Álvaro Garrido

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TodasAs Palavras » nm # 890 » entrevista 26 » noticiasmagazine 14.JUN.2009 Biografia política. Vem de um professor da Universidade de Coimbra a biografia política que revela um Estado Novo oligárquico muito mais promíscuo e perverso do que alguma vez imaginá- mos.O historiador Álvaro Garrido,seu autor e paciente estudioso do país sob a ditadura,cumpre com a publi- cação de HenriqueTenreiro – Uma biografia política, uma inscrição historiográfica que rema contra a maré de esquecimentos que tem marcado a nossa memória histórica recente. TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho

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Sarah Adamopoulos entrevista o historiador Álvaro Garrido a propósito da publicação da sua biografia política de Henrique Tenreiro

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TodasAsPalavras»nm# 890»entrevista

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Biografia política.Vem deum professor da Universidade de Coimbra a biografiapolítica que revela um Estado Novo oligárquico muitomais promíscuo e perverso do que alguma vez imaginá-mos.O historiador Álvaro Garrido,seu autor e pacienteestudioso do país sob a ditadura,cumpre com a publi-cação de Henrique Tenreiro – Uma biografia política,uma inscrição historiográfica que rema contra a maréde esquecimentos que tem marcado a nossa memóriahistórica recente.TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Rui Coutinho

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Completamente. Essa reflexão decorre, emprimeiro lugar, do facto de a personagembiografada ser uma figura muito controver-sa do Estado Novo, um regime autoritário ecom traços de totalitarismo institucional.Para alguns, o simples gesto de biografarHenrique Tenreiro poderá ser visto comouma reabilitação do mesmo. Estou cons-ciente do risco desse juízo redutor. Julgo quese prova ao longo do livro que estamos pe-rante uma figura que justifica sobejamenteuma biografia, por diversas razões, boas emás – o juízo moral pertence ao leitor. Emsegundo lugar, pela própria natureza da fi-gura histórica em questão, que habita os do-mínios da memória de uma forma aindacontroversa, sobretudo na Marinha, queainda hoje olha para Henrique Tenreiro

Este livro, que julgo ser mais do que uma bio-grafia, inscreve-se num trabalho mais vasto esistematizado que tem vindo a realizar na áreada história portuguesa contemporânea. Não é um livro absolutamente típico da bio-grafia histórica canónica. Foi uma opção in-tencional, por haver uma problemática-chave que se inscreve na investigação quevenho realizando sobre a memória do «marportuguês salazarista». E a pergunta foi, e é:como se explica o subsistema de poder deHenrique Tenreiro no contexto do Estadosalazarista dito corporativo? Aquela forma-ção de poder por assim dizer, «quistosa» – como se explica, como foi possível numcontexto ditatorial unipessoal, para maisprotagonizada por um salazarista estreme eradical? Nesse sentido, será mais do que umabiografia narrativa; é, também, um ensaiobiográfico sobre as oligarquias corporativasdo salazarismo e sobre um dos seus maiseminentes oligarcas. Uma tentativa de esca-var mais fundo a história do Estado Novo; ahistória críptica de um sistema autoritárioque tenho investigado nos domínios pro-míscuos da «economia dirigida». Cripto-história do Estado Novo?Tenho estudado o Estado Novo promíscuo,isto é, as fronteiras, muito ténues, que se fo-ram tecendo entre o público e o privado – nãosabemos se uma instituição corporativa (umgrémio ou uma casa dos pescadores, porexemplo) é público ou privado; eu creio que éostensivamente público, embora no planoformal e jurídico o não fosse. Daí o DireitoCorporativo e as suas dogmáticas lições nasFaculdades de Direito… Interessa-me com-preender o Estado Novo por dentro das suasinstituições. Pelo objecto de estudo que fui es-colhendo (as pescas, o mar, a economia marí-tima dirigida pelo Estado Novo), um sector dadita economia nacional profundamente pro-míscuo, acabei por ser levado a analisar não sóo sistema corporativo, mas também a institu-cionalização corporativa e a formação dassuas oligarquias burocráticas. Nesses mean-dros político-económicos, foi-me aparecen-do recorrentemente, espreitando por todo olado, uma figura relevante do Estado Novo:Henrique Tenreiro, o patrão das pescas. Na-turalmente, senti necessidade de biografá-lo,para tentar entender até que ponto esse sub-sistema de poderes foi uma construção fáticaresultante dos seus eventuais méritos políti-cos, ou se se tratou de uma concessão de Sala-zar. Há um equilíbrio tenso, difícil de discer-nir, entre a acção do indivíduo e o peso das es-truturas, entre o papel e o palco... Recorda na introdução desta biografia queos estudos contemporâneos são terreno ine-vitavelmente arriscado, em razão dos escru-tínios da memória recente, de natureza ideo-lógica nomeadamente. Quando diz que a obranão se furta ao debate, quer dizer que assu-me a subjectividade inerente à interpretaçãoda história?

