Anais do 22º Congresso Anual da Sociedade de Teologia e ...

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SOTER (org.) Anais do 22º Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião Soter VOLUME 3 Grupos Temáticos Edição digital – ebook Paulinas 2009

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SOTER (org)

Anais do 22ordm Congresso Anual da

Sociedade de Teologia e

Ciecircncias da Religiatildeo Soter

VOLUME 3

Grupos Temaacuteticos

Ediccedilatildeo digital ndash ebook

Paulinas 2009

IacuteNDICE DO VOLUME 3 Seccedilatildeo de Grupos Temaacuteticos (GTs) 8 Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena Coord Adailton Maciel Augusto ndash ITESPISPES 9 Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade Coord Jaldemir Vitoacuterio ndash FAJE 10 Novos Movimentos Religiosos Coord Pedro A Ribeiro de Oliveira ndash PUC Minas 11 Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia Coord Eacuterico Hammes - PUCRS 12 Ciecircncia religiatildeo e pluralismo Coord Gilbraz Aragatildeo ndash Unicap 13 Religiatildeo Economia e Poliacutetica Coord Benedito Ferraro ndash PUCCamp 14 Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea Coord Ceci Baptista Mariani ndash PUCCamp 15 Interculturalidade e Religiatildeo Coord Selenir Kronbauer ndash EST e Roberto Zwetsch ndash Cetela

Seccedilatildeo de Anexo

GRUPOS TEMAacuteTICOS ndash

GTs

COMUNICACcedilOtildeES

CIENTIacuteFICAS

GT Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena

EMENTAS

Quando o sertatildeo vai ao mar rituais afro-sertanejos no litoral baiano Autor Acircngela Cristina Borges O sertatildeo norte-mineiro reproduz culturalmente sua localizaccedilatildeo geograacutefica a fronteira posiccedilatildeo hiacutebrida que sugere ideacuteias simultacircneas de fim iniacutecio e recomeccedilo algo que estaacute por se fazer ou devir Tal posiccedilatildeo se reflete na sua religiosidade especificamente na afro-sertaneja Seguindo tal hibridez o terreiro de Umbanda Recanto de Pai Joatildeo Velho ldquodesvia o sertatildeo para o marrdquo no propoacutesito de buscar o que no sertatildeo se perdeu a forccedila do mar Tal movimento expressa sua dinacircmica hiacutebrida e sincreacutetica em busca de elementos nordestinos componentes da identidade sertaneja Agraves margens do mar cumpre ritos evidenciando uma dialeacutetica que suplanta o sertatildeo como um simples espaccedilo fiacutesico Nesta perspectiva a presente comunicaccedilatildeo abordaraacute o rito sertanejo ldquoOgum Beira-Marrdquo recurso afro-sertanejo de enfrentamento da vida no sertatildeo pois viver neste como diz o personagem roseano Riobaldo eacute ldquonegoacutecio perigosordquo Maracatu rural uma heranccedila religiosa afro-indigena na capital pernambucana Joseacute Roberto Feitosa de Sena Referecircncia da cultura popular recifense e constantemente requisitados pelos veiacuteculos midiaacuteticos o Maracatu Rural que surge entre os seacuteculos XIX e XX na regiatildeo da Mata Norte eacute reinventado na Capital pernambucana e traz consigo elementos da vida rural Nesta bagagem a memoacuteria religiosa passa por seacuterios processos de ressignificaccedilatildeo e resistecircncia em que satildeo adquiridas novas formas de interpretaccedilatildeo e culto ao sagrado Como produto do hibridismo afro-indigena o Maracatu de Baque Solto como tambeacutem eacute conhecido tem suas raiacutezes religiosas atreladas aos rituais da Jurema da Umbanda e do catolicismo popular embora o processo de fragmentaccedilatildeo das identidades seja tatildeo intenso na contemporaneidade muitos grupos ainda resistem ao atribuir o sucesso da ldquobrincadeirardquo aos rituais lituacutergicos de preparaccedilatildeo para saiacuteda ao carnaval Experiecircncias religiosas como afirmaccedilatildeo de identidade religiosa e cultural afro-brasileira Reinaldo Joatildeo De Oliveira Com a liberdade de valorizar as culturas como uma realidade proacutepria a teologia pode tornar-se um caminhar a partir dos sujeitos de sua cultura Daiacute a necessidade do resgate pela ldquoalteridaderdquo Abordando temas relacionados aos nossos povos e nossa cultura esboccedilamos uma valorizaccedilatildeo das origens culturais e religiosas afro e indiacutegena Utilizando a expressatildeo plural ldquonossosrdquo acenamos para os ldquoanseiosrdquo de relacionar cultura evangelizaccedilatildeo educaccedilatildeo bem puacuteblico e a preocupaccedilatildeo com a unidade e fraternidade dos povos Visando a integraccedilatildeo dos indiacutegenas e afro-americanos o reconhecimento eacute importante para o diaacutelogo numa experiecircncia de feacute e de responsabilidade Assim o ldquoconhecimentordquo das religiotildees de matrizes africanas com suas experiecircncias raiacutezes pode trazer-nos um verdadeiro sentido de afirmaccedilatildeo de uma identidade e de encontro com o ldquooutrordquo e de experiecircncia com Deus

A influecircncia da religiosidade Africana na sociedade brasileira o olhar de um africano

Luis Tomaacutes Domingos Na Africa haacute uma relaccedilatildeo intima entre religiatildeo e vida social a religiatildeo africana se integra profundamente em toda a vida da comunidade Para o africano os vivos e os mortos o cosmos visivel e o mundo invisivel constituem apenas um universo Nas suas diversas manifestaccedilotildees religiosas creem quase todos em um Deus Supremo que eacute o soberano absoluto do Cosmos da humanidade inteira assim como da natureza (seres vivos animais homens etc) Poreacutem esta concepccedilatildeo do mundo implantado e perpetuado pelos afro-descendentes na sociedade brasileira criou certos questionamentos como determinar se as crenccedilas africanas tem o meacuterito de serem consideradas como religiatildeoO nosso trabalho eacute resultado de pesquisa efetuado em Moccedilambique ndash Africa realizada com intuito de comparar as religiotildees de matrizes africanas no Brasil atraveacutes da cosmogonia africana e da essecircncia das experiencias religiosas ou misticas Semelhanccedilas e diferenccedilas Uma anaacutelise das correntes Umbandistas a partir de uma cidade interiorana Laiacutes Moacutel Alves O presente trabalho pretende analisar a Umbanda religiatildeo de matriz africana na cidade de Caratinga leste de Minas Gerais na tentativa de demonstrar a presenccedila de pelo menos duas linhas dessa religiatildeo na cidade e analisar ainda a relaccedilatildeo econocircmica existente entre a prevalecircncia de uma ou outra doutrina religiosa dentro da corrente Umbandista Para esta anaacutelise foram escolhidos trecircs terreiros o ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e ldquoCasa da Mariquinhardquo locais que se pode observar maior influecircncia das religiotildees afro-brasileira E um outro terreiro (sem nome) que permanece a influecircncia do Kardecismo no culto

A importacircncia e utilizaccedilatildeo das folhas nas comunidades de candombleacute no Brasil

