ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

download ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

of 16

Transcript of ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    1/16

    A RETRICA: UM SABER INTERDISCIPLINAR

    MANUEL ALEXANDREJNIOR

    Centro de Estudos ClssicosFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    Para muitos, a retrica pouco mais do que mera manipulao lingustica e

    ornato estilstico; uma forma de discurso mais ou menos vazia de contedo fundada no

    artifcio psicolgico com fins propagandsticos e no na argumentao de princpios e

    valores que se nutrem de um raciocnio crtico vlido e eficaz. verdade que, durante

    sculos,1a retrica foi perdendo a eficcia da sua dimenso filosfica e dialctica original,

    a ponto de se ver reduzida ao campo da mera ornamentao estilstica. Mas a recente

    restaurao da retrica ao seu velho estatuto de teoria e prtica da argumentao

    persuasiva, e a sua reabilitao como antiga e nova rainha das cincias humanas tem

    vindo a corrigir essa noo enganosa e negativista, revalorizando a retrica como cincia

    e arte que to logicamente opera na heurstica e hermenutica dos dados que faz intervir

    no discurso, como psicolgica e eficazmente se cumpre no resultante efeito de

    mobilizao para a aco.

    A retrica clssica acabou por abarcar um campo enorme dos mltiplos saberes

    humanos, na aspirao de ser a alma dos estudos humansticos. Dominou a literatura,

    tanto em prosa como em verso, transformou-se em crtica do texto, caldeou os gneros

    oratrios, serviu o discurso oral e escrito, foi paradigma que moldou outros gneros

    literrios, nomeadamente a epistolografia.

    enorme o caudal de sabedoria que a retrica antiga nos transmite, pois no s

    nos ensina as estratgias lgicas do discurso nas suas mais diversas formas, como

    tambm nos leva a reflectir sobre a lngua do texto, a identificar e usar as figuras de

    estilo, a classificar as figuras, os estilos e as diferentes classes de questes colocadas ao

    ser humano, a educar e formar os discpulos, a filosofar e fazer crtica literria. 2 E hoje,

    ela de novo se nos apresenta no s como retrica filosfica e literria, mas tambm

    como retrica didctica, cientfica, da imagem, do cinema, da publicidade. Como Lpez

    Eire nos sugere, trs factores concorreram na antiguidade para a formao do cnon

    1Os sculos XVII a XIX.2LPEZ EIRE, Antonio. Reflexiones sobre el origen y desarrollo de la antigua retrica griega,Logo: Revistade Retrica y Teora de la Comunicacin (1 parte), 3:4, 2003, p. 109.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    2/16

    2

    retrico e a utilizao prtica do seu potencial argumentativo. So eles a oralidade, a

    democracia e a filosofia.

    I

    R

    ETRICA E

    O

    RALIDADE

    Muito antes de haver rdio, televiso, cinema, computadores ou mesmo a

    imprensa, as pessoas dependiam do canto, da dana, dos jogos e dos discursos para se

    entreterem e informarem. A literatura era no princpio oral, e os poetas, supostamente

    inspirados pelas Musas, foram os primeiros educadores da Grcia.3 Foi ao nvel da

    oralidade que, na literatura grega mais antiga, se gerou e plasmou todo um conjunto de

    estratgias e regras pr-retricas que a memria registou, e o ensino oral acabou por

    consagrar e perpetuar. O culto da memria, aliado prtica de uma retrica natural eespontnea, o exerccio mimtico de uma espcie de pr-retrica em que oralmente se

    acariciam as palavras, mas tambm com elas se plasmam figuras de feio esttica,

    psicolgica e argumentativa. Essas palavras e figuras foram sendo armazenadas nos

    arsenais da memria para, na ocasio e tempo certos, se voltarem a usar por uma espcie

    de cultores da memria, autodidactas transformados com a experincia em inspirados

    oradores e, depois, por fora dessa mesma experincia, em sbios mestres de oratria

    prtica.4A oralidade foi, de facto, indispensvel ao nascimento da retrica, pois foi nela

    que germinaram e se configuraram os padres de construo, expresso e expressividade

    oratria que vieram a marcar a diferena nas convenes da retrica clssica.5Modelos

    paradigmticos como o paralelismo, a anttese, a incluso, o quiasmo, o encadeamento, o

    refro e a simetria concntrica esto presentes em toda a literatura grega como marcas

    indelveis de uma cultura caracterizada pela interaco da oralidade com a escrita;

    tambm figuras retricas como o smile, a metfora, a metonmia, a anfora, a antstrofe,

    3Ver JAEGER, Werner, Paideia: The Ideals of Greek Culture, New York: Oxford University Press, 1943-1945, vol. I, pp. 76, 219.4 A figura dominante da cultura helnica foi o orador. As pessoas encontravam satisfao, estmulointelectual, inspirao tica e deleite esttico ouvindo discursos, e era a percia na arte do discurso pblicoque abria caminho para a fama. (OSBORN, Ronald E., Folly of God: the Rise of Christian Preaching. AHistory of Christian Preaching Volume I. St. Louis, Missouri: Chalice Press, 1997, p. 72).5O estudo dos padres orais de construo na antiguidade foi particularmente desenvolvido em torno de trsreas: teoria oral, anlise epistolar, e anlise retrica: a teoria oral, iniciada com Milman Parry e Albert Lord;e a anlise epistolar, com Paul Wendland e Adolf Deissmannn.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    3/16

    3

    o homeoteleuto e o clmax.6Mas no foi s a oralidade que preparou o caminho para a

    retrica. Foi sobretudo a democracia e uma maneira mais pragmtica de encarar a

    filosofia.