Tenreiro«Foi uma figura

controversa numregime autoritário e

acabou por ser umsímbolo das

ligações incómodasda Marinha aoEstado Novo.»

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Insólito«Os cargos que desempenhou no aparelhorepressivo do regime não explicam o poder que acabou por ter.Nunca foi membro da elite ministerial,nem delfim de Salazar.»

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como uma figura incómoda. Uma Marinhaque tem uma forte consciência ética da se-paração entre o político e o militar.Em completa oposição àquela que foi a acçãode Henrique Tenreiro... Em completa oposição. Eu diria que Henri-que Tenreiro [H.T.] foi uma figura excêntricaao ethos da Marinha. Na verdade, o compro-misso subtilmente político da Marinha com oEstado Novo não foi de modo algum maiori-tário. A Marinha não foi dominantemente sa-lazarista, tinha aliás uma tradição republica-

na e até revolucionária, depois crismada revi-ralhista, que teve a sua quebra e a sua subor-dinação ao poder político depois da revoltados marinheiros de 1936 (na qual H.T. foi pro-tagonista da repressão), através de uma pur-ga conduzida pelo Estado e pelo então minis-tro da Marinha (e cunhado de H.T.) OrtinsBettencourt. Purga relativamente eficaz, co-mo que domesticou a Armada insubordina-da ao Estado Novo. Mas o silêncio oposicio-nista da maioria dos oficiais da Armada nun-ca deixou de ser um facto. H.T. acabou assim

por ser um símbolo das ligações incómodasda Marinha ao Estado Novo, tal como OrtinsBettencourt, e mais tarde Américo Tomás,um trio de amigos que se fez no gabinete mi-nisterial do ministro Ortins, em 1936. A inscrição historiográfica tem ainda as-sim zonas de subjectividade inevitáveis.Julgo que os historiadores que se dedicam aestudos de história contemporânea que pre-sumem controversos do ponto de vista dapeleja das memórias (individuais, colecti-vas, sociais) devem assumir claramente a