Paulo Roberto Noacutebrega de Arauacutejo Wallace Ferreira de Souza

Dentro dos cultos afro-brasileiros particularmente nos terreiros de Candombleacutes os Orixaacutes nome dado agraves divindades pelos povos iorubas estatildeo intimamente ligados agrave Natureza Para a comunidade de santo todas as divindades caracterizam-se por serem detentoras ou mobilizadoras de elementos naturais que conteacutem axeacute O objetivo desta comunicaccedilatildeo e refletir a respeito da importacircncia das folhas e sua utilizaccedilatildeo como elemento lituacutergico e ritualiacutestico nas cerimocircnias propiciatoacuterias entendidas aqui como ritos de passagem O trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa bibliograacutefica e de observaccedilotildees participantes em casas de Candombleacutes levando em consideraccedilatildeo a plasticidade dos cultos afro-brasileiros Um dos aspectos percebidos e a interaccedilatildeo entre um espaccedilo urbano caracterizado pelas construccedilotildees dos terreiros e o espaccedilo da natureza constituiacutedo pelo reino animal minerais e vegetal onde as folhas estatildeo inseridas

A destituiccedilatildeo do sagrado das religiotildees de matriz africana no confronto epistemoloacutegico com o campo simboacutelico-conceitual cristatildeo

Aurino Joseacute Goacuteis

As religiotildees de matriz africana mormente o Candombleacute foram circunscritas num campo simboacutelico-conceitual que as destituiacutea de toda pretensatildeo de legitimidade e universalidade Essa destituiccedilatildeo ocorria e era tecida argumentativamente na medida em que se afirmava e consolidava agravequele outro campo simboacutelico dominante eurocecircntrico e cristatildeo Esse fato histoacuterico eacute revisitado e retomado no texto para explicar as agressotildees aos Terreiros de Candombleacute verificadas em vaacuterios episoacutedios nas cidades brasileiras e em especial nos casos analisados pelo autor na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte O texto afirma um continuum entre as agressotildees do passado e do presente ao inscrevecirc-las num mesmo horizonte conceitual-epistemoloacutegico motivacional Pretende-se assim fornecer pistas para compreensotildees e accedilotildees inovadoras no futuro no processo de afirmaccedilatildeo ldquopor direitordquo das comunidades de matriz africana O objetivo a ser alcanccedilado eacute o de dar visibilidade a essas agressotildees e promover o debate social em torno do lugar historicamente atribuiacutedo a essas comunidades no contexto urbano da sociedade brasileira

A (in)toleracircncia religiosa Dalmer Pacheco de Almeida Igor Pacheco Yuri Pacheco A marcha contra a intoleracircncia religiosa contra o Candombleacute e a Umbanda A participaccedilatildeo dos movimentos sociais e das Igrejas Cristatildes Os direitos constitucionais e a liberdade de credo religioso O agendamento na miacutedia e o processo de midiatizaccedilatildeo

GT Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena TEXTOS

Quando o sertatildeo vai ao mar rituais afro-sertanejos no litoral baiano

Acircngela Cristina Borges1

Eacute sabido que o homem desenvolve haacutebitos modo de vida e visatildeo de mundo

conforme a histoacuteria o tempo e o espaccedilo geograacutefico em que estaacute inserido O homem norte-

mineiro tambeacutem desenvolveu costumes vitais relacionados ao seu contexto histoacuterico-geograacutefico

costumes que compotildeem seus universos culturais entre eles a Umbanda Sertaneja sistema

simboacutelico que reflete o ethos da regiatildeo ao se apresentar como fronteiriccedilo hiacutebrido e intersticial

No presente trabalho abordaremos um dos elementos cosmoloacutegicos pertencente a esta tradiccedilatildeo

religiosa o ritual ldquoOgum Beira-Marrdquo Relevante composiccedilatildeo metafiacutesica do terreiro afro-

sertanejo Recanto de Pai Joatildeo Velho este rito tem sido deslocado ndash pela comunidade do

terreiro - para o litoral baiano onde serve de instrumento para a renovaccedilatildeo e revitalizaccedilatildeo da

praacutetica de Umbanda No intuito de tecermos reflexotildees sobre este ritual bem como dos

desdobramentos que o envolve nos apoiaremos no conceito de hibridismo cultural Atual e

irreverente esta perspectiva teoacuterica permite na realidade poacutes-moderna o vislumbramento de

particularidades culturais veladas pelos discursos nacionais a exemplo do Norte de Minas

Gerais

Situado na fronteira com a Bahia e possuindo clima fauna e flora semelhantes agrave

aacuterea nordestina o sertatildeo norte-mineiro recebeu os primeiros colonizadores em meados do

seacuteculo XVI No entanto se manteve longe do aparelho colonizador durante mais de um seacuteculo

atraindo nesse periacuteodo aqueles que natildeo se subordinavam ao controle portuguecircs Terra inoacutespita o

sertatildeo abrigou bandos que saqueavam o litoral a presenccedila destes e a ausecircncia estatal o tornou

uma terra ldquosem leirdquo ou melhor uma terra com suas proacuteprias leis No seacuteculo XVII o retorno das

expediccedilotildees e o iniacutecio do povoamento natildeo evitaram que a violecircncia se tornasse um marco da

regiatildeo e consequentemente uma marca cultural

Natildeo eacute desconhecido da historiografia brasileira que economicamente a

colonizaccedilatildeo do nosso paiacutes iniciou-se pelo litoral onde a vigilacircncia da Coroa Portuguesa era

intensa devido aos seus interesses econocircmicos Regiotildees que aos olhos da Coroa natildeo ofereciam

lucro imediato eram ignoradas e em funccedilatildeo deste descaso a partir dos seus proacuteprios recursos

1 Professora e Coordenadora do curso de Ciecircncias da Religiatildeo da Universidade Estadual de Montes ClarosMG Mestre em Ciecircncias da Religiatildeo ndash PUC-SP

naturais procuraram se auto-sustentar Assim ocorreu com o Norte de Minas Gerais Mesmo

sem o incentivo estatal numerosos paulistas fundaram grandes fazendas de gado no Vale do Rio

Satildeo Francisco e enriqueceram-se beneficiados principalmente pela localizaccedilatildeo geograacutefica da

regiatildeo que se tornou um centro de intercacircmbio entre a aacuterea mineradora o nordeste e centro-

oeste brasileiro Para a sua sobrevivecircncia e manutenccedilatildeo dos potentados adquiridos durante a

ocupaccedilatildeo o norte-mineiro livre do esquema colonial portuguecircs desenvolveu uma moral

proacutepria baseada na violecircncia e no choque de valores contraditoacuterios ndash questatildeo axioloacutegica que

pode ser identificada nos seus universos culturais entre eles a Umbanda Talvez seja este o

principal aspecto ndash axioloacutegico - que o diferencia das outras regiotildees do Estado contribuindo

desta forma para a crescente certeza entre os estudiosos da regiatildeo de que o ethos mineiro natildeo

se identifica com o ethos norte-mineiro Este natildeo seria mineiro e nem baiano a sua identidade

transitaria entre um e outro reproduzindo culturalmente sua localizaccedilatildeo geograacutefica a fronteira

Considerando ser esta regiatildeo um espaccedilo fronteiriccedilo pensamos ser relevante

lanccedilarmos matildeo de uma perspectiva teoacuterica adequada a este tipo de espaccedilo As fronteiras

emergem como interstiacutecios culturais locais de tracircnsito cultural sendo dinacircmicas e sincreacuteticas

induzindo-nos a conceber neste estudo o sertatildeo como lugar dinacircmico que transcende o espaccedilo

fiacutesico e os modelos culturais dominantes Natildeo eacute possiacutevel obter sua dimensatildeo muacuteltipla ndash fiacutesica

soacutecio-cultural e existencial - pelo acesso da loacutegica racionalista Seu alcance estaacute na des-razatildeo

pois eacute o espaccedilo das contradiccedilotildees das ambivalecircncias e ambiguumlidades do provisoacuterio constante e

do imprevisiacutevel Eacute preciso portanto para alcanccedilaacute-lo se pocircr na fronteira posiccedilatildeo que o proacuteprio

ambiente sertanejo exige Sendo assim a religiosidade eacute um recurso capaz de focalizar o

dinamismo proacuteprio de regiotildees instersticiais como o sertatildeo suplantando desta forma sua

imagem como um simples espaccedilo fiacutesico

Assim fez Guimaratildees Rosa (1985) ao entrar em contato com a histoacuteria e a cultura

norte-mineira Entendemos o fasciacutenio causado pela sua obra que retrata a regiatildeo e o sertanejo

