Alfred Marshall Os Economistas Princípios de Economia Vol. I

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OS ECONOMISTAS

ALFRED MARSHALLPRINCPIOS DE ECONOMIA

TRATADO INTRODUTRIO

Natura Non Facit Saltum

VOLUME I

Introduo de Ottolmy Strauch Traduo revista de Rmulo Almeida e Ottolmy Strauch

Fundador VICTOR CIVITA (1907 - 1990)

Editora Nova Cultural Ltda. Copyright desta edio 1996, Crculo do Livro Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10 andar CEP 05424-010 - So Paulo - SP Ttulo original: Principles of Economics: An Introductory Volume Direitos exclusivos sobre a Apresentao de autoria de Ottolmy Strauch, Editora Nova Cultural Ltda. Impresso e acabamento:DONNELLEY COCHRANE GRFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISO CRCULO - FONE (55 11) 4191-4633

ISBN 85-351-0913-7

INTRODUO(Ensaio biobibliogrfico sobre Alfred Marshall) A verdade biogrfica indevassvel (Freud a Arnold Zweig)

Marshall pertence, legitimamente, linhagem dos grandes mestres fundadores da Economia Poltica Clssica inglesa Adam Smith, Ricardo, J. S. Mill , corrente de pensamento das mais fecundas que, brotando da Revoluo Industrial, expandiu-se no sculo XIX e espraiou-se at nossos dias por ramificaes e canais doutrinrios os mais diversos. Essa corrente teve trs pocas distintas: a Clssica propriamente dita, a Ricardiana e a Marshalliana ou Ricardiana-Reformada.1 Os Princpios de Economia de Marshall constituem, juntamente com A Riqueza das Naes de Adam Smith, e os Princpios de Ricardo, um dos grandes divisores de guas no desenvolvimento das idias econmicas,2 representando a transio da antiga para a moderna Economia. Na histria do pensamento econmico, Marshall tem um lugar proeminente, sendo considerado o chefe da chamada escola neoclssica de Cambridge; ttulo, alis, a que ele jamais se arrogou, embora fosse consciente de sua posio hegemnica no mundo anglo-saxnico, o que explica muito do que ele fez e do que se omitiu. Segundo a conhecida rvore Genealgica da Economia traada por Samuelson,3 Adam Smith (1723-1790), gnio tutelar da escola clssica, gerou David Ricardo (1772-1883), o pai de todos, que gerou duas1 SHOVE, G. F. The Place of Marshalls PRINCIPLES in the Development of Economic Theory. In: Economic Thought An Historical Anthology. GHERITY, James A. (ed.). New York, Random House, 1965. p. 453 (publicado originalmente no Economic Journal. LII, 1942. p. 284-329). SHOVE. Loc. cit. Introduo Anlise Econmica. 8 ed., Rio de Janeiro, Agir Editora, 1975.5

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correntes opostas: uma, ortodoxa, personificada em John Stuart Mill (1806-1876) e nos neoclssicos Lon Walras (1834-1910), William Stanley Jevons (1835-1882), e Alfred Marshall (1842-1924), a qual gerou John Maynard Keynes (1883-1946), de quem provieram, por sua vez, os neo e os ps-keynesianos dos nossos dias; outra, heterodoxa, representada por Karl Marx (1818-1883) e seus descendentes socialistas cientficos matizados de hoje. Esses dois ramos dspares, e seus rebentos de diferentes graus de legitimidade ou bastardia em relao aos seus respectivos troncos histrico-doutrinrios, constituem a teoria e a prtica da Economia contempornea. A contribuio de Marshall ao progresso da cincia econmica , sem dvida, de importncia histrica. Herdeiro da rica herana intelectual dos economistas e pensadores dos sculos XVIII e XIX, tanto da Gr-Bretanha quanto do resto do continente europeu, exmio matemtico, versado em Cincias Naturais, Filosofia, Histria e clssicos da Antiguidade greco-romana, Alfred Marshall sistematizou e quantificou o material de Adam Smith e Ricardo, complementando-o e tornando seus princpios e conceitos operacionais, ou seja, na linguagem tecnolgica de hoje, reciclou-os, tornando-os computveis. Inovando ou simplesmente sistematizando em matria doutrinria e de metodologia da anlise econmica, procurou despojar a Economia Poltica ortodoxa de seu pretenso dogmatismo, universalidade e intemporalidade, submetendo seus postulados a um rigoroso tratamento cientfico, especialmente diagramtico e matemtico, sendo considerado, a justo ttulo, um dos precursores, com Cournot e Walras, do que hoje chamamos de Econometria. Marshall contribuiu, tambm, e sobretudo, para reabilitar e humanizar a Economia Poltica que, no curso da Revoluo Industrial, criara um mtico homo economicus, lobo de seu semelhante, movido exclusivamente pelo interesse pessoal na luta pela sobrevivncia do mais forte, num darwinismo social impiedoso e incessante. Para Marshall, a Economia com suas anlises e leis no era um corpo de dogmas imutveis e universais, e de verdade concreta, mas uma mquina para a descoberta da verdade concreta. Keynes, seu discpulo dileto em Cambridge e seu mais eminente bigrafo, refere-se sua descoberta de um completo sistema copernicano no qual todos os elementos do universo econmico so mantidos em seus lugares por mtuo contrapeso e interao.4 O prprio Marshall, alis, j exprimia essa concepo das posies mutuamente dependentes dos fatores econmicos, mesmo antes da publicao dos Princpios, comparando o uni4 "Alfred Marshall, 1842-1924". In: The Economic Journal. XXXIV, n 135, setembro de 1924, p. 350. Republicado em Memorials of Alfred Marshall, ed. por A. C. Pigou, 1925, e nos Essay in Biography, 1933, do prprio Keynes. Nesse estudo, a mais completa biografia de Marshall, considerado por Schumpeter uma das notveis obras-primas da literatura biogrfica, baseia-se, em grande parte, o presente ensaio biobibliogrfico.6

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verso econmico ao sistema solar. Assim como o movimento de todo corpo no sistema solar afeta e afetado pelo movimento de todo outro, assim com os elementos do problema da Economia Poltica.5 Ainda na opinio de Keynes, Marshall foi, como cientista, dentro de seu campo prprio, o maior do mundo por cem anos.6 Summa Economica e compndio bsico para geraes sucessivas de estudantes, professores e economistas profissionais, seus Princpios seriam, segundo alguns, a nica obra a conter toda a cincia econmica de seu tempo. Est tudo em Marshall era voz corrente nos crculos acadmicos dos pases de lngua inglesa e de grande parte da Europa continental, onde sua influncia predominou, inquestionvel, at recentemente, tendo atingido seu znite no primeiro quartel deste sculo, a chamada poca marshalliana por excelncia. Sua sombra gigantesca projeta-se at hoje sobre ns, reconheceu Schumpeter,7 um dos seus mais lcidos e severos crticos. E essa sombra s tende a crescer na medida em que, na crista da onda neoconservadora, a ortodoxia poltica refluir ortodoxia econmica. Ainda que sob essa inspirao a releitura dos clssicos da Economia Poltica, em busca das fontes originais do fundamentalismo econmico, ser salutar e, para alguns, surpreendente. Ver-se-, por exemplo, que Adam Smith tinha opinies heterodoxas como a dos maus efeitos dos altos lucros sobre a elevao dos preos, que o lucro um deduo do produto do trabalho, que o trabalhador o nico produtor de valor e o trabalho, portanto, a medida real do valor de troca de todas as mercadorias. Ricardo, por sua vez, fazia do trabalho o estalo e a fonte criadora de riqueza, alm de haver apontado, pela primeira vez, para a expropriao da mais-valia da mo-de-obra. Stuart Mill foi mais alm, pois era partidrio da interveno do Estado na economia para coibir os abusos do laissez-faire no mercado e acabou proclamando-se socialista. Quanto ao nosso Marshall, sua obra, sob o rigor da densa e sistemtica anlise econmica, est impregnada da questo social, interrogando-se constantemente sobre se realmente haveria necessidade de existirem pobres para que houvessem ricos, considerando a suprema finalidade da economia Poltica elucidar essa questo crucial. E at mesmo Marx, no extremo oposto do espectro doutrinrio, relidos seus prprios escritos em confronto com a vulgata de seus supostos intrpretes, adeptos ou adversrios, cuja interpretao, como a dos telogos, passa por dogma exclusivo, acaba-se concordando com o prprio em que, afinal, ele no era marxista...5 Artigo de Marshall de crtica Political Economy de Jevons, publicado em The Academy em 1872, um dos dois nicos artigos de crtica que Marshall jamais publicou; o outro versa sobre Mathematical Psychics de Edgeworth em 1881, apud Keynes, ibid. Loc. cit. p. 321. "Alfred Marshalls Principles: A Semi-Centennial Appraisal". In: Ten Great Economists from Marx to Keynes. Nova York, Oxford University Press, 1951. p. 91.7

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Um eminente vitoriano A biografia de Marshall, isto , a cronologia de sua vida, nada mais que a moldura de sua obra como, via de regra, s acontece com os grandes pensadores e artistas, com as raras e histricas excees de todos conhecidas. No h em sua vida acontecimentos que tenham significado prprio, seno em funo de sua obra. De resto, em si a verdade biogrfica indevassvel (como escreveu Freud a Arnold Zweig). Sua vida transcorreu, mansa e tranqila, ao longo de duas vertentes pacato professor e economista inovador , a exemplo de Adam Smith; vertentes, alis, convergentes, j que ele tinha por hbito comunicar a seus colegas e discpulos, muito antes de public-las, suas criaes no campo da economia, e, por outro lado, como economista sempre teve a preocupao didtica de explicar e ensinar. Alfred Marshall nasceu em 26 de julho de 1842 em Clapham um bairro ento aprazvel de Londres filho de William Marshall e Rebeca Oliver, de classe mdia. Seus ascendentes pelo lado paterno eram principalmente clrigos, alguns dos quais tiveram certa notoriedade, tanto pela peculiaridade de suas convices religiosas como, no caso de um deles notadamente, pela descomunal fora fsica. Seu pai no seguiu a tradio familiar, mas quis que o filho o fizesse, o que ele acabou no fazendo, como comum acontecer. Esse trao anglicano, porm, severo, asctico e antifeminista, especialmente pronunciado no sr. William, marcou a formao do jovem Alfred, orientada, a princpio, para a ordenao clerical. Mas no s ele no se ordenou, como nem mesmo, por fim, manteve-se crente; e a vida reservou-lhe ainda a irnica surpresa de lev-lo a casar-se com uma das primeiras mulheres da Inglaterra a obter grau universitrio a que sempre se ops por questo de princpio e que, ademais, foi professora de Economia e sua ativa colaboradora intelectual. Seu pai, carter resoluto e dominador mas no cruel, em que a rispidez era temperada pela afeio familiar, era um evangelista e antifeminista militante, autor j na velhice (morreu com 92 anos) de um panfleto significativamente intitulado Os Direitos do Homem e os Deveres da Mulher. Ocupando a posio de certo relevo de Caixa do Banco da Inglaterra, proporcionou ao filho uma infncia de relativo conforto mas exerceu desptica influncia nos primeiros estgios de sua educao, financiada, no entanto, at o fim por bolsas, auxlio de parentes e aulas particulares. Obrigava Alfred a estudar, at altas horas da noite, hebraico (ento preparatrio para a carreira eclesistica), que ele detestava e proibia-o, terminantemente, de praticar suas recreaes prediletas a Matemtica, e o xadrez, consideradas frivolidades ociosas; proibies essas que, em relao primeira, o jovem desobedecia sistemtica e secretamente mas que, quanto segunda, ele respeitou a vida inteira, exceto quanto leitura, j adulto, de pro8

