Alex Villas Boas Forma Breve Pt

15

Click here to load reader

Transcript of Alex Villas Boas Forma Breve Pt

Page 1: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 115

MICROFICCcedilAtildeO

11

forma breve 9830802014983081 8398308597Recebido 19|09|2014 bull Aceite 23|11|2014

A questatildeo de Deus entre a teologiae a literatura contemporacircnea

The question of God between theology and contemporary literature

Alex Villas Boas

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

ldquoMiacutestica e poesia satildeo fenocircmenos que procedem da mesma nascente Natildeo vecircm da loacutegica da razatildeo e

se expressam em discursos intercambiaacuteveis um texto miacutestico tem a atmosfera poeacutetica o texto poeacute-

tico respira miacutestica independentemente da confissatildeo religiosa do poeta ou mesmo de seu ateiacutesmordquo1

Adeacutelia Prado

PALAVRAS-CHAVE RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA TEOLOGIA E LITERATURA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ADEacute-

LIA PRADO

KEYWORDS AESTHETIC RECEPTION THEOLOGY AND LITERATURE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE ADEacute-

LIA PRADO

1 A QUESTAtildeO DE DEUS NA TEOLOGIA CONTEMPORAcircNEA

Na teologia contemporacircnea a questatildeo de Deus revisita a questatildeo da revelaccedilatildeo tal

qual o pensamento poeacutetico eacute visto como modo de desvelamento de sentido sobretudo

apoacutes a criacutetica agrave metafiacutesica da segunda escolaacutestica feita por Heidegger e a questatildeo da onto-

1 Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria 1 (1) 214

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 215

ALEX VILLAS BOAS

teologia A revelaccedilatildeo passa a ser entendida como desvelamento de um Misteacuterio de excesso

de sentido que perpassa a existecircncia A primeira dimensatildeo de misteacuterio que se manifesta

fenomenologicamente eacute a questatildeo da morte que se impotildee sobre a vida e sua imprevisibi-lidade conferindo agrave existecircncia a percepccedilatildeo de ser absurda A outra percepccedilatildeo igualmente

misteriosa enquanto natildeo se esgota em uma explicaccedilatildeo loacutegica cabal mas por manifestar

um excesso de sentido se daacute pela possibilidade de descoberta de um sentido para a vida

pessoalmente (ad personem) e em situaccedilotildees concretas (ad situationem) e uma vez encon-

trado um sentido para a existecircncia a vida eacute vivida em dinacircmica de consumaccedilatildeo e o efeito

desta dinacircmica eacute a felicidade

A questatildeo da revelaccedilatildeo passa a ser lida portanto a partir da experiecircncia da busca de

sentido e de modo especial se revisitou a questatildeo da miacutestica de modo especial do miacutes-

tico fundador de uma grande tradiccedilatildeo religiosa como aquele que Revela uma experiecircncia

de sentido fundacional Deste modo a revelaccedilatildeo deixa de ser lida como um conjunto de

verdades para ser vista como a experiecircncia fundacional de um modo de descobrir uma

experiecircncia de sentido O fundador de uma grande religiatildeo eacute tambeacutem e sobretudo um

grande miacutestico independente da densidade teoloacutegica que uma determinada tradiccedilatildeo

confere ao fundador

Deste modo a primeira fase do que se chamou revelaccedilatildeo diz respeito agrave experiecircncia

miacutestica fundacional do fundador de uma tradiccedilatildeo religiosa A segunda fase diz respeito agrave

instituiccedilatildeo mistagoacutegica que visa a outrem fazer a experiecircncia do fundador e aiacute se institui

1) a criaccedilatildeo de literaturas sagradas enquanto narrativas ou poeacuteticas narrativas que visam

estruturar e despertar para a experiecircncia fundacional como sendo identitaacuteria de modo a

se conhecer diante da literatura 2) destas narrativas se desdobra uma simboacutelica funda-

mental que se manifesta em ritos e siacutembolos que visam alimentar o desejo da busca e o

aprofundamento do sentido 3) dada a descoberta e o alimento afetivo da experiecircncia haacute

que se organizar um modo de pensar a experiecircncia em verdades fundamentais que fun-cionam como princiacutepios de sabedoria conhecidos como axiomas ou dogmas elaborando

assim uma dimensatildeo mais teoloacutegica ou filosoacutefica da experiecircncia 4) a experiecircncia de sentido

desvelado alimentada e um modo de procurar princiacutepios de natildeo contradiccedilatildeo para orga-

nizar o discurso conduz inevitavelmente a elaboraccedilatildeo de um sistema eacutetico com valores e

costumes que conduzem agrave percepccedilatildeo de uma maior humanizaccedilatildeo Os sistemas religiosos

costumam ser aceitos por sua capacidade de melhoria eacutetica

Dada a capilaridade social que um sistema religioso alcanccedila e abrangecircncia de sua

visatildeo de mundo ao oferecer um caminho de busca de sentido para a vida tais sistemasse tornam extremamente interessantes para serem cooptados por regimes poliacuteticos que

84

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-

riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem

que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem

reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido

agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo

em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de

alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre

represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos

passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as

consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se

paga com o ostracismo ou com a vida

E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-

cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo

substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que

emoldura as mentalidades

A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto

visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso

religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde

a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente

como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou

atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui

pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que

vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo

a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da

literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades

2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA

Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura

contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo

religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de

recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-

gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-

85

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 415

ALEX VILLAS BOAS

tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em

praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca

de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira

Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de

Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave

vida que se impotildee como absurda

Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio

estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que

se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia

Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo

Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de

Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum

modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a

literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus

elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que

considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-

temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que

admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido

eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos

Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua

poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica

Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que

faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma

hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e

que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez

profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra

humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor

resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano

natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se

conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano

2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia

86

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)

certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento

parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica

o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond

de Andrade (Drummond 1975)

Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando

em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial

faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo

de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu

peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo

e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros

nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra

quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus

flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute

fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-

dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio

sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha

No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano

como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo

Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-

-la como profeta do ldquofogordquo divino

3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA

Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias

semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu

devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa

que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de

escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)

3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

87

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 2: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 215