Para falar do sertatildeo este autor poeticamente se colocou no proacuteprio sertatildeo numa atitude quase

metafiacutesica pois a imagem deste espaccedilo cega os olhos de quem intenciona descrevecirc-lo mediante

uma linguagem simples e didaacutetica Descrevecirc-lo eacute mergulhar em si mesmo eacute buscar em si

impressotildees sobre uma realidade quase indecifraacutevel pela linguagem convencional Talvez por

isso Rosa se colocasse em Riobaldo2 que ao falar de si fala do sertatildeo e ao falar do sertatildeo fala

do sertanejo

Neste sentido acreditamos ser as noccedilotildees de hibridismo cultural a mais apropriada

para abordar regiotildees intersticiais como o sertatildeo norte-mineiro bem como uma de suas

expressotildees religiosas a Umbanda Sertaneja Religiatildeo sincreacutetica a Umbanda no Norte de Minas

2 Personagem sertanejo do Grande Sertatildeo Veredas obra de Guimaratildees Rosa

Gerais se coloca tambeacutem como interstiacutecio ao provocar na coexistecircncia com a Quimbanda e o

Candombleacute inovaccedilotildees ritualiacutesticas

Hibridismo cultural

A complexidade dialeacutetica da nossa realidade e dos nossos sistemas simboacutelicos

impede que suas interpretaccedilotildees principalmente no momento atual aconteccedilam utilizando-se de

modelos simples Tal complexidade parece ser mais evidente em funccedilatildeo da frequumlente gama de

informaccedilotildees proveniente dos diversos cantos do mundo viabilizada pelo encurtamento de

distacircncias produzindo desta forma um fluxo forte e constante A atualidade tem como um de

seus marcos os encontros culturais Cada vez mais frequumlentes e intensos tais encontros

impedem a existecircncia de uma fronteira cultural niacutetida e definida impossibilitando-nos de

identificar onde culturalmente algo comeccedila e termina Esse estado de continuum cultural

contrapotildee-se a qualquer noccedilatildeo de essencializaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave identidade

Falar entatildeo de universos culturais atualmente soacute eacute possiacutevel considerando situaccedilotildees

de misturas mesticcedilagens sincretismo diaacutesporas que alguns teoacutericos da cultura denominam de

traduccedilatildeo crioulizaccedilatildeo hibridismo hibridaccedilatildeo hibridizaccedilatildeo Desta forma eacute fato que o termo

ldquoculturardquo deve ser considerado como afirma Burke (2003 p6) ldquoem um sentido razoavelmente

amplo de forma a incluir atitudes mentalidades valores e suas expressotildees concretizaccedilotildees ou

simbolizaccedilotildees em artefatos praacuteticas e representaccedilotildeesrdquo Acrescentamos a esta ideacuteia a afirmaccedilatildeo

de que o termo cultura deve ser analisado em toda a sua complexidade admitindo a vastidatildeo

destes elementos originalmente multiplicados nos encontros entre tradiccedilotildees

Sendo assim justifica-se recorrer a teoacutericos que fundamentam investigaccedilotildees

interessadas em abordar especificidades culturais proacuteprias de uma tradiccedilatildeo local O estudo

sobre um local de cultura faz-se necessaacuterio na atualidade onde ingenuamente se postula a

transformaccedilatildeo - pela globalizaccedilatildeo - do planeta em uma aldeia global Nesta perspectiva o papel

da cultura eacute encoberto pela tentativa de definir de forma objetiva a naccedilatildeo como uma grande

comunidade existente num territoacuterio com limites definidos e sujeita a uma administraccedilatildeo

estatal Esta visatildeo naturalmente se preocupa com os aspectos econocircmicos e tecnoloacutegicos do

processo de modernizaccedilatildeo que na loacutegica capitalista precisam ser identificados nacionalmente

No entanto especificidades existem e a sua existecircncia comprova que o

nacionalismo abrange apenas o que haacute de comum e natildeo a diferenccedila Talvez por ser o diferente

de difiacutecil acesso que identifica e natildeo identifica que une e aparta que afirma e contraria Com a

finalidade de nos determos em um dos movimentos desenvolvidos pela Umbanda Sertaneja

explicitaremos a partir de autores como Homi Bhabha e Nestor Garcia Canclini a noccedilatildeo de

hibridismo cultural verificando o quatildeo feacutertil satildeo estes conceitos na interpretaccedilatildeo de identidades

culturais presentes nos lugares de fronteiras

Iniciaremos com o pensamento do criacutetico literaacuterio indo-britacircnico Homi Bhabha

(1998) que rompe com o tradicionalismo ao deslizar entre a poesia a literatura a antropologia e

filosofia no estudo sobre cultura identidade e modernidade Sua perspectiva ao tratar essas

categorias sob o prisma do hibridismo abre espaccedilo para o desenvolvimento de um discurso rico

e desmistificador Neste sentido apresenta a fronteira como o lugar ideal para se ler o mundo e

a realidade pois estes com o advento da modernidade se colocaram tambeacutem neste lugar ou

melhor no entre - lugar no espaccedilo intersticial no momento fronteiriccedilo Para acompanhar e

compreender o intenso e raacutepido movimento da realidade contemporacircnea rica em mudanccedilas e

transformaccedilotildees o olhar da fronteira diante do mundo consegue mirar o espaccedilo intersticial

espaccedilo cultural rico em elementos ambivalentes e antagocircnicos Segundo Bhabha (1998 p19)

nossa existecircncia hoje eacute marcada por uma tenebrosa sensaccedilatildeo de sobrevivecircncia de viver nas

fronteiras do ldquopresenterdquo para as quais natildeo parece haver nome proacuteprio aleacutem do atual e

controvertido deslizamento do prefixo ldquopoacutesrdquo poacutes-modernismo poacutes-colonialismo poacutes-

feminismo Assim o local da cultura natildeo deve ser visto como lugar exato estaacutetico Eacute a zona que

foge agraves definiccedilotildees conceituais tradicionais

O ldquopresenterdquo eacute o momento do tracircnsito em que se cruzam espaccedilo e tempo

produzindo figuras de identidade passado presente inclusatildeo e exclusatildeo Haacute no ar deste

momento histoacuterico uma sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo onde nada parece estar no lugar onde o

movimento eacute dominante Tudo parece estar deslocado e descentrado As categorias de classe e

gecircnero parecem natildeo possuir a mesma aplicabilidade de antes Para falar do deslocado do

descentrado cada vez mais parece ser necessaacuterio fragmentar a linguagem multiplicando as

categorias e termos que mais se adequam a estas condiccedilotildees

Sendo assim o local da cultura se apresenta como o local da fronteira do limite e

natildeo o ponto onde algo termina mas sim como uma ponte aquela que conforme Bhabha (p24)

ldquoreuacutene enquanto passagem que atravessardquo e como afirma Heidegger (2002 p134) ldquoo limite natildeo