sua posição perante o objecto. Para o leitor,é importante que o biógrafo se revele, sejaatravés de expressões estilísticas, seja pormodos mais explícitos. Julgo que essa rela-ção entre sujeito e objecto é desejável – atéporque eu sou um cidadão que tem uma vi-são crítica do Estado Novo salazarista e cae-tanista, e essa posição reflecte-se, creio quede forma indisfarçável, na historiografiaque faço. Embora tente ser o mais neutropossível, não quero nem devo ser anódino.Quem ler esta biografia não terá dúvidas deque ela foi feita por um historiador de es-querda e não de direita.Este livro anuncia-se como um ensaio inéditosobre o papel dos poderes fácticos na cons-trução da longevidade de um regime autoritá-rio de quase meio século. Como explica a novi-dade, assim tardiamente enunciada? Quando falamos de poderes fácticos, referi-mo-nos aos poderes não-formalizados, não-instituídos. A historiografia, por tradição, pe-la natureza dominante das fontes,atenta bastante mais nos poderes ins-tituídos – nos poderes constitucio-nais e meramente executivos, nos po-deres formalizados no sistema políti-co, nos poderes sociais também. O carácter insólito de H.T. e do subsis-tema de poder que construiu, resultado facto de evidenciar uma combina-ção quase excêntrica, excessiva, entrepoderes eminentemente fácticos euns poucos poderes formais. H.T. foiimenso no mapa de poderes do Esta-do Novo. Mas, na prática, formalmen-te, H.T. não era quase nada. Era umhomem que participava em cerimó-nias públicas ao lado do presidente daRepública e dos ministros, que se in-sinuava e refazia os seus poderes, queservia a elite ministerial de diversosmodos e que dela se servia, através deprocessos oligárquicos, quase semprefácticos. Mas do ponto de vista for-mal, H.T. foi apenas delegado do Governojunto do Grémio dos Armadores de Naviosde Pesca do Bacalhau. E depois, por extensãomeramente fáctica, delegado do Governojunto dos organismos das pescas entretantocriados. Os cargos que desempenhou no apa-relho repressivo do regime (comandante dabrigada naval da Legião Portuguesa, deputa-do do partido único do regime, procurador àCâmara Corporativa) não explicam o poderque acabou por ter. Nunca foi membro da eli-te ministerial, nem delfim de Salazar. E noentanto, no desaparecimento do ditador, eleestá presente, tal como em muitos outrosmomentos. Poder inusitado, polvo de múlti-plos braços, uma teia que passava antes demais pela oligarquia corporativa. Que passa-va pelos organismos de repressão do regime,pela imprensa do regime, pelas empresaspúblicas e semipúblicas. É a ditadura demaior longevidade de quantas se formam na

Europa de entre-guerras; sobrevive à derro-ta dos fascismos após a Segunda GuerraMundial, adapta-se e resiste. Nesta sobrevi-vência e longevidade H.T. tem um papel de-cisivo. Achava-se um indefectível salazarista.O marcelismo foi, para ele e para os demaisultras, um delírio imprudente e perigoso.Que historiografia temos feito então? Por querazões contém este livro tão grande númerode revelações historicamente relevantes? A história resulta de uma tensão entre o es-quecimento e a memória. Penso que os deba-tes sobre a memória histórica do salazarismotêm estado bastante enviesados, confundin-do memória histórica e memórias sociais,que são coisas diversas, embora possam sercoincidentes. A memória mitificada do com-bate antifascista inibe muitas vezes uma me-mória plural do salazarismo. Temos dificul-dade em tomar a memória no seu sentido di-nâmico e frágil, socialmente construída ereconstruída a cada momento. E muitas ve-

Até que ponto a história é ainda hoje refém deuma certa necessidade de esquecer?Creio que neste momento a história do perío-do salazarista conhece um refluxo evidente.Há um efeito preocupante de substituição daprodução de textos históricos laboriosamen-te investigados, por toda uma literatura lightque acaba por ser maioritariamente revisio-nista – não tenho dúvidas de que presta esseserviço, mesmo que involuntariamente – o deuma relativização da memória do salazaris-mo nos seus aspectos mais sombrios. Relati-viza-se a natureza repressiva e oligárquica doregime, embora a tradição oligárquica persis-ta, hoje, na democracia que temos, parecen-do até estar em ascensão. Por outro lado, aspolíticas económicas do regime, que duranteanos se acharam promotoras do atraso eco-nómico e social do país, hoje alguns autores ecertos membros da elite política consideramque afinal foram bem sucedidas... Tudo isto sevai inscrevendo de maneira indolor. A mitifi-

cação da figura de Salazar é um factoque se constata hoje nos escaparatesdas livrarias.Para não falar do célebre programa detelevisão que elegeu Salazar como omaior português de sempre. Ou da fic-ção recente, em torno do ditador e/oudo regime, que tem sido produzida pa-ra cinema e televisão.Salazar na intimidade e esse género deficções – muitas delas promovidas pe-la televisão pública de um país demo-crático! –, voluntária ou involuntaria-mente, alimentam um mito, e inibemuma leitura inteligível e racional da-quilo que efectivamente foi o ditador ea ditadura que protagonizou. Esse tra-balho, só os historiadores o podem fa-zer. Têm, aliás, o dever profissional ecívico de fazê-lo. Julgo que a históriado Estado Novo pode ser feita segundouma agenda racional e assumidamen-te cívica, e há quem o esteja a fazer,

