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Vastas confusões atendimentos imperfeitos

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Ana Cristina Figueiredo

Vastas confusões e atendimentos imperfeitos A CLÍNICA PSICANALÍTICA NO AMBULATÓRIO PÚBLICO

3 3 E D I Ç Ã O

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© Copyright Ana Cristina Figueiredo, 1997 Direitos cedidos para esta edição à DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.

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Revisão Rosa do Prado

Editoração

Carlos Alberto Herszterg

Capa Gustavo Meyer Desenho de Lula

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Figueiredo, Ana Cristina F488v Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicana­

lítica no ambulatório público / Ana Cristina Figueiredo. — Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997

Inclui bibliografia ISBN 85-7316-128-0

1. Psicanálise. 2. Assistência em hospitais públicos. I. Título.

CDD 616.8917 97-1389 CDU 159.964.2

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da lei 5.988.

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A meu pai que me deixou

vontade de ensinar e o amor pela

universidade

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Sumário

Ao Leitor 9

/ O que é feito da psicanálise 13

1. A polêmica da psicanálise 13 2. O campo psicanalítico em questão 17

3. A psicanálise no ambulatór io: um novo contexto? 30

/ / Interrogando o ambulatório 35

1. Sobre a pesquisa: uma part icipação observante 35

2. Sobre os serviços 41 2.1 Recepção, triagem c encaminhamento 42 2.2 The dream team: o trabalho em equipe 57 2.3 O tratamento: terapias e pedagogias 65 2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas 85

3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório 97 3.1 Dinheiro, pra que dinheiro 97 3.2 Deitando o olhar sobre o divã 108 3.3 Que tempo para tratar? 115

/ / / Por uma psicanálise possível 123 1. Evocando a "bruxa metapsicologia" 123

1.1 Sobre a realidade psíquica 126 1.2 Sobre a transferencia 137 1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura 149 1.4 Sobre o desejo do analista 162

2. Para concluir: o psicanalista que convém 168

Bibliografia 179

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Ao Leitor

A proposta de tratar da clínica psicanalítica no ambulatório público, que resultou em uma tese de doutoramento, é fruto do trabalho desenvolvido no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que congrega as atividades de ensino, pesquisa e assistência. Minha atuação como docente tem se pautado na formação de profissionais que se propõem a desenvolver um trabalho clínico referido à psicanálise voltado para o atendimento ambulatorial em instituições públicas de saúde. Minha função é transmitir os fundamentos teóricos da psicanálise e acompanhar o cotidiano desse trabalho clínico realizado pelos alunos, prioritariamente no ambulatório, podendo ser estendido para outros se­tores, como as enfermarias e o hospital-dia.

A idéia de desenvolver uma pesquisa junto aos profissionais — psica­nalistas, psicólogos e psiquiatras, vinculados à rede pública de saúde — 'teve como objetivo ampliar o leque de informações sobre as possibilida­des e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados.

De posse de um material heterogêneo sobre a estrutura e o funciona­mento dos serviços, sobre o perfil dos profissionais e seu trabalho clíni­co, pude equacionar as diferenças. Apresento relatos de experiências e de casos clínicos como exemplares — no duplo sentido de amostra e paradigma — da complexidade da clínica, de seus impasses e soluções em relação às possibilidades do trabalho psicanalítico.

Minha proposta, no entanto, não se esgota em descrever e analisar as diferentes situações clínicas mais ou menos características do trabalho psicanalítico. Antes, descrevo para prescrever e prescrevo descrevendo. Meu trabalho é, a um só tempo, descritivo e prescritivo. Desse modo,

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articulo a pesquisa com o ensino, sabedora de que a transmissão da psicanálise não se reduz a seu ensino. O que prescrevo é um modo de conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista, para que se possa identificá-la e praticá-la a partir do percurso da cada um, situando-a frente às demais modalidades do conjunto de psiquiatria, a saber: a psiquiatria médica, as psicoterapias e as práticas em saúde mental.

Tomo a psiquiatria como um conjunto, porque entendo que ela deve comportar essas práticas distintas, incluindo a psicanálise como um de seus componentes. Em princípio, a psicanálise está incluída na categoria das psicoterapias. Mas é importante que se estabeleça sua diferença para não diluí-la ou mesclá-la com variações que descaracterizem sua especi­ficidade. Assim, a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de psicoterapia, e sim diferenciá-la das demais psicoterapias. Entretanto, considero que não é imprescindível instituir a psicanálise como mais uma especialidade na lista de ofertas dos serviços.

Primeiro, porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudes­sem praticá-la. Quem designaria? Segundo, porque, além de não dizer quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizações que, na melhor das hipóteses, decepcionam e, na pior, aumentam a resistência tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa atopia, um estar 'à sombra', pode ser salutar como lugar para o psicana­lista no trabalho institucional. Acredito que, ao longo do texto, minha posição se explicitará melhor.

Outro ponto a ser discutido é a escolha do ambulatório como local para o desenvolvimento da pesquisa. Todos os profissionais pesquisados desenvolvem seu trabalho nos ambulatórios. Há alguns casos em que trabalham também em enfermarias, na psiquiatria ou no hospital geral, ou nas chamadas estruturas intermediárias na psiquiatria — hospitais-dia e centros de atenção psicossocial. O ambulatório é, sem dúvida, o local privilegiado para a prática da psicanálise porque faculta o ir-e-vir, man­tém uma certa regularidade no atendimento pela marcação das consultas, preserva um certo sigilo e propicia uma certa autonomia de trabalho para o profissional.

Uma das críticas feitas freqüentemente ao ambulatório, especialmen­te pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática, com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço

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público. Penso justamente ao contrário. O ambulatório não é um simu­lacro do consultório; é o próprio consultório tornado público. Nesse sentido, o termo público adquire uma significação ampla. Primeiro, para designar a rede estatal de serviços que oferece atendimento gratuito à população na área da saúde, o serviço público. Segundo, como facultado ao público em geral, qualquer pessoa tem o direito de ser atendida. Terceiro, e mais importante, é a idéia de tornar público, visível, e deixar transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como privativo de alguém. Por mais privatizado que seja o funcionamento de um ambulatório, o volume de pessoas que circulam, as formas de registro e as várias relações aí estabelecidas tornam sua marca de público inapa-gável. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais público.

Se a clínica psicanalítica requer uma certa intimidade, discrição e sigilo, isto não quer dizer que sua prática deva se perder no intransmis-sível. O tornar público a que me refiro, no que diz respeito à psicanálise, é fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clínica com seus impasses e sucessos. É também produzir trabalhos, estudos de casos e pesquisas para redimensionar o alcance da teoria em relação à experiência clínica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitário é bem propício, assim como as associações dc psicanalistas.

Definido o objetivo do trabalho, passo à apresentação do seu conteúdo. O primeiro capítulo — "O que é feito da psicanálise" — apresenta

uma breve discussão sobre a difusão da psicanálise, e, ao enfocar o ambulatório, discute os obstáculos à psicanálise, por um lado, em relação à clientela e, por outro, em relação às outras práticas na psiquiatria. Em seguida, apresenta a heterogeneidade do campo psicanalítico como pro­blemática para sua definição. Na última parte, discute a psicanálise no contexto do ambulatório, propondo uma redefinição do termo 'contexto'. Nesse ponto, recorro às concepções de contexto e recontextualização propostas por Richard Rorty e Jacques Derrida para desfazer equívocos. O que devemos deduzir é que não há duas psicanálises, uma para o consultório e outra para o ambulatório. Minha referência primordial é Freud, considerando que a psicanálise não pode ser dissociada do seu fundador. Também recorro à leitura de Lacan e às suas contribuições conceituais para resolver impasses deixados por Freud, abrindo novas possibilidades de recontextualização da psicanálise no próprio campo da teoria com ênfase na função do analista.

O segundo capítulo — "Interrogando o ambulatório" — apresenta a pesquisa sobre o ambulatório, recortando as principais etapas do trabalho

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clínico como o atendimento inicial (recepção ou triagem) e o encaminha­mento, o trabalho em equipe e o tratamento propriamente dito. Em seguida, discuto as peculiaridades dos profissionais 'psi' (psiquiatras, psicólogos e psicanalistas) e proponho três questões para a clínica psica­nalítica no ambulatório sobre os principais pontos em que este difere do consultório: a questão do dinheiro, onde é proibido cobrar; a questão do divã, onde este praticamente não existe; e a questão do tempo, onde a burocracia dos serviços e a peculiaridade da clientela podem gerar obs­táculos.

O terceiro capítulo — "Por uma psicanálise possível" — apresenta o que considero as condições mínimas para se definir a clínica psicanalíti­ca, em sua diferença para com as demais psicoterapias, como uma clínica da realidade psíquica que condiciona a fala ao movimento da transferên­cia dirigida ao analista que, por sua vez, tem na interpretação e numa relação peculiar com o tempo instrumentos para o manejo do tratamento. Além disso, apresento uma condição que marca fundamentalmente o trabalho do analista definida como seu desejo, que difere do desejo de um sujeito. Ao final, concluo traçando o perfil do "psicanalista que convém" para levar adiante o trabalho psicanalítico nos serviços públicos de saúde, esse mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos.

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O que é feito da psicanálise

1. A polêmica da psicanálise

A psicanálise, tal como Freud a concebeu, sempre foi praticada em con­sultórios privados, e os psicanalistas jamais dependeram de uma formação universitária ou de órgãos oficiais de reconhecimento da profissão para exercerem sua clínica. Tudo sempre se passou de modo a manter a forma­ção e a prática psicanalíticas numa espécie de extraterritorialidade, como ironizou Castel (1978), em relação às outras profissões liberais e às de­mais práticas médico-psiquiátricas. Essa peculiaridade, no entanto, não impediu que a psicanálise se difundisse, expandindo sua área de influên­cia. A primeira vista, poderíamos dizer que a psicanálise veio, viu e venceu. Ocupou parte do território das instituições psiquiátricas como, por exemplo, as comunidades terapêuticas; provocou mudanças nosográ-ficas, diagnosticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psico-dinâmica; instrumentou práticas psicoterapêuticas diversas, difundiu-se para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, através da mídia, a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes médias urbanas sob a forma de uma 'cultura psicanalítica'. Esse fenômeno se deu de modo desigual e em diferentes períodos, principalmente nos EUA (Nunes, 1984), na França (Turkle, 1970) e no Brasil (Martins, 1979; Santos, 1982; Figueiredo, 1984e 1988; Figueira, 1985; Russo, 1987). A psicanálise teria se tornado ubíqua e sempre haveria um ponto de vista psicanalítico para tudo. Em parte, isso é inegável, e alguns estudiosos apontam para os efeitos, muitas vezes nefastos, dessa psicanalisação do cotidiano sobre a própria clínica psicanalítica (Figueira, 1985b).

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O que interessa, entretanto, não é julgar se a difusão da psicanálise é boa ou má em seus efeitos, mas atentar para o fato de que esse fenômeno não se deu de modo tão efetivo no que diz respeito ao exercício sistemá­tico da clínica psicanalítica nas instituições médico-psiquiátricas. Refi­ro-me particularmente ao caso brasileiro, mas não creio que sejamos a exceção.

Especulando sobre possíveis causas, destaco das argumentações cor­rentes dois aspectos distintos, porém complementares: o da demanda de atendimento e o dos próprios dispositivos de tratamento.

Quanto ao primeiro, a demanda pode ser de atendimento médico em geral ou de psicoterapia — aqui costuma-se incluir a psicanálise. Há vários estudos discutindo a questão da diferença sociocultural e da con­seqüente discrepância entre os pontos de vista do terapeuta e do paciente sobre as representações de doença, tratamento e cura. Além de autores estrangeiros como Boltanski (1979) e Bernstein (1980), autores brasilei­ros como Lo Bianco (1981), Duarte & Ropa (1985), Duarte (1986), Bezerra (1987) e Costa (1989a) trataram da questão apontando para a necessidade de relativizar valores e concepções de subjetividade e cau­salidade psíquica, quando se trata de atendimento psicoterapêutico à população de baixa renda que aflui aos serviços públicos de saúde.

Em primeiro lugar, não devemos reduzir a complexidade do disposi­tivo psicanalítico — isto talvez não sirva para outros modelos de psico­terapia — aos ideais do terapeuta, enquanto representante da classe média escolarizada. Se os ideais de cura do terapeuta são pautados por seus próprios valores, sua função, no entanto, não deve sê-lo. O que ele acha que deve ser há que ser posto em suspenso e as condições de analisabilidade não devem se orientar exclusivamente pelos conteúdos mais ou menos psicologizados da fala do cliente. E claro que um certo patamar de individualização deve ser atingido para que o sujeito possa desenvolver alguma reflexão sobre si, o que também é parte do processo analítico. Isto sem mencionar os casos de pacientes psicóticos de quem não podemos abrir mão de tratar, ou pelo menos tentar. Estes estariam bem mais distantes do ideal de analisando-padrão.*

Sobre o problema das diferenças socioculturais impeditivas para se estabelecer um processo psicanalítico temos, no limite, um curioso exemplo de algumas experiências bem sucedidas no trabalho de Ortigues, M.C. & E. (1989), realiza­do na década de 1960, no Senegal. Ali se viveu a experiência de ura entrecruza-mento de três culturas: o tradicional sistema tribal, onde a possessão pelos ancestrais e a feitiçaria marcam os rituais e as relações intersubjetivas; a cultura

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Em segundo lugar, é importante frisar que o suposto modelo univer-salizante da psicanálise refere-se, que deve ser entendida como um con­junto de conceitos articulados como 'universais' — algo que não é em si um defeito teórico mas pré-condição de um sistema — suficientemente operacionalizáveis para serem aplicados a uma demanda diversificada. Não se trata de defender a posição ingênua de 'psicanálise para todos' , mas de apostar numa maior aplicação do dispositivo psicanalítico que permita seu exercício além dos consultórios privados com clientes estrei­tamente afeitos à cultura 'psi ' . E, mais ainda: se fazer psicanálise é produzir mais cultura psicanalítica, só nos resta a escolha de recuar diante dessa oferta em nome de uma idealização purista das diferenças culturais ou assumir que esse atravessamento cultural pode ser benéfico para todos aqueles que embarcam nessa aventura.

O segundo aspecto refere-se aos dispositivos de tratamento que con­correm entre si, tornando-se mais ou menos hegemônicos, de acordo com variáveis histórico-políticas que não serão discutidas aqui. O que temos observado, mais recentemente, é o recrudescimento de uma ten­dência na psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso em nome de uma maior rapidez e eficácia dos resultados. Os próprios crité­rios de classificação diagnostica apontam para uma fragmentação das grandes categorias clínicas de neurose e psicose para compor um mosai­co de síndromes variadas e de transtornos da personalidade. Produzem, assim, uma combinatória de sinais e sintomas, com base em substratos químicos e neuro-anatômicos, rastreáveis por aparelhos que detectam alterações antes imperceptíveis ao olhar clínico.

Tudo isso pode ser muito bom para os tumores e lesões do sistema nervoso central, mas mesmo os comportamentos acabam submetidos a essa varredura, e novas categorias nosológicas são formuladas no intuito de ampliar o alcance do tratamento medicamentoso. Temos na fobia social, na síndrome do pânico e no distúrbio obsessivo-compulsivo três bons exemplos. Nesse cenário, a psicoterapia ocupa um lugar secundário ou acessório, sendo que as psicoterapias cognitivas parecem atender melhor à proposta de efeitos rápidos na remissão de sintomas, além de

islâmica que pratica o monoteísmo e o culto ao livro sagrado e se apresenta como mais evoluída em relação ao sistema tribal; e a cultura européia de língua francesa que atua maciçamente no processo de escolarização e medicalização, e representa a dominação estrangeira como um ideal de evolução civilizatória.

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serem consideradas mais objetivas, passíveis de estudos de follow up, estatísticas etc. Se, de fato são mais eficazes, não nos compete responder. Mas, certamente, dependem de variáveis que não são consideradas em seu próprio método, ou seja, daquilo que Freud chamou de efeito da sugestão que está na base dos fenômenos da transferência.

O que interessa não é comparar modelos, ou analisar um determinado modelo a partir de outro, mas apenas atentar para esses dispositivos que se apresentam com a bandeira da eficácia e da rapidez. A psicanálise, nessa visão, torna-se praticamente inútil. Considerada um processo de­masiado longo, não-objetivável, que exige uma formação de técnicos muito complexa e igualmente prolongada, a solução possível foi encur­tá-la na chamada psicoterapia breve. A meu ver, um breve contra a psicanálise. Da alquimia psicanalítica às bombas químicas de rápidos efeitos (colaterais?) de longa duração. Eis o paradoxo: pacientes que permanecem freqüentando os ambulatórios, por um longo tempo, em busca de receitas de ansiolíticos e/ou antidepressivos. Por que não a longa duração de um tratamento psicanalítico?

Quanto à formação profissional, a dos psicanalistas não é tarefa sim­ples. A universidade não é o lugar recomendado ou suficiente, embora este não seja um bom motivo para se abandonar o projeto. A universidade não deve se furtar a este desafio, mesmo admitindo que estudar psicaná­lise e ter supervisões clínicas não bastam para fazer do aluno um psica­nalista. Diríamos que é um bom caminho andado. Mas isso pode ser um desvio da questão. Não me proponho a discutir a psicanálise na univer­sidade e sim as possibilidades e limites da clínica psicanalítica nos serviços de saúde da rede pública em geral.

Talvez pareça uma pretensão fútil, uma veleidade de psicanalista, insistir na defesa de um aparato tão sofisticado, quando as instituições de saúde atravessam uma crise tão séria, com sua existência ameaçada pelo descaso das autoridades públicas, tanto pelo profissional quanto pela população usuária. No entanto, não devemos recuar, uma vez que o trabalho de ensino, pesquisa e qualificação acadêmica deve estar sempre à frente das condições efetivas de sua realização. Especialmente agora, quando se consolida uma ampla política de combate à estrutura asilar de cronificação da doença mental, urge que mantenhamos viva a discussão sobre o tratamento psicoterapêutico em regime ambulatorial, o que, cer­tamente, pode dar suporte ao projeto de desenclausuramento dos pacien­tes psiquiátricos. Ao trabalho político e social deve-se somar o trabalho clínico. É preciso revisitar o funcionamento inercial dos ambulatórios

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sem desfazer de seu potencial terapêutico. Além do mais, penso que o dispositivo psicanalítico não foi posto à prova o suficiente para ser descartado como ineficaz ou impróprio para atender à população que procura os serviços públicos.

2. O campo psicanalítico em questão

Ao examinar os pressupostos teóricos da psicanálise, logo me deparo com problemas em sua definição. Do que se trata quando se fala em psicanálise?

Esta é uma preocupação de vários analistas de diferentes orientações e há um certo consenso em admitir que a existência de concepções diversas de psicanálise gera uma dispersão irreversível na produção con­ceituai e, conseqüentemente, nas concepções do trabalho clínico.*

São reconhecidos, pelo menos, três modelos pregnantes que compõ­em o mosaico do campo psicanalítico: o kleinianismo e suas variações, conhecido como escola inglesa; a psicologia do ego como fruto de uma 'americanização' da psicanálise liderada por imigrantes europeus; e o movimento lacaniano conhecido como escola francesa.

Desenvolverei brevemente cada um, situando-os em seu aparecimen­to na história e em seus fundamentos metapsicológicos, nosológicos, de tratamento e cura.

A escola kleiniana, que se estabeleceu eminentemente na cultura britânica, é herdeira do pensamento de Karl Abraham, mestre e analista de Melanie Klein, e inaugura a clínica infantil.

Quanto à metapsicologia, a referência inicial em Abraham é à primei­ra fase da démarche freudiana, especialmente dos textos de 1915; em seguida, ao ciclo maníaco-depressivo, em particular à melancolia, aos estádios pré-genitais e aos processos de incorporação e desenvolvimento da relação de objeto nas diversas modalidades genéticas da ambivalên­cia. Seu pensamento é centrado na dialética da ambivalência primitiva e

Destaco aqui alguns autores como Mannoni (1982, 1989), Mezan (1988a, 1988b, 1988c), Bercherie (1988), Berlinck (1991), Bezerra (1991), Lo Bianco (1991), Kernberg (1994) que discutem o problema numa perspectiva histórico-política, seja priorizando o confronto entre modelos ou articulando-os com as especificidades socioculturais dos diferentes contextos em que se desen­volveram.

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da totalização do objeto, e essa é a matriz de Melanie Klein. Num segundo momento, a nova dualidade pulsional e a segunda tópica freu­diana constituem os conceitos de base do modelo kleiniano. Um certo antropomorfismo presente em Freud fundamenta a concepção do con­junto da atividade psíquica como um mundo interno de fantasias atemo­rizantes, que fomentam o conflito ambivalente, a partir do inatismo das pulsões de vida e morte, da precocidade do superego sádico e avassala­dor, da pregnância das imagens corporais e dos processos de incorpora­ção e rejeição dos objetos parciais.

As diferentes modalidades pulsionais que constituem o funcionamen­to psíquico e seus objetos internos sucederiam-se assim: inicialmente, há a posição esquizo-paranóide, dominada pelo ódio, pela retaliação perse­cutória e pela idealização; em seguida, vem o equilíbrio entre a culpabi­lidade depressiva autodestrutiva e a onipotência reparadora da defesa maníaca; e, por fim, o predomínio da integração objetai com os meca­nismos de reparação, a assunção do Édipo e a instauração da saúde mental. Para um estudo mais detalhado, remeto o leitor ao trabalho de Jean-Michel Petot (1988).

Segundo Bercherie (1988), apesar de este encadeamento de posições remeter a uma reconstrução genética da vida infantil à adulta, sua apre­sentação fenoménica tem um caráter atemporal e mesmo transcendental, em que se destaca a simbiose do sujeito com o objeto como um estado de confusão de limites entre o interior e o exterior. A personalização do vivido da fantasia do seio e do falo, por exemplo, se apresenta mais como uma fantasmagoria, na qual o objeto externo não passa da externalização do objeto interno. O objeto real tem um papel subsidiário de agravação ou correção da fantasia.

Quanto à nosología, Klein não produz exatamente um modelo. Vários críticos encontram nela uma tendência à psicotização da estrutura subje­tiva da fase esquizoparanóide, a partir da noção de ambivalência em sua forma mais primitiva. Para Bercherie, o kleinismo considera a totalidade da estruturação subjetiva e sua patologia mais à luz da fenomenologia dos mecanismos de introjeção, rejeição, denegação, onipotência, cliva­gem etc., do ciclo maníaco-depressivo, enfatizando o aspecto fundamen­talmente dual do funcionamento psíquico. A força inata das pulsões de vida e morte contradiz em parte sua própria formulação da presença precoce do conflito edípico que, pelo menos em Freud, tem uma compo­sição triádica.

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Quanto ao tratamento e à cura, a ética kleiniana enfatiza o amor como fator positivo (pulsão de vida) e o ódio como fator negativo (pulsão de morte/destrutiva) no remanejamento do universo da fantasia, concebido como interno, endógeno, e desemboca numa postura clínica extrema­mente crítica, culpabilizante, pondo o analisando, de certa forma, sob suspeita. A transferência seria a cxternalização do mundo interno do sujeito que revela sua profunda dependência regressiva e ambivalente. Cabe ao analista, em sua perspicácia, exercer uma atividade quer expli­cativa, para aliviar os estados de angústia emergentes, quer descritiva da própria situação transferencial, numa espécie de tradução simultânea do discurso no 'aqui e agora' para o referencial teórico que subsidia a interpretação. A tática principal é explicitar para o analisando suas defe­sas narcísicas contra a integração de sua ambivalência e a assunção de sua dependência dos bons objetos. Essa espécie de vigilância constante submete o funcionamento psíquico a uma certa censura moral, dificul­tando uma mudança subjetiva frente ao analista e, conseqüentemente, a dissolução da transferência (Little 1951; Figueiredo 1992).

Numa etapa posterior, o kleinismo é alçado a um nível mais sofisti­cado de metapsicologia e criatividade clínica. Entre seus discípulos, destacam-se Bion, o nome principal, e Meltzer, seu epistemólogo, que dão uma especial atenção ao conceito de identificação projetiva, formu­lado desde 1946. Privilegiam seu aspecto interacional como instrumento de clarificação da comunicação inconsciente do paciente com o analista, nunca ao contrário, e ampliam a exploração dos fenômenos da contra-transferência e da psicose. A contratransferência passa a ser uma referên­cia central para a interpretação, a bússola do analista. Este se coloca mais como um continente das projeções do analisando que o afetariam 'inter­namente' e não apenas como uma suporte dessas projeções. A técnica interpretativa adquire uma coloração subjetiva, onde a expressão do vivido pessoal do analista tem mais peso do que o material clínico propriamente dito (Garrigues e cois. 1987). Na observação de Bercheric, por um lado, esse viés de intuição do analista atingido diretamente pelas projeções do analisando, pode ter a função de esvaziar o excesso de saber do analista presente nas interpretações-traduções do primeiro momento do kleinismo. Por outro, transformar o vivido do analista em sua bússola para interpretação, pode gerar distorções ainda mais graves.

De um modo geral, a teoria kleiniana atinge um nível de conceituali­zação interacional no campo dos processos de simbolização, mas ainda deixa de lado a relação desses processos com a linguagem como institui-

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ção social, mantendo a mão única das produções psíquicas da criança para o adulto e do paciente para o analista.

A psicologia do ego, patrocinada, em seus primórdios, por Freud através de sua filha, Anna Freud, e dos membros mais influentes do grupo vienense, se desenvolveu principalmente nos EUA. Desdobrando-se a partir do modelo freudiano, acentua a inspiração funcionalista do ego adaptativo. Heinz Hartmann é considerado seu fundador, com o livro Psicologia do eu e o problema da adaptação, publicado em 1939. Seu trabalho desenvolve a proposta de Anna Freud em O ego e seus mecanis­mos de defesa, de 1936. Posteriormente, são absorvidas certas concep­ções kleinianas dando origem a um modelo híbrido.

Quanto à metapsicologia, suas principais características são a rejeição do conceito de pulsão de morte, substituído por uma pulsão de agressão (uma espécie de segunda pulsão de vida com caráter um tanto negativo); a apreensão bastante biologizante da atividade psíquica com ênfase num modelo genético; e o contato com a psicologia cognitiva experimental. Daí a valorização da observação de bebês. O livro O primeiro ano de vida do bebê de René Spitz, publicado em 1958, é uma referência.

O ego é concebido como uma instância de adaptação externa e síntese interna que se diferencia funcionalmente do id pelos aparelhos perceptivo, motor e cognitivo, canalizando as energias pulsionais selvagens do id em descargas regradas, adaptadas às necessidades da realidade-ambiente. Essa realidade se define como sendo de ordem relacional e social, indu­zindo o analista a um interesse constante pelas especificidades sociohis-tóricas do ambiente, pelo culturalismo e disciplinas sociológicas afins. As publicações de Erik Erikson no início da década de 50, como Identidade, juventude e crise e Infância e sociedade, são um bom exemplo.

Quanto à nosologia, esta assenta-se sobre um tripé. A neurose, onde um ego estável tenta se adaptar às exigências de um superego sádico, pré-genital, ou às pulsões do id que o transbordam. Os estados borderli-ne, em que ego e objeto estão separados, mas submetidos aos golpes de uma dinâmica pulsional, ameaçadora e incontrolável, clivada em amor idealizado versus hostilidade persecutória (nesse ponto, o recurso a Me­laine Klein é incontestável). E a psicose, onde há uma desagregação das estruturas psicológicas e de suas representações de objeto, principalmen­te por uma liberação de agressão livre desneutralizada, vitória da violên­cia pulsional sobre o ego, do pólo autístico ao pólo fusionai simbiótico de estrutura oral.

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Quanto ao tratamento, a transferência constitui seu meio fundamental como uma dinâmica psíquica em suas modalidades patológicas e arcai­cas, que provocam uma distorção projetiva da relação analítica. Em contrapartida, surgem as noções de "aliança terapêutica", "aliança com a parte sadia do ego", "aliança de trabalho", para redefinir o pacto terapêutico proposto por Freud. O insight, processo cognitivo — o que o paciente aprende de seus conflitos e sintomas — aliado ao processo afetivo — a identificação com o analista que vai adquirindo formas mais sutis e abstratas — é o caminho da cura. O analista funciona como personificação da objetividade e da maturidade racional, egóica, para enfrentar o irracional projetivo e arcaico da transferência, utilizando-se exclusivamente da interpretação. Seu ponto cego reside na contratrans-ferência, em seu 'irracional' não analisado, que ameaça romper o equilí­brio do setting analítico.

Este modelo, com sua aspiração racionalista, objetivista e evolucio­nista, parece bastante compatível com os ideais médico-científicos que dão sustentação a uma determinada concepção de psiquiatria, e se presta à instituição de uma ortodoxia que ultrapassa em rigor técnico a postura um pouco mais livre do próprio Freud.

Há, ainda, o grupo dos heterodoxos, cujos principais representantes são Winnicott, Balint, Ferenczi, Searles e Kohut, a quem Bercherie se refere como a "nebulosa marginal". Seu ponto comum seria a alteridade em sua dimensão fundadora. A 'realidade psíquica' não seria mais do que um efeito, sombra do real histórico.

Bercherie esclarece a designação como pertinente tanto à situação de seus representantes na organização institucional da psicanálise quanto à sua ideologia e valores. Essa corrente não constitui propriamente um modelo. São trajetórias individuais que têm como ponto comum a busca de uma maior eficácia da clínica através de novas formas de intervenção. Da técnica ativa de Ferenczi ao holding de Winnicott, transgride-se a técnica clássica difundida pelas correntes ortodoxas, considerada insufi­ciente e muito limitada.

As diferentes tendências ordenam-se sobre variações balizadas, de um lado, pela referência ao trauma como fator patogênico, retomando a teoria da sedução freudiana num sentido mais amplo e, de outro, pela modificação do conceito e do manejo da regressão na análise. Em Fe­renczi, por exemplo, o tratamento catártico é revalorizado e a escuta analítica deve tornar-se menos neutra e mais participante, incentivando

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a compreensão e o diálogo como uma função simbólica reparadora do vivido traumático infantil.

A metapsicologia e o tratamento se aliam a certas referências noso-lógicas centradas no conceito de narcisismo primário com Winnicott e Balint, por exemplo, em que o interesse teórico e clínico do analista recai sobre a relação primária do analista com a mãe. Com Ferenczi, Searles e outros, a ênfase é dada à incorporação patogênica das comunicações inconscientes intrafamiliares, onde a criança é tomada como depositária das perturbações e desejos mais secretos dos pais, especialmente nas psicoses.* Mas também é valorizada a função paterna aliada aos proces­sos de aculturação e socialização.

Nesse cenário, a ortodoxia é condenada como cúmplice da negação e da mistificação da realidade dos fatos e das interações vividas pelo paciente em sua história. A função do analista no tratamento é a de um facilitador do desenvolvimento vital, do processo de maturação, prejudi­cado pelas relações patogênicas. A contratransferência funciona mais como guia para o analista e menos como perigo. As interpretações não devem ter a insistência intrusiva presente no kleinismo. O dispositivo analítico opera como uma dinâmica intersubjetiva, aberta c imprevisível em seu trajeto, em oposição ao enquadramento concebido como cienti-ficista-objetivista e inteleetualista dos ortodoxos. O pensamento incons­ciente é criativo e a experiência de si, do verdadeiro self, se dá uma vez que são levantadas as barreiras defensivas de um ego clivado que intro-jetou o ambiente patogênico. Seguindo a referência freudiana, a realiza­ção aloplástica deve sobrevir à inversão autoplástica da libido narcísica.

Diferentemente da psicologia do ego, a cura depende mais da auten­ticidade do vivido, da espontaneidade do processo maturativo, do que da força ou estabilidade do ego. Para Winnicott, por exemplo, o chamado 'ego forte' não passa de um falso self. Esse processo diz respeito à presença da ordem objetai como fundadora da subjetividade em seu caráter interacional. A adaptação à realidade cede lugar à inventividade própria, à espontaneidade criadora do self.

Ao analista, resta a postura empática, receptiva, devotada e acessível, c a humildade técnica que chega a admitir que há uma ajuda terapêutica

Destaco dois textos de referência sobre esse tema: "Confusão de línguas entre os adultos e as crianças" de Sàndor Ferenczi e "O esforço para enlouquecer o outro: um elemento na etiologia e na psicoterapia da esquizofrenia", de Harold Searles.

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inconsciente constante do paciente ao analista. Há posições críticas entre os 'marginais' do exagero dessa tendência procurando retomar a regra fundamental freudiana e um certo rigor técnico.

No essencial, interessa destacar a filiação da antipsiquiatria a essa concepção da clínica em contraste com a psiquiatría eminentemente médica Esta última se afina mais com os psicólogos do ego e com os kleinianos.

O último e mais recente modelo se constitui a partir do nome e do ensino de Lacan, mais precisamente a partir da cisão na Sociedade Psicanalítica de Paris em 1953 (Roudinesco, 1986). O famoso Discurso de Roma — "Fonction et champ de la parole et du langage en psychana­lyse" — é o marco teórico e político de uma nova 'ortodoxia'.

A partir de uma fusão dos dois estruturalismos — a antropologia de Lévi-Strauss com a lingüística de Saussure revisitada — e do recurso aos conceitos de metáfora e metonimia de Jakobson, Lacan inaugura o estru­turalismo na psicanálise. O conceito de simbólico de Lévi-Strauss se funde com o conceito de significante extraído da equação saussureana do signo. A ordem do significante transcende e instaura o sujeito por sua inscrição na linguagem.

O recurso ao materna — análogo ao mitema de Lévi-Strauss — aos esquemas e grafos, à teoria dos conjuntos e à topologia, complementa e reafirma o modelo lacaniano lançando-o para além do estruturalismo clássico.

O 'retorno a Freud' toma como referência a formulação da primeira tópica do inconsciente sexual recalcado e estabelece uma certa homolo­gía, guardando as devidas diferenças entre o associacionismo e o estru­turalismo. Quanto ao primeiro, critica seu caráter psicológico, represen-tacional e mecanicista e, quanto ao segundo, afirma seu caráter lógico e relacional. Os significantes não são representações de sensações ou ima­gens de objetos e, apesar de serem unidades discretas, só produzem sentido enquanto articulados entre si numa cadeia linear constituída por metáforas e metonimias. A fala, por sua vez, já é sintomática no sentido em que há sempre um hiato entre o que se diz e o que se quer dizer, e a significação se produz, em última instância, no Outro. Posteriormente, com o nó borromeano, Lacan vai situar a significação na interseção entre imaginário (outro) e simbólico (Outro).

Lacan nunca pretendeu fazer uma teoria da comunicação. O Outro guarda sua dimensão terceira, de alteridade, sobre o outro como interlo-

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* Para um estudo mais detalhado da topologia de Lacan, remeto o leitor ao traba­lho de Jeanne Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan. Quanto à formu­lação do nome-do-pai como o quarto nó que constitui o sintoma fundamental, ver Le sinthome, seminário de 18 de novembro de 1975, publicado em Joyce avec Lacan, sob a coordenação de Jacques Aubert.

** A concepção do estádio do espelho foi apresentada pela primeira vez no Con­gresso de Marienbad em 1936, e, posteriormente, foi reapresentada no Congres­so Internacional de Psicanálise de Zurique cm 17 de julho de 1949. Esta segunda versão está publicada nos Écrits.

cutor da conversa de modo diverso da concepção interacional dos 'mar­ginais' apoiada nas relações intersubjetivas. O modelo estrutural do Édi­po é um bom exemplo. O nome-do-pai é uma função da linguagem, a metáfora paterna, como uma operação de substituição (recalque primá­rio) que possibilita o advento da fantasia como resposta ao enigma do desejo da mãe (Outro primordial) e instaura a divisão do sujeito em conjunção e disjunção com seu objeto. Eis a definição básica da fantasia, formulada já na década de 1960. Este é o modelo da neurose.

A démarche lacaniana redefine tanto a dinâmica subjetiva quanto a nosología, o diagnóstico e a função do analista na clínica. Apresento brevemente cada um desses pontos.

Quanto à metapsicologia, ou sobre a constituição do sujeito, Lacan postula o entrelaçamento dos três registros: imaginário, simbólico e real. No decorrer de sua teorização, estes vão sendo redefinidos, variando em precedência, até a formulação do nó borromeano que os articula a um quarto nó, que será finalmente definido como o nome-do-pai, tendo a função de sintoma fundamental que amarra os três registros. A estrutura edípica, portanto, é o sintoma fundamental do neurótico.*

O imaginário é definido, primeiramente, como imago, matriz do simbólico na formação do eu (je do sujeito e moi como o ego narcísico ou o ego ideal) no conhecido texto sobre o estádio do espelho.** Na década de 1950, passa a ser um precipitado do simbólico, consistente como imagem do corpo e dos objetos pulsionais, e totalizante como uma Gestalt. Aí se dão a circulação dos afetos (amor-ódio etc.) e as relações interpessoais como relações entre semelhantes.

O simbólico é regido pelas leis do significante, em que o processo primário opera constituído como uma linguagem no desdobrar da metá­fora (substituição) e da metonimia (deslocamento). Na primeira formu­lação de Lacan, o simbólico é organizado a partir da metáfora paterna — primeira operação de substituição — como um ponto de ancoragem para

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o sujeito, entrelaçando-o ao eu imaginário e funcionando como barreira ao desejo enigmático e caprichoso do Outro — representado pelo desejo da mãe. O significante fálico registra a falta— impossibilidade de acesso ao desejo do Outro — por diferença da completude imaginária. Entre­tanto, a constituição do eu, como projeção de uma imagem, só é possível pela sustentação simbólica do Outro. O esquema L formulado no Semi­nário 2 (1954-55) mostra como os dois eixos, imaginário e simbólico, se articulam.

O real, em sua primeira formulação, é o inefável, não captado na estrutura significante, o ser perdido do sujeito a partir da castração sim­bólica, ou seja, da incidência da metáfora paterna. Lacan, posteriormen­te, o define como seu próprio sintoma e, ao mesmo tempo, como sua contribuição à psicanálise através do conceito de objeto a — aquilo que se perde do ser pela marcação do simbólico e constitui, míticamente, a falta primordial do objeto.*

A realidade seria o efeito da conjunção do simbólico com o imaginário que encobre o real em sua ex-sistance. Uma outra significação para o real é a de 'partes sem todo', contrariando a ordem do mundo, em sua absoluta ausência de sentido. Na década de 1970, o real vai comportar a letra em sua materialidade como suporte do significante e uma dimensão do gozo que escapa à ordem fálica e, paradoxalmente, só pode ser pensado a partir dessa ordem como um efeito da marcação do significante.

Quanto à nosología, são definidas três estruturas: neurose (sujeito dividido); psicose (foraclusão — rejeição primordial da metáfora pater­na); e perversão (desmentido da castração). O diagnóstico é feito na transferência, ou seja, no modo como o sujeito se apresenta ao analista (o Outro do sujeito): o neurótico como faltoso e demandante em sua queixa; o psicótico como invadido pelo Outro, ou anulando-o; e o p i verso (quando se apresenta!) como objeto para o Outro, não para o Ou> o absoluto do psicótico, mas para o sujeito dividido. A clínica lacaniana exige uma distinção entre neurose e psicose, sendo que a perversão é

O conceito de objeto a é bastante complexo e não cabe desenvolvê-lo em toda a sua extensão. A partir do Seminário, livro 11 — Os quatro conceitos fundamen­tais da psicanálise, de 1964, Lacan formula este conceito articulando-o com a pulsão escópica. Já na década de 1970, tendo desenvolvido sua topologia, Lacan lhe atribui uma função que perpassa os três registros deixando-o retido no centro do nó borromeano e, portanto, não se reduzindo ao registro do real. No imagi­nário tem a função de objeto parcial — as vestimentas imaginárias; no simbólico é designado pelos significantes; e, no real, como objeto perdido.

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mais problemática. Muitas vezes, localizam-se traços perversos na estru­tura neurótica.

Quanto à função do analista, Lacan introduz uma virada fundamental no conceito de transferência. Em sua diatribe contra os psicólogos do ego, denuncia mais a resistência do analista do que a do analisando. O analista resiste com seu ego, seu sintoma, suas interpretações plenas de significado, seu saber que, ao ser suposto, não deve ser encarnado num ego ideal. A transferência não é para ser interpretada. Ela constitui o dispositivo analítico. O conceito de 'sujeito suposto saber' é central para definir o estatuto da transferência. O analista, ao ser autorizado a escutar um sujeito, está suposto, não como aquele que sabe, mas como aquele que deve receber a fala do sujeito como produção de saber, para dar-lhe um destino pela via da interpretação. O sujeito, por sua vez, só fala porque supõe que isso irá levá-lo a algum lugar ainda não sabido. Se­ria uma espécie de prova de fé no inconsciente como promessa de signi­ficação.*

A técnica deve dar lugar, por um lado, à ética, centrada no que Lacan conceitua como o desejo do analista, e, por outro, ao estilo, o savoirfaire do analista, com toda a carga semântica do termo, por diferença ao know how mais tecnológico. O desejo do analista é um conceito cuja força enigmática o transforma em legado e desafio permanente para a psica­nálise lacaniana. Pode-se defini-lo como o desejo de pura diferença, sustentando na transferência o lugar de objeto perdido (objeto a) como causa de desejo. O lugar do analista não pode ser o de um outro sujeito — a intersubjetividade está fora de questão, apesar de ter constado de seus primeiros escritos — deve ser o do objeto que falta, lançando o sujeito ao desejo. Simplificando, trata-se de reduzir ao mínimo a pessoa do analista em suas intenções, seu ego; portanto seu sintoma; mas, para­doxalmente, deixando-o livre quanto às possibilidades de sua interven­ção. O analista se faz ao final de sua própria análise.

Podemos situar em Lacan dois tempos na concepção do tratamento — em francês, cure por oposição a guérison — (Miller, 1987 e Bercherie, 1988). O primeiro, na década de 1950, enfatiza a função central da fala como reveladora da verdade censurada da história e dos sintomas do sujeito, guiando a intervenção do analista sobre a emergência das forma-

Sobre o conceito de 'sujeito suposto saber', remeto o leitor ao trabalho de Jacques-Alain Miller, Percurso de Lacan, uma introdução, que o sistematiza de modo didático no capítulo "A transferência. O 'sujeito suposto saber'".

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ções do inconsciente {Discurso de Roma, 1953). O 'sujeito suposto saber' refere-se tanto à posição do analista na transferência quanto à suposição de saber atribuída ao inconsciente como o Outro do sujeito que põe o processo associativo em marcha. Deve-se evitar a confrontação imaginária ou ego-narcísica — analista identificando-se com o saber, confronto de sentimentos ou expectativas etc — típica da análise das defesas, para permitir a emergência do sujeito do desejo. O analista busca localizar-se como o Outro, o terceiro da função paterna.

O segundo tempo, a partir da década de 1960, Lacan enfatiza o real. O analista deve ser o pivô do processo, fazendo as vezes (semblante) do objeto a, o objeto que falta e, por isso, causa desejo. No fim da análise, o analista deve se reduzir a um resto da operação simbólica. A análise deve conduzir o analisando a assumir sua determinação significante para ultrapassá-la até o ponto em que toda a significação, toda a produção analítica se lança num sem sentido esvaziado de gozo. E um processo exaustivo de desidentificações (travessia da fantasia) que desemboca numa posição vazia (destituição do sujeito do inconsciente) onde se encontra o lugar do analista (des-ser). A fantasia deve-se opor o enigma do desejo como um real opaco onde se situa o sujeito. Não o sujeito do inconsciente alienado ao discurso do Outro ou do Mestre, mas em seu movimento de separação. O recurso cada vez mais incisivo aos cortes nas sessões, que tendem a ser curtas, seria um meio de promover esse curto-circuito. Este é o ponto mais controvertido da clínica lacaniana. Hoje, temos uma variedade de leituras de Lacan nas quais podemos reconhecer um divisor de águas esses dois momentos de sua teoria.

Apresentados os diferentes modelos que compõem o campo psicana­lítico, a questão não se reduz a reconhecer essas tendências em sua disputa pela ortodoxia. Deve-se tentar encontrar um ponto comum sobre o qual esses modelos se edificam sob a rubrica de psicanálise. E possível pensar em uma unidade diante de tanta diversidade? Ou o campo psica­nalítico pode explodir numa babelização de discursos incompatíveis? Embora existam conceitos comuns, como inconsciente, recalque, pul-sões, transferência, interpretação e, last but not least, associação livre, suas definições e seus usos diferem significativamente.

O pior destino para a psicanálise seria a solução eclética que poderia transformar o sujeito psicanalítico numa espécie de ornitorrinco dotado de um ego forte e adaptado a uma ilusão, de um inconsciente interno c abissal, resultante de relações de duplo vínculo com pais perversos, que

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não passam de significantes ambulantes, e de uma forte tendência agres­siva, advinda das primitivas pulsões de morte que, por sua vez, resultam de um superego cultural, ora forte, ora fraco, que se vinga de um ego narcísico.

Apresento algumas propostas de interesse: Kernberg (1994), muito preocupado com a queda do prestígio da

formação profissional e da própria clínica psicanalítica nos EUA, lamen­ta o grande desconhecimento, atribuído ao preconceito e à barreira lin­güística, do que se passa na Europa, especialmente na França, e destaca os pontos positivos das "teorias alternativas" que incluem os novos de­senvolvimentos da psicologia do ego, da teoria das relações de objeto, da psicologia do self, da análise interpessoal e, até mesmo, de algumas referências à teoria lacaniana. Propõe uma investigação empírica que ultrapasse a discussão teórica e uma abertura para as diferenças visando engrandecer o movimento científico sem a ingenuidade de assimilar modismos ou fundir modelos incompatíveis. Acrescenta que o candidato a analista deve ter acesso a abordagens diversificadas, mas alerta as instituições contra o "terrorismo intelectual" decorrente do proselitismo carismático de qualquer abordagem nova. Quanto à clínica, defende a multiplicidade de técnicas sob a égide de alguma trama teórica, com o objetivo explícito de diminuir os índices de evasão (que parece ocorrer) entre os pacientes da chamada psicanálise ortodoxa.

Mezan (1988a,b,c) aponta os "monólogos cruzados" entre kleinianos e lacanianos por se situarem apenas no plano das respostas, ignorando que as teses não passam de respostas a perguntas diferentes. Daí sua constatação perplexa de que "os psicanalistas não falam a mesma língua" (1988b p. 15). Tal dispersão manifesta-se no que denominou uma "trípli­ce diáspora": dispersão geográfica (contexto sociocultural europeu, nor­te-americano e latino-americano); dispersão doutrinária (campo concei­tuai); e dispersão institucional (política da psicanálise como produção de verdade avessa à relativização). Nesse ponto, Mezan enfatiza o caso brasileiro através daquilo que denomina "vulnerabilidade ao dogmatis­mo": na impossibilidade de reconstituir a gênese do que nos é apresen­tado, resta-nos acatar ou recusar cegamente o que está escrito (1988a, p. 11). Sua proposta é que se faça uma história epistemológica da psica­nálise rastreando as perguntas que cada autor pretende responder, uma vez que o que pode ser fértil para a psicanálise reside não nas afirmações mas nas novas questões que podem ser formuladas. Para isso, constrói

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um método com base no conceito freudiano de sobredeterminação. Deve-se considerar os desdobramentos de quatro dimensões epistemoló­gicas da obra de Freud como pontos de isomorfismo ou homologia entre as três principais escolas pós-freudianas — kleiniana, lacaniana e psico­logia do ego. Essas dimensões são: uma teoria geral da psique (topologia, dinâmica e economia do aparelho psíquico); uma teoria da gênese e do desenvolvimento da psique (história concreta do sujeito referida a um modelo esquemático universal); como resultante das duas primeiras, uma teoria do funcionamento normal e patológico da psique (soluções neuróticas, perversas ou psicóticas para os conflitos fundamentais); e, por fim, uma concepção do processo psicanalítico (modalidades de in­tervenção visando modificar o funcionamento psíquico [1988c]).

Lo Bianco (1991), por sua vez, abandona a epistemologia e relativiza os processos de legitimação das diferentes verdades psicanalíticas, his­toricamente construídas para ressaltar o problema da importação de idéias na cultura brasileira. Destaca duas áreas problemáticas na contex­tualização da clínica psicanalítica: a cultura psicanalítica que grassa nos extratos médios urbanos psicologizados e seu avesso, a distância sociocultural da psicanálise que os extratos de baixa renda da popula­ção apresentam nos atendimentos ambulatoriais. Propõe, então, que os próprios psicanalistas façam um exame mais criterioso do contexto sociocultural em que se dá sua experiência analítica, a partir de sua clínica, a fim de avançar na elaboração teórica de seus conceitos, não deixando essa tarefa apenas aos teóricos da psicanálise nem aos sociólo­gos ou antropólogos.

Bezerra (1991) propõe uma rediscussão ética do problema, a partir da concepção pragmática do conhecimento em oposição à concepção metafísica. Ao invés de se tentar saber quem é o detentor da verdade última da psicanálise em seus fundamentos, em sua essência, deve-se fomentar uma discussão sobre o que há de convergente e contrastante nas diversas formas do pensar psicanalítico em sua capacidade descritiva e produtora de sentido segundo as urgências clínicas e determinações pes­soais, políticas e culturais de cada um.

Bercherie (1988) considera que não é pela via teórico-conceitual que se vai resolver o problema. Se Freud fazia questão da ciência, é preciso repensá-la num outro patamar. Por um lado, a necessidade de uma língua comum, de um consenso conceituai de base, limitaria o avanço que poderia se dar nos diferentes setores do campo psicanalítico. Por outro, a questão da filiação, seja de grupos ou pessoal, a determinado modelo

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é revestida de interdições, idealizações e exclusões pelo próprio poder da transferência que agencia fidelidades esterilizantes ao oferecer o que há de mais precioso ao futuro analista. Sua proposta para integrar a história c o estado atual do movimento freudiano é a de um atravessamento subjetivo como resolução da transferência dirigida à teoria, aos mestres e à instituição analítica e como assunção de uma nova relação do sujeito com o real, marcada pela passagem de um quadro claro e evidente à hiância de uma confusão, ao menos temporária, e de uma relativização permanente do conhecimento.

