilitar o encontro entre literatura e o jornalismo

    atravs do estudo das crnicas femininas dessas duas autoras cearenses, e o resgate desses

    textos esquecidos nos acervos de peridicos pblicos e particulares. Tambm ser importante

    conhecer o itinerrio dessas escritoras/jornalistas, que constroem a histria das mulheres

    atravs das representaes de memrias e escritas de si, elementos constitutivos de suas

    crnicas, mergulhando no universo da escrita feminina.

    Atravs de pesquisa bibliogrfica sero realizados os estudos sobre Literatura e

    Imprensa, embasados principalmente pelas teorias de Abreu (2006), Barbosa (2007), Bulhes

    (2007), Castro e Galeno (2002), Sodr (1983), Chartier (1999), Lima (2006), Luca (2005),

    Maingueneau (1996; 2011; 2012) e Melo (2003) entre outros; sobre imprensa feminina e a

    escrita de mulheres recorrer-se--se Buitoni (1990; 2009), Coelho (1993; 2002), Del Priore

    (2011), Lobo (2006), Perrot (2005; 2007); e sobre o gnero da crnica, nas leituras de

    5

  • Arrigucci Jr. (1983), Borelli (1996), Cndido (1992), Moiss (2007) e S (2005), entre outros.

    Para fundamentar as anlises da memria e da escrita de si estudar-se- Bosi (2004), Candau

    (2011), Foucault (2012; 2013), Rago (2004; 2013), entre outros, que auxiliaro a sinalizar a

    presena feminina na histria da Literatura e da Imprensa cearense.

    Dessa forma, os procedimentos metodolgicos para desenvolver esta pesquisa

    podem ser divididos em trs etapas: o estudo bibliogrfico, que se caracteriza pela leitura da

    narrativa ficcional de Alba Valdez e Rachel de Queiroz, e outras obras que possam orientar o

    desenvolvimento da pesquisa; o estudo documental, em que se buscar contribuies ltero-

    jornalsticas das cronistas supracitadas em peridicos do final do sculo XIX e sculo XX; a

    anlise literria de representaes, memrias e escrita se si, como elementos constitutivos da

    crnica de autoria feminina na Literatura e Imprensa do Cear.

    A primeira etapa consta da leitura das narrativas ficcionais, de Alba Valdez e

    Rachel de Queiroz para anlise das caractersticas da crnica feminina cearense. Ser

    realizada tambm leitura, fichamento e resenhas de outras obras de referncia para

    representaes, memria, escrita de si, assim como de estudo da obra racheliana e valdeziana,

    para que se construa uma fundamentao para o desenvolvimento do estudo analtico.

    Na segunda etapa, a pesquisa documental em peridicos do sculo XIX e XX, em

    acervos pblicos e particulares, visa acrescentar textos inditos, ainda no publicados em

    livros, nem em seletas de crnicas organizadas por outrem, a literatura feminina cearense,

    nordestina e brasileira.

    A ltima etapa desta investigao analisar as representaes das marcas de

    memria, indcios de escrita de si nas crnicas, e assim, integrar o conhecimento construdo

    ao longo da pesquisa em um texto final, que no ter a pretenso de esgotar o assunto, mas de

    apresentar-se como chave para a compreenso dos processos de anlise dos elementos

    constitutivos da crnica, presentes na literatura e imprensa do sculo XIX, e reconhecendo sua

    importncia, recorrncia, crescimento e reescrituras na literatura e imprensa do sculo XX.

    Dessa maneira, favorecer-se- novas perspectivas de leituras das obras das autoras,

    permitindo tambm a renovao da literatura cearense atravs dos peridicos.

    1 OBJETO DE ESTUDO

    A Literatura e a Imprensa cearense no sculo XIX e no decorrer do sculo XX tm

    ntima relao. Cada movimento literrio, de 1813, com os chamados Oiteiros, incio das

    6

  • belas letras cearenses, at as manifestaes atuais da Literatura da Terra da Luz, tiveram

    explcita ligao com jornais e revistas.

    Peridicos literrios ou no sempre foram importantes veculos de discusso e

    divulgao de ideias e da arte literria no Cear. Barreira (1986, p. 10) registra a relevncia da

    relao imprensa e literatura cearense:

    [...] as revistas e jornais literrios rgos ou no das sociedades apreciadas que tiveram mais eficaz influxo no progresso de nossas letras, plasmando e estruturando estilos que mais tarde se tornaram

    notveis, em propores e cenrios mais amplos, nos livros

    ulteriormente publicados no Cear e fora dele.

    Embora essa importncia da imprensa para o desenvolvimento literrio cearense

    seja um fato consumado, os peridicos ainda so um campo aberto e pouco explorado para a

    pesquisa acadmica. Jornais e revistas so territrios que guardam autores e textos de diversos

    gneros de grande riqueza literria, documental-histrica.

    Alm dos conhecidos folhetins, dos romances e poesias, o casamento entre a

    imprensa e a literatura tem em sua prole a crnica, gnero que nasceu humilde, sem os status

    de arte, mas que foi conquistando espao na Literatura, mantendo-se como um frutfero

    gnero narrativo at hoje.

    A semelhana da crnica, a escrita feminina tambm foi marginalizada, e foi na

    palavra, principalmente atravs da imprensa que as mulheres tiveram a possibilidade de ir do

    espao privado ao pbico. Na provncia cearense, nos sculos XIX e XX, no foi diferente do

    restante do mundo e do Brasil, nem para as mulheres nem para a crnica, ambos precisaram

    lutar para conseguir a legitimao que hoje conquistaram.