    IIRETRICA E DEMOCRACIA

    Como sabemos, a retrica nasceu e floresceu com a democracia. Primeiro em

    Siracusa e depois em Atenas, a retrica foi concebida, ensinada, exercitada e colocada ao

    servio do povo tanto para a defesa dos seus interesses individuais e comunitrios como

    para a afirmao dos princpios e dos valores que sustentam a justia, o direito e a

    liberdade. A democracia radical que se instalou em Atenas e o relativismo filosfico que

    os sofistas opuseram ao dogmatismo dos pr-socrticos, concorreram juntos para oimprio da retrica na antiguidade. A defesa dos valores da liberdade e da democracia,

    tanto no plano da igualdade no direito ao uso da palavra ( isegoria) como no da liberdade

    de expresso (parresia), determinou um nmero crescente de intervenes orais pblicas

    no palco das assembleias e dos tribunais. E este, por sua vez, obrigou a sociedade a

    organizar-se no sentido de proporcionar e fomentar a aprendizagem da retrica; terreno

    propcio ao surgimento e proliferao de loggrafosou redactores de discursos, e retores

    ou professores de retrica que ensinavam a compor os discursos. Estes ltimos eram, em

    muitos casos, filsofos que, com o seu relativismo, praticavam uma espcie de filosofia

    democrtica ou pragmtica: os chamados sofistas. O estado democrtico de direito foi o

    terreno ideal para nele brotar, crescer e se desenvolver cabalmente a retrica; pois nele,

    at ao lobo feroz se oferece a possibilidade de defender a sua causa em tribunal, 7mesmo

    que ele exiba as fauces manchadas com o sangue do cordeiro que acabara de devorar. 8

    IIIRETRICA E FILOSOFIA

    A retrica siciliana construa-se em torno de argumentos de probabilidade

    fundados em estratgias ticas, estticas e psicolgicas; estratgias que, mesmo

    falaciosas, poderiam seduzir os ouvintes e se fazer passar por verdadeiras. Mutatis

    mutandis, esta foi a retrica que Grgias transportou para Atenas, uma retrica frouxa em

    6 Cf. HARVEY, John D., Listening to the Text: Oral Patterning in Pauls Letters, Grand Rapids: BakerBooks, 1998, pp. 1-118; ROBBINS, Vernon K., Exploring the Texture of Texts: A Guide to Socio-RhetoricalInterpretatation, Valley Forge, PN: Trinity Press International, pp. 7-70.7PLATO, Fedro272C10.8LPEZ EIRE, Antonio. Op. cit., p. 115.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    4/16

    4

    sua vertente dialctica, igualmente satisfeita com o argumento de probabilidade e

    totalmente alheada do campo das verdades absolutas. Tambm para ele a retrica se

    pode ocupar de qualquer tema, mas apenas no mbito da opinio (doxa), enquanto

    verdade social ou communis opinio e nunca a verdade entendida em termos absolutos,

    porque essa nos escapa.9

    Trs abordagens se cruzaram, entretanto, na tradio retrica ao longo da sua

    longa histria: a estilstica, a aristotlica e a da comunicao em geral. A abordagem

    estilstica, representada pela tradio sofstica, a mais redutora de todas. Define-se

    como um grupo de tcnicas lingusticas pelas quais se adorna o pensamento. A

    abordagem aristotlica fixa-se no campo argumentativo do discurso oratrio, mas admite

    a sua aplicao aos demais gneros. A que contempla a retrica como arte aberta de

    comunicao abrange praticamente todas as tipologias do discurso, tendo em Iscrates a

    sua principal fonte de inspirao.

    1 Retrica sofstica

    De acordo com os sofistas, a retrica mais pragmtica do que epistemolgica.

    Ser, no fundo, uma psicagogia, uma espcie de droga que arrasta a alma e a seduz com

    seu deleite esttico e engano sedutor.10Segundo Grgias, ns no conhecemos a verdade

    directamente. Conhecemos apenas uma viso da verdade, uma viso materializada em

    palavras e no a realidade em si mesma; pois pela magia da palavra ( logos) que

    pensamos e explicamos a realidade. As palavras veiculam vises aproximadas da

    realidade, mas no a prpria realidade objectiva.11E porque a linguagem no uma cpia

    fiel nem mesmo fivel da realidade, a filosofia deve simplesmente abandonar a busca da

    Verdade em termos absolutos e universais. O que pode e deve concentrar-se no uso da

    palavra, para com ela resolver os problemas do contraditrio no plano do consensual e

    provvel, e deleitar, seduzir e encaminhar as almas para solues plausveis no mbito do

    que justo, til, conveniente e necessrio, com base em estratgias de carcter esttico e

    psicolgico. A tradio estilstica que deriva da retrica dos sofistas veio a atingir o seu

    clmax na Segunda Sofstica e prolongou-se praticamente at aos nossos dias.

    9Ibid., pp. 120-121.10Ibid., p. 121.11GRGIAS, Encmio de Helena, B 11, 13 D-K; Sobre a natureza, ou seja sobre o no ser, B 3, 82 D-K.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    5/16

    5

    2 Retrica filosfica de Plato

    Mas essa no foi a viso que Plato e Aristteles nos transmitiram da retrica.

    Para Plato, o discurso deve versar sobre algo importante, e a tese que o orador se prope

    provar ter de ser demonstrada filosoficamente, mediante a via dialgica que persuade a

    verdade e enobrece a alma do ouvinte. Segundo ele, o ingrediente fundamental de todo o

    discurso retrico a verdade que apenas se alcana pelo reflexivo dilogo filosfico que

    se chama dialctica. Antes de falar, o orador deve conhecer a verdade do que vai dizer. E,

    para a conhecer, deve comear por estudar filosofia.