A ética é evocada como um novo posicionamento, uma vez que saberes e conceitos sempre podem ser apropriados, partilhados ou inte­grados. A postura do sujeito seria unívoca, e é ela que comanda suas escolhas práticas e teóricas. Ao analista, portanto, cabe ultrapassar sua filiação, no sentido radical do termo, não só à teoria e aos mestres, mas, principalmente, à sua própria análise para se engajar na aventura de refazei" a psicanálise. A opção de Bercherie pelo referencial lacaniano é explícita. Ele defende que foi Lacan, com seu ensino peculiar, quem produziu uma dissimetria em relação às outras correntes psicanalíticas introduzindo a pluralidade do real frente às realidades subjetivas unitá­rias e coerentes e a dimensão do desejo em sua obscuridade subjetiva mas também, em sua fecundidade simbólica.

Permanece, entretanto, o problema de como inventar permanente­mente a psicanálise sem ameaçar romper com o que a caracteriza e delimita. Seria, em última instância algo comum ao nome de Freud? Apenas um nome próprio vazio de significação? (Derrida, 1980; Forres­ter, 1989).

3. A psicanálise no ambulatório: um novo contexto?

A primeira questão de que devo me ocupar são as condições mínimas, necessárias, para que a psicanálise seja viável no ambulatório. Se tomar­mos as condições como contextos, esta pode ser uma falsa questão. Para discutir a noção de contexto apóio-me nas concepções de Richard Rorty e Jacques Derrida.

Rorty (1991) sustenta que todos os objetos já são contextualizados. Portanto, a questão não é retirar o objeto de seu velho contexto e exami­ná-lo em si mesmo para ver qual o contexto que lhe é mais apropriado. O que está sendo posto em contexto é apenas "boringly and trívially" uma crença. Falar sobre o objeto é falar sobre os efeitos práticos desse

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O que efeito da psicanálise \ 3 1

objeto sobre nossa conduta. Indagar sobre o objeto é antes retecer cren­ças do que descobrir a natureza do objeto, que pode ser, na melhor das hipóteses um "focas imaginarius". E uma crença não passa de uma posição na teia da linguagem. O ato de descrever alguma coisa é relacio­ná-la com outras, e não há nada que preceda a contextualização (p. 98-100). Nesse sentido, descrever a psicanálise, seja através dos relatos obtidos na pesquisa ou das definições que a caracterizam, retece a teia onde vai se evidenciar uma concepção de psicanálise que, ao mesmo tempo que se reconhece no contexto da obra freudiana, se altera em novas recontextualizações.

Devemos, contudo, estar atentos para não' reificarmos a noção de contexto, erigindo-o à categoria de fundamento último das coisas. Rorty, em seu estilo desconcertante, nos tranqüiliza: um contexto pode ser uma nova teoria explicativa, uma nova classe comparativa, um novo vocabu­lário descritivo, um novo propósito particular ou político, o último livro que se leu, a última pessoa com quem se falou, as possibilidades são infindáveis (op. cit. p. 94).

Para Derrida (1991), não há um contexto absolutamente determinável ou um conceito rigoroso e científico de contexto. Desse modo, recontex-tualizar a psicanálise pode ser entendido como uma revisão conceituai, no campo próprio da teoria, como uma relocalização de sua prática no campo da clínica em suas variações. A dicotomia consultório privado versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises, pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as possibilidades do exercício da psicanálise.

A questão, contudo, permanece: até onde essas possibilidades podem ser ampliadas? Se o contexto pode referir-se a uma nova teoria explica­tiva, o que garante que novas recontextualizações, ao produzirem novos objetos, não nos lançariam no paradoxo de não estarmos mais falando de psicanálise? Ou pior, poderíamos redescrever ou redefinir a psicanálise num movimento infindável, onde tudo pode ser psicanálise. Tudo ou nada são duas faces da mesma moeda. Algo deve permanecer como identidade na diferença.

Para não cair no atoleiro do sofisma, reafirmando a psicanálise como a medida de todas as coisas, valho-me novamente das concepções de

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Derrida e Rorty para estancar uma dúvida que remonta à discussão dos filósofos pré-socráticos sobre o que muda ou permanece igual a si mes­mo no cosmos.

Com Derrida, apóio-me no conceito de réstance — o que resta e resiste — para assegurar que algo do signo permanece para que seja reconhecido como tal. Staten (1985), seu comentador, esclarece:

"Uma vez que o contexto não é 'exaustivamente determinável', não há como traçar um limite até onde ele possa transformar o signo; tudo o que sabemos é que há um 'resto mínimo' {réstance) que nos permite reconhecer o signo o suficiente para que continue funcionando como um signo. Ao mesmo tempo que diferentes ocorrências de um signo são reconhecidamente as mesmas, todavia, também são diferentes porque novos contextos mostram novos aspectos de suas possibilidades de sig­nificação. (...) Contudo, esse não é um fenômeno arbitrário ou indiscipli-nável; sabemos bem sobre como ativar e delimitar a variação das funções de uma palavra numa sintaxe construída com engenho e arte. (...) Sabe­mos a priori que essa variação se estenderá num sem fim para além de nossas intenções conscientes. Mas a ausência de um limite determinável ou conhecível não significa que toda e qualquer coisa seja possível em todo e qualquer tempo; ao contrário, a variação da ativação futura do significado ocorrerá em contextos futuros, e cada contexto vai mostrar aspectos correspondentes do significado" (p. 122, tradução minha).

Esta afirmação apresenta o conceito de réstance não corno uma pro­priedade inerente ao signo; mas, antes, como o que é determinado numa sintaxe específica cuja variação remete ao tempo futuro na proliferação de novos contextos. Logo, podemos supor que teve e tem seu limite nos tempos passado e presente. Estes tempos não são pura cronologia, são tempos que recortam costumes e crenças, por exemplo.

Com Rorty, sustento sua defesa de um certo 'etnocentrismo', o qual preconiza que não nos cabe ir além das determinações da cultura, das contingências históricas que nos constituem com suas palavras e crenças. Devemos nos contentar em estabelecer a controvérsia entre as partes de nossas próprias convicções (op. cit. p. 14).

Tomando a psicanálise como uma cultura que produz psicanalistas e determina sua ação, cabe problematizá-la no seu interior ao invés de apreciá-la 'de fora', ao modo do observador neutro. Ao tomarmos dis­tância de nosso objeto para apreendê-lo de outro modo, não devemos abandonar nosso vocabulário, mas sim ampliá-lo e modificá-lo em novas

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O que éfeito da psicanálise I 33

contextualizações para que não se perca a referência ao ethnos psicana­lítico.

Tomando o termo psicanálise como nosso "signo", o que resta e resiste remete de imediato ao nome e à obra de Freud. Entretanto, na atual dispersão do campo psicanalítico, já se alardeia em certos meios psicanalíticos que o freudismo virou história. É passado e ultrapassado. No meu entender, o ethnos psicanalítico só faz sentido a partir de Freud e com Freud. Mas essa atualização ou recontextualização de Freud tem como contexto uma nova teoria explicativa que, como tal, lança-se pelo mote de um retorno a Freud. Como já mencionei, o nome de Lacan e sua teorização — seu ensino por transmissão oral e transcrição — que vem se constituindo como obra na última década, redimensiona o futuro da psicanálise. O texto de Lacan é, então, um novo contexto para a psicaná­lise. Cito aqui um comentário prosaico de Thomas Ktihn que, ao discutir a tradição e a inovação na investigação científica, define-a como uma tensão essencial: "Nas ciências, (...) é muitas vezes melhor fazer o que se pode com as ferramentas à disposição, do que fazer uma pausa para contemplar abordagens diferentes." (Kuhn, 1989, p. 275-6).

Lacan, a meu ver, situa-se nessa tensão essencial entre o "pensamento divergente", como "a liberdade de ir em direções diferentes, (...) rejei­tando a velha direção e arrancando numa nova direção qualquer"; e o "pensamento convergente", que mantém a tradição do "consenso estabe­lecido, adquirido na educação científica e reforçado na vida subseqüente na profissão." (ibid. p. 276-8).

Lacan rompe com a política, a teoria e a clínica instituídas em seu tempo, arrancando na direção paradoxalmente retroativa a Freud, ao mesmo tempo que 'redefine' a psicanálise. Hoje, tornou-se uma "ferra­menta à disposição" exatamente porque não se limitou aos encantos da "revolução científica" que promoveu, e tratou de restabelecer o terreno do consenso na "educação" dos psicanalistas, fazendo escola. Convém a ressalva do termo 'científico', posto que Kuhn refere-se exclusivamente às ciências naturais, uma vez que não tenho a pretensão de discutir o estatuto científico da psicanálise nesses termos. O uso da palavra tem aqui o sentido da teoria como um sistema conceituai, suficientemente operacionalizável e aplicável na clínica. Esta sim, o elemento-surpresa que provoca a teoria em seu alcance explicativo e resolutivo. Nesse ponto, retorno a Derrida para reafirmar minha concepção de teoria: "Não há conceito metafísico em si. Há um trabalho — metafísico ou não — sobre sistemas conceituais" (op. cit. p. 37).

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Interrogando o ambulatório

1. Sobre a pesquisa: uma participação observante

Ao fazer uma pesquisa empírica para dar suporte à minha argumenta­ção, tomo a experiência como um campo comum onde se turvam os limites entre o subjetivo e o objetivo, situando-me na realidade da pala­vra, e reproduzo os relatos dos sujeitos pesquisados como fatos de lin­guagem. Não se trata de comprovar a veracidade de cada dito, mas de citar, o mais literalmente possível, segmentos de falas, de enunciados, considerando o contexto em que se dá a enunciação. Isto é, no que se refere ao lugar de onde falam, para quem falam, e ao encadeamento da fala na seqüência. Não me limito a ser a ouvinte, mas falo com eles, através deles e para além deles, querendo dizer mais do que foi dito. Sabedora de que ao citar repito e modifico os relatos orais e escritos a que tive acesso, dando-lhes um destino peculiar em um novo contexto, conduzi essa empreitada.

Desse modo, valho-me taticamente desses relatos, como dados dos quais me aproprio, para construir minha argumentação que pretende ser mais do que tendenciosa. Pretendo apontar-lhes novos sentidos, transfor­má-los mesmo, segundo meu propósito de fundamentar a psicanálise possível fora do consultório privado. Aqui, para definir meu método, tomo emprestada a expressão "participação observante" de Eunice Dur-ham em sua crítica bem humorada à tendenciosidade das pesquisas antropológicas que "resvalam para a militância" (Durham, 1986, p. 27). Ao me propor conviver e conversar com um meio tão familiar, entrego-

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me à possibilidade de estranhá-lo, mas não abro mão da militância, da crença que aponta para o desejo de afirmar a psicanálise.

Os procedimentos da pesquisa se desdobraram a partir de três mo­mentos de meu trabalho que se sucedem e se complementam. Detalho cada um:

1) Em minha experiência como docente do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB), convivo com diferentes profissionais e seus paradigmas de doença, tratamento e cura. Registrei falas, atitudes e situações presenciadas no trabalho diário do ambulatório e na interação com outros setores, como a enfermar'a e o hospital-dia. Obtive, também, material oral e escrito mais detalhado sobre o funcio­namento das diferentes modalidades de recepção e encaminhamento de pacientes no ambulatório.* Além disso, mantenho um trabalho de super­visão e acompanhamento dos casos atendidos pelos pesquisadores (psi­quiatras, psicólogos e psicanalistas) do Projeto de Assistência à Saúde Mental do Trabalhador (PRASMET).** Recolhi alguns casos que consi­derei relevantes a partir do registro oral e escrito das sessões.

Deliberadamente, não incluí material obtido na supervisão de casos atendidos por alunos, salvo uma ou outra exceção, já que sua posição é ambígua na instituição: são aprendizes ao mesmo tempo em que são profissionais e estão de passagem nos serviços. Seu trabalho tem a designação escolar de estágio e a responsabilidade pela clínica é dividida com o professor cuja autoridade remete o aluno a um lugar de submissão, não sem conseqüências para a clínica (Figueiredo, 1996b).

2) Organizei um grupo de trabalho no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro no período de março de 1993 a julho de 1994 com o tema 'Clínica Psicanalítica no Ambulatório Público'. A participação era facul-

* A partir de 1994 foi implantado no ambulatório o sistema de recepção em grupos sob a coordenação de Sergio Levcovitz, psiquiatra e um dos idealizadores desse projeto. Acompanhei o trabalho e obtive material escrito produzido por ocasião do I Seminário sobre os Grupos de Recepção do IPUB realizado em abril de 1995 pelos membros da equipe multiprofissional responsável pelo trabalho.

** O Projeto de Assistência à Saúde Mental do Trabalhador (PRASMET) é coor­denado por Silvia Rodrigues Jardim, psiquiatra e pesquisadora vinculada ao Programa de Pesquisa em Organização do Trabalho e Saúde Mental coordenado pelos professores João Ferreira da Silva Filho e Maria da Glória Ribeiro da Silva.

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tada a quaisquer profissionais vinculados à rede pública que tivessem uma afinidade direta com o tema proposto.*

As discussões, inicialmente, se faziam em torno da descrição e ava­liação desses serviços, dos seus problemas e de suas possibilidades em propiciar um trabalho psicanalítico. Posteriormente passamos à apresen­tação e discussão de casos, etapa mais difícil e delicada, pois envolvia um esforço maior de construção dos casos, fazendo surgir os impasses propriamente clínicos de cada um. O registro foi feito com anotações minhas e com o material fornecido sobre os casos e o percurso dos participantes tanto nos serviços e na formação em psicanálise.

3) Elaborei entrevistas roteirizadas realizadas com 28 profissionais da rede pública entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que se dispuse­ram a conversar sobre seu trabalho.** Entrevistei-os uma ou duas vezes,

* Tomaram parte nesse grupo cerca de quinze profissionais com vínculo empre-gatício nas seguintes unidades: Centro de Saúde Carlos Antônio da Silva (Nite­rói); Centro Municipal de Saúde Heitor Beltrão (Tijuca); Instituto de Cardiologia Aluysio de Castro (Humaitá); Hospital Infantil Ismélia Silveira (Caxias); Hospi­tal Jurandir Manfredini da Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); Hospital Gafrée Guinle — ambulatório de adultos (Tijuca); Serviço de Saúde Mental de Cabo Frio; IASERJ — ambulatório Maracanã; Hospital Cardoso Fontes/Hospi­tal Geral de Jacarepaguá — Serviço de Adolescentes; Serviço de Psicologia Aplicada da UERJ e Posto de Saúde do Município de Cantagalo. Estes profis­sionais, todos graduados em psicologia, tinham percursos bem diferenciados na psicanálise. Alguns vinham de instituições psicanalíticas onde receberam uma formação regular, e outros estavam iniciando seu contato com a formação atra­vés do Círculo, embora já tivessem uma experiência pessoal em grupos de estudo, supervisão e análise. Somente duas pessoas eram membros efetivos do Círculo.

** As unidades enfocadas foram: Postos de Atendimento Médico — PAM Bangu (emergência e ambulatório); PAM Irajá (serviço de psiquiatria); PAM 13 de Maio — Centro (serviços de psicologia, psiquiatria e adolescentes); PAM São Francisco Xavier (atualmente Policlínica Piquet Carneiro) e PAM Venezue­la/Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (emergência); Centro de Saúde de Duque de Caxias (serviço de saúde mental); Centro Municipal de Saúde Manoel José Ferreira — Catete (serviço de psicologia); Centro de Saúde Santa Rosa — Niterói (serviço de saúde mental); Centro de Saúde Dr. Washington Luís Lopes — São Gonçalo (serviço de saúde mental); Programa Especial de Saúde Mental de Barra do Pirai (ambulatório); Posto Municipal de Saúde Dr. Cândido de Freitas — Duque de Caxias (serviço de psicologia); Posto de Saúde do Municí­pio de Cantagalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde Santa Isabel — São Gonçalo (serviço de psicologia); Posto de Saúde de Volta Redonda (serviço de

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saúde mental); Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba — Niterói (ambulató­rio); Unidade Hospitalar Professor Adauto Botelho do Centro Psiquiátrico Pedro II — Engenho de Dentro; Hospital Phillipe Pinel — Botafogo [Núcleo de As­sistência Intensiva à Criança Autista c Psicótica (NAICAP)]; Instituto de Assis­tência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) — Maracanã e Gávea (serviço de psicologia); Hospital dos Servidores do Estado (serviço de psicologia); Hospital da Polícia Militar (serviço de psicologia); Hospital Pedro Ernesto/UERJ — Núcleo de Estudos do Adolescente (NESA).

de acordo com minha necessidade e a disponibilidade de cada um, levan­do em conta as informações de que dispunham e o tempo necessário para abrangê-las. Houve casos em que entrevistei várias pessoas ligadas ao mesmo serviço, ou apenas uma de determinado serviço. O critério se deu a partir do tamanho e da complexidade dos serviços e/ou da unidade a que estavam vinculados, sempre privilegiando o trabalho ambulatorial.

As entrevistas foram gravadas e transcritas por mim, de modo que pude fazer da transcrição um bom momento para elaborar as informa­ções e perceber sutilezas que me escaparam enquanto entrevistadora. Ao ouvir a repetição literal da conversa — estando posicionada como ouvin­te de mim mesma e do outro, efeito da magia do gravador — deparei-me com novos sentidos, novas possibilidades de tradução, a partir de deta­lhes de alguns ditos, de determinada entonação, pausas, uma certa mo­dulação da voz, enfim, uma maneira de 'ouvir' nas entrelinhas que lançava questões e desafios não previstos. O efeito-surpresa deu-se aí de modo contundente.

A escolha dos entrevistados não foi feita através dos serviços e, sim, por indicação de colegas psicanalistas mais próximos atendendo meu pedido de entrar em contato com profissionais que tivessem alguma ligação com a psicanálise e se propusessem a praticá-la nos ambulatórios públicos. Iniciei as entrevistas pelos meus colegas, é claro! Afinal, esse é o meio mais agradável e menos sujeito a resistências em fornecer informações. Daí em diante, obtive outros nomes e fui diversificando a amostra. Não me preocupei em definir a priori o número de sujeitos, seu perfil ou sua função nos serviços além da atividade clínica. Meu objetivo era fazer falar aqueles que tinham um percurso de no mínimo dois anos no serviço público, para melhor localizar os impasses e questões premen­tes que advêm do seu trabalho clínico. Não se tratava de mapear os serviços nem de fazer uma avaliação mais rigorosa de seu funcionamento ou das políticas públicas que lhes deram origem. Essas informações foram acessórias e não constituem material expressivo para minha aná-

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lise. Tinha uma escolha a fazer: ou bem tratava de traçar um perfil da rede pública ou me dedicava a pensar sobre as questões mais sutis do exercício da psicanálise, em sua feição peculiar, nos ambulatórios. Desde o início, a escolha já estava feita. O que precisava saber dizia respeito à diversidade ou semelhança das experiências de profissionais que, de alguma maneira, remetiam seu trabalho clínico à psicanálise.

Obtive informações sobre diferentes tipos de serviços de acordo com o percurso dos entrevistados. Houve casos em que o entrevistado era procurado para falar de seu trabalho em determinado serviço e acabava falando de outro onde havia estado por um período maior, ou onde trabalhou melhor ou pior. Daí, traçávamos comparações, discutíamos modelos, formas de reconhecimento e validação da psicanálise que va­riavam significativamente de um serviço para outro etc.

Minha pesquisa, portanto, trilhou mais ou menos aleatoriamente ser­viços heterogêneos —visitei alguns — quanto a local e população aten­dida, proposta de trabalho clínico, política da direção das unidades e sua articulação com as políticas mais amplas de saúde mental e formação das equipes. Deixei de lado os serviços universitários diretamente ligados à formação de alunos, mas incluí um cuja característica era ter apenas técnicos e/ou pesquisadores à frente do trabalho clínico. Não me preocu­pei quanto ao número total de entrevistas, considerando que em determi­nado ponto haveria um basta. A premência do tempo não foi o fator menor, mas a recorrência de dados que incidiam sobre problemas seme­lhantes foi a medida.

Preparei um roteiro dividido em três partes: formação e percurso na psicanálise; modo de inserção e relação com o serviço; trabalho clínico com diferenças e aproximações do modelo do consultório. Para minha surpresa, a ordem não foi seguida, mas os tópicos entrelaçavam-se es­pontaneamente como se fossem conseqüência natural um do outro. Con­cluí que esse era o caminho e engavetei as cópias do roteiro.

As entrevistas decorreram num processo análogo ao da associação livre — até onde podemos entendê-la como livre — e minhas perguntas foram a reboque das informações obtidas. Com freqüência, as entrevistas se iniciavam a partir de questões propostas pelos próprios entrevistados, que revelavam suas preocupações mais imediatas, como críticas ao fun­cionamento dos serviços, projetos e idéias para sua melhoria, um caso clínico de difícil manejo, ou mesmo sua trajetória peculiar no serviço ou na psicanálise. Minha participação muitas vezes resultava em discutir os temas pensando soluções, emitindo opiniões, comentando os casos, en­fim, trabalhando sobre as informações no decorrer das entrevistas de

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modo que resultassem em alguma contribuição para os entrevistados. Encontrei pessoas entusiasmadas com suas conquistas, outras descrentes de qualquer possibilidade de renovação e, ainda, outras, temerosas po­rém esperançosas, com prazer em reavivar suas idéias a partir de nossas conversas, que, espero sinceramente, tenham tomado novo fôlego para continuar.

Concluída a pesquisa, obtenho anotações dispersas, um vasto mate­rial de entrevistas transcritas e comentadas, e escritos diversos sobre casos clínicos e temas afins. Resta organizá-los metodicamente para deles extrair os fios com os quais devo tecer meu argumento. Do emara­nhado de dados começo a agrupar os pontos comuns e contrastantes para dar-lhes uma coerência mínima.

Meu método fundamenta-se na argumentação por exemplo, particu­larizando as situações caso a caso. E, curiosamente, ao pedir que meus entrevistados dessem exemplos de sua clínica ou de situações que pode­riam ilustrar suas afirmações gerais, adotei o modo de argumentação por exemplo no ato mesmo das entrevistas, entendendo que essa era a melhor maneira de me aproximar da clínica. Trabalho com segmentos de enun­ciados, retirando-os dos contextos em que foram apresentados, transfor­mando-os em citações para dar-lhes novos sentidos e extrair-lhes sua força exemplar.

Ao exemplificar, recorro à citação, e citar é recontextualizar. E, ao citar as citações contidas nos relatos, refaço mais uma vez seu sentido. Mas não devemos entender que se tratam dc duas realidades ou dois níveis distintos de linguagem: a citação e o texto propriamente dito. Todo o meu trabalho na escrita constrói a argumentação nesse registro, diga­mos, citacional. Aproveito e cito o argumento de Derrida:

"Todo signo, lingüístico ou não lingüístico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande escala, pode ser citado, posto entre aspas; por isso ele pode romper com todo contexto dado, engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não saturável. Isso supõe não que a marca valha fora do contexto mas, ao contrário, que só existam contextos sem nenhum centro absoluto de ancoragem. Essa citacionalidade, essa duplicação ou duplicabilidade, essa iterabilidade da marca não é um acidente ou uma anomalia, é aquilo (normal/anormal) sem o que uma marca já não poderia sequer ter fun­cionamento dito 'normal ' . Que seria de uma marca que não se pudesse citar? E cuja origem não pudesse ser perdida no meio do caminho?" (Derrida, 1991, p. 25-26).

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Essa iterabilidade de que fala Derrida é a possibilidade de a marca, a palavra, ter sua identidade repetida ao mesmo tempo em que é alterada, revelando sua opacidade em relação à intenção do dito. Logo, o uso que faço dos relatos orais e escritos separa-os da intenção e do contexto originais em que foram colhidos para relançá-los ao leitor. Este, por sua vez, deles se apropria numa nova interpretação que promove um novo hiato entre o que eu disse e o que quis dizer. E isso que interdita a saturação do contexto. Mas é preciso dizer o melhor possível aquilo que se quer dizer num movimento onde o sujeito total está ausente, em intenção e memória. Escrever consiste nesse incessante trabalho de en­contrar as palavras e alocá-las numa sintaxe que traça o sentido.

No recurso aos exemplos, procuro realçar seu valor explicativo no sentido usual de que 'os exemplos falam por si ' . Mas não há como exauri-los, pois podem infinitizar-se em tantos quanto as situações pos­síveis na clínica. Há uma outra dimensão que dá ao exemplo sua quali­dade paradigmática de ser exemplar, tanto no sentido de um 'bom exem­plo' , quanto no de uma amostra passível de generalização — parte extensiva a um todo por projeção ou probabilidade. Assim, um único exemplo pode falar para além de si.

Os relatos são citados em diferentes modalidades de exemplificação. Destaco as três mais freqüentes:

— Segmentos de fala colhidos em entrevista com a mesma pessoa podem ilustrar temas e argumentos diferentes;

— Segmentos de falas semelhantes de diferentes entrevistados que convergem para a mesma idéia podem ilustrar o mesmo tema ou argu­mento;

— Segmentos de fala ou texto partidos ou em fragmentos não-se-qüenciados, podem ser usados mais de uma vez ou para ilustrar mais de um tema ou argumento. Nesse caso, o encadeamento inicial se perde na produção de uma nova seqüência.

Convido o leitor a percorrer este texto, no qual indico as citações recorrendo às aspas, como referência mínima suficiente, e tomo a palavra não como alheia ou própria, mas como única possibilidade de passar adiante minha proposta.

2. Sobre os serviços

Conforme já indiquei, minha pesquisa trilhou serviços bastante hetero­gêneos em sua organização, funcionamento e objetivos. Ao todo foram 30 unidades entre postos de atendimento médico, centros e postos de

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saúde, hospitais gerais, hospitais psiquiátricos e hospitais universitários. Com exceção de duas unidades cujo atendimento é reservado aos funcio­nários e familiares — Hospital do IASERJ e Hospital da Polícia Militar — as demais estão ligadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) implantado pelo Ministério da Saúde em regime de municipalização. Isto significa que o atendimento deve ser dado a toda e qualquer pessoa que o deman­de, respeitando, tanto quanto possível, a regionalização por áreas progra­máticas.

Para preservar o sigilo, não identifico esta ou aquela unidade, nem seus respectivos funcionários, uma vez que não se trata de expô-los, e sim discutir seus impasses e sucessos para melhor fundamentar minha proposta de exercício da clínica psicanalítica nas instituições públicas. Na maioria das vezes, entretanto, é inevitável recorrer ao tipo de serviço ou unidade para exemplificar certas situações clínicas.

Para discorrer sobre os aspectos mais relevantes para minha proposta, inicio a abordagem dos serviços recortando em seu funcionamento os mecanismos de recepção, triagem e encaminhamento dos pacientes. Mi­nha preocupação aqui é indagar sobre as condições de viabilização da psicanálise, a partir do modo como se dão os primeiros contatos do paciente com a instituição. Suponho que estes procedimentos iniciais podem facilitar ou dificultar o trabalho do psicanalista a partir da deman­da que lhe é encaminhada.

Mais adiante, trato dos problemas relativos ao trabalho em equipe e sua formação para, em seguida, discutir as modalidades de tratamento mais ou menos referidas à psicanálise. Por fim, apresento um perfil dos profissionais 'psi ' que revela suas posições, muitas vezes ambíguas e confusas, em relação à identidade de psicanalista e suas conseqüências na clínica.

2.1 Recepção, triagem e encaminhamento

Sobre a recepção, o termo designa genericamente o primeiro atendimen­to, em geral em grupos, e é usado muitas vezes no lugar do termo triagem, que dá uma idéia mais burocrática e menos acolhedora do atendimento. Em alguns serviços pretende-se caracterizar uma disponi­bilidade permanente da equipe para os pacientes que retornam ou são encaminhados de outras unidades ou de outros setores da mesma unida­de. Nesse caso, a recepção funciona como o eixo central da clínica

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decidindo o destino de cada caso no duplo sentido de destinação (enca­minhamento) e desígnio (futuro).

Tomo como referencia os trabalhos de Corbisier (1992), Levcovitz e cois. (1995) e Tenorio (1996) que fundamentam a proposta de atendi­mento no modelo de recepção em grupos coordenados por equipe mul-tiprofissional. Destaco duas experiências bem sucedidas de implantação desse modelo no ambulatorio de hospitais psiquiátricos, sendo um deles um serviço de emergência. Os autores versam sobre pontos comuns quanto à concepção do adoecer psíquico e do tratamento. Quem adoece e sofre é, antes de tudo, um sujeito e não um corpo. Logo, a fala deve ser privilegiada não como manifestação patológica que exige correção ou resposta imediata, mas como possibilidade de fazer aparecer uma outra dimensão da queixa que singulariza o pedido de ajuda. Conseqüente­mente, o tratamento consiste, nessa etapa inicial, em acolher e escutar ao invés de ver e conter (Corbisier, p. 12). O que e quem se deve escutar é o ponto nodal para se fazer a diferença entre uma psiquiatria apressada em remitir o sintoma e uma abordagem que visa "desmedicalizar a demanda e subjetivar a queixa do paciente" (Tenório, p. 5). A psicanálise é a referência fundamental na formulação dessa proposta. Enfatiza-se a importância do trabalho em equipe e sua disponibilidade para tratar situações singulares e inventar soluções não-previstas.

Outro ponto comum é a crença que a recepção em grupo não deve ser apenas um meio de reduzir as filas de espera, mas sim de propiciar um acolhimento constante e provocar efeitos terapêuticos. O grupo deve funcionar atendendo não só os pacientes que chegam ao ambulatório, mas também os que são encaminhados de outros setores da instituição, ou os que retornam após algum tempo de interrupção ou, ainda, os que demandam outro tipo de tratamento. Para isso, é preciso contar com o empenho da equipe num trabalho coeso e permanentemente avaliado para evitar a burocratização do atendimento — que pode transformá-lo em mera 'triagem' — e construir formas de encaminhamento a partir de premissas que envolvam a participação direta do paciente.

Definido o modelo, a primeira questão é saber se só os psicanalistas, ou pessoas referidas à psicanálise, estariam aptos para a tarefa. Penso que não só estes, mas, sem dúvida, o paradigma que sustenta a proposta é psicanalítico. Entretanto, o que pode ser decisivo para sua viabilização, ou não, depende muito mais do modo de funcionamento da equipe, do exercício permanente de discussão e avaliação das condutas e, principal­mente, da responsabilidade dos profissionais frente aos pacientes, seja

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qual for o tipo de tratamento oferecido. Desse modo, o trabalho implica um contato direto e permanente com os diferentes profissionais que atuam no serviço, dos atendentes aos médicos, atravessando as hierar­quias funcionais e burocráticas. A recepção pode ser um bom termôme­tro da instituição ao tornar mais públicos, portanto mais transparentes, seus procedimentos clínicos, seus problemas e soluções no percurso de cada paciente.

Os autores dão exemplos de casos que ilustram sua argumentação. É desnecessário reproduzi-los aqui. Como não devo me furtar aos exem­plos, descrevo cenas que se sucederam em um grupo de recepção numa sessão agitada e cheia de imprevistos, relatada por um dos membros de uma equipe:

"Nesse dia, éramos três psicólogos na equipe, eu e mais duas inician­tes no trabalho. Atendemos duas pacientes que nos pareceram neuróticas, uma mais histérica e a outra mais obsessiva, cuja apresentação sintomá­tica era, digamos, enlouquecida, a ponto de nos confundir num primeiro momento. Além delas havia um rapaz psicótico que tinha dado baixa no exército por conta de um surto, uma senhora acompanhada de sua filha que falava por ela e pedia um tratamento gcriátrico, e mais umas três pessoas...

"A primeira a ser ouvida foi uma das duas primeiras pacientes. Tinha uns vinte e poucos anos, era grande e bonita, vinha do norte, de classe baixa, e começou a falar numa modulação meio delirante com um olhar perdido, dizendo que 'Deus não está só no bem... está no mal e tenta a gente com o mal ' . Estava acompanhada do irmão e da cunhada, vestia saia e ficava passando a mão na perna e a cunhada ficava abaixando sua saia... Ela repetia continuamente 'as carícias de Deus...' e ficava nisso. O irmão pediu a palavra para contar que ela fazia um cursinho e se apaixo­nou pelo professor de biologia, que a seduziu. Eles tiveram um envolvi­mento e, quando ela resolveu contar em casa, o irmão foi com ela até a casa do professor para matar o cara ou obrigá-lo a casar. Ele negou que tivesse havido relação sexual e ela foi levada ao ginecologista para um exame que constatou sua virgindade. 'Ela ainda é pura' , disse o irmão. Nisso, ela diz: 'O problema é que eu gostei... gostei mesmo e faria de novo... você não entende nada', diz para o irmão. Mas continua meio desarticulada sem falar coisa com coisa. Decidimos, eu e mais outra pessoa da equipe, levá-la ao plantão para ser medicada, mas não interna­da, e após tranqüilizar a família, encaminhamos para psicoterapia indi­vidual com essa mesma colega que a acompanhou.

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"De volta ao grupo, ouvimos a outra paciente, uma senhora magri­nha, miúda, envelhecida, que dizia muito aflita... 'Estou com um proble­ma de limpeza, tenho que limpar tudo... se alguém entra na minha casa tenho que limpar o chão muitas vezes... só uso o sabonete uma vez, fico horas tomando banho, lavando a mão... sei que estou me sentindo suja porque tive uma relação ilegítima com um homem casado... minha filha não quer mais saber de mim'. Ela chorava muito, a coisa transborda e contagia todo mundo... Ela segue implorando... 'pelo amor de Deus, promete, por favor, que o senhor vai telefonar para minha filha quando terminar aqui e vai dizer a ela que eu vou ficar boa para ela não me abandonar... me dá um remédio pelo amor de Deus' . . . Eu tentava intervenções mais serenas, mas ela foi crescendo, aumentando o tom, até dizer 'eu preciso de alguém que me diga assim... chega, pára,... não faz mais isso!... Como num ato reflexo, eu disse enfático: 'Então pára!' Ela tomou um susto e parou. A outra psicóloga assumiu o caso na hora e pedimos a um médico que a atendesse naquele dia para tranqüilizá-la e talvez medicá-la, se fosse o caso, explicando o episódio e nossa decisão de encaminhar para psicoterapia.

"Ainda ouvimos a outra senhora que pouco falava, muito reticente, se deixando representar por sua filha que insistia em obter um atendimento na geriatria porque tinha ouvido falar nisso... Tentamos fazê-la retornar ao grupo na outra semana para conversar e esclarecer melhor esse pedi­do. Solicitamos a opinião da senhora que dizia que o grupo era bom, o médico também seria bom... e a filha dizia: 'Eu conheço ela. Marca logo um médico porque se o senhor disser para ela voltar, ela não volta'. Apostamos em tentar um retorno porque achamos que o pedido vinha meio apressado e estereotipado... velho vai para a geriatria! Ela não retornou."

O exemplo mostra como esse tipo de atendimento requer uma certa sutileza na escuta, bem como precisão e agilidade na condução de cada caso. Extraordinariamente, nesse dia contou-se com a disponibilidade de dois membros da equipe em receber parte dos próprios encaminhamen­tos, além do suporte regular da equipe de plantão. Essas ocorrências, não raras nesse tipo de serviço, lembram bem o refrão de uma música dos Titãs: "Tudo ao mesmo tempo agora!"

Outra entrevistada relata sua experiência com triagem em grupo em um serviço de saúde mental, que se assemelha à proposta dos grupos de recepção:

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"Havia um horário fixo para a triagem, e quem chegasse ao serviço tinha que passar pelo grupo. Tinha de tudo: crianças e familiares, adultos psicóticos em surto ou não, adultos neuróticos, uma maioria de mulheres etc. Explicávamos que era uma reunião de triagem e que queríamos saber o motivo deles estarem ali para podermos fazer os encaminhamentos. Observamos, com o tempo, que a triagem já tinha resolutividade.

"Um dia veio um senhora com uma menina encaminhada pela escola com distúrbio de aprendizagem. Ao indagarmos o motivo, ela disse que a menina tinha dez anos e estava na I a série... Mas, o que houve? Ela repetiu o ano?... 'Não, ela não é minha filha não, é que ela veio do norte e lá ela não estudava... eu botei ela na escola agora...' Até então, ninguém tinha se dado ao trabalho de perguntar por que ela estava na I a série.

"Uma outra vez, veio uma moça dizendo que era viúva, crente de uma pequena Igreja, que não permitia que ela se casasse de novo. Se queixava de uns calores no corpo. Uma outra mulher então sugeriu que ela fre­qüentasse a sua Igreja, porque lá ela poderia se casar. Ela imediatamente pegou os horários do culto e deu-se por satisfeita.

"Teve um outro caso de uma menina de uns sete anos, que tinha uma confusão de sintomas: não dormia sem a avó que cuidava dela, fazia xixi na cama, era cheia de fobias, chorava dia e noite, e não conseguia ficar na escola sem a presença da avó. Tinha uma história complicada de abandono da mãe e o pai tinha sumido. Me lembrava a Piggle do Winni-cott. Essa menina entrou em análise comigo apoiada pela avó e ficou uns quatro anos vindo ao ambulatório regularmente. Foi um caso de psica­nálise, sem dúvida."

O segundo exemplo mostra que a resolutividade depende não só das iniciativas da equipe mas, também, de sua tolerância em deixar que as demandas se resolvam naquele espaço, para poder diferenciar as condu­tas e os encaminhamentos. Nesse caso, o atendimento em grupos era muito incentivado. Havia grupos de pacientes egressos de internação psiquiátrica em hospitais conveniados, grupos de familiares desses pa­cientes, de mulheres etc. Mas também havia a possibilidade de um atendimento individual prolongado. A oferta cabia ao profissional, e a demanda delineava-se nesses atendimentos coletivos como uma espécie de vestíbulo da psicanálise.

O fato de a psicanálise fundamentar a escuta nesse tipo de trabalho, visando ir além das queixas e demandas mais imediatas, pode favorecer um encaminhamento que dê início ao processo analítico. Mas também, tendo em vista a proliferação de urgências num atendimento em grupo,

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corre-se o risco de prolongar a escuta em função de demandas pouco claras, a ponto de perder sua resolutividade. Ou, ainda, de padronizar os encaminhamentos para a chamada psicoterapia — conjunto heterogêneo de práticas psicológicas onde se aloja a psicanálise — seja porque seria considerada a melhor modalidade de tratamento, ou porque já haveria um estereótipo da psicoterapia como lugar privilegiado para se falar dos problemas da vida. Essa concepção, por si, não é má, afinal uma análise pode bem começar por aí, desde que não se torne mais um cacoete da clínica.

Obtive um relato interessante que mostra bem o modelo em seu avesso. Em outro serviço de saúde mental a recepção era feita em grupo por um psiquiatra com a presença de um psicólogo. Em meio à confusão de pacientes, familiares e acompanhantes, o psiquiatra procedia às per­guntas: "Qual o seu problema?" ou "Agora é sua vez..." e ouvia cada um por poucos minutos, encaminhando rapidamente para medicação ou psi­coterapia de acordo com a primeira impressão, visando uma alta resolu­tividade numérica. Aqui, atender é sinônimo de despachar, e grupo é simplesmente uma questão de quantidade.

Feita a ressalva sobre o que não se deve fazer, o modelo dos grupos de recepção, ou de triagem coletiva, tem se propagado especialmente nos serviços de psiquiatria e/ou de saúde mental. Sua preocupação maior em defender a convivência de pacientes graves, ou com comportamentos aparentemente inadequados, junto aos demais, pretende desfazer o estig­ma da doença mental e socializar as experiências do sofrimento psíquico. Há, justamente aí, um fio condutor que os liga: todos estão ali buscando soluções para seu sofrimento. De certa forma, esse é um fator homoge-neizador. O problema de um pode interessar, comover e, mesmo, provo­car efeitos terapêuticos no outro. Pode também causar horror, mas nesse ponto o manejo cabe à equipe. De qualquer modo, esse tipo de atendi­mento pode permitir discriminar as demandas até onde é possível, para localizar a questão do sujeito em meio ao emaranhado de queixas que tanto podem vir dele quanto dos que o acompanham.

Um último exemplo: Novamente, trata-se de uma triagem em grupo, desta vez em um

serviço que atende adolescentes e suas famílias: "Atendemos uma menina que vinha acompanhada de sua avó. Depois

de alguns atendimentos, ela pede um espaço para ela. Encaminhamos para um grupo de mulheres. Ela foi umas duas ou três vezes e pediu para

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voltar para o grupo anterior dizendo: 'Aqui não escuto caso de ninguém... quero escutar os casos das pessoas também.' Resolvemos acolher o seu pedido, porque, na triagem, a mãe ou um parente vêm junto; no outro grupo ela teria que vir sozinha. Tenho a impressão de que não é porque ela não queria se separar da avó, como um sinal de dependência. Mas, talvez, porque ela esperasse que a avó pudesse se beneficiar também. O mais curioso, é que a avó diz: '... Nossa! como ela está bem... voltou a estudar, porque ela tinha parado os estudos... agora ela escuta os proble­mas das pessoas..."

O exemplo fala por si. Sobre esse caso é importante estar atento aos seus desdobramentos para acompanhar os efeitos dessa demanda. Aqui, a triagem se transforma em tratamento. E, do que se trata no pedido dessa adolescente?

Curiosamente, esse não é o único caso em que o grupo de triagem é escolhido. Fiquei sabendo que, nesse mesmo serviço houve situações semelhantes. A entrevistada relata outro episódio:

"Teve um outro caso de um menino de uns dez ou onze anos, que me foi encaminhado para psicoterapia individual; veio a algumas sessões e não voltou. Um tempo depois, encontrei com ele, por acaso, quando fui à sua escola para fazer um contato institucional, através da minha unida­de. Ele lembrou de mim e, para minha surpresa, voltou a procurar o serviço. Recomeçou pelo grupo de triagem e, quando foram encaminhá-lo, ele foi explícito: 'Não,... eu quero é ficar aqui mesmo. Aqui eu ouço os problemas dos outros, eu aprendo com isso.' Novamente aceitamos."

Em outras unidades, cuja característica dominante é a oferta de ser­viços de clínica médica com várias especialidades, os procedimentos são diferentes. Os pacientes dirigem-se à especialidade médica para onde foram encaminhados, ou à clínica geral para um exame preliminar, oca­sião em que é feita a triagem para as outras clínicas, entre elas a psico­logia. Muitas vezes os psicólogos são alocados junto a especialidades médicas onde há maior solicitação de sua intervenção. E bom esclarecer que ela parte mais dos médicos do que dos pacientes. O encaminhamento se dá, então, por vias mais personalizadas e menos regulares.

É também o caso dos centros e postos de saúde que não têm um serviço de psiquiatria ou de saúde mental, bem como dos ambulatórios dos hospitais gerais. Recebem demandas para a clínica médica de acordo com os programas de atenção primária e secundária oferecidos. As mais freqüentes são para a pediatria, ginecologia e obstetrícia, pneumologia,

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dermatologia, hanseníase, diabetes e cardiologia — com destaque para a clínica de hipertensos. Nos hospitais, há uma variedade maior de espe­cialidades incluindo nefrologia, reumatologia, endocrinologia, neurolo­gia e, em alguns casos, psiquiatria.

Conforme relatos dos entrevistados, a partir da resolução específica dos problemas clínicos, os encaminhamentos são feitos para a psicologia, seguindo, na maioria das vezes, critérios genéricos e estereotipados. Os mais comuns são: problemas de aprendizagem e comportamento, no caso de crianças e adolescentes; dificuldades clínicas com adultos resistentes a determinado tratamento; problemas emocionais de todo tipo, sendo ansie­dade e depressão os mais freqüentemente diagnosticados. Nesses casos, o serviço de psicologia é visto como 'ajustador' de situações-limite que podem comprometer o bom andamento da clínica médica, ou, como referiu um entrevistado, "depositário de tudo o que diz respeito ao huma­no e provoca ansiedade nos médicos..." E ironiza: "bons tempos da me­dicina em que corpo e gente eram a mesma coisa".

Um outro comenta: "Eles querem encaminhar tudo que é considerado problema psicossocial: o pai que bate, o que bebe, a criança que fugiu de casa ou foi seduzida pelo pai, padrasto ou irmão; a que vai fazer uma cirurgia... e por aí vai."

Há também os famosos poliqueixosos — enigma que os médicos se eximem de decifrar — e os psicossomáticos, que já têm seu lugar garan­tido na ambígua especialidade conhecida como medicina psicológica ou psicossomática: uma espécie de terra de ninguém, ou de todo mundo, onde grassa o psicologismo e a interpretação carregada de sentido facul­tada a quem for mais imaginativo, provocando uma disseminação bana­lizada tanto do jargão médico quanto do psicanalítico. Não pretendo discutir este ponto em toda a sua extensão, mas atento para os impasses que daí advêm para o diagnóstico e para o tratamento.

Além do encaminhamento da clínica médica, as demandas mais fre­qüentes à psicologia vêm das escolas. Seja diretamente, através de pedi­dos de laudos, ou, indiretamente, através das mães que são pressionadas a levarem seus filhos, sob pena dc perderam suas matrículas. Sobre isso, alguns psicanalistas apresentaram como solução uma triagem que, ini­cialmente, prioriza a posição da mãe ou do responsável pela criança.

Tomemos dois exemplos:

"Minha primeira intervenção era para esclarecer o pedido e tranqüi­lizar a mãe sobre a matrícula, até para poder situar o caso. Elas vinham

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desesperadas e despejavam um mar de queixas dos filhos, do marido, da sobrecarga de trabalho em casa etc. Tinha que peneirar essa confusão e, se fosse preciso, mandar logo um bilhete para a escola garantindo que a criança estava sendo avaliada... aí eu ganhava tempo. As vezes bastavam algumas entrevistas e a coisa se resolvia... e, muitas vezes, era a mãe que ficava em tratamento. Havia casos em que eu atendia a criança e manti­nha conversas regulares com a mãe e via alguns efeitos interessantes com a mãe enquanto que com a criança a coisa não mudava muito... ela pegava uma carona no tratamento do filho, mas ela precisava acreditar que era ele quem se tratava e não ela."

"Quando cheguei no serviço, era uma enxurrada de mães ansiosas trazendo cartinha da escola e resolvi atender em grupo... era muita de­manda equivocada... No geral era distúrbio de comportamento e dificul­dade de aprendizagem. Para não deixar a criança entrar nesse circuito equivocado da doença, comecei a usar de bom senso, me metia nas histórias e falava quase o tempo todo... era uma barulheira danada... crianças pela sala, todo mundo falando ao mesmo tempo... as mães se queixavam muito que não conseguiam dar limites, se fazerem respeitar... tudo podia ser trauma... Uma dizia: 'Meu filho não gosta de tomar remédio... se eu forçar vai ficar com trauma'... Eu dizia que remédio não é opção... tem que tomar... tenta com jeito... não foi?... abre a boca e pronto... falta de limite é que traumatiza. Acho que grande parte dos problemas era decorrência da infiltração do psicologismo nas camadas mais pobres. Eu tinha que esclarecer que aquilo era uma triagem e que se houvesse necessidade nós atenderíamos a criança, mas defendia que a maioria delas não precisava... E, com isso, o grupo tinha uma resoluti­vidade grande, de repente a queixa sumia e uma mãe falava: 'Estou vindo porque quero conversar, a criança está bem'."

Outro entrevistado conclui: "O que acontece é que tanto o clínico quanto a escola forjam uma demanda que temos que trabalhar, senão nada acontece..."

O que interessa destacar em todos esses exemplos é a importância de ganhar tempo, seja atendendo individualmente ou em grupo no modelo dos grupos de recepção. E preciso decantar essas demandas. De um lado, para esvaziá-las, desfazendo equívocos. De outro, fazendo aparecer um dado novo ('um a mais ') , ou uma outra maneira de dizer. Há, portanto, um trabalho anterior a ser feito como condição para dar lugar a uma outra demanda que possa ser remetida à psicanálise ou, simplesmente, fazer

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desaparecer a demanda 'tora do lugar'. Essa deve ser a maior lição que temos que aprender da psicanálise nesse primeiro momento.

Sobre a demanda fora do lugar, há um consenso entre psicólogos, psicanalistas e psiquiatras, menos aderidos ao medicalismo, que a clínica médica, ao separar 'corpo' de 'gente' , sofreu um empobrecimento de seus recursos propriamente clínicos substituindo-os por novas tecnolo­gias de exame e diagnóstico que prescindem dos elementos terapêuticos sustentados na relação de confiança nutrida pela convivência e pela conversa. Freud sempre sublinhou os efeitos da sugestão que estão na base dos fenômenos da transferência como um poderoso instrumento terapêutico — e também de equívocos — presente na clínica em geral.

A questão não é assemelhar a clínica médica à psicanalítica sob o mesmo denominador comum da transferência. Antes, é devolver à clíni­ca médica um espaço dela retirado pelo próprio psicologismo (ou psica-nalismo), para dar conta de um certo endereçamento feito ao médico em vez de precipitá-lo aos 'psi' quaisquer em nome das especialidades.

Em alguns serviços, me foi relatada uma constante preocupação, especialmente por parte dos psicanalistas, em indagar dos médicos os motivos deste ou daquele encaminhamento. Muitas vezes entabulavam conversas informais, outras, discutiam em reuniões comuns procurando, nem sempre com a tática desejável, deter essa precipitação em expelir do campo médico tudo o que escapa a uma dimensão tecnicista do exame e diagnóstico.

Duas armadilhas entravam esse diálogo clínico precipitando as con­dutas: A primeira é o medicalismo, que responde ao pedido de 'remédio' com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não houvesse outro 'remédio' para o sofrimento. A segunda é o psicologis­mo, que responde ao pedido de soluções para o 'trauma', entendido como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente esclarecida. O que é diferente de se utilizar taticamente do recurso a uma certa pedagogia para desfazer os excessos de psicologismo. O problema é que a tarefa crucial de enxugar o medicalismo ou o psicologismo não se dá sem problemas.

Primeiro porque "os lugares onde, em princípio, médicos e psicana­listas [e psicólogos] se encontram são, sem dúvida, aqueles onde tudo pode ser dito, porque são sem possibilidade de rigor. Na melhor das hipóteses, são lugares de transição onde se afirmam vocações; na pior, pântanos onde se afundam veleidades" (Clavreul, 1983, p. 179).

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Segundo porque, em se tratando do serviço público, a burocratização das especialidades, que tem como um de seus resultados nefastos sua própria estereotipia, não permite, sequer, a existência desses "lugares de transição", ou de trânsito, que podem favorecer a clínica.