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blemas de xadrez. Esse controle e represso paternal teve um efeito marcante e duradouro sobre Marshall. Sua pronunciada tendncia para a hipocondria, sua relutncia em comprometer-se inequivocamente em publicar sem reservas e restries maciamente documentadas, seu temor indolncia e a ociosidade, sua rejeio fundamental de atividades de puro prazer" (tal como a Matemtica) tm suas razes nas experincias de sua infncia e juventude" a observao de Corry.8 A que Keynes acrescenta: A hereditariedade poderosa e Marshall no escapou de todo da influncia do molde paterno. Um senso enraizado de predomnio em relao ao gnero feminino lutava nele com uma profunda afeio e admirao que sentia por sua prpria mulher, e com um meio que o lanou em contato estreito com a educao e a liberao das mulheres.9 Bem, isso o quanto basta sobre os antecedentes familiares de Marshall e a influncia sobre a sua personalidade. Aos nove anos de idade, fez seus estudos de letras e lnguas clssicas num reputado estabelecimento de ensino (Merchant Taylors School), graas a uma bolsa que seu pai, percebendo sua capacidade, obteve de um diretor do Banco da Inglaterra. Pela distino com que fez esse curso, que abrangia a Matemtica at o nvel de clculo diferencial, teria Alfred direito a uma bolsa de estudos clssicos na Universidade de Oxford, requisito bsico para a sua ordenao na Igreja Anglicana, a que, como foi dito, estava destinado pelo pai. Ele, porm, rejeitou o desgnio paterno, rebelando-se no propriamente contra a teologia ortodoxa mas contra o prosseguimento de estudos clssicos, e foi fazer um curso superior de Matemtica no St. Johns College da Universidade de Cambridge, com dinheiro emprestado por um tio, emprstimo que, uma vez formado, pagou em um ou dois anos, dando aulas particulares de Matemtica. Alis, esse instrumental cientfico foi a vida inteira seu violon dIngres, pois, se conseguiu consagrar-se como emrito economista, foi sempre, no entanto, basicamente um excelente e exemplar matemtico. Menino ainda j lia livros da matria, escondido do pai, que felizmente, dizia Marshall, nada entendia do assunto. Ele tinha um gnio para a Matemtica, reconheceu um dos seus primeiros professores, na Merchant School. Em Cambridge foi um dos mais brilhantes estudantes da matria de sua gerao. Ele prprio recorda o jovem terico que em 1869, com 27 anos, portanto, costumava pensar em matemtica mais facilmente do que em ingls. A Matemtica foi a sua vocao bsica, seu primeiro ganha-po, e j quando economista seu principal instrumento analtico e metodolgico, alm de ter sido seu caminho de acesso Economia. Foi graas8 9 CORRY, Bernard. Marshall, Alfred. In: International Encyclopedia of the Social Sciences. SILLS, David S. (ed.) The Macmillan Company The Free Press, 1968. v. 10, p. 25. Ibid, p. 312.9

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a ela que conseguiu transformar o material de Adam Smith, David Ricardo e Stuart Mill, em uma mquina moderna de pesquisa. Os alicerces e o arcabouo semi-oculto de sua obra so matemticos. Sua dvida para com a Matemtica, seu grande aliado impessoal, imensa e, segundo alguns, jamais resgatada, pois que nunca lhe foi suficientemente reconhecido e grato. A verdade que sua atitude em face da Matemtica, ou melhor, do seu emprego na Economia, foi ambivalente, relegando-a, aparentemente, a um plano secundrio, confinando, em suas obras, os diagramas a notas de rodap e as equaes a apndices. Mas sua concepo dos usos e abusos da Matemtica em Economia, o que hoje se chama Econometria, ser melhor explanada quando for abordada a sua obra como economista. Retomemos, enquanto isso, o curso de sua vida. Uma vez concludo, com distino, o curso de Matemtica em 1865, passou imediatamente a dar aulas dessa cincia como professor titular no Clifton College, por um breve perodo, e, em seguida, como preparador (ou explicador) para os cursos regulares de Matemtica em Cambridge, ao mesmo tempo que estudava Filosofia, especialmente Kant e Hegel. A, principalmente sob a influncia de alguns professores universitrios que se preocupavam com os problemas sociais provocados pela Revoluo Industrial e que se reuniam informalmente numa Sociedade de Debates (Grote Club), foi se afastando gradualmente da Metafsica, da tica e da Psicologia, que estavam ento nas fronteiras das Cincias Sociais. Abandonou definitivamente a religio, tornando-se agnstico, embora perdurasse, por toda a vida, o substrato anglicano de sua formao. Foi por essa poca que se processou a laicizao do ensino universitrio, j que s na segunda metade do sculo XIX que foram abolidos nas universidades inglesas, Cambridge inclusive, os exames de Teologia para todos os alunos, exceto os dos cursos dessa matria. Marshall passou ento a preocupar-se com a questo social, sendo levado percepo de que a pobreza estava na raiz de muitos males sociais, o que acabou conduzindo-o ao estudo da Economia. Matria para a qual, como muitos dos grandes economistas contemporneos, nunca fez curso universitrio regular e especializado, j que na poca a matria no existia seno como complemento de outros cursos, tal qual como no Brasil de algumas dcadas atrs. Segundo a sua convico, que manteve inalterada pela vida inteira, o problema da pobreza era no somente fundamental para a Economia como a sua prpria razo de ser. Como ele prprio viria mais tarde a dizer nos Princpios: o estudo das causas da pobreza o estudo das causas da degradao de uma grande parte da Humanidade. Tal como seu contemporneo Karl Marx, Marshall passou da Filosofia para a Economia, s que no seu caso foi pela via matemtica. Descrevendo sua passagem para a Economia, recordava ele j no final da vida: Da Metafsica fui para a tica, e achei que a justificativa10

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das condies existentes da sociedade no era fcil. Um amigo, com quem discutia questes sociais, retrucou-lhe um dia: Voc no diria isso se soubesse Economia. Sua iniciao no campo econmico processou-se, segundo ele prprio, da seguinte forma: Minha familiarizao com a Economia comeou com a leitura de Mill, enquanto ainda estava ganhando minha vida ensinando Matemtica em Cambridge, e traduzindo suas concepes em equaes diferenciais at onde pudesse ir; e, em regra, rejeitando aquelas que a isso no se prestassem... Isso foi, principalmente, em 1867/68".10 Enquanto estava dando aulas particulares de Matemtica, traduzi o quanto possvel os raciocnios de Ricardo para a Matemtica e empenhei-me em torn-los mais gerais".11 Em 1868, ainda com resqucios da fase metafsica, levado pelo desejo de poder ler Kant no original, foi aperfeioar seu conhecimento da lngua na Alemanha, onde entrou em contato com economistas alemes, especialmente Roscher. Nessa mesma data cessou o professorado de Matemtica e passou a exercer a livre-docncia de uma nova cadeira no currculo de Cincias Morais, criada em St. Johns especialmente para que ele pudesse dar aulas de Economia Poltica e Lgica. possvel ver que espcie de jovem era ele nessa poca; lembra algum que o observou de perto brilhante matemtico, um jovem filsofo carregando uma carga indigesta de Metafsica alem, Utilitarismo e Darwinismo; um humanitarista com sentimentos religiosos mas sem credo, ansioso por aliviar o fardo da Humanidade mas moderado pelas barreiras reveladas pela Economia Poltica ricardiana v-se o substrato de um homem que se tornou para seus alunos sbio e pastor tanto quanto um cientista, cujo ponto de vista cientfico e objetivo era dar Economia uma renovada postura pblica, cuja simpatia para com a reforma social levava-o a querer derrotar os que a ela se opunham, cujas altas aptides deveriam ser zelosamente devotadas sua amante intelectual como as de um artista sua musa.12 Durante os nove anos seguintes Marshall continuou em Cambridge lecionando Economia Poltica e Lgica e elaborando as bases de seu pensamento econmico. Costumava passar as frias nos Alpes suos, fortalecendo o corpo e o esprito, hbito que conservou a vida inteira, levando uma grande caixa de livros, dentre os quais a sra. Marshall lembra Goethe, Hegel, Kant e Herbert Spencer, quando ainda em sua fase filosfica. Mais tarde, j tendo ingressado no campo da Economia, comeou a desenvolver nessas excurses suas teorias sobre Comrcio Interno e Exterior. Ele fazia suas reflexes mais profundas10 11 12 Memorials of Alfred Marshall. PIGOU, A. C. (ed.). Nova York, Kelley, 1966. p. 412. Carta a J. Bonar. In: Memorials. p. 374. HOMAN, P. T. Contemporary Economic Thought. p. 197-198. Apud GUILLEBAUD, G. W. Alfred Marshall Principles of Economics. 9 ed. (Variorum), Editorial Introduction, London, Macmillan, 1961.11

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nesses passeios solitrios nos Alpes, e perodos de Wanderjahre, como os chamava a sra. Marshall, lembrando ainda que Marshall sempre fez o seu melhor trabalho ao ar livre, mesmo quando em Cambridge. Em 1875 Marshall visitou os Estados Unidos por quatro meses com o propsito de estudar o problema do Protecionismo em um pas novo. Percorreu todo o leste e foi at San Francisco. Esteve nas Universidades de Harvard e Yale, e manteve longas conversaes com economistas acadmicos e contatos com figuras proeminentes. Voltou entusiasmado com a vitalidade industrial do pas. J ento preocupava-se em dar ao ensino da Economia Poltica maior autonomia e status, colaborando nesse sentido com os professores titulares Fawcett e Sidwig. A eles juntaram-se antigos alunos seus, tais como H. S. Foxwell e John Neville Keynes (pai do famoso economista), os quais se tornaram, mais tarde, conferencistas em Economia Poltica na Universidade. Esses esforos acabaram por serem coroados de xito, graas principalmente a Marshall, como se ver em seguida. Em 1877 casou-se com Mary Paley, sua antiga aluna de Economia Poltica e que mais tarde lecionaria a matria no colgio feminino de Newham em Cambridge. Admirvel figura humana uma das primeiras mulheres inglesas a obter grau universitrio , Mary Paley foi uma companheira exemplar para Marshall e sua ativa colaboradora intelectual. Todos os professores e alunos que freqentavam a casa dos Marshall so unnimes em elogiar suas qualidades humanas e intelectuais. Mantinha-se, no entanto, em segundo plano pelo senso de devoo e o reconhecimento da superioridade do marido, dedicando-se inteiramente quele que ela achava que tinha algo de mais importante a dizer e a escrever, e que, provavelmente, no o teria feito to bem sem a sua inteligente e ativa colaborao durante os quarenta e sete anos em que estiveram casados. Marshall, alis, no prefcio 8 edio dos Princpios reconhece expressamente que sua mulher o ajudou e aconselhou nas sucessivas edies da obra. Segundo os regulamentos universitrios ento vigentes, Marshall ao casar-se foi obrigado a abrir mo da posio que ocupava em St. Johns. Assim, deixou Cambridge e foi para Bristol como diretor do Colgio Universitrio estabelecido pela Universidade de Oxford e professor de Economia Poltica. Dava aulas noite para jovens homens de negcios, enquanto sua mulher lecionava a mesma matria, de manh, para turmas compostas principalmente de mulheres. Foi a, em 1879, que publicou seu primeiro livro, Economics of Industry, em colaborao com a sra. Marshall (e que , na verdade, mais dela do que dele), um pequeno compndio concebido como manual para uso no curso de extenso da Universidade de Oxford em Bristol. Antes, porm, mas nesse mesmo ano, Henry Sidwick publicou, com permisso de Marshall para circulao restrita, um folheto com alguns captulos, no consecutivos, de um tratado que Marshall pretendia escrever sobre a Theory12

