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Ciências Humanas em Revista - São Luís, V. 4, n.2, dezembro 2006 31 _________________________________________________________________ MUSEU MEFISTOFÉLICO: o significado cultural da coleção de magia negra do Rio de Janeiro, primeiro patrimônio etnográfico do Brasil (1938) Alexandre Fernandes Corrêa* Resumo: Artigo síntese do trabalho final da pesquisa de pós-doutoramento sobre os usos do conceito de patrimônio etnográfico no Brasil, através da análise do significado cultural da Coleção Museu de Magia Negra da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Através do mapeamento sumário das significações que o termo etnográfico pôde adquirir na história, almejou-se compreender como emergiu a idéia de bem cultural de natureza etnográfica. Como pano de fundo da análise descortina-se o movimento artístico e cultural modernista, que eclodiu na década de 1920. Nesse período histórico ocorreram diversas ações policiais, jurídicas e psiquiátricas contra as práticas de magia, feitiçaria e bruxaria. No estudo sobre o significado cultural do primeiro patrimônio etnográfico do Brasil, tombado em 1938, buscou-se também analisar a biografia e a obra do poeta carioca, Dante Milano (1899-1991), diretor do Museu da Polícia Civil do antigo Distrito Federal, a partir de 1945. Essa pesquisa desenvolve a teoria do ‘retorno do encoberto’ e da ‘distabuzação’ através da antropologia do olhar e da análise intercultural desse acervo museológico. Palavras-chave: Museologia. Etnografia. Modernismo. Patrimônio Cultural. * Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia e Sociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Patrimônio & Memória. E-mail: [email protected].

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MUSEU MEFISTOFÉLICO: o significado cultural da coleçãode magia negra do Rio de Janeiro, primeiro patrimônio

etnográfico do Brasil (1938)

Alexandre Fernandes Corrêa*

Resumo: Artigo síntese do trabalho final da pesquisa de pós-doutoramento sobreos usos do conceito de patrimônio etnográfico no Brasil, através da análise dosignificado cultural da Coleção Museu de Magia Negra da Polícia Civil do Rio deJaneiro. Através do mapeamento sumário das significações que o termoetnográfico pôde adquirir na história, almejou-se compreender como emergiu aidéia de bem cultural de natureza etnográfica. Como pano de fundo da análisedescortina-se o movimento artístico e cultural modernista, que eclodiu na décadade 1920. Nesse período histórico ocorreram diversas ações policiais, jurídicas epsiquiátricas contra as práticas de magia, feitiçaria e bruxaria. No estudo sobreo significado cultural do primeiro patrimônio etnográfico do Brasil, tombado em1938, buscou-se também analisar a biografia e a obra do poeta carioca, DanteMilano (1899-1991), diretor do Museu da Polícia Civil do antigo Distrito Federal,a partir de 1945. Essa pesquisa desenvolve a teoria do ‘retorno do encoberto’ eda ‘distabuzação’ através da antropologia do olhar e da análise intercultural desseacervo museológico.Palavras-chave: Museologia. Etnografia. Modernismo. Patrimônio Cultural.

* Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia e Sociologia.Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudos e PesquisasPatrimônio & Memória. E-mail: [email protected].

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1. INTRODUÇÃOPensar é um ato que põe em dúvida

a estrutura de tudo.O Diabo Pensativo. Dante Milano.

O conteúdo do ensaio em tela é o resultado de um ano de trabalho sobre osdiferentes olhares enfocados nas coleções etnográficas1 constituídas a partir dosprocessos jurídicos ligados à repressão policial e psiquiátrica aos terreiros, casasde santo, centros de espiritismo e práticas de magia, bruxaria e feitiçaria ocorridano início do século XX. Essa investigação tomou como base interpretativa o uso doconceito de patrimônio etnográfico, aplicado a essas coleções museológicas.

O Projeto de Pesquisa, aprovado pela Supervisora Professora DoutoraYvonne Maggie (IFCS/UFRJ) e pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq),desenvolveu-se inicialmente voltado para o estatuto museológico das coleçõesetnográficas, definidas categoricamente como representantes do campo religio-so afro-brasileiro. Historicamente essas coleções foram criadas a partir da açãorepressiva estatal, ação policial e sanitária que coincide com a ascensão do Es-tado Novo autoritário e centralizador. Esse processo se dá numa sociedade emtransformação acelerada, rompendo laços com a vida rural, através da industri-alização que incrementa a urbanização do país, a partir da década de 1920.

No entanto, o absolutismo da “hipótese repressiva” – que toma o Estadocomo o agente central da ação policial e sanitária –, subjacente a esse posicionamento,no decorrer da pesquisa esgotou seu alcance de análise, conduzindo a investigaçãoa um impasse epistemológico. Esse dilema interpretativo implicou na mudança doscaminhos até então seguidos no estudo. Identificados os obstáculos epistemológicose interpretativos, buscou-se tentar superá-los através do mergulho nacontextualização histórico-cultural da época em que foram constituídos os diferen-tes olhares sobre esses acervos museológicos e etnográficos – em especial a Co-leção Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro. Este trabalho, pois, faz parte deuma pesquisa mais ampla que considera os museus como dramatizações sociais,com lógica simbólica própria, exercitando o jogo do esquecimento e da lembrançano grande teatro das memórias sociais da sociedade brasileira2. No teatro da me-mória social brasileira o acervo cultural em foco, após sua inscrição no Livro doTombo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em1938, passou várias décadas esquecido e abandonado3. Somente na década de1980 testemunha-se a recuperação dessa coleção do esquecimento institucional,ao qual estava condenada. Mais precisamente em 1979 a equipe coordenada pelaProfa. Dra. Yvonne Maggie realizou pesquisa etnográfica no Museu da PolíciaCivil4. Assim, a presente pesquisa dá continuidade a esse trabalho de recuperaçãoe ‘distabuzação’ dessa coleção museológica.

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2. PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS

É o momento, então, de oferecer desde já as bases teóricas que balizaramo esforço interpretativo implementado. De imediato, é preciso indicar que asbases teóricas deste ensaio se apóiam diretamente nas propostas metodológicasde Claude Lévi-Strauss, particularmente quando sustenta a ambição da antropo-logia em investigar a totalidade. Segundo suas próprias palavras, a antropologia

(...) vê, na vida social, um sistema cujos aspectos estão todos organicamenteligados. Ela reconhece de bom grado que é indispensável, para aprofundar oconhecimento de certos tipos de fenômenos, dividir um conjunto, como o fazemo psicólogo social, o jurista, o economista, o especialista em ciência política.Mas, quando o antropólogo procura construir modelos, tem sempre em vista, ecomo segunda intenção, descobrir uma forma comum às diversas manifestaçõesda vida social. Esta tendência se encontra tanto atrás da noção, introduzida porMarcel Mauss, de fato social total, como também na de pattern, da qual se sabea importância que adquiriu na antropologia anglo-saxônica no curso destesúltimos anos (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 406).

Como se pode deduzir facilmente, os modelos de análise são conscientesou inconscientes, segundo o nível no qual funcionam. Desse modo,

um grupo de fenômenos se presta tanto mais à análise estrutural quanto asociedade não dispõe de um modelo consciente para interpretá-lo ou justificá-lo. (...) Um modelo qualquer pode ser consciente ou inconsciente, esta condiçãonão afeta sua natureza. Somente é possível dizer que uma estruturasuperficialmente dissimulada no inconsciente torna mais provável a existênciade um modelo que a mascara, como uma tela, para a consciência coletiva (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 318).