    Assim, h nos acervos de peridicos milhares de crnicas ainda inditas em

    formato de livro, especialmente textos de mulheres cearenses, que podem contribuir para a

    reviso e enriquecimento da histria da Literatura. Macedo (2012) considera:

    A participao da mulher na literatura cearense, ainda que possa ser julgada

    inexpressiva, no seria merecedora do desprezo a que tem sido relegada

    pelos nossos historiadores. Talvez com as honrosas excees de Snzio de

    Azevedo e Otaclio Colares, responsvel, este ltimo, pela redescoberta de

    Emlia Freitas e Francisca Clotilde, correto seria afirmar que a historiografia

    literria cearense carece de informaes acerca da produo literria das

    nossas escritoras.

    7

  • Na verdade, os peridicos podem nos revelar outras autorias femininas, com

    textos de qualidade em toda a Literatura da terra de Iracema, mulheres donas de escrituras de

    qualidade, combativas, conscientes, como rsula Garcia, Alba Valdez, Ana Fac, Francisca

    Clotilde, Emlia Freitas, Rachel de Queiroz, Ana Miranda, Trcia Montenegro, entre outras.

    Estas escritoras cearenses tm significativa produo em jornais e revistas, e muitas foram

    exmias cronistas.

    A crnica de autoria das escritoras/jornalistas cearenses o alvo desta pesquisa, a

    produo indita de Alba Valdez e Rachel de Queiroz objeto desta investigao. Nesse

    contexto, esta pesquisa buscar investigar o processo de insero da crnica de autoria

    feminina na Literatura Cearense, gnero que teve o jornal como suporte.

    Esse suporte textual que vai interferir nitidamente na escrita literria, como

    defende Barbosa (1997), tem forte influncia na escrita da mulher cearense. O garimpo de

    textos de Alba Valdez e Rachel de Queiroz, duas mulheres que marcaram suas pocas,

    transgredindo regras sociais e espaos, conquistando o respeito para a palavra da mulher na

    imprensa e na literatura, ainda pode ser considerada ignorada em sua maior parte. Esse estudo

    acrescentar no somente textos as obras dessas autoras, mas tambm abrir novos horizontes

    para leitura e anlise da crnica, gnero to anfbio, to compsito.

    H, ento, a perspectiva de um novo olhar sobre a literatura nacional, um ponto de

    vista que no parte de um centro, mas considera a ideia de Bessire (2011) de vrios centros,

    uma literatura cearense, nordestina, que no pode ser reduzida narrativa das secas e agruras

    do serto, pois existem muito mais temas e uma grande diversidade de gneros textuais, nos

    mais variados suportes.

    A crnica traz a tona todo o sincretismo cultural e textual, visto que esse gnero

    permite a mistura e a coexistncia de diferentes tipologias textuais, como a poesia, a narrativa,

    a descrio, a dissertao, como tambm possibilita a concretizao de uma miscelnea

    histrica e discursiva entre a literatura e o jornalismo da forma mais ampla e abrangente.

    Nesse contexto, prope-se pensar a crnica como um texto no entrelugar entre o

    literrio e o jornalstico. E ainda possvel pensar na crnica em outros interstcios, como

    entre a realidade e a fico, o que possibilita reconhecer a subjetividade que emerge da forte

    presena de memrias e da escrita de si como traos da escritura das cronistas. A crnica um

    texto que tem no cotidiano sua matria-prima, no numa cpia ou reproduo da realidade,

    mas na representao e reinveno desse dia a dia, nas artes de fazer (DE CERTEAU, 2011).

    Considerando essa perspectiva, a crnica permite uma anlise mais profunda do

    universo feminino, apesar de ser um texto mais curto, de trama e fbula menos complexos, h

    8

  • a possibilidade de penetrar no cotidiano e no pensamento da mulher, que expe suas opinies,

    valores, crenas, ideais e rotinas.

    A crnica pode ser considerada como o discurso que se aloja no interstcio da

    realidade e fico, dando continuidade e encadeamento a rotina cotidiana, prosseguindo com a

    narrativa, estimulando a reflexo, sem fissuras entre a vida e o discurso, entre a literatura e a

    imprensa. Para tanto, o cronista no toma a palavra, ele se deixa envolver por ela, sabendo

    que ela d prosseguimento s vivncias humanas. Desse modo, a crnica pode ser a realizao

    do desejo de Foucault (2013) de ser levado pelas palavras ao invs de apossar-se delas.

    2 MARCO TERICO

    Os peridicos em geral podem ser importantes veculos culturais em que se pode

    observar a simbiose entre a literatura e a imprensa, relao que no se restringe imprensa

    literria. Mas os vnculos entre essas duas prticas verbais vo alm de contedo e suporte.

    No se podem reduzir as conexes entre jornalistas e literatos apenas ao uso da palavra, nem

    tampouco distingui-los por respectivamente trabalharem um com a realidade e outro com a

    fico, ou o primeiro com atualidades e a urgncia, enquanto o segundo com temas

    atemporais. Ainda se deve considerar a tcnica utilizada nos textos literrios e nos textos

    jornalsticos:

    Intrpretes por natureza, jornalistas e escritores so tambm interpretados a

    partir de suas tcnicas de interpretao. O que significa dizer tambm que

    essa interpretao exige uma autocompreenso atenta e rigorosa dessas

    tcnicas e desses intrpretes (CASTRO; GALENO, 2002, p. 10).

