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Anais da Semana de Pedagogia da UEM ISSN Online: 2316-9435 XXII Semana de Pedagogia X Encontro de Pesquisa em Educação 05 a 08 de Julho de 2016 1 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DIRITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL BETT, Gabriela de Conto [email protected] Universidade Estadual de Maringá Psicologia da Educação INTRODUÇÃO Trabalhando como psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná- TJ/PR, tenho me deparado com casos de crianças e adolescentes que iniciaram sua jornada no sistema de justiça, quando encaminhadas ao Conselho Tutelar - órgão permanente e autônomo, não jurisdicional - encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, como previsto no art. 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (Lei Federal n.8.069/90). Tais encaminhamentos, em boa parte, têm na relação com a educação sua origem, seja pela não efetivação do direito à educação, traduzido em faltas escolares, seja pelas queixas da escola feitas aquele órgão, sobre crianças e adolescentes. A escola parece ser peça central na seara dos direitos de crianças e adolescentes, seja pela averiguação da violação do direito, que lhe é diretamente relacionado, como o direito à educação por não haver matrícula e frequência escolar, ou mesmo por perceber a violação de outros direitos, já que as crianças e adolescentes que frequentam a escola passam boa parte do dia nesse local e estabelecem relações de proximidade com os atores do cotidiano escolar. Estudos têm demonstrado que as queixas que se apresentam aos conselhos tutelares, referem-se, em especial, à evasão escolar, devido às faltas constantes dos alunos, bem como a problemas como rebeldia, indisciplina e outros comportamentos tidos como inadequados, além de casos de dificuldades de aprendizagem. É dessa forma, portanto, que tais problemáticas têm se apresentado à justiça da infância e juventude (Conselho tutelar, Ministério Público e Poder Judiciário), bem como a outros setores, por exemplo, a Assistência Social, na ânsia pela efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, previstos no ECA.

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Anais da

Semana de Pedagogia da UEM ISSN Online: 2316-9435

XXII Semana de Pedagogia

X Encontro de Pesquisa em Educação

05 a 08 de Julho de 2016

1

O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DIRITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:

REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

BETT, Gabriela de Conto

[email protected]

Universidade Estadual de Maringá

Psicologia da Educação

INTRODUÇÃO

Trabalhando como psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná- TJ/PR,

tenho me deparado com casos de crianças e adolescentes que iniciaram sua jornada no sistema

de justiça, quando encaminhadas ao Conselho Tutelar - órgão permanente e autônomo, não

jurisdicional - encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança

e do adolescente, como previsto no art. 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA

(Lei Federal n.8.069/90). Tais encaminhamentos, em boa parte, têm na relação com a

educação sua origem, seja pela não efetivação do direito à educação, traduzido em faltas

escolares, seja pelas queixas da escola feitas aquele órgão, sobre crianças e adolescentes. A

escola parece ser peça central na seara dos direitos de crianças e adolescentes, seja pela

averiguação da violação do direito, que lhe é diretamente relacionado, como o direito à

educação por não haver matrícula e frequência escolar, ou mesmo por perceber a violação de

outros direitos, já que as crianças e adolescentes que frequentam a escola passam boa parte do

dia nesse local e estabelecem relações de proximidade com os atores do cotidiano escolar.

Estudos têm demonstrado que as queixas que se apresentam aos conselhos tutelares,

referem-se, em especial, à evasão escolar, devido às faltas constantes dos alunos, bem como a

problemas como rebeldia, indisciplina e outros comportamentos tidos como inadequados,

além de casos de dificuldades de aprendizagem. É dessa forma, portanto, que tais

problemáticas têm se apresentado à justiça da infância e juventude (Conselho tutelar,

Ministério Público e Poder Judiciário), bem como a outros setores, por exemplo, a Assistência

Social, na ânsia pela efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente,

previstos no ECA.

Universidade Estadual de Maringá, 05 a 08 de julho de 2016.