Porém, deve ser adiantado que o trabalho aqui realizado não se tornoumais fácil quando se define abstratamente uma configuração ou representaçãosocial, de acordo com esses princípios metodológicos. O campo de trabalho in-vestigado foi especialmente adequado para refletir sobre os alcances dessesprincípios. No que tange às interpretações sobre os diferentes olhares sobre aColeção Museu de Magia Negra, tombada no início do século XX, pode-se dizerque problemas de análise cruciais se levantaram, do tipo que Lévi-Strauss jáprenunciava que o etnólogo enfrentaria. Problemas delineados nesses termos:

A análise estrutural se choca com uma situação paradoxal, bem conhecida pelolingüista: quanto mais nítida é a estrutura aparente, mais difícil torna-se apreendera estrutura profunda, por causa dos modelos conscientes e deformados queesse interpõem como obstáculos entre o observador e seu objeto.

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_________________________________________________________________O etnólogo deverá sempre distinguir entre as duas situações em que corre orisco de se achar colocado. Pode ter que construir um modelo que correspondaa fenômenos cujo caráter de sistema não foi percebido pela sociedade que eleestuda. (...) Em outros casos, entretanto, o etnólogo tem diante de si não somentemateriais brutos, mas também modelos já construídos pela cultura considerada,sob formas de interpretação (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 318-9).

Esses foram os problemas e os riscos enfrentados, quando se almejoutraçar um modelo interpretativo sobre as representações sociais e os olharessobre as coleções museológicas indicadas, levando em conta que, na sociedadeestudada, já existiam diversas interpretações próprias sobre tais representaçõese olhares subordinados a sistemas de valor ou ideologias; interpretações que seconfundiam num vocabulário sociológico comum.

Seguiu-se a orientação de Claude Lévi-Strauss, citando seus textos clás-sicos, no sentido de colocar com mais propriedade os desafios enfrentados napesquisa. Admite-se que não se tem condições de testar e medir o grau de exa-tidão ou verossimilhança das hipóteses interpretativas oferecidas: não se possu-em dados considerados concretos ou empíricos que atestem ‘a verdade da hipó-tese’ que aqui se levanta sobre as razões que levaram o grupo de intelectuais doantigo SPHAN a tombar a Coleção Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro,em 19385. Contudo, apesar dessas dificuldades não se ficou isento do risco deformular hipóteses: cabe à crítica colocar os termos no devido lugar. Pretensõeshá por toda parte, mas deve-se ter em conta que uma ciência que não arriscahipóteses de trabalho, não é digna desse nome.

Assim, procurou-se adentrar no universo cultural e imaginário do início doséculo XX, almejando construir um modelo básico que organizasse uma configura-ção, o mais lúcida possível, sobre os olhares construídos sobre esse acervomuseológico em foco, no período histórico de sua criação. Para tal, a partir daanálise de dados recolhidos através de depoimentos, entrevistas, correspondênci-as, acontecimentos históricos, e também em documentos escritos, entre os quaispoesias, prosas, ensaios, correspondências, dissertações, filmes, teses e obraspublicadas – materiais difusos e, por vezes, heteróclitos, buscou-se organizar umquadro de referência teórico que servisse como um modelo de análise plausível.Esse modelo, como foi visto acima, pode estar ora mais, ora menos consciente ouinconsciente, para os agentes e personagens envolvidos na trama social.

Cabe frisar que, ao utilizar alguns princípios estruturalistas defendidospor Claude Lévi-Strauss, considerado o fundador do estruturalismo, não se cele-bra filiação a uma ortodoxia de escola. Fez-se referência, sim, a uma tradiçãoteórica fecunda, desejando preservar alguma liberdade de movimentação e au-tonomia metodológica. O modelo de análise que se utiliza não se apóia em basesmatemáticas ou estatísticas; antes são fontes de trabalho, assim como os dadosusados para reflexão são heterodoxos (e heteróclitos), sujeitos a contaminações

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variadas, em domínios do conhecimento por vezes tão diversos (artes plásticas,cinema, ciência, literatura, poesia, filosofia, sociologia, etc). De fato, esses obje-tos “são interpretações de interpretações”6. Nesse sentido, caberia defenderaqui um princípio científico antipositivista que se considera salutar. Como escre-veu o filósofo F. Nietzsche: “Contra o positivismo, que pára diante dos fenôme-nos e diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é que não há; só háinterpretações’” (Fragmentos Póstumos, In, DELEUZE, 1976).

3. ANTROPOLOGIA DO OLHAR

Como já foi adiantado, o estudo aqui empreendido realizou-se através deuma antropologia dos olhares sobre a Coleção Museu de Magia Negra do Rio deJaneiro. Procurou-se efetuar um procedimento interpretativo apoiado na práticaantropológica apresentada por Claude Lévi-Strauss na obra O Olhar Distanci-ado (1986), procedimento que foi resumido em entrevista concedida em 1998:

O olhar distanciado caracteriza o olhar antropológico. A expressão ‘olhardistanciado’ é de Hami, que foi um grande ator dramático japonês. Ele dizia que,para ser um bom ator, era preciso olhar para si mesmo, o tempo todo, com osolhos afastados do espectador. O olhar distanciado pode ser aprendido atravésde treinamento, mas também é algo que se pode possuir desde o nascimento,uma espécie de característica da personalidade de cada um7.

De acordo com esse procedimento metodológico, começou-se a esboçarum quadro sinótico dos olhares constituídos historicamente em relação à ColeçãoMuseu de Magia Negra, tombada em 1938. Foram esses olhares que demarcarama construção dos cinco capítulos desse estudo interpretativo. Cada capítulo ex-pressa a “visão” de cada olhar sobre esse conjunto museológico. Cada “olhar” temuma forma específica de elaborar o estatuto museológico desse acervo de objetose peças religiosas e mágicas. Foi possível realizar esse “mapa dos olhares” sobreessa coleção museológica a partir da abordagem antropológica apontada por Lévi-Strauss, isto é, através do estranhamento e do distanciamento em relação aosolhares dos outros, e deste pesquisador, em relação a ela8.

4. ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA E ANÁLISEINTERCULTURAL

Os procedimentos metodológicos realizados se inspiraram numa práticaque aprofunda o alcance das pesquisas antropológicas nas sociedades contem-porâneas. No caso específico dos estudos e pesquisas sobre acervos museológicose o teatro das memórias sociais, a abordagem antropológica se mostrou extre-

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mamente fecunda, conforme aponta com precisão Patrice Pavis:

A abordagem antropológica fornece uma perspectiva de conjunto, não se limita àvisão Ocidental – abre-se ao leque de práticas espetaculares vivas, sejam quaisforem os contextos culturais. É um método plural, em perpétua elaboração, quefedera diversas abordagens e não se reduz a um só olhar (PAVIS, 2003, p. 257).

A conseqüência direta e imediata dessa prática foi a abertura do campode possibilidades interpretativas que se efetuou neste ensaio, de maneira exem-plar. Nada mais se fez que tentar realizar o que está condensado nestas linhas:

A abordagem antropológica obriga a um olhar comparativo e a umquestionamento dos métodos de análise. Assim como uma cultura só se definerealmente em relação e em contraste com as outras, uma tradição teatral e ummétodo de análise só tomam sentido em relação às outras (Idem, p. 257).

Ao tomar os museus e as coleções museológicas como formas dedramatização do social, utilizou-se a abordagem antropológica e a análiseintercultural para tentar compreender o significado cultural desse conjuntomuseológico de magia negra. Neste trabalho tomou-se a Coleção de Magia Negracomo um conjunto museológico comparável a um ‘ato dramático’. Através daetnocenologia9, pretendeu-se empreender a análise interpretativa, do modo comoJean Duvignaud indicou: “A cerimônia dramática é apenas um caso de figuradas cerimônias sociais: “Em diferentes graus, um comício político, uma missa,uma festa de família ou de bairro são, da mesma forma, atos dramáticos” (In,PAVIS, 2003, p. 254).