ALEX VILLAS BOAS

teologia A revelaccedilatildeo passa a ser entendida como desvelamento de um Misteacuterio de excesso

de sentido que perpassa a existecircncia A primeira dimensatildeo de misteacuterio que se manifesta

fenomenologicamente eacute a questatildeo da morte que se impotildee sobre a vida e sua imprevisibi-lidade conferindo agrave existecircncia a percepccedilatildeo de ser absurda A outra percepccedilatildeo igualmente

misteriosa enquanto natildeo se esgota em uma explicaccedilatildeo loacutegica cabal mas por manifestar

um excesso de sentido se daacute pela possibilidade de descoberta de um sentido para a vida

pessoalmente (ad personem) e em situaccedilotildees concretas (ad situationem) e uma vez encon-

trado um sentido para a existecircncia a vida eacute vivida em dinacircmica de consumaccedilatildeo e o efeito

desta dinacircmica eacute a felicidade

A questatildeo da revelaccedilatildeo passa a ser lida portanto a partir da experiecircncia da busca de

sentido e de modo especial se revisitou a questatildeo da miacutestica de modo especial do miacutes-

tico fundador de uma grande tradiccedilatildeo religiosa como aquele que Revela uma experiecircncia

de sentido fundacional Deste modo a revelaccedilatildeo deixa de ser lida como um conjunto de

verdades para ser vista como a experiecircncia fundacional de um modo de descobrir uma

experiecircncia de sentido O fundador de uma grande religiatildeo eacute tambeacutem e sobretudo um

grande miacutestico independente da densidade teoloacutegica que uma determinada tradiccedilatildeo

confere ao fundador

Deste modo a primeira fase do que se chamou revelaccedilatildeo diz respeito agrave experiecircncia

miacutestica fundacional do fundador de uma tradiccedilatildeo religiosa A segunda fase diz respeito agrave

instituiccedilatildeo mistagoacutegica que visa a outrem fazer a experiecircncia do fundador e aiacute se institui

1) a criaccedilatildeo de literaturas sagradas enquanto narrativas ou poeacuteticas narrativas que visam

estruturar e despertar para a experiecircncia fundacional como sendo identitaacuteria de modo a

se conhecer diante da literatura 2) destas narrativas se desdobra uma simboacutelica funda-

mental que se manifesta em ritos e siacutembolos que visam alimentar o desejo da busca e o

aprofundamento do sentido 3) dada a descoberta e o alimento afetivo da experiecircncia haacute

que se organizar um modo de pensar a experiecircncia em verdades fundamentais que fun-cionam como princiacutepios de sabedoria conhecidos como axiomas ou dogmas elaborando

assim uma dimensatildeo mais teoloacutegica ou filosoacutefica da experiecircncia 4) a experiecircncia de sentido

desvelado alimentada e um modo de procurar princiacutepios de natildeo contradiccedilatildeo para orga-

nizar o discurso conduz inevitavelmente a elaboraccedilatildeo de um sistema eacutetico com valores e

costumes que conduzem agrave percepccedilatildeo de uma maior humanizaccedilatildeo Os sistemas religiosos

costumam ser aceitos por sua capacidade de melhoria eacutetica

Dada a capilaridade social que um sistema religioso alcanccedila e abrangecircncia de sua

visatildeo de mundo ao oferecer um caminho de busca de sentido para a vida tais sistemasse tornam extremamente interessantes para serem cooptados por regimes poliacuteticos que

84

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-

riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem

que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem

reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido

agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo

em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de

alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre

represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos

passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as

consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se

paga com o ostracismo ou com a vida

E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-

cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo

substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que

emoldura as mentalidades

A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto

visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso

religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde

a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente

como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou

atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui

pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que

vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo

a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da

literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades

2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA

Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura

contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo

religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de

recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-

gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-

85

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 415

ALEX VILLAS BOAS

tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em

praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca

de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira

Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de

Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave

vida que se impotildee como absurda

Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio

estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que

se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia

Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo

Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de

Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum

modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a

literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus

elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que

considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-

temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que

admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido

eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos

Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua

poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica

Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que

faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma

hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e

que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez

profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra

humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor

resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano

natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se

conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano

2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia

86

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)

certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento

parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica

o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond

de Andrade (Drummond 1975)

Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando

em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial

faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo

de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu

peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo

e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros

nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra

quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus

flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute

fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-

dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio

sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha

No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano

como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo

Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-

-la como profeta do ldquofogordquo divino

3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA

Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias

semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu

devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa

que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de

escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)

3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

87

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 3: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

acabam por oficiar tais tradiccedilotildees religiosas criando assim teocracias Deste modo a expe-

riecircncia de sentido se desloca para uma questatildeo geopoliacutetica tendo em vista que algueacutem

que nasce em um territoacuterio oficialmente religioso jaacute pertence a determinada religiatildeosem que seja necessaacuterio um caminho mistagoacutegico Tais cooptaccedilotildees poliacuteticas produzem

reducionismos agrave dimensatildeo mistagoacutegica das tradiccedilotildees religiosas de uma busca de sentido

agrave vida expressa em narrativas e verdades fundamentais passa-se a um dogmatismo

em que ou se aceita determinada doutrina ou eacute se expulso ou morto de uma busca de

alimento interior nos ritos e siacutembolos a um ritualismo em que ou se aceita ou se sofre

represaacutelias eou expulsatildeo de uma tradiccedilatildeo e especialmente de valores eacuteticos profundos

passa-se a um moralismo no qual ou se aceita tais costumes e normas ou se sofre as

consequecircncias Em uma teocracia a natildeo aceitaccedilatildeo da crenccedila eacute um crime poliacutetico que se

paga com o ostracismo ou com a vida

E toda teocracia elabora sua proacutepria teodiceia que legiacutetima suas praacuteticas sociais redu-

cionistas como sendo da vontade de Deus no caso Ocidental As teocracias caem ou satildeo

substituiacutedas contudo as teodiceias permanecem mais tempo enquanto tecido cultural que

emoldura as mentalidades

A emergecircncia da consciecircncia criacutetica social da subjetividade e da laicidade enquanto

visatildeo criacutetica de uma mentalidade de teodiceia constituem razotildees de recusa para o discurso

religioso bem como alvo da criacutetica teologoacutegica que mesmo natildeo sendo o a religiatildeo cristatilde

a uacutenica a passar pela cooptaccedilatildeo poliacutetica em um regime teocraacutetico conhecido no Ocidente

como Cristandade parece ter sido a tradiccedilatildeo a que a comunidade teoloacutegica mais dedicou

atenccedilatildeo para um voltar agraves fontes e releitura criacutetica da proacutepria tradiccedilatildeo Se considera aqui

pensando a proposta de recepccedilatildeo esteacutetica de Jauss (2013) em que eacute recebido aquilo que

vem ao encontro do que se busca ou frustra as expectativas de modo alargar a percepccedilatildeo

a teodiceia eacute um dos grandes fatores da recusa da questatildeo Deus por uma boa parte da

literatura contemporacircnea uma vez que emoldura um discurso religioso de controle e natildeode formaccedilatildeo de subjetividades