    Nessa perspectiva, Castro e Galeno (2002) sublinham aspectos que merecem

    ateno no estudo da relao entre o jornalismo e a literatura alm da diversidade

    interpretativa. Segundo os autores, preciso considerar o estilo, a objetividade, a metfora, a

    crnica, o embate com a realidade e os diferentes papis do jornalista e do escritor. Isso

    conduz a um mergulho nas linguagens jornalstica e literria, para observar seus pontos de

    fuso, suas distines, assim como, ao campo discursivo do momento da enunciao e s

    condies de produo.

    Alba Valdez e Rachel de Queiroz experimentaram e deram vida a essa relao

    entre Literatura e Imprensa, durante suas trajetrias bibliogrficas, uma vez que transitaram

    9

  • entre os jornais e os livros com naturalidade e espontaneidade, fazendo de suas escrituras um

    compsito dessas prticas narrativas.

    A influncia mtua entre a escritura literria e a jornalstica inegvel, Medel

    (2002) aponta esse vnculo na construo de determinados discursos jornalsticos, que se

    pautam em modelos literrios, caracterizando o chamado articulismo criativo, que consiste

    na elaborao de artigos criativos que fazem uso de recursos da literatura. Essa prtica

    desenvolvida, principalmente, na segunda metade do sculo XX, sendo considerada por

    Medel como uma das marcas dos novos jornalismos, estilo que se caracteriza por se

    construir em um territrio intermedirio, justamente entre o jornalismo e a literatura. Desde o

    Romantismo, com a publicao dos folhetins, no sculo XIX, jornalismo e literatura tm

    andado de mos dadas:

    Comea a ser comum afirmar que em alguns artigos, reportagens ou crnicas

    publicadas na imprensa, encontra-se a melhor prosa atual. Tampouco pode

    negar-se que em poucos momentos da histria os escritores tem tido a presena to importante na imprensa como nestes ltimos anos. Qui isso

    seja devido ao papel desempenhado pelos suplementos culturais, ao mesmo

    auge do articulismo literrio, recuperada presena do conto e publicao da imprensa, por entrega de obras de fico. Por tudo isso no parece arriscado demais pensar na influncia que o jornalismo e a aplicao

    de novas tecnologias tm hoje nos gneros narrativos (MEDEL, 2002, p.16).

    O jornalismo tambm tem presena importante na literatura, escritores e

    jornalistas, especialmente os de opinio, muitas vezes so a mesma pessoa, no sendo mera

    coincidncia, mas uma tendncia do sculo XIX e XX. A leitura do depoimento do escritor

    Moacyr Scliar no texto Jornalismo e Literatura: a frtil convivncia (2002) explicita

    informaes contundentes sobre como a linguagem jornalstica foi contribuindo para um novo

    discurso literrio:

    Escrevo em jornal, mas no sou jornalista [...]. Minha funo mais limitada: escrevo crnicas. [...] No sou mais o escritor que eu era quando

    me tornei colaborador de jornais. O que mudou? Vrias coisas. [...] aprendi a

    escrever de forma sistemtica, com ou sem inspirao, que uma coisa que s vezes some por muito tempo, deixando o escritor frustrado. Na

    verdade, o jeito de caar inspirao escrevendo. Palavra puxa palavra, frase

    puxa frase e de repente l est a ideia, nossa espera. A segunda coisa que aprendi foi ser objetivo. No passado, os escritores se deixavam arrastar pelo

    texto, que no raro se tornava caudaloso, fazendo com que o autor

    simplesmente esquecesse de onde vinha e para onde ia. O jornalismo mostra

    que a objetividade essencial. [...] aprendi a ser sinttico. [...] Tambm aprendi a ser pontual. Afinal, nenhum ser humano tem todo o tempo e todo o

    espao do mundo. (2002, p. 13-14)

    10

  • A literatura se adqua ao tempo e s condies do leitor, do sculo XIX ao XX,

    ela se transformou e abriu espao para interao com outras linguagens como a do jornal, do

    teatro, da pintura, da msica, do cinema e da cincia. O autor no pode ignorar seu pblico,

    suas necessidades e exigncias. A experincia de Scliar, assim como a das escritoras foco

    deste estudo, nos jornais transforma seu estilo e sua escritura no deixa de ser literria, ela

    apenas assume uma posio fronteiria entre a tcnica e a arte.

    Alba Valdez e Rachel de Queiroz tm muito em comum, cada uma a seu tempo.

    Ambas estudaram na Escola Normal do Cear e formaram-se professoras. No entanto, Alba

    Valdez nunca abandonou o magistrio, mesmo entrando no mundo das letras, escrevendo para

    peridicos e publicando os livros Em Sonho (1901), este coletnea de crnicas e contos j

    publicados na imprensa, e Dias de luz (1907), um romance memorialista. O escritor Antnio

    Sales apud Barreira (1951, p.57) afirma que Alba Valdez a pena mais aprimorada que tem

    produzido a mentalidade feminina entre ns, fragmentos de imaginao, enfeixados em um

    livro com o ttulo Em Sonho.