5. SINOPSE DOS CAPÍTULOS DO ENSAIO

No Capítulo I, intitulado ‘olhar patrimonial’, faz-se uma análise histórica eepistemológica do conceito de patrimônio etnográfico, apontando para suasmetamorfoses mais recentes. Apresentam-se as bases teóricas e históricas dacrítica à noção de patrimônio etnográfico, que jamais conseguiu se livrar do sentidopejorativo do seu uso a-crítico. Nesse trajeto indicam-se os caminhos possíveispara sair do impasse de uma herança colonialista que ainda insiste em perpetuar-se. A partir da crítica ao “etnografismo10” contemporâneo que se nutre de umdiscurso fragmentador e segmentado por egoísmos étnicos, sugere-se a relativizaçãoradical do uso do termo “etnográfico”, tentando superar enfim a ideologia coloniale ultrapassando o cânone tradicional da disciplina11. Não seria o caso de proporuma nova nomenclatura, uma nova terminologia para indicar as primeiras fases doprocesso de conhecimento antropológico?12 Talvez o termo “culturografia” (ou‘semiografia’) expressasse com mais propriedade a missão científica da antro-

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pologia: uma aventura, mais fecunda, através da ‘des-etnografização’ irônica dainvestigação antropológica, recolocando em foco a diversidade cultural e reencon-trando assim sua vocação original13. Nesse primeiro capítulo, após apresentar asvicissitudes históricas do tombamento do primeiro patrimônio etnográfico do país,analisa-se a criação do volume etnográfico do Livro do Tombo do Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

No Capítulo II, descreve-se a construção do ‘olhar policial’ a partir dasreformas cientificistas e positivistas empreendidas na Segurança Pública, peloMinistério de Justiça e Negócios Interiores, no começo do século XX. Desenvol-ve-se especial atenção sobre a criação e atuação das quatro Delegacias Auxiliaresligadas ao Chefe da Policia Civil do Distrito Federal e do Gabinete de Identificaçãoe Estatística Criminal, onde havia um Museu que foi célula embrionária do futuroMuseu da Polícia, vinculado à Escola da Academia de Polícia. No final dessecapítulo, destaca-se uma reflexão sobre a musealização do mundo do crime.

É preciso sublinhar que a inspiração teórica que sedimentou esse percur-so tem uma fonte segura nas análises inauguradas no livro de Yvonne Maggie, OMedo do Feitiço (1992) – trabalho pioneiro na recuperação histórica dessacoleção etnográfica – que investigou densamente os inquéritos jurídicos de acu-sação às práticas de magia, bruxaria e feitiçaria no Rio de Janeiro, desde aPrimeira República. Nesse trabalho, de olhar antropológico apurado, observa-seque o Estado brasileiro “se imiscuiu” nos assuntos de magia, revelando nesseprocesso as raízes profundas das relações estruturais e históricas entre poder,instituição e campo religioso na sociedade. Foi a partir desse estudo antropológi-co inaugural, iniciado no final da década de 1970 – mais precisamente em 1979,quando a FUNARTE e o CNDA14 contrataram a pesquisa sobre Arte e MagiaNegra no Rio de Janeiro15 – que se deram os primeiros passos antropológicos nosentido de recuperar a memória e revelar os conteúdos simbólicos na compreen-são do significado cultural dessa coleção museológica, muito tempo esquecida eabandonada. Essa pesquisa e o ‘olhar antropológico’ direcionado e construídosobre essa coleção museológica são o tema do Capítulo III do ensaio, capítuloque apresenta ainda uma reflexão sobre os paralelos entre a atividade surrealistae a prática etnográfica na Europa e no Brasil. Através das análises do historiadorda antropologia James Clifford (1998), que pesquisou o modernismo europeu,especialmente os movimentos artísticos vanguardistas surrealista e dadaísta,percebeu-se que suas descobertas traziam muita luz sobre os acontecimentoshistóricos e estéticos protagonizados pelos artistas nacionais, nas décadas de1920 e 1930. Assim, apoiado nesse escopo interpretativo comparativo, se encon-trou solo firme para desenvolver um trabalho compreensivo mais fundamentadoe sereno. No desfecho desse capítulo, através das contribuições interpretativasde Yvonne Maggie (1992), reflete-se sobre a crença generalizada na magia nasociedade brasileira.

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O ‘olhar modernista’ é o tema do Capítulo IV. Nessa parte do trabalhoapresentam-se as bases de uma nova hipótese pela qual essas coleçõesetnográficas passam a ser interpretadas no contexto do imaginário social e cultu-ral modernista, do início do século XX. O foco concentra-se especialmente naanálise da Coleção Museu de Magia Negra, hospedada no Museu da PolíciaCivil do Rio de Janeiro. Percebeu-se que as personagens principais, ligadas dire-tamente à formação dessa coleção, estavam vinculadas direta, ou indiretamenteao movimento artístico modernista desencadeado na década de 1920. A partirdos estudos sobre as relações entre antropologia, etnografia, literatura e artesplásticas, formulou-se uma nova hipótese interpretativa especialmente em rela-ção à Coleção Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro.

No Capítulo V, intitulado ‘olhar poético’, após ser delineado o horizontehistórico e antropológico da pesquisa, destaca-se, desse conjunto interpretativo, afigura do poeta carioca Dante Milano. Analisa-se a vida e obra desse artista comoum modernista marginal, um verdadeiro forasteiro da modernidade, ou ainda comoum tipo de nacional-estrangeiro, como sugere Sérgio Miceli (2003). A descobertado valor extraordinário da obra poética e da vida de Dante Milano, no modernismobrasileiro, junto com o amigo Manuel Bandeira, modificou completamente o trajetodeste estudo. É quando se analisa o imaginário literário do mal, base interpretativafundamental do ensaio. Esse novo trajeto investigativo encontra-se nesse capítuloseminal, em que se defende a hipótese central deste trabalho.

Nesse texto sumário de apresentação da pesquisa é interessante desta-car alguns aspectos da biografia desse artista aqui considerado um modernistamarginal. Após perscrutar o imaginário modernista das primeiras décadas doséculo XX, vai-se seguir a trilha da biografia e da obra do poeta, tradutor, escritore escultor eventual, Dante Milano (1899-1991). Sua obra poética não é muitovasta16. Seu primeiro livro, Poesias, foi publicado em 1948, quando completava49 anos de idade, e recebeu o Prêmio Felipe de Oliveira de melhor livro depoesia do ano. Esse prêmio seria hoje comparável ao Prêmio Jabuti, da CâmaraBrasileira do Livro. Nos anos seguintes, trabalhou como tradutor, lançando, em1953, Três Cantos do Inferno, de Dante Alighieri. Em 1979, foi publicado seulivro Poesia e Prosa pela editora da UERJ, edição que recebeu, em 1988, oPrêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, ho-menageando esse autor ainda desconhecido pelo público leigo.

O poeta carioca Dante Milano é considerado, por muitos especialistasem literatura, um dos poetas mais representativos da terceira geração do Modernis-mo brasileiro. Contudo, após uma juventude movimentada na boemia da Lapa e doMangue (sua vida familiar nunca foi muito agitada) levou uma vida simples e avessaà glória e à fama – um dos traços principais de sua personalidade singular17.

Nasceu em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, filho de Nicolino Milano,maestro e amante da música, e de Dona Corina Milano. Não foi o único poeta da

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_________________________________________________________________família, teve um irmão que também escreveu poemas, chamado Atílio Milano. Em1947, Dante Milano casou-se com Alda18. Como tantos outros escritores e artistasbrasileiros, foi funcionário público. Trabalhou no Ministério da Justiça e SegurançaPública, até se aposentar em 1964. Mas, além disso, no ponto que mais interessaaqui, foi organizador e diretor do Museu da Polícia Civil.