    A retrica cultivada pelo orador perfeito , portanto, uma retrica que tem uma

    componente lgica muito forte, pois s assim capaz de produzir um discurso to

    coerente e orgnico como um ser vivo. tambm uma retrica que ensina a argumentar

    a verdade filosfica sem ignorar a vertente psicolgica e esttica do discurso, com vista a

    sustentar e projectar a sua coeso e eficcia persuasivas. S pena que a retrica

    platnica se tivesse concentrado em exclusivo na sua vertente filosfica, toda ela

    controlada pela dialctica, e no tivesse deixado margem para uma retrica mais

    directamente ligada vida, mais vocacionada para a soluo dos problemas do dia-a-dia,

    no ambiente tantas vezes contraditrio dos nossos relacionamentos e funes.

    As ideias fora de uma teorizao oratria consequente e vlida estavam quasetodas elas lanadas, mas faltava ainda elaborar uma retrica que, a par de ser filosfica,

    psicolgica e esteticamente fundamentada, fosse tambm uma arte pragmaticamente

    realista e objectiva, to exigente com a verdade como moral e eticamente rigorosa; numa

    palavra, uma retrica emprica que tocasse a vida real na dinmica profunda da sua

    essncia, e que verdadeiramente ensinasse a compor discursos que persuadam

    logicamente, atraiam psicologicamente e seduzam com seus encantos estilsticos.12 O

    tempero que faltava vamos ns encontr-lo, no s na Retrica de Aristteles, mastambm na filosofia de Iscrates.

    3 Lgica aristotlica do discurso persuasivo

    Para Aristteles, nem a retrica mera questo de estilo, nem o discurso retrico

    discurso cientfico, dialctico, potico ou meramente sofstico. Ele prprio escreveu

    tratados ou partes de tratados para cada uma destas cinco espcies de discurso,

    12Ibid., p. 126.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    6/16

    6

    distinguindo-os uns dos outros com base em critrios de natureza, lgica e estilo.13

    Segundo Aristteles, o discurso retrico tem sobretudo a ver com a lgica e a psicologia

    da argumentao ligadas oratria poltica, forense e demonstrativa. Mas a definio

    que nos d da retrica sugere a aplicao do seu cdigo ao tratamento de qualquer outro

    assunto. Foi talvez por isso que os seus cnones se fizeram tanto sentir em quase toda a

    histria da educao, e foram recentemente revitalizados com o fenmeno da chamada

    Nova Retrica.14

    Nos manuais clssicos da tradio aristotlica so assinaladas cinco operaes

    retricas fundamentais, tambm chamadas cnones ou divises da retrica. So elas:

    inveno, disposio, elocuo, memorizao e pronunciao.15Na inveno ou descoberta

    o orador comea por examinar a causa, define a inteno do discurso no ambiente da

    situao retrica que o motiva, e v se a causa tem consistncia oustatus.16Nela, o orador

    ocupa-se da escolha do assunto, da posio a tomar na discusso do tema e da formulao

    da tese que se prope argumentar. Ocupa-se tambm da pesquisa do material a utilizar

    na estrutura e desenvolvimento persuasivos do discurso, da seleco do mesmo material,

    e da escolha das tcnicas que mais bem se ajustam defesa da sua tese. Uma vez que o

    processo de inveno se entendia mais como modo de encontrar ou descobrir os

    argumentos certos, do que como o modo de inventar ou criar novas ideias, os manuaisclssicos continham listas ou catlogos de figuras e tpicos argumentativos que

    facilitavam a pesquisa dos argumentos: estratgias paradigmticas, modelos bsicos de

    argumentao, figuras convencionais do discurso, citaes literrias clebres, catlogos

    13 KINNEAVY , James L. A Theory of Discourse: The Aims of Discourse, New York, London: Norton &Company, 1971, p. 214.14Ver PERELMAN, Cham:Lempire rhtorique: Rhtorique et argumentation, Paris : Librairie PhilosophiqueJ. Vrin, 1977 ; The New Rhetoric and the Humanities : Essays on Rhetoric and its Applications , Dordrecht,Boston, London: Reidel Publishing Company, 1979; e PERELMAN, Cham & L. OLBRECHTS-TYTECA, Lanouvelle rhtorique: Trait de largumentation, 1958. Porque o tempo me escapa, apenas refiro aqui algunsdos traos mais distintivos do seu cdigo retrico: os trs gneros de discurso, as trs tcnicas de persuaso,as trs espcies de argumentos, e os trs paradigmas de argumentao. Para uma sntese geral da teoriaaristotlica, veja-se a minha introduo de: Aristteles, Retrica (Lisboa, Imprensa Nacional Casa daMoeda, 1998), pois foi ele quem determinou os rumos da multissecular tradio aristotlica.15 Em Aristteles : eu{resi", tavxi", levxi", mnhvmh, uJpovkrisi"; Em Ccero e Quintiliano : inuentio,dispositio, elocutio, memoria, actio ou pronuntiatio; isto : inveno ou descoberta do material, arranjo oudisposio das partes do discurso e dos argumentos dentro do discurso, composio e estilo, memorizao dodiscurso e comunicao pela palavra. A intellectioera reconhecida por uns dentro da prpria inuentio, e tidapor outros (Sulpcio Victor) como prvia inuentio, enquanto operao mediante a qual o orador examina acausa, o gnero e a situao retrica a fim de examinar os fundamentos e a consistncia da causa para sobreela construir o discurso oratrio.16Os estados de causa so a conjectura, a definio, a qualidade e o fundamento legal.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    7/16