    Barreira (1951, p.57) ainda menciona as crticas dos escritores Rodrigues de

    Carvalho e Guiomar Torreso sobre o primeiro livro lanado pela autora, respectivamente:

    fantasias e endeixas de uma alma artisticamente sonhadora. Estilo fluente, fcil e delicado,

    concepo de um subjetivismo cerleo, prprio da mulher sonhadora[sic]; e:

    [...] Um livro de mulher desperta sempre ainda a nossa curiosidade! - lida a

    primeira pgina, a leitura seguiu ininterrupta at o fim! O contrrio era

    impossvel! Um encanto tudo aquilo! Um ramalhete de flores das mais suaves cores, do mais delicado aroma! Meditaes de uma doce e potica

    melancolia! Narrativas singelas, despretenciosas, descries primorosamente

    feitas, e em tudo isto disputando primasias a elevao do pensamento com a correo da frase (TORRESO apud BARREIRA, 1951, p.58).

    A crtica positiva a Em Sonho de Alba Valdez refora o esteretipo da escrita

    feminina como delicada e fantasiosa, que atende a um modelo-de-comportamento que se

    considerava ideal mulher (COELHO, 1993, p. 14), ou seja, a escrita feminina seria

    delicada, psicologicamente sutil, sensvel, ingnua, afetiva e frgil como se esperava que a

    mulher fosse.

    Quanto segunda obra, o jornal A Repblica, apud Duarte (2004), de oito de

    maro de 1907, registra o aparecimento do primeiro romance de Alba Valdez, fazendo uma

    anlise de seu estilo de escrita:

    11

  • Dias de Luz um volumezinho de 120 pginas moderna, portanto. Esto abolidos os livros maudos em que, quase sempre, a carncia de idias

    contrastava com o profuso exterior. Alba Valdez veio firmar com a sua

    novela os crditos de estilista primorosa h muito tempo proclamada pela crtica. [...] Mas no se pense que s por amor de estilo escreveu ela o seu

    livro, Dias de Luz seja um obra de entretenimento, literatura para

    preguiceiras. A autora, pela boca de suas personagens, enuncia as idias

    sobre instruo pblica, incita o povo ao amor ptria e torna-se eloqente quando pinta quadros domsticos. [...] Os tipos do livro de Alba Valdez so

    bem estruturados, a ponto do leitor se familiarizar com eles, idealizar-lhes

    as feies, como se na realidade os conhecesse. A escritora observa os menores caprichos da mente dos seus heris, e nem esquece aquela

    singularidade de Ins (uma personagem) gravando na memria o nmero

    27, da idade de certa condessa dos contos de Catulle. Vinte e sete anos! E isto lhe ficou parecendo uma idade galante que a mooila, zombando muitas

    vezes por ter apenas dezesseis, almejava como a coisa mais feliz deste

    mundo [sic] (Jornal A Repblica, Fortaleza, oito de maro de 1907 apud Duarte, 2004, p.627).

    Nesta crtica a obra de Valdez j considerada como moderna em espessura

    (apenas 120 pginas) e na forma de trazer a realidade como matria para fico, o que se

    contrape ao ttulo de sua primeira obra. O pioneirismo de Alba Valdez , portanto notrio,

    uma escrita feminina que j anuncia as caractersticas do movimento modernista, o que

    tambm pode ser confirmado a partir de seu ingresso em uma Academia de Letras. Ela foi

    convidada a entrar na Academia Cearense de Letras (ACL), fundada em 1894, no ano de

    1922, e excluda em 1930 por ocasio de nova reorganizao do grupo para compor vacncias

    de 20 membros que ou haviam falecido ou se encontravam ausentes. Contudo, em 1937, Alba

    Valdez se candidata nova vaga na ACL e eleita, mas s toma posse em 1953. A

    composio da ACL, considerando o sexo assim descrita atualmente em pgina da entidade

    na web, ao apresentar alguns dados estatsticos na seo/link Acadmicos de Ontem:

    A Academia Cearense de Letras teve somente onze acadmicas em 115 anos

    de existncia, o que constitui 6,2% do total. No perodo da fundao,

    nenhuma escritora foi convidada para participar da nova sociedade mas,

    atualmente, seu quadro de acadmicos conta com seis mulheres (15 %). Comparando com a casa de Machado de Assis verifica-se que naquela

    instituio entre 240 acadmicos somente seis (2,5%) so representantes do

    sexo feminino. A primeira mulher a fazer parte da Academia Cearense de Letras foi a

    escritora Alba Valdez, que ingressou na instituio na reorganizao de

    1922. Possua intensa atividade literria, tendo escrito vrios livros e colaborado com jornais da cidade e de outros estados. Participou do Grmio

    Literrio e da Liga Feminina Independente, da qual foi presidente.

    Na reorganizao ocorrida em 1930, no foi convidada para ser membro

    integrante da academia, fazendo parte do chamado grupo dos injustiados.

    12

  • No entanto, graas a seu valor, em 1937 candidatou-se e foi eleita para

    ocupar a vaga deixada por Leiria de Andrade. Alba Valdez foi, portanto,

    uma das primeiras mulheres a entrar numa academia de Letras do Brasil. Rachel de Queiroz, outra cearense, foi a primeira escritora a ingressar na

    Academia Brasileira de Letras. Ela pertenceu tambm a nossa instituio,

    pois em 1994 foi eleita para a vaga deixada pelo contista Moreira Campos,

    cadeira 32, cujo patrono Ulisses Pennafort. Tomou posse no dia 15 de agosto de 1994, por ocasio das festividades do primeiro centenrio de

    fundao da Academia Cearense de Letras (CEAR, 2014).1

    Conforme essas informaes percebem-se a misoginia social enfrentada pelas

    mulheres, especialmente no mundo das letras, sejam elas literrias ou jornalsticas. preciso

    salientar que, at hoje, em 120 anos de existncia, e apesar das lutas feministas de escritoras

    como Alba Valdez, todos os patronos da ACL ainda so homens.