eacute onde uma coisa termina mas como os gregos reconheceram de onde alguma coisa daacute iniacutecio agrave

sua essecircnciardquo Sendo este o lugar da cultura teoricamente deve-se entatildeo focalizar momentos e

processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas sociais em lugar de fatos construiacutedos

historicamente que abordam apenas a superficialidade dos acontecimentos sociais A

articulaccedilatildeo de diferenccedilas sociais natildeo se daacute em momentos estaacuteticos mas sim nos interstiacutecios no

espaccedilo-momento onde elementos culturais diferentes se sobrepotildeem e se deslocam dando iniacutecio

a novos e inovadores signos de identidade que ao mesmo tempo se colaboram e se contestam

dialeticamente definindo desta forma a ideacuteia de sociedade hoje

Portanto do encontro de elementos culturais diferentes emergem entre - lugares

interstiacutecios culturais onde a articulaccedilatildeo social da diferenccedila se daacute sob a forma de negociaccedilatildeo

complexa mescla de reencenaccedilatildeo do passado colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo onde ambivalecircncias e

antagonismos estatildeo presentes Sob o prisma do hibridismo a cultura eacute vista como zona de

instabilidade ausente de efetividade Bhabha (1998 p21) sustenta que ldquoao reencenar o

passado este introduz temporalidades culturais incomensuraacuteveis na invenccedilatildeo da tradiccedilatildeordquo Esse

processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradiccedilatildeo recebida

Neste momento a presenccedila de elementos ambivalentes e antagocircnicos impede a

denominaccedilatildeo absoluta da cultura Eacute o momento no qual ela eacute hiacutebrida ou seja nem uma coisa

nem outra onde a existecircncia do novo natildeo pode definitivamente ser definida pois o novo estaacute

em construccedilatildeo e muito provavelmente natildeo chegaraacute a um estado imoacutevel e definitivo Nesta

perspectiva se contextualiza a formaccedilatildeo da cultura sertaneja pois sua histoacuteria eacute igualmente

uma histoacuteria do hiacutebrido onde as realidades consideradas ateacute certo ponto imutaacuteveis e estaacuteticas

foram deslocadas e descentradas

Nestor Garcia Canclini (2006) utiliza o termo hibridaccedilatildeo cultural para analisar a

cultura na poacutes-modernidade Categorias como identidade cultura diferenccedila desigualdade

multiculturalismo e relaccedilotildees binaacuterias como tradiccedilatildeo-modernidade norte-sul local-global sob a

perspectiva da hibridaccedilatildeo devem ser analisadas de forma diferente nas ciecircncias humanas em

relaccedilatildeo agraves abordagens consideradas tradicionais Mas este autor chama a atenccedilatildeo para o cuidado

no uso do termo pois como vimos eacute amplo e se aplica desta forma igualmente

Canclini (2006 pXIX) define hibridaccedilatildeo como ldquoprocessos socio-culturais nos quais

estruturas ou praacuteticas discretas que existiam de forma separada se combinam para gerar novas

estruturas objetos e praacuteticasrdquo Esclarece que tal combinaccedilatildeo natildeo descarta as contradiccedilotildees e que

estas estruturas discretas jaacute eram resultadas de hibridaccedilotildees natildeo podendo entatildeo ser

consideradas como puras O autor (2006 pXVIII) ressalta que este termo eacute capaz de dar conta

de abordar os conflitos gerados pela interculturalidade presente ldquoem meio agrave decadecircncia de

projetos nacionais de modernizaccedilatildeo da Ameacuterica Latinardquo Canclini nos diz que a modernidade se

constitui basicamente em quatro projetos o emancipador (secularizaccedilatildeo) o expansionista

(ampliaccedilatildeo do conhecimento e do domiacutenio da natureza) o renovador (a busca do novo) e o

democratizador (difusatildeo do saber especializado para a evoluccedilatildeo racional e moral) Ao se

desenvolverem estes projetos entraram em conflito e na atualidade assistimos a subordinaccedilatildeo

das forccedilas renovadoras pela modernizaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e tecnoloacutegica

Os processos globalizadores acentuaram a interculturalidade moderna ao criar

mercados mundiais uma gama de informaccedilotildees e migrantes Este fluxo diminuiu as fronteiras e

a autonomia das tradiccedilotildees locais ao promover hibridaccedilotildees que geram o novo No momento

atual as forccedilas renovadoras satildeo empreendidas e direcionadas pela economia pela poliacutetica e pela

tecnologia Sendo assim hibridaccedilatildeo designa as misturas culturais propriamente modernas

aquelas geradas pelas integraccedilotildees dos Estados Nacionais populismos poliacuteticos e pelas induacutestrias

culturais O autor natildeo descarta o uso do termo quando este se aplica agrave mesticcedilagem sincretismo e

crioulizaccedilatildeo mas atenta para o momento atual para a modernizaccedilatildeo estimulada pelo processo

da globalizaccedilatildeo atraveacutes da internacionalizaccedilatildeo e da transnacionalizaccedilatildeo

Apesar do objetivo de se modernizar a Ameacuterica Latina natildeo abandonou a tradiccedilatildeo

Assim neste continente a coexistecircncia do velho e do novo gera novas formas culturais

Manteacutem-se o tradicional mas reelabora-se a sua utilizaccedilatildeo usando mecanismos tecnoloacutegicos da

atualidade O autor (2006 p 304) destaca que a hibridaccedilatildeo urbana na poacutes-modernidade natildeo eacute o

resultado do encontro direto entre etnias a exemplo da modernidade mas eacute uma hibridaccedilatildeo

causada pelos meios de comunicaccedilatildeo e pelo avanccedilo da tecnologia que natildeo pode ser ignorada no

processo de produccedilatildeo cultural Canclini ressalta que a hibridaccedilatildeo moderna estaacute diretamente

relacionada agrave modernizaccedilatildeo e agrave internacionalizaccedilatildeo o que nos leva a concluir que a hibridaccedilatildeo

cultural eacute uma realidade tatildeo concreta quanto o processo globalizante Esta questatildeo nos leva a

outra a hibridaccedilatildeo natildeo eacute uniforme eacute incapaz de gerar culturas iguais uma vez que acontece

tambeacutem em funccedilatildeo da competecircncia tecnoloacutegica de cada Estado Deve-se tambeacutem considerar a

resistecircncia aos seus efeitos como exemplo o fundamentalismo

De acordo com Canclini (2006 p326) ldquoa hibridez tem um longo trajeto nas

culturas latino-americanasrdquo Realmente natildeo se pode esquecer o sincretismo criado pelo

encontro entre espanhoacuteis e indiacutegenas portugueses e indiacutegenas posteriormente no Brasil entre os

luso-brasileiros e os africanos e mais adiante o reencontro com os colonos italianos espanhoacuteis

e japoneses Desta forma parece-nos quase impossiacutevel empreender uma anaacutelise da cultura neste

paiacutes desconsiderando a hibridez Nos nossos projetos revolucionaacuterios contra a colonizaccedilatildeo

portuguesa e contra o imperialismo inglecircs e norte-americano re-significamos a realidade ao

tentar compatibilizar o novo e o velho as ideacuteias de liberdade com accedilotildees escravocratas e

conservadoras Ainda eacute presente no Brasil a tentativa de conciliar a tradiccedilatildeo e a modernidade

Nestas tentativas eacute possiacutevel perceber o hiacutebrido nos nossos universos simboacutelicos e a formaccedilatildeo de

identidades locais que no devir estatildeo em processo de mutaccedilatildeo hiacutebrida