2 A QUESTAtildeO DE DEUS NA LITERATURA CONTEMPORAcircNEA

Retomando a classificaccedilatildeo proposta por Yunes (2011 pp 29-44) para a literatura

contemporacircnea em confessional religiosa e natildeo religiosa ao se falar em literatura natildeo

religiosa pode se entender tal leitura como sendo uma poesia que assume as razotildees de

recusa da questatildeo Deus ou mais precisamente da questatildeo da teodiceia enquanto ima-

gem de Deus que justifica a contradiccedilatildeo humana privilegiando grupos em detrimen-

85

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 415

ALEX VILLAS BOAS

tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em

praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca

de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira

Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de

Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave

vida que se impotildee como absurda

Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio

estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que

se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia

Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo

Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de

Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum

modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a

literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus

elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que

considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-

temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que

admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido

eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos

Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua

poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica

Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que

faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma

hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e

que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez

profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra

humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor

resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano

natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se

conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano

2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia

86

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)

certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento

parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica

o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond

de Andrade (Drummond 1975)

Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando

em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial

faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo

de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu

peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo

e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros

nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra

quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus

flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute

fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-

dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio

sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha

No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano

como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo

Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-

-la como profeta do ldquofogordquo divino

3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA

Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias

semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu

devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa

que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de

escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)

3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

87

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 4: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 415

ALEX VILLAS BOAS

tos de outros Eacute a recusa de Deus fundida com a imagem de teodiceia e reforccedilada em

praacuteticas e discursos religiosos que estaacute sendo banida da percepccedilatildeo poeacutetica em busca

de desvelar a profundidade do humano que torna incompatiacutevel literatura e Deus Aquise podem situar inuacutemeros autores como por exemplo no caso da literatura brasileira

Carlos Drummond de Andrade Jorge Amado ou da literatura portuguesa como Eccedila de

Queiroacutes Joseacute Saramago entre outros A literatura se situa na tarefa de dar sentido agrave

vida que se impotildee como absurda

Por literatura religiosa ou mais precisamente transcendente o elemento Misteacuterio

estaacute presente na percepccedilatildeo do autor poreacutem sem nomear haacute um excesso de sentido que

se desvela poeticamente na vida conferindo a ela a sua capacidade de transcendecircncia

Poderia se situar aqui a obra de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst por exemplo

Ao se falar contudo em uma literatura confessional haacute que se distinguir a obra de

Joseacute de Anchieta ou de Antocircnio Vieira que prescinde destas duas categorias que de algum

modo receitam alguma forma de imagem de Deus ou a proacutepria questatildeo de Deus para a

literatura confessional contemporacircnea que acolhe a criacutetica das razotildees de recusa de Deus

elaborando natildeo somente uma imagem apologeacutetica nova de Deus mas uma imagem que

considera as razotildees de recusa de Deus como sendo fundamental para a tarefa poeacutetica con-

temporacircnea Haacute aiacute uma ldquosegunda ingenuidaderdquo no sentido ricoeuriano de uma feacute que

admite a criacutetica e encontra sentido para aleacutem desta mas nunca aqueacutem Neste sentido

eacute que aqui se pretende apresentar como as razotildees de recusa de Deus na poesia de Carlos

Drummond de Andrade satildeo incorporadas na poesia de Adeacutelia Prado sem que com isso sua

poesia deixe de ser confessional poreacutem ao mesmo tempo criacutetica

Carlos Drummond de Andrade eacute visto aqui como ldquoteoacutelogo ateurdquo na medida em que

faz teologia agraves avessas marcado por uma ldquomiacutestica do amor fraternalrdquo que implode uma

hermenecircutica teoloacutegica refeacutem das limitaccedilotildees desumanas dos homens de seu tempo e

que assim desfiguravam o proacuteprio Deus fundamentando idiossincrasias e contradiccedilotildeesreligiosas e poliacuteticas Este miacutestico-poeta agnoacutestico com sua pena de algum modo se fez

profeta daquele ldquoJesus jaacute cansado de tanto pedido [que] dorme sonhando com outra

humanidaderdquo2 Para Drummond se Deus existe isso soacute eacute possiacutevel sob a forma de amor

resiliente e solidaacuterio ao sofrimento Um Deus que natildeo conhece o sofrimento humano

natildeo pode nos amar (Villas Boas 2011 p 54) pois jaacute fora dito que soacute se ama a quem se

conhece Contudo o reconhecimento da obra pradiana por parte do poeta itabirano

2 ldquoRomariardquo Alguma Poesia

86

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)

certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento

parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica

o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond

de Andrade (Drummond 1975)

Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando

em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial

faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo

de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu

peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo

e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros

nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra

quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus

flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute

fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-

dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio

sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha

No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano

como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo

Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-

-la como profeta do ldquofogordquo divino

3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA

Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias

semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu

devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa

que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de

escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)

3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

87

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 5: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

desvela na poeacutetica e no espaccedilo autobiograacutefico da autora (Barcellos 2008 pp 53-144)

certa sensibilidade ao pensamento poeacutetico teoloacutegico da mesma Tal reconhecimento

parece se dar natildeo tanto por uma sensibilidade a esse Misteacuterio de excesso de sentidoquanto pela recusa da poeta agravequilo que reproduzido em categorias teoloacutegicas justifica

o absurdo Assim eacute a apresentaccedilatildeo da poeta divinopolitana feita por Carlos Drummond

de Andrade (Drummond 1975)