    Esse patriarcalismo na literatura pode tambm ser reforado pelo fato de Alba

    Valdez, apesar de participar de inmeros movimentos e outras associaes literrias

    cearenses, como se comprova a partir de registros de Barreira (1986)2 , quando este lista os

    membros de associaes e o nome de Alba Valdez no aparece.

    A produo de Alba Valdez na imprensa pouco explorada pela crtica literria,

    uma vez que, os gneros ltero-jornalsticos ficaram margem dos cnones e estudos

    acadmicos. Assim, essa pesquisa pode acrescentar a obra de Alba Valdez textos ainda

    inditos.

    Na crnica Horrvel Morbus, publicada em 1927 por Alba Valdez no jornal O

    Nordeste3, trata da proliferao da lepra em Fortaleza, fato histrico que marcou a dcada de

    1920 no Brasil e na capital do Cear4.

    Muitos transeuntes iam e vinham, cruzando-se, tomando direces

    differentes. Ningum se detinha. Todos pareciam ensimesmados nos seus projectos, nos seus negcios, na sua vida. Pus-me a andar sob o lastro da

    imaginao que perdera o freio. Recordava-me de que h poucos annos

    relativamente os casos de mospha no Cear se contavam por unidades

    simples. Presentemente, o resultado numrico se eleva s centenas aos milhares, j pelo contagio, j pela entrada franca de doentes vindos de outras

    partes [sic] (VALDEZ, 1927, p. 4).

    1 Disponvel em: http://www.ceara.pro.br/acl/Academicosanteriores/AcademicosAnteriores.html . Acesso em: 12

    de Out. 2014. 2 Edio Fac-similar de monografia de 1948, com o ttulo de Histria da Literatura Cearense, reeditada na

    coleo Instituto do Cear sobre a Histria do Cear, que tinha como intuito de publicar 26 monografias que

    trataram da Histria cearense sob os mais diversos aspectos. 3 Este jornal fortalezense publicou essa crnica duas vezes: em 07 de abril de 1927 (p.03) e 12 de abril de 1927 (p.04) 4 O Brasil enfrentou grave epidemia de lepra ou hansenase, tambm chamada como morfia, na dcada de 1920.

    13

  • O fragmento mostra que o texto ganha valor histrico, visto que acaba por

    documentar importante acontecimento do Cear. Esta uma caracterstica da crnica, que na

    sua construo d notoriedade a um fato circunstancial, comum e at insignificante do dia a

    dia (S, 2005), como um pedinte que pede esmolas e sensibiliza os passantes por ser esse

    portador de uma enfermidade que o impede de trabalhar. Entretanto, a percepo da cronista

    AlbaValdez, suas reflexes, sensaes, pensamentos, construo lingustica que amplificam a

    carga emocional do texto, de forma que ele vai alm da notcia e da reportagem meramente

    jornalstica. Toda a descrio e informatividade destes gneros textuais se juntam aos recursos

    literrios, e com foco narrativo em primeira pessoa, Alba Valdez conduz o leitor pelo

    caminho do seu pensamento e dos seus medos:

    E amanh? Pensei na moeda do cavalheiro fazendo continuo: das mozinhas cheias de ps, ella iria para outras mos que a conduziriam at a gaveta

    do marceeiro, do padeiro, do magarefe, contaminando tudo. Das gavetas

    commerciaes passaria para a bolsa do empregado de bondes, que daria

    em trco ao grosso publico; entraria na minha casa, em todas as casas, em innumeras algibeiras, e voltaria, quem sabe? s palminhas donde tinha

    sado para reencetar outro cyclo malfico. Pensei ainda na embalagem de

    papel vazia, rastejando alhures, lobrigada por mulher do povo, que a aproveitara para empacotar a compra [sic] (VALDEZ, 1927, p. 4).

    Desse modo, j se tm indcios de uma escrita de si nesta produo feminina, em

    que as histrias e memrias se misturam, e assim ocorre uma reinveno de si e da relao

    com o outro (RAGO, 2013). Essa escrita se constri a partir do discurso da escritora/jornalista

    que promove a interao entre seus valores, ideais e os relatos da histria e informaes sob a

    sua perspectiva.

    Alba Valdez vivia a polmica da sua excluso da ACL, nas primeiras dcadas do

    sculo XX, enquanto Rachel de Queiroz iniciava sua carreira como escritora nos jornais e

    logo depois escreveria O Quinze, romance que a consagrou nacionalmente. Considerando-se

    sempre muito mais uma jornalista do que como romancista, Rachel de Queiroz, atravessou o

    sculo XX contando histrias, atravs de memrias e relatos cotidianos do seu serto cearense

    ou do Rio de Janeiro, e atravs da fora de suas personagens femininas. Nas milhares de

    crnicas rachelianas a escrita de si e a memria tambm se sobressaem.

    esta Rachel de Queiroz cronista, Sherazade de mil e uma histrias, que

    mistura o melhor do jornal e da literatura, que transita pelo cotidiano da realidade e pela

    fico, o alvo desta pesquisa. Isso s possvel porque a crnica est sempre procura de

    fissuras no real, matria da qual se nutre e nela encontra uma grande variedade de assuntos.