Diante do exposto, este artigo apresenta uma revisão bibliográfica acerca da relação

entre direito da criança e do adolescente e direito à educação, e sobre como as legislações

referentes a essas áreas tem se entrecruzado por meio do acionamento do Conselho Tutelar,

dispositivo que tem-nas vinculado na realidade. A partir da Psicologia Histórico-Cultural, que

tem como princípio filosófico e metodológico o materialismo histórico e dialético, o objetivo

central deste trabalho é reconhecer os enlaces entre educação e justiça a partir da história das

legislações e das queixas levadas aos conselhos tutelares (real concreto), para então, traçar um

esboço de reflexão sobre esses fenômenos.

O DIREITO À EDUCAÇÃO E O DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A ideia do ensino como direito de todos e dever do Estado surge na modernidade, a

partir do século XVIII, associada ao surgimento da burguesia, da filosofia racionalista e

individualista e do Estado Nacional (HORTA, 2013). A Declaração Universal dos Direitos

Humanos, de 1948, reafirma essas premissas, acrescentando que a educação elementar deve

ser gratuita e obrigatória, o que é ratificado na Declaração dos Direitos da Criança, aprovada

pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1959 (HORTA, 2013).

Em um breve levantamento histórico, tem-se que, no Brasil, desde a década de 30, a

educação já era defendida por alguns juristas como direito público subjetivo, mas, apenas

recentemente essa perspectiva é, de fato, adotada, o que explica o fato de que, mesmo

reconhecida como um direito desde o período imperialista, apenas a partir da década de 1960

é que se define a responsabilidade do Estado para a garantia do referido direito. Ocorre que,

historicamente, ainda que a educação fosse reconhecida como direito na legislação brasileira,

a desigualdade social não possibilitava o real acesso de todos, além de não haver a quem

responsabilizar pelo não cumprimento da lei, o que pode ser observado desde as várias

constituições até a emenda constitucional de 1969, quando, pela primeira vez, a educação

aparece como um dever do Estado.

Não bastava, portanto, a garantia do direito na legislação. Era necessário o

estabelecimento de critérios para o seu cumprimento, dada a distância de acesso dos cidadãos

à justiça (SANTOS, 1989 apud HORTA, 2013). O referido acesso exigia a presença do

Estado, que se manteve distante da proteção dos direitos sociais até que assume tais

responsabilidades na Constituição Federal de 1988, motivo pelo qual se diz que é essa a

“constituição cidadã”.

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Outro aspecto a ser ressaltado sobre o direito à educação é que, diferentemente de

outros direitos sociais, está vinculado à obrigatoriedade escolar. O direito à educação,

obrigatória e gratuita, toma forma na Constituição Federal de 1934. O texto constitucional

trazia, em seu artigo 149, o direito à educação e o princípio da obrigatoriedade, em especial ao

ensino primário gratuito, além da tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao

primário. Essa legislação, porém, não previa a responsabilização criminal das autoridades

responsáveis em caso do não cumprimento do referido direito. Como exposto por Horta

(2013), por muito tempo, a obrigatoriedade fora uma imposição ao indivíduo e apenas

recentemente passou a se tratar como direito a ser garantido pelo Estado.

Sem muitas modificações nas constituições posteriores a de 1934, considera-se

importante, para fins dessa discussão, a emenda constitucional de 1969 e, por fim, a

Constituição Federal de 1988, a partir da qual a educação obrigatória e gratuita passa,

definitivamente, a ser dever do Estado, recuperando-se a concepção de educação como direito

público subjetivo. Em seu artigo 208, a Constituição de 1988 define que é dever do Estado a

garantia de ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para aqueles que não o

tiveram em idade própria, bem como esse direito se estende ao ensino médio (BRASIL,

1988).

Após a promulgação da Constituição de 1988, outros dois dispositivos legais

introduzem modificações no direito à educação, quais sejam, o Estatuto da Criança e do

Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996). No

que tange, mais especificamente aos direitos da criança e do adolescente, a educação passa a

constituir um dos 05 direitos fundamentais da criança e do adolescente, que servem como

base de toda essa legislação. Associando-se a LDB com o ECA, o ensino fundamental, com

duração mínima de oito anos, passa a ser obrigatório e gratuito, a partir dos sete anos de

idade, sendo que a obrigatoriedade do ensino fundamental diz respeito tanto aos pais como ao

poder público.