Trata-se de um fenocircmeno [hellip] Acho que ele [Satildeo Francisco de Assis] estaacute no momento ditando

em Divinoacutepolis os mais belos poemas e prosas a Adeacutelia Prado Adeacutelia eacute liacuterica biacuteblica existencial

faz poesia como faz bom tempo esta eacute a lei natildeo dos homens mas de Deus Adeacutelia eacute fogo fogo

de Deus em Divinoacutepolis [] E diz entre outras ldquoEu gosto eacute de trem-de-ferro e de liberdaderdquo ldquoEu

peccedilo a Deus alegria pra beber vinho ou cafeacute eu peccedilo a Deus paciecircncia pra pocircr meu vestido novo

e ficar na porta da livraria oferecendo meu livro de versos que pra uns eacute flor de trigo para outros

nem comida eacuterdquo [] Adeacutelia vai agraves compras A crucificaccedilatildeo de Jesus estaacute nos supermercados pra

quem queira ver Quem natildeo presta atenccedilatildeo estaacute perdendo [] Adeacutelia jaacute viu a Poesia ou Deus

flertando com ela ldquona banca de cereais e ateacute na gravata natildeo flamejante do Ministrordquo Adeacutelia eacute

fogo fogo de Deus em Divinoacutepolis Como eacute que eu posso demonstrar Adeacutelia se ela ainda estaacute ineacute-

dita aquilo de vender livro agrave porta da livraria eacute pura imaginaccedilatildeo e soacute uns poucos do paiacutes literaacuterio

sabem da existecircncia deste grande poeta-mulher agrave beira da linha

No miacutenimo haacute uma curiosa recepccedilatildeo da poesia pradiana por parte do poeta itabirano

como sendo um dos grandes responsaacuteveis pela estreia desta poeta como ldquofogo de Deusrdquo

Dentro da razatildeo de recusa a respeito de Deus na poeacutetica drummondiana como reconhececirc-

-la como profeta do ldquofogordquo divino

3 DIMENSAtildeO EXISTENCIAL RECEPCcedilAtildeO ESTEacuteTICA DA POEacuteTICADRUMMONDIANA

Evidentemente haacute entre outras uma influecircncia drummondiana de ldquoextraordinaacuterias

semelhanccedilasrdquo3 na poeacutetica de Adeacutelia Prado como confessa a autora em uma entrevista ldquoEu

devia ter uns 18 anos algueacutem me deu Fala amendoeira do Drummond Eu disse laquoPuxa

que negoacutecio bomraquo Depois li a poesia dele Pensei laquoAssim desse jeito eu dou conta de

escreverraquo E achei meu caminhordquo (Prado 2000 p 30)

3 ldquoTodos fazem um Poema a Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

87

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 6: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 615

ALEX VILLAS BOAS

Nesse livro de prosas Fala amendoeira do poeta itabirano haacute como que uma intro-

duccedilatildeo agrave perspectiva existencial de Drummond carregada de ironia e humor kierkegaar-

dianos como modo de autenticizar a existecircncia com o ldquoofiacutecio de rabiscarrdquo as ldquocoisas dotempordquo prestando atenccedilatildeo agrave ldquonaturezardquo essa que ldquonatildeo presta atenccedilatildeo em noacutesrdquo num

exerciacutecio de encontrar a ldquoestaccedilatildeo da almardquo A amendoeira eacute a ldquoaacutervore-da-guardardquo que

simboliza o ldquooutono pessoalrdquo e fala com ldquopaciecircncia e doccedilurardquo dos ldquofrutos colhidos numa

hora da vida que jaacute natildeo eacute clara mas ainda natildeo se dilui em trevardquo (2003 pp 331-400) No

conto Essecircncia Existecircncia parece estar o cerne do livro de prosas existenciais em que narra

a experiecircncia esteacutetica do personagem X assistindo um desfile de escola de samba em que

ldquoteve a sensaccedilatildeo de dissolver-se na multidatildeo e por duas horas natildeo existiu em si mas no

grupordquo atingindo a ldquoessecircncia do serrdquo como definira Kierkegaard que existente ldquoeacute aquele

que experimenta certa intensidade de sentimento em contato com alguma coisa fora delerdquo

ldquoeacute aquilo que a coisa externa faz de noacutes comunicando-nos seu soprordquo e sem essa coisa

que ldquosomos semelhantesrdquo sequer eacute possiacutevel viver Contudo o siacutembolo que tem a funccedilatildeo

de manifestar a essecircncia do ser eacute apresentado pelo poeta como a ldquocarteira de identidaderdquo

de X que fora subtraiacuteda durante a exibiccedilatildeo em que experimentava a comunicaccedilatildeo desse

sopro por algueacutem ldquomenos comunicativordquo Assim sem conseguir comprovar sua ldquocondiccedilatildeo

de Xrdquo sequer existia e acabando sem identidade acabou sendo recolhido ao xadrez

O indiviacuteduo sem identidade perde a sua liberdade entregue agrave mercecirc da natureza

ldquoroendo os bens do homem divertindo-se em assustaacute-lo no escuro convocando velhos

medos modelando fantasmas novosrdquo despertando a condiccedilatildeo humana de sua pretensatildeo

antropocecircntrica de que ldquojaacute natildeo somos donos da Terra mas apenas seres acuados no fundo

do quarto de dormir sem possibilidade de evasatildeordquo Diante da misteriosa natureza indocircmita

esse sopro natildeo pode ser identificado como uma essecircncia que subtrai a condiccedilatildeo humana

pois ldquonatildeo adiantou a providecircnciardquo bastando um temporal uma certa massa de ar que se

desloque de ldquomaneira abrupta para que nossa calma nossa seguranccedila e mesmo nossavida se vissem ameaccediladas por um obscuro e implacaacutevel inimigo a quem nos submetemosrdquo

No conto Ventania tambeacutem natildeo adianta o ldquoespiacuterito de previdecircnciardquo [sic] amparados na

lei e na teacutecnica em que se nutria tamanha confianccedila que deixara o indiviacuteduo tatildeo seguro

de sua ldquoestabilidaderdquo no mundo natildeo comprovada Esse sopro se comunica uma essecircncia

agrave existecircncia eacute tal ventania que deposita matinalmente a luta no peito como um tropel do

combate que se instala e eacute ao mesmo tempo ldquoirado e tristerdquo (pp 397-398) Haacute no vento

ldquomais do que a ameaccedila que talvez natildeo se cumpra uma zombaria ruidosa aacutevida por des-

moralizar-nosrdquo mas aos poucos ldquoo vento se contrai e retira-serdquo sendo ele um instante demanifestaccedilatildeo no coraccedilatildeo humano Eacute exatamente ali no coraccedilatildeo humano em que o vento

88

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 7: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 715