    14

  • na relao entre a fico e realidade que o cronista se fortalece para escrever um texto todo

    dia, com liberdade de forma, que lhe permite misturar gneros e transitar entre a linguagem

    oral e formal, entre a poesia e a prosa, enfim entre as ambiguidades e mobilidades que

    constituem a crnica.

    Na crnica Fora de Moda5, a cronista Rachel de Queiroz defende a ideia de que

    moda no somente coisa de mulher, mas algo que est presente no cotidiano de

    mulheres e homens, da medicina a agricultura. Em seu desfecho, Rachel de Queiroz traz uma

    contao de histria moda nordestina, um causo: No auge da campanha pela oiticica, no

    Nordeste, [...] (QUEIROZ, 1978, p.3). A autora relata que um vaqueiro contava ao patro

    que o vizinho andava lucrando muito com a oiticica, uma rvore silvestre que demora anos

    para crescer e frutificar, o que inviabilizava seu plantio. O vaqueiro coberto de inveja e

    frustrao por s existirem juazeiros na propriedade em que trabalha sugere ao dono: Doutor,

    o senhor que deputado, por que no arranja tambm com o governo uma influenciazinha

    para o ju? (QUEIROZ, 1978, p.3).

    O que o sertanejo desejava que o ju, como a oiticica, tambm entrasse na moda

    e passasse a dar lucro. Rachel de Queiroz de forma engenhosa destaca que a moda sofre

    influncias, serve a determinados interesses. A ironia provoca um efeito de humor. H

    unanimidade entre os pesquisadores ao vincular a crnica ideia de tempo, ao jornal e ao

    cotidiano, a fala coloquial. Arrigucci Jr. (1987) chama a ateno para essas questes,

    registrando as caractersticas desse tipo de texto:

    Despretensiosa, prxima da conversa e da vida de todo dia, a crnica tem

    sido, salvo alguma infidelidade mtua, companheira quase diria do leitor

    brasileiro. No entanto, apesar de aparentemente fcil quanto aos temas e

    linguagem coloquial, difcil de definir como tantas coisas simples. [...] Um leitor atual no pode se dar conta desse vnculo de origem que faz dela uma

    forma do tempo e da memria, um meio de representao temporal dos

    eventos passados, um registro da vida escoada. Uma crnica sempre tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo (ARRIGUCCI JR., 1987, p.

    51).

    As concepes de Arrigucci (1987) sobre a crnica alm de qualificar o gnero e

    insistir em seu relacionamento direto com o circunstancial e com o tempo, tambm salienta

    sua presena no jornal quando se refere leitura diria, apontando este como um fator para

    evoluo desse tipo de texto no Brasil. O ensasta perspicaz ao fazer uma importante

    5 Indita em livro, publicada no jornal cearense O Povo, em 06 de abril de 1978, a cronista defende a idia de

    que moda no coisa somente de mulher, mas algo que est presente no cotidiano de mulheres e homens, da

    medicina a agricultura.

    15

  • meno presena da memria no gnero da crnica, ideia que nove anos depois

    corroborada por Borelli (1996, p. 68): A crnica forma de memria escrita, algo do real

    vivenciado que fica impresso e arquivado.

    Para entender essa relao entre crnica e memria, relevante reconhecer, como

    faz Bosi (2003, p.15), que a memria oral um instrumento precioso se desejamos constituir

    a crnica do quotidiano. Se a memria remete ao passado e o cotidiano ao presente, preciso

    fazer essa ligao entre tempo e memria para explicar a conexo entre memria e crnica.

    A crnica Descripo cearense6 de Alba Valdez uma produo que se sustenta

    nas memrias de um Cear antes da grande seca de 1877-1879, um lugar de fartura de comida

    e alegria, que festejava nos terreiros, sob a luz das estrelas, ao som do baio, das cantorias, de

    gente jovem que danava quadrilha, numa paisagem de horizontes sem fim em que se

    estendem o juremal de folhas minsculas:

    Bons tempos aquelles em que todos os annos as chuvas principiavam a cair em janeiro e s escasseavam em junho trazendo abundancia e fartura ao

    activo sertanejo. Hoje o povoado vive de saudades, de lembranas

    gratissmas doutrora como um velho que sonha com os prazeres mortos da longqua mocidade [sic] (VALDEZ, 1903, p.9).

    Rachel de Queiroz tambm constri a crnica O marmeleiro com base em seus

    conhecimentos, suas prprias recordaes e as identidades da gente sertaneja, que no est

    mais condenada a viver na misria, porque o marmeleiro, planta nativa da caatinga passa a ser

    um smbolo de desenvolvimento, pois se descobriu seu potencial para o biocombustvel.

    A leitura de Candau (2011, p. 9) traz uma definio de memria que auxilia na

    compreenso desta como elemento constitutivo da crnica: a memria , acima de tudo, uma

    reconstruo continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituio fiel do

    mesmo.

    A partir desse conceito j se entende que a crnica no recupera, nem transcreve

    na ntegra as experincias passadas, ela mais que o relato, ela a reflexo sobre a

    lembrana, que se associa ao presente e a todas as outras vivncias cotidianas de seu autor e

    leitor. Assim, na crnica O marmeleiro h uma representao da memria da autora,

    fazendo uso destas para persuaso do leitor sobre a possibilidade de desenvolvimento

    econmico e social do serto com os recursos minerais e vegetais l disponveis, o que d ao

    texto relevncia documental e histrica.