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of Foreign Trade, with some allied problems relating to the theory of laissez-faire e que nunca foi publicado; mas suas partes mais importantes foram incorporadas aos Princpios. Esteve empenhado nesse estudo de 1869 a 1877, abandonando-o para colaborar na feitura do Economics of Industry.13 Em 1881 Marshall, por motivo de sade (clculo renal), deixou o cargo de Diretor do Colgio Universitrio em Bristol e foi recuperar-se na Itlia, onde permaneceu durante um ano e, no obstante, continuou seus trabalhos de Economia. Retornando a Bristol em 1882, onde ainda era professor de Economia Poltica, estava com a sade completamente restaurada mas passou a manifestar uma acentuada tendncia hipocondraca, considerando-se sempre beira da invalidez, embora se mantivesse firme e intelectualmente ativo at os ltimos anos de sua vida. Graas amizade com o dr. Jowett, Diretor de Balliol, da Universidade de Oxford, muito interessado em Economia e que costumava discutir assuntos econmicos quando se hospedava na casa de Marshall em Bristol, tornou-se, em 1883, livre-docente de Economia Poltica em Balliol, dando aulas para candidatos ao Servio Civil da ndia. Sua carreira em Oxford foi breve e brilhante atraa alunos dos mais talentosos e suas prelees pblicas eram assistidas por maiores e mais entusisticas classes do que em qualquer outro perodo de sua vida. Tomava parte em debates pblicos e adquiriu crescente prestgio nos crculos universitrios. Em janeiro de 1885, no entanto, voltou para Cambridge como professor titular de Economia Poltica, em substituio a Henry Fawcett, que morrera no ano anterior, ctedra que at hoje est ligada indissoluvelmente ao seu nome e que ocupou por vinte e trs anos at aposentar-se em 1908, para dedicar-se exclusivamente sua obra de economista. Tinha ento 66 anos e viveu ainda mais dezesseis anos em Balliol Croft, vivenda que construiu em Medingley Road (endereo que fecha o Prefcio 8 e definitiva edio dos seus Princpios) e onde morreu em 13 de julho de 1924, pouco antes de completar 82 anos de idade. A casa, com a biblioteca, foi legada Universidade de Cambridge, onde se encontram seus manuscritos e obras inditas, ainda uma vez mais graas sua viva, que preservou a sua memria de todos os modos, fornecendo, inclusive, a Keynes notas e apontamentos de Marshall e dela prpria que lhe permitiram escrever a obra-prima que a biografia de seu antigo mestre e amigo, um monumento perene ao qual ele tanto devia. Marshall, tal como Samuelson hoje,14 gostava tanto de estudar13 Alguns fragmentos do manuscrito original esto guardados na Biblioteca Marshall em Cambridge. O folheto foi reimpresso em fac-smile pela London School of Economics em 1930 como o n 1 de sua srie Reprints of Scarce Tracts in Economics and Politics. Newsweek. 24-12-80.13

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Economia quanto de ensin-la. Professor a vida inteira, mesmo quando abandonou formalmente o ensino ao aposentar-se da ctedra, reflete a preocupao didtica em suas obras, as quais pretendia que fossem entendidas pelo maior nmero possvel de leitores, especialmente por essa figura mtica do homem comum de negcios. Da a linguagem clara e concisa, a preciso dos conceitos, a factualidade da exemplificao, extrada, tanto quanto possvel, da vida corrente e evitando, sobretudo, o uso abusivo da Matemtica no curso da exposio. Tanto como professor universitrio quanto como economista, Marshall foi uma figura singular. Primeiro, pela imensa e hegemnica influncia que exerceu sobre geraes de economistas, alguns seus antigos discpulos, que adquiriram renome universal, dentre os quais, para s citar dois dos mais proeminentes, Pigou, que o substituiu em Cambridge, e Keynes que, partindo de algumas idias bsicas de seu velho mestre, revolucionou a teoria e a poltica econmicas na primeira metade de nosso sculo. Em segundo lugar, pela prpria singularidade de seus mtodos pedaggicos. Como no gostasse de lecionar para turmas grandes e possivelmente desinteressadas, procurava diminuir o nmero de alunos que acorriam ao seu curso, reduzindo-o aos realmente interessados na matria, advertindo logo nas primeiras aulas que, se viessem apenas com a esperana de se prepararem para passar nos exames, desistissem prontamente porque ali no era o lugar para isso. Na verdade, Marshall no transmitia propriamente informaes, achando que isso era funo dos livros, mas obrigava os alunos a refletir e concluir, despertando-lhes, alm do gosto pela matria, a especulao e a compreenso dos problemas. Nada de aulas magistrais, pronunciamentos dogmticos do tipo magister dixit mas, antes, provocando o esprito de anlise e crtica, a desconfiana das causas aparentes e, sobretudo, melodramticas, quase nunca verdadeiras. Seu mtodo de ensino era algo maiutico: pela anlise e crtica alcanar a verdade, antes do que pelo processo de mera transmisso e assimilao de simples informao. Era algo semelhante ao mtodo do prof. Tobins, recente Prmio Nobel de Economia: ajudar o aluno, por meio da proposio de teses e questes, a chegar a concluses corretas por seu prprio esforo de raciocnio. Raramente levava apontamentos para as aulas e quase nunca os consultava, sendo suas prelees de certo modo assistemticas e fragmentrias, dificultando ou mesmo impossibilitando os alunos de tomarem notas e organizarem smulas. Preferia antes dissertar, ou melhor, divagar sobre temas e problemas diversos, nem sempre conexos, procurando analis-los com os alunos, demonstrando tanto a sua realidade quanto a complexidade de suas causas e efeitos. Quando causas e efeitos fazem combinaes melodramticas, os historiadores os ligam, suspeitem da conexo, dizia, conforme um dos seus discpulos, que lembra ainda: ele gostava de contrastar as causas supostas e reais dos acontecimentos, realar a significao dos fatos ocultos ou ignorados14

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a causa insuspeita, essa diminuta circunstncia, essa coincidncia negligenciada, mudou o curso da Histria. Embora no tivesse grande amor pela Histria, suas generalizaes e interpretaes histricas eram de grande originalidade e interesse, e soube que ele pensou, certa vez, em escrever um extenso tratado de Histria Econmica.15 Rigoroso nos exames e na correo dos trabalhos escolares, fazendo comentrios crticos ou elogiosos entremeados de humor, foi, no entanto, amigo paternal de seus alunos, ajudando-os na escolha de temas e na elaborao de teses, emprestando-lhes livros, recebendo-os em sua casa para discusso ou simples conversa, e pagando de seu parco bolso os estudos dos mais carentes. Deixou em todos os que lhe freqentaram as aulas uma indelvel impresso, um sentimento de admirao e amizade filial, e, sobretudo, a gratido no por lhes ter ensinado Economia mas por lhes ter incutido a viso da importncia, complexidade e unidade dos problemas econmicos, uma viso nova e fecunda de que se aproveitariam para sempre. Quando ainda professor, Marshall teve atuao destacada em trs importantes movimentos: 1) a fundao da Associao Econmica Britnica, agora Royal Economic Society; 2) a controvertida questo da Graduao Universitria de Mulheres em Cambridge, que agitou e dividiu a Universidade, controvrsia na qual Marshall, no obstante ser em princpio favorvel emancipao feminina, ops-se, igualmente por princpio, concesso de grau universitrio a mulheres, para grande decepo de seu crculo de amigos liberais e progressistas, atitude que s pode ser explicada pelo seu ancestral e entranhado preconceito machista. Tal atitude tanto mais estranhvel num homem de sua cultura e inteligncia quando ele tinha em casa lembremo-nos o exemplo de sua prpria mulher, de formao universitria e que tanto o ajudou intelectualmente, para no citar o caso de tantas outras mulheres que, na poca, se distinguiram em diversos campos de atividades, tais como as irms Bront, George Eliot, Florence Nightingale, Harriet Beecher Stowe, Mary Kingsley (antroploga e biloga que explorou a frica Ocidental), James Barry (que, disfarada de homem, formou-se em Medicina em 1812 e, incgnita, tornou-se um dos mais hbeis cirurgies do Exrcito britnico); 3) criao da Escola de Economia de Cambridge, tornando o ensino da Economia independente do currculo de outros cursos (Cincias Morais e Histria), movimento de evoluo gradual que s se completou em 1903, pelo que Marshall pode ser considerado, legitimamente, o fundador dessa Faculdade (que no deve ser confundida com a corrente doutrinria que dela derivou, a escola neoclssica de Cambridge, de que ele foi, tambm, o fundador). Vejamos agora Marshall como o eminente economista. Cabe res15 BENIANS, E. A. In: Memorials. p. 78-80.15

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saltar, inicialmente, que a importncia histrica de sua obra contrasta com a sua relativa exigidade, considerando que sua atividade intelectual, sujeita naturalmente a hiatos peridicos mas breves, comeou cedo e estendeu-se praticamente at o fim de sua vida. As razes dessa parcimnia so tanto de ordem circunstancial quanto pessoal: absoro, a princpio, nas atividades de magistrio; duas ou trs interrupes curtas por motivo de doena, sendo que o problema de sade foi uma das razes por ele alegadas, no Prefcio presente obra, para alterar seus grandes projetos intelectuais; seu flego curto como tratadista, contrariamente a Adam Smith, por exemplo, fazendo-o vacilar por muito tempo sobre a melhor maneira de abordar um assunto se monograficamente ou au grand complet, deixando algumas obras de maior flego esboadas ou apenas idealizadas ; a extrema preocupao com a exatido e perfeio dos conceitos expressos; o hbito de fazer circular oralmente entre colegas e alunos suas produes intelectuais, algumas das quais foram publicadas particular e fragmentariamente em crculos restritos ou s incorporadas muitos anos mais tarde a seus escritos; a quase mrbida suscetibilidade crtica e controvrsia, o que o fazia espaar e retardar demasiadamente a publicao em forma definitiva de seus escritos tericos. A bibliografia completa dos trabalhos de Marshall16 compreende 81 itens, dos quais apenas uns poucos podem ser considerados livros, constituda a grande maioria de folhetos, artigos e depoimentos perante rgos governamentais. Os livros so os seguintes, em ordem cronolgica de publicao: 1) The Economics of Industry (1879), em colaborao com Mary P. Marshall, j mencionado anteriormente e que mais tarde Marshall retirou de circulao por motivos pessoais no muito claros, alegando que no se pode vender barato a verdade; 2) Principles of Economics (1890), que ser examinado, detalhadamente, mais adiante; 3) Elements of Economics of Industry (1892), publicado como sendo o primeiro volume de Elements of Economics (que no apareceu) e que, conforme o prprio autor, uma tentativa de adaptar o primeiro volume dos meus Princpios de Economia necessidade de principiantes. Alguns trechos foram retirados do Economics of Industry; 4) Industry and Trade: A Study of Industry Technique and Business Organization, and of Their Influences on the Conditions of Various Classes and Nations (1919) , como diz Marshall no Prefcio 8 edio dos Princpios, uma continuao desta obra e substitui o prometido II volume que nunca veio luz. uma obra notvel, comparvel sob todos os aspectos aos Princpios, tanto na forma quanto no contedo; 5) Money, Credit and Commerce (1923), consubstanciando os primeiros estudos realizados por Marshall e completados em 1875, sendo uma das duas principais16 KEYNES, J. M. Bibliographical List on the Writings of Alfred Marshall. In: The Economics Journal. v. XXXIV, n 136, dezembro de 1924. p. 627-637. Republicada no Memorials.16