Tomemos um exemplo-limite: "Teve um caso que veio da pediatria para mim [psicóloga]. Era uma

pediatra mais velha, à beira da aposentadoria. A mãe senta do meu lado e começa a explicar: 'ah... não sei... ela está comendo muito, bebendo muita água, fazendo muito xixi e emagreceu'... Eu disse que estava me parecendo que a menina estava diabética, no que ela respondeu: '... é, tem casos na família'. Devolvi para a pediatra, cheia de dedos porque era uma situação muito delicada, e disse que não sabia bem porque ela queria uma psicóloga agora, mas a urgência era médica. A pediatra confirmou minha hipótese."

Sem dúvida, houve um erro médico, de anamnese, que remeteu o trabalho clínico a uma não médica. Seu diagnóstico foi feito sobre um relato simples, bastava ouvir atentamente a queixa. Não se sabe sequer em que condições se deu o primeiro atendimento, nem o que a mãe falou. Isso é que é assustador. Enurese ou diabetes? Psicologia ou medicina? Eis um efeito nefasto da estereotipia que aposenta a clínica.

Um outro relato de uma psicanalista, que recebe encaminhamentos freqüentes da pediatria, apresenta o problema revelando sua preocupação quanto ao desconhecimento, quiçá descaso, dos médicos sobre o que seja o trabalho psicanalítico. Os motivos são padronizados, mais uma vez, sob a rubrica de distúrbio do comportamento.

"Eles encaminham pedindo uma avaliação do psicólogo como se estivessem encaminhando para um colega de outra especialidade. Tudo deve se resolver com laudos, definindo diagnósticos e condutas sobre tal ou tal sintoma. Em psicanálise não é assim.

"Uma vez, tentei explicar a concepção que a psicanálise tem do sintoma comparando com a medicina, numa apresentação de caso para urna platéia predominantemente médica. Acho que falei para as paredes. E o pior é que meus colegas presentes ficaram tentando reduzir a dife­rença, como se isso fosse gerar um atrito com os médicos. Aliás, o que mais me impressiona é que são todos psicólogos com formação em psicanálise, mas tendem a reproduzir algo próximo do modelo médico, dando diagnósticos precipitados, muitas vezes comunicando-os aos pa­cientes e à família, mais para prestar contas aos médicos do que para

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construir a possibilidade de um trabalho psicanalítico. Observam os sintomas e fazem uma intervenção mais normativa, sem questionar os encaminhamentos ou dar um desdobramento a esse atendimento... Pare­ce-me que não há rigor científico. Fazem uma abordagem meio compor­tamental, até educativa, confundindo os lugares do psicólogo com o do assistente social e, mesmo, com o do médico... Lá no serviço todos somos chamados de 'doutor', e não só pelos pacientes."

Mais adiante ela faz a diferença dando um exemplo inverso: "Tem duas neuropediatras que trabalharam comigo em outro lugar

onde pudemos discutir melhor o momento propício de fazer os encami­nhamentos, e a coisa funcionou diferente. E bem verdade que elas estão mais envolvidas com a psicanálise, fazem análise e se interessam em acompanhar os desdobramentos dos casos. Lembro do caso de uma paciente que fazia crises convulsivas e vinha sendo tratada com medica­ção própria para isso. A médica que a atendia, em vários momentos, achou que devia encaminhá-la para a psicologia em função dela se queixar de uma inibição acentuada e de ter uma história complicada de adoção. O encaminhamento só foi feito quando a paciente começou a se perguntar sobre as situações que a levavam a fazer a crise convulsiva. A meu ver, ela pôde reconhecer a diferença entre escutar uma queixa c escutar uma questão do sujeito. Isso é fundamental."

Tomando os dois exemplos, no primeiro os psicólogos se aproximam dos médicos desconhecendo a especificidade da escuta psicanalítica. No segundo, os médicos se aproximam dos psicanalistas reconhecendo essa especificidade: exemplos limítrofes do mau e do bom procedimento. O que devemos apreender disso é que, do indesejável ao desejável para a instalação do dispositivo psicanalítico, cabe ao psicanalista a responsa­bilidade de fazer a diferença, contando mais ou menos com a adesão dos outros especialistas. Sc a demanda já vem azeitada, muito bem. Do contrário, é preciso recomeçar a cada caso, mesmo em condições adver­sas. Logo, não cabe ao psicanalista exigir dos médicos que sejam menos médicos, mas pode-se ousar provocá-los sobre o que mais podem fazer para atender seus pacientes sem pressa de passá-los adiante. Também, não lhe cabe ceder às demandas médicas a ponto de descaracterizar seu trabalho.

Outra psicanalista comenta que é mais eficaz trabalhar com determi­nados profissionais para uma melhor condução dos casos: "Eu faço parceria com uma psiquiatra homeopata que me encaminha os casos, acho que facilita."

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Entretanto, há certas parcerias que podem resultar num impasse. Tomo o exemplo de uma psicanalista que atendia um rapaz epiléptico que fazia uso abusivo de cocaína. Ele tinha acompanhamento médico. O diálogo entre os dois profissionais se deu mais ou menos assim:

"Médica — Estou muito preocupada com ele... sei que está cheirando escondido, assim não posso me responsabilizar pelas conseqüências.

Psicanalista — Comigo ele não falou nada sobre isso. M — Mas você que é psicóloga tem que falar com ele... P — Mas se ele não me disse nada eu não posso chegar com essa

informação vinda de fora... por que você não fala com ele e vemos o que acontece?... afinal, você é quem medica e o problema é a epilepsia com a medicação e a droga..."

Nesse aparente jogo-de-empurra, a proposta da médica é que quem medica não conversa, não age sobre questões morais ou educativas, isso é tarefa da psicóloga. Para a psicanalista — é assim que ela se nomeia, acatando taticamente a designação de psicóloga — a conversa em jogo não pressupõe outra intervenção que não seja a partir da fala do sujeito. O que ele esconde e de quem, é responsabilidade sua. Escuta-se um sujeito, e não um epiléptico, ainda que esse fato não possa ser escamo­teado com todas as suas conseqüências. Afinal, ser epiléptico lhe diz respeito. Esse exemplo nos põe diante da questão crucial de que 'conver­sa' define a clínica psicanalítica. Retomarei esse ponto adiante.

Voltando ao tema inicial, há situações em que o próprio psicanalista é chamado a fazer a triagem do serviço em entrevistas individuais. Sabe­mos que boa parte, senão a maioria, daqueles que procuram atendimento pode não se dispor, num primeiro momento, a entrar no jogo psicanalí­tico. O que fazer?

Em primeiro lugar, tomemos uma regra geral para o encaminhamen­to: é preciso estar situado em relação às ofertas de tratamento operantes no serviço. Digo operantes, porque admito que nem sempre as ofertas cumprem seus propósitos por motivos que vão além da questão propria­mente clínica. Como exemplo, refiro-me a um serviço cuja tradição era oferecer atendimento psicoterápico em grupos, e foi se desmantelando por falta de profissionais habilitados e/ou dispostos a mantê-lo. Na clíni­ca, não se pode contar com o que está à beira da extinção.

Uma psicanalista comenta, apreensiva, que ao fazer a triagem tende a absorver determinados casos porque considera que a oferta do serviço sem capacidade para comportar casos mais graves ou demandas que revelam sofrimento intenso ou questões mais singulares:

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"Nas primeiras entrevistas tento ver que tipo de demanda pode se enquadrar nos atendimentos oferecidos. Lá, eles têm vários tipos de grupos temáticos e, às vezes, recebo casos que podem se encaixar bem nesses grupos. Recebi uma senhora que estava a fim de conversar, tinha um marido alcoólatra e descobriu que estava sendo traída, mas me pare­cia que ela estava querendo trocar idéias com outras mulheres. Encami­nhei-a para o grupo de mulheres. Mas quando chega alguém mais angus­tiado ou com uma questão sobre seu problema, eu acabo p e a n d o o caso.

"Outro dia atendi um policial, um sujeito forte, rude mas respeitoso, que chegou com os olhos úmidos dizendo que acha que o filho é viado. Ele diz: 'se for assim, já sei que tenho que aceitar'. E le ja tinha vascu­lhado o quarto do menino e estava muito angustiado. A dúvida dele é muito interessante, porque ele diz que o filho só anda com meninas e, quando leu sua agenda, descobriu que o filho estava apaixonado por uma menina. Ele quer saber se o filho quer ser como as meninas ou se está mesmo interessado numa delas. Provavelmente, esse dilema atravessa o menino também, uma divisão entre a identificação e a escolha de objeto muito comum na adolescência. O pai prossegue dizendo: '... eu me lembrei de mim porque o meu pai nunca conversava comigo... não falava nada sobre mulher... aí eu disse pro meu filho... vou te levar numa terma'... Mais adiante ele pergunta: 'Será que eu levo ele numa terma?' Eu respondi sem vacilar: 'Espera um pouco, você mesmo falou que teve problemas com seu pai porque ele não conversava... não é melhor falar com seu filho antes?' Ele acatou e me pareceu mais aliviado. Resolvi pegar o caso e marquei para ele voltar".

Infelizmente, não tenho mais dados sobre o rumo desse caso. É importante destacar desse episódio que há um trabalho para fazer, par­tindo de uma prioridade dada pelo sujeito que se apresenta como um pai temeroso de estar falhando em fazer de seu filho um homem, quando ele próprio, ainda que feito homem, não sabe muito bem o que deve fazer um pai para isso. O que o faz crer que um psicólogo saberia, pode ser fruto da idéia disseminada na cultura 'psi ' de que os psicólogos enten­dem de sexo ou de conversa. Mas isso é apenas um solo comum sobre o qual caminham e se encaminham as mais diversas demandas com os mais variados desfechos.

Outras modalidades mais prosaicas de encaminhamento, que se cos­tuma chamar de informal, são freqüentes em pequenas unidades como os postos de saúde afastados dos grande centros. Psicólogos e psicana-

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listas que trabalham nesses lugares, geralmente sozinhos ou acompanha­dos apenas de um colega, foram unânimes em afirmar que, após um certo tempo, recebiam um afluxo maior de pessoas que os procuravam direta­mente a partir de indicações feitas por amigos, vizinhos e parentes em atendimento, ou haviam sido, atendidos por eles. Entretanto, isso não significava que iniciassem processos de análise. Houve situações cm que a mesma psicanalista já havia atendido quase toda a família e outras inesperadas. Seguem-se dois exemplos:

"Eu atendo uma mulher que chegou depois de vários membros da família terem passado por mim. Primeiro veio a neta, depois o filho, depois a sogra e, por último, ela. Eles se revezaram durante um tempo e só ela permaneceu. Curioso é que ela vinha e não sabia o que falar, por mais que eu puxasse não saía nada. Até que um dia eu disse: 'então está bem, quando você tiver alguma coisa para me dizer, você volta aqui'. Ela passou um bom tempo sem aparecer e quando voltou veio meio conver­sando, e lá pelas tantas me fala que lembrou de uma intervenção minha que tinha feito ela mudar de atitude. O sintoma dela consistia em peram­bular pelos médicos, fazer uma série de exames, e não pegar os resulta­dos. Eu havia marcado isso de 'não pegar', e ela me diz, meio por acaso, que já tinha conseguido pegar um exame de sangue. Ela vem uma vez por mês porque mora em outro município, é muito longe e não tem condução fácil.

"Um dia, recebi um homem, que era peão de uma fazenda no muni­cípio vizinho, chegou a cavalo e disse que estava ali porque tinha ouvido duas senhoras conversando que diziam que tinha uma doutora no ambu­latório que tratava sem remédio. Perguntei o que ele tinha e ouvi como resposta: 'Eu tenho uma coisa que remédio não cura... meu passado está voltando.' No decorrer da entrevista, ele foi explicando como era isso. Eram seus sonhos que ele relacionava com situações de sua própria vida que atualizavam esse passado... Foi surpreendente!"

Diante de modalidades tão diversas e adversas de encaminhamento, o psicanalista pode estar presente desde o primeiro momento ou ser o último a saber (como o marido traído) sobre o percurso de quem chega até ele. Certamente, isso faz diferença. E, não resistindo ao inevitável jogo de palavras, o 'isso' que faz diferença é propriamente seu métier. Em suma, decantar a demanda num tempo de lala; esvaziar a demanda 'fora do lugar' num tempo de correção ou retificação ou, ainda, agir sobre a demanda num tempo de acuidade da escuta que precipita a

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decisão, seja como for, o psicanalista tem que fazer diferença sem cair no logro de bancar o diferente. A diferença diz respeito a seu agir em cada caso e não a uma estilização caricatural de sua função. Como manter essa diferença frente a outros profissionais? Como se situar em equipe? Vamos adiante.

2.2 The dream team: o trabalho em equipe

O modo de organização dos profissionais no atendimento ambulatorial define o processo que tem início na recepção, ou triagem; determina o tipo de encaminhamento e as diferentes formas de tratamento, entre as quais se inclui a psicanálise. Eles podem ou não organizar-se em equipes. Se assim o fazem, essas equipes podem ser mais ou menos coesas e mais ou menos instituídas de acordo com as concepções de assistência vigen­tes nos diferentes serviços.

A formação de equipe tida como ideal para a execução dos projetos assistenciais em saúde mental é a chamada equipe multiprofissional — the dream team? — visando um trabalho interdisciplinar.

O termo multiprofissional pressupõe a conjunção de diferentes pro­fissionais, como: médicos (clínico geral, neurologista, psiquiatra), psicó­logos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas, fo-noaudiólogos e, nas unidades hospitalares, enfermeiros, para citar os mais freqüentes. Curioso é que o psicanalista raramente aparece identi­ficado como um desses profissionais. Talvez porque o ideário psicanalí­tico já circule, diluído no campo psicológico, entre alguns dos profissio­nais mencionados, principalmente psiquiatras e psicólogos, e mais raramente entre os demais. Talvez porque esses mesmos profissionais não se identifiquem ou não sejam identificados como psicanalistas. Iden­tificar o psicanalista como profissional não parece ser corriqueiro i s instituições públicas. Volto a esse ponto adiante.

Há uma concepção corrente e um tanto equivocada que mistura os termos multiprofissional c multidisciplinar, ou interdisciplinar, supondo uma correspondência simétrica entre as disciplinas e as categorias pro­fissionais. Isso pode desembocar numa confusão estéril que descaracte­riza a especificidade do trabalho clínico e, até mesmo, escamotear ques­tões ético-políticas que presidem o funcionamento institucional.

Localizo dois discursos distintos que dão suporte à formação das equipes:

O primeiro, mais usual, defende as especialidades. "Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso." Isto é, cada especialista tem seu

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território de ação, e tanto pode estabelecer fronteiras rígidas isolando seus procedimentos de modo a não haver contato maior entre eles, quan­to estabelecer áreas de trânsito onde seja possível uma troca de experiên­cias. No primeiro caso, a tendência é burocratizar, e até esvaziar o sentido de equipe. O médico medica, o psicólogo psicologiza na psico­terapia, o assistente social socializa, o enfermeiro faz a enfermagem, dos primeiros socorros à maternagem, e por aí vai. No segundo caso, os especialistas conversam, seja nas conhecidas reuniões de equipe, de forma regular e, portanto, instituída, ou nos corredores, de acordo com as urgências. As questões de diagnóstico, encaminhamento e tratamento vêm à tona, podendo produzir efeitos interessantes na clínica ou criar impasses que forçam a tendência ao isolamento. Tudo parece depender do exercício de persuasão, de uma certa disposição de cada especialista para convencer e ser convencido.

Tomemos alguns exemplos: Começo por um serviço de atendimento a adolescentes que trabalha

em equipe multiprofissional, organizada cm torno da clínica médica. A maioria dos profissionais são médicos com diferentes especialidades; além desses há assistentes sociais e psicólogos, sendo que um deles é uma psicanalista. Esta apresenta o seguinte relato:

"Trabalho com médicos docentes, isto já quer dizer que sabem duas vezes. Pensei no desafio que seria introduzir o discurso psicanalítico no trabalho de clínica médica, onde os casos são recebidos a partir de pro­blemas orgânicos, físicos. Logo percebi que tinha que fazer uma parceria, fazer um atravessamento para ir diferenciando os discursos. Hoje me chamam para fazer diagnóstico diferencial, principalmente porque che­gam muitos pacientes histéricos aqui com uma sintomatologia variada, que se sobrepõe ao problema orgânico. Eles investigam da cabeça aos pés e percebem quando não é mais com eles, aí encaminham para mim.

"Quando cheguei aqui foram logo me dizendo que não era para fazer consulta particular porque eu estava numa instituição. Entendi o recado e não entrei em disputas. A demanda era para atender os pacientes, internados ou não, em grupos. Havia assistentes sociais que já faziam isso e eles queriam que um psicólogo coordenasse. Ficou um clima de que o psicólogo é quem está preparado para isso. O que eu vi foi que as assistentes sociais faziam muito bem essa parte, e não era justo que eu tivesse de substituí-las ou provar que faria melhor. Fizemos esse trabalho juntas por um tempo e hoje quem assumiu a coordenação foi o serviço social. Meu argumento foi que os grupos informativos, de esclarecimcn-

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to e apoio, podiam muito bem ser feitos pelos profissionais que se dispusessem a isso. Parou a briga histórica entre psicólogos e assistentes sociais.

"Numa outra ocasião, um médico ilustrado que gostava de entender de psicanálise, contou a história de um paciente que tinha perdido o documento de identidade na rua. Meio irônico, ele me disse: 'como você diria, ele perdeu a identidade dele mesmo.' E eu respondi: 'como Freud diria, isso seria uma psicanálise selvagem ou inculta, não é? ' A partir daí acho que ele percebeu que há uma diferença e que um discurso não invalida o outro."

Pode haver, entretanto, situações em que a intervenção do psicanalis­ta em equipe não releva a especificidade dc determinada estratégia clíni­ca do médico forçando a diferença equivocadamente. Um exemplo:

Trata-se do caso de um rapaz casado com graves problemas neuroló­gicos provocados por um acidente. E atendido por uma neuropsiquiatra que passa a receber o casal nas consultas, visando incluir a mulher no tratamento, dadas as condições críticas do marido. Ela estava muito ansiosa e preocupada com a súbita transformação de seu comportamento em casa. O relato é da neuropsiquiatra:

"Ela vinha sempre com ele querendo saber sobre a doença, se ele ia ficar bom, muito preocupada. Eu precisava atender os dois para orientar sobre os procedimentos para os exercícios de reabilitação neurológica, que deveriam ser feitos com urgência. Só que comecei a notar que ele ficava meio incomodado na presença dela. Meu medo era que ela não agüentasse a nova situação, o que colocaria em risco o tratamento dele. Eu precisava saber se os exercícios estavam sendo feitos corretamente e contava com ela para isso. Na reunião da equipe, o pessoal da psicologia insistiu para que eu o atendesse sozinho porque ele deveria se responsa­bilizar mais por sua condição. Fiquei no impasse. Pressionada, pensei em acatar a determinação da equipe. Mas resolvi manter os dois. Meu traba­lho não é de psicoterapeuta, tenho que continuar a atendê-los juntos para garantir uma melhora da condição neurológica dele, ainda bem compro­metida. Eles estão juntos nisso... Ele ficava apreensivo por ela estar à frente do tratamento. Eu expliquei que ela fazia isso porque o amava e queria ajudá-lo a ficar bom. Acho que funcionou. Ele alternava compor­tamentos agressivos com total apatia, e tinha um comprometimento ob­jetivo da realidade. Recentemente, ele desapareceu do tratamento e ela veio sozinha à consulta para me contar que ele tinha interrompido a

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medicação. Conseguimos trazê-Io de volta. Sem ela, eu teria perdido o paciente e não poderia fazer mais nada."

Este exemplo retoma a questão de como e até onde o médico deve conduzir sua clínica sem arvorar-se em psicólogo, permanecendo atento ao que mobiliza os sujeitos envolvidos em função de seus objetivos clínicos.

Uma psicanalista comenta sua experiência no trabalho em equipe após uma longa trajetória no serviço de psicologia de um centro de saúde onde recebe encaminhamentos de outros serviços em clínica médica, psiquiatria, fonoaudiologia e nutrição, e avança uma proposta. Em suas palavras:

"Apesar de nunca termos sido um serviço de saúde mental, chegamos a ter a ilusão de uma equipe. Houve um tempo em que psiquiatras e psicólogos estavam mais próximos. Andamos subindo morro para fazer um trabalho entre a prevenção c a clínica. Hoje acho que o trabalho clínico tem que acontecer pelo desejo, mais pontual, num certo sentido, mais isolado. Está reaparecendo uma equipe em outros moldes, estamos discutindo casos... Volta e meia estou conversando com a fono nos cor­redores, porque os médicos fazem encaminhamentos simultaneamente para mim e para ela. Então nós decidimos por um ou outro, dependendo do caso. As vezes fica meio complicado porque sinto que a fono ou a nutricionista pedem uma espécie de supervisão mas, ao mesmo tempo, somos colegas. A verdade é que temos um instrumental precioso na psicanálise que tem que ser usado com cuidado.

"Uma vez a nutricionista veio toda enrolada com o caso de uma adolescente grávida que não se alimenta direito e não vai comer o que a nutricionista acha que ela tem que comer. Segundo ela, a menina diz assim: 'Depois que eu engravidei, tudo bem, minha mãe não briga mais comigo, não preciso mais estudar, tá tudo ótimo.' Eu chamo a atenção para isso. Vamos ver o que essa menina pretende com essa gravidez, vamos interrogá-la a partir daí.

"Há também uma reunião semanal à tarde onde nos encontramos. E tem o centro de estudos que está funcionando bem, e lá apresentamos casos clínicos de modo mais sistematizado. A idéia é conversar através da clínica."

O segundo discurso que dá suporte à formação das equipes é menos usual e controvertido. Floresce nas novas tendências da clínica nas cha-

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madas estruturas intermediárias — centros e núcleos de atenção psicos­social. Defende-se uma espécie de implosão das especialidades onde o profissional é chamado a atuar nos diferentes dispositivos valendo-se de um referencial comum, nem sempre bem definido, para promover a saúde mental. Assim, qualquer um deve estar habilitado para atender individualmente ou em grupos, acompanhar internação e promover os cuidados básicos, visitar o domicílio do paciente, atuar nas oficinas terapêuticas, às vezes junto a outros profissionais não ligados à área de saúde (penso nos artistas plásticos, artesãos, contadores de histórias etc.) e participar intensivamente do cotidiano institucional e de seus proble­mas administrativos. A única especialidade mantida é ministrar medica­ção, facultada somente aos médicos.

Não discuto especificamente essa proposta por ser ainda muito inci­piente e, também, por não fazer parte do meu objetivo central. Mas aponto para um possível paradoxo: que se esteja criando a necessidade de formar superespecialistas preparados para lidar com um leque amplo e heterogêneo de instrumentos clínicos, o que demanda uma postura subjetiva e profissional muito rara. Por isso mesmo, corre-se o risco de tomar a exceção como regra, diluindo o alcance teórico e o potencial terapêutico de certos instrumentos clínicos. Ou, ainda, de não tornar explícito e, portanto, transmissível o referencial teórico ou o modelo que norteia as diferentes ações terapêuticas.

Podem ocorrer, em menor escala, certas variações ou deslocamentos das funções típicas dos especialistas com efeitos interessantes.

Tomo dois exemplos: Em um grupo de mulheres, coordenado simultaneamente por uma

psicóloga e uma assistente social, uma recém-chegada exige: "Quero falar com quem manda aqui. É você que é a psicóloga?" diz,

apontando para a assistente social, sem sabê-lo. As duas assumem a função, e ambas passam a ser referidas como doutoras. Título que evoca o médico ausente, mas já pode ser atribuído ao psicólogo. A psicóloga esclarece seu trabalho conjunto:

"No início, a gente revezava. Uma coordenava e a outra anotava. Aos poucos isso foi mudando porque uma se metia na vez da outra e eu, que falo muito, pedia para ela me cortar. Mas ela dizia que quando eu entrava era porque ela não estava dando conta, era assim mesmo. Agora, coor­denamos juntas e, quando termina, fazemos as anotações. Nem eu nem ela tínhamos experiência com grupos. Está sendo um aprendizado."

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Em uma unidade psiquiátrica desenvolveu-se um trabalho ambulato-rial em grupo com egressos de internação. O relato é de uma psiquiatra que coordenava um grupo.

"O grupo começou coordenado por mim e por um terapeuta ocupa­cional. Era um grupo de mulheres que inicialmente se reunia no pátio do hospital. Depois, conseguimos uma sala, e uma auxiliar de enfermagem veio trabalhar conosco. Nessa ocasião, as famílias também participavam. Nossa idéia era buscar junto aos pacientes outros recursos terapêuticos, além da medicação. Não definíamos a priori que recursos seriam esses. Dizíamos que elas estavam ali para buscar algo mais que não sabíamos o que era mas que íamos passar por vários caminhos, o que poderia ser conversando, discutindo os assuntos que surgiam, fazendo outras ativi­dades como pintura, teatro, costura etc. Eu chamava os grupos de 'grupos de efeito terapêutico'. Assim, qualquer profissional poderia se engajar, se quisesse. Havia uma cobrança para que os grupos fossem feitos por médico ou psicólogo. A gente trabalhava com a idéia de que a função do técnico não tinha nada a ver com o que fazia ali e nem com o que o cliente pudesse achar dele. Muitas vezes me perguntavam 'o que a se­nhora é?' Eu nunca respondia e perguntava de volta 'o que você acha que eu sou?' Uma vez uma moça me falou assim: 'Eu acho que a senhora é public-relations, porque a senhora vive correndo daqui pia ali, ajeitando tudo...' Eu adorei!"

Entretanto, permanece a questão de como se explicitam e interagem as disciplinas que fundamentam a clínica, já que não equivalem pontual­mente às profissões.

O que parece ocorrer nesse arranjo multiprofissional é a produção de uma hierarquia das profissões sob a hegemonia, mais ou menos explícita, de determinada disciplina ou modelo que vai nortear o funcionamento da equipe, a interação entre os profissionais e o trabalho clínico.

Tipicamente, recorto três modelos que disputam essa hegemonia en­tre si, podendo formar híbridos ou excluírem-se mutuamente, dependen­do da formação e, conseqüentemente, dos compromissos éticos dos pro­fissionais envolvidos. São eles: o modelo médico, o modelo psicológico e o modelo psicossocial.

Discorro brevemente sobre cada um e, para problematizá-los, tomo como referência inicial o trabalho de Costa (1996) que apresenta sua crítica à assistência psiquiátrica em geral, sob o prisma da ética que determina sua ação. O autor recorta três éticas que, a meu ver, guardam uma equivalência a esses três modelos em sua fundamentação. Correia-

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ciono cada um, sem o compromisso de seguir as mesmas linhas de argumentação do autor.

O modelo médico é o menos adotado na concepção do trabalho multiprofissional exatamente porque o reducionismo que opera em sua intervenção não dá margem à conjunção necessária de diferentes profis­sionais. Apesar disso, não deixa de impregnar as ações de profissionais não-médicos ou paramédicos, como são chamados. Esse modelo funcio­na sob a ética da tutela pautada no modelo da ética instrumental que "lida com objetos da natureza, que visa prever, predizer e controlar experimen­talmente aquilo que é estudado" (1996, p. 30). O sujeito aí é privado de razão e vontade em prol da descrição fisicalista do modo como se apre­senta.

Frases como "ele tem depressão" ou "a depressão é uma doença que a senhora tem que tratar" ou "esses ataques de pânico acontecem sem motivo aparente?" ou "sua agressividade não tem nada a ver com a sua vida, é própria da doença" (sobre um epiléptico), são exemplos típicos e corriqueiros de referência a uma causação fisiológica dos distúrbios. Contudo, há exemplos mais sutis que podem indicar causações limítrofes entre o fisiológico e qualquer coisa do psicológico, e resultam da mesma ética instrumental, como "ele ainda não tem sexualidade definida" (dito por uma psicóloga sobre um rapaz de 18 anos internado com diagnóstico de dependência química); "vamos controlar sua insónia" (dito por um médico); "o paciente não se adequa ao tratamento devido à sua hiperati-vidade" (dito por um terapeuta ocupacional); "o senhor tem que entender que isso que o senhor sente é da sua doença" (dito por uma assistente social a um paciente internado, que se queixava de sensações estranhas no corpo). Ou, ainda, frases que revelam quase caricaturalmente uma causação psíquica, mas são incorporadas à ética instrumental, como "o problema dele é que ele tem um complexo de Édipo não elaborado"; "o medo que a senhora sente é porque a senhora não consegue se desvenci­lhar de sua infância"; "ele tem uma agressividade contida e não admite isso"; "o problema dela é sua baixa auto-estima". O denominador co­mum é a objetivação do sintoma ou da doença como algo que o sujeito tem, que o acomete, e sobre o qual ele tem pouco a fazer, senão seguir as prescrições, que podem ser medicamentosas ou educativas.

O modelo psicológico refere-se à ética da interlocução, pautada no modelo da ética da moral privada, "onde a referência ao instituído é

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facilmente desfeita em nome da criação e recriação permanentes... com uma flexibilidade muito maior que a da recriação de crenças ou normas sociais" (1996, p. 31). Não há uma dissimetria tão marcada entre sujeito e agente terapêutico como no modelo médico. Ambos se definem no vocabulário psicológico. O sujeito é reconhecido como competente para buscar soluções para seus conflitos junto ao terapeuta, para o que escapa de sua vontade e de sua razão constituindo uma outra. É inegável que o ideário psicanalítico é marcado, grosso modo, por essa ética. Guarda, porém, uma especificidade quanto à definição de sujeito que não se reduz ao indivíduo de vontade e arbítrio tomado num dado momento por conflitos que, uma vez resolvidos, lhe permitiriam restituir sua unidade perdida. Além do mais, o tipo de interlocução em jogo na psicanálise não pressupõe uma relação mais próxima da simetria entre dois sujeitos. Há uma dissimetria marcada sim, mas diferente da praticada na ética instru­mental da tutela, que diz respeito à posição do agente em relação ao saber. O psicológico vai por conta da ênfase na noção de indivíduo, correlata da noção de privado, que entende o sujeito como dotado de uma consciência e poder de decisão imanentes e autônomos em relação à ordem social e à cultura que o circunscrevem e o constituem como sujeito de linguagem.

Frases como "qual é o seu desejo?"; "você pode colocar a sua raiva pra fora"; "cada um tem sua maneira de ser"; "mas por que tem que ser assim, só por que seu pai mandou?"; "de onde vem essa agressividade?" ilustram a crença numa certa imanência dos conflitos que enfatiza o individual como uma entidade em si mesma. Na pior das hipóteses, essa concepção pode desaguar numa redundância inútil, dando ao sujeito a idéia de que tudo depende de sua força de vontade. Na melhor, pode abrir caminho para ampliar as possibilidades de reflexão sobre si. Mas frases tão comuns como "estou vindo aqui há um tempão e não sei pra quê" ou "eu falo, falo e não adianta nada" podem nos indicar que não estamos indo num bom caminho.

O modelo psicossocial refere-se à ética da ação social pautada no modelo da ética pública que define sujeito e agente terapêutico, acima de tudo, como cidadãos e iguais. As virtudes terapêuticas devem equivaler às virtudes políticas, e quando não o são, podem ser relegadas a segundo plano como resquícios de um individualismo psicológico condenável. A população priorizada são os casos graves, principalmente os de sujeitos cronificados e desassistidos pelo sistema psiquiátrico tradicional. O alvo

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da luta política é a estrutura asilar, e também as práticas ambulatoriais chamadas 'tradicionais' que incluem o tratamento medicamentoso e as psicoterapias, entre as quais uma certa prática da psicanálise que, muitas vezes, faz jus ao rótulo. A doença, como acometimento biológico, e o conflito, como fruto de uma interioridade conturbada devem dar lugar a mudanças mais amplas nos dispositivos de assistência, visando à recons­trução das relações sociais, de trabalho e convívio. A ênfase é dada nas práticas grupais e coletivas como meios para essa reconstrução. O pro­blema reside em supor que a clínica possa ser reduzida a uma política pelas igualdades e que a doença ou o conflito psíquico sejam prioritaria­mente frutos da ordem social e de suas ideologias.

Algumas ressalvas devem ser feitas. Quando se caracterizam mode­los, as respectivas práticas guardam sempre uma distância inevitável, e mesmo desejável, de seus princípios gerais. Além disso, como já afirmei, é mais comum que esses modelos se mesclem compondo um híbrido, principalmente porque seus agentes são diferentes entre si em sua traje­tória pessoal e profissional. Assim, podemos pensar na possibilidade das éticas se atravessarem na prática, e refletir sobre seus efeitos.

2.3 O tratamento: terapias e pedagogias

Sobre o tratamento, inicio minha discussão retomando os três modelos — médico, psicológico e psicossocial — a partir das três éticas que lhes equivalem: a ética da tutela, a ética da interlocução e a ética da ação social. Essas éticas norteiam tipicamente três modalidades de tratamento que são, respectivamente, o tratamento medicamentoso, as psicoterapias e as oficinas terapêuticas.

Como já apontei, elas podem compor híbridos, onde uma prevalece sobre a outra, fundamentando as mesmas modalidades de intervenção e tratamento, porém, modificando seus procedimentos e seus objetivos terapêuticos. Atendimentos individuais ou em grupos a uma clientela que pode ser definida por sua patologia ou identidade social tomam rumos diferentes, dependendo de como são conduzidos. Apresento-os breve­mente e comento suas implicações, de acordo com as referências éticas que lhes dão suporte.

Recorto os exemplos combinando as três éticas, duas a duas, desta­cando a prevalência de uma sobre a outra, num arranjo onde pode haver

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casos em que uma terceira atue subjacente, como efeito esperado ou não. Vamos a eles:

A interlocução prevalece sobre a tutela:

E, por exemplo, o caso dos chamados grupos de medicação. Obtive o relato de uma experiência em hospital psiquiátrico com grande afluxo de pacientes psicóticos cronificados, em geral com diagnóstico de esquizo­frenia residual ou defeito esquizofrênico, totalmente aderidos à medica­ção. Foram convidados a se reunirem mensalmente para conversar e, ao final dos encontros, recebiam suas receitas. A iniciativa do psiquiatra foi evitar o típico atendimento individual de dez minutos, onde não havia qualquer possibilidade de interlocução, a não ser dar receitas e ajustar doses. Os grupos tinham a duração de uma hora, e nos dez minutos finais as receitas eram distribuídas.

Segundo o psiquiatra, "nos atendimentos individuais eles não fala­vam nada... aí você põe lodo mundo junto e eles falam de tudo... teve um efeito evidente. Gente que você jura que jamais vai tomar qualquer iniciativa na vida e começa a cogitar de arrumar emprego, fazer um curso no Senai, combinar de sair junto. Acho que eles nem viabilizavam essas idéias, mas cogitavam, conversavam, chegaram até a comemorar o ani­versário de um deles, levaram bolo e tudo. Trocavam idéias sobre medi­cação, mas não propunham a alteração das prescrições. A entrega das receitas fazia parte do ritual das consultas. Essa era uma particularidade desse grupo e, talvez, como era a minha primeira experiência com pa­cientes que tomavam medicação, há pelo menos cinco anos, isso pode ter dificultado uma mudança maior. Havia um outro grupo de medicação freqüentado por todo tipo de pacientes, como os ansiosos, epilépticos, e também psicóticos. Trabalhei com eles pouco tempo, não tenho elemen­tos para avaliar."

Neste exemplo, curiosamente, a interlocução possibilita uma sociabi­lidade, um convívio, ainda que uma vez por mês, que se aproxima, em seus efeitos, da proposta do modelo psicossocial, apesar da inquestiona-bilidade do uso da medicação como base do que seria o tratamento para eles.

Outro exemplo significativo é o dos chamados grupos de egressos de internação, em sua maioria com diagnóstico de psicose. Mais do que nunca, esses pacientes são os tutelados por excelência. Não apenas pelo

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fato de terem passado por internações mais ou menos longas ou freqüen­tes, mas, principalmente, por serem a clientela privilegiada de uma psi­quiatria que ratifica sua condição de doentes e objeto de intervenção médica, podendo permanecer nessa condição. O espanto que uma jovem psiquiatra, formada na orientação organicista, manifestou ao participar certa vez de um desses grupos, resume a questão. Em suas palavras, "Nossa! como eles falam!" E evidente que ela não os supunha mudos, pois cansou de ouvir seus delírios, suas falas desconexas, enfim, seus sintomas produtivos que deveriam ser erradicados pela medicação. Sua surpresa era que esses mesmos pacientes, alguns ainda em franco delírio, dialogavam, trocavam idéias à sua maneira — idéias que para ela não pareciam tão absurdas. Era quase como se ela dissesse 'eles falam a minha língua'!

Um outro exemplo: um grupo com mulheres numa faixa etária de 30 a 60 anos, com diagnóstico psiquiátrico pouco específico de depressão. O relato é de uma psicóloga:

"Eram as deprimidas, vinham encaminhadas pelo psiquiatra do cen­tro e, dada a incidência do diagnóstico, resolvi juntá-las num grupo. O mais curioso é que algumas eram mais deprimidas mesmo, meio desvi­talizadas, mas a maioria começa a falar e o que aparece é uma outra maneira delas se definirem. Teve um dia que todo mundo falou em nervoso. Elas começaram a dizer que eram nervosas, e que ficar depri­mida seria, digamos, uma conseqüência. Foi muito engraçado romper com esse rótulo e elas poderem falar do que as fazia sofrer. Uma dizia que era o marido, a outra porque não tinha marido, ou era o filho que casou, o outro que era traficante, e por aí vai."

Outro exemplo, relatado por uma psicanalista, mostra uma iniciativa semelhante com mulheres acima de 40 anos com o mesmo diagnóstico impreciso de depressão, entretanto, não funcionou por um motivo muito simples que não diz respeito exatamente à clínica. Tratava-se de um posto de saúde situado em um pequeno município, afastado da cidade grande. As mulheres se recusaram a formar um grupo terapêutico porque todas se conheciam entre si, eram vizinhas e até aparentadas. Como iriam expor seus problemas, sua vida íntima e cair na boca do povo onde todo mundo sabe da vida de todo mundo?

Segundo uma delas, "doutora, aqui todo mundo se conhece. Já ima­ginou o falatório que isso ia dar, todo mundo sabendo das minhas inti­midades, não quero fazer isso não". A psicanalista esclarece:

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"A solução foi atender individualmente e teve um efeito interessante: elas começaram a se encontrar na sala de espera — até porque os horá­rios de atendimento eram meio próximos, correspondendo aos dias em que eu estava lá — e daí trocavam receitas de culinária, trabalhos ma­nuais, discutiam suas dificuldades mais superficiais, enfim, o grupo se formou espontaneamente sem a minha presença efetiva, mas em torno daquele espaço proposto a elas."

Em ambos os casos a interlocução prevalece sobre a ética instrumen­tal da tutela, seja deslocando o foco sobre o diagnóstico para permitir sua apropriação e a conseqüente ressignificação pelos próprios sujeitos, seja para produzir efeitos inusitados numa situação-limite que dispensa a presença constrangedora do profissional, criando uma certa sociabilida­de através da interlocução, em vez da indesejável exposição da privaci­dade.

A tutela prevalece sobre a interlocução:

Ocorre-me um exemplo de um grupo de alcoolistas em um hospital psiquiátrico. O objetivo era reunir essa clientela, não absorvida pelos grupos de ajuda mútua dos AA, considerada problemática para a psiquia­tria, sob a coordenação de um profissional de saúde mental visando produzir efeitos terapêuticos. Reproduzo trecho da fala queixosa de um freqüentador desse grupo, que esclarece a questão. Ele diz, mais ou menos assim, para a psicóloga que o atende individualmente: "Não sei, não... eu continuo indo lá, até gosto da doutora, mas é muito chato... a gente é recriminado o tempo todo, cada vez que um bebeu, pronto. De mim ela não pode falar, eu não voltei a beber, mas que deu vontade, deu. E isso eu não posso dizer lá não."

Outro exemplo, mais comum, é o dos grupos formados a partir de determinadas patologias clínicas na chamada atenção primária. Diabéti­cos, hipertensos, renais, são os mais freqüentes nos centros e postos de saúde. A proposta é clara: informar e esclarecer sobre a doença e suas conseqüências para melhor tratá-la. Nada de errado com isso, ao contrá­rio, pode ser muito útil para a continuidade do tratamento. Acontece que um diabético, um hipertenso ou um renal não é igual ao outro, e as diferenças, após um certo tempo, passam a ser o que importa. O proble­ma está em desconhecê-las para homogeneizar os sujeitos sob essa mar-

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ca, unicamente com o objetivo de subsidiar a clínica médica. A interlo­cução dá lugar à educação, às prescrições de conduta que podem resultar num fracasso clínico se não houver interlocução a partir das demandas dos assistidos.

Há, também, modos de condução de terapias individuais ou em gru­pos que vão pelo mesmo caminho. Frases como "você está aqui para entender o seu problema" ou "se você me disser o que você tem eu vou poder ajudá-lo" podem significar que a resposta virá assim que o tera­peuta encontrar a solução. Nesse caso, falar é fornecer informações suficientes para o terapeuta 'malar a charada' e corrigir o erro subjetivo. Esta é urna demanda freqüente dos pacientes que, ao encontrarem al­guém disposto a atendê-la, devem apenas ter paciência para esperar a revelação certa na hora certa. Eis uma boa armadilha da ética instrumen­tal da tutela quando se apoia numa certa concepção de interpretação oriunda da psicanálise. Freud corrigiu seu rumo a tempo cm função de seus próprios fracassos, ao revelar para o paciente o que este já sabia e não queria saber, por conta de um elemento crucial da transferência — a resistência. E, mais tarde, deparou-sc com um impedimento maior — a repetição.

A interlocução prevalece sobre a ação social:

Um exemplo é a constituição de grupos, em geral de atenção primária ou secundária, que reúnem sujeitos definidos, a partir dc uma identidade social, mais ou menos estigmatizante, fixada pela patologia, faixa etária, gênero etc. Podem ser psicóticos, alcoolistas, portadores de HIV, adoles­centes, adolescentes grávidas, mulheres, idosos, obesos, cardiópatas e outros. Assim como esse tipo de trabalho pode fazer prevalecer a tutela e fixar o estigma dessa identidade, pode, ao contrário, descobrir um meio de funcionar a partir da interlocução. A ação social que recorta e fixa essas identidades dá lugar ao diálogo que tanto pode reforçá-las quanto minimizar seus efeitos estigmatizantes. O ideário de uma psicologia psicanalítica tem aí sua função. Fazer falar, dar sentido ao sofrimento psíquico, abrir para novas possibilidades de subjetivação, para novas identificações, incrementar a criatividade, são alguns lemas dessa ética. São os chamados grupos de reflexão ou grupos terapêuticos. Assim, os psicóticos devem comparecer como sujeitos; os alcoolistas devem inda­gar-se sobre sua compulsão; os portadores de HIV devem relativizar sua condição de condenados à morte social e física; os adolescentes devem

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deparar-se com suas questões; as jovens grávidas devem assumir sua condição; as mulheres devem tematizar suas diferenças; os idosos devem redescobrir sua vitalidade, e, assim, por diante. Extremamente salutar, diriam os entusiastas. Mal não faz, diriam os mais célicos. A questão é como dar conta das diferenças subjetivas, englobadas no recorte homo-geneizador das identidades socialmente fixadas, que as constituem como grupos à parte. Paradoxalmente, a ética da interlocução pode reforçar a condição social ao invés de diluí-la. Tudo em nome das diferenças. Esse é o paradoxo da lógica das minorias.

A ação social prevalece sobre a interlocução:

O principal exemplo é o das oficinas terapêuticas, em geral freqüentadas por pacientes graves, onde o trabalho, a produção, mesmo em seu aspec­to criativo, reduzem o espaço de interlocução entre os sujeitos envolvi­dos. Privilegia-se a tematização da produção individual ou coletiva como o elemento terapêutico principal negligenciando seus efeitos singulares sobre cada sujeito. Reproduzo um relato fornecido por uma psicóloga:

"Trabalhávamos com uma certa rotatividade dc pacientes. Mas linha os que eram mais assíduos. Alguns eram bem produtivos, mas era muito difícil trabalhar com aqueles que não rendiam. A gente variava as ofertas, ora era desenho ou pintura, ora era argila... às vezes a gente tentava outras técnicas e funcionava. Eles pouco conversavam entre si e eu comecei a puxar conversa sobre o que estavam fazendo, porque achava aquilo tudo muito sem vida. Teve um dia, que um lá, de repente se levantou, ele estava muito ansioso e começou a gritar 'eu não vou deixar... não vou... ele pensa que vai levar tudo meu...' Foi se exaltando até que partiu para cima da estante onde a gente guardava os trabalhos e começou a jogar tudo no chão. Um T.O. mais experiente foi lá c conseguiu acalmá-lo, mas ele não quis ficar. Depois foi medicado, a seu próprio pedido, e foi pra casa. Faltou por umas duas semanas e, quando voltou, parecia estar tudo bem. Só que ficamos sem saber o que se passou. Ele retomou suas atividades como se nada tivesse acontecido. Depois eu vi que o desenho, que ele fez naquele dia, era o de um boneco carregando uma mala onde ele escreveu uma palavra meio ilegível, que parecia 'bagagem' ou 'bagaço'."

Um outro exemplo complementa o anterior: "O que eles mais gostavam era quando tinha a feirinha para exibir e

vender os trabalhos, ou então quando promoviam festas que eles mesmos ajudavam a organizar... ficavam superempolgados, participavam. A im-

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pressão que eu tinha era que eles trabalhavam pensando nisso, corno o pessoal das escolas de samba, que passa o ano todo se preparando para o grande momento."

Sem dúvida, não há como negar os efeitos terapêuticos e de pertinên­cia social que dotam de sentido todo um esforço de trabalho, toda uma rotina, que se repete à espera do "grande momento", ou, simplesmente, para preencher o tempo através do trabalho e do convívio. Afinal, isto é bem o que fazemos em nosso cotidiano em nome da normalidade. Mas, como alude o exemplo anterior, o problema é que o sujeito, com sua tematização própria pode não encontrar nos defensores das práticas so­cializantes alguém a quem possa endereçá-la.

A tutela prevalece sobre a ação social:

Mantenho a referencia às chamadas oficinas terapêuticas para destacar uma discreta torção de sua finalidade. A prevalência da tutela se dá quando a atividade ocupacional é dirigida de tal forma que o paciente, a quem se deve dar uma ocupação, é concebido como um doente regredido a formas mais primitivas, portanto, mais infantis, de expressão. O plano de trabalho deve cumprir etapas supostamente essenciais ao progresso do paciente, independentemente de sua escolha ou vontade. Para os mais regredidos a um estádio pré-verbal, a terra: matéria-prima da natureza que evoca o nascimento. Para os mais articulados na imagem, as garatujas no papel e suas variações. E, por fim, os verbais, que podem se engajar nas atividades mais socializadas. Algumas frases são textuais: "ele está muito regredido, o contato com a natureza pode ajudar" ou "ela não se adapta ao tratamento, está muito dispersa e agressiva... não podemos mantê-la aqui" ou "fulano fez progressos, já pode participar do grupo".

A ação social prevalece sobre a tutela:

Há vários exemplos possíveis dessa prevalência. Os principais são as oficinas terapêuticas — designação do Ministério da Saúde para as prá­ticas terapêuticas nas chamadas estruturas intermediárias entre a interna­ção e o tratamento ambulatorial stricto sensu — que atendem pacientes graves, desde os cronillcados até pacientes em tratamento ambulatorial, com ou sem história de internação. Essas novas práticas atualizam a conhecida terapia ocupacional, ou praxiterapia, acentuando a ética da ação social, cuja finalidade é retirar o paciente do jugo tutelar em que se

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encontra — o termo tutela, aqui, adquire um sentido mais amplo, do tratamento aos dispositivos jurídicos. Há, também, outras formas de associação de pacientes, que incluem o lazer e a sociabilidade, e se oferecem como caminhos para uma autogestão.

O melhor exemplo é o dos pacientes psicóticos considerados crôni­cos, após uma longa carreira de internações psiquiátricas, tratados à base de eletrochoques, altas doses de medicação, isolamento etc., que se engajam na luta antimanicomial, praticando uma verdadeira militância, cujo efeito mais radical pode ser retirá-los da condição de tutelados. Contudo, é preciso ficar atento aos efeitos dessa nova identidade estabi­lizadora de 'militante', que oferece um acesso à cidadania perdida, pois ela se mantém até onde pode operar como função simbólica. Isto é, até onde não se torna um fardo que cai sobre o sujeito, soterrando-o com exigências muito além de suas possibilidades de elaboração. Este é o maior risco do igualitarismo.

Feito esse percurso por um certo blending das éticas que norteiam a clínica, fica a pergunta: o que a psicanálise e o psicanalista têm a ver com isso?

Em primeiro lugar, nada impede que o psicanalista se aproxime, ou mesmo se envolva em diferentes modalidades de tratamento que visam efeitos terapêuticos a partir da interlocução. Como já apontei, esta é a ética mais próxima da psicanálise. A interlocução, porém, deve ser en­tendida aqui como um ponto de partida, algo a ser transformado em, digamos, elocução. No dicionário: " 1 . Maneira de expressar-se oralmen­te ou por escrito; 2. Escolha de palavras ou frases, estilo."

Esta definição preciosa permite esclarecer um ponto sobre o qual Lacan insistiu no decorrer de seu ensino, sua transmissão oral da psica­nálise: não existem dois sujeitos na psicanálise e o objeto está do lado do analista. Quem escolhe as palavras ou frases é o sujeito. Ao enunciado em seu conteúdo junta-se a enunciação, o modo de dizer, o momento em que é dito, o endereçamento. Isto é, para quem se diz o que, e qual a finalidade do dito. Esse é seu estilo.

A ética da tutela, portanto, está fora de questão. Não há como conci­liar. A ética da ação social pode ser surda. Seu limite crucial está em se entregar ao afã de recuperar a cidadania perdida, mas, pode não ser incompatível com a escuta sutil da elocução. E uma escolha a ser feita.