    7

    de imagens e exemplos. Os elementos destas listas eram chamados tpicos ou lugares, de

    sorte que a inveno pouco mais era do que a busca do lugar certo assumido como tpico

    de argumentao para um fim retrico particular. Estavam geralmente ligados busca de

    uma mxima, de um provrbio, de um orculo, de um exemplo, ou de um precedente

    legal para a formulao de um determinado argumento. A disposio ou arranjo dos

    argumentos referia-se ao trabalho de ordenao do material recolhido num esboo,

    tendo em considerao factores como: a melhor sequncia a utilizar, a necessidade de

    expandir ou no determinado ponto de argumentao, ou a melhor maneira de

    desenvolver um subtema, uma narrao ou descrio. Temos assim: as partes do discurso

    na sua macroestrutura, e as partes dos argumentos na sua microestrutura; porventura

    acrescidos de amplificaes e digresses. O processo de estruturao formal do material

    escolhido era to importante e criativo como o da descoberta ou inveno. Ambos se

    influenciavam reciprocamente na elaborao do discurso. Na composio e ornamentao

    estilstica do discurso, o orador manipulava o material recolhido e seleccionado no

    processo de elaborao. Ocupava-se ele normalmente de questes de gramtica, sintaxe,

    seleco de palavras e frases, figuras, cadncia rtmica, etc. Virtudes da linguagem como

    a clareza, a pureza, a simplicidade, a verdade, a grandiosidade, a beleza, a luminosidade,

    o vigor, a solenidade, a elegncia e a vivacidade eram geralmente tidas em conta.Tambm as figuras do discurso e as vrias categorias, modalidades e tipologias de estilo;

    estilo natural, mdio, elevado, veemente. Menos importante para a anlise retrica

    moderna, a memoria tinha directamente a ver com a memorizao do discurso, de modo a

    que a sua pronunciao soasse natural, e nada do que fosse essencial escapasse ao orador.

    A apresentao ou pronunciao do discurso cultivava basicamente o uso da voz, a sua

    colocao e articulao, o estudo da expresso, das pausas, e dos gestos mais apropriados.

    Aristteles dividiu em trs os gneros do discurso: judicial ou forense,deliberativo ou poltico, e demonstrativo ou epidctico. Os objectivos ou causas finais de

    cada um destes gneros so diferentes: No discurso forense o justo e o injusto; no

    poltico o conveniente e o til ou seus contrrios; no demonstrativo o belo e o feio.

    Estes trs gneros correspondem a trs tempos diferentes: o passado, o futuro e o

    presente, respectivamente, pois se ocupam o forense de causas passadas, o poltico de

    aces a implementar no futuro, e o demonstrativo do elogio ou vituprio de pessoas,

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    8/16

    8

    coisas ou causas presentes. Dirigem-se por isso a auditrios diferentes: os juzes ou

    jurados, os membros de uma assembleia, e o pblico em geral. Especializam-se tambm

    em tipos de raciocnio diferentes, servindo-se de modelos de argumentao dedutiva

    como os entimemas ou silogismos retricos, e de modelos de argumentao indutiva

    como os exemplos, as mximas, as amplificaes, etc. Preferem ainda tpicos diferentes:

    o real/irreal, o possvel/impossvel, o mais/menos, respectivamente. E porque a retrica

    entendida como debate, sempre com dois lados em cada questo, era natural que os

    gregos distinguissem duas espcies de discurso para cada um dos gneros. Assim: o

    discurso forense especializava-se em modelos de acusao e defesa; o discurso

    deliberativo, em modelos de persuaso e dissuaso, ou confirmao e refutao; e o

    discurso demonstrativo, em modelos de louvor e censura. Na prtica, um determinado

    discurso pode conter ou apresentar todas estas seis formas de argumentao,

    dependendo apenas das circunstncias, embora tenda a especializar-se numa delas.

    Todo o acto de comunicao persuasiva envolve trs elementos distintos: o

    orador, o discurso e os ouvintes. E a eles esto ligadas trs espcies de prova: prova tica,

    prova lgica e prova emocional ou pattica; por outras palavras, a tica do orador, a

    lgica do discurso e as emoes dos ouvintes. A prova tica a prova de carcter do

    orador; prova a que Quintiliano tambm chama argumento de autoridade. Diz Aristtelesque os factores que pem em evidncia o argumento tico so o bom senso, a boa

    vontade e o so carcter moral. O bom senso manifesta-se na capacidade de tomar

    decises prticas e escolher os meios adequados sua concretizao, a boa vontade

    consiste em tornar claras aos ouvintes as suas boas intenes para com eles, e o so

    carcter estabelece-se na evidncia que o orador d da sinceridade e verdade das suas

    afirmaes. A prova pattica ou emocional visa despertar emoes que precipitem e

    movam os ouvintes para a aco. To importante esta tcnica de persuaso queAristteles lhe dedica dezasseis captulos, pondo em evidncia a racionalidade das

    prprias emoes e a eficcia da sua gesto argumentativa. A prova lgica a que

    persuade pelo recurso a estratgias de argumentao dedutiva e indutiva,

    nomeadamente o silogismo retrico e o exemplo. As provas eram determinadas por

    convenes sociais e culturais; de sorte que, na argumentao de uma causa particular,

    os elementos de prova se impunham pelo grau de importncia que certos valores tinham

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    9/16

    9

    na sociedade. Esses valores chamavam-se tpicos fundamentais ou finais de

    argumentao.17 A lista mais consistente desses valores inclua oito: o que justo,

    legtimo, vantajoso, belo, agradvel, fcil, possvel e necessrio.18 Dois princpios de

    classificao se fundiram na formao desta lista: um, foi a ateno dada aos trs gneros

    de discurso, para que os supremos objectivos do discurso forense (justia e legalidade),

    do deliberativo (vantagem e necessidade), e do demonstrativo (beleza e agrado) fossem

    relevados. Um outro princpio de classificao foi o de incluir um sistema de gradao

    para definir a aco em causa, sobretudo em termos de prioridade lgica e tica.