Diante do quadro singular de uma personalidade avessa a fama e glória, e detodos os aspectos relacionados à idiossincrasia de uma subjetividade que persistiu naindependência e até num certo auto-exílio19, talvez seja adequado colocar essa bio-grafia sob a configuração sociológica do homem marginal. Como se sabe, o tema doestrangeiro aparece em diversos estudos de sociologia urbana da famosa Escola deChicago, tema que foi desenvolvido por G. Simmel, e, em especial, por Robert Park,que fora seu aluno nos anos de 1900. No seu intrigante artigo, traduzido para ofrancês como Digressions sur l’Étranger, de 1908, G. Simmel, escreveu:

O estrangeiro instala-se na comunidade, mas fica à margem. Não apreende seusmecanismos íntimos e permanece de certo modo exterior ao grupo social, o quelhe confere, involuntariamente, uma maior objetividade, ‘que não implica odistanciamento ou o desinteresse, mas resulta antes da combinação específica daproximidade e da distância, da atenção e da indiferença’ (In, COULON, 1995, p. 56).

Parece ser exato pensar que esse processo também se deu com DanteMilano. Aplicam-se, a ele, esses mesmos termos sociológicos, somando-se aindao fato de que era herdeiro de uma história de imigrantes italianos. Assim, convi-veu entre mundos culturais em pleno processo de mestiçagem. Seu caso biográ-fico se adequou perfeitamente às interpretações de autores como EverettStonequist que, na mesma década de 1930, escreveu um trabalho importante emque defendeu a noção de homem marginal:

(...) a marginalidade não deve ser definida apenas em termos étnicos ou raciais.Se a marginalidade é particularmente visível no caso dos migrantes, caracterizatambém algumas seitas religiosas, algumas classes sociais ou algumascomunidades. A personalidade marginal é encontrada quando um indivíduo ‘sevê involuntariamente iniciado em duas ou várias tradições históricas, lingüísticas,políticas ou religiosas, ou em vários códigos morais’. Por essas razões, o homemmarginal está em conflito psicológico entre diversos mundos sociais, cujaintensidade varia segundo as situações individuais. O homem marginal, queelabora um novo mundo com base em suas experiências culturais diversas,sente-se com freqüência rejeitado, e com razão, pois está apenas parcialmenteassimilado (COULON, 1995, p. 59).

Essa noção sociológica parece dar conta perfeitamente das característi-cas pessoais básicas de Dante Milano, confirmada por todos que o conheceram.Seu comportamento sisudo, contido, mas às vezes simpático e alegre, que o

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mantinha sempre num distanciamento e isolamento contemplativo e introspectivo,resultou num limitado círculo de amizades20, amizades de alto valor sentimental ehumano21, amizades que souberam reconhecer seu alto grau de sensibilidade eelevado desenvolvimento intelectual e moral. Robert Park escreveu:

O homem marginal é sempre um ser humano mais civilizado, que os demais.Ocupa a posição que, historicamente, foi a do judeu da diáspora. O judeu, muitoespecialmente o que se libertou do provincianismo do gueto, foi sempre, e portoda parte, o mais civilizado dos seres humanos (COULON, 1995, p. 58).

Todos os autores e escritores que se lançam na tentativa de decifrar apoética de Dante Milano marcam a sua fonte principal na forma do caráter e nostraços da psicologia do poeta. Não se poderia deixar de seguir essa trilha. Assim,ao recolher esses depoimentos, poder-se-ia enfim compreender a trajetória bio-gráfica desse artista e entender como seu nome ligou-se definitivamente ao pri-meiro tombamento etnográfico do Brasil: o da Coleção de Magia Negra do Mu-seu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, criada na década de 1920 e 1930. Umavida ligada a uma coleção museológica – um Museu que não pode ser compre-endido sem que se entenda sua ligação com a vida e a obra de Dante Milano.

No Capítulo VI, apresenta-se a contribuição desta pesquisa para a inter-pretação do significado cultural da Coleção Museológica de Magia Negra, desig-nada como ‘olhar mefistofélico’ a explorar o simbolismo literário que essa ricapersonagem mitológica tem no imaginário moderno. Esse novo ‘olhar’ interpretativose soma às outras interpretações possíveis, todas elas construídas a partir dosolhares dos diferentes interpretes. Dessa análise chegou-se à conclusão de queessa coleção etnográfica em particular – primeiro patrimônio etnográfico do Brasil– constituiu-se no processo de simbolização e encenação museológica do mal, dodiabólico e do satânico, na sociedade brasileira moderna. Ao parafrasear, livre-mente, o título do livro O Mal à Brasileira de Patrícia Birman (1997), pretendeu-se indicar os caminhos trilhados no exercício de interpretação antropológica desseacervo museológico e etnográfico heteróclito formado no começo do século XX.

Neste capítulo conclui-se que a argumentação apresentada desde o iníciodeste trabalho, parece agora mais bem assentada. A Coleção Museu de MagiaNegra do Rio de Janeiro não deve ser considerada – após todo esse trabalho deverdadeira arqueologia de seu significado cultural – uma Coleção de Arte ouCultura Religiosa Afro-Brasileira. Trata-se de uma coleção museológica querepresenta os confrontos civilizacionais e culturais no campo religioso brasileiro,do ponto de vista da sociedade eurocêntrica, iconoclasta, positivista e cientificista.Essa Coleção de Magia Negra representa o ‘olhar ocidental’ e o ‘olhar policial’sobre as diferentes formas de religiosidade não-cristãs, sincretizadas e hibridizadas,que foram atravessadas pelos estereótipos e representações do diabólico, do

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satânico e da malignidade européia. Do ponto de vista do ‘olhar policial’ e do‘olhar estético’, apresentados aqui, seria um erro continuar classificando essacoleção com o estatuto museológico do campo religioso afro-brasileiro. Manten-do essa interpretação, estar-se-ia corroborando ou reificando a ideologia dasatanização e da diabolização da arte e da cultura afro-brasileira22. Essa coleçãoparece indicar um outro tratamento museológico em que deve ser elaborado,através de uma nova interpretação, um novo processo de musealização – quedessa vez leve em conta a etnocenologia23 do mal, isto é, os diferentes modos deconceber a maldade e a malignidade na sociedade, o que só pode ser feito atra-vés de uma museologia plural que incorpore os diferentes olhares sobre essesobjetos e peças religiosas e mágicas. Como já indicado anteriormente, trata-sede uma coleção museológica que dramatiza as concepções de satanismo,diabolização e malignidade da sociedade ocidental moderna. Enfim, desse ponto-de-vista distanciado, deve-se buscar uma museologia que incorpore a aborda-gem antropológica e promova a interculturalidade – a expressão cultural pluraldas representações do mal na sociedade brasileira.

Como já foi adiantado na tese de doutoramento anteriormente citada(CORRÊA, Alexandre; 2003), consideram-se os próprios terreiros e casas deculto, tombados pelos órgãos do patrimônio cultural, os verdadeiros e autênticosecomuseus da cultura e arte afro-brasileira. Identificou-se, neste trabalho, avocação museológica dos tombamentos ditos etnográficos’ no campo religiosoafro-brasileiro24. De modo contrário, observa-se nessa Coleção Museu de Ma-gia Negra representar-se um outro campo, um outro pólo cultural, isto é, umamusealização do olhar histórico da sociedade ocidental sobre a maldade, a malig-nidade, o satânico e o diabólico.