O psicanalista, para fazer funcionar a elocução, deve estar preparado para atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem perder-se

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na terapia ou na pedagogia. Afirmação temerária quando se espera que, no serviço público, curar e educar sejam as principais ferramentas. Mas não sejamos ingênuos supondo que não há qualquer resquício de terapia ou educação no trabalho psicanalítico. Freud falava em reeducação como uma finalidade da terapia psicanalítica. E também alertava para a inedu-cabilidade das pulsões e para o furor sanandi. Pulsões indomáveis? Rebeldia da natureza? Qual educação ou terapia que estão em jogo? Com que finalidade evocamos a elocução? Na psicanálise não tem conversa?

De conversa em conversa, a tarefa inicial do psicanalista é acatar a interlocução taticamente para dela destacar a elocução, convertê-la em fala associativa como um modo de fazer o sujeito se apresentar com quantas palavras puder. A partir daí estamos no solo, paradoxalmente movediço, da afirmação de si como uma realidade irredutível. Por suces­sivos deslocamentos, essa fala se transforma numa dúvida potencial sobre o que se diz e o que se pensa, sobre aquilo em que se acredita. Está criado o embaraço. Daí em diante, os dados estão lançados. O sujeito não está sozinho, inteiramente entregue à sua sorte. O acaso é uma contin­gência e não uma fatalidade. O analista se encarrega de tratar dessa contingência, garantindo a elocução para relançá-la a outras possibilida­des de significação, fazendo vacilar a posição inicial do sujeito a partir de sua intervenção.

Uma psicanálise pode acontecer a partir de qualquer uma das moda­lidades de tratamento apresentadas acima. Dos atendimentos em grupos aos individuais, da atenção primária às oficinas terapêuticas. Da parte do sujeito, isso pode interessar ou não.

Tomemos alguns exemplos que ilustram essa passagem à elocução a partir de diferentes trajetórias dos sujeitos nos serviços.

Em um serviço de adolescentes, uma mulher freqüentava um grupo de orientação de mães juntamente com seu filho de onze anos que, segundo ela, "chorava muito desde que nasceu." Foi encaminhada para atendimento individual com a psicóloga porque era ela quem chorava muito e não conseguia continuar no grupo. O relato é da psicóloga:

"Ela chega com o menino se dizendo desesperada e que não sabe mais o que fazer com ele. Chora o tempo todo... e eu tico sem saber o que fazer. Ele se recusou a ser atendido, soltava uns grunhidos, ficava quase de costas pra mim e não falava. Aí eu fui dizendo pra ele que ele podia ficar tranqüilo que ninguém ia obrigá-lo a nada... 'você está vendo alguma corda aqui? não vou te amarrar, te prender... sua mãe está muito

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ansiosa e se você se recusar a falar a gente não vai entender o que está acontecendo... e, se a gente não resolve isso aqui, ela vai te levar para outro lugar e mais outro. Por que você não aproveita que está aqui e vamos conversar?' Aí ele fala: 'Mas eu não quero vir... porque acho que não preciso disso... ela é que fala. Eu não venho mais.' A mãe fica desesperada, se ele não quer falar, o que ela vai fazer? Ela diz, 'essa é minha única esperança'. Ele continua de mau humor, e a mãe vai respon­dendo minhas perguntas dirigidas a ele. Na escola as notas eram boas, mas isso não bastava. Aí ela conta um episódio em que ele chega da escola e não fala com ela nem cumprimenta a vizinha que estava lá. E você fez o quê? Ela diz: '... eu tenho medo dele ficar chorando... dele ter uma crise'. Eu marco isso como um gesto de má educação, o menino me olha meio de banda e diz 'é... não volto mais' e saiu da sala. Nesse ponto cu convidei a mãe para voltar e conversar comigo sobre isso tudo que a transtornava tanto. Na semana seguinte ela já vem dizendo que ele está melhor e ainda fala dele. Mas nas sessões seguintes ela começa a falar de como ela chora muito, de seus medos, porque ela mora num lugar controlado por um grupo de extermínio onde não se pode abrir a boca c que ela tinha medo de falar... não podia falar. Eu abro um prontuário para ela, porque até então os registros eram feitos no prontuário do filho. Daí ela passa a me contar de sua insatisfação com o marido e o lugar onde mora etc. Um dia ela vem me dizer que tem uma coisa para me falar que nunca falou para ninguém. Era uma cena de abuso sexual quando criança e que, pelo que entendi, teve repercussões na vida dela que a fizeram abrir mão de uma paixão, casar-se com um homem a quem não amava c aceitar suas imposições. Ela diz que, com ele, não estava nem ligando para o que podia pensar dela. Ela está comigo há uns três anos, franca­mente em análise e a vida dela mudou muito. Mudou sua atitude em relação ao filho, ao marido, enfrentou um câncer na tiróide, e conseguiu se mudar do lugar onde morava."

Destaco deste exemplo que, a partir de uma contingência bem mane­jada, houve um deslocamento da queixa e da demanda onde o filho, inicialmente o objeto de intervenção, tomou a palavra que lhe foi conce­dida e, num aparente desacato, 'encaminhou' a mãe para o lugar de fala que, para ela, era praticamente proibido. A partir daí, é com o analista.

Em um posto de saúde de um pequeno município, onde se deu o curioso episódio que relatei sobre a recusa das mulheres em participar de um grupo terapêutico, uma delas vem encaminhada do neurologista com

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queixas de depressão, falta de vontade de viver, enjôos, problemas de vesícula e outros problemas somáticos. O relato é da mesma psicanalista:

"Por aproximadamente dois meses, ela vem me procurar para falar de sua saúde, das saudades de um filho que não morava mais na cidade e das decepções com o marido. Mais ou menos nessa época sou procurada por um homem considerado alcoólatra com episódios de impotencia que relaciona ao fato da esposa ser uma pessoa muito doente. Eu o atendi por cerca de um mês, uma vez por semana. Ele se queixava que sua esposa não lhe permitia fazer o que mais gostava: criar e treinar pássaros e participar com eles de competições de canto. Ela ameaçava se matar a cada vez que ele saía de casa. A cada dia ele chegava mais animado, melhor trajado, dizendo estar parando de beber para poder cuidar dos pássaros e que não se importava mais com as lamentações dela. Um dia me diz que está ótimo e que tem ido a todas as competições, mesmo tendo que deixar sua esposa cm casa reclamando e dizendo que vai sc matar. Ele diz: 'Sabe, doutora, cia sempre diz isso quando eu vou me divertir, mas eu sei que ela diz isso para eu não ir e ficar em casa com ela, mas eu vou ficar com ela fazendo o quê, se ela não quer nada comigo?' Com isso ele deu por terminada a 'terapia' e foi tratar dos pássaros, para meu total espanto. Mal eu sabia que 'a hora do espanto' ainda estava por vir.

"Cabe explicar que, nessa época eu era uma grande novidade na cidade, não por ser psicóloga, pois já existiam outros nos quadros da Prefeitura, mas por ter entrado lá por concurso público, não ser da cidade e trabalhar de maneira diferente da de outro profissional que antes aten­dia no mesmo ambulatório. Com isso, havia muita procura a ponto de eu fazer entre 15 e 20 atendimentos por dia. Coincidentemente, a senhora de quem falei não apareceu por várias semanas, até o dia em que veio me procurar sem estar marcada. Atendi-a e ouvi o seguinte: 'Pôxa dou­tora, com meu marido foi tão rápida a melhora e comigo está demorando tanto'! Depois de ter me recuperado do espanto, comunico-lhe as coin­cidências e ela me responde: 'Não tem nada a ver. Eu estava muito ocupada com as provas. Para ele foi muito bom, ele até parou de beber, só que não pára mais em casa...'

"Os atendimentos se seguiram e ela conta ter tomado o dobro de calmantes para se vingar do marido que a deixa sozinha. Pergunto-lhe: 'Mas a senhora não diz sempre que quer se livrar dele?' Ela responde: 'Mas eu não queria que ele ficasse comigo, só queria que ele não fosse'.

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Eu digo, 'a senhora não queria que ele tivesse prazer'... 'É, se eu não tenho, ele também não pode ter'. Pontuo, 'a senhora não pode ter...'

"Por problemas de instalação do posto interrompemos os atendimen­tos por um tempo e ela desapareceu por cerca de quatro meses. Passado esse tempo, vejo seu nome no caderno de marcação de clientes novos. Quando ela entra na sala, vejo-a de cabelos cortados, bem trajada e com um sorriso largo como eu nunca vira. Ela diz: 'Há quanto tempo, nc doutora? A senhora deve estar estranhando o meu sumiço, é que eu tive muitas coisas para fazer, mas agora eu já resolvi todos os meus proble­mas, agora sim posso me tratar.' Pasma com o que ouvia, perguntei-lhe que problemas tinha resolvido. Ela diz que se separou do marido, que não se preocupa tanto com o filho, que o outro filho vai se casar e ela nem deprimiu, e que vai mudar de casa. Começa a contar sua história relembrando cenas da infância e sua questão se define numa fala: 'Agora que posso fazer o que quiser, descobri que não sei o que quero.' E assim começou sua análise." (Machado, 1995a)

Este exemplo pode dar o que falar. As possibilidades são muitas, a começar pela tão controvertida questão da neutralidade do analista e as dificuldades na transferência, seguida pela questão dos tratamentos bre­ves e sua eficácia, especialmente em casos de alcoolismo. Mas estas são falsas questões. A analista não se ofereceu como terapeuta de casal, nem quebrou qualquer ética em seu desconhecimento. Ofereceu-se à transfe­rência e trabalhou a partir das falas que lhe eram endereçadas como queixas de um 'marido' e de uma 'esposa'. Era assim que falavam um do outro. O marido sai da bebedeira e da impotência para fazer seu passarinho cantar mais alto em outro lugar. A esposa vai e vem. O importante é esse desvio no percurso da transferência que a leva a encetar uma série de separações para formular uma questão sobre seu desejo.

Passando ao largo da penisneid, que marca o drama da mulher e tem na histeria uma de suas soluções, destaco alguns elementos da história desta mulher que têm conseqüências na construção de sua fantasia rela­cionada ao momento em que entrou em análise: ela era gêmea de uma irmã e, com a morte do pai quando ainda eram bebês, foi separada da irmã e criada pela avó paterna e três tias, enquanto a irmã ficou com a mãe. Depois de algum tempo a mãe tentou levá-la para casa, mas ela não conseguia comer, vomitava tudo o que comia. Voltou para a casa das tias sempre sentindo-se inferiorizada por não ter pai, e só saiu de lá para se casar. A irmã gêmea matou-se ainda jovem quando foi abandonada pelo marido. Conta, ainda, que as tias não a deixavam cortar o cabelo, até que

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um dia ela os cortou de um lado só, obrigando-as a terminarem o corte. Em suas palavras: "Eu não podia escolher, a única vez em que fiz o que quis foi quando cortei o cabelo, mas me senti muito mal, minhas tias brigaram muito comigo."

Podemos recortar dois tempos: o primeiro é o do aprisionamento ao marido, aos sintomas somáticos, à falta de escolha, vislumbrando a morte como solução. O segundo é o de uma separação, de um corte na demanda, no aprisionamento, no cabelo, e uma escolha é possível. Esco­lha de endereçar ao analista um vazio, um 'não saber de si' e 'do que quer'. Os dados estão lançados.

Mais um exemplo mostra a ação do analista como decisiva para o início do processo. Trata-se de uma moça encaminhada a uma unidade psiquiátrica por uma psicóloga, que a atendeu em um serviço de psico­logia, com a recomendação de "um caso muito grave" que exigia aten­dimento psiquiátrico, e até neurológico, e não deveria sequer ser atendida em grupo. O relato é de um jovem analista que assumiu o caso.

"Diante do pedido que me foi feito, resolvi atender a moça indivi­dualmente sem a intenção de atendê-la regularmente, mas para fazer um encaminhamento. Mas o desenrolar da entrevista foi decisivo para me fazer mudar de idéia. Ela chega nervosa, tem dificuldade de começar a falar e a primeira coisa que diz é: 'E difícil falar... a psicóloga não me disse que você era tão novinho.' Perguntei: 'Isso te atrapalha?' 'Não... o Dr. fulano e o Dr. beltrano também eram... eu só tenho médicos ho­mens... a psicóloga falou que você ia me atender e ver se ia ficar comigo ou não. O Dr. fulano [neurologista] não quis mais ficar comigo, porque uma vez eu cheguei lá pra consulta e era outro médico. Agora, se você não gostar de mim eu não vou querer outro não.' E começa a chorar. Nesse momento, proponho iniciar um atendimento. Ela, então, começa a falar: 'Eu tenho imaginado muita coisa. Eu moro com uma moça, namorada do meu tio. Ele arrumou essa namorada, que a família não aceitou, e pediu que eu aceitasse ela na minha casa. Agora eu tô toda hora imaginando ela com o meu noivo, na cama, se beijando, tendo relação. Ele me garante que não acontece nada. Eu sei que é coisa da minha cabeça mas não consigo evitar'. Mais adiante ela diz: 'Os médicos me enchem de remédio mas não tá adiantando. Eu sei que eu é que estou criando os meus problemas, construindo monstros, fantasmas, mas eu não consigo... Não sou eu, é alguma coisa...' As sessões transcorriam com variações sobre esse tema e, no final do ano ela estava muito

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angustiada com a chegada do Natal. Nesse período, ela começou a faltar e, em seguida, eu saí de férias. Mas ela só retornou em março. Foi então quando pôde me dizer que o noivo não era bem um noivo, mas um homem mais velho, casado, uma espécie de tutor e amante que cuidava de sua doença neurológica (ela havia feito uma cirurgia e ainda tinha convulsões e desmaios) e que já tinha tido uma outra amante além dela. Soube também que o Dr. fulano, o neurologista que não a 'queria mais', havia interrompido o tratamento porque se dizia apaixonado por ela. Mais adiante, ela fala de episódios de internação psiquiátrica em sua cidade de origem, por conta de 'umas crises de loucura', apesar de não se achar louca. Mais tarde, essas crises são ressignificadas como uma exacerbação sexual.

"O que acho relevante nisso tudo é que, a despeito da recomendação, eu jamais marquei psiquiatra para ela e isso me parece ter sido decisivo para o início de uma análise."

Neste exemplo destaco o percurso dessa paciente pela neurologia, psiquiatria e psicologia, não como caminhos equivocados ou simples fruto da perambulação histérica pelos médicos. Os tratamentos a que se submeteu eram pertinentes ao estado em que se encontrava e aos recur­sos disponíveis cm cada situação. A neurocirurgia a que se submeteu deveu-se a um angioma arteriovenoso que explica suas convulsões e, em boa parte, seus desmaios. A passagem pelas internações psiquiátricas justifica-se pelo estado de 'loucura' que apresentava, o qual não podia ser traduzido de outra forma por sua família. Sua passagem pela psico­logia era pertinente, mas ali não encontrou um analista e sim alguém que recuou diante da complexidade do quadro que apresentava. Paradoxal­mente, um rapaz "tão novinho" referido à psiquiatria, mesmo sendo psicólogo, pôde suportar o desafio de escutá-la até tomar sua decisão.

Um observador um pouco mais atento comentaria: mas são três his­téricas! A psicanálise aí está em seu reino natural. Nada de novo nisso. Ao que eu retrucaria: de fato, foi aí que a psicanálise começou. Foi ouvindo as histéricas que Freud percebeu o engano da medicina, não sem antes ter sido alertado por Charcot. Nada garante que uma histérica procure ou, sequer, encontre um analista. Além do mais, uma histérica não é igual à outra. Ainda que a 'outra' seja parte do seu problema. E, para terminar, o que discuto aqui é o modo como chegam ao serviço, como se desdobra sua demanda até o encontro com um analista. Se lá não houver um analista, não há muito a fazer. Se a histérica constitui o

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analista, é (bem) porque a elocução toma o lugar da interlocução para que o segredo, as confidências, enfim, a fantasia, possam se desdobrar. Entretanto, não se sabe até onde se pode ir numa análise. Mas esta é uma outra conversa.

Em minha pesquisa, obtive relatos mais ou menos fragmentados de situações de análise com pacientes com diagnóstico psiquiátrico de doença obsessivo-compulsiva, alcoolismo, síndrome do pânico, distúr­bio bipolar, e até mesmo psicoses graves. Estas, praticamente, contra-in­dicadas para a psicanálise. Os exemplos são vários e remetem à questão do diagnóstico e da indicação.

Sobre o diagnóstico, é preciso, num primeiro momento, acatar o diagnóstico psiquiátrico de descrição e verificação dos sintomas para, depois, remetê-los a um certo divisor de águas (ou de patologias) entre psicose e neurose que interessa à psicanálise.*

Estas duas grandes categorias diagnosticas, fragmentadas pela psi­quiatria atual em seus manuais diagnósticos, ainda se mantêm como a referência mínima, a partir da qual são estabelecidas diferenças quanto ao lugar e à função do analista no manejo da transferência, e quanto às conseqüências de seus atos e interpretações. Será por que a psicanálise perdeu sua capacidade de se atualizar? Penso que não. Sua atualização se deu através da ratificação destas duas grandes categorias, com algu­mas subdivisões, já presentes em Freud, pelo modelo estrutural de La-can. Aqui, não entro em detalhes sobre o uso que Lacan faz da noção de

Deixo de lado a perversão como a terceira categoria, dada a polêmica que envolve seu diagnóstico e sua rara incidência na clínica, que levou os psicana­listas a suporem mais a apresentação de traços ou arranjos perversos como o que excede a neurose. Nas publicações específicas sobre clínica, a proporção de casos descritos de perversão em relação às outras duas categorias é muito peque­na. Com isso, o conhecido aforismo de Freud "a neurose é a perversão recalca­da", presente no primeiro de seus Três ensaios sobre a sexualidade, adquire uma nova dimensão. Seguindo Freud, ao serem levantadas as barreiras do recalque secundário — uma das tarefas de uma análise — não devemos nos espantar com o que aparece. A partir de Lacan, afirma-se o caráter perverso de toda fantasia. E são novamente as histéricas que podem trazer bons exemplos. Entretanto, a definição de perversão é extremamente controversa. Há uma imediata referência a padrões de normalidade, aos costumes e leis como equivalentes em relação ao que, afinal, se perverte. Para não estender o problema além de nosso interesse, remeto o leitor aos trabalhos de Patrick Valas, Freud e a perversão; e de Eric Laurent, Versões da clínica psicanalítica.

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Faço referência ao artigo "S'truc dure" de Jacques-Alain Miller em Maternas II, para situar a questão.

estrutura.* Considero que, se a entendemos como diferenciada dos fenô­menos, estes podem se multiplicar numa variação impossível de ser apreendida pelas classificações tipificadoras. Assim, paradoxalmente, as duas grandes categorias subsumem um campo fenoménico de amplitude muito maior, e ainda estamos livres para lidar com os modos de apresen­tação dos sujeitos sem a preocupação de seguirmos orientações padroni­zadas para este ou aquele tipo.

Sobre a indicação, não há nada que determine a priori uma indicação ou contra-indicação para a psicanálise. Qualquer procedimento nesse sentido fere um princípio, que sustento como básico para o trabalho analítico, que diz respeito à temporalidade e se opõe a qualquer 'a priori': o conceito de posterioridade, ou a posteriori (Nachträglichkeit) que, mais do que um tempo de constituição do psiquismo ou da patolo­gia, constitui o modus operandi da psicanálise. Tratarei disto no capítulo seguinte.

Nesse ponto, escolho como um último exemplo o caso bastante pe­culiar de um paranóico. Talvez o faça para provocar meus interlocutores e dirimir dúvidas sobre as questões de diagnóstico e indicação, e também sobre a vocação da psicanálise para se ocupar exclusivamente das histe­rias. Mas não perco de vista meu objetivo de ilustrar o percurso do paciente até o encontro imprevisto com um analista e suas conseqüên­cias. Este é um ponto importante no que diz respeito à qualidade e ao manejo da transferência. Vamos ao exemplo:

Trata-se de uma família que procura atendimento conjunto em função dos recentes acontecimentos que culminaram na internação de um dos filhos. Este estava muito agressivo e assustado com suas constantes idéias de perseguição que já duravam alguns anos. O relato é da psicó­loga que os atendeu sem qualquer pretensão de 'fazer psicanálise' com a família.

"Recebi a família toda: pai, mãe, os dois filhos e a mulher de um deles. Os temas são repetitivos desde a primeira sessão. Os pais chegam dizendo que o problema é um dos filhos [Paulo], e ele diz que o problema é o sítio que vai ser invadido e tomado da família se eles não fizerem alguma coisa. Esse assunto gera muita discussão na família, principal­mente entre os irmãos, porque o outro [Pedro] é quem cuida do lugar. O

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pai começa a contar como isso começou. Ele diz que o filho teve um problema com um professor homossexual na faculdade e, a partir daí, se sente perseguido. Parece que durante um bom tempo o pai tentou 'tratar' dele, comprou livros sobre esquizofrenia, conversava com ele dizendo que entendia como era difícil lidar com o homossexualismo, mas não aceitava sua construção delirante que, segundo o próprio Paulo, era assim: ele teria sido escolhido para 'dar o sítio para os homossexuais' se protegerem da perseguição que sofriam. Mas a idéia é que eles o toma­riam da família e, para que isso não acontecesse, era preciso que a família ficasse unida. Ele só enfrentaria a situação nessa condição. Por isso eles tinham que saber da história toda.

"Numa sessão Paulo chega a dizer que gostaria que a família fosse unida como os homossexuais. Ele diz que os pais são muito ingênuos e, numa outra sessão, pede para eles falarem de como foram criados. A mãe fala do colégio de freiras e o pai, do exército onde ele conviveu com homossexuais. Paulo diz que nunca teve experiências homossexuais. Ele chegou a ter namorada e houve um episódio de aborto em que o pai resolveu tudo. Nessa época, a cunhada estava grávida.

"Esse período do atendimento durou mais ou menos uns seis meses e eles vinham quinzenalmente. Paulo se tratava com um psiquiatra que, segundo ele, teria dito que ele iria tomar medicação por um ano. Ele dizia que queria sair porque foram os pais que quiseram que ele fosse, e tinha uma história que a hora da sessão seria às 1 l:15h, mas ele foi atendido às 1 l:30h, e 11 é a metade de 22 que é número de maluco, e meia é uma coisa que é mas não é, e tem a ver com homossexual. No final do ano, avisei a eles que iria sair por motivos alheios à minha vontade. Eles, então, pediram para vir semanalmente até lá, e as brigas se acirraram. Paulo vai ficando mais agressivo e dizendo que, enquanto a família protege o sítio, não o protege e que enquanto eles não ouvem ou não aceitam, ele corre perigo. A família não conseguia resolver sobre o que fazer com o sítio, e acho que com tudo isso. Nessa época, eles já vinham falando que precisavam se afastar uns dos outros mas não estavam con­seguindo. Eu vinha trabalhando isso com eles. Eles vão ficando mais angustiados e respondem agressivamente a Paulo, e ele começa a dizer que não tem problema psiquiátrico e, pela primeira vez, fala que talvez as coisas que lhe aconteceram tenham sido 'coincidências'.

"No período em que os atendi semanalmente, aumentaram os confli­tos. A mãe se queixava mais abertamente do pai e dele, dizendo que não agüenta dois homens dentro de casa cobrando coisas dela... Eles pressio-

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nam Paulo para participar de seu tratamento psiquiátrico, o pai reclama das queixas sobre ele e que não agüentava mais isso... Nisso, surge uma oportunidade para eu continuar a atendê-los no mesmo lugar. A mãe aceita prontamente, o pai não quer mais vir, e os dois irmãos querem continuar. Eles concordam que tinham dificuldades de viver vidas sepa­radas, deixar o outro viver. Proponho que, quando retomássemos a tera­pia, iríamos fazer diferente, já que eles estavam dispostos a se separar. Depois das férias, atendo-os juntos algumas vezes e proponho trabalhar essa coisa de separação, separadamente. Proponho que venham os dois irmãos numa sessão, e os pais em outra. A cunhada ia ter neném e não estava envolvida.

"A partir das sessões com o irmão, Paulo começa a trazer suas ques­tões sobre sexualidade, que nunca tinha falado com o psiquiatra, suas namoradas, o que é ser homem e ser mulher, as histórias de perseguição dos homossexuais etc. Pedro passa a conversar com ele sobre isso tudo, e diz que está aprendendo com Paulo a pensar sobre a vida: 'Porque antes eu não pensava, e você pensava o tempo todo.' Aí eles falam das diferen­ças deles de pensar e conversar com as pessoas. Numa sessão, Paulo começa a criticar Pedro dizendo que ele 'tem que fazer alguma coisa para o sítio dar dinheiro'. Pedro se defende dizendo que Paulo devia cuidar da vida, que não sabe nada do que ele está fazendo lá... Numa outra ocasião, eles começam a falar do pai. Para Pedro, ele é o modelo de homem, que domina. Paulo diz que para ele não é: 'Eu sempre vou ser o dominado.' Mas fala de um homem que pode ser o modelo: um famoso campeão esportivo que empunha a bandeira do Brasil 'apesar' de ser campeão. Nesse gesto, ele diz que viu 'afeto'.

"Em outra sessão, Pedro cobra de Paulo que ele não teria dito ao pai o que disse a ele sobre ter dúvidas a respeito das histórias de perseguição. Com a família, ele falava cemo se tivesse certeza. Mais adiante, Paulo insiste em chamar a família para as sessões porque quer 'saber como eles estão.' Pedro concorda porque está preocupado com o pai que anda muito deprimido. A mãe continuava indo às sessões sozinha para resolver seus problemas no casamento. Não falava mais tanto de Paulo.

"Num dado momento, Paulo diz que está cansado de falar da perse­guição. Pergunto se ele ainda quer falar. Ele diz que talvez individual­mente ele ainda precise falar. Mas, antes, já havia se mostrado preocupa­do comigo porque eu agora sabia tudo sobre os homossexuais e, portanto, eu corria perigo. Numa outra vez, ele diz que não vai falar nada

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porque eu não digo o que sei sobre os homossexuais, e que então ele não vem mais falar sobre isso comigo.

"A partir de uma situação em que Paulo diz que vai contar sobre a última mensagem que recebeu, mas não vai dizer de quem, para não aborrecer o irmão (era uma pessoa conhecida de ambos), intervenho para marcar que Paulo o está liberando de saber disso. Nesse ponto, penso que seria bom tentar separar os dois, liberar o Pedro. Mas ele diz: 'mas eu quero continuar aqui, é ótimo pra mim... eu vim lá do sítio só pra isso.'

"Recentemente, Paulo vem tentando explicar suas idéias de persegui­ção de forma diferente. Ele acha que pode ser por causa da falta de 'afeto' do pai que o levou a se aproximar demais da mãe e das tias com quem moravam, e fala de cenas da infância em que o pai o afastava quando ele ia abraçá-lo quando chegava do trabalho. Daí, ele deduz que, quando chegou na faculdade, ele extrapolou. Diz que compreende a mãe, mas não o pai, com essas histórias do exército. 'Lá, meu pai assimilou essa história toda, eu não queria que ele fizesse isso.'... Mantive o atendimen­to conjunto dos irmãos e permaneci atendendo a mãe separadamente."

Não tive outro recurso senão me alongar na descrição do caso pois, do contrário, não teria elementos suficientes para minha argumentação. Passemos aos comentários.

O atendimento sc dividiu em dois tempos: O primeiro foi o da família: Paulo era a queixa e o motivo da deman­

da. Ele próprio também demandava, a seu modo, a 'união' como garan­tia para fazer cessar seu delírio. Paradoxalmente, uma família 'homosse­xual ' , de um sexo só, reduplicaría a perseguição, uma vez que é justamente por serem perseguidos que os homossexuais perseguem. No desdobramento do drama familiar nas sessões aparece uma outra possi­bilidade, a da separação. Mas esta só é possível se sustentada por um terceiro que a garanta, sem que isto implique a invasão e conseqüente destruição da família.

Aqui nos deparamos com uma função importante do analista: evocar e sustentar este terceiro, não como no triângulo amoroso, mas como função simbólica para garantir um 'viver', ou sobreviver, de cada um. Houve um tempo para isso. O tempo da elaboração que Lacan chama de tempo para compreender.

O segundo tempo marca um novo encontro entre os dois irmãos onde se entabula uma conversa, uma interlocução, entre um neurótico — aquele que não pensava porque não queria saber — e um psicótico —

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aquele que não pára de pensar no perseguidor. Suas diferenças aparecem sobre o que entendem por sexo, homem/mulher, dominador/dominado, um pai. Do pai, modelo de homem para o neurótico, ou ausência de modelo para quem "sempre será o dominado", surge um modelo possível como ideal: o campeão, vencedor — dominador? — que porta um sím­bolo, mais do que isso, o símbolo da pátria, da origem, da paternidade, e aí tem "afeto" — amor, gratidão? "Apesar" de ser campeão. Esta palavra muda a direção ou o sentido do enunciado. Um campeão, que tudo domina, então pode atribuir sua glória a um Outro que não encarna o perseguidor? Que só está lá representado? Este é um bom exemplo do que seria a função paterna. E Paulo agora a reclama quando começa a supor que algo de um "afeto" entre ele e seu pai não se deu, e que todo o saber sobre os homossexuais no exército só fez com que ele ficasse também vulnerável e nada pudesse garantir ao filho, algo da ordem de uma interdição, que barrasse a "invasão dos homossexuais".

Evidentemente que não se trata de fazer este pai cumprir sua função como uma ordem. Acontece que de elocução em elocução, diante de um terceiro que a testemunha, a elaboração se dá. Esse terceiro pode alternar entre o irmão e a psicóloga, e ser por ela sustentado no decorrer dos confrontos imaginários entre irmãos, ou entre pai e filho. A elaboração é possível a partir de uma hipótese construída numa história não mais como um fato imutável, e sim com ares de ficção, como convém. É aí que pode operar uma suplência à função paterna. Algo que vem em seu lugar como uma nova metáfora cumprindo sua função.

A transferência na psicose não se dá tão facilmente a partir de um terceiro suposto. Exatamente porque o que falta é a suposição, marca da neurose. Em seu lugar vem a certeza, à qual o irmão explicitamente se refere como o ponto de diferença entre Paulo e a família. Em alguns diálogos, esta é a questão. A posição do analista aí é bastante delicada, e Paulo nos mostra isso ao provocar a psicóloga, ora dizendo que ela corre perigo porque sabe tudo sobre os homossexuais, ora dizendo que não vai mais falar sobre isso porque ela não diz o que sabe — então não sabe nada? O pai sabe, mas fracassou. Curiosamente, Paulo pede que a família venha para as sessões porque ele "precisa saber como eles estão" — apesar de morarem juntos. Parece que há, aqui, um saber diferente em jogo: se eles vierem falar nas sessões, lugar terceiro de suposição de saber, ele vai poder saber como estão. A psicóloga pode fazê-los falar. E isto que permite a elaboração. E quem o confirma é o próprio irmão, que concorda prontamente porque quer saber do pai.

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Para terminar, este exemplo ainda causa espécie pois não podemos dizer que seja uma análise de família, de grupo ou, sequer, individual. Análise de dupla? Interessante definição, nada ortodoxa. E não podemos esquecer da mãe que continuou sendo atendida sozinha. Quebra da ética? Deveria ter sido encaminhada? Mas no começo eram todos juntos... Então isto não é psicanálise!... Chegamos ao rochedo inamovível contra o qual não há argumentação.

2.4 O jogo de três PPPês: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas

Na seara do serviço público se encontram e desencontram as três cate­gorias: psiquiatras, psicólogos e psicanalistas que constituem e fazem funcionar o chamado campo psi. São propriamente a sua face mas, dependendo da organização dos serviços, nem sempre se pode delimitar suas diferenças com nitidez. E, como veremos adiante, isso talvez nem seja desejável.

O que me interessa aqui é comentar alguns segmentos de diferentes discursos que resultam de certas identificações produzidas no percurso da formação profissional, onde se tecem determinadas fantasias em torno da psicanálise e do ser psicanalista. Não pretendo desvelar essas fanta­sias, como numa análise, mas localizar o que aparece como sintoma, que indica a posição desses profissionais frente à psicanálise. Esboço, a seguir, uma tipologia, sem pretensões classificatórias, apenas para me­lhor matizar esses discursos.

Tomando, primeiramente, a categoria dos psiquiatras, no decorrer da pesquisa encontrei psiquiatras que dividi, grosso modo, em dois tipos: os médicos mentais, cuja função era exclusivamente a de medicar os pa­cientes; e os clínicos do psíquico, que, além de medicar, ofereciam sistematicamente algo mais do que medicação — psicoterapia, na maio­ria das vezes, ou outro tipo de atendimento dependendo da oferta do serviço, como grupos terapêuticos ou operativos, oficina de trabalho terapêutico, acompanhamento de eventual internação em outro local. Entretanto isso não excluía o fato de, qualquer que fosse sua inserção institucional, se dizerem psicanalistas fora do serviço público.

Escolhi fazer uma certa oposição entre os termos mental e psíquico supondo que o primeiro porta uma significação mais associada ao orgâ­nico, e o segundo, ao que costumamos designar como subjetivo.

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Observei que, entre os médicos mentais, há os chamados organicistas ou biológicos, que concebem o tratamento como alteração de reações neuroquímicas no organismo e não levam em consideração a psicanálise como instrumento clínico em qualquer situação. O máximo que admitem no campo das psicoterapias é o modelo comportamental-cognitivo. Por­tanto, não se incluem no escopo da pesquisa.

Há também entre eles os que têm uma formação sistemática em psicanálise, em geral vinculados a uma das sociedades psicanalíticas tradicionais (refiro-me às pertencentes à IPA). Ser psicanalista, neste caso, pode ou não referir-se a um modo subjetivo de definição profissio­nal no que refere-se ao ser. Em geral, refere-se à aquisição de uma técnica terapêutica, com seu estatuto bem definido, que autoriza um modo específico de atendimento restrito ao consultório, tantas vezes por semana, a uma população bem diferente da que chega aos ambulatórios. Só aí podem ser psicanalistas. Poderia tratar disso como mais um exem­plo da burocratização tanto do trabalho clínico quanto da formação profissional. E, segundo o que entendemos como a boa clínica, não deixa de sê-lo. Mas se tomamos o ponto de vista do entrevistado, há algo mais a considerar: a própria concepção de psicanálise que está em jogo.

Por um lado, existe o preconceito gritante quanto à flexibilidade do setting analítico, no que diz respeito à freqüência, que aparece em enun­ciados do tipo "você vê o paciente uma vez por semana, às vezes de 15 em 15 dias, como vai poder trabalhar a transferência"? Ou "eles vão e voltam de modo muito irregular, não se ligam ao tratamento". Ou "uma análise exige que a pessoa dedique um tempo constante de sua rotina para poder ver os primeiros resultados... às vezes o paciente chegava e eu nem me lembrava mais do que ele falou na última sessão".

Todas estas afirmações são freqüentes entre os diferentes profissio­nais no serviço público e, sem dúvida, preocupantes pois, de fato, lidam com uma população instável e variável em sua busca de atendimento. O problema é fazer disso um argumento, quiçá um pretexto, para inviabili­zar qualquer tentativa de trabalho psicanalítico ou mesmo psicoterapêu-tico, para empregar o termo corrente.

Por outro lado, o preconceito aparece na própria definição estereoti­pada do que seja o trabalho analítico como, por exemplo:

"Uma análise exige que o paciente compreenda a linguagem do inconsciente, traga sonhos, fale de sua realidade interna e não dos fatos do dia a dia". Ou "no começo até tentei com algumas pessoas, especial­mente mulheres que vinham se lamentando da vida... mas quando che-

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gava a uma interpretação mais profunda, não entendiam, ou não queriam acreditar no que eu dizia,... ou simplesmente passava um tempo e não voltavam".

Ao indagar o que seria o "mais profundo", ouvi como resposta: "Você sabe... algo sobre a sexualidade... Por exemplo, uma senhora

que reclamava de ter que cuidar do marido alcoólatra e quando interpre­tei, depois de tanto escutar detalhes sobre isso, que ela queria desmamar o filho que não amamentou [esse dado sobre o filho lhe foi fornecido lateralmente numa sessão], ela ficou danada comigo e não voltou mais."

Este exemplo remete especificamente à discussão sobre interpreta­ção, que abordarei mais adiante. O que interessa agora é a apreensão mais geral dc uma concepção pedagógica da psicanálise presente não apenas entre os médicos, mas corroborada pela idéia de que um trata­mento exige uma adequação do paciente ao que lhe é oferecido de modo objetivo e claro, sem arestas ou desvios que possam comprometer seu bom andamento. O melhor exemplo disso, relatado por um entrevistado sobre uma conversa informal com um colega, poderia estar no tratamen­to medicamentoso propriamente dito:

"Se até pra medicar eles são difíceis... imagine se dá pra oferecer psicanálise?... A gente não sabe se eles tomam o remédio direito como foi prescrito. Eu tento explicar para que serve a medicação, como deve ser tomada, que não deve ser interrompida sem meu conhecimento etc. Tem médico por aí que nem se dá ao trabalho de explicar. Antes eu achava um absurdo... mas hoje penso que quanto mais se explica mais complica. Eles querem a melhora imediata e pronto."

O que chama a atenção é o "até pra medicar", como se a medicação, último baluarte da objetividade, fosse envolvida por essa incapacidade dos despossuídos de discernir entre magia e ciência. Convém lembrar que este exemplo refere-se a pacientes e, ou familiares que teriam condi­ções de se responsabilizar pela administração da medicação.

Um entrevistado me forneceu uma indicação para refletir sobre esse tipo de discurso como o sintoma do médico. Comentando sua formação, se disse impressionado com a expectativa criada nos cursos de medicina sobre o verdadeiro trabalho médico:

"Somos preparados para lidar com doenças graves que requerem hospitalização, mais raras como a leucemia e outras, e quando você chega no ambulatório vai tratar diarréia, verminosc, anemia... Isso cria um conflito muito grande, você sente sua clínica desvalorizada... pra quê leu tanto texto em inglês?" [transpondo para o campo 'psi'] "Você acha

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que o cara não subjetiva, só vê o corpo, não tem possibilidade de fazer uma análise".

Em suma, se só o fato de ser médico já provoca esse 'choque cultu­ral', o que não dizer do fato de investir numa formação prolongada e cara como a oferecida nas sociedades psicanalíticas? Entretanto essa não é a postura do entrevistado ou de outros médicos-psiquiatras-psicanalistas que também se desdobraram em sua formação. Há uma escolha a ser feita no enfrentamento da clínica no serviço público que não diz respeito exclusivamente à psicanálise. Se a autoridade médica é o ápice da hie­rarquia, isso não quer dizer que, pelo menos no que diz respeito ao psíquico, o médico de fato saiba o que é melhor para o paciente. Quem deve se adaptar a quê?

Sem dúvida, quem sabe sobre o "remédio" é o médico. Remediar um dado sofrimento traduzido como conjunto de sinais e sintomas específi­cos que requerem determinada composição química com efeitos diretos e colaterais é, por excelência, o campo do saber médico. E é bom que o próprio saiba bem como fazê-lo, mas até para isso é preciso ter, no mínimo, a paciência (ou ela c própria dos pacientes?) benevolente de escutar para melhor traduzir a queixa. Isso já significa que ao queixoso se atribua alguma legitimidade, tanto no que se refere à veracidade de sua fala sobre as sensações quanto à possibilidade de explorá-la até um limite satisfatório para a escolha da medicação c o modo de administra­ção. Tomar remédio nunca é um ato isento da participação do sujeito que, por sua vez, nunca se revela de modo transparente e unívoco ao médico.

Tomemos um exemplo prosaico da clínica médica: um paciente hi­pertenso, após acompanhamento com nutricionista por um bom tempo, não consegue emagrecer nem alterar sua pressão. A médica encaminha para a psicologia, não sem antes passar-lhe um carão. Depois de uma ou duas entrevistas com a psicóloga, que nada lhe pedia além de falar, confessa:

"Sabe o que é, doutora, é que eu minto pra outra doutora. Ela é muito zangada. Não posso dizer pra ela que não consigo deixar minha cacha­cinha, minha lingüicinha, porque senão ela não me atende mais...".

Esperteza, burrice, má-fé, impulso suicida, ou algo mais na vida de alguém que se recusa a ser definido apenas como "hipertenso"? Que saber está em jogo? O exemplo fala por si.

Entre os que defini como clínicos do psíquico, se encontram os que consideram a psicanálise mais um recurso entre outros no trabalho clíni-

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co do que a afirmação de uma identidade irredutível a outras definições. Em geral dedicam-se mais aos pacientes psicóticos e diversificam sua abordagem promovendo ou incentivando outros recursos terapêuticos como os grupos com diferentes finalidades — operativos, visando a execução de tarefas; de ajuda mútua; terapêuticos etc. — e atividades extra-ambulatoriais nos serviços que oferecem espaços de convivência e ocupação, como oficinas, hospitais-dia etc. São menos corporativos, interagem mais com os outros profissionais e não se valem de sua auto­ridade médica além do necessário para fazer funcionar os dispositivos de cuidado em geral. Curiosamente, alguns são vistos como "santos", muito dedicados, principalmente porque, de um modo geral, não dão ouvidos às regras e formalidades do serviço público e privilegiam as situações clínicas emergentes em qualquer circunstância.

Um paciente psicótico retorna ao grupo um dia dizendo que teve que se internar porque não encontrou seu psiquiatra em casa naquele fim de semana para medicá-lo. Para ele isso era a exceção. Contudo, essa não é a principal característica dos clínicos do psíquico. Esse profissional sal­vador da pátria é raro e não chega a se constituir como modelo. Seu modo de agir é singular e movido por motivações que não me cabe discutir. Entretanto, sua presença na instituição por si já é modificadora, tanto das demandas de atendimento quanto dos efeitos sobre outros profissionais não médicos que gravitam a seu redor. Por sua conta e risco, faz funcio­nar uma clínica mais próxima dos projetos renovadores da assistência psiquiátrica. O risco maior é de se tornar insubstituível exatamente pelo mesmo motivo de ser inigualável, ou seja, de não visar ou não ter meios de transmitir seu modo de trabalhar ou de provocar mudanças mais efetivas nos serviços.

Há também, entre os clínicos do psíquico, os que ao serem identi c i -cados como o médico, o doutor por excelência, se apresentam ao pacie -te como os que fazem psiquiatria — ministram medicamentos — e psicologia — conversam. Sendo assim, esses médicos-psicólogos abrem espaço para uma possível escuta psicanalítica e, segundo alguns entre­vistados envolvidos com a psicanálise, essa é uma tática importante para tornar viável uma demanda diferenciada, em geral dirigida aos psicólo­gos. Estes sim, os conversadores por excelência. Aqui, fazer psicanálise não significa apresentar-se como psicanalista, seja para o paciente ou para a instituição. Isso pode ser mais um anseio corporativista sem efeito algum. A psicanálise para esse profissional não é mais uma técnica restrita a certas regras impraticáveis nos ambulatórios, mas uma possibi-

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lidade marcada pela oferta do profissional. Agora depende do sujeito aceitar ou não, e daquele que se propõe levar à frente um trabalho psicanalítico, de manter sua oferta e manejar os meandros delicados da transferência. Tratarei disso adiante.

Um entrevistado me alertou sobre os perigos de se "ir com muita sede ao pote", principalmente no caso de um iniciante. Freud já chamava a atenção para o furor sanandi. Mas há também o furor 'psicanalisandi', num rústico latinismo. Ele relata o caso de uma paciente histérica que era trazida pela vizinhança e chegava sonolenta, adormecendo na sala de espera. Tinha que ser acordada para ser atendida.

"Eu fiquei tão encantado que ela começou a dizer que eu a tinha seduzido, ela sacou aquilo de uma outra forma. Mandei para uma pessoa medicar, e ela foi se queixar no serviço social que eu tinha feito ela dormir, que eu a tinha seduzido no consultório".

O encantamento do jovem médico, que pratica a psicanálise, com o caso clínico tem seu correlato no desencantamento da bela adormecida, seduzida, que transforma seu sono entregue numa revolta queixosa às assistentes sociais, criando caso — endereçamento caprichoso e prenhe de sentido para uma histérica.

Freud nos alerta: "(...) desamparado contra certas resistências do paciente, cuja recu­

peração, como sabemos, depende primariamente do jogo de forças que opera nele (...) o analista deveria se contentar com algo similar [a] 'Je le pansai, Dieu le guérit'." (Freud, 1912, p. 115, tradução minha).

A bela indiferença, como responder com a diferença? Esse exemplo pode ser paradigmático de uma dificuldade muito presente entre os iniciantes na psicanálise, médicos ou não, que se deparam com o óbvio dos livros no inusitado do sujeito onde se produz um fosso entre o quadro clínico e o que pode vir a ser o caso clínico. Este é o maior desafio.

Voltemos à psicologia possível para os médicos-psiquiatras e retenha­mos a lição de que é preciso ser um pouco psicólogo, no sentido lato, para se afastar das armadilhas do modelo médico. A principal delas é tomar o sintoma como sujeito do experimento e o sujeito como objeto de intervenção.

Quanto à categoria dos psicólogos, são uma esmagadora maioria de mulheres com diferentes percursos na psicanálise. Logo de saída se deparam com o peso da autoridade médica na hierarquia do saber. Frases como "o doutor é quem sabe" ou "estou aqui porque o doutor mandou"

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são recorrentes no início dos atendimentos freqüentemente encaminha­dos pelos médicos e o primeiro indício de que há uma difícil tarefa pela frente. Interditados, e por isso liberados, do recurso à medicação, os psicólogos sabem que é preciso fazer outra coisa. Nesse sentido, há quem diga que estão naturalmente convocados à chamada psicoterapia. Se a psicoterapia é tão natural e os médicos mentais são os primeiros a reco­nhecer isso, qual a natureza da psicoterapia?

A conversa é o ponto de convergência e a referência primeira daque­les que demandam um tratamento diferente do medicamentoso. A coisa complica quando indagamos que tipo de conversa e com que finalidade?

Em sua formação, os psicólogos se deparam com uma grande varie­dade de 'teorias e técnicas psicoterápicas'. Esse é o nome de uma série de disciplinas obrigatórias na maioria dos cursos de psicologia. Deixo de lado as técnicas de modelagem do comportamento com suas variações — cognitiva, dessensibilização, reflexológica etc. — e as chamadas terapias alternativas — gestalt-terapia; terapia rogeriana; abordagem fe-nomenológica; e, mesmo, as terapias corporais menos centradas na pa­lavra (Russo, 1993) — que, de imediato, nos levam à pergunta: alterna­tivas a quê? Deixemos que Castel (1981) responda: são alternativas à própria psicanálise e dela derivam, numa certa banalização, sob a rubrica de pós-psicanalíticas.

O que interessa discutir é esse território de fronteiras indefinidas que compreende a psicanálise e sua correlata, a chamada psicoterapia de base analítica (Figueiredo, 1984, 1988a, 1988b).

De um modo geral, a psicoterapia de base analítica se define pelo negativo. Não é psicanálise porque não tem o mesmo setting — freqüên­cia, duração das sessões, divã, pagamento — nem a mesma qualidade da transferência e da interpretação, pilares do trabalho psicanalítico. Como já apontei, os principais motivos alegados por psicanalistas das mais diferentes filiações são as condições do serviço público e o tipo de clientela. Justiça seja feita aos lacanianos que recusam essa diferença apostando que só existe uma psicanálise e qualquer variação conspurca a verdadeira revolução freudiana. O risco é cair num corporativismo estéril que só dificulta as relações intra-institucionais e acaba por ter conseqüências na clínica. A diferença aí adquire outro estatuto: pode-se não ter condições de levar adiante uma psicanálise. Logo, o que se consegue nesses casos é produzir efeitos terapêuticos aquém dos efeitos propriamente psicanalíticos, mas a postura seria a mesma, não cabe dar

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outro nome para encobrir um limite muito mais sutil da prática psicana­lítica que deve ser discutido a partir de suas próprias premissas.

E notável que vários psicólogos e psiquiatras referidos à psicanálise adotam o termo psicoterapia de base analítica, ou porque se submetem a critérios inflexíveis assimilados em sua formação para definir o que é psicanálise, ou porque em seu próprio percurso — análise pessoal, prin­cipalmente, mas também definição e percurso teórico-clínico — não conseguem definir seu trabalho como tal. Estão divididos em relação a seu lugar como psicanalistas, só podendo afirmá-lo sob a proteção do ideal do consultório onde, não raramente, enfrentam dilemas semelhan­tes no cotidiano da clínica. Eis o seu sintoma.

Continuando com os psicólogos, observei um outro dilema que não diz respeito apenas à trajetória na psicanálise, mas também ao ideal social. Em geral, são profissionais mais sensibilizados para as questões sociais, talvez porque seu percurso seja marcado por uma certa tradição de militância política privilegiando os direitos sociais do cidadão em detrimento das exigências da clínica. Isto é, o sujeito é considerado mais a partir de suas condições sócio-culturais e econômicas do que a partir das sutilezas, que podem ser lidas ou inferidas em seu discurso, que apontem para uma dimensão mais virtual, mais obscura de sua queixa.

Suponho que esses profissionais tiveram maior acesso à literatura referente aos estudos sociológicos e antropológicos sobre a chamada população de baixa renda e ainda permanecem sob o impacto paralisante de suas revelações que, sem dúvida, são fundamentais para se repensar a clínica. Entretanto, sabemos que ao clínico compete ir adiante de posse dessas informações, sem, contudo, erigi-las à condição de instrumento clínico. Esse nunca foi o objetivo dos cientistas sociais.

Sabemos que não existe o puro sujeito do inconsciente como uma entidade abstrata fora das condições socioculturais que o engendram, e também que um certo modo de tradução da experiência subjetiva pode, numa primeira visada, se apresentar como incompatível com determina­da concepção de sujeito atribuída à teoria psicanalítica. O que destaco aqui é o aspecto sintomático da apropriação desses estudos e suas con­seqüências inibidoras. E preciso que situemos nossa função na clínica psicanalítica como produtores de um dispositivo peculiar da fala que lhe atribui uma dimensão específica. Voltarei mais detalhadamente ao assun­to no capítulo seguinte.

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Por hora, quero alertar para esta hipervalorização da palavra "social" que subsume uma variedade de concepções que têm como ponto comum as velhas oposições indivíduo psicológico versus realidade social, alie­nação versus engajamento, e cuja função maior parece ser a de favorecer a resistência à psicanálise por parte dos próprios profissionais, já que o "social" é por eles tomado como uma condição intransponível do sujeito. Aí se confundem e se perdem numa espécie de psicologia do social ou de sociologia do psíquico.