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

deposita a luta que se daacute o inesperado chamado a ldquonotiacutecia sempre esperadardquo mas que o

ldquocoraccedilatildeo nada prevenirardquo Um dia entatildeo ldquovem o chamado (grifo nosso) urgente eacute preciso

deixar tudo e ir na direccedilatildeo de um corpordquo e seu rosto ldquodesvendarrdquo Tal sopro e chamado desinstala o indiviacuteduo da falta de sentido no qual se constroacutei sua identidade e que marca

o coraccedilatildeo como nuacutecleo mais profundo da vontade

[] do mal que a noacutes mesmos nos infligimos reduzindo nosso amor ao limite do possiacutevel Sim

deve ser isso todos os pecados se resumem na ausecircncia ou na reduccedilatildeo do amor a um sentimento

adaptaacutevel as circunstacircncias e que pode esperar (pp 393-394)

O pecado em Drummond eacute natildeo atender agrave vontade profunda do coraccedilatildeo que eacute pornatureza insaciaacutevel desejo de amor e beleza que atende a vontade de sentido Por isso eacute

preferiacutevel deixar as buganviacutelias na parede mesmo que ao crescerem seus troncos trinquem

as paredes pois natildeo se trata apenas de bougainvillea spectabilis e menos ainda de meras

trepadeiras como eacute visto ao olhar dos mais desavisados mas eacute uma ldquoplanta de Deusrdquo e

mesmo que natildeo tenha propriamente flores doam a beleza do vermelho agrave casa e por isso

tecircm o direito de continuar ldquodestruindo poeticamenterdquo a velha morada (pp 341-343) Por

sua vez as Buganviacutelias em Adeacutelia assumem um papel de mensageiras de um chamado

poreacutem brancas para serem vistas No Meio da Noite ldquodestacadas de um escurordquo em umaimagem que falava internamente ldquoComo se sente o gosto da comida eu senti o que fala-

vam laquoA ressurreiccedilatildeo jaacute estaacute sento urdida os tubeacuterculos da alegria estatildeo inchando uacutemidos

vatildeo brotar sinosraquordquo A experiecircncia lhe atingira em profundidade e ldquodoiacutea como um prazerrdquo

pedindo-lhe que fosse singela ldquoFica singela tambeacutemrdquo Ao que atende prontamente ao

exerciacutecio interior ldquoRespondi que queria ser singela e na mesma hora singela singela

comecei a repetir singelardquo ateacute que ldquoa palavra destacou-se noviacutessima como as buganviacuteliasrdquo

em uma comunicaccedilatildeo que soacute era possiacutevel de ser entendida na particularidade do proacuteprio

ser aquilo que elas comunicavam (2007a)

- O que foi - ele disse

- As buganviacutelias

Como nenhum de noacutes podia ir mais aleacutem

Solucei alto e fui chorando chorando

Ateacute ficar singela e dormir de novo

As buganviacutelias de Adeacutelia realizam a mesma missatildeo das buganviacutelias drummondianas Emambos elas satildeo mensageiras da beleza e da alegria na vida poreacutem com enfoques distintos

89

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 8: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 815

ALEX VILLAS BOAS

que natildeo se contradizem mas que se complementam As buganviacutelias drummondianas destroem

poeticamente a aridez da casa como ldquomanchas de primaverardquo no outono da alma A gratuidade

da beleza poeacutetica das buganviacutelias eacute que permite as rachaduras na concepccedilatildeo utilitarista e prag-maacutetica da casa onde se daacute a vida do indiviacuteduo moderno e por isso mesmo que deve ser dado

ldquotodo poder agraves buganviacuteliasrdquo E exatamente por essa concepccedilatildeo de vida em que falta a poesia

eacute que as buganviacutelias adelianas podem anunciar o sentimento de ressurreiccedilatildeo que vai crescendo

sobre os escombros do pragmatismo esteacuteril A concepccedilatildeo existencial da poeacutetica adeliana eacute her-

deira da destruiccedilatildeo poeacutetica drummondiana que dando imagem ao absurdo e agrave contradiccedilatildeo

humana permite assumir a responsabilidade em decifrar o ldquoincocircmodo de existirrdquo4

Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava os cabelos para

traacutes a mulher falou alto eacute isto eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de

nossas extraordinaacuterias semelhanccedilas E decifrou o incocircmodo do seu existir junto com o dele

Do assumir o incocircmodo de existir eacute que ldquotemos terrores noturnos diurnos desesperos e

dias seguidos onde nada acontecerdquo mas tambeacutem sai da ineacutercia em que ldquotodo mundo aqui eacute

um saco de tripasrdquo para assumir a missatildeo de gauche ou seja de ir na contramatildeo da ineacutercia

ldquoCarlos eacute gauche A mim vaacuterias vezes disseram laquoNatildeo sabes ler a placa Eacute CONTRAMAtildeOraquordquo

Deste modo chamada agrave missatildeo poeacutetica que o poeta lhe provoca e diante da duacutevida da sua

capacidade de assumir a decifraccedilatildeo do existir soacute eacute possiacutevel uma uacutenica resposta desde que seja

ldquoqualquer resposta verdadeirardquo para amar a missatildeo que se lhe manifesta (2007a) A ldquodefiniccedilatildeo

mais perfeita de poesiardquo para Adeacutelia eacute a ldquorevelaccedilatildeo do real Ela eacute uma abertura para o real

Isso que eacute poesia para mim Ela me tira da cegueirardquo e ldquoo real inclui necessariamente o sofri-

mento porque essa eacute a nossa condiccedilatildeo De fato estamos num vale de laacutegrimas natildeo haacute como

fugir dissordquo Sendo assim ser poeta ldquosignifica estar vocacionado para o realrdquo (2000 p 23)

4 DIMENSAtildeO BIacuteBLICA EM ADEacuteLIA PRADO

Adeacutelia eacute leitora-ouvinte da literatura biacuteblica que compotildee o imageacutetico e o esteacutetico

advindos da heranccedila da feacute deixada pelos pais e a educaccedilatildeo religiosa que recebeu Ademais

sua experiecircncia de feacute se daacute no universo mineiro da melancolia barroca do mundo como

ldquovale de laacutegrimasrdquo um mundo que eacute marcado pela dor que se natildeo eacute parte da natureza

humana eacute parte da sua condiccedilatildeo em que viver eacute doer ldquoEstou falando de uma constataccedilatildeo

que o mundo eacute dor que o mundo eacute pura dor que a condiccedilatildeo humana eacute pura dor Posso

falar dor ou pecado para mim eacute a mesma coisardquo A condiccedilatildeo de pecado pradiana aqui

4 ldquoTodos Fazem um Poema para Carlos Drummond de Andraderdquo (Bagagem)