No caso da violação do direito à educação, ou qualquer outro direito fundamental da

criança e do adolescente, o Conselho Tutelar deverá ser acionado. Trata-se de um órgão

instituído a partir da ideia de participação da sociedade civil, que atende ao movimento de

redemocratização do país, em contraposição à lógica judicializante. De acordo com o ECA,

são atribuições do Conselho Tutelar, entre outras: atender as crianças e adolescentes, quando

houver violação de direitos ou cometimento de ato infracional; atender e aconselhar pais ou

responsável, aplicando as medidas previstas a esses; requisitar serviços públicos na área da

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saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança; representar junto à

autoridade judiciária, nos casos de cumprimento injustificado de suas deliberações;

encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou

penal contra os direitos da criança ou adolescente; encaminhar à autoridade judiciária os casos

de sua competência.

As medidas de proteção (art.98 do ECA) são aplicáveis sempre que os direitos

reconhecidos nessa lei forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do

Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou em razão da própria conduta

da criança/adolescente (BRASIL, 1990). Dentre as medidas de proteção, no art. 101 do ECA,

encontram-se: orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e frequência

obrigatórias em estabelecimento de ensino fundamental; inclusão em programa

comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de

tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras

e toxicômanos; acolhimento institucional; inclusão em programa de acolhimento familiar;

colocação em família substituta (BRASIL, 1990).

É de suma importante ressaltar as medidas aplicáveis aos pais ou responsáveis quando

da violação de direitos (art. 129 do ECA): I. encaminhamento a programa oficial ou

comunitário de proteção à família; II. inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio,

orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; III. Encaminhamento a tratamento

psicológico ou psiquiátrico; IV. Encaminhamento a cursos ou programas de orientação; V.

obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e

aproveitamento escolar; VI. Obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a

tratamento especializado; VII. Advertência; VIII. Perda da guarda; IX. Destituição da

tutela; X. Suspensão ou destituição do poder familiar.

Evidencia-se, portanto, que o direito da criança e do adolescente e o direito à educação

se entrecruzam, sendo o Conselho Tutelar um dos órgãos a quem se apresentam, com maior

contundência, as expressões do referido enlace. E, como abordar-se-á a seguir, a escola

parece estar assumindo papel central no acionamento do referido conselho, demonstrando

uma íntima relação entre escola e justiça, motivo pelo qual faz-se mister reconhecer como se

materializa a referida relação.

Universidade Estadual de Maringá, 05 a 08 de julho de 2016.

“DIREITOS VIOLADOS”, ESCOLA E CONSELHO TUTELAR: O QUE VEM

OCORRENDO?

Na seara da violação de direitos, recebe especial a evasão escolar. Como é a educação

um direito de todos, obrigatório, e de responsabilidade do Estado, cria-se um mecanismo para

seu combate. A evasão escolar, em especial, tem respaldo jurídico por meio do acionamento

do conselho tutelar, sempre que houver um número significativo de faltas das crianças ou que

se tenha conhecimento de que não fora matriculada. Todavia, a exemplo do que será discutido

adiante nesse artigo, a demanda dos conselhos tutelares se relaciona com a educação também

por outros motivos que indicam a reprodução de relações excludentes e desiguais, por meio

das quais culpabilizam-se alunos e seus familiares em um processo psicologizante que

evidencia um retrocesso na compreensão do fracasso escolar.