Dois exemplos parecem atestar o efeito da encenação do diabólico e dosatânico, com requintes teatrais e dramáticos, produzido propositalmente para aexposição museológica, no período de 1964 a 1989 – efeito que tanto impressio-nou a equipe de pesquisadores FUNARTE/CNDA, em 197925. A forma deteatralização, ou dramatização, escolhida pelo detetive é uma expressão livre,amadora, que se distancia do significado cultural tradicional dos rituais dos cultosafro-brasileiros de candomblé e de macumba freqüentados por milhares de bra-sileiros, tanto naquela época, como ainda hoje. Pode-se afirmar que a mise enscène trabalhada se aproxima mais das casas de umbanda carioca, principal-mente pela exuberância visual dos Exus. No caso mais especifico dessa cole-ção, o ensaio analisa as figuras de Exu Tiriri e do Exu das Sete Capas.

Destarte, apoiados nas análises efetuadas, parece justo colocar que esseconjunto de peças e objetos religiosos e mágicos, apesar de terem sido captura-dos no campo religioso popular e afro-brasileiro, é fruto de uma tentativa demusealização ‘mefistofélica’, a partir da visão européia e ocidental sobre essesobjetos e peças, isto é, trata-se de um Museu que remete aos “semióforos”26 da

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herança cultural e imaginária européia, uma herança cultural e literária românti-ca do século XIX, do qual W. Goethe de Fausto, e Charles Baudelaire27 de AsFlores do Mal, são referências diretas. Os elos desse processo cultural e literá-rio foram estabelecidos, como foi visto anteriormente, a partir da análise de as-pectos relevantes da vida e da obra de Dante Milano – diretor do Museu daPolícia de 1945 até 1956.

Destaca-se, mais uma vez, que na Relação dos Objetos inventariados em1940, enviada para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, en-contra-se a seguinte descrição: “2. Estatueta de Mefistófeles (Eixu)”. Assim, apartir desse signo dado, explorar-se-á a dimensão simbólica, sintetizada na figurade Mefistófeles, presente na cultura literária européia. Mas não se pode esque-cer também das referências diretas que foram feitas, no capítulo anterior, à obrade João do Rio, especialmente As Religiões do Rio (1951), na qual encontram-se registros contundentes da presença de diversos cultos e ritos satânicos nacidade do Rio de Janeiro.

Dessa maneira, após a análise de todos esses dados e documentos, con-sidera-se que a Coleção de Magia Negra não poderia ser enquadrada com oestatuto museológico de Coleção Afro-Brasileira. Ela é efetivamente a repre-sentação e a semiotização teatral e musealizada de uma visão européia do mal,do diabo e de satanás, na sociedade brasileira. É uma coleção formada a partirde um ‘olhar sobre o mal’, a partir dos cultos e práticas mágicas realizadas pelapopulação pobre e negra do Rio de Janeiro, em muitos casos utilizada pela elite epelas classes dirigentes, para reificar seu imaginário do mal. Não se pode esque-cer, como foi adiantado no capítulo sobre o ‘olhar antropológico’, que se estánuma sociedade em que a crença na magia é generalizada, e se dissemina portodas as classes sociais.

A Coleção Museu de Magia Negra, tombada em 1938 – considerandotodas as determinantes sociais e culturais até aqui esmiuçados – só pode sercompreendida plenamente se for contextualizada no imaginário artístico e cultu-ral modernista do início do século XX. E cada vez fica mais certo que, de acordocom esse ponto de vista, um dos protagonistas principais desse processo foi opoeta Dante Milano. A análise de alguns aspectos importantes de sua vida e obrailuminam e revelam pontos obscurecidos relacionados à salvaguarda patrimonialdesse acervo. Quanto à pertinência de tentar encontrar elementos explicativosna obra do poeta Dante Milano, cita-se uma reflexão de Maurice Merleau-Ponty,sobre A Dúvida de Paul Cézanne: “Pode-se pois ao mesmo tempo dizer que avida de um autor nada nos revela e que, se soubéssemos sondá-la, nela tudoencontraríamos, já que se abre em sua obra” (1984, p. 125-6).

Seguindo essa trilha, tentou-se encontrar, na sua poesia e literatura, oselementos interpretativos que ‘se abrem em sua obra’. Isso, sem esquecer dosilêncio cultivado por Dante Milano, fruto de uma contumaz recusa em se ‘abrir’

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publicamente, como foi confirmado em vários depoimentos. Todavia, o consta-tou Merleau-Ponty: “É certo que a vida não explica a obra, porém certo é tam-bém que se comunicam” (p. 122).

Antes de concluir esse capítulo apresentamos a idéia de se considerarum museu como a cenografia (ou etnocenografia28) de atos dramáticos de umasociedade específica – no caso, típica de uma sociedade ocidental –, compreen-de-se que os riscos da musealização são muito grandes, no sentido de a manipu-lação simbólica e ideológica fossilizar o bem cultural em conjuntos de objetosinertes, isto é, são grandes os riscos de transformá-los em fósseis culturais.

Jean Duvignaud, sociólogo francês que pesquisa a função social da arte,ao escrever sobre o ator e desenvolver o esboço de uma sociologia do comedi-ante, aponta para o fato de que toda cerimônia dramática é um ato teatral, entreas diferentes formas de cerimônias sociais: “Em diferentes graus, um comíciopolítico, uma missa, uma festa de família ou de bairro são, da mesma forma, atosdramáticos” (apud, PAVIS, 2003, p. 254). Nesse sentido, os museus podem serconsiderados ‘atos dramáticos’ do mesmo tipo. E mais, poder-se-ia mesmo avan-çar em considerar os museus, na perspectiva da etnocenologia, como locais ondeocorrem cultural performances, isto é, fenômenos sociais nos quais se podeinterpretar e analisar as práticas espetaculares – os museus são formas de ence-nação repletos de simbolismo e significados sociais e culturais profundos.

Lamentavelmente, nos museus tradicionais comumente observa-se con-firmar, e se repetir indefinidamente, a prática denunciada por Evans-Pritchard29.A Coleção Museu de Magia Negra não foge à regra. Yvonne Maggie e a equipede pesquisadores contratados pela FUNARTE/1979 relataram a impressão quetiveram ao entrar no Museu da Polícia: a vertigem mórbida que resultava docenário sinistro. Ao descontextualizar os objetos e peças do universo cultural esocial de origem, o conjunto museológico serviu como representação cenográficada ideologia policial, isto é, uma pedagogia museológica do mal. Esse registrodemonstra que o efeito desejado na encenação museológica foi conseguido: oimpacto dramático sobre os visitantes era impressionante e sensacionalista. Aencenação das potencialidades do mal, do crime, do diabólico e do satânicoespetacularizavam as virtualidades do imaginário do mal, na sociedade. Até hoje,no que sobrou daquela exposição de 1979, após o fogo de 1989, ainda causaespanto e impacto significativo.

Entrar no Museu da Polícia é uma experiência extremamente angustiante. Asensação é de estar em um filme de terror ou tendo uma visão surrealista. A sala,mal iluminada, e as peças empoeiradas concorrem para esta sensação. Os objetosmais diversos se confundem: Exu com estoques, tóxicos com fetos, objetosrituais com armas, bandeiras nazistas com fotos de crimes famosos na imprensa(1979, p. 16).

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O efeito angustioso da visita foi descrito, pela equipe de pesquisadores,como uma sensação estética vertiginosa. Classificaram essa experiência desurrealista (“visão”). A encenação do mal, da maldade, do bizarro, do grotesco,da violência produziu esse tipo de sensação terrificante, horripilante – ressaltou-se, então, o efeito cenográfico ‘surreal’ e ‘terror’. O que nos pareceu tambémsignificativo foi constatar a expressão de uma estética trash terror30, o quetalvez fosse mais pertinente do que uma alusão ao surrealismo. Contudo, ficaevidente que o recurso cênico, a espetacularização do mal, utilizado como recur-so dramático, pretendia explicitar as potencialidades de uma dimensão específi-ca do sentido, que era o expressionismo visual, uma dramaturgia do visual, apartir da encenação do diabólico e do satânico.

