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forma breve 9830802014983081 8398308597Recebido 19|09|2014 bull Aceite 23|11|2014
A questatildeo de Deus entre a teologiae a literatura contemporacircnea
The question of God between theology and contemporary literature
Alex Villas Boas
Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo
ldquoMiacutestica e poesia satildeo fenocircmenos que procedem da mesma nascente Natildeo vecircm da loacutegica da razatildeo e
se expressam em discursos intercambiaacuteveis um texto miacutestico tem a atmosfera poeacutetica o texto poeacute-
tico respira miacutestica independentemente da confissatildeo religiosa do poeta ou mesmo de seu ateiacutesmordquo1
Adeacutelia Prado
PALAVRAS-CHAVE RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA TEOLOGIA E LITERATURA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ADEacute-
LIA PRADO
KEYWORDS AESTHETIC RECEPTION THEOLOGY AND LITERATURE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ADEacute-
LIA PRADO
1 A QUESTAtildeO DE DEUS NA TEOLOGIA CONTEMPORAcircNEA
Na teologia contemporacircnea a questatildeo de Deus revisita a questatildeo da revelaccedilatildeo tal
qual o pensamento poeacutetico eacute visto como modo de desvelamento de sentido sobretudo
apoacutes a criacutetica agrave metafiacutesica da segunda escolaacutestica feita por Heidegger e a questatildeo da onto-
1 Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria 1 (1) 214
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teologia A revelaccedilatildeo passa a ser entendida como desvelamento de um Misteacuterio de excesso
de sentido que perpassa a existecircncia A primeira dimensatildeo de misteacuterio que se manifesta
fenomenologicamente eacute a questatildeo da morte que se impotildee sobre a vida e sua imprevisibi-lidade conferindo agrave existecircncia a percepccedilatildeo de ser absurda A outra percepccedilatildeo igualmente
misteriosa enquanto natildeo se esgota em uma explicaccedilatildeo loacutegica cabal mas por manifestar
um excesso de sentido se daacute pela possibilidade de descoberta de um sentido para a vida
pessoalmente (ad personem) e em situaccedilotildees concretas (ad situationem) e uma vez encon-
trado um sentido para a existecircncia a vida eacute vivida em dinacircmica de consumaccedilatildeo e o efeito
desta dinacircmica eacute a felicidade
A questatildeo da revelaccedilatildeo passa a ser lida portanto a partir da experiecircncia da busca de
sentido e de modo especial se revisitou a questatildeo da miacutestica de modo especial do miacutes-
tico fundador de uma grande tradiccedilatildeo religiosa como aquele que Revela uma experiecircncia
de sentido fundacional Deste modo a revelaccedilatildeo deixa de ser lida como um conjunto de
verdades para ser vista como a experiecircncia fundacional de um modo de descobrir uma
experiecircncia de sentido O fundador de uma grande religiatildeo eacute tambeacutem e sobretudo um
grande miacutestico independente da densidade teoloacutegica que uma determinada tradiccedilatildeo
confere ao fundador
Deste modo a primeira fase do que se chamou revelaccedilatildeo diz respeito agrave experiecircncia
miacutestica fundacional do fundador de uma tradiccedilatildeo religiosa A segunda fase diz respeito agrave
instituiccedilatildeo mistagoacutegica que visa a outrem fazer a experiecircncia do fundador e aiacute se institui
1) a criaccedilatildeo de literaturas sagradas enquanto narrativas ou poeacuteticas narrativas que visam
estruturar e despertar para a experiecircncia fundacional como sendo identitaacuteria de modo a
se conhecer diante da literatura 2) destas narrativas se desdobra uma simboacutelica funda-
mental que se manifesta em ritos e siacutembolos que visam alimentar o desejo da busca e o
aprofundamento do sentido 3) dada a descoberta e o alimento afetivo da experiecircncia haacute
que se organizar um modo de pensar a experiecircncia em verdades fundamentais que fun-cionam como princiacutepios de sabedoria conhecidos como axiomas ou dogmas elaborando
assim uma dimensatildeo mais teoloacutegica ou filosoacutefica da experiecircncia 4) a experiecircncia de sentido
desvelado alimentada e um modo de procurar princiacutepios de natildeo contradiccedilatildeo para orga-
nizar o discurso conduz inevitavelmente a elaboraccedilatildeo de um sistema eacutetico com valores e
costumes que conduzem agrave percepccedilatildeo de uma maior humanizaccedilatildeo Os sistemas religiosos
costumam ser aceitos por sua capacidade de melhoria eacutetica
Dada a capilaridade social que um sistema religioso alcanccedila e abrangecircncia de sua
visatildeo de mundo ao oferecer um caminho de busca de sentido para a vida tais sistemasse tornam extremamente interessantes para serem cooptados por regimes poliacuteticos que
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acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-
riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem
que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem
reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido
agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo
em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de
alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre
represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos
passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as
consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se
paga com o ostracismo ou com a vida
E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-
cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo
substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que
emoldura as mentalidades
A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto
visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso
religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde
a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente
como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou
atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui
pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que
vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo
a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da
literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades
2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA
Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura
contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo
religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de
recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-
gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-
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tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em
praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca
de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira
Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de
Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave
vida que se impotildee como absurda
Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio
estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que
se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia
Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo
Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de
Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum
modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a
literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus
elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que
considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-
temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que
admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido
eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos
Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua
poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica
Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que
faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma
hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e
que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez
profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra
humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor
resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano
natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se
conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano
2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)
certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento
parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica
o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond
de Andrade (Drummond 1975)
Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando
em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial
faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo
de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu
peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo
e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros
nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra
quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus
flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute
fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-
dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio
sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha
No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano
como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo
Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-
-la como profeta do ldquofogordquo divino
3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA
Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias
semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu
devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa
que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de
escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)
3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
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RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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ALEX VILLAS BOAS
teologia A revelaccedilatildeo passa a ser entendida como desvelamento de um Misteacuterio de excesso
de sentido que perpassa a existecircncia A primeira dimensatildeo de misteacuterio que se manifesta
fenomenologicamente eacute a questatildeo da morte que se impotildee sobre a vida e sua imprevisibi-lidade conferindo agrave existecircncia a percepccedilatildeo de ser absurda A outra percepccedilatildeo igualmente
misteriosa enquanto natildeo se esgota em uma explicaccedilatildeo loacutegica cabal mas por manifestar
um excesso de sentido se daacute pela possibilidade de descoberta de um sentido para a vida
pessoalmente (ad personem) e em situaccedilotildees concretas (ad situationem) e uma vez encon-
trado um sentido para a existecircncia a vida eacute vivida em dinacircmica de consumaccedilatildeo e o efeito
desta dinacircmica eacute a felicidade
A questatildeo da revelaccedilatildeo passa a ser lida portanto a partir da experiecircncia da busca de
sentido e de modo especial se revisitou a questatildeo da miacutestica de modo especial do miacutes-
tico fundador de uma grande tradiccedilatildeo religiosa como aquele que Revela uma experiecircncia