    6 Publicada em O Lyrio: Revista Mensal, de Pernambuco, em Abril de 1903).

    16

  • A representao da memria , portanto, um trao forte na crnica de Rachel de

    Queiroz e Alba Valdez, como tambm, dos diversos tipos de gneros textuais que as autoras

    utilizam, narrando e imprimindo suas opinies, experincias e lembranas.

    A presena do cotidiano outra caracterstica essencial do gnero cronstico, que

    tambm se fortalece na crnica de Alba Valdez e Rachel de Queiroz. Como a memria, o

    cotidiano no transcrito fidedignamente na escritura do cronista, ele se inventa com mil

    maneiras de caa no autorizada7 (DE CERTEAU, 2011b, p.38). De Certeau (2011b)

    explica que, atravs da inveno do cotidiano, o homem ordinrio ultrapassa os modelos e

    padres pr-estabelecidos, pelo que o historiador francs denomina artes de fazer8, ou ainda

    astcias sutis, tticas de resistncia pelas quais transforma os objetos e os cdigos,

    reapropriando-se do espao e do uso a seu modo.

    Ento, cotidiano versus memria um dos paradoxos da crnica, o primeiro

    remete ao tempo presente e o segundo ao passado do qual possvel rememorar. Outras

    ambivalncias marcam a escritura da crnica, como narrar e opinar, pois esse gnero transita

    vontade entre essas duas aes discursivas, que trazem a ideia da presena de uma escrita de

    si. Na anlise da crnica O Governo chega ao serto9 com depoimento de Rachel de

    Queiroz, essa escrita de si ocorre de forma mais explcita:

    Nasci em famlia de fazendeiros, mas as nossas fazendas sempre foram pobres, fazendas de gado, nunca tivemos aquela fartura das fazendas baianas

    ou pernambucanas, onde o senhor de engenho era uma personalidade. A

    despeito das nossas ideologias sempre fomos amigos dos nossos

    empregados, ramos compadres dos nossos vaqueiros. No nosso meio nunca havia problema de terra, porque a gente sempre deu a terra para morador

    plantar. Eu posso ter muita coisa, mas nunca cobrei um caroo de feijo de

    um trabalhador meu. (CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, 1997, p. 28)

    A comparao de crnica e depoimento revelam que o discurso de Rachel de

    Queiroz elaborado a partir da meditao sobre si, o que pode adestrar suas experincias.

    Pensar desse modo chama ateno para uma reflexo filosfica de Foucault (2012) sobre A

    Escrita de Si, o qual a define como escrita das aes e movimentos da alma, de cada um

    possibilitando um (re)conhecimento de si mesmo, entretanto, salienta, que a vergonha de se

    7 Grifo do autor. 8 Grifo do autor.

    9 Publicada na revista O Cruzeiro, em 28 de abril de 1971, a cronista traz o assunto da agricultura familiar no

    serto cearense.

    17

  • permitir conhecer, de tornar perceptveis os prprios erros, pode levar o autor a esconder suas

    faltas e, assim , se inventar.

    Nesse contexto, consenso que a literatura e a imprensa mudam conforme vo

    entrando em contato com os discursos de novas realidades, artes, mdias, tecnologias. Porm,

    essas modificaes se do por processos simbiticos, em que a literatura e jornalismo tambm

    afetaro as outras linguagens.

    3 CRONOGRAMA

    Esta pesquisa realizar-se- em trs etapas: na primeira dar-se- o estudo

    bibliogrfico, que junto com o estudo documental em acervos de peridicos do final do sculo

    XIX e sculo XX, que ser desenvolvido na segunda etapa, daro suporte terico-

    metodolgico para a anlise literria de representaes, memrias e escrita se si, como

    elementos constitutivos da crnica de Alba Valdez e Rachel de Queiroz na Literatura e

    Imprensa do Cear. Na terceira etapa desta empreitada acadmica tambm ser realizada a

    reviso, qualificao e reescritura do texto para verso final para defesa da tese.

    ATIVIDADES 2015.1 2015.2 2016.1 2016.2 2017.1 2017.2 2018.1 2018.2

    1 Cursar crditos curriculares

    obrigatrios

    2. Leitura da literatura de referncia

    3. Pesquisa documental em

    acervos de peridicos

    4. Estudo analtico dos textos das autoras

    5. Redao do texto e edio final

    da Tese

    6. Qualificao Tese

    7. Defesa da Tese

    Joo Pessoa, 25 de Novembro de 2014.

    ________________________________________________

    Keyle Samara Ferreira de Souza

    18

  • REFERNCIAS

    ARRIGUCCI JR., Davi. Fragmentos sobre a crnica. In: Enigma e Comentrio: Ensaios

    sobre Literatura e Experincia. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 51-66.

    BARBOSA, Socorro de Ftima Pacfico. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no

    sculo XIX.Porto Alegre: Nova Prova, 2007.

    BESSIRE, Jean. Centro, Centros: novos modelos literrios. IN: WEINHARDT, Marilene;

    CARDOZO, Maurcio Mendona (orgs.). Centro, Centros: Literatura e Literatura

    Comparada em discusso. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.

    BOSI, Ecla. Memria e sociedade: Lembranas de velhos. 15 ed. So Paulo: Companhia

    das Letras, 2007.

    ___________. O tempo Vivo da Memria: Ensaios de Psicologia Social. 2 ed. So Paulo:

    Ateli Editorial, 2003.

    BORELLI, Slvia Helena Simes. Do folhetim crnica: espao literrio e indstria cultural.