Sabe-se que esses elementos simbólicos estavam presentes no imaginá-rio modernista. O paradigma dessa estetização do mal é a obra máxima do poetafrancês Charles Baudelaire As Flores do Mal. Mas é impossível deixar de lem-brar também da obra de Edgar Alan Poe, a qual, em muitos aspectos, reproduz omesmo cenário sombrio e fantasmagórico. Viu-se que Dante Milano cultivouessa herança literária com um rigor magistral, remetendo às raízes clássicas delastro profundo e grande alcance histórico. Foi através de sua obra que se en-contraram os elementos simbólicos pertinentes para compor uma propostainterpretativa mais densa para a compreensão do significado cultural do tomba-mento da Coleção Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro.

Porém, por fim é preciso fazer reverência a um outro grande poeta quecontribuiu também, de modo significativo, para que se pudesse entender o senti-do da metáfora do Museu na cultura brasileira. João Cabral de Melo Neto, queserve de epígrafe a este ensaio interpretativo, lapidou essa jóia de poesia que é opoema il:Museu de Tudo. Esse poema condensa, como uma cápsula, todo es-forço investigativo aqui exercitado, pois, se tudo pode ser museologizado, nummundo que cultua cada vez mais a velocidade e a mudança, em transformaçãoalucinante e devoradora – museu de tudo “é depósito do que aí está” – por quenão poderia existir um Museu Mefistofélico?

Com esses versos, então, termina-se essa aventura antropológica pelouniverso dos museus. Museu de Tudo. Este museu de tudo é museu/ comoqualquer outro reunido;/ como museu, tanto pode ser/ caixão de lixo ouarquivo./ Assim, não chega ao vertebrado/ que deve entranhar qualquerlivro:/ é depósito do que aí está,/ se fez sem risca ou risco. João Cabral deMelo Neto (1976).

Nas Considerações Finais, sintetizaram-se as linhas gerais que balizarama reflexão, retomando os pontos principais da argumentação, sob o título de Re-cuperação do Encoberto: a ‘distabuzação’ da Coleção Museu de MagiaNegra.

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MEPHISTOPHELIC MUSEUM: the cultural significance of the blackmagic collection of Rio de Janeiro, first brazilian etnographicalheritage (1938).Abstract: This article is a synthesis of the final essay of the post doctoratedresearch on the uses of the concept of ethnographic heritage in Brazil, based onthe analyses of the cultural significance of the Collection ‘Museu de MagiaNegra da Polícia Civil do Rio de Janeiro’. After a brief mapping of the meaningsand notions that the term ‘ethnographic’ could acquire along history, it wasintended to understand how the idea of a cultural acquisition of ethnographicnature emerged since the end of the XX century. As background to the analysesthe artistic and cultural modern movement is unveiled, which began in the 1920’s.During this historical period, several policial, juridical, and psychiatric actionsagainst the practices of magic, witchcraft and sorcery took place. This studyalso aims to analyse the biography of the poet Dante Milano (Rio de Janeiro,1899-1991), director of the ‘Museu da Polícia Civil’ of Rio de Janeiro since1945. This research develops the theory of the return of the mysticism andtaboo destruction through the anthropological view and intercultural analysis ofthe Museu de Magia Negra collection.Keywords: Museology – Ethnography – Modernism – Cultural Heritage

MUSEO MEFISTOFÉLICO: el significado cultural de la colecciónde magia negra de Rio de Janeiro, primer patrimonio etnográfico deBrasil (1938).Resumen: Este artículo es la síntesis del ensayo de conclusión de la investigacióndel posdoctorado sobre las aplicaciones del concepto de la herencia etnográficaen Brasil, basado en el análisis cultural de la Colección Museo de Magia Negrade la Policía Civil de Río de Janeiro. Teniendo en cuenta el mapa sumario de lassignificaciones que el término etnográfico ha podido adquirir a lo largo de lahistoria, se ha intentado comprender cómo surgió la idea de bien cultural denaturaleza etnográfica. Dicho análisis tuvo como fondo el movimiento artístico ycultural modernista, que ocurrió en la década de 1920. En este periodo históricohubieron diversas acciones policíacas, jurídicas y siquiátricas contra las prácticasde magia, hechicería y brujería. En el estudio sobre el significado cultural delprimer patrimonio etnográfico de Brasil se buscó aún analizar la biografía y laobra del poeta carioca Dante Milano (1899-1991), director del Museo de PolicíaCivil de Distrito Federal. Esa investigación desarrolla la teoría del “retorno doencuberto” y la “distabuzação” con base en la antropología y en el análisisintercultural de dicho acervo museológico.Palabras Clave: Museología. Etnografía. Modernismo. Patrimonio Cultural.

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Notas:

1 Coleções Etnográficas com objetos de magia afro-brasileira: Museu AntropológicoEstácio de Lima (Coleção Nina Rodrigues), Salvador (BA); Casa de José de Alencar(Coleção Arthur Ramos), Fortaleza (CE); Centro Cultural São Paulo (Coleção Mário deAndrade), São Paulo (SP); Museu do Estado de Pernambuco (Objetos de culto afro-brasileiro), Recife (PE); Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (ColeçãoPerseverança), Maceió (AL); e Museu da Polícia Civil (Coleção Museu de Magia Negra),Rio de Janeiro (RJ).2 Como escreveu Ulpiano T. Bezerra de Meneses: “O Theatrum Memoriae insere-senessa linhagem [renascentista], mas enraizando-se, também, nas artes da memória daAntiguidade e da Idade Média, que propunham a articulação de imagens a lugares eespaços, para assegurar a rememoração. Hooper-Greenhill vê aí o surgimento do Museucomo teatro da memória, conceituação que ela acredita deva ser explorada, mesmo hoje,pois seu potencial permaneceu ainda parcialmente inexplorado: é mais eficiente do que aescrita e outros sistemas intermediados de registros já que a matriz sensorial facilita arememoração. A partir da seleção e síntese cognitiva na apresentação visual, ganha-senotável impacto pedagógico” (MENESES, 1994, p. 9-10). Sobre o teatro da memória foiconsultado também Henri-Pierre Jeudy, Memórias do Social (1990). Esse aspecto édesenvolvido na tese de doutoramento que se defendeu (CORRÊA, 2003), e no artigoTeatro das Memórias Sociais e do Patrimônio Cultural, a ser publicado.3 O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional só passou a incluir a ColeçãoMuseu de Magia Negra do Rio de Janeiro nos seus relatórios de bens móveis e imóveisinscritos nos Livros do Tombo, em 1984.4 As pesquisas realizadas pela Profa. Yvonne Maggie, no final da década de 1970,resultaram no trabalho de tese de doutorado Medo do Feitiço, concluído em 1993.5 De acordo com o historiador Adler Fonseca: “O IPHAN funcionava de forma muitoinformal, no início. Os tombamentos de bens privados eram comunicados pela notificaçã:o (indispensável). Se a pessoa assinasse, o assunto era levado ao Conselho que fazia umtombamento geral, sem se deter na análise dos assuntos - pelo menos por escrito. Segundoas informações que tenho, às vezes um assunto gerava maiores discussões, mas comonão havia uma ata da reunião, fica difícil saber quais foram esses assuntos e quais foramas discussões. Pode ser (acho que deve ter sido o caso) que o Museu de Magia Negratenha gerado esse tipo de discussão. Mas como recuperá-la? Não sei. É por isso que osprocessos dos primeiros anos (praticamente todos) são muito ralos em informação.Somente os assuntos que geraram polêmicas formais ou legais é que tem mais documentos,como o caso de Diamantina. Nesse houve uma contestação ao tombamento e foi criadauma comissão de conselheiros para estudar o assunto (em 1940). Esses processos maispolêmicos são um pouco mais “encorpados”, mas só eles. A prática atual, de se sustentartecnicamente um tombamento, começou na década de 70, quando o IPHAN seprofissionalizou e viu que a forma de atuação adotada, até então, não era adequada.Antes disso é muito raro ver um parecer realmente embasado tecnicamente. Normalmentesão apenas opinativos (ou seja: “me parece...”). A justificativa teórica era que osfuncionários da instituição e os membros do conselho eram pessoas de notório saber,que não precisavam demonstrar esse saber por longos textos técnicos. (...) O tombamentoex-ofício ainda é comum (mais ou menos). É todo o tombamento de bem público, onde