apesar de não haver uma federação de esfor-ços por parte dos historiadores no sentido deconstruirmos um projecto historiográfico for-te. Os franceses fizeram-no, a vários níveis. Falo de um trabalho que contribua para a edi-ficação de uma memória mais consistente,que possa depois ser consumida e absorvida,nomeadamente pela ficção, evitando os mise-ráveis guiões que se têm feito nesse domíniopara cinema. Em Espanha, há neste momen-to uma revisão crítica da memória, politica-mente patrocinada pelo Estado. Mas há tam-bém um fenómeno, de que pouco se fala, dereabilitação da memória do franquismo. Essemovimento é paralelo, tal como em Portugalo é, embora o folclore salazarista seja uma evi-dência mediática mais intensa. Aquilo que oProfessor Magalhães Godinho, o principalhistoriador português do século XX, nos temdito e redito com a sua provecta e respeitávelidade, é que a razão crítica dos historiadores é

zes a evocamos de uma forma unívoca, comose houvesse uma memória oficial, «correctae boa», sobre o Estado Novo. Não há biogra-fias de fôlego de figuras hostis à memóriaoposicionista ao Estado Novo. A única que te-mos do próprio chefe da ditadura foi feita porFranco Nogueira, um salazarista insuspeito, eque a fez monumental mas absolutamentetendenciosa – esse é um buraco negro na nos-sa historiografia, que se presta a mitificaçõesdiversas de Salazar e a inúmeras narrativas decordel sobre o ditador. Franco tem uma bio-grafia de autoria Paul Preston, uma biografiaquase definitiva, uma referência para o géne-ro biográfico histórico. Salazar ainda não te-ve essa biografia séria. Como aliás são escas-sos os trabalhos profundos sobre os salazaris-tas mais proeminentes. Mas do ponto de vistahistoriográfico e cívico, biografar H.T. é tãodigno e importante como biografar Humber-to Delgado ou o general Norton de Matos.

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B.I.Álvaro Garrido é doutorado emHistória Económica e Social pelaUniversidade de Coimbra. Profes-sor na Faculdade de Economia daUniversidade de Coimbra, ondecoordena o Grupo de HistóriaEconómica e Social, é tambéminvestigador do Centro deEstudos Interdisciplinares doSéculo XX da Universidade deCoimbra e Director do MuseuMarítimo de Ílhavo, Publicou doislivros resultantes da sua disser-tação de doutoramento: O EstadoNovo e a Campanha do Bacalhau(Círculo de Leitores, 2004) eEconomia e Política das PescasPortuguesas (Imprensa de Ciên-cias Sociais, 2006). Na área dahistória marítima contemporâ-nea tem publicado outros livros ediversos artigos em revistasportuguesas e estrangeiras edirige a colecção de temas marí-timos «Novos Mares», na EditoraÂncora. As suas investigaçõesrecentes centram-se nos temasdo corporativismo e das institui-ções económicas do regimesalazarista. Prepara um ensaiointitulado «Estado Corporativo,Economia Dirigida». Em 1995 foi-lhe atribuído o Prémio de História ContemporâneaVictor de Sá. Em 2003 foidistinguido com o Prémio de História ContemporâneaAlberto Sampaio. O lançamentoda biografia de Henrique Tenreiroserá no dia 24 de Junho, às 18h30, na Fundação Mário Soares.