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fontes de referncia sobre a teoria monetria de Marshall; 6) Official Papers (1926), obra pstuma contendo trabalhos realizados entre 1886 e 1903 e apresentados a rgos governamentais; a mais importante das duas fontes de informao sobre as idias monetrias de Marshall. Cabe ainda mencionar Memorials of Alfred Marshall (1925), coletnea de ensaios sobre Marshall editada por Pigou, alm da seleo de alguns de seus escritos avulsos mais importantes, republicando, ainda, a bibliografia elaborada por Keynes. Ao examinar a obra de Alfred Marshall deve-se ter em vista, naturalmente, as influncias predominantes na formao de seu pensamento scio-econmico. Assim, sua condio familiar de pequenoburgus e o molde tico-religioso que essa condio lhe imps desde cedo so fatores no negligenciveis na apreciao de suas concepes. H que considerar, igualmente, o contexto histrico-cultural de sua poca, a longa era vitoriana, pois, como bem observou Gillebaud,17 o principal perodo formativo de sua vida coincidia com o apogeu da Inglaterra Vitoriana, e sob muitos aspectos caractersticos ele era um eminente vitoriano" (segundo a expresso consagrada pelo conhecido livro de Lytton Strachey). Quando ele nasceu, lembra o citado autor, Ricardo tinha morrido havia apenas dezenove anos e Malthus havia somente oito; enquanto a primeira edio dos Princpios de Economia Poltica (de Mill) fora publicada em 1848, quando Marshall tinha seis anos de idade. Jevons era quase sete anos mais velho do que ele. Marshall foi, por conseguinte, contemporneo, ou quase contemporneo, dos mais famosos economistas do sculo XIX. Mas ele no foi um eminente vitoriano apenas pelas circunstncias da contemporaneidade com figuras clebres da poca, mas tambm, e principalmente, porque sua mentalidade foi fortemente marcada pela ideologia predominante durante o longo reinado da Rainha Vitria (1837-1901). Essa influncia tem muito a ver com a sua viso tico-social, como tambm, naturalmente, com a sua prpria concepo econmica. At certos modismos vitorianos, como por exemplo a tentativa pueril de restaurar as prticas e o cdigo de honra da Cavalaria medieval (mera justificativa para a ociosidade da aristocracia, cuja nica ocupao era caar perdizes e raposas) e a idealizao da civilizao helnica, encontraram nele certa simpatia. Diante do contedo tico-social de sua obra, que examinaremos oportunamente, algum disse que nela Calvino, a Igreja Anglicana e o esprito vitoriano juntam-se numa simetria simbitica. Marshall veio da Filosofia para a Economia por preocupaes tico-sociais, nico paralelo possvel entre a sua biografia intelectual e a do seu antpoda, Karl Marx. Comeou a estudar seriamente Economia em 1867, aos 25 anos portanto e, como informa Keynes, suas17 Loc. cit.17

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doutrinas caractersticas estavam bastante desenvolvidas em 1875, sendo que a partir de 1883 j assumiam sua forma final. Lembra ainda Keynes que a Political Economy de Mill apareceu em 1848, a 7 edio (a ltima revista pelo autor) de 1871 e Mill morreu em 1873. Das Kapital de Marx apareceu em 1868; a Theory of Political Economy de Jevons, em 1871; Grundstze der Volkswirtschaftslehre (Fundamentos da Economia Poltica) de Menger tambm em 1871; e os Leading Principles de Cairnes em 1874 assim, concluiu, quando Marshall comeou, Mill e Ricardo (e tambm Adam Smith, por que no?) ainda reinavam supremos e indisputados. Cronologicamente, dentre as influncias de personalidades marcantes em sua vida, a primeira seria Kant, o qual, na fase metafsica do desenvolvimento intelectual de Marshall, foi seu guia e o nico homem que jamais adorei, at que os problemas sociais vieram imperceptivelmente frente diante da questo crucial: as oportunidades da vida real devero ser reservadas a uns poucos? A essa altura a influncia dominante a do prof. Henry Sidwick e seu crculo intelectual em Cambridge, atravs do qual Marshall foi levado questo social. Sobre o papel desempenhado por Sidwick, o mais eminente de seus contemporneos, lembra Marshall: Ainda que eu no fosse seu aluno de fato, eu o fui substancialmente em Cincia Moral. Fui modelado por ele. Foi, por assim dizer, meu pai e me espirituais: pois ia a ele quando perplexo e para ser confortado quando perturbado; e nunca voltei vazio. O convvio com ele me ajudou a viver. H, tambm, claro, Mill, a mais poderosa influncia sobre a intelectualidade jovem da poca (mais, alis, por seus escritos filosficos do que pelos econmicos) e cujo Political Economy foi, como vimos, seu primeiro livro de leitura econmica e que muito o impressionou na poca. Mais tarde, j amadurecido, Marshall no tinha Mill em muito alta conta como economista, considerando clssicos Petty, Hermann von Thnen e Jevons, mas no Stuart Mill. Marx, alis, num dos seus costumeiros comentrios acerbos, disse sobre Mill que sua proeminncia devida em grande parte planura do terreno na poca. Reconhece, por outro lado, que deve muito a Hegel (e quem no lhe devedor?) e sua Filosofia da Histria mas, ao que parece, no apreendeu dele, alm de um certo historicismo, o essencial, isto , a dialtica, de que no h vestgio em sua obra. Ainda no Prefcio 1 edio dos Princpios, diz-se credor de Herbert Spencer, Cournot e Von Thnen por diversas contribuies mencionadas na obra e que examinaremos oportunamente. Segundo notas autobiogrficas Marshall sentiu-se atrado, em certa poca, pelas novas concepes de Roscher (representante da escola histrica alem) e outros economistas alemes, e at mesmo por Marx, Lassale e outros socialistas, com cujos ideais simpatizava em princpio mas no reconhecia validade em suas anlises e concluses concernentes engenharia social.18

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Cabe ainda, neste quadro sumrio e esquemtico das razes do pensamento de Marshall, mencionar duas correntes de idias predominantes na poca. Uma o Utilitarismo de Bentham (1748-1832), doutrina que impregnou a sua concepo econmico-social, como tambm a de Mill em certa fase, tendo desempenhado importante papel na vida poltica da Inglaterra e podendo mesmo ser considerada uma das bases da ideologia burguesa do sculo XIX. A outra influncia dominante foi a das idias evolucionistas de Darwin (A Origem das Espcies. 1859) e da um certo darwinismo social, adquirido atravs de Spencer, em que a competio (ou concorrncia) seria a fora motriz do progresso econmico pela seleo dos mais aptos. No seu perfil intelectual, convm lembrar, outrossim, a sua formao universitria, que no consistia exclusivamente da cincia matemtica, mas tambm do estudo das letras e lnguas clssicas grego e latim como era, de resto, tradicional na formao universitria inglesa e europia de modo geral, e que at certa poca era praticamente o nico requisito intelectual exigido para o recrutamento da alta administrao britnica. Por fim, cabe ressaltar, em sua formao de economista, a sua familiaridade (de que se vem exemplos nos Princpios) com os principais ramos das indstrias, as prticas comerciais e a vida das classes operrias, tendo tido inclusive contatos diretos com lderes sindicais e mesmo com famlias de operrios. O rastreamento da formao e evoluo do pensamento econmico de Marshall e principalmente de suas contribuies especficas nos campos da doutrina e da metodologia da anlise econmica dificultado pelo fato de suas idias terem sido formuladas e expostas em aulas, conferncias e depoimentos perante rgos governamentais, ou veiculadas fragmentariamente em publicaes de circulao restrita, muito antes de serem oficializadas em livros de forma sistemtica e definitiva. Sabe-se, no obstante, como j foi mencionado, que ele comeou a estudar Teoria Econmica em 1867; seu pensamento na matria estava amadurecido por volta de 1875, tendo assumido forma definitiva em 1883. Entretanto, nenhuma parte de sua obra foi dada a pblico em forma adequada seno em 1890 nos Princpios (no considerando o manual de vulgarizao publicado em 1879 em co-autoria com sua mulher). E a parte de matria em que primeiro trabalhou e que estava virtualmente concluda em 1875 no foi publicada em livro seno cerca de cinqenta anos depois, em 1923 (Money, Credit and Commerce). Esse hiato entre a elaborao e a publicao de suas inovaes conceituais e metodolgicas teve como conseqncia ensejar a que algumas dessas inovaes fossem divulgadas por outros, tirando delas, quando enfim publicadas, a originalidade e o impacto da novidade. Da muitos economistas do mundo inteiro, que conheciam Marshall pelos seus trabalhos publicados, julgarem um tanto exagerada a proeminncia que lhe atribuam seus contemporneos e sucessores ingleses.19

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Assim, por exemplo, noo corrente, divulgada em aulas, compndios, enciclopdias e dicionrios de Economia, que o principal ttulo de glria de Marshall na histria do pensamento econmico seria o de ter feito a sntese dos postulados clssicos com a doutrina marginalista devida a Jevons e chamada escola austraca (Menger, Bhm-Bawerck). H quem prove, porm, como fez Shove,18 que ele nada deve nem a um nem outra, tendo em vista a originalidade ou prioridade subjetiva das suas idias, as datas de publicao das obras dos marginalistas e as referncias e reconhecimentos de Marshall s principais fontes de suas contribuies. Quanto contribuio dos clssicos, o que Marshall tentou fazer, segundo ele prprio, foi completar e generalizar, por meio do aparato matemtico, os postulados de Smith e principalmente Ricardo, conforme expostos por Mill. Alis, quando economistas americanos acusaram-no de tentar reconciliar doutrinas divergentes, Marshall irritou-se com essa errnea e injusta interpretao.19 J a contribuio de Marshall Economia Matemtica ou Matemtica Econmica, ou ainda, para ser mais preciso, metodologia diagramtica, incontroversa. A noo da extenso da aplicao dos mtodos matemticos estava no ar, por assim dizer. J nessa poca esboava-se nos crculos acadmicos uma tendncia a estender a aplicao da Matemtica das Cincias ditas experimentais s ento chamadas Cincias Morais, dentre as quais as Cincias Sociais; mas essa tendncia nada produzira at ento de substancial e definitivo no campo da Economia. Ora, era natural que Marshall, por volta de 1867 amigo do grande professor de Matemtica W. K. Clifford e por ele treinado, ao voltar-se para a Economia, personificada em Ricardo, comeasse a trabalhar com diagramas e lgebra. Ele no foi, na verdade, o nico e nem mesmo o primeiro dos economistas contemporneos a utilizar o instrumental matemtico para a anlise econmica. Cournot j o havia feito (Recherches sur les Principes Mathmatiques de la Thorie des Richesses. 1838), como tambm Walras (Elments dconomie Pure. 1874-1887; La Thorie Mathmatique de la Richesse Sociale. 18731883). Marshall, porm, chegou Economia muito mais treinado do que Jevons e mesmo que Adam Smith, professor universitrio de grande cultura geral, e Ricardo, atilado homem de negcios da City, os quais no ignoravam os fundamentos da matria, nem tampouco Mill (que usou exemplos matemticos), mas que no tinham como ele o dom natural e o treino cientfico dessa disciplina. Foi, por isso, o primeiro a empregar esse aparato analtico de forma sistemtica, construtiva e exemplar. E isso ele o fez com a prudncia da sua cincia. Falou-se na ambivalncia da atitude de Marshall em relao Matemtica, j que, mestre consumado da matria, restringiu o seu18 19 Loc. cit. Carta a J. B. Clarck, de 24-03-1908. In: Memorials. p. 418.20