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_________________________________________________________________não é preciso que o proprietário assine a notificação de tombamento, sendo feito porofício (ex-ofício) ao administrador do bem (artigo 5o do Decreto-lei 25). É o caso doMuseu de Magia Negra: como era de propriedade pública, não era necessário notificar oproprietário, só mandar um ofício ao administrador (polícia do RJ), comunicando que eleestava tombado”. CASTRO, Adler Homero Fonseca de. “Era da bagunça.” Comunicaçãopessoal em 19 nov. 2005. ICOMOS/Brasil (LIIB): lista de discussão na internet. Disponívelem: http://br.groups.yahoo.com/group/icomos-brasil/message/9699).6 Como escreveu Michael Taussig: “De qualquer modo, o que chega até nós são histórias,vinhetas, descrições, boatos – em suma, filigrana e fragmentos de narrativas, entretecidos,permeados e moldados em narrativas míticas” (TAUSSIG, 1993, p. 86). Não há uma verdadedos fatos, como a ciência positivista pregava; o que há são ‘versões’, ‘narrações’ – parao cientista social interessa, no entanto, o ser social da verdade.7 Entrevista para Beatriz-Perrone Moisés em Paris, 1998. Jornal Folha de São Paulo,Domingo, 27 de junho de 1999, Caderno Mais!, página 7.8 Como exemplo de exercício mais recente desse método, ver a obra Olhar, Escutar, Ler,na qual o autor “interroga três procedimentos estéticos básicos e examina suas variantese sua possível estrutura comum” (LÉVI-STRAUSS, 1997).9 Primeira fase do conhecimento produzido pela etnocenologia, definida por Patrice Paviscomo: “o estudo, nas diferentes culturas, das práticas e dos comportamentos humanosespetaculares e organizados” (PAVIS, 2003, p. 272).10 Sobre a obsessão etnográfica José Carlos Rodrigues indaga: “Não estaria aí o sentidoda urgência de os poderes providenciarem Outros artificiais, de fazerem etnografias deemergência, de museologizarem, de ‘conservarem’, afinal?” (RODRIGUES, 1991, p. 178).11 Como escreveu Antoine Vitez : “Não gosto que me digam que não posso entender nadados outros, nem os outros de mim. Tenho horror desta moda que faz as diferençasirredutíveis. Então não compreendo nada das mulheres por que sou homem, dos africanospor que sou europeu? Ao pé da letra, isso me enlouquece. Se devesse pensar nisso, nãopoderia mais viver” (apud PAVIS, 2003, p. 258).12 “Ao assumir uma atitude ‘irônica’ frente às formas de representação etnográfica, oefeito de sua reflexão é desetabilizar a própria noção antropológica de cultura, tal comoesta se configurou ao longo do século XX. Em especial aquelas concepções em que a‘cultura’ aparece como uma totalidade integrada no espaço e contínua no tempo, dotadade uma ‘identidade’ e de fronteiras muito bem definidas, fundada em ‘raízes’ e portadorade ‘autenticidade’” (CLIFFORD, 1998, p. 11).13 Como salientou Merleau-Ponty: “a antropologia contribui para a constituição dasciências humanas como ‘ciências semiológicas’, isto é, ciências que investigam a ‘regiãodo signo’” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 194-5). Nesse sentido, poderíamos apontar nadireção de uma futura ‘semio-grafia’, ao invés da ‘etno-grafia’.14 Convênio Fundação Nacional da Arte e Conselho Nacional de Direitos Autorais. Nessaépoca quem coordenava o Núcleo de Estudos e Pesquisas do órgão era Adauto Novaes– coordenação que exerceu por mais de 15 anos.15 MAGGIE, Yvonne et al. Arte ou magia negra? Relatório FUNARTE – Convênio CNDA.Rio de Janeiro: (mimeo.), 1979. Relatório que hoje se encontra em cópia nos arquivos doMuseu do Folclore no Rio de Janeiro, e no Grupo de Pesquisa coordenado pela Profa.Dr.a. Yvonne Maggie, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ.16 Entrevista de Dante Milano concedida a Denira Rozário, com a presença de Ivan

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_________________________________________________________________Junqueira, realizada em Petrópolis, 08 de agosto de 1987: “Eu destruí muito do que fiz,porque não publicando em livros, não publicando em jornais, eu punha numa gaveta. Eum ano depois quando eu ia ler, não gostava. Eu escrevi dez vezes, vinte vezes mais doque publiquei” (NEVES, 1996, p. 96).17 Entrevista de Dante Milano à Denira Rozário: “O que você chama de recolhimento, éuma ojeriza que eu tenho à popularidade, a ser apontado, a ser conhecido. Eu só publiqueimeu primeiro livro aos 48 anos, não publiquei, publicaram contra a minha vontade porque em não pretendia publicar livro nenhum enquanto estivesse vivo” (Neves, 1996, p.96). Dante Milano, por ele mesmo: “Preferi ser um poeta póstumo. (...) A popularidade merepugna” (Idem, p. 156).18 Depoimento de Alda Milano, em 1995: “Dante nasceu em 16/06/1899, em São Cristóvão,que era o bairro do Imperador, filho de Nicolino Milano e de D. Corina Milano. Ela tocavamuito bem piano, acompanhou o marido em diversos concertos. O pai de Dante viveumuitos anos na Europa, onde fez muito sucesso... Pois bem, Dante freqüentou EscolaPública e depois uma escola em Lins. Ai o Avô, que era dono de lojas de colchões,fornecedor do Imperador, ficou pobre, sofreu com dois incêndios. Naquela época, imagine.Nesse tempo, Dante já estava sem o pai, que viajara para a Europa, separado da mãe. Elesficaram quase na miséria. Dante não pôde fazer ginásio, nada disso. Dante é um poetanato, autodidata. Aprendeu o inglês, o francês, o italiano sozinho. Adolescente ele foitrabalhar no Jornal... (NEVES, 1996, p. 74-5).19 No depoimento de Alda Milano, Thomaz Neves pergunta: “Como a Sr.a. acha que oDante se definiria? AM – É uma pergunta difícil. Eu não sou o Dante. Ele não era orgulhoso.Era um sujeito discreto, bom, alegre, conversava muito bem, mas nada disso de sarausliterários, não era esse tipo de poeta. Para Dante a função do poeta era escrever. Ele disseuma vez: - Desejo ser um poeta póstumo” (NEVES, 1996, p. 86).20 Na correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, encontram-se algumaspassagens em que se faz referência direta a Dante Milano: “Espírito singular, retraído edesconfiado” (escrito por Manuel Bandeira). Na Página 259, Mário de Andrade chega aexpressar a opinião de que Dante Milano era um “parasita de Jaime Ovalle”. Essescomentários foram feitos nos anos de 1925 e 1926.21 Depoimento de Ivan Junqueira, em 1995, sobre Dante Milano: “Um homem adorável. Eupensei que fosse uma pessoa sisuda, meio tímida. Nada disso. Um homem de contatofacílimo. Agora, evidentemente que era um homem muito seletivo. Se você correspondesseàs exigências dele, ele não ia te convidar para a casa dele. (...) Quer dizer, a reclusão dele,em primeiro lugar era fundamentada, e em segundo, era natural. Ele era assim, não queriacontato. Quando se isolou em Petrópolis então, a solidão dele ficou total. É o que leva acrer que ele era um homem arredio, mas não, ele me recebia muito bem quando eu ia lá”(NEVES, 1996, p. 67-68).22 Cabe colocar que não se pretende dizer que não haja elaboração do mal e da maldade nacultura afro-brasileira. Isso não é exclusivo da cultura mágica e religiosa ocidental. Comocolocou Merleau-Ponty: “O mal não é criado por nós nem pelos outros, nasce do tecidoque fiamos entre nós”. Todavia, no campo religioso afro-brasileiro, não se pode esquecerda linha da quimbanda.23 Sobre a etnocenologia ver a obra de Patrice PAVIS A análise dos espetáculos. SãoPaulo: Perspectiva, 2003.24 Esse tema foi desenvolvido na tese de doutorado já citada, Vilas, Parques, Bairros eTerreiros: novos patrimônios na cena da política cultural em São Luís e São Paulo,