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muitíssimo necessária a uma democracia frágil e cheia de porosidades revisionistas, cujo espaço público parece endogâmico.Este livro expõe de forma inédita as lógicasabsurdas (aos olhos dos estipulados éticosque regem a sociedade portuguesa demo-crática de hoje) do exercício do poder sob a di-tadura. Expondo a grandeza das suas múlti-plas e multiformes ilegitimidades, aquipersonificadas em H.T., um sujeito que apre-senta como um desprezível guardião do re-gime – imodesto, vaidoso, ambicioso claro, eaté um pouco tolo. Encara-o como um produ-to da época (fruta podre de época podre) oudevemos olhar para o que é narrado como umaviso implícito relativamente a uma culturade poder que persiste?Não tive qualquer propósito de fazer um es-crito de ilações sobre o presente. Essas rela-ções estabelecê-las-á o leitor. No meu livro,H.T. é apenas uma personagem histórica,uma figura que não se teria tornado no quefoi se não tivesse encontrado o palco ditato-rial para se exprimir. Era um homem de ori-gem modesta, pequeno-burguesa, urbana,embora com origens familiares rurais. Umhomem educado nos valores republicanos,por um pai professor de instrução primária.Torna-se, com alguma ligeireza e sincretis-mo, um republicano conservador. Presen-ciando o golpismo militar que conduziu aofim da I República, acabará por se desiludircom a república liberal e ser educado nessadesilusão pelo seu principal mentor e amigoPedro Theotónio Pereira – o homem que

que acabaria por revelar algumas qualidadesde tipo carismático. Uma das principaisquestões é tentar perceber como é que ele as-cende dentro do regime salazarista: apenaspor mérito próprio, por concessão do chefe,ou por um conjunto de circunstâncias favo-ráveis relativamente afortunadas? O contex-to em que H.T. emerge é o da Guerra Civil deEspanha, o momento em que ele se afirmacomo um primeiro-tenente febril e volunta-rista, que se põe à ordens do seu ministro evai a bordo dos navios da Armada sublevadosno Tejo a 8 de Setembro de 1936 para repri-mir a tiros de pistola os colegas de armas queeram hostis ao Estado Novo. É aí (episódiofundador do seu poder) que H.T. se faz. Nes-se mesmo ano é nomeado delegado do Go-verno junto do Grémio dos Armadores deNavios de Pesca do Bacalhau e ainda em 1936se faz, com o assentimento do ministro daMarinha e do Interior, comandante da briga-da naval da Legião Portuguesa. Ou seja, eletorna-se uma figura do regime ainda tenen-te, coisa relativamente insólita para um ofi-cial de baixa patente. A sua trajectória permanece ainda assim emcerta medida inexplicável...Creio que há duas obras fundamentais parao programa económico do Estado Novo queele realiza com invulgar eficácia, e que aca-bam por legitimá-lo junto de Salazar, o queexplica a forma como este último o tolera eprecisa dele para levantar um sistema corpo-rativo muito contestado, inclusivamente porpartidários do regime. Refiro-me ao fomen-

to económico das pescas, que teve evidên-cias de sucesso internacional, devidamenteexaltadas pela propaganda, fabricadas sim-bolicamente mas difíceis de desmentir, ape-sar da ineficiência que o sistema económicoproteccionista acabou por revelar. E sobre-tudo a chamada «obra social das pescas» (talcomo a propaganda a designou), que atingiudimensões contrastantes com as realizaçõessociais do corporativismo em domínios deactividade económica e social como a lavou-ra, a indústria, o comércio. A «obra social daspescas», ou seja, a protecção social aos pesca-dores, não teve realizações apreciáveis deprevidência (ou seguro social, como hoje lhechamaríamos), ao contrário do que a propa-ganda se esforçou por fazer crer. Mas houveuma obra de assistência aparatosa e que em

Visão «É uma figura que não se te-ria tornado no que foi se não tivesseencontrado o palco ditatorial para se ex-primir. É um produto do seu tempo.»