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emprego em Economia a estreitos limites, confinando os diagramas a notas de rodap e as equaes a apndices, em vez de, como Walras, por exemplo, alar-se em exerccios abstratos no curso da exposio. Essa sua atitude crtica, porm, diante dos usos e abusos dos mtodos matemticos em Economia no fruto, evidentemente, de ignorncia da matria, mas, antes, justamente devida ao seu profundo conhecimento de suas potencialidades e limitaes, considerando a Matemtica um mtodo vlido de anlise em Economia, mas no de exposio, que deve ser em linguagem corrente e ter exemplificao com fatos reais. O seu comedimento no uso da Matemtica era devido tambm necessidade de comunicao, preocupado que estava em ser lido e entendido pelo maior nmero possvel de pessoas, inclusive pelos no versados na linguagem matemtica; mas a razo principal, segundo Corry, era o receio de que conjuntos de equaes omitem ou distorcem influncias e consideraes relevantes.20 Ressalvando a utilidade dos hbitos de raciocnio matemtico para clareza e preciso dos conceitos, e do emprego de diagramas, de entendimento geral, antes que de smbolos matemticos, diz ele prprio no Prefcio 1 edio dos Princpios: O principal uso da Matemtica pura em questes econmicas parece ser o de ajudar uma pessoa a anotar rapidamente, de uma forma sucinta e exata, alguns dos seus pensamentos para seu prprio uso, alm de assegurar-se de que tem suficientes premissas, e somente o bastante, para as suas concluses (isto , que suas equaes no sejam em nmero maior ou menor do que suas incgnitas). Mas quando um grande nmero de sinais tiver que ser usado, isso se torna extremamente penoso para qualquer um, exceto para o prprio autor. Seu pensamento a respeito se torna ainda mais claro numa carta em que fala de sua experincia pessoal: Um bom teorema matemtico relativo a hipteses econmicas era altamente improvvel de ser boa Economia; e eu prossegui, cada vez mais, segundo as regras: 1) Use Matemtica como uma linguagem estenogrfica, antes do que como um instrumento de investigao; 2) empregue-a at que se obtenham resultados; 3) traduza para o ingls; 4) ento ilustre com exemplos que tenham importncia na vida real; 5) queime a Matemtica; 6) se no teve xito em 4, queime 3. Isso tenho feito com freqncia.21 H ainda a considerar que sendo Marshall um grande matemtico que at pensara em embrenhar-se na Fsica nuclear, s poderia sentir um certo desdm do ponto de vista intelectual e esttico pelos triviais fragmentos de lgebra elementar, Geometria e Clculo diferencial que compem a Matemtica Econmica, diz Keynes, acrescentando: Contrariamente Fsica, por exemplo, as partes do esqueleto da teoria econmica que so exprimveis em forma matemtica so extremamente fceis comparadas inter20 21 Op. cit., p. 27. Carta a A. L. Bowley, de 27-02-1906. In: Memorials. p. 427.21

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pretao econmica dos fatos complexos e incompletamente conhecidos da experincia, e leva-nos muito pouco adiante no estabelecimento de resultados teis.22 O mtodo de trabalho marshalliano consistia, em sntese, na utilizao da Matemtica acessoriamente, como meio de investigao, e o raciocnio ordinrio, bem como os exemplos da vida real, para a exposio. Essa orientao metodolgica impregnou a moderna teoria econmica inglesa, a partir da chamada escola de Cambridge, e foi seguida, entre outros, por Keynes, Hicks e Pigou. Os primeiros exerccios matemticos e diagramticos de Marshall em Economia faziam parte do estudo A Teoria do Comrcio Exterior, completado por volta de 1875/77 e foram divulgados, como era seu hbito, em crculos restritos, sendo mais tarde suas partes mais significativas incorporadas aos Princpios. Diz Keynes que eles eram de tal carter em sua penetrao, abrangncia e exatido cientfica e foram to mais longe do que as brilhantes idias de seus predecessores, que podemos proclam-lo, justamente, como o fundador da Economia diagramtica moderna esse elegante aparato que geralmente exerce uma poderosa atrao sobre principiantes inteligentes, que todos ns usamos como uma inspirao e um freio de nossas intuies, e como um registro estenogrfico de nossos resultados, mas que geralmente recua para um segundo plano medida que penetramos mais no mago do assunto.23 Assim Marshall, tendo comeado por criar os mtodos diagramticos modernos, terminou por releg-los ao seu devido lugar. O aparato analtico-matemtico e seu prudente uso foi uma de suas principais contribuies ao desenvolvimento da moderna cincia econmica. Outras foram as inovaes metodolgicas e conceituais contidas principalmente nos Princpios e, last but not least, sua teoria monetria. Deixando de lado, por enquanto, o acervo terico contido nos Princpios, que ser exposto detalhadamente quando do exame da obra, vejamos agora a teoria monetria marshalliana. Houve quem dissesse que Marshall negligenciou a estrutura monetria e, mais genericamente, a agregativa em que sua teoria do valor atua. Nada mais errneo. No s o que concerne aos Princpios pressupe, subjacentemente, uma estrutura monetria, como ele trata explicitamente desse arcabouo noutros trabalhos. No h nenhuma parte da Economia, diz Keynes, em que a originalidade e a prioridade do pensamento de Marshall sejam mais marcantes do que aqui, ou onde sua superioridade de penetrao e de conhecimento sobre seus contemporneos tenha sido maior. Dificilmente se encontrar algum aspecto importante da moderna Teoria da Moeda que no tenha sido conhecido por Marshall quarenta anos atrs.24 As duas principais fontes de referncia sobre22 23 24 Loc. cit., p. 333. Loc. cit., p. 332-333. Ibid., p. 335.22

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suas idias nesse campo so os Official Papers, coletnea de memorandos e depoimentos prestados a rgos governamentais, e Money, Credit and Commerce, publicado j na sua velhice mas contendo principalmente concepes elaboradas muitos anos antes. Os Official Papers contm a essncia da teoria monetria de Marshall. Em sntese, segundo Corry, os mais importantes elementos de sua contribuio nessa rea so os seguintes: a chamada equao de Cambridge e o seu desenvolvimento de um ciclo de crdito atravs de um desequilbrio entre taxas de juros reais e monetrias. Marshall considerado comumente o fundador da abordagem de Cambridge teoria monetria. Em essncia, essa teoria postula uma funo de procura estvel da moeda, com a renda real (ou riqueza) como o principal argumento da funo. Caeteris paribus, tal abordagem dar uma relao proporcional entre mudanas na oferta da moeda e mudanas no nvel geral de preos. Essa abordagem foi formalizada por Pigou (1917) em um famoso artigo, e elaborada por Keynes em seu Tract on Monetary Reform (1923). Marshall tornou absolutamente claro, no entanto, que mudanas em outros fatores no volume de atividade e na procura de moeda podem muito bem dominar a relao, especialmente em perodos de crise econmica. Sua outra contribuio nesse campo foi elucidar o mecanismo de conexo das taxas reais de juros e as taxas monetrias, por meio do qual as divergncias entre as duas geram um ciclo de crdito.25 Mais especificamente, as mais importantes e caractersticas de suas contribuies originais a essa parte da Teoria Econmica so:26 1) A exposio da Teoria Quantitativa da Moeda como parte da Teoria Geral do Valor; 2) a distino entre a taxa real de juro e a taxa monetria, e a importncia disso para o ciclo de crdito, quando o valor da moeda flutuante; 3) a corrente causal pela qual, nos modernos sistemas de crdito, uma oferta adicional de moeda influencia os preos, e a parte desempenhada pela taxa de desconto; 4) o enunciado de Teoria da Paridade do Poder Aquisitivo como determinante da taxa de cmbio entre pases com moedas mutuamente inconversveis; 5) o mtodo de corrente de compilao de nmeros ndices; 6) a proposta de papel-moeda para circulao (segundo as Proposals for an Economical and Secure Currency de Ricardo), lastreado em ouro e prata (fundidos juntos) como padro; 7) a proposta para um Padro Tabular oficial para uso opcional no caso de contratos a longo prazo (algo assim como a nossa UPC).25 26 Loc. cit., p. 32. KEYNES. Op. cit., p. 337-340.23

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Marshall pretendia, como plano de trabalho inicial e bsico, escrever uma srie de monografias sobre problemas econmicos especficos (Comrcio Exterior, Teoria Monetria etc.) e depois fundi-las num tratado geral de Economia, ao qual se seguiria um compndio mais popular. Por fora de circunstncias diversas, porm, viu-se obrigado a alterar seu projeto original e comear pelo que seria o fecho de uma longa obra da os Princpios de Economia. Princpios de Economia Um moderno instrumento de pesquisa Os Princpios de Economia so a Magnum opus de Marshall, a sntese de seu pensamento, obra que o consagrou definitiva e universalmente como grande economista. Seu aparecimento, em 1890, teve sucesso imediato, sendo saudado pelos economistas e pelas publicaes especializadas como um acontecimento marcante na histria do pensamento econmico o incio da idade moderna da Economia. Obteve, inclusive, uma certa popularidade, contribuindo para restabelecer na opinio pblica o prestgio e a credibilidade da Economia Poltica, abalados pelas verses desumanas e cruas dos postulados clssicos. Marshall pretendia, alis, que seu livro fosse lido pelos homens de negcios, polticos e profissionais liberais, talvez vencendo a natural averso da aristocracia dirigente pelos assuntos econmicos em geral e pelo mundo dos negcios em particular. A importncia histrico-doutrinria dessa obra advm, principalmente, do fato de que, alm das inovaes conceituais e metodolgicas nela contidas, apresentava, pela primeira vez, uma sntese dos postulados da Economia Poltica clssica e da doutrina marginalista num todo coerente, slido e lcido, sendo que a sua sofisticada exposio da anlise marginalista , ainda hoje, considerada magistral, motivo pelo qual seu autor apontado por alguns, um tanto equivocadamente, o papa do marginalismo. Era o primeiro grande tratado geral sobre os fundamentos da Economia, ainda que viesse a se chamar apenas introdutrio, depois dos Princpios de Economia Poltica de Mill; e a leitura comparada de ambos esclarece e ressalta os superiores mritos de Marshall. Obra seminal, de grande valor terico e didtico, tornou-se rapidamente livro de consulta obrigatria para os profissionais e compndio bsico do ensino de Economia no mundo anglo-saxnico e em grande parte do continente europeu. Essa obra monumental no saiu assim de sbito, pronta e acabada, como da cabea de Juno. Marshall vinha estudando e ensinando Economia h muito tempo antes de sua elaborao, levou nove anos escrevendo-a e cerca de trinta, o resto de sua vida, revendo suas sucessivas edies. Muitas das idias e conceitos sistematizados nos Princpios j haviam sido antes concebidos e expostos fragmentariamente por Marshall em aulas, conferncias, documentos oficiais e trabalhos24