Entre alguns exemplos da "determinação do social" são mencionadas situações constantemente recorrentes nos atendimentos relativas a faltas, interrupções, trágicas histórias de vida, como estupros, espancamentos, mortes violentas de entes queridos, pobreza miserável, enfim, toda sorte de problemas raramente encontrados no consultório. Tudo isto é posto sob a rubrica do "social" como uma entidade, quiçá uma identidade, reificada que opera maciçamente sobre o sujeito inviabilizando o traba­lho psicanalítico. Depoimentos do tipo:

"Não podemos tratar essas pessoas fora do social." Ou "as condições sociais são tão mais pregnantes, (...) como vamos fazer o paciente pensar só nele e em seus problemas pessoais se os problemas que ele tem são muito mais concretos"? Ou "para eles não faz sentido ficar especulando sobre coisas que não dizem respeito a suas condições de vida". Ou "eles vêm atochados de problemas... histórias cabeludas... e querem que você como por milagre acabe com tudo que os faz sofrer... como posso dizer pro sujeito que ele tem que se mudar daquele lugar ou esquecer as cenas de violência... e tc"? Ou "a mulher apanha do marido e diz que não tem como sair de casa... e não tem mesmo pra onde ir...". Ou "o cara bebia muito e dizia que sua vida era um inferno... já foi pro AA, já tentou suicídio, já foi no psiquiatra, e disse que sua última esperança era que eu o fizesse parar de beber... já estava com o fígado comprometido... é muita responsabilidade! Eu disse que isso ia depender dele e ele não aceitou... não tive mais notícia".

Pelos exemplos, começo perguntando o que é tratar uma pessoa fora do social? É tratá-la fora de seu habitat? Ou fora de seus referenciais? Ou fora do mundo concreto, propondo um mundo abstrato e especulati­vo? Ouvi como resposta:

"Você não faz parte daquele meio (...) qualquer coisa que você per­gunta já significa que você não entendeu. Isso aconteceu com uma pessoa que atendi (...) eu pedia para ela explicar e isso era tomado como uma desconsideração (...) sei lá." Ou "você tem que tomar o maior

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cuidado porque se quer levar a conversa para uma coisa mais subjetiva, você pode estar desvalorizando aqueles problemas todos, tão graves (...) as pessoas parecem sem saída... não dá pra fazer um trabalho falando só sobre coisas concretas que fazem sofrer mesmo".

Este tipo de argumentação se não confirma pelo menos corrobora minha hipótese de que a velha dicotomia indivíduo versus social é o seu ponto de partida. Trata-se apenas de escolher de que lado se está, ou melhor, de que lado colocam a psicanálise. Sabemos que há um limite real do alcance da psicanálise, ou de qualquer terapêutica, mas esse é o fim da história e não seu começo. Sabemos também que não se faz psicanálise da miséria. E, por isso, vamos afirmar a miséria da psicanálise?

Como lidar com essas situações-limite? A tarefa do analista consiste, mais do que nunca, em oferecer ao

sujeito uma possibilidade de tematizar, ressignificar e elaborar sua "mi­séria", até onde for possível para tomar uma outra posição frente a toda essa desgraça cotidiana da qual, até certo ponto, não fazemos parte. Tarefa impossível? Para Freud sempre foi, juntamente com educar e governar. E afirmava a miséria banal como parte da condição humana que jamais será erradicada pela psicanálise.

Quanto às faltas, podem ser indicadores de momentos difíceis do sujeito na vida, mas também na análise. Uma coisa não exclui sumaria­mente a outra. Quanto às interrupções, sempre há o recurso de um chamado sem repreensão, ou de um convite a retornar quando for possí­vel ou quando o sujeito sentir necessidade. O resto cabe a ele, seja com que recursos for.

Quanto às histórias de vida, aí temos, ao invés do típico sentimento de "não há nada a fazer", um manancial de trabalho: como são contadas e recontadas; onde se situa o sujeito; que fantasia aí se tece; do que ele pode realmente se desfazer para dar um rumo minimamente diferente à sua vida. Isto não é psicoterapia de apoio, aconselhamento, ou de base analítica. Muito menos o esvaziamento da condição social do sujeito. É propriamente uma aposta na possibilidade de haver mudança na realida­de do sujeito, em função de até onde vai sua aposta, em um campo variável de possibilidades. Isto, por sua vez, depende também do manejo do analista. O investimento é diferenciado, mas é para ambos. E a recí­proca é verdadeira: ao desinvestimento do profissional, seja na institui­ção ou na psicanálise, corresponde um desinvestimento do sujeito.

Portanto, antes de lamentar que essa população não investe no trata­mento seja por não pagar, por não saber do que se trata, por não poder

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em função de suas condições precárias ou, simplesmente, por não querer, é preciso fazer a si próprio as mesmas perguntas sob outro prisma: por não ser bem pago? por não saber o que fazer de sua própria clínica? por ter condições precárias para suportar as mazelas alheias? ou, simples­mente, por não querer?

Entre os psicólogos entrevistados, encontrei os que admitem não ter mais fôlego para investir no serviço público. Geralmente estão à beira da aposentadoria. E também os iniciantes recém-concursados com muito fôlego mas sem saber como afirmar sua clínica. Seja por terem um percurso recente na psicanálise ou por não saberem como lidar com os entraves burocráticos que ameaçam seus projetos, ou por ambos os mo­tivos. Estes dois grupos apresentam uma fala queixosa e acusatória da falência das instituições públicas. Sem dúvida, este é um problema grave e sua solução, ou não, é determinante das condições de trabalho em qualquer área, da saúde à educação. Nesse sentido, uma coisa não deve se confundir com a outra. Reconhecer esse limite não significa abrir mão de experimentar, de ousar na clínica.

Duas ameaças pairam no ar: a burocratização do trabalho clínico como confirmação da falência do serviço público, e o recurso ao corpo­rativismo como forma de proteção da identidade profissional que pode gerar um empobrecimento da clínica.

Os mais burocráticos medicam ou fazem uma psicoterapia anodina, e os mais corporativistas criam tensões que acirram as disputas de poder pelas pequenas causas imersos, mais do que nunca, no indesejável nar­cisismo das pequenas diferenças.

Há, ainda, os psicólogos que, mesmo não se apresentando como psicanalistas, falam com simplicidade de uma clínica onde vêem acon­tecer situações de análise muito próximas das encontradas no consultó­rio. De um modo geral, parecem ainda não ter conseguido em seu per­curso um reconhecimento ou autorização para se dizerem psicanalistas. A psicanálise parece estar substancializada num ideal a ser atingido. Em determinado momento de maior dificuldade na clínica, esse ideal pode ter conseqüências perturbadoras. Por este mesmo motivo, buscam supervisões, conversam com colegas, recorrem aos livros, grupos de estudo e às suas próprias análises. Curiosamente, eles põem em marcha a concepção de formação analítica por excelência proposta por Freud e sistematizada, nem sempre da melhor nvmeira, nas sociedades psicana­líticas. São aqueles a quem denomino 'psicólogos psicanalíticos'. A psicanálise vem adjetivada em expressões como: "trabalho com o refe-

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rencial psicanalítico". Ou "faço uma clínica psicanalítica". Ou, ainda, "minha experiência é psicanalítica".

Mas isto é bem diferente da chamada "psicoterapia de base analítica". Esta pressupõe duas maneiras de fazer psicanálise, enquanto que as frases acima vão em direção à psicanálise. Essa diferença não é nada desprezível em suas conseqüências clínicas.

Finalmente, encontrei entre psicólogos e psiquiatras os que se defi­niam como psicanalistas e como tal se apresentavam nas instituições recusando atribuições que os desviassem de sua prática psicanalítica. São os psicanalistas stricto scnsu e correspondem, aproximadamente, a um terço dos entrevistados. Em sua grande maioria são lacanianos com filiação institucional, outros são lacanianos mas não são membros de qualquer instituição, e outros são de algum modo afinados com a leitura que Lacan faz de Freud mas filiados a instituições com diferentes ten­dências. Em mjnha amostra não encontrei ninguém que defenda um trabalho psicanalítico no serviço público e se diga psicanalista sem hesi­tar que não tenha uma ligação com o pensamento lacaniano. Isto não é novidade.

Em trabalhos anteriores sobre o movimento psicanalítico no Rio de Janeiro nas décadas de 1970 e 1980 (Figueiredo, 1984, 1988a/b, 1989) eu já havia indicado que o movimento lacaniano aparece com a função de redefinir o campo psicanalítico e retirá-lo do imbróglio eclético das psicoterapias que ameaçavam descaracterizá-lo transformando tudo em psicanálise, ou a psicanálise em nada. Portanto, não é de se estranhar que na década de 1990 esse projeto tenha se concretizado.

Os psicanalistas explicitamente referidos a Lacan insistem em marcar uma diferença para com os psicólogos psicanalíticos que pode gerar tensões às vezes insolúveis. Pode, por outro lado, traçar com clareza os próprios limites do trabalho psicanalítico no serviço público.

Uma psicanalista relata observações curiosas sobre a ambigüidade de seus colegas que hesitam entre se apresentarem como psicanalistas ou como psicólogos num serviço eminentemente médico. Ao mesmo tem­po, tiram proveito de uma outra ambigüidade entre a figura do médico e a do psicólogo niveladas pela designação de 'doutor' atribuída a ambos pelos próprios colegas, o que adquire um sentido bem diferente de quan­do essa atribuição é feita pelos pacientes. O que essas ambigüidades vêm nos indicar? Que tipo de qualificação é essa que, ao privilegiar a igual­dade de status, desqualifica as diferenças na clínica?

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Para afirmar a clínica psicanalítica, o que está em jogo, num primeiro momento, é um sintoma específico, a manifestação de uma fantasia que traduzo como o desejo de ser psicanalista, produzido no percurso de cada um. Trata-se de um sintoma necessário mas não suficiente, exatamente porque, de algum modo, coloca a psicanálise num lugar ideal de onde exerce seu fascínio. Sem ele, não se tem como avançar diante de tantos desafios e obstáculos cotidianamente presentes no serviço público.

Dado este primeiro passo, resta definir com clareza o que deve ser identificado como o trabalho do psicanalista, sua função propriamente dita. Só assim, pode-se manejar esse sintoma na direção desejada.

3. Duas ou três questões para a psicanálise no ambulatório

3.1 Dinheiro, pra que dinheiro...

"O dinheiro envolve poderosos fatores sexuais" (...) a ausência do efeito regulador proporcionado pelo pagamento de um honorário ao médico sé faz sentir de modo doloroso;(...) o paciente é privado de um forte motivo para se empenhar em dar fim à sua análise" (Freud, 1913, pp. 131-2)

Dentre as não muitas referências de Freud à função do dinheiro em psicanálise, a acima citada provoca especial embaraço pois diz respeito diretamente ao analisando, já que o analista em nosso caso tem sua remuneração fixada mensalmente. O problema não é mais de quanto e como cobrar, mas das conseqüências desastrosas para o tratamento de quem não pode pagar, não por impossibilidade mas por imposição, como norma geral dos serviços públicos. Se aí não se pode cobrar, como avaliar as conseqüências comprometedoras do tratamento se é justamen­te dos "poderosos fatores sexuais" que trata a análise? E, ainda, como desvencilhar-se dela?

Essas formulações não são totalmente verdadeiras nem tampouco totalmente falsas. E preciso indagar de pronto se a ausência do fator dinheiro retira de cena os fatores sexuais que o dinheiro envolve. Sabe­mos que não. Mas um argumento corrente entre analistas que trabalham na rede pública e consideram seu trabalho eminentemente psicanalítico, em geral referidos ao paradigma lacaniano, é de que sem alguma forma de pagamento uma análise não anda. Pode-se chegar até certo ponto mais ou menos avançado do trabalho de elaboração, mas há sempre um mo­mento em que pagar (ou não) entra em jogo como um poderoso fator de

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resolução da transferência. Fator libidinal, economia da libido, fixação, seja qual for a designação, aqui chega-se a um impasse.

A parca literatura psicanalítica sobre dinheiro a que tive acesso,* e que tomo como ponto de partida, ignora absolutamente a possibilidade da remuneração do analista ser feita por um terceiro: a instituição à qual estaria vinculado sob o regime de assalariamento. Não existem analistas assalariados? O salário não faz um analista? Ou melhor, o salário desfaz o lugar do analista?

A remuneração no serviço público, embora variável, torna-se risível se comparada à receita dos consultórios mesmo considerando seu esva­ziamento crescente e as concessões que os analistas têm que fazer para manterem seus clientes. Este deve ser nosso ponto de partida e não um pretexto para a desqualificação do trabalho analítico. Nesse ponto, reite­ro que a reivindicação de melhores salários, assim como de melhores condições de trabalho, é uma luta maior e requer uma política séria e transparente dos servidores públicos. De nada nos serve o famoso pacto "eles fingem que pagam e nós fingimos que trabalhamos". Pretendo, portanto, deixar de lado essa questão, entendendo que me dirijo àqueles que têm um compromisso ético com o que fazem. Tomo a questão do dinheiro no que concerne exclusivamente à clínica.

Entre meus entrevistados os argumentos variavam e as propostas de solução nem sempre foram animadoras. Uns afirmavam categóricos que é preciso pagar, mesmo que não seja com dinheiro. Deveríamos, a cada caso, estipular uma forma de pagamento, atribuir um valor que pudesse fazer as vezes do dinheiro como uma metáfora. Seria um produto, um presente, um objeto qualquer, contanto que custasse algum trabalho ou esforço de recompensa para não infinitizar a dívida com o analista, ou ater-se ao gozo de seu sintoma. O dinheiro, como metáfora do objeto perdido, atualizado nos objetos parciais recortados no corpo — seio, fezes, pênis, bebê, na equação freudiana — deveria ser então metafori-zado. Metáfora da metáfora na série metonímica de equivalências sim­bólicas. O problema maior é que dificilmente esses objetos podem ter o estatuto de valor de troca ou de compra na rede social. Money makes the world go 'round. Mas se o analista não é um money maker... então não tem valor?

Entre os principais trabalhos, faço referência a: "O dinheiro na psicanálise", vários autores, em Agenda de psicanálise, 1989; As 4+1 condições da análise, capítulo IV: Capital e libido, de Antônio Quinet e Argent et Psychanalyse de Pierre Martin.

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Outros confirmavam minha hipótese de que o sujeito que procura tratamento reconhece naquele que o atende um profissional, ou seja, é pago para isso, não está aqui de favor ou só porque o ama, não é filantropia — o maior receio de Freud na clínica privada. Portanto, a dívida simbólica retoma seu lugar de impagável sendo sintomatizada ao gosto da neurose do freguês (seria cliente?). Curioso que a palavra clien­te raramente é usada quando se fala em clínica. Emprega-se alternada­mente os termos paciente, sujeito, analisando, analisante, neurótico ou psicótico, para designar os que procuram tratamento seja nos consultó­rios ou na instituição. Nenhum desses termos alude ao dinheiro.

No consultório a questão está resolvida, apenas é problematizada como mais ou menos pertinente ao dispositivo analítico. O analista refe­rido à ortodoxia tradicional das escolas inglesa e americana resolve o problema no modelo do contrato liberal. Fechar o contrato significa a um só tempo contratar o preço, a freqüência, que pode fazê-lo variar — pagar por uma ou até cinco sessões semanais exige um cálculo nada desprezível — e o horário. Pronto. O resto é manejar a transferência com elegância na hora de corrigir os honorários, salvo nos casos em que o "poderoso fator sexual" entra em ação, geralmente pela porta de trás, sob a forma de fixação anal. Perdulários ou avarentos devem encontrar a justa medida para o justo preço. E bem verdade que os retenlivos tornam-se mais problemáticos. Aí a interpretação se encarrega de corrigir os algarismos.

O analista referido à escola francesa, a partir da reviravolta de Lacan, encontra na ética do desejo como falta o limite de sua fortuna. O dinhei­ro, fazendo as vezes do objeto perdido, entra em cena na primeira hora como o que se perde para garantir uma perda de gozo do sintoma, já em questão quando se procura um analista.

Por outro lado, o pagamento não teria só a função de fazer cair o objeto para apontar o caminho do desejo. Da parte do analista, oferecer sua escuta para receber em troca os inauditos segredos que revelam uma fantasia envergonhada de seu gozo pode bem dar a idéia de que é o analista quem goza disso. Falar para fazer o outro gozar é, sem dúvida, o que não se deve esperar de uma análise. Nesse sentido, cabe ao analista saber cobrar o que custe caro ao analisando, mas sem referência fixa ao preço de mercado ou à freqüência padronizada. Deve pedir o que o sujeito tem a pagar reivindicando o que lhe é de direito: o acesso ao gozo do dinheiro. A quantia pode, muitas vezes, deixar a desejar para o bolso do analista. O preço entra mais do que nunca pela via da transferência, e

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a metapsicologia só tem a ganhar ao incluir o dinheiro em seu acervo teórico como um recurso importante no manejo da transferência.

Entretanto, em nenhum dos casos podemos tomar de empréstimo as soluções apresentadas. Elas ficam devendo um tributo ao analista que faz operar o dispositivo somente a partir de um pedido inicial do sujeito de alívio para seus males. No serviço público é proibido cobrar. Este é o ponto de partida.

Imaginemos, para polemizar, que o analista mais convencido de que pagar é fundamental, pelo menos em alguns casos, administre uma forma de pagamento em que o dinheiro possa ser vertido para a instituição para fins específicos de melhoria das instalações do serviço, o que reverteria para o conforto dos próprios usuários. Convém lembrar que falamos de quantias irrisórias, mesmo considerando um maior afluxo da população da chamada classe média aos serviços. O que justificaria que em outras modalidades clínicas e assistenciais cobrar não seria necessário? A me­tapsicologia? Por que não pagar ao médico também para se ver livre do objeto fetiche em que o medicamento pode se converter? Ou ainda, pagar ao assistente social como forma de reconhecimento por seu trabalho de encaminhar soluções concretas para o paciente e seus familiares? Afinal, não c privilégio exclusivo do analista ter seu trabalho reconhecido, ou ser o depositário de uma dívida de gratidão indesejável. Os "poderosos fatores sexuais" estão em jogo em toda parte.

Um contra-argumento surgiria de pronto: mas é justamente essa a diferença entre a psicanálise e as demais terapias. Aqui é o lugar onde o sujeito paga para perder e não para ganhar bens. A psicanálise não oferece a cura como barganha para o sofrimento. A troca é do sofrimento (ou excesso de gozo) do sintoma, que já não satisfaz, pela "miséria banal", para empregar um termo de Freud. Mas, amar e trabalhar já dão muito trabalho para os que apostam na vida. E é justo aí que os neuróti­cos e, cm maior grau os psicóticos, sucumbem. E ainda tem que pagar por isso? — diz a histérica vitimizada; diz o obsessivo esticando a dívida.

Alguns exemplos podem dar o que pensar, vamos a eles:

"Vim buscar o serviço público porque acredito que aqui posso ser bem atendida (...) eu acredito nas instituições."

Este enunciado é de uma senhora formada em sociologia há muitos anos mas que não exerce a profissão. Procura atendimento por ter sérios problemas com o marido com quem é casada há anos e com quem freqüenta uma psicóloga particular para terapia de casal, paga pelo ma-

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rido mas solicitada por ela. A psicóloga em questão indica terapia indi­vidual para os dois e mantém o atendimento do casal. Ela reconhece que está precisando, e o marido prefere continuar conversando com a psicó­loga com quem, segundo ela, se entende bem. Como o marido não mostra disposição para pagar por mais uma terapia e ela mesma diz que não gostaria de pedir mais dinheiro a ele, pois esse tratamento vai "ser só meu", ei-Ia aportando no serviço público. Convém lembrar que ela vendia produtos de beleza para ter "um dinheirinho" irrisório diante dos ganhos do marido mas não o fazia regularmente. O que fazer diante dessa demanda? Trabalhar a importância do pagamento daquilo que é só dela e encaminhar para a clínica privada? Aceitar tacitamente sua palavra como aposta no valor do serviço público e iniciar um trabalho "só seu"? Optou-se, no caso, pela segunda hipótese.

Seu dilema era separar-se ou não do marido, queixas várias que foram dando lugar a uma reflexão sobre o que a fez casar-se com ele e manter um casamento com sérias decepções, desde o início, por tanto tempo. No processo, ela decide que ele tem que pagar (...) pagar por isso; pagar paia lê-la. sustentá-la, pagar pela terapia de casal que mais adiante é interrompida pois ela não via sentido nisso. "A psicóloga acabava dando razão a ele."

Outros acontecimentos em sua vida, como a doença e morte de seu pai de quem cuidou em sua própria casa, confirmavam a importância da ajuda do marido. Mais adiante ele pede a separação, o que era impensá­vel até então, e ela decide convencê-lo a ficar num rearranjo da convi­vência entre os dois, suportando suas saídas freqüentes em troca de uma certa liberdade para o que é "só seu". Alguma separação tornou-se pos­sível. Teria sido este o desfecho por ela desejado? Ou desejável, na avaliação de quem a atendia?

Infelizmente, não acompanhei o caso para melhor discuti-lo. O que interessa recortar nesse exemplo é a indagação: se houvesse pagamento cm jogo qual seria a troca? Haveria um outro modo de pagar pelo que é "só seu" e poder ganhar mais por isso? E o imponderável, sabemos disso. A escolha foi feita por ela e aceita pelo analista.

"Estive nas mãos dos melhores analistas (...) nomes famosos (...) eles pintaram e bordaram comigo, fizeram de tudo (...) andei de chinelo de dedo pagando analista e não cheguei a lugar nenhum (...) e já que aqui é de graça vou tirar tudo que eu posso."

Esta é a resposta de uma senhora instruída, com nível superior, à pergunta sobre sua escolha de um ambulatório público. Ela fora atendida

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ate então por outra psicóloga do serviço, a quem se referia como uma amiga, na freqüência regular de duas vezes por semana. A freqüência foi mantida por um período de quase um ano, mas ela faltava muito e chegava bastante atrasada para as sessões. No início, falava de seus problemas referindo-se a uma relação amorosa que (...) "acaba com a minha vida, abusa de mim, levou tudo que tenho de bom, meu dinheiro, minha beleza, minha inteligência, (...) estou arrasada, não vejo mais sentido na vida... não desejo mais nada".

Referia-se à atual terapeuta como uma "menina que não sabe de nada" e as sessões foram se tornando difíceis. Sem saber o que fazer, sentindo-se incapaz de lidar com o tom agressivo e de desvalorização com que a paciente recusava suas intervenções, rendendo-se às evidên­cias, ela propõe que a paciente venha só uma vez por semana porque concorda que desse jeito não está mesmo adiantando. As reclamações não foram poucas mas, para espanto geral, a paciente passa a vir sem faltas ou atrasos. A perda da sessão toma novo sentido como uma possi­bilidade de trabalhar sobre sua demanda de "tirar tudo porque já haviam tirado tudo dela". Começa a dizer frases do tipo: "quero ir fundo, entrar de cabeça, porque agora sei que posso contar com você" e "quero vir para cá porque quero aprender a crescer, (...) estou contando com você... não posso te perder".

Diante da perda inesperada de uma sessão, justificada pela confirma­ção de que "desse jeito não adianta", sua exigência em obter algo, um ressarcimento de tudo que já pagou e perdeu, dá lugar a um movimento desejante. O que ela tem como oferta do outro é o trabalho de análise, não está mais "nas mãos dos analistas" (mestres famosos?), portanto, não é seu objeto. O analista agora é que não pode ser perdido, ele serve de garantia para ela poder "entrar de cabeça na vida" e na análise, pois começam a ser relatados fragmentos de lembranças de cenas nebulosas que envolvem fantasias eróticas em relação à mãe.

Neste caso, pagar com o tempo adquire um valor na economia libidi-nal e provoca uma reviravolta na relação do sujeito ao objeto: da perda de tempo, que nada traz, ao tempo que está perdido e não se recupera. Convém lembrar que não se trata de uma punição. Num dado momento, ela solicitou urna sessão extra na mesma semana e foi atendida, mas seu pedido referia-se ao fato de naquele momento precisar falar, ter o analista disponível para o trabalho de elaboração, não era barganha.

"Isso aqui c para a senhora", disse um paciente puxando uma nota, que hoje corresponderia aproximadamente a R$ 10,00, no dia em que

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recebeu os atrasados de seu pagamento. "Não posso aceitar dinheiro" retrucou a analista embaraçada e, após alguma tentativa de interpretar o significado desse ato, optou por dizer que aceitaria algo que fosse com­prado com aquele dinheiro. Uma ou duas sessões após, ele retorna com o presente/pagamento: uma toalha de praia estampada com a figura do Cristo Redentor.

Este paciente fora atendido por um período de cerca de dois anos e, por motivo da saída de sua analista do serviço, o tratamento estava sendo interrompido. A queixa inicial era de fortes dores nevrálgicas no rosto — não se sabe ate que ponto devidas a um sério problema de otite não tratada a tempo —, nervoso, medo, insónia, inapetência, vontade de morrer. Após ter peregrinado por tantos médicos em busca de uma solu­ção, saturado de remédios, aceita vir à psicóloga para conversar. Tinha mais dc 50 anos de idade e estava "encostado" pela Previdência Social há nove anos. Era migrante de uma pequena cidade no norte do Estado do Rio, e havia trabalhado por cerca de oito anos na garagem dc uma empresa de ônibus na limpeza c manutenção dos carros. Havia sofrido um sério acidente de trabalho e fraturado a bacia, daí sua licença médica. No decorrer do atendimento, a queixa da dor vai dando lugar a outras dores morais e ele vai reconstruindo sua história, falando da vontade de voltar para sua terra, retomar sua "força" de arrimo de família (Oliveira, 1991).

Não me alongarei mais sobre o caso, pois trata-se de apontar para uma forma de pagamento que não lhe foi exigida como condição do tratamento, e hipotetizar uma significação desse gesto: sua analista, que o atendia em Niterói, estava voltando para o Rio de Janeiro para trabalhar peito de casa, numa "vida boa que a senhora deve levar lá" — esta frase já havia sido dita antes referindo-se à sua saída. Tratamento interrompi­do, desejo dc ir com ela para essa "vida boa", e um modo de se fazer presente, nos dois sentidos se condensam nesta metáfora. Antes, e le ja havia declarado que não pretendia continuar se tratando com outra psi­cóloga. Só lhe restava um último ato.

Um adolescente envolvido no tráfico de drogas, com perturbações psicossomáticas, dores de cabeça, sensação dc sufoco no peito, fala de sua função de "avião". Num dado momento refere-se à importância desse ir e vir como "(...) eu levo e trago coisas que as pessoas querem e me sinto importante por isso."

Na época o serviço se utilizava do recurso freqüente a aerogramas para contactar os pacientes e a analista pensou em atribuir-lhe a tarefa de

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postá-los por um tempo, arriscando ver qual o efeito disso. A idéia sequer se concretizou pois não havia "clima para isso". Poderíamos pensar que se trata de um artifício inútil, por demais apegado à palavra, sem consi­derar outros "poderosos fatores sexuais envolvidos" na empresa do trá­fico. Seria esta uma boa maneira de trabalhar para o analista, ao invés de para o traficante? Isso resultaria no bom andamento da análise? Entre­tanto, este seria um julgamento precipitado.

O que interessa neste exemplo é pensar alguma alternativa para desa­fios clínicos tão grandes tanto no que se refere ao gozo da pulsão, quanto às identificações em jogo nesse caso. Poderia ser útil se o serviço ofere­cesse formas de absorção e ocupação para certos pacientes. Isso, porém, não basta, c preciso localizar o que oferecer e quando fazê-lo, a cada caso.

Tomando inversamente o consultório como exemplo, presenciei, cer­ta vez, o depoimento de um analista sobre como cobrava em sua clínica, citando o caso de um artista plástico que, em dado momento não tinha como pagar sua análise. O analista propôs: "pague-me com seus traba­lhos", e afirmou que durante um tempo funcionou. No decorrer da aná­lise, aconteceu do analista ser o único comprador. Situação delicada, pois se não temos como saber qual o valor de uma análise, o mesmo pode-se dizer de uma obra de arte: inestimável? sem preço? o mercado é que dita? ou sem valor?

Um outro exemplo do consultório é relatado por Teixeira (1989, pp. 240-2) sobre uma paciente que "tem câncer e não tem dinheiro... o câncer comeu o pouco dinheiro que tinha." Como solução inicial propõe o pagamento sob a forma de um presente, "o que ela quisesse, a seu gosto". O que resulta é que a paciente não suporta ter que escolher algo para presenteá-lo a cada sessão, sob pena de não agradar, ter que pensar nele o tempo lodo. Assim, ela propõe uma quantia pequena, porém pagável em dinheiro, para desvencilhar-se dos excessos da transferência.

O exemplo é notável por apresentar a questão no seu avesso. Ao pagar com o que é mais valioso de si não estaria ela infinitizando sua dívida? Aqui fica claro que pagar é se desfazer de um bem, e não ter que fazer um bem a cada vez; é se desfazer das demandas caprichosas do outro para poder encontrar o analista.

Um outro exemplo vai numa direção diferente. Trata-se de um obsessivo típico que, ao término de uma sessão, diz:

"não deu pra trazer o dinheiro porque entreguei para minha mãe". A

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analista retruca: "como assim? entregou para sua mãe o dinheiro da análise'" Nesse momento de sua análise, ele faltava muito e vinha quan­do era chamado pela analista, ou seja, ir, falar, pagar — tudo o que o analista pode pedir do analisando — mais do que nunca entravam numa série psíquica de servidão, servir/pagar à mãe ou à analista, encarnando o imperativo do superego, constituindo um entrave, quase intransponí­vel, ao bom andamento da análise. Aqui o dinheiro é mesmo um bem do qual o sujeito sequer se desfaz mas que faz perpetuar a dívida.

Voltando ao nosso problema, como pode o analisando que não paga se desfazer da transferência?

Outros depoimentos indicam que esta pode ser uma discussão do sexo. sem dúvida, mas dos anjos:

Ceita vez, os funcionários de um serviço estavam em greve e um profissional foi até a sala de espera esclarecer os motivos da suspensão do atendimento alegando os baixos salários recebidos. Uma assídua paciente perguntou quanto ganhavam. Ao saber da quantia revelada em tom de desdém, exclamou surpresa: "Tudo isso? eu ganho muito menos e faltei ao trabalho para vir aqui ser atendida!"

O que destaco deste diálogo não é a idéia conformista de que deve­mos trabalhar a qualquer preço ou nivelar por baixo; ao contrário, reafir­mo a luta por melhores salários. A fala da paciente, porém, indica que, dc seu ponto de vista, os profissionais não estão lá por filantropia ou abnegação, para cia há um custo de trabalho cuja contrapartida é o ganho do profissional pelo trabalho. Ninguém fica a dever nada a ninguém.

Discute-se muito que os pacientes são também contribuintes, pagam impostos e têm direito aos serviços. Entretanto, este argumento é débil. Primeiro porque esse pagamento existe independente da oferta de servi­ços, portanto não é necessariamente reconhecido como tal no empenho do sujeito cm sc tratar, ainda mais no caso de uma psicoterapia, psicana­lítica ou não. em que esse empenho se diferencia do atendimento médico cm geral pela freqüência e expectativas.

Segundo, em se tratando da seguridade social, muitos não são, sequer, contribuintes. E. ainda, há o problema quase incontornável de pessoas que têm no tratamento, seja qual for, uma condição para receber o benefício ou auxílio-doença. Neste caso, haveria um duplo ganho: não pagar e poder receber algum dinheiro para seu sustento. Em geral, esses pacientes são atendidos pela psiquiatria, mas houve referência a atendi­mentos cm psicoterapia. Os exemplos mencionados eram de casos gra-

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106 í Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

vcs de pessoas que não tinham como se manter. Portanto, a ética não é a do dinheiro, e a questão é de que efeitos terapêuticos podem se produzir no processo. No caso do próprio tratamento se transformar literalmente em "encosto", resta a decisão de cada analista, a cada caso, de não sustentar um pacto perverso.

Por outro lado, foram mencionadas formas indiretas de pagamento como um custo real para os pacientes que se engajam nos tratamentos: o tempo e dinheiro que gastam para chegar até o serviço pelo menos uma vez por semana; diaristas que perdem no mínimo um turno de trabalho e remuneração; donas de casa que deixam seus lares e filhos entregues à sorte por boa parte do dia; jovens que perdem às vezes um dia inteiro de atilas, gazelas à parte, e têm que se haver com as provas e demandas dos professores; trabalhadores em geral que sofrem pressões para não se ausentarem regularmente dos empregos;,desempregados que conseguem emprego c têm que arcar com uma escolha difícil de abandonar seus tratamentos ou negociar com os patrões; pais que têm que levar os filhos vencendo todo tipo de obstáculo, e por aí vai. Haja investimento e inventividade! Estes são alguns exemplos que devem ser contabilizados como pagamento e na avaliação da resistência.

Uma outra objeção aparece de forma mais sutil. Vários entrevistados comentaram que os pacientes agradecem muito, não há margem para a transferência negativa, para que apareça o lado obscuro da fantasia diri­gida ao analista. Ou. ainda, se estão achando que ir lá e falar não adianta nada, como vão dizer isso se são tão bem atendidos, na hora, com tanta dedicação 1/

Sobre este ponto, podemos contra-argumentar que há sempre o recur­so de ir embora sem nada dizer, poupando a ambos o dissabor do fiasco. Esta pode não ser a melhor maneira, mas é um recurso viável e acontece (não raramente) nos consultórios.

Sobre a transferência negativa, assunto mais espinhoso, podemos começar indagando até onde a hostilidade ao analista é condição para o bom andamento de uma análise? Questão metapsicológica. Supondo que sim. há formas variadas de manifestação de sentimentos, mais sutis, talvez, mais difíceis de detectar e manejar e, por isso mesmo, são um desafio maior para o analista. Não subestimemos a engenhosidade de nossos pacientes, nem tampouco nossos recursos clínicos. Não devemos nos colocar numa posição de tanta bondade se detectamos que esses agradecimentos são encobridores; nem de tanta paranóia que não possa-

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mos perceber que eles indicam exatamente o que dizem. Ou seja, agra­decer pode ser, no mínimo, a confirmação de que houve efeito terapêu­tico, ate um modo de reconhecimento do trabalho do analista. E impor­tante saber cm que momento da análise, a partir de que acontecimentos, cm que seqüência associativa isso ocorre. Quantas vezes não ouvimos após sessões difíceis, onde se revelam segredos ou sofrimentos penosos, ou sc fazem associações impensadas, constatações inegáveis de situações antes negadas, e, para nossa surpresa, ouvimos um "muito obrigado" sem glandes alegrias, mas reconhecido.

Há. ainda, o famoso "muito obrigado por me escutar". Isto não é pouco, apesar de sabermos que uma análise não fica por aí, ao contrário, começa. O problema maior é que esses agradecimentos podem simples­mente apontar para o fato de que no serviço público, de um modo geral, as pessoas são muito mal atendidas, não são minimamente escutadas, ou respeitadas. Isto c muito grave, e não deve ser tratado como dificuldade em sc desfazer da transferência.

A dificuldade c outra c está do nosso lado. Se, ao cumprirmos nosso dever ético dc atender bem somos exceção, como podemos nos livrar de uma parle desse reconhecimento que, num dado momento, pode encobrir uma outra face da fantasia?

Em primeiro lugar é preciso não confundir o atender bem com com­placência ou bondade compadecida, nem saltar para o outro extremo do intransigente c inflexível. Em segundo lugar, é preciso que, no decorrer do trabalho analítico, o sujeito se perceba em trabalho até para poder querer "férias", "folga", para pensar em ir embora quando achar que já trabalhou o bastante.

Algumas pessoas comentaram que esses agradecimentos não se pro­longam tanto quando o sujeito percebe que o tratamento não é a simples aquisição dc um bem; a acolhida inicial vai dando lugar ao seu próprio empenho.

Em vários depoimentos aparecem exemplos freqüentes de analistas presenteados, seja cm ocasiões típicas como Natal, Páscoa, mesmo ani­versário, mas também em situações singulares, em geral por pacientes cm tratamento há algum tempo. Parece que deixam entrever no amor de transferência um pagamento pela via da gratidão, poder dar algo. Se tem a equivalência de desfazer-se de uma dívida, só nos resta ir a detalhes de cada caso. Uma analista comentou bem humorada: "no consultório não ganho tanto presente assim"!

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Uma entrevistada lembrou que no caso de crianças e adolescentes o pagamento em consultório é sempre feito por terceiros, geralmente os pais, mas nem sempre, e que se isso pode alterar em determinado mo­mento o rumo do tratamento, é muito mais pela resistência, por ter que pagar, que os tratamentos são interrompidos; o dinheiro aí é um poderoso fator dc impedimento. Em sua experiência no ambulatório esse compo­nente da resistência não existe, ela pode se dar de outras formas, pelo abandono simplesmente. Outros alegam justamente isso: as pessoas abandonam com mais facilidade o tratamento por que não têm que pagar; sc tivessem esse compromisso voltariam. Como saber?

E quanto aos crescentes casos de consultório cm que o analista acaba ouvindo a conhecida frase "tenho que interromper por que não tenho como lhe pagar'"?

As duas posições parecem desaguar no mesmo lugar: no consultório c no ambulatório contamos com elementos diferentes em jogo tanto para a boa resolução da transferência quanto para a resistência inevitavelmen­te presente cm qualquer análise. Portanto, é só a partir da afirmação dessa diferença que podemos pensar soluções para cada caso. O que não podemos fazer é alegar como um a priori que sem dinheiro não se pode fazer psicanálise. Isto sim é resistência!

E preciso criar novos critérios de avaliação do fator ausência de dinheiro na experimentação cotidiana da clínica e referi-los à teoria psicanalítica. E assim que podemos sair ganhando ao invés de entrar perdendo. Contudo, o ganho não é narcísico nem secundário, ao contrá­rio, é com perda narcísica que se abre caminho para novas possibilidades do trabalho psicanalítico.

3.2 Deitando o olhar sobre o divã

O divã, metonimia preciosa, chegou à mídia e está na boca do povo: tem o divã do Mascarenhas, o divã do Faustão (...), e deita-se a falar dele como nunca. Talvez seja hoje tão popular quanto o bem humorado (e patético) "Freud explica". Não há mais psicanálise a sério?

Quando sc fala cm divã no serviço público há, no mínimo, um estra­nhamento. Signo de conforto burguês e ortodoxia, divã só no consultó-no. Peça fundamental do mobiliário psicanalítico, foi inventado por Freud como um instrumento nada acessório da clínica. Seu inventor dedicou poucas palavras a justificá-lo. Seria um resquício histórico da

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hipnose como meio de relaxamento e entrega do corpo à magia do tratamento, mas também um alívio para o analista, um facilitador da escuta.

Freud vai mais longe e o inscreve no movimento pulsional. Nova­mente, os poderosos fatores sexuais entram em cena, desta vez, pela via do olhar, da pulsão escopofílica ou escópica. Não se trata de recomendar o divã para determinados casos. Sua função em interditar o olhar tem como objetivo e resultado impedir que a transferência se misture, imper­ceptível, com as associações do paciente e apareça como resistência precocemente (Freud. 1913, p. 133-4). Assim, o uso do divã se justifica menos por provocar um estado letárgico e mais por permitir a emergên­cia da transferência como resistência em seu devido tempo, restrita à fala e isolada da imagem do analista. Ou seja, as imagens em cena devem remeter propriamente à fantasia do analisando. Nesse sentido, sua função parece indispensável. Cabe aqui a pergunta: seria o divã a única manei­ra de desfazer a pregnância indesejável do olhar? E, ainda, até onde alteraria o tempo e a qualidade da transferência, entendida aí como resistência?

Entretanto, ao invés de problematizar a função do divã nas variações do setting, a corporação internacional de psicanalistas optou por padro­nizá-lo como um invariante juntamente com a duração e freqüência das sessões c o pagamento. De resto, estamos fora do setting e, numa con­cessão estratégica, podemos, na melhor das hipóteses, fazer uma psico­terapia de base ou inspiração psicanalítica.

No modelo estrutural de Lacan, o divã, mais do que um componente dos standards, tem uma função específica, e localizável a cada caso, de marcar o momento da entrada em análise. Atrelado ao trabalho das entrevistas preliminares, o divã é indicado pelo analista quando emerge algo qtie diz respeito ao sujeito do inconsciente e se dirige ao analista, estabelecendo a transferência propriamente analítica. Não desenvolvo aqui os meandros conceituais desta operação, mas considero que nessa perspectiva o divã, mais do que nunca, se faz indispensável.* Como resolver o problema sem recorrer à solução proposta pelos padronizado-ics da psicanálise acima referida e condenada pelo próprio Lacan?

Para maiores detalhes, ver em 4+1 Condições da psicanálise, de Antonio Quinei, cap. II, "O divã ético", pp. 39-54, as etapas que conduzem das entrevis­tas preliminares ao divã.

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Curiosamente, a maioria dos entrevistados se preocupou mais com o problema do dinheiro do que com o divã. Em primeiro lugar porque divã não é proibido, pode não ser considerado como peça necessária do mobiliário, geralmente precário, dos ambulatórios, mas isso não é rele­vante. Em segundo lugar porque sua presença talvez provoque embaraço ou estranheza, mesmo entre defensores da psicanálise, evocando a repro­dução padronizada do consultório particular em pleno serviço público. Entretanto, a questão não se encerra por aí. Quais os recursos vigentes e os possíveis para lidar com mais um elemento significativo que atua na instalação da transferência: a pregnância do olhar?

Sobre as instalações dos ambulatórios, ouvi vários relatos de situa­ções prosaicas, algumas realmente cômicas. Reproduzo fragmentos:

Uma entrevistada reclama: "Uma colega me disse que não tinha condições de trabalho nas

instalações do serviço, e alega que com isso dá pra fazer, no máximo uma psicoterapia... Ora. eu conheço o lugar, comparando ao local onde traba­lho, a impressão que tive é que ela atende no Méridien e eu numa favela... c sc cia fizer psicoterapia, já é alguma coisa.

"Pra começar não atendo sempre na mesma sala... tem dias que atendo numa sala da oftalmologia onde o basculante é pintado de preto por feita de cortinas, e ainda tem aquele aparelho de exame de vista... [tornar escuro para ver através de aparelhos o que diz respeito à visão, afirma a cegueira do olhar, o avesso da pulsão]... às vezes atendo numa sala que tem clínico c pediatra. Nessa sala, o clínico, para não ter que levantar na hora do exame, coloca a cadeira ao lado da mesa na mesma posição que a dele, dc modo que ficam quase paralelas, uma mais à frente da outra... assim ele ausculta peito c costas sem sair do lugar... quando entro não interfiro na posição e deixo a pessoa colocar a cadeira como quiser... muitas vezes ela não fica mais no frente-a-frente mesmo sendo deslocada.

"Tem uma moça que dizia que não conseguia falar olhando pra mim. Eu disse: se você quer virar a cadeira, fique à vontade... e foi o que ela fez.

"Já na sala da ginecologia tem aquela fatídica cadeira ginecológica e, além disso, a sala c muito pequena... a cadeira comum fica encostada na parede c não dá ângulo para o frente-a-frente, acaba que a pessoa fica meio dc lado podendo ou não me olhar."

"Eu divido uma sala com a nutricionista, é bem pequena e tem uma balança de bebê e outra comum além de uma maca (...) tinha um paciente

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que nas primeiras vezes não parava de olhar a balança... indaguei mas ele não disse nada. depois parou com isso.

"Na sala do médico é pior ainda, tem armário de remédio e os pacientes olham muito... pelo menos nas primeiras vezes... eu aten­do muitas crianças, elas não requerem divã, então a coisa é bem variada."

"Tenho minha sala... não fico cara a cara... boto a cadeira mais longe, não gosto de ficar muito perto... a pessoa fica do lado da mesa e eu mais afastada (...) às vezes a sala é usada para atendimento de grupo, aí eu sento numa cadeira meio diferente que indica o lugar do terapeuta e a pessoa senta onde quiser... a tendência com o tempo é eles não quererem ficar frente a frente ou muito perto de mim."

"A sala é um consultório médico típico, uma mesa entre duas cadeiras frente-a-frente (...) tem gente que prefere ficar me olhando... outros se incomodam com isso mas não há muito o que fazer (...) as cadeiras são estreitas, a sala mal tem ventilação... no verão às vezes a gente deixa a porta entreaberta, na minha sala dá pra fazer isso porque fica no canto, não c passagem (...) os médicos cansam de atender com a porta aberta... pia eles essa coisa de sigilo não é como pra gente."

"Fiquei com a pior sala porque cheguei no serviço por último. Lá ludo é preto e cinza... tenha dó, assim o doente piora, até eu pioro. Tem sala que só tem uma cadeira que é para o paciente nem sentar, é atendido de pé. Me apossei da sala c cobri as paredes com cartazes, arranjei um mapa da cidade bem colorido, coloquei plantas, arranjei uma mesinha branca para as crianças, levei material de desenho, uma cesta de papel e ficou outra coisa. Transformei um lugar de morte em um lugar de vida. Se não. não consigo trabalhar."

Sem minimizar o fato do desconforto e, muitas vezes, da inexistência de um lugar definido para o psicoterapeuta, há nesses exemplos um ponto comum: o setting é eminentemente instalado para a consulta mé­dica, mesmo havendo salas para todos e não sendo só o médico que atenda. O frente-a-frente caracteriza a conversa, seguida ou não do exa­me, e o mobiliário varia da maca à cadeira ginecológica e aos aparelhos específicos.

É. portanto, a conversa que perpassa todos os atendimentos ambula-toriais — um tipo de fala dialógica que tende a tomar a forma de

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pergunta e resposta objetivas. É importante que a conversa seja mantida c valorizada como um componente básico da clínica médica em geral. Não só com finalidades diagnosticas mas também, e principalmente, como recurso terapêutico. No caso da psicanálise, é justamente essa conversa que deve sc deslocar para dar lugar a uma fala mais 'monoló­gica' cuja contrapartida é a escuta.

Vários entrevistados comentam que é muito difícil para ambos, pa­ciente e terapeuta, suportar o silêncio, o não ter o que dizer, as lacunas na fala, inevitáveis no processo, mantendo o frente-a-frente. Outros, talvez mais estratégicos, observam que no início é importante sustentar a con­versa e paulatinamente substituí-la por uma postura mais silenciosa de ouvinte para poder desaparecer como interlocutor direto. São formas de manejo da demanda para construir um modo de trabalho psicanalítico.

Quanto aos pacientes, a tendência, na maioria das vezes, é desviar o olhar quando as revelações mais íntimas ou secretas adquirem o tom de confissão. Em alguns casos, olhar diretamente o terapeuta se traduz por um pedido dc aprovação ou resposta ao que é falado ou perguntado. Olhar para o chão pode, num primeiro momento, ser manifestação de um estado dc subserviência ou submissão à autoridade do "doutor", mas revela-se adiante como vergonha, encabulamcnto, ficar "sem graça" diante do que sc descortina na própria fala. Se essa vergonha atesta um sentimento de inferioridade social diante da diferença de classe, ou de expectativa de reprovação moral do que é dito, isso não invalida uma outra dimensão, presente no ato de tornar público algo inerente à fantasia.

No jogo de revelar o que deve-se esconder é melhor não olhar para não ser olhado, exatamente porque algo se mostra, se apresenta ao olhar — julgamento ou testemunho — de um outro. Isso não é privilégio ou defeito dos "humildes de condição". Nesse ponto, o divã entra como um atenuante dos excessos produzidos na transferência visando apagar ao máximo a pessoa do analista, em sua inevitável posição de ideal do 'eu', para torná-lo um operador da fala. Mas sem esse instrumento também é possível que a figura do analista se apague: "Lá pelas tantas, o analisando fala como sc eu não estivesse ali e só percebe minha presença por aquilo que surge como interpretação." (Machado, 1995b)

Outros exemplos mencionados foram: olhar para o lado, para cima, em direção ao próprio corpo, ocupar as mãos e t c , casos de alusões ao olhar inibidor do analista como um pedido velado para desfazê-lo, che­gando ao ponto de virar a cadeira.

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Uma entrevistada, em tom de indignação, protestou: "Sc fazemos um trabalho psicanalítico, e eu acredito que sim, por que

não se assume isso de uma vez e se reconhece a necessidade do divã, já que também se tem instrumentos específicos para diferentes práticas clínicas? O divã seria uma marca desse trabalho, onde o analista sai do campo de visão do analisando para permitir um outro endereçamento. Nunca ouvi falar que alguma instituição tenha feito isso."

Obtive alguns exemplos que contrariam esse protesto. Uma entrevis­tada conta como em seu serviço, um hospital universitário, conseguiu, após um bom e paciente empenho, colocar um divã (um sofá com almo­fadas) em sua sala onde atende há cerca de dez anos. Mais recentemente, no mesmo serviço, foi colocado um pequeno sofá em outra sala. Uma outra entrevistada, de outro serviço, tem um sofá e poltronas em sua sala. Ambas afirmam qtie vários pacientes chegam a se deitar, mas não é o predominante. Outros dizem que se "forçarem a barra" podem conseguir um divã ou algo parecido, mas não explicam exatamente porque ainda não o fizeram.

Suponho que isso se deva, grosso modo, à não assunção da identidade de psicanalista por duas razões: por um constrangimento em definir-se como tal perante outros especialistas e por não se querer este tipo de definição como reprodutora do padrão do consultório no serviço público.

A meu ver, o risco maior em definir o locus da psicanálise pelo divã é de fixá-la e até mesmo, reduzi-la ao cenário. Algo como: "vejam, é aqui e só aqui que se faz psicanálise"; conseqüentemente, o resto seria no máximo de inspiração psicanalítica.

Voltamos aos standards dos quais tanto queremos nos livrar. Logo imagino um funcionário indicando a sala do(a) doutor(a) como a sala da psicanálise que só pode ser usada por psicanalista e para onde só devem ser encaminhados os pacientes verdadeiramente psicanalíticos. Entretan­to, esta é só uma suposição em vista da grande tendência à burocratiza­ção em todas as modalidades da clínica no serviço público.

Além disso, se interditar o olhar visa diluir os excessos do imaginário do sujeito sobre a figura do analista, não estaríamos apelando ao imagi­nário social, através do divã como figura da psicanálise, para compor e cristalizar seu cenário? Não estaríamos tomando o cenário pela cena (a outra cena)'? Temos de experimentar seja que estratégia for com essas possibilidades cm mente.