De posse das teorias aqui apresentadas concluiacutemos que na atualidade o termo

cultura se torna realmente complexo pois a existecircncia de culturas mesticcedilas e hiacutebridas evidencia

a incapacidade ocidental de dizer o natildeo dito e de identificar o natildeo-identificaacutevel Esta questatildeo

alerta para a necessidade das ciecircncias do homem re-avaliarem o uso de suas categorias pois elas

podem natildeo dizer tudo e natildeo se aplicarem devidamente agraves culturas mesticcedilas tatildeo comuns e

evidentes nos nossos dias Desta forma estes autores nos concedem a fundamentaccedilatildeo necessaacuteria

para que neste estudo possamos vislumbrar o sertatildeo norte-mineiro como entre - lugar como

espaccedilo intersticial onde se processa a articulaccedilatildeo social A noccedilatildeo de entre - lugar e de interstiacutecio

espacial num contexto globalizante como o atual - fornecida por estes autores - nos possibilita

sentir e perceber a existecircncia de diferenccedilas culturais teoricamente natildeo consideradas Estas

leituras nos impulsionam a imaginar o local da cultura de forma diversa Sob suas perspectivas

o local e espaccedilo cultural se transformam em lugares de fronteira A vida neste lugar eacute um fluxo

de forccedilas que natildeo eacute percebido pela razatildeo3 humana pois envolve aleacutem dos fatos que a razatildeo

descreve emoccedilotildees sentimentos sonhos duacutevidas procuras e encontros

Enfim a fronteira deixa de ser um espaccedilo cercado de limites para ser um espaccedilo de

forccedilas ou melhor de forccedilas diversas e adversas que na coexistecircncia produzem novas forccedilas e

estas em funccedilatildeo do contexto apresentam particularidades Assim se apresenta o Umbandismo

no sertatildeo norte-mineiro como um sistema simboacutelico constituiacutedo de elementos diversos e

adversos que num fluxo contiacutenuo impulsionado por necessidades existenciais promove novas

re-significaccedilotildees evidenciando marcas proacuteprias do sertatildeo

Umbanda Sertaneja

A denominaccedilatildeo Umbanda Sertaneja justifica-se natildeo apenas pela localizaccedilatildeo geograacutefica

do sertatildeo das Minas Gerais mas sobretudo pela existecircncia nesta Umbanda de elementos

sertanejos em suas praacuteticas ritualiacutesticas e cosmologia A religiatildeo como sistema simboacutelico

certamente influencia na formaccedilatildeo do ethos de uma comunidade Deve-se considerar tambeacutem

que o ethos morada do ser exibe os valores existentes num determinado sistema religioso

Portanto a relaccedilatildeo entre religiatildeo e ethos natildeo eacute unilateral Apesar da insistecircncia humana em

identificaacute-lo definitivamente a realidade nos demonstra que o ethos estaacute sempre em processo de

construccedilatildeo Isso nos leva a pensar que igualmente os sistemas religiosos estatildeo em mutaccedilatildeo Eacute

claro que nem sempre a mutabilidade presente num sistema religioso eacute clara e evidente a ponto

de ser facilmente identificaacutevel e demonstraacutevel A leitura de um sistema religioso entatildeo natildeo

pode desconsiderar o contexto no qual este sistema encontra-se inserido Devem-se levar em

conta as contradiccedilotildees ambivalecircncias e os antagonismos da sua realidade

Nesta perspectiva considera-se neste estudo o universo umbandista sertanejo como um

sistema onde a relaccedilatildeo entre signos sentidos e significados se daacute numa maneira que ao mesmo

tempo se coloca como conflituosa e harmocircnica isto eacute sincreacutetica na medida em que seu

contexto cultural e geograacutefico eacute fronteiriccedilo As transformaccedilotildees na Umbanda podem natildeo soar

como novidade uma vez que naturalmente esta religiatildeo eacute sincreacutetica No entanto o que se

verifica na Umbanda Sertaneja eacute que aleacutem da inserccedilatildeo de novos elementos provenientes de

outros sistemas de crenccedila facilitados pela globalizaccedilatildeo recentemente tem ocorrido o

desenvolvimento de novas produccedilotildees simboacutelicas a partir do retorno agraves fontes originaacuterias Isto eacute

a revitalizaccedilatildeo desta Umbanda se daacute mediante a re-significaccedilatildeo de signos e significados

estabelecidos na origem de sua histoacuteria

3 O termo razatildeo aqui deve ser considerado agrave luz de Reneacute Descartes (seacutec XVII) Antocircnio Damaacutesio (1994) ilustra bem as consequumlecircncias do pensamento cartesiano Com a frase Penso logo existo Descartes sugere que pensar e ter a certeza do pensar definem a humanidade do homem Como ele entendia o pensamento como uma atividade separada do corpo sua definiccedilatildeo acaba estabelecendo um abismo entre mente e corpo

Nos anos 40 quase simultaneamente agraves transformaccedilotildees ocasionadas pelo processo

de mundializaccedilatildeo a Umbanda se inicia no norte de Minas Gerais quando chegam agrave regiatildeo os

principais atores deste processo os sacerdotes Joseacute Fernandes Guimaratildees proveniente de uma

Umbanda vinda do Sudeste e Waldemar e Laurinda Pereira Porto e Eliezer Gomes de Arauacutejo

originaacuterios de uma Umbanda nordestina A partir de fontes orais registros em cartoacuterios artigos

de jornais e processos criminais resgatamos a histoacuteria e a contribuiccedilatildeo destes personagens na

formaccedilatildeo da Umbanda no sertatildeo Entretanto por ora nos interessa saber que no sertatildeo norte-

mineiro o encontro de duas vertentes umbandistas originou o que hoje denominamos como

Umbanda Sertaneja Este culto natildeo se restringiria mais a uma macumba4 - como eram

conhecidos os rituais afro-brasileiros - pois se tornaria a partir da deacutecada de 40 uma nova

alternativa religiosa na regiatildeo

Na deacutecada de 50 o Candombleacute chega ao sertatildeo sendo que no mesmo periacuteodo o

sertatildeo recebe outros sacerdotes da religiatildeo e da Magia Negra influenciando desta forma com

novos elementos a praacutetica umbandista Um fenocircmeno entatildeo se inicia na deacutecada de 60 a

inserccedilatildeo no Candombleacute pelos sacerdotes de Umbanda Este fenocircmeno alterou profundamente o

campo religioso afro-sertanejo uma vez que grande parte dos seus terreiros adotou o

Candombleacute de forma total (Feitura de Santo) ou parcial (Boris Assentamentos)

Agrave medida que a cultura norte-mineira se distancia da tradicional matutice

sertaneja provocada pela urbanizaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo no universo umbandista tambeacutem se

verificam transformaccedilotildees dinacircmicas em movimentos de adequaccedilatildeo agrave cultura local e de recepccedilatildeo

de novos elementos culturais Em seus rituais aspectos hiacutebridos evidenciam as influecircncias do

mundo globalizado ao mesmo tempo em que revelam elementos denunciadores do ethos

sertanejo como agrave tensatildeo entre o Bem e o Mal jaacute abordada anteriormente por Guimaratildees Rosa

Tal articulaccedilatildeo axioloacutegica sempre presente na histoacuterica da regiatildeo eacute vislumbrada na relaccedilatildeo entre