de sentido fundacional Deste modo a revelaccedilatildeo deixa de ser lida como um conjunto de
verdades para ser vista como a experiecircncia fundacional de um modo de descobrir uma
experiecircncia de sentido O fundador de uma grande religiatildeo eacute tambeacutem e sobretudo um
grande miacutestico independente da densidade teoloacutegica que uma determinada tradiccedilatildeo
confere ao fundador
Deste modo a primeira fase do que se chamou revelaccedilatildeo diz respeito agrave experiecircncia
miacutestica fundacional do fundador de uma tradiccedilatildeo religiosa A segunda fase diz respeito agrave
instituiccedilatildeo mistagoacutegica que visa a outrem fazer a experiecircncia do fundador e aiacute se institui
1) a criaccedilatildeo de literaturas sagradas enquanto narrativas ou poeacuteticas narrativas que visam
estruturar e despertar para a experiecircncia fundacional como sendo identitaacuteria de modo a
se conhecer diante da literatura 2) destas narrativas se desdobra uma simboacutelica funda-
mental que se manifesta em ritos e siacutembolos que visam alimentar o desejo da busca e o
aprofundamento do sentido 3) dada a descoberta e o alimento afetivo da experiecircncia haacute
que se organizar um modo de pensar a experiecircncia em verdades fundamentais que fun-cionam como princiacutepios de sabedoria conhecidos como axiomas ou dogmas elaborando
assim uma dimensatildeo mais teoloacutegica ou filosoacutefica da experiecircncia 4) a experiecircncia de sentido
desvelado alimentada e um modo de procurar princiacutepios de natildeo contradiccedilatildeo para orga-
nizar o discurso conduz inevitavelmente a elaboraccedilatildeo de um sistema eacutetico com valores e
costumes que conduzem agrave percepccedilatildeo de uma maior humanizaccedilatildeo Os sistemas religiosos
costumam ser aceitos por sua capacidade de melhoria eacutetica
Dada a capilaridade social que um sistema religioso alcanccedila e abrangecircncia de sua
visatildeo de mundo ao oferecer um caminho de busca de sentido para a vida tais sistemasse tornam extremamente interessantes para serem cooptados por regimes poliacuteticos que
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-
riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem
que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem
reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido
agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo
em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de
alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre
represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos
passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as
consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se
paga com o ostracismo ou com a vida
E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-
cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo
substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que
emoldura as mentalidades
A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto
visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso
religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde
a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente
como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou
atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui
pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que
vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo
a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da
literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades
2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA
Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura
contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo
religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de
recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-
gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-
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tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em
praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca
de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira
Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de
Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave
vida que se impotildee como absurda
Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio
estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que
se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia
Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo
Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de
Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum
modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a
literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus
elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que
considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-
temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que
admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido
eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos
Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua
poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica
Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que
faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma
hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e
que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez
profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra
humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor
resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano
natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se
conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano
2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia
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desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)
certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento
parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica
o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond
de Andrade (Drummond 1975)
Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando
em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial
faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo
de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu
peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo
e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros
nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra
quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus
flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute
fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-
dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio
sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha
No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano
como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo
Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-
-la como profeta do ldquofogordquo divino
3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA
Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias
semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu
devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa
que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de
escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)
3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-
riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem
que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem
reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido
agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo
em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de
alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre
represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos
passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as
consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se
paga com o ostracismo ou com a vida
E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-
cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo
substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que
emoldura as mentalidades
A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto
visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso
religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde
a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente
como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou
atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui
pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que
vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo
a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da
literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades
2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA
Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura
contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo
religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de
recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-
gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-
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tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em
praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca
de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira
Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de
Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave
vida que se impotildee como absurda
Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio
estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que
se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia
Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo
Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de
Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum
modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a
literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus
elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que
considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-
temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que
admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido
eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos
Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua
poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica
Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que
faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma
hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e
que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez
profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra
humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor
resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano
natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se
conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano
2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia
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desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)
certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento
parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica
o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond
de Andrade (Drummond 1975)
Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando
em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial
faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo
de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu
peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo
e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros
nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra
quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus
flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute
fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-
dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio
sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha
No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano
como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo
Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-
-la como profeta do ldquofogordquo divino
3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA
Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias
semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu
devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa
que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de
escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)
3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
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Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
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RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em
praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca
de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira
Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de
Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave
vida que se impotildee como absurda
Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio
estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que
se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia
Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo
Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de
Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum
modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a
literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus
elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que
considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-
temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que
admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido
eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos
Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua
poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica
Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que
faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma
hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e
que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez
profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra
humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor
resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano
natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se
conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano
2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia
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desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)
certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento
parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica
o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond
de Andrade (Drummond 1975)
Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando
em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial
faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo
de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu
peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo
e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros
nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra
quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus
flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute
fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-
dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio
sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha
No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano
como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo
Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-
-la como profeta do ldquofogordquo divino
3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA
Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias
semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu
devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa
que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de
escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)
3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
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RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)
certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento
parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica
o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond
de Andrade (Drummond 1975)
Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando
em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial
faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo
de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu
peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo
e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros
nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra
quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus
flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute
fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-
dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio
sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha
No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano
como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo
Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-
-la como profeta do ldquofogordquo divino
3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA
Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias
semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu
devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa
que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de
escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)
3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
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RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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ALEX VILLAS BOAS
Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-
duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-
dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num
exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que
simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa
hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No
conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra
a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que
ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no
grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele
que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo
ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa
que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo
de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo
de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse
sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo
de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez
O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza
ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos
medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo
antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo
do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita
esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana
pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se
desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo
No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na
lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro
de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia
agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do
combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento
ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-
moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
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VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o
ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso
deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca
o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade
[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim
deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento
adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)
O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute
preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem
as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras
trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e
mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso
tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por
sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado
poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-
vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos
vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo
pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao
exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela
comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo
em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio
ser aquilo que elas comunicavam (2007a)
- O que foi - ele disse
- As buganviacutelias
Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem
Solucei alto e fui chorando chorando
Ateacute ficar singela e dormir de novo
As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos
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que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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ALEX VILLAS BOAS
que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem
poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade
da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado
ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia
eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo
sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-
deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo
humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4
Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para
traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de
nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele
Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e
dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute
um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia
ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo
Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua
capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja
ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo
mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real
Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-
mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como
fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)
4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO
Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico
advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais
sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como
ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza
humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo
que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso
falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui
4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-
funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)
O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado
Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me
desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda
Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-
mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino
em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste
modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo
Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem
na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim
dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-
ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa
dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta
felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma
plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]
que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo
Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto
em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o
inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-
satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que
permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos
internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia
da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)
Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de
ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo
eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute
confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6
5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )
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ALEX VILLAS BOAS
Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
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O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
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Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
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Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo
incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio
endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas
A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-
riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-
tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo
se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de
sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-
neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-
ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento
5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA
Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a
fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio
contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila
a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o
exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que
a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se
recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa
de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia
e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute
serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano
eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-
ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura
dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de
sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana
7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8
ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)
92
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do
mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido
sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de
Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11
Ave aacutevido
Ave fome insaciaacutevel e boca enorme
Come
Da parte do Altiacutessimo te concedo
Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte
O lixo a catedral e a forma das matildeos
Ave cheio de dor
CONCLUSAtildeO
Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no
livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em
que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria
poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo
eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-
nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta
Quando nasci um anjo esbelto
Desses que tocam trombeta anunciou
Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher
esta espeacutecie ainda envergonhada
[]
Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina
11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e
a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona
de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-
diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura
impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de
Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher
eacute desdobraacutevel Eu sourdquo
O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande
desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-
sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-
decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana
na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia
pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a
internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana
exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-
tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a
busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que
ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a
resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se
manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal
do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um
sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma
pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca
se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se
impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a
histoacuterica paciecircncia resiliente
12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14
ldquo
No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
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O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
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Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute
E o que sobre ela estaacute escrito
A rogo de tua feacute
ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo
ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo
a pedra oacute Joseacute a pedra
Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute
Dorme com tua mulher
gira a aldraba de ferro pesadiacutessima
O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem
como vocecirc Joseacute
Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-
tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de
chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor
e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem
que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-
tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute
mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua
beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo
que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-
satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas
de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um
sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira
desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso
da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como
excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas
Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco
natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas
17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)
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ALEX VILLAS BOAS
o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento
bem como inaugura as fugas
Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21
perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante
com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores
noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo
Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que
salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-
tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de
modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo
contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-
tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz
esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-
cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de
algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute
jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-
titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees
teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green
Juiz de Fora Editora Subiacuteaco
Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record
Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9
Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles
Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar
Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B
19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20
ldquo
O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
comtljindexphptltarticleview1917
Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44
RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA
Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa
VejaPassagens
Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola
Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de
Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto
de Teologia Joatildeo Paulo II
Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010
Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria
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RESUMO
A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-
cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto
da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea
como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-
sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo
ABSTRACT
The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its
images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary
literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious
and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to
its reception
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