lhe formata as poucas ideias consistentesque assumiu, uma vez que ele próprio se re-conhecia, antes de mais, como um homemde acção. Um homem com qualidades detrabalho invulgares e com uma energia fe-bril, que não atribuía demasiada importân-cia ao plano das ideias, nem à doutrina ou àteoria. É efectivamente um produto do seutempo, na medida em que é o tempo que oconstrói, mas também ele percebe muito sa-gazmente o tempo em que desfila. Era alguém com um apurado sentido de oportu-nidade. Mas talvez isso não explique tudo. Alguém sagaz, com qualidades de oportunis-mo, voluntarismo, com uma enorme capaci-dade de trabalho e, sobretudo, de iniciativa.Um ambicioso, que não esconde uma vaida-de indomável. Um insatisfeito com o poder,

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O ritual simultaneamente nacionalista e po-pular da bênção dos bacalhoeiros não é de-finido em exclusivo por H.T., é imaginadopoliticamente por Pedro Theotónio Perei-ra, mas quem o concretiza, quem lhe dese-nha os aspectos cénicos, e sobretudo a orga-nização de massas de teor fascista (que ex-prime um fascismo catolicizado, quase

boa parte resultou da capacidade de H.T. pa-ra subtrair recursos financeiros aos diversosministérios, através da sua habilidade parafazer amigos e influências. Esses dois facto-res são os principais elementos de legitima-ção do seu poder, que a determinada alturase torna bastante incómodo, quer dentro daMarinha quer para o próprio regime, que ti-nha em H.T. um dos seus principais guar-diões. Um guardião de tal forma empenhadoque, nos anos sessenta, defendia o regimecom aquela mística de combate própria dosanos trinta, como se Portugal e o mundo nãotivessem entretanto mudado. H.T. foi também uma espécie de «ensaiador» damarcha oficial do regime, de que é exemplo aentão anual bênção dos bacalhoeiros. Este li-vro desconstrói os modus operandi da propa-ganda do Estado Novo e levanta véus que ain-da cobrem alguns mitos que perduram noimaginário colectivo português. Caso do nasci-mento do navio-hospital Gil Eannes. Não receiafazer desmoronar demasiados símbolos?Isso não me inquieta minimamente. O queme importa é interpretar a dimensão sim-bólica da construção do poder salazarista. É inevitável, e absolutamente desejável, quequalquer historiador da política, da econo-mia, das instituições salazaristas, valorize adimensão simbólica desse poder. O regime,pela sua longevidade, recebeu muito preco-cemente a fertilização do discurso simbóli-co e da simbolização de tipo historicista,quer através da chamada «política do espíri-to» de António Ferro (que foi uma tentativade definir uma política cultural oficial e afei-çoada aos valores do Estado Novo), queratravés de processos menos sistémicos, casodos rituais nacionalistas de exaltação do re-gresso de Portugal ao mar, de que a campa-nha do bacalhau foi símbolo, e que tiveramuma expressão também ela muito forte.

beatificado) é efectivamente H.T. A bênçãodos bacalhoeiros realiza-se ininterrupta-mente entre 1936 e 1974. Trata-se de um ri-tual nacionalista impressionante, que cons-titui o paroxismo da construção simbólicada ideia do regresso de Portugal ao mar. Regresso de certa forma ainda aguardado, naconstrução identitária simbólica a que tende-mos a dedicar-nos...Do ponto de vista da lógica historicista comque o discurso da propaganda se constrói,Portugal teria tido o seu período douradocom as Descobertas, quando um pequenopaís se fizera grande por meio das suas coló-nias, depois designadas províncias ultrama-rinas. A pesca longínqua do bacalhau insi-nuava, nos seus aspectos épicos ( já que osdramáticos eram recalcados simbolicamen-te), essa pretensão de grandeza e de supera-ção de todo um povo. Povo, Nação e Estado…A frota de navios era um símbolo de sobera-

nia nacional, e de reposição da autoridadedo Estado após a sua erosão da república li-beral. Tal como o foi o navio-hospital GilEannes, convertido num símbolo das preo-cupações sociais do regime português, dacapacidade de realização económica da di-tadura portuguesa e das preocupações so-ciais que o Estado português teria relativa-