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_________________________________________________________________defendida na PUC/SP (CORRÊA, 2001).25 O detetive-diretor do Museu criou essa mise-en-scéne em 1964, e ela perdurou até oincêndio de 1989. Convém levar em conta o fato de o detetive também se declarar ‘decoradorde ambientes’: “tendo feito muitos altares em terreiros e decorado seus interiores”(MAGGIE, 1979).26 De um modo sintético o termo semióforo equivale ao de patrimônio. Patrimônio é tudoaquilo que resulta da transformação de certas coisas, objetos, comportamentos etc., emsemióforos, isto é, em uma nova categoria agora significante de uma identidade cultural(CORRÊA, 2003, p. 29-31).27 No caso específico de C. Baudelaire, digno de nota é o seu famoso e cultuado ‘satanismo’,associado ao ‘vampirismo’. No texto escrito por Jamil Haddad, como introdução à traduçãoda obra As Flores do Mal, de 1958, encontra-se elementos que testemunham a difusão dofenômeno do satanismo no Brasil: “Esses dados sobre o satanismo brasileiro estãosendo tirados de tese nossa [O Romantismo Brasileiro e as Sociedades Secretas doTempo, São Paulo, 1945], em que pudemos demonstrar as relações estreitas do Romantismocom o fenômeno, unanimemente difuso pelo Brasil do tempo, da maçonaria. Pudemosnela demonstrar o caráter maçônico de Álvares de Azevedo como as estreitas ligaçõesque se podem lobrigar entre satanismo literário e satanismo maçônico. Um livro quecitamos nesta tese – Le Diable au XIXéme siècle (1892) de Dr. Bataille [pseudônimo deLéo Taxil (1854-1907)] – dá-nos informações sobre as ramificações brasileiras da maçonarialuciferiana. Estas abrangeriam: a) Província triangular do Rio de Janeiro; e, b) Provínciatriangular da Bahia. A Loja do Rio era a Loja-Mãe e chamava-se ‘Lótus do Brasil’” (JamilHaddad, In, BAUDELAIRE, 1981, p. 29).28 Primeira fase do conhecimento produzido pela etnocenologia (PAVIS, 2003, p. 272).29 A partir dos seus estudos sobre os Azande, Evans-Pritchard passou uma liçãoimportante: “Espero ter persuadido o leitor de uma coisa – da consistência intelectual dasnoções azande. Elas só parecem inconsistentes se dispostas como se fossem objetosinertes de museu. Quando vemos como um indivíduo as emprega, podemos dizer que sãomísticas, mas nunca que são acionadas de forma ilógica ou acrítica” (2005, p. 225).30 A expressão do grotesco parece refletir ora um estado de coisas geralmente carregadode tensão social (o trash como sendo produto de uma falta de bagagem cultural e artística,produto do povão), ora uma aceitação do precário como forma de subverter fórmulas epadrões tidos como “de qualidade” e “bom gosto”. O trash terror seguiria a trilha docineasta José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão. As Coleções do Museu da Políciae da Magia Negra seriam facilmente enquadradas nesse conceito estético contemporâneo.25 O detetive-diretor do Museu criou essa mise-en-scéne em 1964, e ela perdurou até oincêndio de 1989. Convém levar em conta o fato de o detetive também se declarar ‘decoradorde ambientes’: “tendo feito muitos altares em terreiros e decorado seus interiores”(MAGGIE, 1979).26 De um modo sintético o termo semióforo equivale ao de patrimônio. Patrimônio é tudoaquilo que resulta da transformação de certas coisas, objetos, comportamentos etc., emsemióforos, isto é, em uma nova categoria agora significante de uma identidade cultural(CORRÊA, 2003, p. 29-31).27 No caso específico de C. Baudelaire, digno de nota é o seu famoso e cultuado ‘satanismo’,associado ao ‘vampirismo’. No texto escrito por Jamil Haddad, como introdução à traduçãoda obra As Flores do Mal, de 1958, encontra-se elementos que testemunham a difusão dofenômeno do satanismo no Brasil: “Esses dados sobre o satanismo brasileiro estão

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sendo tirados de tese nossa [O Romantismo Brasileiro e as Sociedades Secretas doTempo, São Paulo, 1945], em que pudemos demonstrar as relações estreitas do Romantismocom o fenômeno, unanimemente difuso pelo Brasil do tempo, da maçonaria. Pudemosnela demonstrar o caráter maçônico de Álvares de Azevedo como as estreitas ligaçõesque se podem lobrigar entre satanismo literário e satanismo maçônico. Um livro quecitamos nesta tese – Le Diable au XIXéme siècle (1892) de Dr. Bataille [pseudônimo deLéo Taxil (1854-1907)] – dá-nos informações sobre as ramificações brasileiras da maçonarialuciferiana. Estas abrangeriam: a) Província triangular do Rio de Janeiro; e, b) Provínciatriangular da Bahia. A Loja do Rio era a Loja-Mãe e chamava-se ‘Lótus do Brasil’” (JamilHaddad, In, BAUDELAIRE, 1981, p. 29).28 Primeira fase do conhecimento produzido pela etnocenologia (PAVIS, 2003, p. 272).29 A partir dos seus estudos sobre os Azande, Evans-Pritchard passou uma liçãoimportante: “Espero ter persuadido o leitor de uma coisa – da consistência intelectual dasnoções azande. Elas só parecem inconsistentes se dispostas como se fossem objetosinertes de museu. Quando vemos como um indivíduo as emprega, podemos dizer que sãomísticas, mas nunca que são acionadas de forma ilógica ou acrítica” (2005, p. 225).30 A expressão do grotesco parece refletir ora um estado de coisas geralmente carregadode tensão social (o trash como sendo produto de uma falta de bagagem cultural e artística,produto do povão), ora uma aceitação do precário como forma de subverter fórmulas epadrões tidos como “de qualidade” e “bom gosto”. O trash terror seguiria a trilha docineasta José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão. As Coleções do Museu da Políciae da Magia Negra seriam facilmente enquadradas nesse conceito estético contemporâneo.

Referências:

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Alexandre Fernandes Corrêa

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Alexandre Fernandes Corrêa