Umbanda e Quimbanda - relaccedilatildeo conjeturada por noacutes como irmanaccedilatildeo dos contraacuterios - e na

coexistecircncia destas com o Candombleacute

A triacuteade que se forma nos templos afro-sertanejos acena para a institucionalizaccedilatildeo

de uma nova loacutegica religiosa Foi detectado no imaginaacuterio religioso dos adeptos onde a triacuteade eacute

uma realidade um deslocamento metafiacutesico de caraacuteter espiritual ou seja uma nova visatildeo de

espiritualidade e de mundo espiritual que emergiu da coexistecircncia destas religiotildees que

passaram a ser vistas como ldquoenergiasrdquo Movimenta alimenta e manteacutem o continuum integrado

um ser tatildeo hiacutebrido e ambivalente quanto o sertatildeo a personalidade - Exu Presente nas trecircs

ldquoenergiasrdquo Exu exerce em cada uma delas uma funccedilatildeo proacutepria ao mesmo tempo em que se

desdobra como elo e conexatildeo Situado na fronteira dos valores contraditoacuterios esta entidade

manifesta e desvenda a personalidade do homem sertanejo Exu eacute recurso e esperanccedila diante das

4 Termo pejorativo usado para fazer referecircncia agraves religiotildees afro-brasileiras que lidam com a magia

insatisfaccedilotildees infelicidades perseguiccedilotildees e demandas pessoais Seu caraacuteter duvidoso leva

esperanccedila agravequeles que presos pelos grilhotildees das convenccedilotildees desejam romper com a tradiccedilatildeo

seja ela social poliacutetica ou moral

Na Quimbanda Exu se aproxima dos homens ao estabelecer via magia relaccedilotildees

diretas com eles ouvindo aconselhando orientando elogiando e diminuindo o peso das regras

deixando claro que podem ser rompidas ou transformadas Exu alimenta a auto-estima do

consulente No combate miacutestico eacute a resistecircncia humana a situaccedilotildees sociais indesejaacuteveis e na

busca pela felicidade eacute o desejo individual de liberdade ao transcender normas

comportamentais Sem duacutevida eacute a entidade mais procurada nos terreiros sertanejos ou atraveacutes

do jogo de buacutezios (Candombleacute) ou no atendimento puacuteblico e individual (Umbanda e

Quimbanda) Exu eacute representaccedilatildeo miacutestica do homem do sertatildeo ambivalente desliza na fronteira

entre o Bem e o Mal Eacute a imagem do sertanejo oscilante entre o amor e o oacutedio Deus e democircnio

feacute e descrenccedila religiatildeo e magia imprecisotildees impostas pela atmosfera sertaneja Em Exu o

sertatildeo supera-se enquanto espaccedilo fiacutesico ao expressar a alma humana Sua busca eacute a busca de si

mesmo da coragem apaacutetica que se torna audaciosa ao lanccedilar matildeo da magia como recurso para

resoluccedilatildeo dos problemas Por meio desta entidade o homem transcende apatias e medos pois

como princiacutepio dinacircmico Exu inverte situaccedilotildees concedendo e restaurando equiliacutebrio assim eacute

accedilatildeo vida liberdade e vigor

A triacuteade possui Exu como elo como conexatildeo entre estas ldquoenergiasrdquo Ele estaacute

sempre presente No Candombleacute eacute a natureza humana e na Quimbanda eacute o amigo e o confidente

que orienta sobre a vida profissional e familiar une e separa pessoas oferece ajuda e esclarece

enigmas pessoais Sua liberdade e movimento o tornam atraente pois natildeo existem limites para

essa entidade Agradaacute-lo tornaacute-lo amigo ganhar sua simpatia eacute garantia do bom combate e da

vitoacuteria

Esta personalidade eacute esfera viva no dia-a-dia do terreiro ao se manifestar como

ponte pela triacuteade No jogo de buacutezios concede intuiccedilatildeo ao Tatecircto5 intermediando homens e

divindades Detecta tambeacutem se o consulente estaacute sofrendo a accedilatildeo de um Exu obsessor ou seja

de Quimbanda e neste sentido Exu (Candombleacute) orienta agradar Exu (Quimbanda) que uma vez

satisfeito pode inclusive se transformar em capanga de Preto Velho (Umbanda) Em funccedilatildeo de

um encosto (Exu) causador das agruras humanas as pessoas procuram a Umbanda se

consultando com suas entidades que tambeacutem indicam Exu (Escora Pomba-Gira) para afastar o

mesmo Portanto tem presenccedila marcante no terreiro a partir das funccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias

em cada uma destas ldquoenergiasrdquo Sem Exu a Umbanda a Quimbanda e o Candombleacute natildeo

existem perdem a razatildeo de ser Enfim esta personalidade tatildeo hiacutebrida quanto agrave alma sertaneja

manteacutem o continuum integrado firme e cada vez mais forte na medida em que se coloca numa

5 Pai-de-santo do Candombleacute

posiccedilatildeo fronteiriccedila entre o bem e o mal na relaccedilatildeo entre o sagrado e a conduta sertaneja Exu

expressa a visatildeo de mundo no sertatildeo

Exu eacute elemento ativo na revitalizaccedilatildeo da Umbanda Sertaneja bem como o eacute na

reestruturaccedilatildeo dos seus terreiros A influecircncia do Candombleacute e o crescimento do

Neopentecostalismo na regiatildeo tem reforccedilado a feacute nesta personalidade o que nos leva a

compreender sua busca ou o seu fortalecimento como fundamental para a manutenccedilatildeo

metafiacutesica e fiacutesica dos terreiros Paira no imaginaacuterio afro-sertanejo a impossibilidade de viver

sem o apoio desta entidade O ritual Ogum Beira Mar realizado pelo terreiro afro-sertanejo

Recanto de Pai Joatildeo Velho no litoral baiano exemplifica esta entidade como recurso na busca

por forccedila espiritual equiliacutebrio pisico-emocional e material Vejamos pela histoacuteria deste terreiro

o quatildeo para os seus adeptos tal recurso se apresenta como essencial

O Recanto de Pai Joatildeo Velho foi fundado na deacutecada de 70 do seacuteculo passado pelo

um casal de catoacutelicos praticantes Nelson Dias e Nair Lopes Dias O casal se viu a partir de

acontecimentos que interpretaram como sobrenaturais lanccedilado na religiatildeo umbandista para o

cumprimento de uma missatildeo espiritual a caridade Crentes da necessidade de cumprirem tal

missatildeo iniciaram sozinhos a empreitada de constituiacuterem um terreiro e interpretarem atraveacutes da

associaccedilatildeo entre a literatura umbandista e intuiccedilotildees proacuteprias agrave cosmologia de Umbanda O fato

de permanecerem isolados em relaccedilatildeo a outros terreiros de manterem um centro Kardecista

como suporte da Umbanda e de natildeo se dedicarem integralmente agrave mesma levou-os a

estabelecer uma Umbanda considerada simples Isto eacute uma Umbanda que se desenvolveu com

poucas linhas Preto-Velho Escora e Pomba-Gira Meninos de Angola Caboclo e Sereias Dois

Orixaacutes regiam o terreiro Iemanjaacute e Xangocirc A primeira era cultuada uma vez por ano no mecircs de

Janeiro e o segundo em dias de festividades dos Pretos-Velho As poucas linhas para este casal

de sacerdotes supriam o que acreditavam ser o necessaacuterio sauacutede uniatildeo da famiacutelia proteccedilatildeo

contra inimigos encarnados e desencarnados e aquisiccedilatildeo de forccedila para o enfrentamento da vida