versal à natureza dos regimes políticos quePortugal conheceu na sua idade contempo-rânea. Sabemos, objectivamente, pelos es-tudos que têm sido feitos, que o Estado No-vo foi um regime dominantemente oligár-quico, uma ditadura que consentiu ealimentou oligarquias políticas à volta dochefe, do Governo, das elites ministeriais, etambém das chefias corporativas de carác-ter económico, como é o caso de Tenreiro.Seja como for, não creio que as razões queexplicam uma tradição oligárquica forte se-jam por assim dizer culturais; não acreditonuma fatalidade cultural portuguesa, ou nu-ma propensão para regimes autoritários ouoligárquicos. Essa tradição oligárquica esta-rá relacionada com uma construção defi-ciente e mal conseguida da separação entreo público e o privado. Quanto a isso, talvezesta biografia elucide algumas questões – oucomplexifique...Henrique Tenreiro surge neste livro como umherói romanesco, como aliás semprese quis a si mesmo. Protagonista deuma vida aventurosa, de é exemplo afuga no 25 de Abril por uma porta fal-sa do Ministério da Marinha. Ou a suasaída do país a salto, à semelhança doque faziam os opositores ao regimeque perseguiu. É impressão minha ouesta faceta juvenil do biografado con-quistou-o?Não fiquei friamente imune ao bio-grafado. Mantive, porém, uma dis-tância sanitária com a personagem,admito-o. Para ser capaz de o anali-sar no palco político, tentei não des-fazer a relação entre o indivíduo e aestrutura política onde actuou. Fo-ram preciosos, para a construçãonarrativa, certos episódios que o bio-grafado me ofereceu. É uma perso-nagem cujos traços psicológicos fica-ram expostos no seu próprio discur-so como na sua acção. A vida privadade H.T. só me foi útil na medida em que per-mitiu ajudar a explicar a sua dimensão pú-blica. Do ponto de vista pessoal e privado,Tenreiro é uma figura relativamente desin-teressante, um homem absolutamente vul-gar, de uma vulgaridade até excessiva. Osepisódios romanescos ajudam a estabelecercorrelações entre o privado e o público e anão perder de vista a acção política. Umabiografia semiestruturalista é sempre con-duzida pelo desfilar do indivíduo no seutempo. Uma das fontes de que me socorri fo-ram umas memórias inéditas, dactilografa-das pelo próprio H.T., documentação quefaz parte do espólio de família. Não são me-mórias particularmente interessantes, nemtão-pouco bem escritas, são porém uma in-formação fundamental para acedermos adeterminados dados na primeira pessoa,que de outra forma não teríamos. São me-mórias escritas com grande dissabor e emo-

ção, provavelmente nos anos oitenta, noBrasil, apontamentos que revelam uma lei-tura de si próprio que não evita o elogio, enem sequer um sentido auto-hagiográfico.Contêm, de resto, erros e incongruênciasfactuais. Estamos a falar de uma pessoa queescreveu muito pouco, de um homem rela-tivamente sincrético ao nível das ideias, sen-do que ele próprio reconhece que a sua obraé ou foi aquilo que fez e não aquilo que disseou escreveu. H.T. morreu no Brasil em 1994, e o funeral foi ignorado pela Marinha e pelo Governo. Esta bio-grafia reinscreve-o historicamente, outorgan-do-lhe o julgamento que acabou por não ter?É provável, mas não é algo que me preocu-pe. Há um ou dois factos históricos funda-mentais: a memória de H.T. depende muitoda memória construída aquando do seu jul-gamento político, dado que não houve qual-quer processo judicial que tenha resultadoem julgamento ou sentença, e é no processo

res, e de alguma opinião política de direita,que tende a considerar apenas as suas quali-dades de homem de acção, a obra. Creio quesendo objecto de uma biografia por um his-toriador profissional, num editor que garan-te ao livro uma ampla divulgação, H.T. seráefectivamente reinscrito no espaço público.Mas não creio que o juízo histórico venhasubstituir o julgamento judicial que ele efec-tivamente não teve. A História não é um tri-bunal, não se destina a julgar, é uma opera-ção crítica, metodicamente estruturada,que visa interpretar o passado. Apenas isso.Esta entrevista fica registada num lugar de me-mória histórica e simbólica, antigo «escudo doreino», antigo cárcere e prisão política, e tam-bém palco da famosa sublevação de que já fa-lámos atrás [a revolta dos marinheiros de 1936].A escolha de São Julião da Barra é simboli-camente relevante na medida em que paraalém de todas as funções que teve ao longoda história, na acção individual de Tenreiro