Como demonstra o estudo de Souza, Teixeira & Silva (2012), boa parte dos

encaminhamentos realizados ao conselho tutelar tinha relação com a escola. Os 374

prontuários analisados correspondiam a 34,8% da amostra total de prontuários. Destes, 28%

eram queixas escolares provenientes dos pais de alunos (73%), enquanto que (27%),

consistiam em encaminhamentos feitos diretamente pela escola. Dentre as demandas, a que

mais se destacou foi a solicitação de matrícula no Ensino Fundamental (37,7%), seguida de

solicitação de matrícula em Creche (36,2%), sendo tais solicitações feitas pelos usuários da

escola. Logo em seguida, estavam os problemas disciplinares (14,6%), de aprendizagem

(13,8%), ausência à escola (10%) e não especificados (7,7%).

O problema da evasão escolar não é novo, nem recente e já havia sido denunciado em

estudo clássico de Moyés Kessel, intitulado “A evasão escolar no ensino primário” de 1954,

no qual o autor aponta que, menos da metade dos alunos ingressados no primeiro ano, em

1945, cursou mais de um ano de escola (PATTO, 1993).

O estudo de Souza, Teixeira & Silva (2012), sobre os encaminhamentos realizados aos

conselhos tutelares, relacionados ao direito à educação, demonstrou que os casos de faltas

escolares são comunicados ao Conselho Tutelar. Os pais das crianças são notificados e busca-

se, pelo contato com a família, sua conscientização sobre a importância da educação e a volta

da criança às aulas, independentemente de qual seja a razão das faltas. Havendo algum

problema específico da classe da criança ou da escola, os conselheiros podem transferi-la de

estabelecimento de ensino. Averiguou-se que os conselhos tutelares recebem um significativo

número de pais, os quais apresentam encaminhamentos da escola, pelo fato de seus filhos

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possuírem em torno de vinte e cinco faltas injustificadas, o que acarreta a perda do direito à

vaga.

Nesse estudo, os conselheiros relataram receber denúncias sobre crianças que

frequentam séries finais do ensino fundamental, mas que não sabem escrever, além de se

depararem com: índices de repetência no Ensino Médio, devido ao trabalho; discriminação

dos alunos pobres e “fracos” por parte dos professores, o que contribuiria para a evasão

escolar; não aceitação de matrículas, devido a informações obtidas junto a escolas anteriores,

que tornam a imagem do adolescente negativa; incompreensão do cotidiano dos alunos e reais

necessidades das famílias por parte dos professores.

O que chama a atenção é que a escola não tem procurado o conselho tutelar apenas

para garantir um direito violado, mas também, para solucionar antigos problemas em uma

lógica penal e judicializante. Como apontado por Schneivar (2012), embora a ideia que

conduziu a proposta de criação do conselho tutelar tivesse sido a de criar um aparelho que

saísse do âmbito da "justiça", têm sido criados “pequenos tribunais institucionalizados ao

longo do país” (SCHNEIVAR, 2012, p. 48), sendo a escola a grande demandante de ações de

enquadramento dos sujeitos, por um conselho tutelar punitivo. Em estudo realizado pela

autora, observou-se que são encaminhados aos conselhos tutelares, pelas escolas, casos de

alunos que não respeitam regras e convenções escolares, desavenças entre alunos e

professores, ou mesmo, estudantes que “não aprendem”.

Na mesma direção, Fernandes e Aragão (2011), além de Souza, Teixeira & Silva

(2003) e Fernandes e Aragão (2011), demonstram que as queixas levadas pela escola aos

conselhos tutelares, geralmente, ocorrem quando uma criança ou adolescente “chama a

atenção” no contexto escolar. O alarme, por sua vez, só se faz porque a referida

criança/adolescente é faltante ou apresenta um comportamento tido como anormal ou

inadequado, como a indisciplina, rebeldia e dificuldade de aprendizagem. Daí, então, passa-se

a buscar as causas de tal falta e comportamento, sendo que esse processo quase que

invariavelmente tem como princípio e fim a psicologização e patologização da criança,

também, a culpabilização da “família desestruturada”, a partir de valores morais pautados no

modelo de família nuclear burguesa.