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diversos, alguns dos quais publicados.27 Os fundamentos da sua teoria geral, segundo ele prprio, j estavam mais ou menos estabelecidos por volta de 1870, vinte anos, portanto, antes da publicao da 1 edio dos Princpios. A grande mudana que inquestionavelmente teve lugar nas duas dcadas antes da publicao dos Princpios foi na prpria maneira de Marshall abordar a sua matria, e que assumia a forma, sobretudo, de ampliao do seu equipamento no campo da Economia aplicada.28 Essa obra fruto, portanto, da plena maturidade intelectual de seu autor, e ele a reviu, refundiu e aperfeioou-a at praticamente o final de sua vida.29 O que impressiona logo primeira vista nos Princpios sua admirvel arquitetura intelectual a ampla perspectiva, a firmeza da construo interna, a articulao orgnica de suas partes, a solidez de seus alicerces. A forma em que se expressam conceitos complexos e inovadores lmpida e precisa, no lhe faltando mesmo certa elegncia estilstica e metforas literrias, marcas do bom escritor. Sob a roupagem da literatura a armadura da Matemtica disse seu contemporneo Edgeworth a propsito da obra de Marshall em geral, com que este concordou, e que se aplica igualmente, e talvez com mais razo, aos Princpios. Cabe assinalar, a propsito do magnfico aparato matemtico de que se serviu com prudncia e destreza exemplares, a elegncia e a lucidez de suas equaes e diagramas. Mas, no que tange ainda s funes matemticas em que assenta a obra, advertia o autor, mais uma vez, que num tratado como este a Matemtica usada somente para exprimir em uma linguagem tersa e mais precisa aqueles mtodos de anlise e raciocnio que as pessoas comuns adotam, mais ou menos inconscientemente, nos negcios de todo dia da vida. Pretendendo abranger todo o campo da Economia de ento, queria faz-lo,27 Alm do Economics of Industry e dos estudos sobre comrcio exterior e teoria monetria, partes dos quais foram incorporadas aos Princpios, so de interesse como background desta obra, segundo Guillebaud, o artigo de Marshall sobre Jevons, j citado, que contm a essncia da teoria marshalliana da distribuio; outro em defesa de Mill, intitulado Mr. Mills Theory of Value (Fortnightly Review. Abril 1886), a aula magna de Marshall em 1885 como professor de Economia Poltica em Cambridge e publicada sob o ttulo de The Present Position of Economics (Memorials. p. 152-174); The Graphic Method of Statistics, memria apresentada ao Congresso Estatstico Internacional em 1885 (Memorials. p. 175187), cujos dois ltimos pargrafos contm a primeira referncia concepo marshalliana da Elasticidade da Procura e expe o mtodo diagramtico de mensurao da elasticidade em qualquer ponto da curva da procura, que ele usou posteriormente nos Princpios; Theories and Facts about Wages (Cooperative Annual. O primeiro esboo da teoria da distribuio desenvolvida nos Princpios). GUILLEBAUD. Ibid. Os Princpios pretendiam inicialmente abranger dois volumes, sendo a designao volume I eliminada a partir da 6 edio de 1910, quando foi acrescentado o subttulo Tratado Introdutrio. As mais importantes alteraes efetuadas por Marshall esto na presente edio, a 8 (1920) e definitiva. Da 5 8 edio no houve alteraes estruturais nos Princpios. H, como j foi citada, uma 9 edio pstuma em dois volumes, mas apenas variorum: o volume I fac-smile da 8 e o volume II reproduz as variantes das sucessivas edies. Para todos os efeitos prevalece a 8 edio, na qual baseia-se a presente traduo.25

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como disse, de forma acessvel a um mtico homem de negcios comum. Da a evidente preocupao didtica no s na conciso, clareza e rigor da exposio, como tambm nas constantes introdues, remisses e notas explicativas. Mas sob a superfcie desse polido globo de verdade, como foi chamado, h embutidos ricos veios e pepitas de puro ouro, que ao leitor atento e persistente valer a pena lavrar, como veremos adiante. Por isso costuma-se dizer que a aparente facilidade de sua leitura , at certo ponto, enganosa, pois a cada releitura fazem-se novas descobertas. No cabe aqui fazer um roteiro dos Princpios a ordem de leitura estabelecida pelo autor, seguindo suas prprias indicaes quanto s partes que podem ser ladeadas temporariamente e observando as advertncias com que balizou o percurso. A preocupao didtica do antigo professor ainda uma vez manifesta ao resumir toda a obra num Sumrio cuja leitura, logo de incio, d uma viso panormica de toda a matria abordada, alm de facilitar a consulta de partes especficas. A concepo geral dos Princpios baseia-se numa viso microeconmica do regime capitalista de produo segundo um enfoque neoclssico. A tese central da doutrina econmica a contida a de uma tendncia natural para o equilbrio, uma tendncia de crescimento gradual, como resume Joan Robinson, aplicada aluna de Marshall: As foras do mercado distribuam os recursos da melhor maneira possvel entre os diversos usos alternativos. Da o conceito de distribuio da renda baseado na justia natural. Isto , a contribuio dos trabalhadores para a produo se refletiria nos salrios, enquanto a contribuio do capital para a produo estaria nos lucros. Isso seria justo, direito e natural.30 Convm relembrar que o arcabouo analtico ou a espinha dorsal dessa obra nada mais que uma complementao e generalizao, por meio do aparato matemtico, da teoria do valor e da distribuio de Ricardo, como foi exposta por Mill.31 O cerne e a pedra de toque dos Princpios onde se assenta o seu arcabouo so o Livro Quinto cuja origem remonta a 1873, quando o autor estava reformulando suas ilustraes diagramticas de problemas econmicos. Desse cerne, relembra Marshall, o presente volume foi estendido gradualmente para a frente e para trs, at atingir a forma em que foi publicado em 1890". Essa parte do tratado, confessadamente a sua preferida, embora dedicasse igual ateno e cuidado ao conjunto da obra, contm o ncleo30 31 "Os Problemas da Economia Moderna". In: Cadernos de Opinio. n 15, Dez. 79/Agosto 80. p. 8-12. SHOVE. Op. cit., p. 433. Uma exposio minuciosa da matria contida em cada livro dos Princpios pode ser encontrada em TAYLOR, Overton H., A History of Economic Thought. Nova York, McGraw Hill Books Co., 1960. Cap. 13, p. 337-379.26

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de seu trabalho analtico, a obra-prima clssica dessa anlise parcial to admirada por uns e to criticada por outros".32 Ainda sobre essa parte do tratado, Marshall acrescenta: Para mim, pessoalmente, o principal interesse do volume centra-se no Livro Quinto: ele contm mais do trabalho de minha vida do que qualquer outra parte; l, mais do que em qualquer outra parte, que eu tentei enfrentar as questes pendentes da cincia.33 E continua dizendo que o grande problema geral da distribuio econmica dos recursos o piv do principal argumento da matria mais importante do Livro Quinto e mesmo de uma grande parte de toda a obra. (Livro Quarto. Cap. III, 8. Nota sobre a lei do rendimento decrescente.) Vejamos, agora, especificamente, as principais contribuies de Marshall no campo da doutrina e anlise econmicas contidas nos Princpios, que , como j se disse, a suma do seu pensamento. Justamente numa poca em que a controvertida teoria do valor dividia os economistas em posies irreconciliveis, Marshall conseguiu, graas principalmente introduo do elemento tempo como fator na anlise, reconciliar o princpio clssico do custo de produo com o princpio da utilidade marginal, atribudo escola austraca (Menger), Walras e Jevons, mas que, diz Marshall, lhe foi inspirado por Von Thnen. Ao introduzir o fator tempo na anlise econmica pela distino entre curtos e longos perodos, ele procurou, com efeito, determinar o papel do custo objetivo de produo (longos perodos) e o da utilidade marginal (perodos curtos) na determinao do valor dos bens e servios.34 Existem alguns autores, porm, como Corry,35 que consideram a elaborao da rigorosa Economia do estado estacionrio a contribuio terica central de Marshall. O mtodo de anlise parcial ou anlise de equilbrio parcial, tambm chamado de abordagem Ceteris paribus (iguais s demais coisas, isto , sem que haja modificao de outras caractersticas ou circunstncias) das mais famosas e, hlas, controvertidas contribuies de Marshall. Consiste, essencialmente, em compartimentar a economia de modo que os principais efeitos de uma mudana de parmetro num determinado minimercado possam ser ressaltados sem considerar os efeitos colaterais em outros mercados, inclusive as reaes, ou feedback destes. Justificando o seu modelo analtico esttico, diz Marshall, inicialmente, que a funo da anlise e da deduo em Economia no forjar longas cadeias de raciocnio, mas forjar seguramente muitas pequenas cadeias e simples elos de ligao, acrescentando ento que: O elemento tempo uma das primeiras causas daquelas dificuldades32 33 34 35 SCHUMPETER. Histria da Anlise Econmica. Partes IV-V, p. 109. Prefcio 2 edio. Cf. Robert, 2. Loc. cit., p. 28.27

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nas investigaes econmicas que tornam necessrio ao homem, com suas limitadas faculdades, avanar seno passo a passo; decompondo uma questo complexa, estudando um aspecto de cada vez para, finalmente, combinar as solues parciais numa soluo mais ou menos completa do problema total. Decompondo-o, separa provisoriamente, debaixo da condio Ceteris paribus, as causas perturbadoras... Quanto mais a questo assim reduzida, mais exatamente pode-se trat-la... Cada tratamento exato e seguro de uma reduzida questo ajuda mais a elucidar os problemas maiores... do que seria possvel de outra forma. A cada passo, mais coisas podem ser consideradas, as discusses tericas se podem tornar menos abstratas, as discusses prticas menos inexatas do que era possvel numa fase anterior. (Livro Quinto. Cap. V, 2.) Outras formulaes doutrinrias e metodolgicas incorporadas aos Princpios tais como a elasticidade da procura, economias externas e internas, quase-renda, firma representativa, organizao empresarial etc. desempenharam importante papel no desenvolvimento subseqente da Economia e fazem parte hoje do instrumental terico e analtico do economista moderno. Valendo-se de notas e observaes do prof. Edgeworth, que foi dos primeiros renomados economistas a proclamar a importncia da nova obra de Marshall, Keynes assim resume as principais contribuies que nela se contm (algumas das quais, como foi dito, j esboadas de uma forma ou outra em Economics of Industry).36 1) O esclarecimento completo e definitivo dos papis desempenhados respectivamente pela Procura e pelo Custo de Produo na determinao do valor. 2) a idia geral, subjacente proposio de que o Valor determinado no ponto de equilbrio da Procura e da Oferta, foi estendida at a descoberta de um verdadeiro sistema copernicano, pelo qual todos os elementos do universo econmico so mantidos em seus lugares por mtuas reaes e contrapesos. A teoria geral do equilbrio econmico por duas poderosas concepes subsidirias a Margem e a Substituio. A noo de Margem foi estendida alm da Utilidade para descrever o ponto de equilbrio em dadas condies de qualquer fator econmico que possa ser considerado capaz de pequenas variaes em torno de um valor dado, ou em sua relao funcional a um dado valor. A noo de Substituio foi introduzida para descrever o processo pelo qual o Equilbrio restaurado ou estabelecido. Em particular, a idia de Substituio na Margem, no somente entre objetivos alternativos de consumo, mas tambm entre os fatores de produo, foi extraordinariamente frutuosa em resultados;36 Loc. cit., p. 349-354.28