    Para se desenvolver uma linha estratgica de argumentao, so necessrios trs

    impulsos lgicos. O primeiro tomar posio relativamente questo em causa ().

    A posio a tomar recebia vrios nomes conforme o gnero de discurso e o momento

    histrico do seu desenvolvimento, podendo chamar-se proposio, tese, hiptese, tema,

    ou simplesmente assunto. O segundo dar imediatamente uma razo para se tomar essa

    posio: quer pela narrao ou descrio da causa; quer pela forma de um silogismo para

    que a proposio fosse mais do que mera assero. A razo avanada era frequentemente

    chamada causa. O terceiro reunir as provas que sustentam a tese enunciada e/ou

    informada. O arranjo dessas provas constitua o corpo do discurso, isto , a argumentao

    propriamente dita, sustentada por uma dinmica consequente e eficaz de provas lgicase psicolgicas. importante ter sempre presentes estes trs movimentos na anlise de

    padres de argumentao retrica.

    Ao adaptar o modelo do raciocnio filosfico retrica, Aristteles reconheceu

    que, a par da dialctica, que prefere a deduo a partir de princpios gerais, havia uma

    retrica que igualmente formula argumentos dedutivos a partir de princpios

    particulares. Reconheceu tambm que esta mesma retrica tinha a faculdade de

    argumentar indutivamente a partir de exemplos, analogias, mximas e citaes deautoridade tomados da tradio cultural. Os tpicos so lugares onde os argumentos se

    podem encontrar, uma espcie de argumentos estereotipados. Aristteles refere trs

    espcies de tpicos: tpicos especiais, tpicos comuns e tpicos do entimema. Os tpicos

    17Tpicos fundamentais (telikaVkefavlaia).18 Tpicos de justia/injustia (divkaion), legalidade/ilegalidade (nomimovn), convenincia/inconvenincia(sumfevron), beleza ou bondade/feiura ou maldade (kalovn),agrado/desagrado(hJdu'), facilidade/dificuldade(rJavdion), possibilidade/impossibilidade (dunatovn), necessidade/no necessidade (ajnagkai'on).

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    10/16

    10

    especiais so argumentos que derivam de proposies sobre o justo e o injusto, o bom e o

    mau, o belo e o feio. Os tpicos comuns so argumentos que derivam do possvel e

    impossvel, do facto passado e facto futuro, de nveis de pequenez e grandeza. Os tpicos

    do entimema incluem argumentos de definio, comparao e contraste, de

    antecedente/consequente, causa/efeito, circunstncia e testemunho. O entimema era

    uma espcie de silogismo retrico, um raciocnio dedutivo a que faltava uma das

    premissas, isto , uma afirmao seguida da respectiva razo ou fundamentao, ou um

    antecedente seguido do respectivo consequente, ou uma causa seguida do respectivo

    efeito. O exemplo retrico era usado, no como mera ilustrao, mas como elemento de

    prova inserido num esquema ou estratgia global de argumentao. Era uma forma

    indutiva de persuaso que tanto podia ser representada pela narrao histrica como

    pela fictcia de uma comparao, parbola ou fbula.

    O modelo de estrutura formal do discurso oratrio reunia as seguintes partes:

    promio, narrao, prova e concluso. (1) O promio introduzia o assunto, fazendo o

    reconhecimento da situao, e pronunciava-se sobre o ou carcter do orador. (2) A

    narrao informava a causa, situava e clarificava a questo a tratar, estabelecia e

    enunciava a tese que geralmente se fazia acompanhar de uma razo. (3) A prova ou

    argumentao estruturava a evidncia e demonstrava a razo da causa com base nas duascategorias de argumentao lgica que so o entimema e o exemplo, no mbito das suas

    mais diversas formulaes. (4) A concluso resumia os argumentos e promovia a sua

    aceitao. Podia incluir estilo apaixonado, exortao, verbalizao das consequncias de

    uma deciso e admoestao.

    A estrutura formal de base que plasmava o discurso forense foi, entretanto,

    acomodada aos requisitos do discurso deliberativo. No princpio, era a mesma, com a

    eventual ausncia da narrao. Depois, foi sendo paulatinamente adaptada estruturaformal da declamao relativa defesa de uma tese. O tratamento elaborado ou

    amplificado de uma tese acabou, com o decorrer do tempo, por se assemelhar

    formalmente ao exerccio da elaborao de uma cria em oito partes: introduo

    encomistica, proposio ou enunciao da cria em parfrase, razo ou fundamentao

    da afirmao feita em tese, contrrio, comparao ou analogia, exemplo, citao de

    autoridade, e concluso em tom de exortao. Esta composio elaborada corresponde,

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    11/16

    11

    no fundo, estrutura original do discurso oratrio. A proposio e a razo explicam os