90

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 9: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 915

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

coincide com a perspectiva drummondiana de que ldquopecado eacute natildeo atender a vontade pro-

funda do coraccedilatildeordquo (2000 p 35)

O pecado para mim natildeo eacute uma coisa que eu faccedilo eacute uma coisa que eu sou Eu sou o proacuteprio pecado

Natildeo satildeo pequenos atos isolados Quando eu falo ldquopecadordquo significa a consciecircncia de eu ter me

desviado de minha destinaccedilatildeo interior profunda

Em ambos o pecado corresponde a natildeo escuta da vontade de sentido que em Drum-

mond tal sentido se encontra no amor e em Adeacutelia vale a proposiccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino

em correlacionar o efeito agrave causa dizendo a isso chamamos Deus (hoc dicitur Deo)5 Deste

modo pecado eacute uma condiccedilatildeo que por vezes se configura em ldquoatos concretosrdquo ldquomas opecado eacute a minha condiccedilatildeo natildeo eacute coisa que eu faccedila Eu nasccedilo pecador eu nasccedilo pecadordquo

Como condiccedilatildeo humana eacute sua condiccedilatildeo de possibilidade de existir como ser livre poreacutem

na tarefa sisiacutefica de superar sua vulnerabilidade a dor e possibilidade de fracasso Assim

dizer que eacute em meio ao pecado que eacute dor estaacute a possibilidade da ldquosuperaccedilatildeo da condi-

ccedilatildeo humanardquo e que poderia ser dito em Drummond como a descoberta do amor significa

dizer em Adeacutelia Prado a ldquouniatildeo com Deusrdquo caminho para o juacutebilo em que se experimenta

felicidade (grifo da autora) ldquomomentos de consolaccedilatildeordquo em que se experimenta ldquouma

plenitude uma unidaderdquo que se manifesta em um instante de plenitude em meio aos frag-mentos da vida A feacute eacute a epifania do sentido do amor [drummondianamente apaixonado]

que se manifesta na imagem de Deus poetizada em Cristo

Se o pecado eacute dor e o sofrimento eacute divisatildeo o juacutebilo eacute busca de um Deus que estaacute oculto

em meio agrave treva pois uma situaccedilatildeo sem Deus natildeo tem existecircncia e na treva se manifesta o

inimigo que serve para ensinar e adquirir consciecircncia da condiccedilatildeo de contradiccedilatildeo A dimen-

satildeo do misteacuterio se conhece na linguagem do simboacutelico e ldquoeacute disso que noacutes vivemosrdquo e que

permite o relacionamento com Deus pois a simboacutelica permite identificar os movimentos

internos exatamente ali onde nasce o Mal e o desejo de Deus bem como a consciecircncia

da ldquoresponsabilidaderdquo e o convite a ldquomorte do egordquo (2000 pp 22-35)

Em Adeacutelia a literatura biacuteblica esconde a beleza do misteacuterio e a poesia de Deus de

ressignificar a dor em juacutebilo caminho para descoberta do sentido da feacute Entretanto natildeo

eacute toda a feacute que alcanccedila a alegria jubilosa em meio agrave condiccedilatildeo humana pois haacute uma feacute

confusa reducionista que reforccedila ao inveacutes de salvar da contradiccedilatildeo humana (2007b)6

5 Suma Teoloacutegica I questatildeo 2 artigo 36 Biografia do Poeta ( AFP )

91

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 10: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1015

ALEX VILLAS BOAS

Haacute mulheres no meu grupo que rezam sem alegria

e de cabo a rabo recitam o livro todo

incluindo imprimatur ediccedilotildees prefaacutecio

endereccedilo para comunicar as graccedilas alcanccediladas

A feacute que salva eacute a da experiecircncia de sentido que eacute ao mesmo tempo autecircntica expe-

riecircncia religiosa e experiecircncia poeacutetica A experiecircncia poeacutetica permite alargar a hermenecircu-

tica da experiecircncia de Deus dando-lhe outra imagem e ajudando o ser humano a natildeo

se perder em meio a sua dor Provocando o desejo de Deus como resposta agrave vontade de

sentido com uma imagem sensiacutevel ao horizonte de expectativas do indiviacuteduo contemporacirc-

neo (Jauss 2003 p 109) indo ao encontro da anguacutestia e reencanto da alegria de viver Adimensatildeo biacuteblica da poesia adeliana tem uma tarefa poeacutetica portanto de reinventar poe-

ticamente a imagem de Deus na trajetoacuteria semacircntica do Antigo para o Novo Testamento

5 O MODO POEacuteTICO DA LIacuteRICA PRADIANA

Em meio agrave dor a poesia de viver que natildeo se reduz ao poema eacute ldquocomida que mata a

fome e outras fomes trazrdquo7 a fome de um sentido maior dispondo a existecircncia no exerciacutecio

contiacutenuo de busca ateacute a Epifania do sentido quando ldquoo geruacutendio se recolhe e vocecirc comeccedila

a existirrdquo8 O modo poeacutetico pradiano entende que muito ldquomaior que a morte eacute a vidardquo e o

exerciacutecio poeacutetico da existecircncia a reinventa Em meio ao absurdo da dor sem sentido ldquoeacute que

a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor deu o retoque finalrdquo e entatildeo ldquoquando tudo se

recompotildee eacute saltitantes que noacutes vamos cuidar da horta e da gaiolardquo 9 O poema e a prosa

de Adeacutelia Prado apenas traduzem a natureza poeacutetica da vida de dar sentido agrave existecircncia

e reinventaacute-la quando o sentido se esvai e por isso mesmo ldquoa poesia a mais iacutenfima eacute

serva da esperanccedilardquo10 A categoria mais importante para o pensamento poeacutetico pradiano

eacute o sentimento ldquoA coisa mais fina do mundo eacute o sentimentordquo pois eacute ali que se daacute o movi-mento a priori da consciecircncia poeacutetica a posteriori sendo a experiecircncia precedida da cons-

ciecircncia A dimensatildeo do pathos antecede a poieacutesis pradiana pois privilegia uma fina leitura

dos movimentos internos que em meio agrave escuta da dor tambeacutem emerge uma vontade de

sentido e esta recebe uma atenccedilatildeo poeacutetica maior que a proacutepria dor na poeacutetica pradiana

7 ldquoA Poesiardquo (Bagagem)8

ldquoEpifaniardquo (Bagagem)9 ldquoO Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)10 ldquoTarjardquo (Bagagem)