A escolha de poucas linhas pode ser entendida pela proximidade do casal com a doutrina

kardecista e seu distanciamento com o Candombleacute preacute-concebido pelos sacerdotes como

complexo e escravizante6

Durante quase trecircs deacutecadas a chefia do terreiro ficou nas matildeos de Seu Nelson e

Dona Nair Mas o falecimento do primeiro alterou o curso dos trabalhos bem como abriu

espaccedilo para a inserccedilatildeo de novos elementos A morte do sacerdote trouxe instabilidade e

desequiliacutebrio para o grupo que seguia suas intuiccedilotildees sem questionamentos A Umbanda se

iniciou no Brasil como uma religiatildeo fundamentada na oralidade e intuiccedilotildees dos sacerdotes Nos

uacuteltimos anos vem progressivamente se afastando da oralidade cada vez mais tem surgido

literaturas sobre sua teologia e teogonia A implantaccedilatildeo de uma faculdade umbandista na cidade

6 Em funccedilatildeo do grau de compromisso que esta religiatildeo exige dos seus adeptos

de Satildeo Paulo eacute um fato que chama a atenccedilatildeo porque demonstra a intenccedilatildeo nesta religiatildeo de uma

sistematizaccedilatildeo mais rigorosa No entanto no Norte de Minas Gerais a influecircncia do Candombleacute

inibe as raras tentativas de abandono da oralidade Esta assim como a intuiccedilatildeo do sacerdote

ainda eacute um dos motores que alimentam o terreiro Quando ocorre o seu desaparecimento os

adeptos se tornam oacuterfatildeos sem referecircncia e direccedilatildeo a exemplo dos integrantes do Recanto de Pai

Joatildeo Velho que sem seu liacuteder se viram num caos psico-espiritual que comprometia a identidade

do grupo A reestruturaccedilatildeo somente veio mediante um novo sacerdote Norivaldo Lopes Dias

filho do casal

Norivaldo conheceu a Umbanda atraveacutes dos pais e os rituais desta religiatildeo fizeram

parte da sua rotina de infacircncia e adolescecircncia Desenvolvido pelo pai este sacerdote adquiriu

experiecircncia e sabedoria sobre a espiritualidade umbandista o que lhe garante atualmente ser

um liacuteder De acordo com os adeptos do terreiro sua independecircncia espiritual jaacute era notada

mesmo quando ldquotrabalhavardquo sob a lideranccedila paterna Tal independecircncia lhe concedeu o direito e

a seguranccedila para inovar dando ao Recanto de Pai Joatildeo Velho uma nova formataccedilatildeo ritualiacutestica

Satildeo notaacuteveis as mudanccedilas que ocorrem sob seu comando Seus dons comparados aos do

primeiro sacerdote satildeo diferentes o que na Umbanda natildeo causa surpresa Para os umbandistas a

energia de cada sacerdote estaacute no Orixaacute e nas linhas que o guardam possuindo com estas

afinidades e estreitas ligaccedilotildees A forccedila espiritual do terreiro que dirige deve ser a forccedila das

linhas reveladas pela sua mediunidade Uma vez identificadas as linhas que comandam sua

ldquocabeccedilardquo satildeo trabalhadas a fim de garantir a seguranccedila a proteccedilatildeo e o poder do sacerdote

O sacerdote Norivaldo neste momento estaacute num processo de afirmaccedilatildeo e de

legitimaccedilatildeo da sua lideranccedila Progressivamente vai estabelecendo e impondo meacutetodos proacuteprios

para lidar com a espiritualidade Ser reconhecido pelo grupo como um indiviacuteduo dotado de uma

grande e legiacutetima forccedila espiritual ou seja como detentor do capital simboacutelico lhe garante o

comando do terreiro A lideranccedila no campo religioso eacute legitimada pelos leigos quando estes

reconhecem no sacerdote a concentraccedilatildeo do capital religioso Ao sacerdoteespecialista cabe o

monopoacutelio e a gestatildeo do capital simboacutelico Sua relaccedilatildeo com os leigos eacute determinada pela

existecircncia deste O grupo espera do liacuteder religioso a realizaccedilatildeo de accedilotildees maacutegicas que tenham

como finalidade seu bem-estar e ao especialista cabe corresponder a esta expectativa sendo

assim sua legitimidade como liacuteder eacute inquestionaacutevel Daiacute a necessidade do sacerdote Norivaldo

demonstrar sua forccedila espiritual como essencial para a existecircncia e permanecircncia do grupo Em

suas palavras eacute possiacutevel vislumbrar o capital simboacutelico que acumulou em anos como

umbandista

A determinaccedilatildeo de cada meacutedium que tem a coordenaccedilatildeo do centro ele tem que ter natildeo soacute a desenvoltura espiritual ele tem que ter o equiliacutebrio do mundo espiritual com o mundo material ()

() Aqueles que realmente trabalham da linhagem que natildeo cobram satildeo sofredores Natildeo sofredores em questatildeo de alegria alegria tem mas sofredores porque vocecirc vai chegando num ponto do seu tempo de espiritualidade que vocecirc vai tendo a videcircncia e essa videcircncia vai deixando vocecirc ter as leituras natildeo soacute do conhecimento espiritual como do conhecimento material sobre cada determinada pessoa Eacute quando vocecirc comeccedila a sofrer as emoccedilotildees de cada um e ler o coraccedilatildeo de cada um e sentir tudo o que a pessoa sente [] As emoccedilotildees que vem sobre o meacutedium eacute muito forte

Este sacerdote reconhece a necessidade do especialista em transitar com equiliacutebrio

entre o mundo sensiacutevel e o mundo invisiacutevel A videcircncia que acredita lhe conceder o

conhecimento sobre cada um dos seus possibilitando viver suas emoccedilotildees eacute exemplo claro do

capital simboacutelico Viver as emoccedilotildees do outro eacute partilhar da sua existecircncia Significa mais que

consenso Significa aproximaccedilatildeo metafiacutesica emocional e espiritual Na Umbanda o liacuteder

religioso precisa transmitir seguranccedila confianccedila e afetividade em relaccedilatildeo agravequeles que o seguem

Lidar com o maacutegico com o invisiacutevel com o que se desconhece soacute eacute possiacutevel nesta religiatildeo sob

o olhar seguro de um liacuteder carismaacutetico A histoacuteria espiritual do sacerdote tambeacutem eacute seu capital

Graccedilas agraves suas accedilotildees consideradas como maacutegicas conquistaram espaccedilo privilegiado no terreiro

pois destilavam confianccedila e competecircncia Entretanto sua lideranccedila inaugura neste terreiro um

novo tempo Seguindo a tendecircncia do campo afro-sertanejo insere novos elementos adquiridos

no Candombleacute o que concede ao Recanto de Pai Joatildeo Velho uma nova formataccedilatildeo com a

chegada de outras linhas Enquanto seu pai acreditava serem os orixaacutes Xangocirc e Iemanjaacute

suficientes para espiritualmente sustentar o terreiro este sacerdote inaugura novas linhas com

destaque para a Linha de Ogum A partir dos ritos a este Orixaacute acredita ser possiacutevel promover a

revitalizaccedilatildeo da sua Umbanda

O contexto caoacutetico em que se encontrava o Recanto de Pai Joatildeo Velho e as

qualidades do Orixaacute Xangocirc justifica-o como recurso para saiacuteda do caos Para o teoacutelogo

umbandista Rubens Saraceni (2005) Ogum foi gerado por Olorum (Deus) desta forma eacute em si

mesmo a ordenaccedilatildeo divina ldquoa qualidade ordenadora e a divindade aplicadora dos princiacutepios

da Lei Maiorrdquo ldquoSua qualidade ordena a evoluccedilatildeo e por isso ele eacute tido como o Senhor dos