Na pesquisa de Fernandes & Aragão (2011), ao tratar dos encaminhamentos feitos aos

conselhos tutelares pela escola, e desse a outros órgãos/serviços, em todos os casos, crianças

chegaram até o atendimento psicológico porque seus problemas eram entendidos como de

ordem puramente psicológica, individual e/ou familiar e penal. Segundo os autores, os

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conselhos são formados por pessoas que possuem conhecimentos a partir dos quais os alunos

são culpados pelo fracasso escolar; ademais, os discursos sobre a família "estruturada" e

aquela “desestruturada” têm perpassado por todos os espaços. (FERNANDES & ARAGÃO,

2011).

Há, portanto, um enlace, por vezes confuso, entre a violação de direitos, que deve

merecer atenção do conselho tutelar, e problemáticas de outras ordens, associadas ao fracasso

escolar, que exigem reflexões, tanto sobre o significado dos direitos de crianças e

adolescentes, como sobre o significado da educação.

REFLEXÕES SOBRE O ENLAÇCE EDUCAÇÃO-JUSTIÇA: A PARTIR DA

PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

As discussões anteriores apontam para duas vertentes de reflexão sobre educação e

justiça. Por um lado, há uma busca pela efetivação do direito à educação. A evasão escolar

pelas dificuldades de matrícula e escassez de vagas nas escolas, tem apontado para um direito

que está sendo negado; que não tem sido garantido pelo Estado. Motivo pelo qual deve-se

pensar sobre a importância da educação para o homem e sobre a desigualdade que determina

o acesso à educação. Em outra via, tem-se as queixas da escola para o conselho tutelar que

denunciam movimentos antigos de exclusão, do fracasso escolar, e da psicologização dos

processos educativos. Desta forma, as considerações feitas a seguir consistem em uma

reflexão sobre tais processos a partir da Psicologia Histórico-Cultural.

A evasão escolar consiste em uma problemática permanente em nossa sociedade e

devemos, nesse caso, refletir tanto sobre a função social da educação para a formação do

homem, como para a dominação de uma classe sobre a outra. A divisão da sociedade em

classes parece evidente, seja na educação ou na seara do direito da criança e do adolescente. A

parcela da população atendida pelos conselhos tutelares é, quase que invariavelmente, aquela

proveniente da classe baixa, denunciando não uma maior procura dessa parcela da população

pela garantia de seus direitos, mas sim, o quanto a população pobre tem sido aviltada do

acesso à educação.

O estudo da história da humanidade demonstra que, a partir do momento em que o

homem começou a transformar a natureza, por meio de instrumentos, houve uma superação,

na qual passou a ser guiado muito mais pelas leis histórico-culturais do que pelas biológicas.

Com isso, a lei fundamental do desenvolvimento histórico humano passa a ser aquela regida

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pela sociedade, ou seja, os seres humanos são, além de produtores, produto da sociedade na

qual vivem. Rompe-se, assim, com o determinismo biológico do homem

Segundo Vigotsky (2000), a historicidade permite uma adaptação ativa, que revela o

traço distintivo das formas superiores de conduta. A criação e o emprego de estímulos

artificiais, como meios auxiliares para dominar a natureza, constituem na base de uma nova

forma de determinar o comportamento. As funções psicológicas superiores do homem, que os

diferenciam dos demais animais, são fruto dos instrumentos simbólicos elaborados pelo

próprio homem..

A constituição psíquica dos indivíduos é diretamente dependente do desenvolvimento

social da técnica (do grau de desenvolvimento das forças produtivas) e da estrutura do grupo

social ao qual o indivíduo pertence. Quando o indivíduo nasce, já é um ser social porque já se

encontra com os objetos produzidos pelo homem. Trata-se, pois, de um ser que é fruto da

cultura. Assim, a determinação fisiológica do comportamento, “termina com o surgimento da

história social da humanidade” (LEONTIEV, 1978, p.264), dando espaço às determinações

culturais, fruto da transmissão às gerações seguintes das aquisições da evolução até então

realizadas pela atividade criadora e produtiva. “É antes de mais nada o caso da atividade

humana fundamental: o trabalho" (LEONTIEV, 1978, p.264). Por isso, afirma-se que o

homem é síntese das relações sociais, de como as classes se organizam em determinado

momento histórico.