92

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 11: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1115

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Se o chamado agrave poesia eacute de ser sensiacutevel agrave dor do mundo como se vecirc em o Sentimento do

mundo em Drummond eacute tambeacutem em Adeacutelia e mais ainda de ser aacutevido agrave fome de sentido

sendo esta a mateacuteria-prima a ser digerida para a produccedilatildeo da poesia Se em Drummondsua razatildeo de recusa se daacute pela natildeo aceitaccedilatildeo de um Deus apaacutetico ao sofrimento o Deus de

Adeacutelia natildeo somente sofre mas faz a poeta sofrer com o sofrimento do mundo 11

Ave aacutevido

Ave fome insaciaacutevel e boca enorme

Come

Da parte do Altiacutessimo te concedo

Que natildeo descansaraacutes e tudo te feriraacute de morte

O lixo a catedral e a forma das matildeos

Ave cheio de dor

CONCLUSAtildeO

Com licenccedila poeacutetica eacute como a autora inicia a apresentaccedilatildeo de seu modo poeacutetico no

livro Bagagem fazendo clara alusatildeo ao Poema de Sete Faces de Drummond poema em

que tambeacutem o poeta itabirano inaugura a sua obra Nesse poema Adeacutelia Prado pareceassumir a influecircncia drummondiana ao mesmo tempo em que estabelece a sua proacutepria

poeacutetica e sua apreensatildeo da questatildeo Deus Em Adeacutelia o anjo que anuncia sua missatildeo natildeo

eacute torto mas esbelto e seu anuacutencio natildeo eacute de ser gauche ainda que aceite a tarefa de cami-

nhar na contramatildeo mas sim de carregar bandeira de ser poeta

Quando nasci um anjo esbelto

Desses que tocam trombeta anunciou

Vai carregar bandeiraCargo muito pesado pra mulher

esta espeacutecie ainda envergonhada

[]

Mas o que sinto escrevo Cumpro a sina

11 ldquoAnunciaccedilatildeo ao Poetardquo (Bagagem)

93

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 12: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1215

ALEX VILLAS BOAS

O sentimento que antecede a poesia pradiana se manifesta em meio agrave vida cotidiana e

a percepccedilatildeo das coisas de uma mulher no universo do lar contudo como a dor de uma dona

de casa natildeo tem pedigree de poeta a poesia torta de contramatildeo marcada pela mimesis do absurdo do existir eacute maldiccedilatildeo pra homem e em sua condiccedilatildeo de mulher assume a con-

diccedilatildeo de desdobraacutevel (Mulher eacute desdobraacutevel Eu sou) Em meio agrave dor transcende a amargura

impulsionada pela vontade de alegria arraigada em seu ser como presenccedila silenciosa de

Deus arraigada no coraccedilatildeo humano ldquoVai ser coxo na vida eacute maldiccedilatildeo pra homemMulher

eacute desdobraacutevel Eu sourdquo

O desdobramento da vontade de alegria em meio agrave dor se manifesta como Grande

desejo12 que soacute pode se realizar na corporalidade da existecircncia como experiecircncia Sen-

sorial 13 do qual nasce um sexto sentido que eacute adorar como um sentido de transcen-

decircncia que saboreia o sentido das coisas e assim vai discernindo a condiccedilatildeo humana

na experiecircncia que ao marcar o corpo marca a alma A adoraccedilatildeo ou louvor na poesia

pradiana acontece como exerciacutecio poeacutetico de encontrar um sentido que estruture a

internalizaccedilatildeo dos acontecimentos e superando o medo da vulnerabilidade humana

exposta agrave dor A dor e o medo compotildeem a resistecircncia agrave responsabilidade de dar sen-

tido agrave vida Em meio a uma religiosidade confusa que natildeo faz sentido e anestesia a

busca acontece No Meio da Noite o chamado das Buganviacutelias 14 para apreender que

ldquoDeus fez seu amor inteligiacutevelrdquo15 A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar a

resposta verdadeira agrave vontade de sentido do coraccedilatildeo Nesse momento da alma Deus se

manifesta como experiecircncia de sentido que questiona o absurdo de existir sendo sinal

do Misteacuterio de que apesar do absurdo na vida ainda se pode ou se deve encontrar um

sentido Por isso o Joseacute pradiano ao se deparar que ldquono meio do caminho tinha uma

pedrardquo natildeo deve se deixar levar pelo desengano das promessas de outrem que nunca

se cumprem mas deve recordar que tambeacutem ldquoeacutes pedra e sobre esta pedrardquo que se

impotildee no existir eacute que se encontra condiccedilatildeo humana para assumi-la procurando aiacute asalvaccedilatildeo do absurdo e tambeacutem o Reino dos ceacuteus16 em que a busca de sentido pede a

histoacuterica paciecircncia resiliente

12 ldquoGrande desejordquo (Bagagem)13 ldquoSensorialrdquo (Bagagem)14

ldquo

No Meio da Noiterdquo (Bagagem)15 ldquoSaudaccedilatildeordquo (Bagagem)16 ldquoAgora oacute Joseacuterdquo (Bagagem)

94

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 13: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1315

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

O que te salva da vida eacute a vida mesma oacute Joseacute

E o que sobre ela estaacute escrito

A rogo de tua feacute

ldquoNo meio do caminho tinha uma pedrardquo

ldquoTu eacutes pedra e sobre esta pedrardquo

a pedra oacute Joseacute a pedra

Resiste oacute Joseacute Deita Joseacute

Dorme com tua mulher

gira a aldraba de ferro pesadiacutessima

O reino do ceacuteu eacute semelhante a um homem

como vocecirc Joseacute

Eacute aiacute em meio ao tempo que avanccedila lentamente nos afazeres do cotidiano que acon-

tece a metafiacutesica e se manifesta a Clareira17 A poeacutetica de Adeacutelia Prado parte do ponto de

chegada da poeacutetica de Drummond de uma imagem divina que natildeo corresponde ao amor

e que legitima contradiccedilotildees para uma trajetoacuteria peripateacutetica ateacute que Deus seja imagem

que traduz o amor presente na existecircncia e eacute assim que a poesia salva por ser performa-

tiva envolvendo os afetos e estruturando-os no exerciacutecio poeacutetico de modo que a feacute natildeo eacute

mera adesatildeo conceitual ou imaginaacuterio cultural mas epifania da presenccedila de Deus em sua

beleza de amar incondicionalmente A poesia drummondiana destroacutei poeticamente aquilo

que impede de ouvir o chamado agrave beleza ao passo que a poesia pradiana assume a mis-

satildeo de ser epifania da beleza que se chama Deus A primeira destroacutei todas as tentativas

de camuflar a condiccedilatildeo do absurdo de existir condiccedilatildeo essa que permite encontrar um

sentido apesar do absurdo No tocante agrave topografia de Deus nas duas poeacuteticas a primeira

desmonta toda a forma ou imagem que natildeo permite o indiviacuteduo entrar no contato furioso

da existecircncia e assim por ela se responsabilizar Na segunda herdeira desta soacute eacute possiacutevelempreender uma missatildeo de descobrir outra imagem a da beleza de Deus na vida como

excesso de sentido apesar do absurdo da vida porque as caricaturas foram desmascaradas