    requisitos bsicos da narrao, no s formulando uma clara afirmao da tese, mas

    tambm ao mesmo tempo justificando-a. O tpico do contrrio lembra o princpio

    fundamental de argumentao: que esta debate e que, para argumentar uma tese,

    necessrio ter o outro lado da questo sempre presente. A analogia e o exemplo

    representam as duas principais formas de prova secundria para a construo do

    argumento retrico. A citao ou argumento de autoridade representa o tipo de prova

    que, no discurso forense, corresponde a alguma forma de testemunho, deciso legal

    prvia ou evidncia documental. Todas juntas, estas oito partes do discurso deliberativo

    so cuidadosamente elaboradas para representar em esboo as estratgias e formas de

    prova consideradas indispensveis configurao de uma linha completa de

    argumentao.19

    O discurso demonstrativo, que partida tinha a forma normal de um discurso

    forense, foi-se com o tempo especializando no encmio. O seu objectivo era produzir

    exemplos para a vida de um indivduo ou para a histria de uma instituio. Era corrente

    fazer-se o elogio de pessoas, cidades, figuras sobrenaturais, animais e coisas. Este gnero

    de discurso veio, enfim, a chamar-se encmio, por se especializar no elogio dos objectos

    19Partindo de uma afirmao de Iscrates, sobre a importncia da educao Iscrates disse que a raiz daeducao amarga, mas o seu fruto doce Hermgenes ilustra a elaborao de uma cria do seguinte modo:(1) Encmio: O encmio toma o lugar da normal introduo, porque um exerccio exegtico relativo aoautor da cria. Em vez do carcter do orador, temos aqui o carcter do autor da cria o orador que props atese; (2) Cria:A criapropriamente dita citada ou parafraseada como informao do caso a argumentar ouda tese a defender. Corresponde narrao, que normalmente termina com uma proposio; (3) Razo: Arazomostra que a afirmao feita na cria verdadeira, formando com ela um silogismo retrico. Mas, comose verifica no exemplo de Hermgenes, faz mais. Ao transitar da sequncia raiz amarga / fruto doce dacria, para a sequncia trabalho primeiro / recompensa depois, o raciocnio expressamente anuncia o temada elaborao. Pois as aces importantes so bem sucedidas em troca de trabalho rduo, e do muitoprazer; (4) Contrrio:No contrrio a lgica do princpio proposto confirmada, se este tambm verdadeiro. As aces naturais no carecem de esforo, nem do por isso prazer; mas as grandes acesproduzem o efeito contrrio; (5) Analogia: Por definio a analogia deveria ser tomada do mundo daexperincia comum: normalmente, um fenmeno tido como exemplo de um princpio universal. Como severifica na analogia do lavrador, o princpio de cuidar da terra antes de colher o fruto dificilmente negado, ea interaco de ordem natural / actividade humana significa que a analogia cumpriu a sua funo ao sugerira validade universal da tese proposta. Assim como os lavradores beneficiam do fruto do seu trabalho rduono cultivo da terra, tambm os estudantes beneficiam do tempo e esforo que investem na sua formao ecultura; (6) Exemplo:Por definio, o exemplodevia ser tomado da histria, como aqui se verifica no deDemstenes; exemplo que concorre para iluminar e inspirar a adeso verdade expressa; (7) Citao: Opropsito da citaoou testemunho de autoridadefoi mostrar que outras autoridades reconhecidas chegaram mesma concluso. Os exemplos de Hesodo e de um outro poeta mostram em Hermgenes que o trabalhorduo compensado pela divindade com os bens mais deleitosos; (8)Exortao: Regressando ao ponto departida, faz-se aqui a necessria aplicao do princpio enunciado e demonstrado, mas em tom de apelo adeso dos ouvintes.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    12/16

    12

    que retratava. Necessariamente mais narrativo do que os restantes gneros, o encmio

    contemplava as seguintes partes: promio, narrao fundada e argumentada, e eplogo. A

    narrao contemplava primeiramente tpicos de origem, genealogia e nascimento;

    descrevia depois aces e virtudes: virtudes fsicas como a sade, a fora, a beleza, e a

    estatura; virtudes materiais como a sorte, a riqueza, a poder e a glria; virtudes

    intelectuais, morais e espirituais como a educao, a sabedoria, a piedade, a justia, a

    prudncia e a filantropia. Na estrutura dos argumentos que permeiam a narrao

    sobressaem imagens contrastivas, analogias, testemunhos e exemplos; tambm o retrato

    e a descrio.

    4 A filosofia Retrica de IscratesContemporneo de Plato, Iscrates fundou tambm em Atenas uma escola,

    rejeitando nela a retrica sofistica e a dialctica platnica, por as reconhecer

    insuficientes e inaplicveis ao mundo real. Para Iscrates, a retrica a fonte inspiradora

    de todos os saberes que fecundam a cultura humana, pois se dedica ao ensino de todas

    as formas de discurso em que a mente humana se expressa. 20Para ele, como para Ccero,

    cincia poltica e retrica confundem-se e interpenetram-se.21

    Edward Schiappa, sustenta que Iscrates foi um dos primeiros filsofos da histria

    ocidental a preocupar-se com aquilo a que hoje chamamos pragmatismo; no s porque

    foi ele quem mais alimentou a tenso original entre filosofia e retrica, ou porque ao

    longo de toda a sua carreira se especializou como professor de filosofia, mas sobretudo