Tomemos mais alguns exemplos:

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Um rapaz negro, forte, com aparência viril, sempre muito polido e respeitoso ao se dirigir à bela moça que o atende, após tê-la escolhido para contai- seu problema, reitera a cada entrevista: "Como vou falar disso para a senhora sc a senhora está sempre me olhando?" Logo no começo conta que tem um problema, um defeito, umas sensações que um homem não pode ter. Já contou para a família, pede ajuda e recorre a diferentes dispositivos como, rezadeira, umbanda, e, ao relatar sua ida a um centro espírita conta o que lhe disseram: "meu problema é que eu tenho uma mulher dc frente." Ao enunciar esta frase para uma 'doutora', ela a destaca, encerrando a sessão.

Após várias entrevistas insistindo que não tem coragem de falar com cia olhando para ele. cia, então, decide virar sua própria cadeira de lado c pede para que ele continue falando. O efeito imediato não é a confissão esperada mas uma maneira diferente de referir-se a si próprio, tanto na entonação quanto no vocabulário, tomando uma direção de monólogo, um pensar alto. O dito referido ao 'diagnóstico' do centro espírita é recontextualizado no problema imediato de ter uma mulher de frente para ele. Ele. sutilmente, havia recusado ser atendido por um homem, e marcou o atendimento para o dia em que poderia ser atendido por ela.

Neste exemplo, a figura do analista não se apaga, não sai da vista, mas o olhar como movimento pulsional se desfaz, sai de cena. O sujeito não c mais olhado. O atendimento é recente e não temos como prever as consequências deste ato, nem tampouco tomá-lo como modelo. Pode ser mais uma solução contingente movida pela premência de um pedido. Pode ser ainda uma resposta sintomática do analista que se vê aprisiona­do nesse jogo dc olhares. Resta-nos acompanhar seus efeitos.

Uma entrevistada relata: "Tem uma moça nordestina, crente, que se diz muito tímida c que não

gosta de ser olhada. No início, ela sussurrava ao falar c eu quase que olhava para escutar melhor (...) ela olhava muito para o chão. Depois ela foi falando c se dando conta que eu estava ali mais para escutar. Conta que seu problema c não conseguir ficar muito tempo numa relação amorosa. Agora, depois de um tempo, está passando por uma situação dramática, pois está sendo excluída do convívio com a Igreja porque passou a viver cm concubinato com um homem casado, cuja mulher havia saído dc casa mas retornou. Ela está arrasada de não poder manter suas atividades normais, mas disse que não quer abrir mão, vai lutar por esse amor (...) já consegue olhar mais pra mim quando fala (...) em outros tempos acho que ela teria saído fora."

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Esle caso pode bem mostrar um caminho inverso: do olhar implacá­vel do superego que tudo vê é preciso se esconder; mas para encarar o desafio de ficar com seu amor ela não tem abrigo possível, é olhada por todos como a mulher "cm pecado". Só lhe resta o olhar do reconheci­mento de sua escolha, que ela parece encontrar em seu apelo à 'psicólo­ga', para não "sair fora".

"Eu não agüento mais vir aqui te ver... eu penso em você o tempo todo... penso que te vejo na rua... pra me livrar dessa paixão, tenho que ir embora."

Com estas palavras, uma mulher bonita, de seus quarenta e poucos anos, encerra seu tratamento com um jovem analista. Havia sido enca­minhada pela ginecologia com queixas de dores antes e depois da mens­truação. Segundo ele:

"Ela já chegou como paciente de análise, se questionava muito, trazia sonhos e foi chegando ao ponto dela se perguntar sobre a relação com o marido, com quem dizia não ter prazer. No começo ela olhava para baixo e. depois, começou a me encarar. Nesse período, a transferência amorosa se intensifica resultando num apaixonamento sem solução. Um dia ela me deixoti uma carta no ambulatório explicando que não podia mais vir, que tinha a impressão de me ver pela rua (...) uma carta muito poética (...) ela escrevia poemas, mas não só para mim (...) só que chegou a um ponto insustentável."

O que leria sido desse amor, antes mesmo de suas manifestações mais eróticas, se fosse levado ao divã como um recurso à interdição do objeto pelo olhar? Sabemos que não foi por falta de divã que Freud se viu enredado na sedução de suas histéricas. Não podemos passar ao largo da questão quando a pregnância do olhar aparece de modo tão literal.

Seja como for, do divã à sala de oftalmologia, ternos que manejar esse elemento a mais na transferência que pode ser tão pregnante quanto irrelevante no decorrer do processo. Estamos livres para inventar a partir dos acontecimentos até onde a burocracia das especialidades e dos ser­viços nos permitirem. No ambulatório, para o divã não há regras.

3.3 Que tempo para tratar?

"O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tem­po respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem."

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116 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

Com esta brincadeira infantil que abusa da tautologia, inicio a discus­são sobre o tempo.

No serviço público, ao contrário do apressado time is money, tudo acontece lentamente. É a burocracia, dizem uns; é a falta de incentivo à produtividade, dizem outros; é a perversão do sistema etc. Mas na clínica tudo parece acontecer muito rápido. E um paciente que surta; muita gente que chega ao mesmo tempo para ser atendida; alguém que aparece fora de hora sem poder esperar. Os atendimentos são feitos na pressa de despachar o maior número possível de pacientes. O lema é aumentar a produtividade. Tem gente que atende o paciente em pé, ou que marca todos os pacientes para o mesmo horário para não ser surpreendido por atrasos, ou, ainda, para acabar mais cedo. Eles que esperem. E as filas de espera são o maior desafio. índice da morosidade e ineficiência dos serviços, as filas são a prova de um tempo perdido.

Uma vez atendidos, a duração das consultas é fixada, em geral, em trinta minutos, pelo menos nos serviços de psiquiatria e saúde mental. Mas com dez minutos já se encerra um atendimento, especialmente se é para fornecer receitas. Já o tempo que o paciente espera até chegar sua vez pode ser bem longo: uma manhã ou tarde inteiras, ou de quinze a quarenta e cinco dias até a próxima consulta. Até logo e passar bem. Se passar mal, só na emergência.

Infelizmente, essas imagens não são caricaturas. Retratam cenas co­tidianas nos ambulatórios. Porém, devo dizer que não são a regra de alguns serviços, nem da maioria dos profissionais com quem tive contato no decorrer da pesquisa. Em alguns lugares, podem até ser a exceção, corno já vimos em vários exemplos que apresentei, havendo uma preo­cupação constante com o bom atendimento por parte dos profissionais de saúde mental. Isto requer tempo. Tempo para atender, escutar, enca­minhar, tratar, discutir casos e até esperar.

Quanto à produtividade, não percamos tempo com isso. Se o que conta são os atendimentos, só nos resta equacionar o número de pacien­tes atendidos com os que estão na espera, e apostar na oferta possível. O recurso aos grupos, em suas diferentes modalidades, pode ser um meio de discriminar as demandas e facilitar a equação atendimento-evasão-permanência. Isso é trabalho em equipe. Não é preciso ser psicanalista para executá-lo. E preciso privilegiar a clínica como acontecimento, como o que emerge e provoca trabalho. Nesse sentido, toda clínica é uma emergência. Esta é a pressa, ou pressão, do tempo que nos concerne.

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Interrogando o ambulatório I 117

A questão que formulo sobre o tempo é especificamente dirigida à clínica psicanalítica.

Quanto tempo se espera que dure uma análise no ambulatório? A única indicação de Freud é: Caminhe... Como tolerá-la?

Qual a freqüência possível, e desejável, para garantir que o que se faz é psicanálise?

Começo pela freqüência. Os standards ainda postulam de três a cinco vezes por semana. Menos que isso, é psicoterapia. Ou, ainda, vamos marcar um tempo, que seja breve, para a psicoterapia. Novamente, a diferença se faz pelo negativo: menos vezes + menos tempo = menos psicanálise. No entanto, observamos uma tendência cada vez maior a aceitar pacientes duas vezes por semana nos consultórios de psicanalis­tas. Estão todos aderindo à psicoterapia? O problema é financeiro? Ou há uma saturação da psicanálise no cotidiano dos analisandos?

"Venha quando puder..." disse uma psicanalista a uma paciente que mora longe e tem dificuldades para chegar ao ambulatório. "As vezes exijo: 'semana que vem, cu quero você aqui.' E, geralmente, eles vêm." Adiante, comenta: "Você já imaginou alguém dizendo isso no consultó­rio'.'"

Curiosamente, nos últimos tempos tenho ouvido a expressão "análise sob demanda" como proposta de alguns psicanalistas a seus analisandos como mais um recurso para enfrentar a resistência produzida na regula­ridade tediosa das sessões fixas. As justificativas recaem sobre os casos dc análises prolongadas como um meio de facilitar a dissolução da transferência e vislumbrar um fim para a análise. Ou, então, sobre os casos em que o sujeito já passou por mais de uma análise e busca algo diferente. Não entro no mérito da questão. Apenas provoco os defensores dos standards até o limite onde os paralelos se encontram. No caso, a resistência.

Sc o analisando resiste à regularidade, seja por que motivo for, o analista tem uma escolha: ceder ou resistir. Mas não façamos disso um standard'. O que está cm questão é o manejo da transferência. E o analista tem que se haver com isso como puder.

Obtive relatos bastante heterogêneos sobre a questão da freqüência. Vamos aos exemplos:

"Lá no serviço temos essa norma de só atender uma vez por semana. Eu. às vezes, dou um jeito porque atendo pacientes graves, mas é exce­ção. A demanda é muito grande, por isso decidimos assim."

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1 1 8 I Vastas confusões e atendimentos imperfeitos

"Há uma tendência no serviço público de só atender uma vez por semana. No começo fui contra isso, mas agora eu vejo que os próprios pacientes não pedem mais do que isso, principalmente quando entram no jogo da análise e se dão conta que não cabe a mim resolver o problema com soluções prontas. Eles têm que trabalhar também."

"Nós optamos pela qualidade em vez da quantidade. Eu cheguei a atender várias pessoas até três vezes por semana. E eles não faltavam mais do que no consultório. É bem verdade que a maioria morava perto, mas nem todos."

"Minha clientela é de pacientes graves. Por isso eu não encharco a minha agenda e sempre encaixo alguém que não estava marcado. Eles já sabem dessa minha disponibilidade e se sentem bem com isso."

"Houve uma época em que eu atendia tanta gente que resolvi não marcar mais as consultas. Eles sabiam dos meus horários e o resto ficava a critério deles. Em alguns casos, eu marcava hora, ou porque a pessoa queria uma garantia de ser atendida, ou porque morava longe, ou tinha problema com horário. Então eu atendia quem chegava primeiro ou quem tinha mais urgência, seja de horário ou de ser atendido."

"Atendíamos em grupos abertos. Os pacientes sabiam do horário fixo dos grupos e faziam sua própria freqüência. Tinha gente que vinha toda semana, de 15 cm 15 dias e, até, mensalmente. Trabalhávamos com quem estava lá."

Os exemplos apresentam urna variedade de possibilidades que depen­dem da organização dos serviços, das propostas de atendimento das equipes, ou de cada profissional, e do modo como trabalham as deman­das. Com exceção do último exemplo, os demais referem-se a atendi­mentos individuais com profissionais que se propunham a fazer um trabalho psicanalítico. Mas isso não diz muita coisa. Apenas indica que a questão da freqüência só se torna um problema se a burocracia dos serviços for muito inflexível.

Vários entrevistados relacionam o problema da freqüência com o fato dc não poderem cobrar. Alegam que os pacientes se comprometem me­nos, que podem faltar sem que isso signifique um custo para eles, podem mesmo estar economizando tempo e dinheiro da passagem. Além do mais. sabem que a instituição permanece funcionando em sua ausência sem prejuízo para os profissionais. Podem dispensar sem serem dispen­sados, podendo retornar a qualquer tempo. Assim, é mais pelas faltas, pela inconstância dos pacientes, que se localizam os impasses.

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Uma psicanalista comenta intrigada: "Tem uns que não têm regulari­dade porque não investem mesmo. Tem outros que não voltam. Mas tem outros que somem e reaparecem sem o menor pejo. Em geral, somem no período dc fim dc ano e no verão. Como o lugar é pequeno, às vezes encontro com alguém na rua que me diz: 'ah, doutora tá tão quente... andar até lá nesse sol...' Mas acabam voltando. Eles voltam quando aparece um outro problema ou um novo sintoma físico. As vezes reto­mam o assunto anterior, mas geralmente pedindo uma resposta, muito semelhante ao modo como procuram os médicos. Até aí, tudo bem, eu entendo que a cultura médica é que predomina. Acontece que, em alguns casos, eles já sabem que comigo é diferente, eu não dou respostas, faço perguntas, ponho pra trabalhar... parece que isso fica marcado dc algum modo, mas não há continuidade. Às vezes, depois de uma ou duas sessões, param de vir porque melhoraram, não sei de que nem porque, depois voltam. E isso que me intriga."

Este relato condensa uma série de questões, sem dúvida, intrigantes. Sc eles percebem alguma diferença em relação à abordagem do médico, por que voltam? Certamente é porque não é com o médico que esperam resolver o problema. Então, que saber demandam do psicólogo para seus problemas c sintomas físicos? Aqui, especulo que uma certa cultura psicológica já sc instalou, mas qual o seu estatuto? Seria o psicólogo (o psicanalista não c sequer nomeado) um híbrido de médico, confessor, conselheiro c juiz? Provavelmente sim. E a prevalência pode variar de acordo com o que sc pede ou se quer saber. A figura do psicólogo parece ser permeável a todas essas atribuições. No consultório não encontramos a mesma variação imaginária dc forma mais sutil e dissimulada? O que os faz "não dar continuidade"? Ou, o que é mais intrigante, o que os faz dai' continuidade a um modo de se apresentar e demandar resposta quan­do, dc algum modo, já perceberam que ali "é diferente"? Em suma, o que os faz voltar? Esta é a freqüência que interessa. Cabe ao analista se valer dela ao máximo para fazer valer sua diferença e ver quem volta.

Uma outra psicanalista argumenta: "Nós recebemos muita gente a toda hora. São encaminhamentos

diversos, mas tem muita demanda espontânea. As vezes me pegam no corredor, minha sala é do lado da ginecologia e sempre vem uma mulher dizendo 'posso dar uma palavrinha com a senhora?' Ou 'preciso alguém para me escutar'. Tenho a impressão que, para quem tiver ouvidos para ouvir, não vai faltai' trabalho. Acho que não devemos facilitar demais, é

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importante que a pessoa encontre obstáculos, para não cair num muro de lamentações que não ata nem desata. Tem que pegar mais pelo desejo.

"Antes cu tinha mais evasão do que agora, acho que é porque fiquei mais exigente, eu escolho mais os casos, e acho que eles também me escolhem. Quando começam a faltar muito, eu cobro. Já que não pode­mos cobrar em dinheiro, vamos cobrar a presença. Não fico acusando, não adianta trabalhar pela via da resistência. Mas se deixar correr solto, a coisa não anda. Antes, eu achava terrível aquele esquema de desligar o paciente se faltar três vezes seguidas sem justificativa. Hoje, eu entendo isso de outra maneira. Fica como um limite, um jeito de marcar algu­ma coisa. Não é castigo, até porque, quando eles querem, eles voltam e são atendidos, mas já é diferente, eu não estou lá esperando indefinida­mente."

A questão de "por que voltam?" se soma à de "como voltam?" Aí podemos ter indícios de como vai o trabalho de elaboração, e de até onde o sujeito pôde caminhar. Curiosamente, uma norma burocrática pode funcionar como um recurso importante no manejo da transferência. Uma punição pode ser ressignificada como um modo de marcar a diferença.

Obtive depoimentos que vão na direção contrária. Vários entrevista­dos relatam casos de pacientes assíduos por um longo período de tempo, de pelo menos dois ou três anos, sem discriminação de patologia, sexo oti faixa etária. Podem ser psicóticos graves, donas-de-casa, adolescen­tes, trabalhadores ou aposentados.

Uma psicanalista se espanta com a assiduidade dos pacientes. "Fico me perguntando o que faz aquelas pessoas irem lá toda semana,

muitas vezes sem faltar, para me falar de seus problemas, de suas vidas, anos a fio."

Neste ponto, desloco a discussão sobre a freqüência para a duração. Quanto tempo para uma análise? A meu ver, este é o maior desafio. E, é bom que se diga. não é privilégio ou defeito do consultório ou do ambu­latório. E uma questão para a psicanálise: interminável ou intermitente? Qual o tempo da elaboração? E, ainda, qual o tempo para a dissolução da transferência como vislumbre de um fim para a análise? Estas são qtiestões para a "bruxa metapsicologia" que evoco no capítulo final deste trabalho. Por hora, destaco duas situações clínicas que evidenciam o tempo com tuna função singular no trabalho analítico.

A primeira é sobre o início de um atendimento onde o tempo entra como desencadeador da fantasia no que diz respeito à duração das ses­sões. O relato é de um psicanalista:

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"Eu atendo uma moça, que no início ficava meio incomodada quando a sessão chegava aos dez minutos e não terminava. Eu tinha a impressão que cia estava acostumada ao padrão dos médicos, e aí insisti em esticar a sessão. Foi todo um trabalho que tive que fazer para marcar a diferença do atendimento psicanalítico. Eu segurava mais tempo, perguntava desse incómodo e cia passou a associar a partir disso. Um dia ela começa a falar dc uma desvalia, e diz: 'acho que as pessoas perdem tempo comi­go' . E daí vem a história dela, de como é tratada pela família, que não prestam muita atenção a ela... Vi que estava no caminho certo."

Nesse primeiro tempo, o tempo é sintomatizado e vai dando lugar à fala na medida em que se interroga sobre ele. O analista, preocupado em oferecer psicanálise, estica o tempo sem saber onde ia chegar. O sujeito, por sua vez, se apresenta como aquele com quem só se pode perder tempo. Daí em diante, o analista já pode operar em direção à fantasia que está cm jogo.

A segunda refere-se mais ao sintoma do analista. Em um serviço de adolescentes, a faixa etária estabelecida é de 12 a 20 anos. Uma psicana­lista, disposta a exercer sua clínica sem fazer concessões ao tempo mar­cado pela idade, sc vè diante de um problema curioso. Ela nos conta:

"Quando entrei no serviço público resolvi experimentar fazer psica­nálise sem concessões para testar mesmo como seria aquela experiência. Sustentei análises de longa duração sem idade determinada. Tive pacien­tes comigo por seis, até oito anos, o que não é uma coisa comum. Tinha pacientes que já estavam com quase 30 anos de idade, e isso começou a criar um certo problema. As enfermeiras faziam um laço comigo mas tinham que colocar a idade no prontuário ou na ficha. Nunca fui aborda­da diretamente porque eu explicava que a psicanálise é um tratamenio que não tem limite de idade, e isso era tolerado. Acontece que o prob' > ma sc deu no sentido propriamente analítico, porque comecei a percet r que esses pacientes ficavam marcados pelo significante 'adolescente'. Percebi que esse negócio de significante funciona, é sério. Na ficha se escrevia a data da consulta e no cabeçalho tinha o nome do serviço. O sujeito eslava preso a isso (...) aí eu comecei a pensar que é preferível que perca isso ao invés de manter o benefício de se tratar com o mesmo analista. Isso acontecia mais comigo do que com os colegas. Reconheci que tinha alguma coisa errada ali, e combinamos que a pessoa ficaria lá até os 20 anos, isso seria colocado desde o início."

Neste caso. o tempo cronológico marca uma identidade, fixa-a como uma alienação justamente ao significante do qual o sujeito tem que se

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desvencilhar. O tempo de elaboração está atrelado a um paradoxo. Mar­car um fim para esse tempo pelo limite de idade pode ser a única maneira de precipitar uma separação, um descolamento do 'ser adolescente' com conseqüências particulares para cada um. E preciso apressar para con­cluir.

Voltando à nossa brincadeira tautológica sobre o tempo, lanço-me ao desafio de responder à questão: na psicanálise, quanto tempo o tempo tem?

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Por uma psicanálise possível

1. Evocando a "bruxa metapsicologia"

A questão de uma psicanálise possível no ambulatório público deve dar lugar à questão fundamental da psicanálise: ofício impossível?

Considerando que nossa função como analistas é a de criar condições de possibilidade para o exercício da clínica psicanalítica, apresento o que considero as condições mínimas para que se identifique como psicanálise determinado modo de trabalho clínico em sua diferença no campo das psicoterapias em geral.

Evoco a "bruxa metapsicologia" em meu auxílio, tal como fez Freud em seu desamparo diante da força indomável das pulsões que decidem sobre o fim de uma análise. A metapsicologia é como a fantasia. Freud escreve isso com a estrutura de um lapso: "Sem a especulação c a teorização — cu quase disse 'fantasia' — metapsicológica não avança­remos nem mais um passo" (1937a, p. 225). Mas sem a fantasia do fundador também não vamos muito longe em psicanálise. E ele que nos lega seu trabalho, sua invenção. Cabe a cada um lê-lo e passar adiante esse legado. Privilegio a leitura de Lacan naquilo que considero pertinen­te para minha proposta.

Como primeira condição, temos o que Freud denominou de realidade psíquica. Proponho um exame desse conceito como ponto de partida. Inicialmente, devo dizer que não se trata das velhas oposições fantasia versus realidade — ainda que o termo fantasia seja sinônimo de realidade psíquica —, ou psíquico interno versus realidade externa, como se fos­sem dois mundos, ou, ainda, subjetivo versus objetivo, como se o primei-

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ro necessariamente induzisse ao erro e à má compreensão dos fatos. Trata-se da única realidade que diz respeito e interessa ao sujeito, a partir da qual ele se vê, pensa, fala, sofre, trabalha; enfim, se põe no mundo e, até mesmo, se desconhece. Nessa realidade se insere uma dimensão de alteridade que indica que a linguagem, mais do que uma aquisição, vem do Outro.*

A realidade psíquica não se reduz ao ego, embora o inclua, do mesmo modo que inclui o sintoma. Sua fonte primária é o inconsciente, e não há que sc conceber nada de profundo ou submerso nessa realidade. Tudo se passa na superfície, na emergência da fala a que temos acesso e à qual, de algum modo, respondemos. E na própria palavra do sujeito que co­meça o trabalho clínico. Ao tratarmos do sofrimento psíquico só pode­mos fazê-lo pelo que aparece dessa realidade em palavras e ações pre­nhes de sentido.

Convém lembrar que isso não é prerrogativa exclusiva da psicanálise. Como se prescreve afinal, de medicação a novas condutas, senão a partir dc uma queixa ou uma fala delirante? A especificidade do trabalho psicanalítico está cm ater-se radicalmente às produções de fala dos su­jeitos como indicações dessa realidade. O pacto analítico é um pacto de fala. A psicanálise é uma clínica da fala. Fazer falar é uma condição da escuta. E é pela escuta que a fala se constitui, remetendo à regra funda­mental: diga o que lhe vier à cabeça...

Falar pode ser terapêutico em si, mas não é aquilo a que necessaria­mente sc visa. Não é só desabafo, ainda que este funcione como uma ab-reação. Falar pode produzir sofrimento, e em geral o faz. Pois na fala algo se revela, aparece e desaparece, não é bem o que deveria ser dito. Mas o que deveria ser dito? Começa uma busca do sujeito sobre o que deve dizer para aquele que o escuta; pensar e falar não se coadunam. É a própria realidade psíquica trabalhando.

Ao produzir esse primeiro efeito de fala, o analista apenas iniciou seu trabalho. E só pode fazê-lo quando o sujeito em questão suporta mini­mamente pôr em suspenso as urgências de seu sofrimento em seu pedido

* Ver O Seminário livro II — O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise onde Lacan sistematiza o Outro como o simbólico por excelência convocado pela letra — La lettre volée — em sua função de significante do qual o sujeito recebe sua determinação maior, e que define o simbólico para além do eu-ima-ginário. Ver também "Le séminaire sur 'La lettre volée'" que, apesar de alterar a cronologia, abre os Écrits dando primazia ao simbólico na década de 1950, para marcar a diferença radical de Lacan com os pós-freudianos.

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de cura ou de uma explicação sobre a causa de seus males. Fazê-lo suportar isso é tarefa preliminar.

O dispositivo psicanalítico que opera no binômio fala-escuta está bem inscrito no conceito de transferência. Aqui entrelaçamos esta pri­meira condição a uma segunda: a clínica psicanalítica consiste em pro­duzir um modo de fala através da transferência. Fala-se para um outro que, num primeiro momento, é aquele que atende. Há aí um deslocamen­to da fala como desabafo, queixa, pedido de alívio, etc. para um plano que podemos chamar de reflexivo ou indagativo. É preciso, em algum momento, querer saber sobre o que se diz. E o que se diz vem carregado de intenções, afetos, contradições que podemos definir como variações da transferência. Isso pode acontecer como que acidentalmente para uns, ou depender mais diretamente da ação do analista. Não há como prever nem como garantir que os que procuram atendimento se envolvam nessa empreitada. Ao analista cabe manter a oferta a seu modo, sem coação, é óbvio, mas com clareza de seu propósito e, sabendo esperar, dar tempo ao sujeito.

Para o sujeito, de início, aquele que o atende deve deter o poder-saber da cura. Mas se esta não deve ser a promessa do analista, como fazer para não cair no descrédito? E preciso ir além da acolhida para manter a aposta em firmar o pacto. Alguma coisa que o analista diz ou faz: um comentário, uma indagação e mesmo um convite explícito a pensar sobre o que é dito deve atingir o sujeito. Algo em que se reconheça ou até se estranhe mas que, de algum modo, lhe seja familiar, diga algo a seu respeito, que aponte para um deciframento, transformando sua queixa cm questão. Aí está uma chance, e apenas isto, da transferência deixar de ser uma expectativa imediata de cura para se transformar na transferência analítica. Cabe ao sujeito entrar no jogo, apostar em saber um pouco mais daquilo que o aflige para tomar nas mãos uma parcela de seu destino que, é preciso que se diga, depende de um campo variável de possibilidades não previstas.

A transferência é o movimento do sujeito que apresenta ao analista algo de sua realidade através da fala. A interpretação é um recurso do analista. O que, como e quando interpretar são questões correntes entre analistas. Porém, o que se impõe aqui como uma terceira condição é uma determinada concepção do tempo que é a mola-mestra da interpretação: Nachträglichkeit — a posteriori ou posterioridade, que também pode­mos chamar de 'só depois' ..Uma palavra ou ação do analista só tem valor de interpretação, como efeito, num tempo posterior.

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Esta concepção de tempo está presente na própria causação psíquica indicando que o tempo para a psicanálise não é linear ou evolutivo. Não se trata exatamente da ação do passado sobre o presente, ou de um tempo progressivo visando à regressão. Não é túnel do tempo, nem volta à infância. Nos termos de Freud, é uma reorganização, uma reinserção dos traços de memória cujo tempo não é previsível nem controlável. Assim funcionam a realidade psíquica e o trabalho psicanalítico sobre ela. Ao invés de regressão, temos a retroação de um tempo atual sobre o anterior, seja no trauma, na constituição da fantasia, no sintoma ou na cena analítica. E sobre os efeitos de nossos atos e falas, e também dos atos e falas dos sujeitos, que podemos trabalhar. Não devemos tentar prever ou prevenir os acontecimentos. Nesse sentido, psicanálise e prevenção não combinam.

O trabalho de elaboração também se dá no 'só depois' das sessões, ao longo do percurso analítico que, por sucessivos deslocamentos, faz variar a repetição e a posição do sujeito em sua realidade psíquica. Portanto, um exame do tempo que concerne à psicanálise é central para nosso propósito.

As condições mínimas para caracterizar a especificidade da clínica psicanalítica sc resumem assim: trata-se de uma clínica que diz respeito à realidade psíquica c, para isso, provoca um modo peculiar de fala que se dá a partir da transferência, numa relação também peculiar com o tempo, visando remanejar essa realidade por sucessivos deslocamentos. Isso talvez não diga muita coisa. Talvez soe tautológico.

Para melhor explicitar essa especificidade, desenvolvo cada termo dessas condições, sendo que um remete ao outro. Por exemplo, a reali­dade psíquica remete à repetição, que remete à resistência, que remete à transferência, e assim por diante, tecendo a rede conceituai da teoria psicanalítica. Portanto, esses termos serão recorrentes no texto que se segue. E, last but not least, há a última condição, postulada por Lacan, que realiza as demais como operadores da clínica, a saber: o desejo do analista.

1.1 Sobre a realidade psíquica

Toda a controvérsia em torno desta expressão consiste em atribuir-lhe um estatuto particular que opõe seus dois termos um ao outro. Trata-se de realidade, sem dúvida, mas sua qualidade é psíquica. Logo, não é tão real assim. O psíquico, como o psicológico na linguagem corrente, tem

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um quê de ilusão, imaginação, falsa impressão, fantasia, aquém da rea­lidade propriamente dita. E Freud, até certo ponto, sustentava essa opo­sição. Ao longo de sua obra, recorre a várias oposições que tanto funda­mentam como derivam da noção de realidade psíquica: inconsciente versus consciência; processo psíquico primário versus secundário; prin­cípio do prazer versus princípio de realidade, para citar as principais.

No entanto, a cada momento da construção destes conceitos, Freud é levado a tratá-los não como instâncias ou realidades opostas e indepen­dentes cm sua própria constituição, mas como realidades que derivam uma da outra, se interpenetram e, mesmo, se atravessam.

Logo em 1900, no famoso capítulo VII da Interpretação dos sonhos, Freud postula que "o inconsciente é a verdadeira realidade psíquica" e já o define: "em sua natureza interior é tão desconhecido para nós quanto a realidade do mundo externo, e se apresenta de modo tão incompleto pelos dados da consciência quanto o mundo externo pelas comunicações dos nosso órgãos dos sentidos." (p. 613, grifado no original)*

Sua natureza guarda uma característica nada desprezível que a apro­xima de uma outra natureza, ou realidade, a que Freud nomeia ora como material ou factual, ora como externa, como no texto acima. Paradoxal­mente, dentro ou fora, ambas são exteriores quanto à nossa capacidade de apreensão, no sentido mesmo da percepção, que só pode se dar parcialmente.

O aparelho psíquico é postulado como um aparelho que sonha. No sonho, a partir do apagamento do pólo perceptivo, ocorre um trabalho sobre os traços de memória em que fragmentos são investidos, desloca­dos e condensados, e só depois recuperados pela percepção. Na vigília, a percepção é de coisas vistas e escutadas. Em ambos os casos, a percep­ção se dá de modo parcial, não totalizante. Mas não é só pela via da percepção que essas realidades se aproximam. O mesmo acontece pela via do pensamento.

Em seu minucioso estudo sobre o que ardilosamente chamou de Psicopatologia da vida cotidiana (1901), Freud discute diferentes tipos dc esquecimento, de troca de nomes ou palavras, de erros de tradução de palavras estrangeiras, erros de leitura ou escrita, memórias infantis etc.

Todas as citações de Freud são extraídas da Standard Edition, a edição inglesa de sua obra, traduzida por James Strachey. Optei por traduzi-las para o português sem referência à edição brasileira. Portanto, a tradução é de total responsabili­dade minha.

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como exemplos privilegiados do atravessamento de um modo de pensar (processo primário) sobre outro (processo secundário). A "verdadeira realidade psíquica", primária, inconsciente, emerge numa outra realida­de também psíquica, porém secundária — cujo modo de pensamento obedece a determinada lógica espaço-temporal dotada de racionalidade, supostamente mais próxima da realidade factual — e aponta um novo sentido para o que foi falado ou escrito. Agora, é sob o prisma do pensamento que as realidades se aproximam. O pensamento 'realista' é atravessado pelo pensamento 'desejante'.

Quem aponta este fato? Um representante da realidade externa, fac­tual? Um detentor da verdade sobre a verdadeira realidade psíquica ao mesmo tempo interna e externa, logo, familiar e estranha? Sem dúvida, é alguém que interpreta. E, nesse momento, o intérprete é Freud, o inventor da psicanálise.

Supondo o desamparo e a confusão de seus seguidores, Freud dá em alguns de seus trabalhos indicações sobre como lidar com a "verdadeira realidade" revelada pela psicanálise em seu valor de verdade, apesar do aspecto de ilusão que o leigo lhe confere.

Em "Luto c melancolia" (1917), ao comentar a enxurrada de auto-acusações que faz o melancólico, recomenda:

"Seria igualmente infrutífero de um ponto de vista científico e terapêu­tico contradizer um paciente que traz essas acusações contra o ego. Ele certamente deve estar correto de algum modo ao descrever algo que é o que lhe parece ser. De fato, devemos confirmar algumas de suas afirma­ções sem reservas (...) Ele está dando uma descrição correta de sua situa­ção psicológica. (...) apenas nos perguntamos por que um homem tem que adoecer antes de ter acesso a uma verdade desse tipo." (p. 246-7).

Ainda em 1917, Freud profere suas Conferências introdutórias sobre psicanálise na Universidade de Viena para uma audiência de médicos e leigos. A repercussão de sua publicação é digna de nota.*

Recolho uma passagem da Conferência XXIII — "Os caminhos para a formação dos sintomas" — em que reafirma sua posição.

James Strachey comenta em nota na apresentação das Conferências que sua publicação teve a maior circulação de todos os trabalhos de Freud com exceção de Psicopatologia da vida cotidiana. Enquanto Freud era vivo, foram feitas traduções para as mais variadas línguas desde as mais freqüentes como francês, italiano, espanhol, c português, até o japonês, árabe, chinês, passando pelo holandês, russo, norueguês, sueco, tcheco, polonês, húngaro, servo-croata e hebraico.

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"Somos tentados a nos sentir ofendidos pelo fato de o paciente ter tomado nosso tempo com histórias inventadas. A realidade nos parece ser um mundo separado da invenção, e lhe atribuímos um valor bem diferente. Além do mais, o paciente, também, vê as coisas sob este prisma em seu pensamento normal. Quando ele traz o material que conduz, por trás de seus sintomas, às situações desejantes moldadas sobre suas experiências infantis, para começar, ficamos em dúvida se estamos lidando com realidade ou fantasia. Depois, somos capazes, a partir de certas indicações, de chegar a uma decisão e estamos diante da tarefa de fazer o paciente saber disso. Isto, entretanto, invariavelmente gera dificuldades. Se começamos lhe dizendo diretamente que ele agora está envolvido em revelar as fantasias com as quais escondeu a história de sua infância (assim como toda nação esconde sua pré-história esque­cida construindo lendas), observamos que seu interesse em continuar o assunto diminui de repente de modo indesejável. Ele também quer expe­rimentar realidades e despreza ludo o que é meramente 'imaginário'. Se, no entanto, o deixamos até que seu trabalho termine, acreditando que estamos ocupados em investigar eventos reais de sua infância, corremos o risco de ele mais tarde nos acusar de estarmos errados e rir de nós por nossa aparente credulidade. Muito tempo se passará até que possa aceitar nossa proposta de que devemos igualar fantasia e realidade, e não se importe se as experiências da infância sob exame são uma ou outra. Esta é claramente a única atitude a adotar em relação a essas produções psíquicas. Elas também possuem uma realidade desse tipo. Permanece um fato que o paciente criou essas fantasias para si, e esse fato tem pouco menos importância para sua neurose do que se ele tivesse realmente experimentado o que as fantasias contêm. As fantasias possuem realida­de psíquica em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que no mundo da neurose é a realidade psíquica que é decisiva!' (p. 368, grifado no original).

Esta longa passagem, ao resumir a confusão de realidades em jogo, tanto para o analista quanto para o analisando, propõe com clareza "igualar fantasia e realidade" como o único meio de levar adiante uma análise. Para nosso propósito isso bastaria. Se, porventura, o leitor se detém sobre o trecho final, permanece a questão: as fantasias se encon­tram no âmbito da realidade psíquica "em contraste com a realidade material" e fazem parte do "mundo da neurose". Logo, se queremos acabar com a neurose, temos o dever de levar o analisando ao encontro da realidade material como garantia de que nosso dever foi cumprido. Voltamos à oposição problemática.

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Essa leitura, sem dúvida, foi feita por muitos sucessores de Freud cuja ambição residia em definir esta outra realidade fora da neurose e, mais radicalmente, da psicose. Da fantasmagoria kleiniana ao realismo da psicologia do ego, o analista, por ser analisado, deveria saber bem a diferença entre as realidades em jogo.

Nada disso é desprezível como possibilidade de nos guiar para, senão uma solução, pelo menos uma indicação de por onde devemos ir para trabalhar com a realidade que concerne à psicanálise.

Vejamos: se entendemos, com Freud, que o inconsciente é a verda­deira realidade psíquica, inatingível em sua totalidade do mesmo modo que a dita realidade externa, deduzimos que uma análise não abarcará jamais o inconsciente. Nem lançará o sujeito à realidade material de modo irreversível. O inconsciente não é patológico. O modo de lidar com sua realidade é que pode ser patogênico. Tudo o que se pode fazer é remanejar sua incidência a ponto de transformar seus efeitos que causam sofrimento em algo manejável pelo próprio sujeito.

A solução, dita normal ou saudável, que Freud apresenta em seu texto de 1925 "Perda da realidade na neurose e na psicose", em sua preocupa­ção sobre o que fazer dessa realidade, combina certas características de ambas as patologias: recusar a realidade parcialmente, como na neurose, e alterá-la, como na psicose, mas na ação aloplástica por oposição à autoplástica (p. 185). O neurótico perde a realidade no esquecimento, não quer saber; e o psicótico se perde no que não pode ser esquecido, sabe sem parar, mas sua reinvenção da realidade não parece ser partilhá-vel.

Alterar a realidade pela ação é bem o modo pelo qual se faz cultura, sociedade, política, relações de todo tipo.

Para Lacan, o problema se resolve em sua formulação dos três regis­tros — imaginário, simbólico e real. A realidade psíquica, a realidade propriamente dita, tem estrutura de ficção. O campo da realidade se dá pelo contorno simbólico (registro dos significantes — campo do Outro) do imaginário (campo do eu) recobrindo o real em sua dimensão de ex-istência, de exterioridade, no duplo sentido apontado por Freud quan­to ao id (campo do gozo) e ao 'mundo externo' (campo dos acontecimen­tos).* Se o analista, por ser analisado, sabe um pouco mais sobre isso, é

Esta definição de realidade encompassando os três registros: imaginário, simbó­lico e real, é bem ilustrada no conhecido 'esquema R' (R de realidade) apresen­tado por Lacan em seu texto "D'une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose", (1955-6, p. 553). Este esquema situa a realidade como

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justamente por ter-se havido com o real podendo suportar sua ex-istên-cia. Não há como saber tudo ou dizer tudo até o fim. A verdade é não toda, ela toca o real.

Voltemos a Freud. Em seus estudos sobre cultura — Totem e tabu (1912) — e religião

— Moisés e o monoteísmo (1939) —, Freud faz referência à realidade psíquica da fantasia movida por desejos inconscientes como fonte primá­ria da cultura, da verdade histórica que sustenta a tradição e da religião monoteísta. Sua analogia entre o primitivo, a criança e o neurótico e, mesmo, o psicótico — que deve ser entendida fora de qualquer conota­ção evolucionista e psicologista ainda presentes em suas formulações — nos fornece indicações clínicas preciosas.

Destaco especificamente dois aspectos: a relação do pensamento com a ação e a relação do pensamento com a verdade.

O pensamento deve ser tomado no sentido da "verdadeira realidade psíquica" que Freud atribui ao inconsciente como processo psíquico primário que se desdobra no processo secundário. A distinção feita por Freud entre representações de coisa e de palavra pode ser entendida como diferentes modos de arranjo de um léxico com uma sintaxe. Neste ponto, recorro à leitura de Lacan sobre o inconsciente freudiano que abandona a noção de representação por relação ao referente e postula a metáfora e a metonímia como as leis que regem esse arranjo, remetendo um significante a outro por substituição e deslocamento. A distinção entre primário e secundário adquire um outro estatuto. Quanto à repre­sentação de coisa, que se dá tipicamente na psicose, o significante coisi-ficado não remete a outro, estancando a possibilidade de significação, ou, então, desliza sem cessar. Em ambos os casos, perde-se a dimensão subjetivada da palavra. Quanto à representação de palavra, Lacan a resu­me em sua fórmula: o significante representa o sujeito para outro signi­ficante, na qualidade de seu representante, fazendo funcionar o discurso.-

Sobre a relação do pensamento com a ação

Ao final de Totem e tabu, Freud apresenta o neurótico como inibido em sua ação, o pensamento substituindo a ação; e o primitivo, como desini-

equivalente à fantasia no registro do imaginário circundado pelas marcações significantes do simbólico. Posteriormente, a partir da topologia que desenvolve nos anos 60, Lacan vai conceber a fantasia referida aos três registros.

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bido, a ação substituindo o pensamento. Sua conclusão lógica, para a qual toma uma passagem do Fausto de Goethe, é a de que "no princípio era a ação". No princípio da 'história da humanidade', assim como da 'história' do neurótico em sua infância, cria-se a realidade.

Deixemos o chamado primitivo de lado e tratemos do neurótico — e, mesmo, do psicótico. Afinal, do que padecem senão de reminiscências* compulsivamente fadadas à repetição que constituem, além de seus sin­tomas ou fenômenos delirantes, seu próprio caráter, seu modo de vida, sua hesitação ou rompante, numa ação marcada por um maior ou menor fracasso?

Uma psicanálise deve ser transformadora no sentido inverso a este. Caminhamos do pensamento à ação. Deveríamos retomar o caminho de nossos ancestrais e aprender com eles a lição — assim como devemos aprender com as crianças — de colocar a ação no lugar do pensamento? E por que não? Basta não sermos ingênuos a ponto de considerar essa via como a da regressão. Pois foi bem por esta que se caminhou para desqualificar e, conseqüentemente, tentar dominar outras culturas e mes­mo infantilizar, senão ridicularizar, esses seres complexos que são as crianças. Entretanto, o sentido inverso que proponho não é o simétrico. E antes como subversão, que esta inversão de sentido deve se dar.

Para substituir o pensamento pela ação é preciso recorrer a um outro modo dc trabalho. Este não se aprisiona inteiramente à repetição, ainda que dela derive, nem se reduz ao princípio de realidade como pensamen­to lógico-dedutivo, padrão do adulto civilizado, realista etc.

Recorro ao que Freud considera o trabalho próprio à psicanálise: Durcharbeiten ou Durcharbeitung, — em inglês, working-through; em francês, perlaboration. A tradução brasileira estabeleceu o termo 'elabo­ração' que talvez não traduza propriamente seu sentido crucial. Hoje se adota uma tradução do francês, perlaboração. Prefiro uma tradução a partir do inglês, por ser a mais próxima do termo original: trabalho-atra-vés [da análise], ou, simplesmente, trabalho analítico.

Estamos acostumados à idéia de que só o neurótico sofre de reminiscências. No entanto, há uma passagem curiosa ao final de "Construções em análise" que diz: "Assim como nossa construção só é eficaz porque recupera um fragmento da experiência perdida, o delírio deve seu poder de convencer ao elemento da verdade histórica que insere no lugar da realidade rejeitada. Desse modo, uma proposição que originalmente defendi apenas sobre a histeria também se aplica­ria aos delírios — a saber, que aqueles que estão sujeitos a eles sofrem de suas próprias reminiscências" (p. 268). Ver nota n° 23 adiante.

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Sobre o verbo Durcharbeiten, há uma curiosa definição no dicioná­rio*: como verbo intransitivo quer dizer 'trabalhar sem fazer intervalo'; como verbo transitivo, 'passar revista', 'examinar', 'estudar'. O prefixo durch refere-se a 'através', 'por meio de' , 'de lado a lado' ou 'de um lado a outro', como a travessia de um lugar ou, ainda, 'durante', como um período de tempo.

A elaboração deve ser entendida nas duas acepções. Como verbo intransitivo, adquire a característica de um trabalho incessante, e é assim que Freud concebe o trabalho do inconsciente: sem parar, sem descanso — o sonho bem o comprova. Paradoxalmente, elaborar é análogo a repetir. Como verbo transitivo, adquire a característica de um exame, estudo ou reflexão sobre algo, seja sobre as próprias produções do ana­lisando ou as intervenções do analista. E ainda tem a indicação do caminho e do tempo a ser percorrido: uma travessia no pensamento e na ação 'de um lado a outro' e um tempo que 'dura' para o sujeito movi­mentar-se, trabalhar até o fim.

Deste trabalho, entretanto, só temos indícios, tanto pelas palavras quanto pelas ações do sujeito. É preciso um tempo para que ele seja operativo. E mais, é o analista quem decide sobre a diferença entre repelir e elaborar, retificando ou ratificando as palavras e/ou ações do sujeito. Daí podemos entender a preocupação dos pós-freudianos sobre a realidade que concerne ao analista indicar.

Sobre a relação do pensamento com a verdade

Se insistimos em opor a realidade psíquica à material ou factual, temos duas verdades. Qual a mais verdadeira? Em Moisés e o monoteísmo, Freud fala da verdade histórica como diferente da verdade material, mas ao mesmo tempo se mostra cético quanto a atingirmos a segunda. A verdade histórica diz respeito ao retorno do recalcado ou rejeitado como a verdade em jogo que justifica a crença. O que é externo a tudo isso são os fatos. A verdade material fica perdida no esquecimento, transformada pelo desejo humano em ficção, lenda, ou delírio.

Reproduzo um trecho em que Freud aproxima o modo de produção de verdade na análise do neurótico ao dos defensores do monoteísmo e ao do psicótico, mesclando as produções patológicas às culturais e reli­giosas:

Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora Globo.

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* Lacan faz uma observação instigante sobre a polêmica tese freudiana do mono­teísmo como o retorno do recalcado articulado ao parricidio fundador — Totem e tabu — que Freud retoma em Moisés e o monoteísmo. Em suas palavras: "... a verdadeira fórmula do ateísmo não é 'Deus está morto' — mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai — a verdadeira fórmula do ateísmo é que 'Deus é inconsciente." — Cf. O Seminário, livro II — Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 60.

** A aproximação entre neurose e psicose presente em Freud é hoje bastante polê­mica depois da formulação estrutural de Lacan que recortou os termos Verdran-gung, Verwerfimg e Verleugnung como os mecanismos fundamentais da neuro­se, psicose e perversão, respectivamente. Freud, no entanto, alternava os dois últimos termos ao referir-se à psicose. O termo 'rejeitado' corresponde ao Ver-werfung que Lacan traduziu por forclusion. Em vários trechos de sua obra, dos primeiros estudos sobre as neuropsicoses de defesa até um de seus últimos trabalhos, "Construções em análise", de 1937, Freud aproxima certos mecanis­mos ou fenômenos do funcionamento psíquico de cada uma das patologias. Opto por manter essas aproximações para compreendê-las sob a rubrica de realidade psíquica preservando suas diferenças até onde trazem conseqüências significad-

"Aprendemos a partir da psicanálise de indivíduos que suas primeiras impressões, recebidas num tempo em que a criança mal era capaz de falar, produzem num momento ou outro efeitos de caráter compulsivo sem que sejam conscientemente lembradas. Acreditamos que temos o direito de fazer a mesma afirmação sobre as primeiras experiências do conjunto da humanidade. Um desses efeitos seria a emergência da idéia de um único grande deus — uma idéia que deve ser reconhecida como uma memória completamente justificada, embora, é verdade, tenha sido distorcida. Uma idéia como essa tem um caráter compulsivo: tem-se que acreditar. O ponto até o qual é distorcida, pode ser descrito como um delírio; na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade. Delírios psiquiátricos, também, contêm um pequeno frag­mento de verdade e a convicção do paciente se estende desta verdade até seu invólucro delirante" (p. 129-30 grifos no original)

Deixo de lado a discussão da filogênese, e até onde ela determina a ontogênese. exatamente porque não se trata de estabelecer a gênese da verdade. Assim como fica à parte a polêmica oposição entre monoteísmo e ateísmo como correlata da oposição entre infantil e adulto.* A crença que me interessa refere-se ao valor que Freud atribui à verdade. Ela tem um caráter compulsivo e é assim que se afirma até seu extremo no delírio. A realidade psíquica, portanto, insiste na repetição como o que retorna do recalcado, ou rejeitado,** para fazer valer sua verdade.

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O que se impõe na compulsão a repetir? Pela vertente do desejo, é a busca do objeto perdido, busca de satisfação. Pela vertente da pulsão de morte, é o cessar a busca, morte à libido, gozo final. Esse é o maior conflito em questão. E o superego vem se instalar no cerne desse confli­to. Instância crítica, imperativo categórico que impõe o gozo final para fazer cessar o desejo, torturando o ego em sua insuficiência.

Voltemos à questão da verdade. O que Freud nos indicou na Confe­rência XXIII, citada anteriormente, é que a verdade está no dizer do analisando sobre si. É aí que fantasia e realidade se encontram.

Chegamos ao ponto de confluência em que pensamento e verdade desaguam na palavra. Não temos qualquer acesso aos pensamentos se­não pela palavra. Psicanálise não é telepatia, e pensar não é anterior, nem uma entidade autônoma distinta da palavra. A palavra não representa o pensamento. Se há pensamento inconsciente é porque testemunhamos e, mesmo, identificamos na fala incidências de todo tipo que Freud deta­lhadamente apresentou como lapsos em Psicopatologia da vida cotidia­na. Aqui se explicita a regra fundamental da psicanálise para fazer traba­lhar a realidade psíquica: diga o que lhe vier à cabeça.

Sobre a regra fundamental

A regra é fundamental para provocar uma certa liberdade de fala, que ficou consagrada como associação livre, como método de acesso às produções do inconsciente. Há dois reparos a fazer quanto ao uso do termo 'associação livre'.

O primeiro é mais óbvio, pois na experiência clínica já enfrentamos o problema: como o sujeito associa livremente se é capaz de esconder, disfarçar, mentir, calar, sempre em nome de não revelar alguma coisa? E, ainda, como ser livre se a própria barreira do recalque se encarrega de aprisionar as palavras? Começamos nosso trabalho sob este paradoxo.