esteve ligada ao momento-chave dasua ascensão política no âmbito doregime salazarista. São Julião daBarra foi um dos fortes que reprimiua revolta dos marinheiros de 8 de Se-tembro de 1936. A construção sim-bólica é interessante porque a me-mória histórica faz-se muito da me-mória dos lugares e da cartografia doespaço. Quando avistamos o Tejo efalamos com pessoas de uma certaidade, que viveram em Lisboa umaboa parte da sua vida, quase todos re-cordam, não por vivência directamas por transmissão geracional, acélebre revolta dos marinheiros de1936, que é muito mais presente eevocada na memória social do quena memória histórica, onde pratica-mente não existe. Existem versõesdesencontradas de um episódio quefoi objecto de uma peleja memorial,tentando o Partido Comunista Por-

tuguês reclamar a paternidade da revolta,versão que apenas parcialmente corres-ponde à verdade. A própria Marinha temversões desencontradas desse episódio,uma sedição jugulada que se tem prestadoa apropriações legitimadoras da memóriados tempos agitados da Guerra Civil de Es-panha, cujos desfechos também se jogaramem Portugal. Tenreiro esteve muito ligadoa esse processo, nomeadamente no apoioque prestou ao chamado Alzamiento, a ope-ração que acabou por resultar na vitória dastropas lideradas por Franco.«

AGRADECIMENTOSA nm agradece ao Ministério da Defesa Nacio-nal a autorização para fotografar ÁlvaroGarrido no Forte de São Julião da Barra, bemcomo a simpatia com que nos recebeu, napessoa de Alexandra Abreu Loureiro/Gabinetede Imprensa MDN.

mente às suas tripulações de pescadores depesca longínqua. A construção desses sím-bolos acaba por ser desconstruída e exami-nada neste livro, na medida em que Tenrei-ro é actor e construtor de todos esses episó-dios. É ele quem inventa a ideia de construirum navio-hospital impondo-a aos ar-madores, que em regra não queriam pagar adespesa social da coisa corporativa. Esseprocesso descrevi-o nesta biografia, assimcomo a forma promíscua como H.T. procu-rava dirigir a iniciativa privada, não tendo oEstado participação de capital em empresasque continuavam a ser de direito privado. Algo que não deixa de ser-nos familiar...Esse universo promíscuo, essa difícil e malconseguida separação entre o público e oprivado certamente que ainda hoje se veri-fica. Mas essa reflexão ficará para os leito-res. A persistência da tradição oligárquicaem Portugal é, penso, relativamente trans-

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revolucionário, sobretudo durante o PREC[processo revolucionário em curso] e osmais de vinte meses em que permaneceupreso, que a memória de Tenreiro (associa-da à condição de símbolo do nepotismo sa-lazarista) deixa as suas marcas mais incisi-vas. Aimagem que a maioria das pessoastem dele foi, em boa parte, elaborada querdurante o Estado Novo quer sobretudo du-rante o PREC. Há aqui dois discursos me-moriais desencontrados: a memória de es-querda, dominante, que tende a considerarTenreiro uma eminência parda do salazaris-mo, um símbolo da corrupção oligárquicado sistema corporativo, apropriando nestediscurso expressões que faziam parte do in-quérito judicial que lhe foi movido e cujo se-gredo de justiça foi constantemente violadodurante aquele período, sendo discutido noscafés e nos jornais; e a memória elogiosa, dealguns dos antigos colaboradores, armado-

Pátria«A campanha do bacalhaufoi símbolo dos rituais nacionalistas deexaltação do regresso de Portugal aomar,como a bênção dos bacalhoeiros.»