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3) a explcita introduo do elemento Tempo como um fator na anlise econmica, bem como as concepes de perodos longos e curtos tinha como um dos seus objetivos traar um encadeamento contnuo atravessando e conectando as aplicaes da teoria geral de equilbrio da procura e da oferta a diferentes perodos de tempo. H outras distines conexas a essas que agora consideramos essenciais a um raciocnio claro e que foram explicitadas pela primeira vez por Marshall especialmente entre economias externas e internas, custo primrio e suplementar. Desses pares, o primeiro Keynes considera uma completa novidade quando apareceram os Princpios; o ltimo, no entanto, j existia no vocabulrio da indstria, se no no da anlise econmica. Por meio da distino entre perodos longos e curtos, o significado de normal tornou-se mais preciso; e com a ajuda de duas outras concepes caracteristicamente marshallianas Quase-Renda e Firma Representativa a doutrina do Lucro Normal foi desenvolvida. Todas estas so idias inovadoras que ningum que procure pensar claramente pode dispensar, diz Keynes, ressalvando, porm, que essa a rea em que, em sua opinio, a anlise de Marshall menos completa e satisfatria, e onde resta muito a fazer. Reconhece Marshall, no Prefcio 1 edio da obra, que o elemento tempo o centro da principal dificuldade de quase todo problema econmico"; 4) a concepo especial de Excedente do Consumidor, desenvolvimento natural das idias de Jevons, no se revelou, na prtica, to proveitosa como parecera a princpio. Mas, lembra Keynes, ningum pode desprez-la como parte do aparato de pensamento, e particularmente importante nos Princpios por causa do seu uso nas palavras do prof. Edgeworth para mostrar que, laissez-faire, o mximo de vantagem alcanada pela concorrncia irrestrita, no necessariamente a maior vantagem possvel que possa alcanar. A prova, apresentada por Marshall, de que o laissez-faire teoricamente entra em pane sob certas condies e no apenas praticamente, considerado um princpio de vantagem social mxima, foi de grande importncia filosfica. Marshall no levou essa argumentao muito longe,37 e a explorao mais avanada desse campo foi deixada ao seu discpulo dileto e sucessor, Pigou, que demonstrou que mquina poderosa para abrir caminho numa regio embaraada e difcil oferece a anlise de Marshall nas mos de quem tenha sido educado para compreend-la bem; 5) a anlise do monoplio feita por Marshall deve ser mencionada, bem como, a propsito, sua anlise do rendimento crescente, especialmente onde existem economias externas. As concluses tericas de Marshall nesse campo e sua simpatia para com as idias (ideais, seria mais exato) socialistas eram compa37 Industry and Trade gira parcialmente em torno desse ponto.29

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tveis, no entanto, com uma velha crena na resistncia das foras da concorrncia. Diz o prof. Edgeworth: Posso me lembrar da viva impresso da primeira vez que encontrei Marshall l pelos anos oitenta, creio por sua forte expresso da convico de que a Concorrncia dominaria por muito tempo como a principal determinante do valor. Estas no foram as suas palavras, mas elas se encaixam no pensamento expresso em seu artigo sobre The Old Generation of Economists and the New:38 Quando uma pessoa est disposta a vender uma coisa por um preo pelo qual uma outra est disposta a pagar, os dois arranjam por se encontrarem a despeito de proibies do Rei, do Parlamento ou dos funcionrios de um Truste ou Sindicato Operrio; 6) a introduo explcita da idia de elasticidade o maior servio prestado por Marshall aos economistas na proviso de terminologia e equipamento para apurar o pensamento. A apresentao da definio de Elasticidade da Procura virtualmente o primeiro tratado de uma concepo sem cuja ajuda a teoria avanada do valor e da Distribuio teria feito algum progresso. A noo de que a procura pode responder a uma alterao de preo numa extenso que pode ser mais ou menos do que proporcional era, naturalmente, familiar desde as discusses no comeo do sculo XIX sobre a relao entre a oferta e o preo do trigo. De fato, algo surpreendente que essa noo no tenha sido mais claramente elucidada por Mill ou Jevons. Mas assim no o foi. E o conceito e = dx dy x y

inteiramente de Marshall. A maneira com que Marshall introduz a Elasticidade sem nenhuma sugesto de que a idia nova, notvel e caracterstica. O campo de investigao por esse instrumento de pensamento outro em que os frutos completos foram colhidos pelo prof. Pigou antes do que pelo prprio Marshall". De outro ponto de vista que no o estritamente tcnico-econmico mas sob a ptica tico-social, os Princpios revelam, numa leitura atenta, aquelas pepitas que se disse estarem subjacentes sob a polida superfcie deste globo da verdade. Da a observao de alguns de que a sua leitura aparentemente fcil, mas torna-se complexa se sujeita reflexo. Ao garimpar as prescries sociais, os preceitos morais e as recomendaes sobre diretrizes governamentais, que constituem a mensagem de poltica econmica e social de Marshall, verifiquei que o veio aurfero mais rico j havia sido explorado por Theodore Levitt, um dos atuais economistas que consideram monumental os Princpios num ensaio sobre Marshall em que ressalta a sua relevncia vitoriana38 Quarterly Journal of Economics. 1896. v. XI. Republicado no Memorials.30

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para a Economia moderna.39 Logo no incio dos Princpios, Marshall, lembra Levitt, tornou claro o que iria enfrentar: ...a pouca ateno que se tem dado relao entre a Economia e o superior bem-estar do homem (Livro Primeiro. Cap. 1, 3). Ele no cairia na armadilha, como alguns dos seus predecessores, em desculpas implcitas pelos excessos da atual ordem econmica. Disse ele, com evidente desaprovao, que no passado o perodo no qual a livre iniciativa se apresentava numa forma brbara e desnaturada foi, na verdade, quando os economistas foram mais prdigos em louv-la (Livro Primeiro. Cap. I, 5). Marshall no repetiria esse erro", diz Levitt. Ele estava determinado seriamente a investigar se necessrio de todo haver as ditas classes baixas, isto , se preciso haver um grande nmero de pessoas condenadas desde o bero ao rude trabalho a fim de prover os requisitos de uma vida refinada e culta para os outros, enquanto elas prprias so impedidas por sua pobreza e labuta de ter qualquer quota ou participao nessa vida (Livro Primeiro. Cap. I, 2). No prosseguimento dessa investigao, diz ainda o citado autor, Marshall propunha deixar sua anlise seguir seu prprio curso: Assim, quanto menos nos preocuparmos com discusses escolsticas sobre a questo de saber se tal ou qual assunto pertence ao campo da economia, melhor ser (Livro Primeiro. Cap. II, 7). Alm do mais, disse ele no incio que as foras ticas esto entre as que o economista deve considerar. Tem-se tentado, na verdade, construir uma cincia abstrata com respeito s aes de um homem econmico... Mas essas tentativas no tm sido coroadas de xito, nem tampouco realizadas integralmente (Prefcio 1 edio). Ele no ignorar as altrusticas, desinteressadas e sacrificadas continuidades e motivaes dos membros de um grupo industrial. Refere-se a estas como foras ticas, dizendo no prlogo que: Se este livro tem alguma peculiaridade , talvez, a de dar proeminncia a esta e outras aplicaes do princpio de Continuidade (Prefcio 1 edio). Marshall era francamente favorvel doutrina de que o bemestar do povo em geral deve ser o objetivo ltimo de todos os esforos privados e de todos os programas polticos (Livro Primeiro. Cap. IV, 6). J quase no fim do volume, advertindo em sua maneira cautelosa sobre a necessidade de se estar de guarda contra a tentao de exagerar os males econmicos de nossa prpria poca, declara-se finalmente em favor de um firme compromisso para estimular os outros, bem como a ns prprios, a uma disposio de no mais permitir que os males atuais continuem a existir (Livro Sexto. Cap. XIII, 15). Por meio de todo o vasto tratado esses males so revelados e profligados, acentua Levitt, que acrescenta: Ainda que Marshall tivesse muito que39 LEVITT, Theodore. Alfred Marshall: Victorian Relevance for Modern Economics. In: Quarterly Journal of economics. XC (3), agosto de 1976. p. 425-443.31

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dizer sobre sua atenuao ou extino em outros escritos e cartas publicadas, a incluso nos Princpios de tantas censuras morais, preceitos ticos, propostas intervencionistas, reflexes utpicas, e tanta repulso reprimida que torna a obra to original. So variados e numerosos os pronunciamentos extra-econmicos e ticos de Marshall, contrastando com o carter tcnico e cientfico de suas anlises e postulados econmicos do que pretendia ele fosse uma mquina para pesquisa da verdade. O ordenamento por Levitt desses pronunciamentos algo arbitrrio, mas no h vantagem prtica em alter-lo. Sigamo-lo, pois. A economia da infncia e a da famlia Marshall sentia-se intensamente perturbado com a terrvel injustia com que a livre-empresa pressionava os filhos da pobreza. Sua soluo parcial era equip-los com o poder de evitar ou escapar disso. Sendo sua crena de que o conhecimento a nossa mais potente mquina de produo (Livro Quarto. Cap. I, 1), disse ele: Poucos problemas prticos interessam mais diretamente ao economista do que os que se referem aos princpios segundo os quais deveriam ser divididos entre o Estado e os pais as despesas da educao das crianas (Livro Quarto, Cap. VI, 7)... do ponto de vista nacional, o investimento de riqueza no filho do trabalhador to produtivo quanto o seu investimento em cavalos ou maquinaria (Livro Quarto. Cap. VII, 10). E ainda: O mais valioso de todos os capitais o que se investe em seres humanos, e desse capital a parte mais preciosa resulta do cuidado e da influncia da me, tanto quanto esta conserve os seus instintos de ternura e abnegao, e no se tenha empedernido pelo esforo e fadiga do trabalho no feminino (Livro Sexto. Cap. IV, 3). Assim, temos nessa ltima citao, observa Levitt, no somente a noo de capital humano, mas tambm um dos preceitos vitorianos sobre o lugar, deveres e sensibilidades da me num Estado industrial. Os sentimentos de Marshall refletiam simplesmente a idealizao intelectual prevalecente da mulher. Eles eram parte essencial das noes marshallianas de como o capital humano criado: ...ao avaliar o custo de produo de trabalho eficiente devemos freqentemente tomar como unidade a famlia. De qualquer forma, alis, no podemos tratar o custo da produo de homens eficientes como um problema isolado. Devemos tom-lo como parte do problema mais amplo do custo de produo de homens eficientes, juntamente com as mulheres aptas a tornar os seus lares felizes e a criar os seus filhos vigorosos em corpo e esprito, amigos da verdade e da limpeza, corteses e corajosos (Livro Sexto. Cap. IV, 3). Segundo a implcita diviso de trabalho de Marshall, mulher caberia a tarefa natural e principal de cuidar da famlia. Duvidava, portanto, do benefcio automtico da mo invisvel ao afastar do lar32