O homem se apropria da cultura, que é produto do desenvolvimento histórico,

adquirindo, em relação aos objetos, fruto desse desenvolvimento, uma relação ativa. A

apropriação dos instrumentos implica uma reorganização dos movimentos instintuais do

homem e a formação de funções psicológicas superiores. Por isso, pode-se dizer que “cada

indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para

viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do

desenvolvimento histórico da sociedade humana”. (LEONTIEV, 1978, p.267).

O processo de apropriação, portanto, não pode ser realizado sem a comunicação entre

os homens. É, pois, a partir da educação que se permite o desenvolvimento do homem na

sociedade. O desenvolvimento do psiquismo no homem individual e no homem coletivo,

assim, depende da educação. Já que o homem não nasce dotado das aquisições históricas da

humanidade, é necessário que se "dê a cada um a possibilidade de participar enquanto criador

de todas as manifestações da vida humana”. (LEONTIEV, 1978, p.284).

Universidade Estadual de Maringá, 05 a 08 de julho de 2016.

Como discutido por Saviani (2005), “a educação é uma atividade especialmente

humana, sendo o homem, produto da educação”. (SAVIANI, 2005, p.245). O autor defende

que é por meio da educação que se pode revolucionar a sociedade e transformar as relações de

desigualdade que marcam nossa sociedade. Todavia, por ser produto dos homens, a educação

é marcada pelas contradições da sociedade, de modo que também pode servir como elemento

de dominação de uma classe.

Fica evidente, segundo o autor, que a concepção de educação posta acima é

incompatível com a postura elitista, considerando que seu fundamento está em elevar o nível

cultural das massas. Isso porque, nessa perspectiva, “a educação é uma atividade que supõe

heterogeneidade (diferença) no ponto de partida e a homogeneidade (igualdade) no ponto de

chegada” (SAVIANI, 1984, p.14). Dessa forma, seria justamente esse o motivo pelo qual a

classe dominante não se interessa pela educação, deixando que “os burocratas façam dela o

que quiserem” (GRAMSCI, 1975 apud SAVIANI, 1984, p.14).

Em uma leitura da educação na modernidade, o autor aponta que a “Terceira

Revolução Industrial”, a qual acontece desde a década de 1970, coloca a necessidade de uma

escola unitária, universal, que desenvolva ao máximo as potencialidades dos indivíduos,

“conduzindo-os ao desabrochar pleno de suas faculdades intelectuais-espirituais” (SAVIANI,

2005, p.242). Todavia, a realização dessas exigências esbarra nos limites postos pelas relações

de produção, baseadas na propriedade privada dos meios de produção. Isso porque, sendo o

saber um meio de produção, sua apropriação pelos trabalhadores contraria a lógica do capital,

segundo a qual os meios de produção são privativos da burguesia, enquanto aos trabalhadores

caberia à propriedade apenas de sua força de trabalho (SAVIANI, 2005, p.244). “Em

contrapartida, se os trabalhadores não possuem algum tipo de saber, eles não podem produzir.

Eis a contradição” (SAVIANI, 2005, p.244).

Deve-se considerar que a organização social tende à conservação da situação

dominante. Assim, a educação, ainda que tenha o papel de fortalecer laços da sociedade, a

partir da inovação e solicitando o poder criador do homem, é também uma atividade inscrita

no seio da organização social, sendo, portanto, também marcada pela tendência à conservação

(SAVIANI, 1984). Ademais, o neoliberalismo preponderante, leva à negação das políticas

sociais. Há uma débil intervenção do Estado na garantia de direitos sociais devido às ideias

liberais vigentes que são pautadas na mínima intervenção estatal e no predomínio da liberdade

e competitividade. “Trata-se de uma sociedade fundada no mérito de cada um em potenciar

suas capacidades supostamente naturais” (BEHRING, 2011, p.60), a partir de um forte

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darwinismo social em que a inserção social se define por mecanismos de seleção natural

(BEHRING, 2011).