    pela doutrina que da sua escola emana.22

    20 WAGNER, Russell H. The Rhetorical Theory of Isocrates, in Readings and Rhetoric, Springfield, IL:Charles C. Thomas, Publisher, 1965, p. 183.21 Na opinio de Ccero, ningum pode ser orador no sentido pleno da palavra sem antes alcanar oconhecimento de tudo o que importante e de todas as artes liberais (C CERO,De oratore, 1.4.16 e 1.6.19-20). Tanto noBrutuscomo noDe oratore, Ccero coloca a oratria acima do direito e da filosofia e inclui asvirtudes de ambas (Brutus40.150; 41.151;De oratore3.35.143).22SCHIAPPA, Edward. The Beginnings of Rhetorical Theory in Classical Greece, New Haven & London:Yale University Press, 1999, Isocrates Philosophia, pp. 162-184. Retrico segundo uns, e educador naencruzilhada entre a retrica e a filosofia segundo outros, por bem poucos ele considerado um verdadeirofilsofo. Curiosamente, Iscrates no usa uma vez sequer a palavra retrica, e sempre apresenta a doutrinaem que assenta o seu ensino como filosofia do discurso (thVn touV" lovgou" filosofivan). O termo que lhe mais caro logos, palavra extraordinariamente rica que tanto significa palavra, mensagem e discurso, comosignifica pensamento, razo, saber e entendimento. Curiosamente tambm, hoje corrente o desencanto coma imagem tradicional da filosofia entendida como um modo transcendente de inquirio ou um tribunal darazo sobre questes de Verdade, Bondade e Beleza sobretudo no ambiente do pragmatismo americano.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    13/16

    13

    Iscrates define a sua escola como escola superior de filosofia, mas descreve a sua

    filosofia como o estudo do discurso poltico; um discurso mais dirigido para a

    implementao da justia, do carcter e da s conduta do que para a proficincia

    oratria. Fazendo distino entre excelncia moral e tcnica, ele insiste no culto da

    virtude moral como base em que assenta toda a educao do orador bem-sucedido. A

    formao filosfica que a sua escola oferecia era uma autntica logn paideia; expresso

    que os seus intrpretes traduzem por educao, ensino de retrica, ensino de eloquncia

    com toda a densidade de uma autntica retrica filosfica. No seuAntidosis, por exemplo,

    Iscrates define e descreve logn paideia como um programa de formao integral que

    tem em vista a salvao de si mesmo e a dos outros; um sistema de aprendizagem que

    habilita o aluno a falar e a pensar bem, a desenvolver as suas faculdades morais e

    intelectuais, a edificar a sua prpria alma. semelhana de Aristteles na sua tica a

    Nicmaco23, Iscrates sustenta que, tanto a excelncia intelectual, como a excelncia

    moral se plasmam, cultivam e aperfeioam pelo ensino e aprendizagem. A sua viso

    filosfica da educao retrica pode resumir-se no seguinte objectivo: proporcionar

    formao para a alma como a ginstica a proporciona para o corpo; isto , produzir

    lderes de elevado valor moral que proporcionem sbio conselho em todas as matrias de

    importncia cvica. Para ele, a filosofia no est acima nem ao lado da actividade cvica. parte integrante dela. Pois se visa, partida, cultivar a alma do indivduo, em ltima

    instncia a alma da prpria cidade que est em causa. Como exorta no discurso a

    Demonico, d especial ateno a tudo o que respeita tua vida, mas acima de tudo cultiva

    a tua prpria sabedoria prtica (phronesis)... Esfora-te no corpo amando o trabalho

    rduo, e na alma amando a sabedoria (philosophos)24. A expresso elaborada e sublime do

    discurso oratrio era algo que vinha por acrscimo, pois era em simultneo sujeita a

    critrios de contedo, propsito e estilo, estando este ltimo sempre ao servio docontedo e seu propsito moral. A riqueza, diversidade e harmonia das formas literrias,

    embora importantes, apenas valiam pelo efeito de eficcia que provocavam na gesto

    lgica e psicolgica dos argumentos.

    Iscrates no parece ver no ensino de Plato uma filosofia, por esse ensino no

    produzir benefcios imediatos ao nvel da palavra (legein) e da aco (prattein), e se no

    23ARISTTELES,tica a Nicmaco, 1103a14-18.24ISCRATES,A Demonico, 40.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    14/16

    14

    centrar no culto da sabedoria prtica25. Prefere chamar-lhe exerccio de preparao

    mental para a filosofia26. Pois, segundo ele, a filosofia verdadeiramente digna desse

    nome a que emana do paradigma de educao que sempre cultivou e defendeu: uma

    filosofia prtica que estuda o modo de fazer as coisas, e o modo como essas coisas

    contribuem para formar carcter, resultando por efeito na formao de bons cidados.27

    Embora seguindo caminhos diferentes, Plato e Iscrates usaram o mesmo termo

    philosophia e decididamente tentaram colar a ele a sua paideia, ou modelo de educao.

    Foi, porm, Iscrates quem educou a Grcia antiga do sculo IV a.C., e quem mais ajudou

    a construir o modelo de educao superior que mais longamente vingou no mundo

    ocidental.

    A viso isocrtica da filosofia tem, de facto, muitas afinidades com o pragmatismo

    filosfico contemporneo. Schiappa assinala trs temas do ensino isocrtico hoje

    tambm presentes no pragmatismo: primeiro, a sua considerao do valor de uma

    opinio informada (doxa) e de dvidas sobre a certeza (episteme); segundo, a sua

    convico de que a pedagogia deve ser moral e ter em vista a participao eficaz dos

    alunos na actividade civil; e, terceiro, a sua preferncia geral pela filosofia prtica sobre a

    especulativa.28 Como convictamente Toulmin assevera, os filsofos contemporneos

    esto cada vez mais envolvidos em debates pblicos sobre polticas de ambiente eglobalizao, tica mdica, prtica judicial, poltica nuclear, etc., e o facto que esses

    debates j no so matria de uma mera filosofia aplicada. Eles encarnam a prpria

    filosofia.29 A misso filosfica, pedaggica e poltica que Iscrates cumpriu na vida

    merece ainda hoje ser reavaliada e pensada. O seu ideal pan-helnico era educar todos os

    gregos na partilha de alvos e valores comuns, contribuindo assim, no apenas para a

    formao de pessoas cultas, mas acima de tudo para uma cultura poltica de cidadania.