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as mulheres com a tentao de altos salrios, que estariam se elevando relativamente mais depressa do que os dos homens, o que, se por um lado, desenvolve as suas faculdades, , por outro lado, um mal na medida em que leva as mulheres a negligenciarem os seus deveres domsticos e a no investirem seus esforos na formao de um verdadeiro lar e na educao dos filhos, que representa um capital pessoal (Livro Sexto. Cap. XII, 10). Os maridos devem, tambm, ter uma certa presena domstica, sendo que a sociedade como um todo tem interesse direto na reduo de horas extravagantemente longas de trabalho que os mantm fora de casa (Livro Sexto. Cap. XIII, 14). Quanto aos efeitos sobre os jovens da renda familiar e comportamento dos pais, achava ele que o investimento de capital na criao e educao dos filhos para o trabalho limitado na Inglaterra pelos recursos dos pais (Livro Sexto. Cap. IV, 2), e isso nas classes mais baixas um grande mal. Muitos dos filhos das classes trabalhadoras so insatisfatoriamente alimentados e vestidos, recebem educao insuficiente, tm poucas oportunidades de obter uma melhor viso da vida ou compreenso da natureza do trabalho mais elevado dos negcios, da cincia ou da arte, enfrentando muito cedo trabalho duro e exaustivo, e por fim vo para o tmulo levando consigo talentos e capacidades no desenvolvidas, mal este que cumulativo (idem). Em contraste, aqueles que nascem nos altos estratos da sociedade levam de sada a vantagem de um melhor comeo de vida, graas a seus pais (Livro Sexto. Cap. IV, 3). bvio, diz ele, que o filho de algum j estabelecido nos negcios comea com uma grande vantagem, aprende quase que inconscientemente sobre os homens e costumes, comea com maior capital material e tem a vantagem adicional de relaes comerciais j estabelecidas (Livro Quarto. Cap. XII, 6). A correo desse males redunda, felizmente, no bem pblico por meio da produo de melhor capital humano e a extino da negligncia anti-econmica em seu desenvolvimento. Em apoio de sua tese, afirma Marshall que s habilidades dos filhos das classes trabalhadoras pode ser atribuda a maior parte do sucesso das cidades livres da Idade Mdia e da Esccia em tempos recentes. Mesmo na prpria Inglaterra o progresso mais rpido naquelas partes do pas em que a maioria dos lderes da indstria constituda de filhos de trabalhadores, uma vez que as velhas famlias estabelecidas tm carecido da flexibilidade e juventude de esprito que nenhuma vantagem social pode suprir e que provm somente de dons naturais. Esse esprito de casta e essa deficincia de sangue novo entre os lderes da indstria se sustentam mutuamente, e no so poucas as cidades do sul da Inglaterra cuja decadncia pode ser atribuda em grande parte a essa causa (Livro Quarto. Cap. VI, 5). Assim, pois, ele atribua uma grande parte da misria existente e do entorpecimento econmico a causas estruturais hereditrias barreiras de casta impostas aos filhos pela33

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pobreza de seus pais. Mas no achava que a pobreza fosse a explicao de tudo. Pronta ao, disse ele, necessria com respeito ao grande resduo de pessoas que so fsica, mental ou moralmente incapazes de um bom dia de trabalho com que ganhar um bom salrio dirio. O caso daqueles que so responsveis por crianas exigiria maior gasto de fundos pblicos e mais estrita subordinao da liberdade pessoal necessidade pblica. O mais urgente entre os primeiros passos insistir na freqncia regular escola com roupa decente, corpos limpos e bem alimentados. Em caso de omisso, os pais devem ser advertidos e aconselhados; e como ltimo recurso os lares poderiam ser dissolvidos ou regulados com alguma limitao da liberdade dos pais (Livro Sexto. Cap. XIII, 12). Evidentemente Marshall estava advogando, com medidas severas, uma forma de instruo pblica compulsria, mas com roupa decente e corpos limpos. A significao dessa incluso nos Princpios, observa Levitt, que Marshall advertiria de incio que tais matrias (como trustes, manobras da Bolsa, controle de mercados), no podem ser apropriadamente discutidas num volume sobre Fundamentos: elas cabem num volume que trate de alguma parte da Superestrutura (Prefcio 8 edio). Assim, estranha com razo o citado autor, trustes que produzem bens e servios so Superestrutura; famlias que produzem capital humano no o so. Controle de mercados" Superestrutura; controle de pessoas no o . Quando convinha aos seus preceitos, conclui Levitt, todas as matrias tornavam-se legitimamente o campo de um volume de Fundamentos. Admitindo que os ganhos dos pobres possam aumentar, Marshall ressalvava, no entanto, que eles poderiam us-los incorretamente, de maneira tal que pouco ou nada contribuem para tornarlhes a vida mais nobre ou verdadeiramente mais feliz (Livro Sexto. Cap. XIII, 14). Para isso ele tinha uma soluo: o progresso pode ser apressado... atravs da aplicao de princpios eugnicos melhoria da raa, suprida de contingentes populacionais pelas camadas mais altas antes do que pelas mais baixas (Livro Quarto. Cap. VIII, 5). Esta, de certo modo, a soluo final porque, como observa Levitt, afinal o que Marshall pregava no era tanto de natureza econmica mas o aperfeioamento moral e esttico. Era para isso, finalmente, acrescenta ainda o citado autor, mais do que por sua contribuio para a riqueza nacional ou para a reduo da pobreza que a instruo das camadas mais baixas deveria ser estipendiada: elevar o tnus da vida humana. O mestre-escola deve aprender que o seu dever principal no distribuir conhecimentos, pois alguns xelins compraro mais cincia impressa do que o crebro de um homem pode conter, mas educar o carter, as faculdades e atividades... Para esta finalidade, o dinheiro pblico deve fluir livremente (Livro Sexto. Cap. XIII, 13). Como mestre-escola de34

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geraes de economistas, diz Levitt, Marshall tinha clara conscincia dessa alta obrigao. Teorias do salrio e da distribuio Se casta e pobreza hereditria explicam o ciclo da pobreza, o que explicaria a pobreza em si, pergunta-se Levitt, que responde: tudo o que Marshall pode afinal dizer depois de trinta anos de reviso dos Princpios que a pobreza em si derivava de baixos salrios e que baixos salrios nada tinham virtualmente a ver com a produtividade, mas, sim, inteiramente com a existncia do que Marx chamou de exrcito de reserva industrial massas de desempregados rebaixando o preo do trabalho, desesperadamente prontos a furar a greve daqueles que, em busca de melhoria, recusam-se a trabalhar. Isso especialmente verdadeiro em relao aos trabalhadores no-qualificados, em parte porque os seus salrios oferecem muito pouca margem para poupana, em parte porque quando qualquer grupo deles suspende o trabalho, h um grande nmero pronto a preencher os seus lugares (Livro Sexto. Cap. IV, 8). Ainda que se preocupasse seriamente com a teoria da distribuio e a teoria dos salrios que tanto fascinaram Ricardo e seus seguidores e particularmente Karl Marx inquestionvel que Marshall negava totalmente a utilidade delas na questo da pobreza: ...os salrios de toda classe de trabalho tendem a ser iguais ao produto lquido do trabalho adicional do trabalhador marginal dessa classe... Essa doutrina tem sido apresentada s vezes como uma teoria dos salrios. Mas no h fundamento vlido para tal pretenso. A doutrina... no tem por si mesma significao real, uma vez que para avaliar o produto lquido temos que tomar como fixas todas as despesas de produo da mercadoria em que o homem trabalha, fora o prprio salrio. Contudo, a doutrina traz luz uma das causas que regulam os salrios (Livro Sexto. Cap. I, 7). Por fim, logicamente, diz levitt, foi ao exrcito de reserva industrial que Marshall teve que retornar, porque afinal o preo do trabalho era ele prprio um dos determinantes do preo de mercado de seu produto. E ele considerava a principal influncia sobre o preo do trabalhador a extenso da concorrncia das reservas de mo-de-obra nos portes de um grande empregador, ou de empregadores agindo de comum acordo. Tem-se agora certeza de que o problema da distribuio muito mais difcil do que o julgavam os antigos economistas... Na sua maior parte, as antigas tentativas para dar uma soluo fcil ao problema foram na realidade respostas a questes imaginrias que poderiam ter surgido em outros mundos que no o nosso, nos quais as condies de vida fossem muito simples (Livro Sexto. Cap. I, 2). Noutra passagem anterior ele j havia expressado a mesma idia ao dizer que a cativante elegncia da teoria da distribuio deixava muito35

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a desejar quando estendida da mercadoria ao trabalho: As excees so raras e sem importncia nos mercados de mercadorias (commodities), mas nos mercados de trabalho so freqentes e importantes. Quando um trabalhador teme a fome, sua necessidade de dinheiro (a utilidade marginal deste para ele) muito grande. Se no incio o trabalhador leva a pior na negociao e se emprega a salrio baixo, a necessidade continuar grande, e ele continuar vendendo sua fora de trabalho a baixo preo. Isso mais provvel porque enquanto a vantagem da negociao, a respeito de mercadorias, tende naturalmente a ser bem dividida entre os dois lados, num mercado de trabalho muito comum que esteja mais dos lados dos compradores do que dos vendedores (Livro Quinto. Cap. II, 3). certo, todavia, que os trabalhadores manuais, como classe, esto em desvantagem na negociao e que a desvantagem, onde quer que exista, provvel ser cumulativa em seus efeitos (Livro Sexto. Cap. IV, 6). To convicto estava Marshall da desigualdade da relao entre o comprador e o vendedor de trabalho que, s vezes, parecia rejeitar quase completamente a doutrina econmica convencional nessa questo, pois chegava a dizer que os salrios no so determinados pelo preo de procura nem pelo preo de oferta, mas pelo conjunto total de causas que determinam a oferta e a procura (Livro Sexto. Cap. II, 3). Ele tinha franco desprezo pelos sofismas que procuravam reduzir todos os recursos e troca ao que Marx chamava de nexo pecunirio seres humanos livres no so conduzidos no trabalho sob os mesmos princpios que uma mquina, um cavalo ou um escravo (Livro Sexto. Cap. I, 1). E reclamava dos pais que mandam seus filhos trabalharem como pessoas preguiosas e mesquinhas, com muito pouco amor-prprio e iniciativa (Livro Quarto. Cap. IV, 6). Contudo: Se em qualquer tempo (a oferta e a procura de trabalho) se faz sentir sobre quaisquer indivduos ou classes, os efeitos diretos do mal so claros. Mas os sofrimentos que da resultam so de diferentes espcies: aqueles cujos efeitos geralmente terminam com o mal que os provocou, no devem, em geral, ser comparados em importncia com os que tm efeito indireto de rebaixar o carter do trabalhador ou de impedi-lo de fortalec-lo (Livro Sexto. Cap. IV, 1). Ento temos que o desigual poder de barganha dos trabalhadores no leva a nenhuma espcie de equilbrio aceitvel e a prpria teoria, j dissera Marshall, quando levada s suas mais remotas e intricadas conseqncias lgicas, foge das condies da vida real (Li