Em Adeacutelia haacute como em Drummond uma razatildeo de recusa do Deus da teodiceia e o risco

natildeo eacute a falta de sentido que o sofrimento provoca pois a poesia eacute ldquoamarga e docerdquo18 mas

17 ldquoClareirardquo (Bagagem)18 ldquoO Retratordquo (Bagagem)

95

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 14: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1415

ALEX VILLAS BOAS

o ldquonatildeo ter misteacuteriordquo19 eacute entatildeo que causa o medo e o desespero que amplia o sofrimento

bem como inaugura as fugas

Na poeacutetica pradiana ldquoa fonte da vida eacute Deusrdquo mas ldquohaacute infinitas maneiras de entenderrdquo20 e a poesia desvenda o enigma de Deus em ldquoSua Face atingida da brutalidade das coisasrdquo21

perscrutando a memoacuteria procurando as marcas de sentido22 Na relaccedilatildeo apaixonante

com Jesus Cristo a que a poeacutetica pradiana convida haacute epifania que em meio aos terrores

noturnos tambeacutem brotam os sonhos de ressurreiccedilatildeo

Haacute ainda uma uacuteltima questatildeo ao se falar do diaacutelogo entre teologia e literatura que

salvo melhor juiacutezo eacute de fundamental importacircncia Ao se fazer uma anaacutelise literaacuteria da ques-

tatildeo Deus na obra de um autor haacute que se perguntar se natildeo se trata de tentar apresentar de

modo mais belo imagens de Deus que satildeo consideradas razotildees de recusa pelo indiviacuteduo

contemporacircneo sem necessariamente resolver tais problemas Se nos parece que tal lei-

tura pouco contribui com a discussatildeo teoloacutegica por aparentar como uma espeacutecie de verniz

esteacutetico a posturas teoacutericas questionaacuteveis contudo a partir do momento em que a per-

cepccedilatildeo de um autor literaacuterio ajuda a pensar novas formas de percepccedilatildeo de Deus haacute ai de

algum modo uma autecircntica reflexatildeo teoloacutegica ainda que dentro de uma loacutegica poeacutetica eacute

jaacute de algum modo uma hermenecircutica teoloacutegica atenta haacute uma novidade que natildeo se cons-

titui como nova por ser diferente tatildeo-somente como falar de modo esteacutetico de questotildees

teoacutericas mas por captar algo de mais profundo para aleacutem da criacutetica mas nunca aqueacutem

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Barcellos J C (2008) O Drama da Salvaccedilatildeo - Espaccedilo Autobiograacutefico e Experiecircncia Cristatilde em Julien Green

Juiz de Fora Editora Subiacuteaco

Prado A (2007a) Bagagem (=BG) 26ordf ed Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2007b) A Faca no Peito (=AFP) Rio de JaneiroSatildeo Paulo Editora Record

Prado A (2000) Oraacuteculo de marccedilo Entrevista com Adeacutelia Prado Cadernos de Literatura Brasileira 9

Adeacutelia Prado Satildeo Paulo Instituto Moreira Salles

Drummond de Andrade C (2006) Poesia Completa Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (2003) Prosa Seleta Rio de Janeiro Nova Aguilar

Drummond de Andrade C (1975 19 09) De animais santo e gente Jornal do Brasil Caderno B

19 ldquoRebrincordquo (Bagagem)20

ldquo

O Modo Poeacuteticordquo (Bagagem)21 ldquoGuiardquo (Bagagem)22 ldquoPara o Zeacuterdquo (Bagagem)

96

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97

Page 15: Alex Villas Boas Forma Breve Pt

7232019 Alex Villas Boas Forma Breve Pt

httpslidepdfcomreaderfullalex-villas-boas-forma-breve-pt 1515

A QUESTAtildeO DE DEUS ENTRE A TEOLOGIA E A LITERATURA C ONTEMPORAcircNEA

Jauss H R (2003) Literatura como Provocaccedilatildeo - Histoacuteria da Literatura como provocaccedilatildeo literaacuteria Lisboa

VejaPassagens

Tomaacutes de Aquino (2001) Suma Teoloacutegica Vol I I Parte (questotildees 1-43) Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola

Villas Boas A (2011) Teologia e Poesia - A busca de sentido em meio agraves paixotildees em Carlos Drummond de

Andrade como possibilidade de um pensamento poeacutetico teoloacutegico Sorocaba Editora CrearteInstituto

de Teologia Joatildeo Paulo II

Villas Boas A (2011) Poesia e Miacutestica Um dedinho de prosa com Adeacutelia Entrevista realizada em 17072010

Teoliteraacuteria Revista Brasileira de Teologias e Literaturas 1 (1) Disponiacutevel em httpwwwteoliteraria

comtljindexphptltarticleview1917

Yunes E (2011) Dimensotildees da Feacute na Poesia Modernista Brasileira Teoliteraacuteria 1 (1) 29-44

RESUMO

A questatildeo de Deus entre a teologia e a literatura contemporacircnea passa pela recepccedilatildeo esteacutetica de sua con-

cepccedilatildeo e pelo uso social da mesma Tal uso foi alvo de criacuteticas tanto da teologia contemporacircnea quanto

da literatura contemporacircnea Apesar de concordarmos com a classificaccedilatildeo da literatura contemporacircnea

como sendo confessional religiosa e natildeo religiosa pretende-se aqui analisar o processo pelo qual tal clas-

sificaccedilatildeo se daacute de acordo com sua recepccedilatildeo

ABSTRACT

The question of God between theology and contemporary literature involves the aesthetic reception of its

images and its social use Such use has been criticized by both contemporary theology and contemporary

literature Although we agree with the classification of contemporary literature as denominational religious

and non-religious we intend to analyze here the process by which such classification is given according to

its reception

97