    In: _______. Ao, suspense, emoo:Literatura e cultura de massa no Brasil. So Paulo:

    EDUC, 1996. p. 55-62.

    ___________. Crnicas, cronistas, narradores, narrativas. In: _______. Ao, suspense,

    emoo:Literatura e cultura de Massa no Brasil. So Paulo: EDUC, 1996. p. 63-86.

    BUITONI, Dulclia Schroeder. Imprensa Feminina. 2 ed. So Paulo: tica, 1990.

    BULHES, Marcelo. Jornalismo e literatura em convergncia. So Paulo: tica, 2007.

    CADERNOS DE LITERTURA BRASILEIRA. Rachel de Queiroz. So Paulo: Instituto

    Moreira Salles, v.4, set. 1997.

    CANDAU, Jol. Memria e identidade. (Trad. Maria Letcia Ferreira) So Paulo: Contexto,

    2011.

    CANDIDO, Antonio. A vida ao rs-do-cho. In: A crnica: o gnero, sua fixao e suas

    transformaes no Brasil. Campinas: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui

    Barbosa, 1992.p.5-18.

    CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex (org.). Prefcio. In: ______. Jornalismo e

    literatura: a seduo da Palavra. So Paulo: Escrituras Editora, 2002. p. 9-12.

    CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. 2 ed. Braslia: UNB, 1999.

    COELHO, Nelly Novaes. A Literatura feminina no Brasil contemporneo. So Paulo:

    Siciliano, 1993.

    DE CERTEAU, Michel. A inveno do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Traduo de Ephraim

    Ferreira Alves. 17 ed. Petrpolis, RJ: Vozes, 2011b.

    19

  • DUARTE, Constncia Lima. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos avanados. So

    Paulo set./dez. 2003. v.17 n.49. Disponvel em:

    . Acesso em 29 de maro, 2007.

    _______. Alba Valdez. In: MUZART, Zahid Lupinacci (org). Escritoras Brasileiras do

    sculo XIX. Volume II. Florianpolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.

    FOUCAULT, Michel. A Escrita de si. In: _______. tica, Sexualidade, Poltica. 3 ed.

    Traduo Elisa Monteiro, Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense

    Universitria, 2012. p. 141-157, (Col. Ditos e escritos).

    __________. A ordem do discurso. 9 ed. So Paulo: Edies Loyola, 2003.

    GIRO, Raimundo; SOUSA, Maria da Conceio. Dicionrio da Literatura Cearense.

    Fortaleza: Imprensa Oficial do Cear, 1987.

    LOBO, Luiza. Literatura Feminina na Amrica Latina. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

    Disponvel em http://www.cesargiusti.bluehosting.com.br/Centralit/Textos/semi1.htm.

    Acesso em 23 ago 2012.

    MAINGUENEAU, Dominique. Pragmtica para o discurso literrio. Traduo Eduardo

    Brando. So Paulo: Martins Fontes, 1996. (Coleo Leitura e Crtica)

    ____________. Anlise de textos de comunicao. 6 ed. Traduo de Ceclia P. De Souza-

    e-Silva, Dcio Rocha. So Paulo: Cortez, 2011.

    _____________. Discurso literrio. Traduo Adail Sobral. 2. ed. So Paulo Contexto 2012.

    MELO, Jos Marques. A crnica. In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex (org.).

    Jornalismo e Literatura: a seduo da Palavra. So Paulo: Escrituras Editora, 2002.p. 139-

    154.

    MEDEL, Manuel ngel Vzquez. Discurso literrio e discurso jornalstico: convergncias e

    divergncias. In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex (org.). Jornalismo e Literatura: a

    seduo da Palavra. So Paulo: Escrituras Editora, 2002.p.15-28.

    MOISS, Massaud. A criao literria:Prosa. 16. ed.So Paulo: Cultrix, 2007. vol. II

    QUEIROZ, Rachel. Fora de moda. O Povo, Fortaleza, 06 abr. 1978, p.3.

    __________. Jornais. O Povo, Fortaleza, 21 jun. 1978, p.3.

    __________. O Governo chega ao Serto. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 28 Abr. 1971, p.146.

    __________. O marmeleiro. O Povo, Fortaleza, 25 nov. 1979, p.3.

    20

  • RAGO, Margareth. Ser Mulher no sculo XXI ou Carta de Alforria. In: VENTURI, Gustavo;

    RECAMN, Marisol; OLIVEIRA, Suely de (orgs.). A mulher brasileira nos espaos

    pblico e privado. So Paulo: Editora Fundao Perseu bramo, 2004.p.31-42.

    __________. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenes da

    subjetividade. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2013.

    S, Jorge de. A crnica. 6. ed. So Paulo: tica, 2005.

    SCLIAR, Moacyr. Jornalismo e Literatura: a frtil convivncia. In: CASTRO, Gustavo de;

    GALENO, Alex (org.). Jornalismo e Literatura: a seduo da Palavra. So Paulo: Escrituras

    Editora, 2002.p.13-14.

    SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 3 ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 1983.

    STUDART, Baro. Para a histria do jornalismo cearense (1824-1924).

    Fortaleza: Typographia Moderna, 1924.

    _________. Catalogo dos jornaes de grande e pequeno formato publicados em Cear.

    Fortaleza: Typographia Studart, 1898.

    TELLES, Norma. Escritoras, escritas, escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org.). Histria das

    Mulheres no Brasil. 10 ed. So Paulo: Contexto, 2011.p. 401-442.

    21