O segundo é mais sutil e depende do que se entende por associação. Com freqüência, ouço de colegas ou supervisionandos a queixa de que

vas para o manejo do tratamento. É importante ressaltar que já existe uma extensa produção da literatura psicanalítica sobre a especificidade da estrutura e da clínica da psicose, inclusive de autores brasileiros. Remeto o leitor aos traba­lhos de dois psicanalistas brasileiros, com formação em psiquiatria, que podem ser úteis para uma primeira abordagem do tema: Teoria e clínica da psicose de Antonio Quinet, c Psicose: Um estudo lacaniano de Neusa Santos Souza.

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"o paciente não associa" ou "ele muda de assunto... não liga uma coisa à outra... as idéias são fragmentadas". Parece que há uma confusão entre os termos 'associar' e 'estabelecer nexos lógicos ou causais'. Nada mais contrário à regra fundamental. Ela se instaura mais para 'dissociar' a fala que busca causas coerentes, bastante comum no pensamento do analisan­do "que também quer experimentar realidades" como que dotadas de uma racionalidade.

Daí surge outra confusão entre 'associar' e 'elaborar'. Se o discurso adquire uma coerência no processo associativo podemos estar diante de um trabalho de elaboração. Pode, ao contrário, ser indício do bom fun­cionamento do recalque a favor de uma idealização do tratamento, ou da cura, ou ainda das expectativas do analista. Essa idealização está presente no início do estabelecimento da transferência. Pode ser também um momento da elaboração em que o sujeito quer concluir alguma coisa sobre si e sua condição. Não nos cabe impedir ou exigir que isto aconte­ça. Mas somos chamados a discernir e, mesmo, a decidir sobre isso.

A elaboração é um processo, uma exigência de trabalho que o sujeito se impõe 'através' da análise, da presença do analista que o faz trabalhar. Mas isso não acontece necessariamente durante as sessões nem na se­qüência de tempo esperada. Não ouvimos o que queremos. Só temos acesso à elaboração de modo fragmentário e sempre incompleto. É im­portante marcar que o modo de fala que provocamos é definido pelo que Freud chama de Einfall.*' No dicionário**: idéia repentina; invasão;

* Na tradução inglesa, J. Strachey, na parte III do "Projeto para uma psicologia científica", destaca em nota o aparecimento do termo Einfall no texto, que traduz como 'intrusão', e observa que sua acepção corrente pode ser "uma idéia que ocorre a alguém", lembrando que às vezes pode ser entendida como 'asso­ciação', (p. 373). Na mesma nota, remete a uma outra que escreve na Conferên­cia III — "Parapraxias", das Conferências introdutórias de 1916-17, que repro­duzo em parte: Strachey, ao comentar a incidência freqüente do termo nesta conferência, admite que não há um equivalente satisfatório em inglês para Ein­fall. Ele próprio discorda do emprego de 'associação', uma vez que é "ambíguo e questionável (...) se uma pessoa está pensando em algo e dizemos que ela tem um Einfall, tudo o que implica é que algo mais ocorreu em sua mente. Mas se dizemos que ela tem uma 'associação', parece implicar que esse algo mais que lhe ocorreu está, de algum modo, conectado ao que estava sendo pensado antes" (p. 47-8).

** Cf. Dicionário Alemão-Português de Leonardo Tochtrop e Herbert Caro, editora Globo. Um fato curioso é que na 1° edição de 1943, o significado de "idéia repentina" é o primeiro indicado. Já na edição de 1989, ele aparece por último.

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queda. Isto é, palavras, frases, fragmentos de situações ou cenas, sonhos ou lembranças, que invadem repentinamente o discurso caindo sobre a coerência anterior. O sentido que se dá a isso depende do analista. Aí está uma primeira parte de seu trabalho: uma marcação do inconsciente.

Não se deve esperar, portanto, que o inconsciente aflore. E o analista que o designa como tal. E com que finalidade? Certamente não de inibir ou envergonhar o sujeito por seu 'erro' ou 'incoerência'. Essa designação é uma tarefa delicada, que pode resultar no aumento da resistência ao trabalho analítico.

Se entendemos que ao analista cabe constituir uma fala associativa para deixar o caminho mais livre para a idéia repentina, a contrapartida é seu silêncio que constitui a escuta. Algo a ser conquistado na conversa, na interlocução, e que não deve soar como a voz inibidora do superego. Mas silêncio não é mutismo, é uma forma peculiar de omissão que não exime o analista da responsabilidade de falar e calar como modos de sua ação.

Em suma, o conceito de realidade psíquica subsume as principais indicações metapsicológicas de Freud. No campo do sujeito temos os processos primário e secundário onde o primeiro tem primazia sobre o segundo na tópica do inconsciente. O desejo é a mola mestra do tecido da fantasia inconsciente e se constitui a partir de um hiato entre o que o sujeito quer e o que é levado a buscar na trilha de significantes que constituem sua fala. A compulsão à repetição, que faz falar a verdade, articula o campo pulsional desde a fixação da libido até a insistência da pulsão de morte como limite da palavra e do desejo.

No campo propriamente analítico, temos a resistência em suas dife­rentes modalidades que, em última instância, se articula à repetição. E, como solução, há a elaboração que deve levar o sujeito a uma nova ação sobre a realidade.

Nesse imbricamento de conceitos, desenvolvi os que caracterizam a realidade psíquica em relação ao trabalho analítico, e retomo alguns, em particular a repetição, na exposição sobre transferência. Vamos adiante.

1.2 Sobre a transferência

Na transferência, começo pelo amor. Da paixão de Anna O. — que fez Breuer recuar —, ao desprezo ressentido de Dora — que fez Freud avançar —, o fenômeno do amor de transferência é "um dos fundamen­tos da teoria psicanalítica". É Freud quem o diz em seu texto-chave

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"Observações sobre o amor de transferência" (1915, p. 160). Este foi seu último texto da série que ficou conhecida como 'textos sobre a técnica', e, como revelou em carta a Abraham, foi "o melhor e mais útil de toda a série", e acrescenta que estava "preparado para vê-lo provocar a mais forte reprovação" (Gay, 1988, p. 301, tradução minha). Portanto, deve ser lido com atenção.

Logo no começo, Freud previne os iniciantes na psicanálise, muito preocupados com suas dificuldades em interpretar as associações dos pacientes — sem saber o que, quando, e como dizer —, que essas dificuldades logo se tornarão irrisórias diante do problema maior que está por vir: o manejo da transferência. Entre as várias situações que surgem, Freud escolhe uma, bem definida: a paciente que se apaixona pelo médico. Escolhe o que diz respeito à sua própria dificuldade, mas também dirige-se aos analistas homens numa época em que praticamente não havia analistas mulheres. Para o leigo, "as coisas que dizem respeito ao amor são incomensuráveis em relação a qualquer outra coisa" (1915, p. 160). Para o psicanalista, o que deve mudar é sua atitude diante do amor que irrompe como realidade no 'faz-de-conta da cena analítica', como se um grito de 'fogo!' irrompesse durante uma representação teatral (p. 162). A obediência dócil às solicitações do analista dá lugar a uma revolta obstinada, a um apelo incessante, tudo o mais não importa. E a ação ruidosa da resistência, presente até no próprio silêncio. Assus­tador! Freud não poupa o iniciante assustado, ou o médico experiente e vaidoso. O amor de transferência é provocado pela própria situação analítica. Esta seria, em última instância, a única diferença entre o amor patológico e o amor 'na vida real'. O paradigma do amor de uma mulher por seu analista se desloca, ao longo do texto, para o amor como para­digma. Toda situação amorosa, todo enamoramento, teria um quê de patológico, um pathos que toma o sujeito e rompe o equilíbrio com seu excesso, fazendo-o padecer. "Esse afastamento da norma constitui preci­samente o que é essencial ao estado amoroso. (...) O desejo do paciente não faz diferença; apenas lança toda a responsabilidade sobre o próprio analista" (p. 169). O que fazer?

Freud descreve as soluções correntes desde as mais enganosas, plenas de ambigüidades e subterfúgios, até as mais austeras que condenam esses sentimentos inadequados, e vaticina: "O caminho que o analista deve seguir não é nenhum desses; é um para o qual não existe modelo na vida real" (p. 166). Então, a responsabilidade recai não sobre a pessoa do analista, mas sobre sua própria função. O que fez o analista para provocar

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esse 'incêndio"? Sua tarefa era simplesmente enunciar a regra fundamen­tal para fazer trabalhar a realidade psíquica através da fala. Isso já basta. Numa análise, fazer falar é provocar e evocar os traços ou marcas da vida amorosa, das relações de objeto; é evocar o objeto perdido, busca inces­sante, motor do desejo. A fala é carregada de afeto, atravessa o tempo, cria lembranças e lança ao futuro um suposto passado. Assim é a reali­dade psíquica. Como pode o analista evocar um espírito das profundezas com sua magia e mandá-lo embora sem fazer-lhe sequer uma só pergun­ta? Para o jovem analista com pouca experiência amorosa, ou que não estabeleceu ligações duradouras, essa é uma árdua tarefa. O amor de transferência pode adquirir uma tal intensidade a ponto de colocar o analista "in a cleft stick" (1915, p. 167). Esta é a expressão usada por J. Strachey na tradução inglesa, que pode ser entendida como um dilema inextricável. Ao pé da letra, temos 'uma vara cindida'. O analista se vê, então, cindido pelas intensas demandas amorosas do neurótico, que exi­ge ser ressarcido de uma perda irreparável, ou, mesmo, pela erotomania do psicótico, ainda mais assustadora e inamovível. Se responde a partir dessa cisão, está em plena contra-transferência. Esse é o receio de Freud. Com Lacan, podemos dizer que a contra-transferência nada mais é do que a emergência do sujeito dividido no lugar do analista. Metáfora que faz sintoma.

Qual o amor possível como resposta do analista, se não existe modelo na vida real? Freud dá uma pista: "(...) o tratamento psicanalítico é fundado na verdade. Sobre esse fato incide uma grande parte de seu efeito educativo e de seu valor ético. É perigoso afastar-se desse funda­mento. Qualquer um que esteja saturado da técnica analítica não mais será capaz de recorrer a mentiras ou fingimentos que um médico normal­mente considera inevitáveis" (p. 164).

A solução é ética. O amor possível para o analista pode ser o amor à verdade. Esta se encontra no cerne da psicanálise, é seu próprio funda­mento. Qual é a verdade em jogo numa análise? Ela se apresenta desde o início na regra fundamental como o pedido do analista: diga o que lhe vier à cabeça, não oculte nada, mesmo que não pareça importante. Sabe­mos que o sujeito pode mentir, ocultar, desviar o rumo das associações, fazer de tudo para não se revelar. Como saber da verdade?

Retomando a discussão anterior sobre realidade psíquica, desta vez recorro ao texto de Philippe Julien (1996), em sua referência a Freud e

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Lacan, que resume bem a concepção de verdade que nos diz respeito. A questão que se põe é: "Se a verdade fala, será que fala para dizer a verdade?" (p. 14). O analista tem que escolher entre dois valores de verdade:

"Ou a verdade é, segundo a fórmula clássica, adaequatio intellectus et rei, a adequação entre pensamento e objeto: assim, diz-se que uma proposição é verdadeira ou falsa em função dessa conformidade ou não com o referente, pois o que está em jogo é a aquisição de um saber referencial;

"Ou a verdade é, segundo a 'Coisa freudiana', o dizer de uma fala que apela para a confiança do Outro, para se fazer reconhecer em seu valor de evento: 'Sim, você o disse!' Assim, o locutor recebe sob uma forma invertida sua própria mensagem, doravante no futuro do presente composto: 'Eu o terei dito.' O que está em jogo não é um saber referen­cial, mas um saber textual. (...) Mas sob uma condição absoluta: que o Outro acredite" (pp. 14-15).

Acreditar no sujeito, portanto, é acreditar no seu dizer produzindo o dito, verdadeiro ou não, ao qual se adere como evento de uma "enuncia­ção auto-referencial segundo a qual um 'eu' convoca um 'ele ' para ouvi-lo". Ou seja, o contexto da verificação é o próprio texto como produção (dizer) e produto (dito) do sujeito.

Esse amor à verdade como saber textual é condição necessária mas não suficiente para dissipar os efeitos desconcertantes da resistência em sua versão de amor-ódio — hatnamoration, como diz Lacan.

Da parte do analista, o que pesa é seu percurso na própria análise, na vida e, provavelmente como decorrência desses dois fatores, seu savoir-faire, seus recursos imediatos para lidar com o que emerge a cada sessão. Nem furor sanandi, nem remédios inofensivos. Deve-se praticar uma "psicanálise não diluída, sem medo de manejaros mais perigosos impul­sos psíquicos e obter domínio sobre eles para benefício dos paciente." (Freud, 1915, p. 171).

Da parte do sujeito, o que pesa é, como Freud mostra no texto, a fixação da libido que insiste sob o modo da repetição. A resistência sozinha não produz esse amor, apenas o instrumenta e o intensifica a seu serviço, escondendo e exibindo a fantasia, com seu gozo, na solução de compromisso que é o sintoma. A origem desse amor é atribuída à repe­tição como reedição de protótipos do amor infantil — Freud, em 1915, ainda não tem o recurso à repetição como uma compulsão para além do princípio do prazer.

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Sobre a resistência, em seu texto "Inibição, sintoma e angústia" (1926), Freud escreve um adendo que revê e modifica suas formulações sobre os tipos e procedências da resistência que se mantinham em torno do ego até o início dos anos vinte. Agora, o analista deve combater nada mais nada menos do que cinco tipos de resistência provenientes das três instâncias: ego, id e superego.

Do ego são três tipos: a resistência do recalque — que é inconsciente mas pode tornar-se consciente — é a mais conhecida; a resistência de transferência que reanima o recalque, onde podemos situar a intensifica­ção do amor de transferência; e o ganho da doença, com base na assimi­lação do sintoma pelo ego, que se manifesta numa recusa a renunciar à satisfação obtida no sintoma.*

O quarto tipo provém do id, e Freud o nomeia como resistência do inconsciente, que se manifesta na compulsão à repetição, "que pede elaboração".

O quinto tipo, mais recente, é mais obscuro e não deve ser subesti­mado. É a resistência que provém do superego e se manifesta como um forte sentimento de culpa ou necessidade de punição impedindo qual­quer avanço na análise (1926, pp. 159-60).

Uma batalha com cinco frentes faria recuar qualquer general! No entanto, combateremos à sombra. Nossa missão não é atacar de frente, nem de uma só vez. Devemos contar com as próprias forças do sujeito.

Interessante notar que, nessa nova formulação, a resistência perpassa todas as instâncias que constituem a realidade psíquica, e não apenas o ego como se costumou pensar com Freud até os anos 20 e se estendeu à leitura dos pós-freudianos. A compulsão à repetição resiste bravamente como garantia da verdade do sujeito em oposição ao ego. Além disso, há a ação culpabilizante do superego sobre o ego, em sua exigência sádica, até o limite da "pura cultura da pulsâo de morte" na melancolia (1923, p . 53 ) .

Em "Recordar, repetir e elaborar" (1914), Freud afirma: "Antes de tudo, o paciente começará seu tratamento com uma repetição" (p. 150). E o que condiciona a repetição?

"O que nos interessa mais que tudo é naturalmente a relação dessa compulsão para repetir com a transferência e a resistência. Logo perce-

Se o sintoma não é assimilado pelo ego, temos o que Freud aponta, ao longo de sua teorização sobre os diferentes sistemas, como o que é prazer para um sistema passa a ser desprazer para outro. Esta é uma das maneiras de designar o conflito, a divisão do sujeito, como diz Lacan.

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bemos que a transferência é em si apenas uma repetição, e que a repeti­ção é uma transferência do passado esquecido não apenas para o médico mas também para todos os demais aspectos da situação presente" (1914, p. 151).

Desse trecho apreendemos que transferência e repetição não são idênticas, e que a repetição se 'transfere' — podemos entender o termo em sua acepção de deslocamento — para outras situações que não a analítica. Então, qual o seu estatuto e função na realidade psíquica atua­lizada na transferência?

Em "Para além do princípio do prazer" (1920), Freud postula que "O inconsciente — isto é, o 'recalcado' — não oferece qualquer resistência aos esforços do tratamento. De fato, ele próprio não faz outra coisa senão tentar superar a pressão que pesa sobre ele e forçar passagem seja para a consciência ou para a descarga através de uma ação real" (p. 19).

Três anos mais tarde, em O ego e o id (1923), Freud vai numa direção um pouco diferente: "O id (...) não tem meios de mostrar ao ego seja amor ou ódio. Não pode dizer o que quer; não atingiu qualquer vontade unificada. Eros e a pulsão de morte lutam em seu interior. (...) Seria possível retratar o id como sob a dominação das pulsões de morte mudas mas poderosas, que desejam estar em paz e (impulsionadas pelo princí­pio do prazer) pôr Eros, esse encrenqueiro, para descansar; mas isto talvez possa ser subestimar o papel de Eros" (p. 59).

No jogo pulsional, há uma parte que 'pede passagem' e outra que 'quer ficar onde está, em paz'. A repetição parece adquirir aí um duplo movimento. Isto é, pedir passagem para fazer cessar a busca. Nesse sentido, há uma resistência que se solidifica no embate pulsional. Perma­nece a questão: o que se repete, afinal?

Nesse ponto, recorro a Lacan para situar a repetição como diferente da reprodução de padrões de comportamento, que ele compara à repro­dução de uma obra de arte cujo valor é irrisório comparado ao do original. Repetição não é reprodução barata do original. O trabalho analítico não deve se pautar na idéia de que repetir seja reproduzir ou copiar algo a ser encontrado na origem. Por outro lado, a repetição não é mera encenação cujo palco se restringe ao setting analítico encetando uma disputa auto-referente entre analista e analisando. A repetição deve ser entendida como um movimento que, ao fixar uma identidade, é também diferencial como intrínseco ao funcionamento da linguagem ou, como Lacan postula, às leis do significante. A repetição porta a diferen­ça. Além disso, seu ponto de ancoragem não é localizável nem na figura do analista nem no passado remoto, está irremediavelmente perdido.

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A repetição entre o real e o simbólico: tique e autômaton

No Seminário 11 — realizado em 1964 e publicado cerca de dez anos mais tarde — Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan desenvolve sua concepção de repetição, apropriando-se de maneira pe­culiar de dois modos de causação postulados por Aristóteles: tique e autômaton.

O primeiro (tique) é uma dimensão da repetição no registro do real e pode corresponder ao que Freud chama de núcleo patogênico, como o que é traumático para o sujeito. Real e trauma se equivalem marcando o sujeito nesse encontro desencontrado; encontro faltoso com o real.

Segundo Freud, "há uma classe especial de experiências da maior importância para as quais nenhuma memória pode, como regra, ser recuperada. Essas são experiências que ocorreram numa infância remota e não foram compreendidas na época mas que foram compreendidas e interpretadas subseqüentemente. Tomamos conhecimento delas atra­vés dos sonhos e somos obrigados a acreditar nelas a partir da força das evidências dadas pelo tecido da neurose". (1914, p. 149 grifo no original).

Esse trecho condensa as duas dimensões da repetição recortadas por Lacan. Convém observar que a atualização da teoria do trauma deve ser entendida à parte da idéia de que só o que é infantil pode ser traumático. Isto é, o que localiza o trauma é um tempo subseqüente uma vez que o tempo anterior não é localizável, está perdido no inefável da experiência, seja num passado remoto ou não. O que insiste como exigência de elaboração fazendo funcionar a cadeia de significantes é o autômaton, a dimensão da repetição no registro do simbólico. Entre real e simbólico, entre o desencontro e a insistência, o sujeito trabalha na análise.

Tomo dois exemplos paradigmáticos apresentados por Freud em di­ferentes momentos de sua obra que nos dão indicações importantes sobre a repetição e que Lacan retoma reinterpretando-as de um modo um pouco diferente.

O primeiro é o exemplo do pai que vela seu filho morto à luz de uma vela que incendeia a cortina do cômodo onde está seu caixão. O pai adormece no cômodo ao lado e sonha a famosa cena descrita por Freud no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, que termina com a frase: "Pai, não vês que estou queimando?"

Há muitas interpretações possíveis para esta cena. Tudo o que Freud nos diz sobre como obteve o relato deste sonho é que foi através de uma

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paciente sua que assistiu a uma palestra sobre sonhos onde este foi relatado. Ela própria passa a " 're-sonhá-lo' , isto é, a repetir alguns de seus elementos em seu sonho" (1900, p. 509). Reduplicação do trauma?

O segundo exemplo é a famosa cena do fort-da em "Além do princí­pio do prazer" (1920), que Freud presencia ao observar seu neto brincar com um carretel fazendo-o desaparecer e reaparecer. A partir da expe­riência traumática do desaparecimento do objeto libidinal — no caso, as saídas da mãe — o menino encena em seu jogo o movimento de 'ir-e-vir' numa tentativa de domínio sobre o objeto a serviço do princípio do prazer através dessa manipulação. Este exemplo ilustra a repetição atra­vés do incessante vaivém do objeto.

Vejamos como Lacan trata esses exemplos: Tique refere-se ao encontro sempre faltoso com o real. Que falta o

pai teria cometido para ser repreendido em sonho por seu filho morto? Para Lacan, a falta que concerne ao real não é da ordem de um julgamen­to moral. E, antes, como uma impossibilidade que ela opera. Não foi possível salvar a vida de um filho que teria ardido em febre até a morte. Não foi possível reverter esse destino. Assim como, no segundo exem­plo, não é possível ao menino um acesso não tanto à presença da mãe, mas a seu desejo enigmático. Para onde vai seu desejo quando ela desa­parece? Eis o ponto traumático.

Autômaton é o que resiste porque insiste na cadeia de significantes. No primeiro caso, é a insistência do sonho que reduplica a cena do incêndio e constrói a frase como um apelo reprovador do filho pela falta do pai. No segundo caso, é o jogo de oposições significantes — fort (vai) e dá (aí) — que sustenta o movimento. Eis o ponto em que a cena se inscreve no simbólico.

Sobre a dimensão simbólica da repetição, Lacan diz: "Se o sujeito é o sujeito do significante — determinado por ele —,

podemos imaginar a rede sincrônica de tal modo que ela dê, na diacronia, efeitos preferenciais. Entendam bem que não se trata aí de efeitos esta­tísticos imprevisíveis, mas é a própria estrutura da rede que implica os retornos. E esta a figura que toma para nós, através da elucidação do que chamamos estratégias, o autômaton de Aristóteles. E também é por automatismo que traduzimos o Zwang de Wiederholungszwang, compul­são de repetição" (1973, p. 65).

E, ainda, "A sintaxe, seguramente, é pré-consciente. Mas o que esca­pa ao sujeito, é que sua sintaxe está em relação com a reserva incons­ciente (...) — a ser entendida no sentido de reserva de índios, no interior

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da rede social. (...) Quando o sujeito conta sua história, age, latente, o que comanda essa sintaxe, e a faz cada vez mais cerrada. Cerrada em relação a quê? — ao que Freud, desde o começo de sua descrição de resistência psíquica, chama um núcleo.

Dizer que esse núcleo se refere a algo de traumático é apenas uma aproximação. Precisamos distinguir, da resistência do sujeito, essa pri­meira resistência do discurso, quando este procede ao cerramento em torno do núcleo. Pois a expressão de resistência do sujeito não faz mais do que implicar demasiado um eu [moi] suposto, do qual ele não está certo — ao se aproximar desse núcleo — que seja algo que pudéssemos estar seguros de que a qualificação de eu [moi] ainda tenha fundamento" (p. 66).

Se fazemos uma superposição de Freud com Lacan, temos algo do id, "a resistência do inconsciente" traduzida como compulsão à repetição, que insiste, na dimensão traumática do mau encontro com o real (tique), e se articula à sintaxe que faz funcionar a rede de significantes (autôma­ton) "pedindo elaboração".

No caso do sonho do pai, Lacan aponta algo que Freud não vislum­brava em 1900: o sonho atesta que há algo que não é da ordem da realização de desejo que se repete, mas algo 'anterior' ao princípio do prazer, que seria da ordem do trauma. Este sonho fundamentalmente não realiza um desejo, não causa prazer.

No caso do menino do carretel, tanto Lacan quanto Freud, apontam que o que é traumático para o menino do carretel é, no entanto, elaborado na ação causando prazer. Coisa de criança? Prefiro achar que também pode ser coisa do processo analítico.

A repetição, por sua dupla via do mau encontro com o real, que retorna sempre no mesmo lugar, e do significante, sob o modo de relatos de cenas ou episódios, relatos de sonhos, incidências de falas numa sintaxe que não se reduz ao eu, "pede elaboração". Esta pode se dar tanto pela palavra quanto pela ação. Devemos abolir quaisquer resquícios da concepção evolucionista e desenvolvimentista — de certo modo presente em Freud e enfatizada pelos pós-freudianos — que supõe que a ação na repetição é infantil, pré-verbal, ou regredida. A ação na elaboração, inevitavelmente, guarda uma dependência, senão uma familiaridade com a repetição. E através desta que aquela se dá. A incidência do analista desencadeia e dá suporte à elaboração sustentada na transferência. Cito Lacan:

"(...) não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no natural, de nenhum retomo da necessidade. O retorno da necessidade

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visa o consumo posto a serviço do apetite. A repetição demanda o novo. Ela se volta para o lúdico que faz desse novo sua dimensão" (1973, pp. 59-60). Este é o jogo da psicanálise.

Quanto à rememoração, que Freud situa entre a repetição pela ação c a elaboração pela palavra, sua posição em 1914 é a de que há as chama­das memórias encobridoras que vêm no lugar da amnésia infantil, e há outros processos psíquicos, como fantasias, impulsos emocionais, cone­xões de pensamentos, e t c , que "em sua relação com o esquecimento e a lembrança devem ser considerados separadamente" (pp. 148-9). Qual a diferença?

No primeiro caso, "não apenas algo mas tudo o que é essencial da infância foi retido nessas memórias [encobridoras]. E simplesmente uma questão de saber como extrair isto [o essencial] delas pela análise. Elas representam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto o conteúdo manifesto de um sonho representa os pensamentos oníricos."

No segundo caso, "acontece particularmente com freqüência que algo é ' lembrado' , que nunca poderia ter sido 'esquecido', porque não foi jamais observado naquele momento — não foi jamais consciente. Considerando o curso tomado pelos eventos psíquicos, parece não fazer qualquer diferença se uma 'conexão de pensamento' foi consciente e então esquecida ou se jamais pôde tornar-se consciente. A convicção que o paciente obtém no curso da análise é bem independente desse tipo de memória" (p. 149).

O que temos aqui? Se as memórias encobridoras representam — são representantes de, como numa representação diplomática — a infância esquecida do mesmo modo que os sonhos representam os pensamentos oníricos, só temos acesso aos representantes em sua missão de compare­cer com tantas palavras no lugar do que jamais aparecerá. Logo, não temos como saber o que representa o que. E se, em relação aos demais processos psíquicos, a convicção do paciente independe da memória, não nos resta outra coisa senão apostar nos efeitos das palavras e atos no curso do trabalho analítico. Podemos simplificar a questão afirmando que não há metalinguagem ou, de acordo com Lacan, não há Outro do Outro. Isto é, nossa função não é traduzir o que é dito pelo que não foi dito. O dito vale pelo não-dito, e fazer falar é relançar um dito ao outro localizando o sujeito na dimensão do dizer. Retomo este ponto ao tratar da interpretação.

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Ainda resta um problema. Se vimos inicialmente que na transferência emerge sua face mais aguda e desafiante — que é a resistência na forma do amor erótico — que, por sua vez, se origina da compulsão à repetição que também visa a restaurar 'a paz' e fazer cessar qualquer apelo à elaboração, ou a outras formas de satisfação impostas por Eros (o en­crenqueiro), como manejar a transferência a favor do trabalho analítico?

A transferência analítica: o 'sujeito suposto saber'

Em "A dinâmica da transferência" (1912), para solucionar o problema, Freud se detém na proposta insuficiente de uma transferência terna — menos intensidade das pulsões eróticas — fazendo prevalecer o fator quantitativo sobre o qualitativo. Mas lança uma idéia intrigante sobre o modo como o analista é chamado à transferência: "O investimento libi-dinal introduzirá o médico em uma das 'séries' psíquicas que o paciente já formou" (p. 100). É como objeto, ou traço do objeto, que o analista entra na outra cena.

Tomando os três registros postulados por Lacan: pela via do imagi­nário, é a imagem ou traço do objeto; pela via do simbólico, os signifi­cantes que designam o objeto, o que retoma a primeira idéia de Freud da transferência como deslocamento de uma representação para outra (1900, p. 562); pela via do real, é a dimensão da falta, do não compare­cimento do objeto, que remete ao objeto perdido.

Essa inclusão nas "séries psíquicas" se inscreve na economia libidinal do sujeito estando, portanto, submetida às intempéries do amor-ódio de transferência. Voltamos ao problema.

Lacan nos brinda com sua pièce de résistance — que vai contra a resistência tanto do analista quanto do analisando — que é o conceito de 'sujeito suposto saber',* para dar um rumo analítico à transferência. Erigir o analista como 'sujeito suposto saber' pode ser o amor possível para o analisando como contrapartida ao amor à verdade para o analista.

O amor à verdade põe o analista em posição de confiar no inconscien­te, no processo primário, que sempre vai associar, não querendo dizer

* O conceito de 'sujeito suposto saber' aparece de modo disperso nos trabalhos de Lacan. Dada a dificuldade em localizar as referências em textos inéditos ou de difícil acesso, remeto o leitor ao texto principal. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola" em que Lacan postula a função do analista na transferência que indica como o 'sujeito suposto saber'.

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nada, mas sempre querendo dizer alguma coisa que promete significa­ção. Cabe ao analista apontá-la para, paradoxalmente, esvaziar a possi­bilidade de uma significação última, definitiva, vitória da razão sobre a emoção. Psicanálise não é intelectualização, mas também não é processo emocional.

O amor ao 'sujeito suposto saber' põe o analisando em posição de confiar ao analista sua fala onde, imprevisíveis, aparecem seus segredos (elementos da fantasia), seu padecer (um modo de gozo que não dá prazer), sua esperança em mudar (ideal do eu) e se livrar 'disso' (pedido de amor). Ao supor um saber ao analista, o analisando acredita, mas também duvida, que ele realmente saiba. Portanto, essa suposição não se esgota na figura do analista, mas tem em sua presença uma possibilidade, ao mesmo tempo que um limite, de fazer o sujeito vir a saber de sua condição como parte de seu trabalho. Ao falar, se vê e, principalmente, se escuta num lugar que lhe é estranho e familiar. "Eu disse isso? (...) Não é isso (...) Eu quero dizer isso (...)" e por aí vai. E também age dentro e fora da sessão de modo inusitado, estranho e familiar, efeito da repetição.

O saber que se produz d'isso, não vem só da boca do analista. Essa outra dimensão da suposição que provoca a fala atesta a existência do inconsciente, não como ôntico mas como produção, e reconduz o analis­ta ao lugar de desencadeador mais do que sabedor da verdade. O mestre sabe, o analista, por ser suposto, não sabe. O 'sujeito suposto saber' não está nem no analista nem no analisando, é uma produção do dispositivo.

Na psicose a coisa é diferente. O psicótico padece da certeza mais do que da dúvida, logo não está, pelo menos num primeiro momento, incli­nado a supor. O analista, ou sabe tudo, lê seus pensamentos, ou não sabe nada. Fazer vacilar a certeza em direção a uma suposição possível é o ponto sobre o qual o analista deve trabalhar na análise do psicótico.

Na neurose, se o sujeito, com suas cinco frentes de resistência, supor­tar esse jogo como sua chance de ir adiante, então está instalada a transferência como condição da análise.

Contudo, sabemos que isso não impede a manifestação de outras formas de amor-ódio mais ou menos resistentes ao trabalho analítico. O amor ao 'sujeito suposto saber' é uma nova via que deve absorver as vias vicinais, que podem se concretizar enquanto resistência bloqueando avia principal até o limite do que Freud chamou de reação terapêutica nega­tiva. Na psicose, o sujeito padece da ausência da via principal, perden-

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do-se nas vias vicinais.* Eis a importância do manejo que cabe ao analista, caso contrário, a resistência só pode ser sua. "Cara, eu ganho, coroa, você perde."

1.3 Sobre interpretação, temporalidade e cura

"Cara, eu ganho, coroa, você perde." Voltamos à frase — proferida por um certo "cientista bem conhecido" simpatizante da psicanálise — que chega aos ouvidos de Freud como um protesto em nome do "pobre infeliz desamparado", que é o analisando submetido às interpretações do infalível analista (1937b, p. 257). Protesto injusto ou saturação da técni­ca interpretativa?

Freud responde com a "construção" como "tarefa preliminar" do analista para preencher as lacunas na história do sujeito provocadas pelo recalque, e a distingue da interpretação por ser esta mais parcial, incidin­do apenas sobre determinada associação ou lapso. A construção seria, assim, um trabalho ao longo do tratamento à medida em que o analista dispõe de material suficiente — fragmentos de memórias, sonhos, associações, repetição do recalcado em atos etc. Sua tarefa se assemelha à do arqueólogo para reconstruir ou reconstituir o sítio escavado onde se apresenta a "matéria-prima" fornecida pelo analisando.

Convenhamos que é preciso um minucioso trabalho do analista para executar essa reconstrução. Mas, quem elabora não é o analisando? Ou esse "pobre infeliz" não tem mais nada a fazer senão entregar-se, com sua fala desconexa e confusa, ao trabalho do analista? Este sim, com suas idéias claras e distintas, deverá saber o que fazer disso.

Freud não é ingênuo. Todo o seu esforço no decorrer do texto é para mostrar que uma construção não é facilmente validada seja pelo 'sim' ou seja pelo 'não' do analisando. O 'sim' pode significar um 'não' dissimu­lado a favor da resistência — engana-se um analista — e o 'não' pode significar apenas que a construção está "incompleta". O "pobre infeliz" tem seu poder assegurado contra ou a favor do saber produzido pelo analista, e só o tempo dirá quem está certo a partir de novas associações e repetições do analisando.

Lacan, em seu Seminário, livro 111 — As psicoses, dedica boa parte da lição XXIII — "A estrada principal e o significante 'ser pai '" — a essa metáfora da estrada principal como sendo a organização fálica dada pela função paterna que está ausente na psicose.

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Ao final do texto, Freud chega a comparar as construções do analista aos delírios do psicótico. A única diferença estaria no fato de que o segundo, em sua tentativa de explicação e cura, realiza um duplo des­mentido (em inglês, disavowal): o primeiro no passado remoto, e o segundo no presente. O analista realizaria apenas o segundo?

Freud é quem diz: "Freqüentemente, não somos bem sucedidos em fazer o paciente lembrar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise é conduzida corretamente, produzimos nele uma convicção assegurada da verdade da construção que atinge os mesmos resultados terapêuticos de uma memória recapturada" (1937b, pp. 265-6). Cara ou coroa?

Entretanto, se o psicanalista triunfa onde o paranóico fracassa, é bem porque seu 'delírio' não tem consistência a ponto de deixar o analisando sem saída.

O que é necessário refazer desse percurso? Em primeiro lugar, a construção é um trabalho inerente ao processo

analítico no que se refere à produção de um saber que, em última instân­cia, é a construção da fantasia. Ela é sempre parcial e se tece a partir das produções de fala do sujeito, ao modo de uma rede, vazada, com buracos ou lacunas. Longe de ser um 'delírio', a construção não 'desmente' a castração. Sua confirmação se dá no percurso pelas próprias produções do analisando.

Em segundo lugar, como já disse, o trabalho pertinente à análise que possibilita um desdobramento da construção é o Durcharbeitung — trabalho através de, e durante a análise —, a elaboração. E, se a constru­ção diz respeito ao saber, a elaboração diz respeito também à ação como trabalho pulsional do analisando, num diferencial sobre a repetição, através da incidência do analista. Isto é, o analista incide sobre a repeti­ção produzindo esse diferencial que abre a possibilidade da construção da fantasia e da elaboração. Ou seja, do trabalho que produz uma "ação sobre a realidade", como propôs Freud. Esta ação, por um lado, se articula ao saber que se constrói. E, por outro, relança o sujeito a novos acontecimentos que provocam a desestabilização desse saber-já-sabido.

Qual o teor da incidência do analista? Chegamos à interpretação, onde o analista é supostamente livre para

dizer o que quiser. Esta é a sua tática.*

No texto "A direção da cura" de 1958, publicado nos Écrits, Lacan desenvolve uma versão da clínica inspirada na teoria do general prussiano Karl Clausewitz sobre a guerra como um cálculo cujos elementos são: a tática, a estratégia e a política. No cálculo da clínica psicanalítica, o analista se vale dos três elementos.

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Por uma psicanálise possível I 151

Cito alguns exemplos*: "Ele constata ('você abandonou-o'), interroga ('você não tem obriga­

ções?), afirma ('aqui, a regra é não escolher'), critica ('você não vai pôr em dúvida sua paternidade?'), subentende ('...ou dela.'), declara ('rejei­ção') , exclama ('nada a ver! '), desacredita ('hum...'), utiliza a homosse-mia ('pagar/acertar'), ou a homofonia ('tournedos/tourner le dos')... pode ser um enunciado que o analisando entende à sua maneira (...) ou um sintagma ('gerencio matrimonial') que o sujeito guardava consigo e que veio à luz 'por acaso', ou que o analista colheu 'na trama associativa do discurso'" (1937b, p. 313).

As variações se dão por escolha do analista, e o analisando pode receber cada intervenção com surpresa ou familiaridade, com incom­preensão, e até perplexidade. Pode reconhecer aí algo que lhe diz respei­to. Ao ouvir os ditos do analista, o analisando entende o que pode. Não há uma correspondência unívoca entre um e outro. "A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; é feita para produzir ondas" (Lacan, 1976, p. 35).

O que importa, então, mais do que o dito, é o efeito que produz. E há um tempo para essa incidência operar no circuito de elaboração do analisando para produzir uma resposta na via da transferência. Sabemos que essa liberdade de escolha do analista é cerceada pelos limites da transferência sobre a qual não tem controle. Pode apenas manejar o que dela aparece a favor da análise.

Sobre a relação da interpretação com a transferência, duas observa­ções devem ser feitas:

A primeira diz respeito à interpretação da transferência, extensamen­te discutida por Lacan como o erro do analista. Freud já havia se dado conta do problema e, em 1920, postula a repetição para além do princípio do prazer. Revelar ao analisando sua resistência, tanto pode reforçá-la quanto pode não atingir o recalcado. Ao defender a interpretação na, ou através da, transferência, Lacan considera que o amor que concerne ao analisando já se instalou na dimensão do 'sujeito suposto saber'. É a partir daí que o analista está autorizado a interpretar.

Sua tática, onde é mais livre, é a interpretação; sua estratégia, onde é menos livre, é a transferência; finalmente, sua política, que domina estratégia e tática e onde é menos livre ainda, é menos seu ser do que sua 'falta-a-ser'. (p. 585-90). Os exemplos foram retirados da publicação Os poderes da palavra, uma coletâ­nea de textos de autores anônimos, reunidos pela Associação Mundial de Psica­nálise sob a organização de Jacqucs Alain-Miller.

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A segunda diz respeito às modulações do amor de transferência como a estratégia do analisando. Ao demandar o saber do analista, esse amor pode produzir uma tal ilusão que faz com que o analista apareça como aquele que não se engana nunca. Ou, na via da resistência, pode produzir o efeito contrário: não importa o que o analista diga ou faça, ele cai no descrédito, senão no ridículo. Como resolver o impasse?

A primeira vista, não há solução. A transferência pode sacralizar ou espicaçar o saber do analista. Mas esta oscilação já não é desprezível. Indica que a castração está presente como seu desencadeador. A dúvida obsessiva e a insatisfação histérica sobre o saber do analista são provas disto. E neste ponto que a análise do psicótico se torna mais problemá­tica. Sua relação com o saber não é de suposição.

A castração é o elemento conceituai que faz a diferença. Na neurose, refere-se à relação do saber ao gozo, mais precisamente, ao gozo do saber. Há um limite para o saber, como há um limite para o gozo. Não se sabe tudo, não se goza de tudo. E, ainda, não se goza de saber tudo. Além disso, o saber por si só não garante uma modificação do gozo. O analista toma o partido da castração. Isto é, sua resposta vai ao encontro da impossibilidade. Este é o limite da interpretação. O saber é necessa­riamente parcial. E isto que permite a ação. Caso contrário, teremos o modelo do 'bom' analisando num ser de cálculo que pensa com prudên­cia e razão antes de agir. Ou, então, uma certa 'paranóia' do saber.

Nenhuma dessas saídas avança a possibilidade de uma 'boa saída' para a análise. O analista trabalha sobre a produção textual do analisan­do, a cada caso, a cada encontro: "Tu o disseste" — palavras de Cristo que nos ensinam, não tanto a ética cristã, mas a ética da responsabilidade daquele que diz sobre seu dito.

Se é o sujeito quem diz, o que diz o analista sobre isso (sobre o inconsciente)? Cito dois aforismos de Lacan como indicações prelimina­res para definir o estatuto da interpretação*:

"A interpretação não está aberta a todos os sentidos." Com isto, podemos corrigir uma certa idéia da interpretação como criatividade ou inventividade do analista que, no limite, pode transformar o trabalho analítico em uma viagem romântica por novas linguagens que amplia­riam o autoconhecimento ou a experiência de si. E também podemos apontar um certo cacoete freqüente entre alguns discípulos de Lacan que jogam com o equívoco do significante sem atentar para o sentido que

* Ver Os poderes da palavra, p. 349-52 e 358-63.

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pode trilhar no encadeamento de novas séries significantes que o sujeito produz como efeito da interpretação. Como se analisar não passasse de um permanente jogo de palavras sacudindo a cachola do "pobre infeliz" numa sucessão de enigmas a serem decifrados. A interpretação trilha um sentido que se desdobra e se limita em determinado arranjo de signifi­cantes produzidos pelo sujeito que tecem e retecem a realidade psíquica marcando os caminhos do desejo.

"A interpretação é um meio-dizer". O 'meio' não é o da metade, da meia-medida ou do meio-termo, ainda que se deva considerar a prudên­cia no dizer — "do cochichar da verdade que oferece sua presença aos gritos da queixa, (...) a interpretação não soa tonitruante, insinua-se nos ditos que ouve" (p. 360). O 'meio' está entre dois, "evocando o entre -dois dos significantes", nos interstícios. E também o meio do caminho, meio através do qual o sujeito tem a indicação do caminho. E um dizer alusivo que aponta o sentido, não deve tocar na ferida. E, se incide precocemente sobre algo que o sujeito ainda não pôde dizer, o efeito é a resistência que só faz obstruir o caminho. Para elaborar, é preciso cami­nhar. Qual o tempo para isso? Qual o tempo de espera e, mesmo, qual o tempo que precipita a ação do analista ou do analisando? E, ainda, qual o caminho a ser indicado nesse tempo?

Avancemos, então, os dois pontos seguintes: as concepções de tem­poralidade e cura que condicionam o trabalho analítico.

Em "Análise terminável e interminável" (1937a), um de seus últimos textos sobre a clínica, Freud entrelaça esses dois pontos demonstrando, ele próprio, um pessimismo que vai além do "ceticismo benevolente", que já havia recomendado a leigos e pacientes como a única atitude possível em relação ao alcance terapêutico da psicanálise.* A discussão do tempo é inseparável da concepção de cura.

Freud começa pelo tempo, e logo previne: "a terapia psicanalítica é uma tarefa que consome tempo" (p. 216). Não há como fugir disso. A paciência e a espera são instrumentos fundamentais. Qualquer tentativa de encurtar o 'caminho', ou apressar o passo do paciente para chegar ao fim é injustificável e não passa de um "artifício de chantagem"** (p. 218). A que se deve essa rigorosa restrição?

* Ver Conferência XVI, "Psicanálise e psiquiatria" nas Conferências introdutó­rias parte III (1917), vol.XVI, S.E. p. 244.

** Freud reconhece que ele próprio fez uso desse artifício no caso do homem dos

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lobos quando marcou uma data para terminar o tratamento e refere-se a outros casos seus e de colegas. O que ele refere como chantagem, que dá o tom de ameaça a esse artifício sobre o tempo, resultaria na retenção de parte do material psíquico em prejuízo da outra parte que se tornou acessível, ou seja, provocaria mais recalque do que elaboração.

Freud nos responde com outra pergunta: "Existe essa coisa de um fim natural para uma análise — existe alguma possibilidade afinal de levar uma análise a tal fim?" E ironiza: "(...) a julgar pela conversa dos analis­tas parece ser assim, pois ouvimos dizerem com freqüência, quando estão deplorando ou desculpando as reconhecidas imperfeições de qual­quer mortal: 'sua análise não terminou' ou 'ele não foi analisado até o fim'." (1937, p. 219). Freud continua argumentando sobre o que quer dizer 'o fim de uma análise':

"De um ponto de vista prático, é fácil responder. Uma análise termina quando o analista e o paciente cessam de se encontrar na sessão analíti­ca". Quando isso acontece? Há duas hipóteses: a primeira é quando o paciente não mais sofre de seus sintomas, inibições e angústias; a segun­da é quando o analista supõe que não se há que temer a repetição de processos patológicos, dado que todas as resistências foram trabalhadas e que o material recalcado tornou-se consciente e explicado.

Há, ainda, uma terceira hipótese, um outro sentido para o fim da análise, mais ambicioso, que supõe que o analista exerceu uma tal in­fluência sobre o paciente que esgotou qualquer possibilidade de mudan­ça que justifique a continuidade da análise, como se fosse possível atingir um nível de "absoluta normalidade psíquica", de estabilidade, através do preenchimento de todas as lacunas da memória.

Freud duvida tanto da segunda hipótese — eliminação das resistên­cias e acesso completo ao recalcado — quanto da terceira — influência do analista que esgota a possibilidade de novas construções. Sua dúvida não vai no sentido de uma dúvida metódica para chegar a uma certeza sobre a cura. É, antes, uma dúvida cética que põe em cheque a própria definição dos fatores etiológicos envolvidos no tratamento analítico. As neuroses traumáticas teriam um melhor prognóstico, mas o grande obs­táculo surgiria do que Freud chama de "força dos fatores constitucionais" e do grau de "alteração do ego", estando ambos interligados. Adiante reformula:

"E, no entanto, concebível que um reforço da pulsão que surge pos­teriormente na vida possa produzir os mesmos efeitos. Se assim for,

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deveríamos modificar nossa fórmula e afirmar 'a força das pulsões na­quele momento' em vez de 'a força constitucional das pulsões '" (p. 224. grifado no original).

Em seu esforço para definir o que está em jogo numa análise, Freud altera o item 'fatores constitucionais' em favor de uma reformulação do tempo. O acontecimento, em sua dimensão traumática, pode acionar a 'força das pulsões' de tal modo que já não se trata exclusivamente de fatores arcaicos de um passado infantil como desencadeadores da neuro­se. O fator desencadeador é atualizado no acontecimento. Ou melhor, na reativação da força das pulsões a partir do acontecimento. Isto quer dizer que não há como garantir e, muito menos, como prevenir uma 'recaída' na patologia. Este é o sem-fim da análise.

Podemos deduzir que a repetição, na via da pulsão, entendida como 'fator constitucional', c sempre passível de ser atualizada em determina­do momento. Nesse sentido, a repetição aparece, paradoxalmente, na dimensão do imprevisível. É a tique de que fala Lacan. Há o tempo do acontecimento que provoca um movimento referido a um tempo anterior, por retroação. Este é o tempo da posterioridade, do 'só depois' {Nachträ­glichkeit).

Impossível prever ou prevenir. Esse acontecimento pode ser localizá-vel no fator biológico como puberdade ou menopausa nas mulheres, mas pode "surgir de modo irregular por causas acidentais em qualquer outro período da vida (...) através de novos traumas, frustrações forçadas, ou influência colateral das pulsões uma sobre a outra. O resultado é sempre o mesmo e sublinha o irresistível poder do fator quantitativo na causação da doença" (p. 226).

O 'fator quantitativo', no entanto, não é mensurável. Ele varia tam­bém conforme o modo como o acontecimento é assimilado no interjogo das pulsões, com a capacidade de elaboração ou de trabalho do sujeito, e com os demais fatores em jogo que constituem o contexto do aconte­cimento onde não se podem demarcar fronteiras entre o fato e a expe­riência subjetiva. Seria mais apropriado falar de intensidade ou força em vez de quantidade. Freud insiste no 'fator quantitativo' porque sua preo­cupação se volta para a intensidade relativa da força destrutiva, inercial, da pulsão de morte e das ligações promovidas pela pulsão de vida ou erótica. No processo de fusão e desfusão das pulsões, qual o quantum envolvido de cada parte nesse jogo de forças? Este seria o fator decisivo para acelerar ou retardar o fim de uma análise. O que pode fazer o analista?

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A ação do analista está condicionada a um tempo que se desdobra em duas dimensões: espera e pressa. As questões de Freud em "Análise terminável e interminável" vão nessa direção: Até onde esperar? E pos­sível apressar a emergência do conflito para erradicá-lo?

E também por onde Lacan caminha no exemplo do sofisma* para formular sua teoria do tempo lógico no conhecido texto "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada" (1945).

Não desenvolvo o argumento de Lacan em sua extensão, mas tomo a liberdade de me apropriar dos conceitos formulados no texto sem o compromisso de reproduzir seu encadeamento.**

Proponho uma articulação dos três tempos que constituem o tempo lógico — o instante do olhar, o tempo de compreender e o momento de concluir — com os fatores de tempo 'espera' e 'pressa' e com o conceito de posterioridade ou 'só depois' {Nachträglich ou Nachträglichkeit) para definir a concepção de tempo que concerne à psicanálise. Esse tempo pode ser pensado num duplo recorte: sincrónico ou transversal (das sessões) e diacrónico ou longitudinal (do percurso da análise).

Para isso, retomo os conceitos de repetição {Wiederholung) e elabo­ração ou, de preferência, trabalho através da análise {Durcharbeitung) como operadores centrais no tempo de uma análise e balizas da ação do analista.

Em um primeiro tempo, temos o instante do olhar que pode corres­ponder ao que emerge na fala do sujeito, no sentido do Einfall, o dar a

* Lacan inicia seu texto sobre o tempo lógico (Écrits, pp. 197-213) com um conhecido sofisma lógico ao modo de um jogo que procede assim: o diretor de uma prisão chama três detentos para submetê-los a um exercício de lógica em que o vencedor ganharia em troca sua liberdade somente se a conclusão fosse fundada sobre motivos lógicos e não de probabilidade. Ele apresenta cinco discos, sendo três brancos e dois pretos, e fixa um sobre as costas de cada detento de modo que um veja o disco dos outros dois para poder deduzir a cor do seu. Ele escolhe os três discos brancos deixando de fora os pretos. Os três tempos lógicos correspondem às etapas do raciocínio desenvolvido ao longo do sofisma.