    A retrica, como teoria da educao, um saber que se inspira em mltiplossaberes e se pe ao servio de todos os saberes. um saber interdisciplinar no sentido

    pleno da palavra, na medida em que se afirmou como arte de pensar e arte de comunicar

    o pensamento, arte de ver, ouvir e ler e arte de comunicar o que se v, ouve e l.

    25ISCRATES,Antidosis, 271.26ISCRATES,Antidosis, 266.27NEEL, Jasper Plato, Derrida, and Writing, Carbondalle: Southern Illinois University, 1988, p. 211.28SCHIAPPA, Edward. Op. Cit., p. 181.29Ibid., p. 182.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    15/16

    15

    Nascida como arte da comunicao persuasiva, expressiva e eficaz, a retrica

    depressa se transformou em cincia da compreenso e da interpretao. Na retrica ns

    encontramos o saber como teoria, o saber como arte, e o saber como cincia; um saber

    terico e um saber tcnico, um saber artstico e um saber cientfico. No trnsito da antiga

    para nova retrica, ela naturalmente se transformou de arte da comunicao persuasiva

    em cincia hermenutica da interpretao.

    Como saber interdisciplinar e transdisciplinar, a retrica est presente no direito,

    na filosofia, na oratria, na dialctica, na literatura, na hermenutica, na crtica literria,

    na teologia e na cincia. Como na antiguidade ela se nutria das sete artes do saber

    encclico, tambm hoje se pe ao servio dos demais saberes. E com o mesmo objectivo:

    dar um primeiro impulso para a formao do homem total.

    Ao ocupar-se do que poltico, social e pragmtico, a retrica reconhece e afirma

    o benefcio de uma educao interdisciplinar que tem por objecto formar hbeis

    estadistas e oradores capazes de servir a grande Hlade do nosso tempo e seus fins

    comuns.

    No h garantias morais neste sculo. O crime e a decadncia parecem ameaar

    abalar cada dia mais as estruturas morais e espirituais da nossa cultura. E sem garantias,

    ns estamos mergulhados num estado de kairos, em que a tica se torna situacional e averdade depende da perspectiva de cada um em seus mltiplos contextos. Da a

    necessidade de investirmos cada vez mais numa frmula de educao que alargue at ao

    limite as fronteiras do nosso contexto comum de cidadania como pedra de toque da

    nossa prpria identidade cultural e civilizacional. Num tempo em que tanto se relativiza

    e politiza a verdade, ainda mais se nos impe uma teoria e um sistema de educao que

    em simultneo invistam na formao pela palavra e pela aco, na construo do

    carcter e da vida, na conscincia isocrtica de que s pessoas de bem podem ser bonscidados e bons oradores, e de que o discurso verdadeiro, legal e justo a imagem

    exterior de uma alma intrinsecamente boa e fiel.30Pois bem, esse o paradigma cairtico

    de formao para a cidadania que ns encontramos na paideia retrica e filosfica de

    Iscrates; um ideal que resulta da colaborao interactiva da filosofia e da retrica para a

    concretizao do grande sonho pan-helnico de educar todos os gregos nos princpios e

    30MASSEY,Lance. On the Origin of Citizenship in Education: Isocrates, Rhetoric, and Kairos, Journal ofPublic Affairs, Southern Missouri State University: http://cicero.smsu.edu/journal/articles97/massey.html.

  • 7/25/2019 ALEXANDRE JUNIOR_A Retorica_um Saber Interdisciplinar

    16/16

    16

    valores que do sentido vida, formando no s pessoas educadas, mas tambm e

    sobretudo cultos cidados da ptria e do mundo; numa palavra: uma retrica epistmica

    e filosfica, mas impregnada de filosofia prtica.

    As figuras pblicas, o cidado comum e os profissionais do presente sculo devem

    cultivar uma retrica de cidadania, de modo a se adaptarem a um mundo em constante

    mudana, a uma diversidade cada vez maior de auditrios em permanente dilogo com a

    escola, a academia, os meios de comunicao, a sade, a poltica, a jurisprudncia, a

    tecnologia e as cincias; uma retrica de tal modo integrada e globalizada que, nas

    palavras de Aristteles, nos ajude a compreender a importncia de discernir os meios de

    argumentao e persuaso disponveis em cada situao concreta da vida, e que, nas

    palavras de Iscrates, nos ensine a lidar sabiamente com as circunstncias do dia-a-dia na

    aplicao bem-sucedida dos princpios e valores que enformam a nossa vida. O duplo

    valor da retrica como arte e cincia, como arte infinitamente flexvel e parte de um

    corpus distinto de conhecimento, como um saber, um modo de saber e um modo de

    comunicar o saber, faz dela tambm um instrumento mediante o qual continuamente

    podemos inventar, reinventar e solidificar a nossa prpria educao.31

    31 Cf. CHERWITZ, Richard A. and Sharan L. DANIEL. Rhetoric as Professional Development and ViceVersa,JAC: A Journal of Compositional Theory, 2003: http://www.utexas.edu/ogs/grs/director1.html.