Com isso, não é difícil entender um dos determinantes da evasão escolar, a medida em

que não há um Estado que invista em políticas sociais como a educação. Sendo a educação e

a justiça atividades inscritas no seio da organização social, ambas são marcadas por

contradições e por processos de exclusão e dominação.

A evasão escolar também pode ser associada a outras modalidades do fracasso escolar.

As preocupações com a evasão escolar e repetência inicialmente estão associadas ao

movimento escolanovista que defendia que a repetência na escola primária seria fruto de

fatores externos à escola, localizados nos alunos e suas famílias. Ainda segundo Patto (1993),

o fracasso escolar fora, por muitos anos, compreendido como fruto da carência cultural das

classes baixas. Pautado em teorias psicanalíticas, psiconeurológicas ou cognitivistas, reduzia-

se o fracasso à condição do aprendiz.

A medicina e a Psicologia contribuíram para explicações que localizavam no

indivíduo as causas do mau desempenho escolar e de outros comportamentos inadequados na

escola. A ideia de nocividade do meio familiar passou a ser difundida e “pode ser tomada

como o grande trunfo médico na luta pela hegemonia educativa das crianças” (COSTA, 2004

apud (FACCI, SILVA & RIBEIRO, 2012, p.160).

Isso fica ainda mais evidente na história das políticas sociais, da legislação e da

assistência à infância no Brasil, que é marcada por ações excludentes voltadas, em especial, à

infância pobre marginalizada no país. Tal história, como demonstrado por Rizzini & Pilotti

(2009), guarda íntima relação com a política econômica, que determinava (e ainda determina)

o lugar social daqueles que não se enquadram às relações de trabalho do mundo capitalista.

O âmbito jurídico passou a defender os interesses das crianças com o objetivo

implícito de controle social. Assim, segundo Wadsworth (1999), Medicina e Direito

estabeleciam conexões entre infância, nação e a ideologia do Estado relegando à criança uma

posição de bem econômico da nação. Consequentemente, as instituições de assistência à

infância transformaram-se em mecanismos das classes médias e altas, visando assegurar a

estabilidade social e econômica. As estratégias de institucionalização e a educação/reeducação

pelo e para o trabalho, com vistas à exploração da mão-de-obra desqualificada, porém

gratuita, foram amplamente utilizadas (RIZZINI & PILOTTI, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O acionamento da justiça para a efetivação do direito à educação indica que à boa

parte da população, portanto, continua sendo negado o acesso à educação e, por conseguinte,

a possibilidade de apropriação das produções mais elevadas da humanidade. E diante do que

fora discutido sobre a função da educação como instrumento de dominação de uma classe,

bem como sobre a psicologização dos fenômenos sociais e a culpabilização das famílias

“desestruturadas”, como última centelha de reflexão, questiona-se se a busca pelos conselhos

tutelares, no caso da evasão escolar, não seria fruto de uma necessidade de manutenção da

ideia de que a classe trabalhadora deve ser educada para o afastamento ao vício, de forma a

conduzi-los a uma existência mais utilitária aos interesses do Capital.

A produção do fracasso escolar e também a judicialização de tal situação, portanto,

devem ser consideradas como processos que se entrecruzam e, revestidos por termos como

desenvolvimento e garantia de direitos, podem esconder outros processos, os quais, ao

contrário do que se enuncia, expressam perversos movimentos de exclusão, disciplinarização

e normatização a serviço das classes dominantes.

Dessa maneira, o escamoteamento das relações estabelecidas entre a educação e o

direito da criança e do adolescente é entendido aqui como fruto da complexidade de tal

relação, que tem como pano de fundo as relações determinadas pelo modo de produção

capitalista. Tais relações se expressam na constituição das leis para superar os processos de

injustiça e desigualdade, mas que, por si só, não atingem seus objetivos a medida em que

também apresentam contradições e direcionamentos liberais, podendo assumir um caráter

ideológico.

REFERÊNCIAS

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1988. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

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em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso em: 22 nov. 2015.

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Universidade Estadual de Maringá, 05 a 08 de julho de 2016.

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