** Para um estudo acurado do texto de Lacan sobre o tempo lógico, remeto o leitor ao texto de John Forrester "Em cima da hora: a teoria da temporalidade segundo Lacan" em Seduções da psicanálise: Freud, Lacan e Derrida; e à dissertação de mestrado de Manha Hirsch Gusmão "Olhar, compreender e concluir: uma con­tribuição à questão do tempo lógico na teoria e na prática psicanalítica", PUC/RJ.

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ver da palavra ou da cena inesperada. Este é um bom sentido para o in sight, à vista, exposto e não interior. Prometendo sentido, e não um significado. Se há um interior, este está out of sight. A correspondência é ao dado imediato. Isto acontece logo no início ou ao longo do percurso, de modo intermitente. A rotina das sessões pode evocar o mesmo, mas um dado novo pode surgir a qualquer momento.

Com quantas sessões, ou intervenções em nome da regra fundamental se põe uma análise em marcha? Eis um tempo de espera que cabe ao analista. Mas não precisa esperar sentado. Caso o sujeito não compareça às sessões, há sempre o recurso a um telefonema ou aerograma ou a um recado. A espera não pressupõe a indiferença, é antes um convite.

Uma vez estabelecida a suposição de saber que sustenta o amor que cabe ao analisando, há um tempo de compreender que é, ao mesmo tempo, o tempo da repetição e o da elaboração. Num vai e vem, o analisando repete e elabora, dentro ou fora das sessões, a partir da incidência do analista com suas interpretações, seu silêncio e a marcação do fim das sessões. Aqui cabe um esclarecimento importante: as sessões podem ter duração variável. Essa variação pode se dar em minutos, portanto não deve acarretar problemas na burocracia dos ambulatórios ou na marcação de horários nos consultórios. É uma variação sutil que não deve obedecer a um tempo controlado pelo relógio. É só isso. Esse tempo pode ser prolongado numa espera por novas associações, ou en­curtado na pressa de precipitar uma marcação do inconsciente para de­sencadear a elaboração. A decisão é do analista. A produção é do anali­sando.

A ação do analista provoca uma hesitação. O sujeito hesita, no tempo da neurose, porque tem algo a perder. O que tem a perdei ?

Em princípio, pode perder o que Freud designa como 'ganho secun­dário do sintoma',* uma das cinco resistências já referidas. Esse ganho tem uma função estabilizadora do ego e, portanto, é onde o sintoma dá prazer, ainda que a um preço de manter a neurose. Há também a 'visco­sidade da libido', o masoquismo moral pela via do superego e a força destrutiva e inercial da pulsão de morte — estranha dimensão de alteri-dade do gozo que toma o sujeito.

O ganho secundário pressupõe que já houve um ganho primário que se deu através da 'fuga para a doença' como escolha do sujeito diante do conflito insuportável. Ao querer se curar 'dessa escolha', se vê forçado a escolher de novo.

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Uma outra definição dessa perda é dada por Lacan como 'perda de gozo da fantasia'. Revelar a fantasia, abrir mão de um gozo fixado, deixa margem para o vazio da falta. O que virá em seu lugar? Nesse sentido, o analista não tem nada a oferecer, a não ser apontar o caminho do desejo. Isto é, abrir mão de um gozo pelo qual se paga um preço muito alto. Caso contrário, a análise não vale mais a pena. O sujeito não quer saber mais disso. Muitas interrupções se dão neste momento. O analista deve con­trabalançar a pressa com a espera para não incidir precocemente sobre algo do qual o sujeito não pode ou não quer abrir mão.

Na psicose, o esforço de elaboração pelo delírio deve ser considerado diferentemente da resistência pela manutenção do gozo no caso do neu­rótico. Pelo trabalho do delírio, o psicótico tenta se livrar do peso mas­sacrante do gozo do Outro — o perseguidor, na paranóia, a sombra do objeto, na melancolia, para citar os mais típicos. A relação do psicótico com o tempo não é marcada pela divisão. Neste sentido, ele não hesita.

Na análise do neurótico, a hesitação faz parte do percurso. Lacan a insere num tempo crucial que decide sobre o destino do sujeito. Ele hesita justamente quando precipitou sua ação para se salvar. E, se hesitar um pouco mais, perde a vez. A escolha é sempre forçada. Podemos supor que a certeza antecipada, que corresponde ao momento de concluir, vacila em nome da manutenção daquilo que faz o sujeito gozar. Ou melhor, nos termos de Lacan, do que faz o Outro gozar. Na neurose, o sujeito é dividido em relação à consistência do Outro. Na psicose, essa consistência é uma certeza. Esse Outro pode se apresentar na figura de um marido ou de uma esposa, das mulheres ou dos homens, de um filho, de um pai-patrão ou de uma mãe-patroa-madrasta, do trabalho 'escravo' etc. Ou seja, esse Outro se insere no campo das relações sociais, do sexo ao trabalho e impõe seu gozo pela via do superego.

O tempo de compreender não deve ser assimilado à idéia de um raciocínio consciente referido a uma lógica formal abstrata. Se o identi­ficamos à elaboração, pressupomos um trabalho que se dá também pela via da repetição como trabalho incessante do inconsciente desencadeado pelo analista. A elaboração procede tanto no pensar quanto no agir ao longo da análise. Se pensar não é agir, também não temos como distin­gui-los senão pela palavra do sujeito que tanto pode nos comunicar o que, no senso comum, se chama uma idéia, quanto uma decisão já tomada da qual não tínhamos qualquer notícia. O agir do sujeito não nos é acessível diretamente, a não ser quando tomamos conhecimento dele através dessas comunicações. Quantas vezes não ouvimos frases como

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Por uma psicanálise possível I 159

"finalmente pedi minha noiva em casamento" ou "pedi demissão do emprego" ou "fui procurar emprego" ou "me separei de meu marido/mi­nha mulher" ou "me matriculei em um curso profissionalizante/univer­sitário" ou "trouxe meu filho de volta", etc. O analista, atônito, muitas vezes não sabe como definir este ato do analisando. Ou bem é efeito da elaboração, sobre a qual o sujeito pode ter pouco ou nada a dizer, ou bem é a repetição que remete ao mesmo e, portanto, todo o esforço do analista caiu por terra.

Acontece que esta pode ser uma falsa questão. E preciso esperar, não na esperança, mas na expectativa vazia de aguardar as próximas produ­ções do analisando. A elaboração não é um processo evolutivo para a solução final, adequada, esperada. Por um lado, é incessante como o trabalho do inconsciente, um trabalho invisível que guarda seu parentes­co com a repetição. Por outro, é visível como conseqüência do trabalho através da análise, com tantas sessões e tantas palavras, em que o analista fez a sua parte sem saber com clareza que efeitos provocou. Numa análise, não se sabe claramente sobre seus efeitos, a não ser por aproxi­mação.

Do lado do analista, a construção do caso se dá ao fim do percurso, ou por indícios sobre os quais trabalha durante o percurso para corrigir o rumo do tratamento. Do lado do analisando, uma análise é fadada ao esquecimento.

O tempo que concerne aos efeitos é o 'só depois', Nachträglich. Devemos a Lacan o mérito de ter recuperado em Freud sua importância fundamental como o tempo que define a causação psíquica. Do trauma ao sintoma como retorno do recalcado, há uma retroação, ou seja, o acontecimento num tempo anterior só porta sentido num tempo posterior de um segundo acontecimento. Toda a perspectiva desenvolvimentista que permanece atuante na psicanálise supondo um determinismo linear da ação do passado sobre o presente cai por terra. Conseqüentemente, as concepções de realidade psíquica inconsciente, regressão, transferência, tratamento e cura se alteram significativamente.

Lacan, no Seminário I — Os escritos técnicos de Freud, que inaugura seu ensino, já insiste em apontar a diferença. Reproduzo alguns trechos da aula de 7 de abril de 1954:

"O passado e o porvir precisamente se correspondem. E não em um sentido qualquer — não no sentido que vocês poderiam crer que a análise indica, a saber, do passado ao porvir [l'avenir]. Ao contrário, na análise, justamente porque a técnica é eficaz, isso caminha na boa ordem — do

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porvir ao passado. Vocês poderiam crer que estão buscando o passado do doente no lixo, quando, ao contrário, é em função do fato que o doente tem um porvir [avenir] que vocês podem ir no sentido regressivo. (...)

"Por um lado, o inconsciente é algo de negativo, de idealmente ina­cessível. Por outro lado, é algo de quase real. Enfim, é algo que será realizado no simbólico ou, mais exatamente, que, graças ao progresso simbólico na análise, terá sido.

"(...) E então, como explicar o retorno do recalcado? Por mais para­doxal que seja, só há uma maneira de fazê-lo — isso não vem do passado, mas do porvir.(...)

"O sintoma de início se apresenta a nós como um traço, que nunca será mais do que um traço, e que permanecerá sempre incompreendido até que a análise tenha ido longe o bastante, e que nós lhe tenhamos realizado o sentido. Pode-se dizer também que, assim como a Verdrän­gung não é nunca senão uma Nachdrängung, o que vemos sob o retorno do recalcado é o sinal apagado de alguma coisa que só tomará seu valor no futuro [futur], por sua realização simbólica, sua integração na história do sujeito. Literalmente, isso nunca será mais do que algo que, num dado momento de realização terá sido" (1975, pp. 180-2).

Uma análise começa na direção de um porvir, um 'daqui por diante' sobre o que virá daquilo que já foi e, ao final, terá sido. A cada sessão e ao longo do percurso, da intervenção do analista à resposta do analisan­do, há o tempo do 'só depois'. A resposta do analisando não vem quando ou do modo que é esperada. Como educadores, sempre nos decepciona­mos. A recíproca é mais do que verdadeira. O analista, por sua vez, só pode operar nesse inesperado onde se situa sua ação. Se não puder suportar isso, não avançará no caminho.

Qual o caminho, se nunca sabemos onde vamos chegar? E preciso propor um norte para o analista.

Chegamos ao ponto mais controvertido da psicanálise: a definição de cura. Podemos mesmo dizer que esta não é uma boa palavra pois, de imediato, nos remete ao modelo médico. Não que na medicina não haja sérios problemas quanto à cura das doenças ou mesmo quanto à própria definição de cura. O problema do prognóstico nos processos patológicos é o melhor exemplo. Para o médico também o desaparecimento dos sintomas estaria longe de significar a erradicação da doença. E, em muitos casos, não há como garantir que não haverá uma recidiva.

Todas essas preocupações também foram as de Freud sobre o que determinaria o fim de uma análise. A questão crucial é 'de que o sujeito

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se cura afinal?' No rastro da medicina, teríamos que perguntar antes 'qual é a sua doença?' Talvez possamos transformar esta pergunta em outra: 'do que o sujeito padece?'

Se respondemos que 'ele padece dos acontecimentos da vida com uma intensidade incapacitante', concluímos que 'capacitá-lo para en­frentar a vida' já seria satisfatório. E esta não deixa de ser uma solução prática considerada tanto por Freud quanto por Lacan.

Em "Análise terminável e interminável", Freud toma duas posições sobre o que pode significar 'ser analisado'.

A primeira refere-se a "assegurar as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego" (p. 250). O sujeito analisado não está livre de paixões ou de conflitos, mas pode melhor dispor da 'força' das pulsões a seu serviço. A segunda é mais ambiciosa e reivindica para a psicanálise a instauração de "um estado que nunca surge espontanea­mente no ego, e cuja criação constitui a diferença essencial entre uma pessoa que foi analisada e outra que não foi" (p. 227).

Lacan, em suas "Conferences et entretiens dans des universités nord-américaines" (1976), imbuído de um certo pragmatismo, declara: "Não penso que possamos dizer que os neuróticos sejam doentes mentais. Os neuróticos são o que a maioria é. Felizmente, não são psicóticos. O que é chamado um sintoma neurótico é simplesmente algo que os permite viver. Eles vivem uma vida difícil e nós tentamos aliviar seu desconforto. As vezes lhes transmitimos o sentimento de que são normais. Graças a Deus, não os tornamos tão normais a ponto de acabarem psicóticos."

E, ainda: "Uma análise não deve ser levada muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz em viver, é o bastante" (p. 15).

Dada toda a complexidade do jogo de forças das pulsões, da qualida­de traumática dos acontecimentos para o neurótico, da dificuldade de se abrir mão de um gozo que estranhamente causa sofrimento ou desprazer e do tempo necessário para se obter alguma mudança, podemos dizer que o fim de uma análise só pode ser 'satisfatório' se tomamos esta palavra no sentido de 'o bastante'. Em francês, c'est assez ern inglês, that's enough têm o duplo sentido de 'bastante' como suficiente, e 'basta' como fim.

Neste ponto, o sujeito é quem dá o 'basta', precipitando sua saída numa certeza antecipada cuja hesitação não pode se prolongar. É o momento de concluir. Ao analista cabe levar o analisando a este ponto e ratificar seu ato, para desfazer o tempo da hesitação que, em última instância, é um pedido de reconhecimento.

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Sabemos que isso toma tempo. E o tempo de cada um é sempre uma incógnita. Não é um tempo imanente, é variável. Depende tanto da participação do analista quanto do que, no percurso de uma análise, se alterna entre destino e acaso.

Podemos propor como um norte para o analista, para levar a análise a seu fim — no duplo sentido de finalidade e final — deslocar a dimen­são aprisionante do destino, entendido como 'destino selado', para a dimensão de uma separação, para um 'destino em aberto'. Ao abrir esta possibilidade, o analista sustenta um rumo diferente para o que antes estava 'selado' . Contudo, sabe que sempre resta algo que marca esse destino.

O destino selado vem dar lugar ao destino em aberto ao fazer o sujeito mudar sua posição em relação à fantasia que sustenta seu sintoma. Esta fantasia se descortina ao modo de uma construção, como sedimentação do saber que foi produzido no percurso. E o trabalho que o analisando faz sobre o que se constrói a partir da repetição vem alterar algo do gozo inicial que fixava um 'destino selado'. Contudo, era justo este destino que garantia alguma coisa para o sujeito.

De certo modo, a cura numa análise desengana o sujeito até onde ele suporta ser desenganado. Ao contrário do uso corrente do termo, o sujeito é desenganado para viver. E preciso que se desengane em relação ao analista, que se separe dele. Esta separação está posta desde o começo de uma análise através do trabalho do analista no manejo da transferên­cia. Todo o processo se dá visando a este fim. A separação do analista corresponde à destituição do 'sujeito suposto saber', a um esvaziamento da demanda de saber, como demanda de amor e reconhecimento.

Trocar o certo pelo duvidoso, oferecer-se à vida sem garantias, não mais acreditar na consistência do Outro que fixa um gozo, já é um bom preço a pagar. E o sujeito só paga porque sofre desse gozo e pede outra coisa. Cabe ao analista saber disto, a partir de sua própria análise, para que não se engane sobre o que está realmente oferecendo ao sujeito quando o recebe pela primeira vez em sua clínica.

1.4 Sobre o desejo do analista

Chegamos à última condição que decide sobre o que deve fazer um analista para suportar sua oferta. A questão é: o que o faz tornar-se analista? Ou, ainda, o que quer um analista?

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Segundo Freud, não é a normalidade, já que é ele próprio quem diz: "É indiscutível que os analistas (...) não chegaram invariavelmente ao padrão de normalidade para o qual desejam educar seus pacientes." E acrescenta: "Os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte singular; paralelo a isso, devem se permitir ser seres humanos como quaisquer outros" (1937a, p. 247).

Essa arte singular não se aprende só na escola. A primeira lição é a própria análise do analista. Sem me estender na discussão da análise didática, o que nela está em jogo é um sintoma específico que é o desejo de ser analista. Este sintoma pode mesmo ter efeitos prejudiciais para o bom andamento da análise, dependendo dos compromissos que o 'futuro analista' estabelece com seu analista, produzindo mais recalque.

Para Freud, a condição necessária mas não suficiente para se tornar analista é que o analisando deve obter a "firme convicção da existência do inconsciente para perceber em si próprio o que de outro modo seria inacreditável" (1937a, p. 248). Este seria o estado a que Freud se refere no mesmo texto como o que "nunca surge espontaneamente no ego e constitui a diferença essencial".

Devemos, então, entender essa diferença como a experiência do in­consciente. Não como algo inefável ou místico, e sim como a experiência do trabalho analítico em sua especificidade enquanto produção de algo novo na vida do sujeito. Esta experiência pode estar incompleta mas tem que deixar marcada sua qualidade.

O que Lacan nomeia como o desejo do analista é, sobretudo, um efeito da análise. Até onde se foi na própria análise determina a possibi­lidade e o limite de fazer operar o dispositivo que constitui o trabalho analítico a partir do desejo do analista. Fora isso, estamos no campo da demanda sob o domínio, ao mesmo tempo fascinante e inibidor, do ideal sintomatizado no desejo de ser analista.

Resta a pergunta: O que diferencia o desejo de ser analista — que não se esgota na análise — do desejo do analista, que sustenta a análise?

Ainda no Seminário 11, Lacan nos orienta: "Não há apenas o que o analista pretende, no caso, fazer de seu paciente. Há também o que o analista pretende que seu paciente faça dele" (1973, p. 145). Esta indica­ção é fundamental. Lacan, irônico, procede citando os exemplos de Abraham, que queria ser "uma mãe completa", e de Ferenczi, uma espécie de "filho-pai". Já Nünberg se apresentaria como um "árbitro dos poderes de vida e morte onde não se pode deixar de ver a aspiração a uma posição divina". Podemos acrescentar Winnicott com seus pendores

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a ser uma mãe suficientemente boa. E, ainda, os psicólogos do ego como representantes da realidade à qual o ego aspira.

E Freud? Seu desejo era a própria causa psicanalítica que engendrava, e através da qual se fez analisar, tomando como exemplo seus próprios sonhos, seus sintomas e sua questão sobre a mulher provocada pelo enigma que lhe lançavam suas histéricas.*

Todo o esforço de Lacan vai na direção de desconstruir a idéia de que existem dois desejos, ou dois sujeitos. Na psicanálise, o único sujeito em questão é o analisando como o sujeito do inconsciente. Entretanto, o próprio conceito de 'sujeito suposto saber' , ainda que diferenciado da pessoa do analista, pode dar a idéia de que sejam duas qualidades distin­tas de sujeito. Não é bem assim. O 'sujeito suposto saber' é, antes de tudo, um operador da significação, ao ser 'suposto' pelo analisando na via da transferência. O trabalho de construção de um saber na análise se torna possível.

O problema é que, de saber em saber, a análise se torna infindável e pode se prolongar numa espécie de idílio amoroso onde a paixão pela ignorância se alimenta de um querer saber sempre mais sobre o saber do analista. O desejo do analista, portanto, não deve se situar exclusivamen­te na direção da busca de saber. O amor à verdade não é o amor ao saber. Deve, antes, sustentar uma disjunção entre verdade e saber. Se uma análise bastasse pelo saber, Freud não teria ido tão longe na sua teoria das pulsões nem teria escrito "Análise terminável e interminável".

A relação do saber com a verdade em psicanálise tem uma particula­ridade. A verdade que se produz pelo saber não é a verdade bem enten­dida, esclarecida e sistematizada no conhecimento. Sua produção se dá antes pelo erro como lapso, pela suspensão de um dito, pela idéia ou cena

Nessa relação peculiar de Freud com suas pacientes histéricas, que o guiavam na invenção da psicanálise dizendo o que ele tinha que fazer para tratá-las, o desejo de Freud se dirige ao enigma da mulher, que ele sustenta, identificado à posição histérica, com a pergunta: "o que quer a mulher?" Seu desejo foi na direção da psicanálise que iria defender e transmitir até a sua morte. Isto o leva em direção ao limite do analisável que formulou como a "recusa da feminilida­de". Até onde Freud foi o pai impotente ou acolhedor, o austero cientista, ou o sedutor-seduzido? Remeto o leitor aos trabalhos de John Forrester (op.cit, parte I — "A tentação de Sigmund Freud", que dá uma visão interessante da complexa rede de relações de Freud com as mulheres, pacientes ou não), e de Serge André, O que quer uma mulher? (que faz uma análise dessa questão a partir da ótica lacaniana).

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que irrompe na fala, enfim, pelo que se repete. Essa experiência da verdade o sujeito só pode ter na análise, porque lá está o analista para apontá-la. A verdade se atrela ao saber pela significação produzida no contexto da fala. Lacan a concebe em relação ao saber como não-toda, meio-dita.

Em suma, o desejo do analista não é o desejo de um sujeito, não se reduz à pulsão de saber, não é uma forma de gozo masoquista — o analista gozando de ser objeto — nem gozo sádico — o analista gozando de seu poder. Ou seja, não é uma modalidade da pulsão.*

Ao final do Seminário 77, Lacan lança uma fórmula enigmática e instigante. Em suas palavras:

"O desejo do analista não é um desejo puro. E um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado ao signifi­cante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez em posição de se assujeitar a ele. Somente aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque está fora dos limites da lei, só onde ele pode viver" (1973, p. 248).

O que podemos entender disso? Primeiramente, o contexto histórico deste seminário é bem conhecido

no meio psicanalítico. Foi realizado em 1964, ano que se segue ao desligamento de Lacan da International Psychoanalytical Association (IPA) e também quando é fundada a École Freudienne de Paris, um marco da 'era lacaniana' na psicanálise francesa. E também um momento de virada teórica em que Lacan deixa de ser um comentador de Freud e crítico virulento dos pós-freudianos para avançar seus conceitos com ênfase no real como limite do simbólico. Até então, o simbólico tinha sua primazia sobre o imaginário, e o real oscilava entre o inefável e a reali­dade material.

Nesse contexto, a "diferença absoluta" adquire toda sua força, tanto na política da psicanálise lacaniana, quanto na formulação do real. Assim como "fora dos limites da lei" é o único lugar possível para o psicanalista que quer manter vivo seu ofício fora da hegemonia da IPA. Mais do que isso, ele quer manter vivo o "significante primordial" ao qual "se assu-jeita" que é a psicanálise. Esta é uma primeira leitura possível do texto de Lacan.

O que nos interessa dessa história?

O trabalho de Serge Cottet, Freud e o desejo do analista, trata detalhadamente do tema.

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Novos contextos se produziram nos últimos 30 anos. A 'horda' laca-niana se organizou, sofreu dissenções, instituiu e destituiu coiporações, conquistou uma certa hegemonia na França e na América do Sul. Essa política permanece tendo seus desdobramentos e devemos acompanhá-los atentos a seus efeitos. Mas esta não é a questão.

Devemos recontextuaiizar o enigmático texto de Lacan, na perspec­tiva da função social e clínica do psicanalista.

Sobre a função social, o desejo de "diferença absoluta" não pode ser entendido pela via do "narcisismo das pequenas diferenças". A diferença em jogo remete a um hiato, um intervalo, um vazio entre positividades, não é comparável. Não se trata de 'ser diferente de' , e sim de produzir diferença. Este é o sentido que podemos dar ao 'absoluto'. O psicanalis­ta, portanto, não se impõe com seu ego. Isto não quer dizer que a pessoa do analista seja pulverizada, despida de vaidades e quereres. A corpora­ção de analistas é prova de que somos demasiadamente humanos e corporativos. Mas é preciso que a lição da experiência analítica seja aprendida nessa dimensão social.

O psicanalista está assujeitado à psicanálise como "significante pri­mordial". Novamente, a pessoa do analista não se resume a essa sujeição. Caso contrário, seria um estigma e não uma identificação. A questão é suportar essa designação de psicanalista sem que isso diga alguma coisa de consistente sobre seu ofício. Afinal de contas, o imaginário popular, mais ou menos embebido na cultura psicanalítica, é pródigo em defini­ções, algumas até preocupantes, como a atribuição de um certo dom de telepatia ou de juiz das palavras (tudo o que você disser pode ser usado contra você). A qualidade deste significante primordial é a de resistir à significação. Poderíamos melhor designá-lo como significante irredutí­vel, que aponta mais para uma abolição da significação do que para uma significação ou uma causa primeira. A causa está desde sempnj perdida. Mas esse significante sempre causa espécie. Psicanalista?

Sobre a função clínica, a que mais nos interessa, a "diferença abso­luta" tem o mesmo sentido definido acima, só que visando a efeitos específicos. Para o analista, não se colar como objeto parcial em qual­quer uma das 'séries psíquicas' a que foi remetido pela transferência é fazer diferença. Entretanto, é fundamental que possa 'fazer semblante' (faire semblanf), 'aparecer como' o analisando o designa, numa aparên­cia suficientemente convincente para permitir que a transferência se instale. Porém não se enganando quanto à sua função. O semblante que sustenta na análise é o do objeto que falta: o analista se subtrai para

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Por uma psicanálise possível I 167

causar desejo como efeito desta subtração. Lacan o nomeia de 'objeto a'. Esta é a diferença. Só assim o analista pode remeter o sujeito adiante no caminho de sua fala, até que ele possa se desfazer da 'viscosidade' que tenta fixar o analista como seu objeto.

Assujeitado ao significante primordial 'psicanalista', o analista insta­la a diferença a cada intervenção e ao longo do percurso, deslocando-se do lugar que é chamado a ocupar pelo analisando. Só assim pode tam­bém deslocá-lo de sua demanda para conduzi-lo na direção de um 'des­tino em aberto', sabendo que algo está 'selado'. Este pode ser o sentido que toma o termo 'assujeitado' do lado do analisando.

Lacan, entretanto, atribui uma significação ao significante primor­dial: o amor sem limite. E é sem limite porque se situa fora da lei. Um amor bandido? Ou um amor sem demanda? Se amar é uma forma de querer ser amado, de demandar amor, seria esse amor algo fora do limite da castração?

Sabemos que não cabe ao analista esperar ser amado pelo analisando como reconhecimento do bem que lhe fez. Quando isto acontece, o analisando freqüentemente responde na transferência com sua recusa em 'melhorar' , frustrando o analista. Portanto, a demanda que este veicula não pode ser de amor. Ao analista cabe demandar a presença do anali­sando com suas palavras — no consultório deve pedir que lhe pague por isso, no ambulatório deve localizar como o sujeito paga para estar lá.

O amor à verdade indicado por Freud no que se refere ao saber tem seu correlato no 'amor sem limite' indicado por Lacan no que se refere ao desejo do analista que, a rigor, nada demanda além do que lhe cabe. Esta postura difere sutilmente da conhecida 'neutralidade benevolente'. O desejo de diferença não é ausência de desejo, a não ser no sentido do desejo pessoal. Não corresponde à neutralidade, assim como o amor srm limite não corresponde à benevolência, ainda que possamos ter atitud -s benevolentes para com nossos analisandos. A benevolência possível está em acolher sem ceder às demandas do sujeito.

O desejo de diferença incide sobre a significação. E o que permite desfazer sua fixidez remetendo a novas significações que, por sua vez, se desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas, causando desejo. O amor sem limite não espera nada, não é nem tolerante nem intolerante. E sem limite não por seu excesso, mas por não estar referido a um objeto. E um amor "para o qual não existe modelo na vida real". Só aí se pode ser psicanalista.

E quanto a viver? Navegar é preciso, viver é impreciso.

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2. Para concluir: o psicanalista que convém

Após ter percorrido um bom caminho na pesquisa e no trabalho univer­sitário lidando com os impasses e sucessos do atendimento ambulatorial — um mundo de vastas confusões e atendimentos imperfeitos —, discu­tindo o trabalho em equipe, as diferentes modalidades de tratamento e as possibilidades de um trabalho psicanalítico, evoquei a "bruxa metapsi­cologia" para caracterizar as condições mínimas que definem a psicaná­lise em sua diferença para com as psicoterapias em geral.

Para concluir, devo situar o psicanalista onde e como convém para levar adiante essa aventura fora de seu suposto habitat, o consultório privado.

O psicanalista que convém no serviço público não é o inconveniente: "uma espinha de peixe atravessada na garganta da instituição", como me disse um entrevistado. Também não é aquele que convence, "qui cort-vainc", para citar Lacan.* Em francês, con quer dizer otário, vainc, que vence. Nem o convaincu, o convencido, otário vencido. Também não é o conveniente como um ser dócil e agradável que esconde, reativo, sua arrogância. O psicanalista que convém, convive. E o faz através do jogo, nada fácil, da política institucional da qual está livre em seu consultório.

Conviver, 'viver com', é atravessar esse jogo em que o psicanalista faz de sua diferença uma especificidade e não uma especialidade. O psicanalista não é especial, é específico. Só assim ele convém.

Para praticar sua especificidade tem que ter clareza de seus propósi­tos, de seu métier, de seu ofício. Essa posição não é conquistada ao modo da guerra dos grandes generais, nem só através dos livros ou da escola. Estes são necessários para a construção do saber referencial indispensá­vel na formação, mas dispensável, posto entre parênteses, como material para a clínica. E a partir de sua própria trajetória de analisando a analista, em seu tempo próprio de elaboração, com avanços e recuos, que o psicanalista pode convir. Se, ao lidar com os pacientes, deve acolher sem ceder, sua convivência no trabalho na instituição e na equipe se mantém sob esta mesma perspectiva: acolhe demandas e encaminhamentos a ele dirigidos sem ceder de sua especificidade, sabendo que lida com outras

Cito um trecho do Séminaire, livre 20 — Encore, em que Lacan utiliza esse trocadilho para referir-se à psicanálise: "Je m'y suis refusé à partir de l'idée que les gens qui ne veulent pas de moi, moi, je ne cherche pas à les convaincre. Il ne faut pas convaincre. Le propre de la psychanalyse, c 'est de ne pas vaincre, con ou pas" (p. 50).

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especificidades e com veleidades às quais também está sujeito. É preciso saber recuar. Nem tão depressa que pareça covardia, nem tão devagar que pareça provocação (ou vice-versa), como nos ensina Pinheiro Machado. Este é um tempo que não combina com a hesitação.

Em sua diferença, o analista se subtrai mas não se retira do campo dc ação no trabalho em equipe. Se não houver uma equipe, trabalha-se na solidão. Esta não é estranha ao psicanalista, mas não é desejável no serviço público.

O psicanalista lida com os sintomas de modo peculiar. Sabe que eles são portadores de uma certa verdade não sabida. E sabe que não lhe cabe ser o 'sabido'. Isto vale tanto para o trabalho em equipe quanto para o trabalho clínico.

No primeiro caso, lida com colegas de trabalho numa relação entre iguais. Em princípio, todos estão empenhados em atender, cuidar, diag­nosticar, tratar e, last but not least, curar. O sintoma está, portanto, bem instalado sustentando posições que podem chegar a ser irredutíveis em suas divergências. E preciso conviver num tempo de espera e pressa, sem levar a hesitação tão longe a ponto de perder a vez.

No segundo caso, está mais livre para trabalhar. Mas sabe que ofere­cer 'psicanálise' como uma modalidade de tratamento inserida na 'lista de ofertas' pode ser uma armadilha. O que é essa tal de 'psicanálise'? Se é para 'conversar' sobre o sintoma, já é um ponto de partida.

Vimos, através de alguns depoimentos, que um bom lugar para o psicanalista pode ser à sombra, sem maiores explicações salvo o neces­sário para trabalhar. A diferença, em seu sentido negativo, é uma boa posição.

Uma análise só acontece através da transferência, então é preciso saber fazer a oferta e esperar. Pode ser no coletivo dos grupos, nos pedidos particulares, nas diferentes modalidades de atendimento que acolhem as demandas mais variadas. A demanda de análise não é neces­sariamente explícita. Na maioria das vezes, como vimos em vários exem­plos, demanda-se uma ajuda, um alívio para o sofrimento.

E importante que o psicanalista saiba manejar várias linguagens, diferentes vocabulários com os quais diferentes sujeitos se apresentam. Não é preciso compreender, basta ficar atento ao encadeamento da fala, localizando a demanda para operar através dela. O sujeito pode ser explícito em sua demanda e, nem por isso, menos enigmático.

Um sujeito chega ao ambulatório com o seguinte pedido: "quero saber o dia e a hora do meu trauma". A psicóloga que o atende, apressadamente responde: "isso eu não tenho como te dizer". Ele vai embora sem hesitar.

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Um outro chega pedindo um remédio para o doutor. O 'doutor' no caso é um psicólogo que diz que esta não é a sua função. Novamente, o sujeito se retira.

No primeiro exemplo, o enigma estava lançado. No segundo, muito comum, a oferta se transformou numa recusa. Ambos os profissionais apresentaram um 'não' impossível de suportar.

Uma senhora chega ao ambulatório, vinda de outra cidade, convenci­da de que sua 'doença' tem um nome: síndrome do pânico. Soube que havia uma equipe que tratava disso e se mostrou relutante em aceitar qualquer argumento que a dissuadisse desta idéia. Entretanto, dizia que precisava conversar. A psicóloga, dividida entre encaminhar e sustentar a 'conversa', prolongou o tempo sem convicção do que fazia correndo o risco de esvaziar a segunda demanda que vinha lateralmente. Muitas vezes é preciso saber fazer um encaminhamento e oferecer um acompa­nhamento, uma proposta de retorno para manter a 'conversa' c avaliar os efeitos. Isto é conviver.

Essa convivência só pode ser eficaz através da clínica onde o psica­nalista pode fazer sua oferta a partir dos diferentes dispositivos de trata­mento e acolhida vigentes nos diferentes serviços.

Vários exemplos foram apresentados e comentados no decorrer deste trabalho. As possibilidades de produzir as condições mínimas para que se estabeleça um trabalho psicanalítico são muito variadas. Podem ocor­rer nos chamados grupos de recepção ou triagem, ou através de encami­nhamentos — muitas vezes apressados — de outros profissionais, ou de uma procura 'espontânea'. Não há como prever. Trabalha-se sobre os efeitos, ou melhor, como disse uma entrevistada: "trabalhamos sobre os restos". Trabalha-se sobre o que resta das demandas, das outras modali­dades de tratamento, do que ficou sem resposta. Esta é a diferença que diz respeito ao psicanalista.

A atuação do psicanalista em determinada instituição está, de certo modo, condicionada a uma série de fatores como: estrutura do serviço (hospitalar, psiquiátrico, universitário, estritamente ambulatorial); estru­tura do trabalho clínico (equipes multiprofissionais, serviços comparti­mentados por especialidades, ausência de trabalho em equipe); estrutura da política de assistência (rede de serviços na área, projetos sociais de habitação e trabalho no caso de pacientes graves etc.) que podem ser mais ou menos favoráveis ao trabalho psicanalítico. E preciso avaliá-los c situar-se em relação às prioridades que propõem.

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O trabalho ambulatorial é, sem dúvida, o campo privilegiado. O tipo de clientela que chega ao ambulatório se define principalmente pelo tipo de instituição e pela variedade de serviços oferecidos.

Para sistematizar essa variedade, vamos dividir as instituições, grosso modo, em três tipos: o hospital geral; o hospital psiquiátrico; e os centros e postos de saúde.

O hospital geral recebe uma clientela que sofre do corpo e deposita todas as suas esperanças no saber médico. Mais do que nunca, o psica­nalista trabalha com o que resta, e ainda tem que se haver com o 'sinto­ma' dos médicos.

O hospital psiquiátrico recebe uma clientela que sofre da vida, na maioria das vezes, de modo insuportável. São os pacientes que apresen­tam "graves distúrbios psíquicos", conforme a definição das atuais polí­ticas de saúde mental. O ambulatório aí se apresenta insuficiente para o tratamento de boa parte dessa clientela. A convivência pela clínica se complexifica. Por um lado, há uma gama variada dc profissionais e dispositivos de tratamento e acolhida, mais ou menos próximos do refe­rencial da psicanálise, que intervêm diretamente sobre o paciente. Em conseqüência disso, o paciente estabelece 'transferências' a "um espectro imaginário muito amplo da instituição",* seja na enfermaria, no hospi-tal-dia, nas oficinas, nos grupos com diferentes finalidades etc.

Por outro lado, quando não há essa variedade de dispositivos, o tratamento desses pacientes se reduz à internação e medicação, deixando um peso muito maior sobre os ombros do psicanalista que tem que lidar com a enorme dificuldade de estabelecer a transferência sob condições muito precárias.

No hospital psiquiátrico, o psicanalista convive com situações agu­das, de emergência, que não são as mais favoráveis para o trabalho analítico. Para elaborar é preciso um tempo que não é o da crise. Seu trabalho, portanto, é de oferta e convívio, tanto com a equipe quanto com o sujeito, num tempo de espera até que a transferência lhe possa ser endereçada mais particularmente.

A citação foi extraída do interessante texto da psicanalista Márcia Montezuma, "De uma questão preliminar a todo tratamento possível na instituição psiquiátri­ca", a partir de sua experiência no Hospital Galba Velloso em Belo Horizonte, MG. Este texto foi apresentado no Seminário sobre o Imaginário na Psicose, realizado pela Escola Brasileira de Psicanálise-seção Rio, no Instituto de Psi­quiatria (IPUB-UFRJ) em 1994.

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Uma psicanalista vinculada a um hospital psiquiátrico esboça uma proposta interessante para a função do ambulatório como "porta de saída" do hospital para os pacientes graves que já adquiriram um certo grau de autonomia. Em suas palavras:

"Os vínculos são múltiplos na instituição, o ambulatório já requer um endereçamento da transferência para uma pessoa. Os pacientes deman­dam outros dispositivos da instituição. Para fazer um vínculo com uma pessoa é preciso que o paciente possa, ele próprio, ter uma certa autono­mia social para se dirigir a alguém e falar de sua vida. O trabalho da porta de entrada não deixa de ter a perspectiva da internação, eu me preocupo com a porta de saída nas estruturas intermediárias. O ambulatório pode ser a referência última de sustentação para esses pacientes que já têm um grau de autonomia, dirigindo sua demanda a uma pessoa que possa acompanhá-los nessa passagem para o trabalho, o lar protegido ou a família.

"Eu tenho um caso de um psicótico que tem um delírio estruturado em torno de salvar o mundo. O desencadeador teria sido ele ter visto o pai morto sem ter chegado a tempo de salvá-lo. Enquanto ele esteve no hospital internado e depois no hospital-dia tentando 'salvar' os loucos, ele enlouquecia junto. Eu torço para ele não ficar só nas oficinas. Ele agora começou a participar do grupo 'pela Vidda', vamos ver o que sai daí."

Os centros e postos de saúde recebem uma clientela que sofre do corpo e da vida mas suporta o ir e vir cotidiano para se tratar no ambu­latório. Muitas vezes são convidados a tratar daquilo de que nem sofrem. E o caso da maioria dos dispositivos de atenção primária com seu caráter pro filático-pedagógico. No campo da medicina pode ser útil. No campo da 'psicologia' seus efeitos são duvidosos. O psicanalista, por trabalhar na contramão da prevenção, deve estar atento para as 'emergências', isto é, para o que pode emergir como demanda de fala a partir desses dispo­sitivos. Fora isso, há as demandas diretas, 'espontâneas', e os encami­nhamentos de outros especialistas. A clientela é eminentemente de sujei­tos neuróticos, mas nos centros onde há um serviço de psiquiatria existe uma demanda de tratamento ambulatorial de sujeitos psicóticos.

Obtive alguns relatos de psicólogos e psicanalistas que recebem es­ses pacientes no ambulatório por um longo tempo. Uma psicanalista comenta:

"Eu tenho vários pacientes psicóticos que quando ficam é por muito tempo, mais até do que os neuróticos que têm mais rotatividade. Dizem

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que psicótico não se trata. Onde trabalho é o contrário. Lá só tem ambu­latório, é um serviço grande e tem muita demanda para a psiquiatria. Eles organizam a vida afetiva, de trabalho, querem ver como são as relações na família porque não conseguem dar conta de quase nada.

"Tem um rapaz que atendo que conseguiu construir um espaço de trabalho, é servente, faz biscate, a questão dele é amorosa... é psicótico de livro, esquizofrênico, está no serviço há muito tempo, comigo está há um ano. Tem uns que já estão há uns três ou quatro anos. Quando eles entram, não vão embora. Eles aderem, ficam mais do que os neuróticos. Tem um outro que já fez grupo na psiquiatria por uns quatro anos e veio recentemente para mim porque o psiquiatra do grupo se aposentou. Ele tem uma questão interessante que está coincidindo com a mudança no tratamento. Ele sempre se envolveu em lutas coletivas pela via da mili­tância; agora está no dilema de ter que arrumar uma atividade por conta própria, na 'livre empresa', e isto contradiz radicalmente sua postura; ele diz que o pai ganhou a batalha porque era um empresário bem sucedido. Ele está muito deprimido e diz que a única coisa que faz por si próprio é o tratamento, assim mesmo ele precisa afirmar que beneficia quem está com ele."

Sobre este último caso, ao contrário do que comumente se acredita, a passagem do tratamento em grupo para o individual, 'para si próprio', é um passo arriscado. Podemos supor que o grupo funcionou como suplencia da função paterna sustentando uma identificação imaginária ao coletivo, ao bem comum, à militância. Agora, o trabalho 'para si próprio' pode ser perturbador ao ponto de desencadear um despedaçamento da unidade imaginária invadida pelo gozo do Outro vencedor: o pai 'capi­talista'. O psicanalista, aqui, tem uma tarefa extremamente delicada. Só lhe resta apostar na possibilidade de barrar esse Outro para que o sujeito possa se ver minimamente 'livre em sua empresa'.

Assim como o ambulatório é o campo privilegiado, o atendimento individual é o que pode oferecer melhores condições para a instalação do dispositivo psicanalítico. Em que consiste este dispositivo? Resumindo numa fórmula: consiste na elaboração como trabalho analítico, pela via da repetição, que se dá na transferência como instalação do 'sujeito suposto saber' por onde incide a ação do analista sustentada pelo desejo de diferença.

Entretanto, esta não é uma condição irredutível. No serviço público existem várias propostas de atendimento em grupos que não podem ser desconsideradas. Atenho-me aos chamados 'grupos terapêuticos' ou

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'grupos de fala' que tendem a oferecer algo que corresponde ao trabalho analítico.

Se entendemos que a transferência é condição fundamental para o trabalho analítico, o que deve ser problematizado é o conceito de 'sujeito suposto saber' que preside sua instalação. Isso pode acontecer nos gru­pos? E importante que não se confunda este conceito com a idéia disse­minada de que o 'doutor' é aquele que sabe.

"Hoje o grupo foi bom. Gostei muito da palestra da doutora", disse um participante de um grupo recém-formado no ambulatório. Como entender isso? Não tenho informação sobre o contexto desta fala, mas o que parece indicar é que a participação em um grupo pode ser interes­sante, instrutiva sobre a vida etc. Aqui não temos qualquer indício do 'sujeito suposto saber'.

Em um grupo de fala composto só por mulheres, a psicóloga que coordena o grupo conta um caso curioso:

"Ela era babá, vinha sempre na hora certa e passou uns três meses sem abrir a boca; dizia 'oi ' e seu nome e mais nada. Até que um dia ela me disse: 'não venho mais porque eu não falo, estou me sentindo mal com isso'. Eu disse a ela que ninguém era obrigado a falar, que ela podia vir sem essa obrigação e que ela retornasse e falasse sobre essa dificul­dade. Eu não sabia no que isso ia dar. Ela voltou e disse: 'resolvi que venho'. Ela convenceu a patroa a dar folga a ela no dia do grupo e colocou isso como condição dela continuar trabalhando lá. Mais adiante ela conta: 'no meu grupo não vou deixar de ir de jeito nenhum'. A partir daquele dia ela começou a falar aos poucos, não tanto da história dela, não era aquela coisa de se queixar; ela fazia observações sobre a vida dela e sobre o que as pessoas falavam, e tinha o maior efeito sobre elas; ela nunca falava muito mas dizia coisas que você não acredita que pudessem partir dela. Lá pelas tantas pedi que cada uma fizesse um trabalho sobre o que aquele grupo representava para elas. Ela fez um poema belíssimo, foi emocionante. Quando ela saiu, as pessoas sentiram muito; ela mandou uma carta e volta e meia manda recado dizendo que assim que puder ela volta. Ela teve que sair porque a patroa teve proble­mas e não podia mais liberá-la."

Infelizmente não obtive exemplos da fala dessa moça. O que vale ressaltar neste exemplo é o movimento peculiar que fez passando a falar quando a palavra é liberada, implicando-se no grupo do qual pretendia sair — seu protesto foi um apelo decisivo para ser reconhecida —, marcando sua posição frente à patroa e iniciando um trabalho de elabo­ração. E, ainda, sua fala produz efeitos sobre as falas de outras mulheres.

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O que podemos hipotetizar a partir daí é que no coletivo dos grupos tanto a elaboração quanto a suposição de saber podem circular entre os parti­cipantes. Isto é diferente das identificações imaginárias que se dão como laços afetivos e sociais que muitas vezes são confundidas com a transfe­rência. A função da 'coordenadora', a quem é atribuída a última palavra, deve ser a de operar como facultador dessa circulação em que determi­nadas falas possam produzir efeitos sobre outras provocando a elabora­ção. A função do analista, portanto, é a de ratificar ou retificar essas produções sempre que for solicitado em seu lugar de diferença.

Essa formulação, contudo, é ainda incipiente e não consiste no obje­tivo central deste trabalho, mas vale a indicação para avançar novas considerações sobre o trabalho analítico em grupos.

Uma vez feitas as indicações para instalar o dispositivo psicanalítico e para sustentar o trabalho de elaboração, resta discutir o ponto mais problemático: o final da análise, a saída.

No decorrer da pesquisa não obtive qualquer exemplo que caracteri­zasse um final dc análise. Eis um fato curioso. Em alguns casos, o entrevistado estava há no máximo dois anos no serviço ou havia se deslocado dc uma instituição para outra. Em outros, o percurso do entre­vistado na psicanálise era muito recente. Em ambos os casos era difícil avaliai" a questão do fim da análise. De um modo geral, os depoimentos assinalavam que havia apenas interrupções. Destaco três exemplos para­digmáticos:

"Muitos começam, mas a maioria não dá continuidade". "Eles interrompem muito, não levam a análise adiante. Quando vol­

tam parece que está tudo desfeito e a queixa permanece." "Eles vão e voltam. Teve um que depois que decidiu sair, apareceu

por lá dizendo 'a minha psicóloga é fulana... Eu melhorei muito, o dia que eu precisar cu volto nela'. Eu não poderia dizer que essa transferên­cia não está elaborada, mas ainda há uma ligação muito intensa do tipo: 'se eu quiser, o analista está lá'."

O que pensar destes exemplos? A questão remete ao critério de cura que prevalece.

No primeiro exemplo, temos que distinguir entre o que é esperado pelo analista e o que pode ser tolerado como definição de cura no trabalho analítico em ambulatório. Retomemos a indicação feita por Lacan sobre não se levar uma análise muito longe. Devemos levá-la o mais perto possível do que seja considerado 'satisfatório' para o sujeito.

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e ratificar sua posição. A satisfação é sempre parcial, e no ambulató­rio parece que esta parcialidade é confirmada, muitas vezes, fora do limite de tolerância dos analistas. Este é um ponto que deve ser mais pesquisado.

No segundo exemplo, se a queixa permanece não há dúvida que o trabalho analítico não terminou. Eu diria que pode não ter sequer come­çado. Uma análise só tem chance de acabar porque, de fato, começou. Esta tautologia não é gratuita se consideramos que não basta freqüentar o 'psicólogo' e conversar para se afirmar que uma análise começou.

No terceiro exemplo, o relato insinua que houve um final 'satisfató­rio' para o sujeito. A questão é que o analista não teria sido destituído de sua função de 'sujeito suposto saber', permanecendo disponível para um retorno. Não houve a almejada separação que faz do analista um 'resto ' . Mas será que a frase "um dia, se eu precisar eu volto" não indica que houve uma separação possível? Novamente, revela-se a dimensão parcial da cura. A questão é se devemos esperar algo diferente disto. Sobre a frase, prefiro pensar que mostra, finalmente, que se pode fazer um bom trabalho. E, enquanto realmente houver essa disponibilidade, constatada pelo ex-analisando agradecido, ainda temos algum futuro.

No consultório não encontramos tamanha riqueza e variedade de possibilidades para o trabalho psicanalítico. O consultório é uma espécie de carta marcada. Porém, há a dura e cruel realidade da desvalorização dos serviços públicos de saúde. Os salários são mesquinhos, a burocracia é mesquinha, e nem sempre contamos com profissionais dispostos a enfrentar esse desafio. O que fazer?

A primeira medida, que diz respeito à sobrevivência, é de não restrin­gir o trabalho ao salário. Há vários meios de fazer isso. O consultório aí tem sua contrapartida. É importante que haja uma outra fonte de renda um pouco mais satisfatória para escapar à perversão gerada no serviço público que produz a figura do 'funcionário burocrático', aquele que 'finge que trabalha porque o Estado finge que paga'.

A segunda medida diz respeito à manutenção do convívio pela clíni­ca. E preciso incentivar as vias próprias para isso como os centros de estudo e as sessões clínicas como lugares de discussão e avaliação do trabalho. Assim como é importante que no cotidiano haja um tempo para as minúcias da clínica num espaço de maior intimidade entre os profis­sionais. No entanto, sabemos que o tempo é escasso e as dificuldades são inúmeras. Considerando isto, há a possibilidade de se estender a discus-

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são da clínica para outros lugares para dar suporte ao trabalho. O psica­nalista, em geral, é ligado a algum grupo ou corporação de psicanalistas à qual se refere para estudar, ensinar, discutir a clínica, conviver, enfim, para manter viva a transmissão da psicanálise. E da maior importância que haja um intercâmbio entre esses grupos privados e os serviços da rede pública com fins a valorizar o trabalho psicanalítico nos ambulató­rios. Entretanto, o objetivo principal não deve ser de formar novas corporações enquistadas nas instituições públicas. Procedendo deste modo, estaria-se fomentando o "narcisismo das pequenas diferenças" tão praticado no corporativismo e tão avesso à psicanálise. Deve-se visar a acompanhar, discutir e, mesmo, elaborar essa experiência clínica que nos lança tantos desafios novos. Eis a contribuição que se pode dar.

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