Caminhos (das vias evolutivas)rdquo ldquoeacute a lei que rege a vida dos seresrdquo Isto eacute Ogum tem a

qualidade de propiciar ordem organizaccedilatildeo e estruturaccedilatildeo Aplicando a lei de Deus este orixaacute

tem o poder de findar o caos Ogum portanto para o sacerdote deste terreiro eacute o Orixaacute a quem

se deve recorrer em momentos de desordem

Podemos encontrar justificativas tambeacutem na mitologia afro Nesta Ogum eacute o

orixaacute-irmatildeo de Exu aleacutem de dirigir uma falange de elementos constituiacutedos desta natureza

Personalidade essencial dos templos afro-sertanejos Exu associado ao orixaacute ordenador eacute recurso

e instrumento de renovaccedilatildeo Atraveacutes de Exu eacute possiacutevel compreender os motivos que

possibilitaram a procura por esta divindade num momento criacutetico como o vivido pelo Recanto

de Pai Joatildeo Velho Trindade e Coelho (2006 p23) nos afirma que o princiacutepio dinacircmico da

existecircncia coacutesmica e humana eacute representado nas religiotildees ioruba e fon pela divindade Exu

Este ldquocomo princiacutepio diz respeito a todos os domiacutenios da experiecircncia coacutesmica e humanardquo

Nesta perspectiva satildeo muitas as narrativas miacuteticas7 sobre esta divindade e em todas haacute um ponto

em comum a liberdade o dinamismo e o movimento de Exu Se Ogum rege falanges de Exus -

princiacutepio dinacircmico movimento - e eacute o orixaacute ordenador entende-se portanto porque que para os

umbandistas ele significa abertura dos caminhos amparo contra os inimigos e vitoacuteria sobre

demandas espirituais e materiais Sua presenccedila num terreiro portanto significa forccedila

dinamismo e vitalidade

No Recanto de Pai Joatildeo Velho esta divindade chegou para reativar erguer e

reestruturar metafisicamente o terreiro conferir a este uma nova dinacircmica Para tanto provocou

a chegada de novas forccedilas Iansatilde e Oxum e o retorno do culto a Iemanjaacute no sertatildeo Vejamos a

contribuiccedilatildeo de cada divindade no contexto deste terreiro

Iansatilde para Saraceni (2005) eacute a divindade da lei pois expande o fogo de Xangocirc

orixaacute da justiccedila Quando um ser eacute purificado de seus viacutecios Iansatilde atua para redirecionaacute-lo

agindo no emocional e proporcionando um novo sentido da Vida Na mitologia afro eacute

representada como a deusa dos ventos e da tempestade amada por Ogum aprende com este a

arte da guerra No Recanto de Pai Joatildeo Velho Iansatilde atua como forccedila auxiliar de Ogum

aplicando a lei divina e direcionando seus adeptos na busca por um novo caminho

Oxum segundo o mesmo teoacutelogo eacute o poacutelo positivo da onda de Amor Divino Ao

irradiar amor agrega os seres e em ondas coronais liga agraves substacircncias os elementos as

essecircncias e os sentimentos Desta forma une entes afins entre si pelo elo do amor A mitologia

afro apresenta Oxum como agrave deusa da beleza e do amor que junta as pessoas doce e meiga sua

presenccedila da deusa da aacutegua doce emana serenidade e harmonia No Recanto de Pai Joatildeo velho

Oxum eacute recurso metafiacutesico para a reuniatildeo dos adeptos em torno do mesmo objetivo tornar o

terreiro mais coeso

Iemanjaacute natildeo eacute muito cultuada no sertatildeo norte mineiro Satildeo raros os terreiros que a

tomam como orixaacute principal Em geral divide com outros seres encantados as atenccedilotildees dos

adeptos Durante quase trecircs deacutecadas esta deusa junto com Xangocirc e Nanatilde reinou no Recanto de

Pai Joatildeo Velho um dos poucos templos a cultuaacute-la Sua festividade era muito esperada pois se

acreditava que o progresso e a prosperidade poderiam ser proporcionados por ela Apoacutes a morte

do sacerdote fundador do terreiro um grupo de adeptos liderados por uma das meacutediuns por sete

anos consecutivos cultuou a deusa dos oceanos em sua casa ou seja no mar O propoacutesito era a

partir desta divindade sustentar espiritualmente o grupo ateacute a chegada de um novo sacerdote

7 Ver Mitologia Dos Orixaacutes de Reginaldo Prandi

Entretanto para o sacerdote atual ao ser cultuada em sua proacutepria morada Iemanjaacute natildeo mais

retornou daiacute agrave necessidade de buscaacute-la conduzi-la novamente ao sertatildeo

A teologia umbandista estabelece Iemanjaacute como irradiaccedilatildeo divina da criatividade e

do amparo agrave vida Eacute fator gerador e magnetiza os seres fecircmeas estimulando a maternidade Na

mitologia a deusa dos oceanos tambeacutem eacute associada agrave criaccedilatildeo Reza a lenda que ao participar da

criaccedilatildeo do mundo Iemanjaacute torna-se matildee dos orixaacutes No Recanto de Pai Joatildeo Velho esta

divindade tem a funccedilatildeo de fortalecer os laccedilos familiares e eacute vaacutelido lembrar que a Umbanda eacute

uma religiatildeo feminina a presenccedila da mulher portanto eacute forte em todos os seus templos O

Recanto de Pai Joatildeo Velho natildeo foge a regra pois a maioria dos meacutediuns satildeo mulheres que

trazem em sua companhia maridos e filhos No restabelecimento deste terreiro a ecircnfase na

uniatildeo familiar via Iemanjaacute orixaacute feminino coloca a mulher como um ponto de forccedila

estruturador

Com os orixaacutes Ogum Iansatilde Oxum e Iemanjaacute o sertatildeo vai ao mar tendo como

objetivo principal a reintegraccedilatildeo metafiacutesica da uacuteltima ao terreiro Durante sete anos o grupo

liderado por Ogum lhe renderaacute culto atraveacutes de oraccedilotildees cacircnticos oferendas e o sacrifiacutecio do

deslocamento treze horas de viagem Acreditam que o retorno da deusa concluiraacute

definitivamente o processo de estruturaccedilatildeo do templo Esta eacute uma das finalidades talvez a

principal do rito ldquoOgum Beira-Marrdquo Neste mulheres incorporam guerreiras de Iansatilde Oxum e

Iemanjaacute Ao lado do orixaacute ordenador se coloca uma deidade que redireciona o que se encontra

desorientado Iansatilde uma deusa que agrega e reuacutene o que estava fragmentado Oxum e outra

que aleacutem de estimular a criatividade manteacutem ativo o fator gerador responsaacutevel pelo sentimento

maternal Iemanjaacute As divindades em questatildeo invocadas pelos adeptos do Recanto de Pai Joatildeo

Velho satildeo reunidas agrave beira do mar de forma a buscarem neste ponto-de-forccedila originaacuterio os

elementos sustentadores do grupo e re-significaccedilotildees cosmoloacutegicas estimuladoras da

religiosidade impactada pela morte Vejamos brevemente este ritual

O rito Ogum Beira Mar ocorreu no dia 20 de Abril de 2009 proacuteximo agrave data em que

se comemora o Dia de Satildeo Jorge santo sincretizado com Ogum Aleacutem deste orixaacute estavam

presentes no ritual os seus guerreiros e isso envolve Iansatilde Oxum e Iemanjaacute uma vez que neste

rito as forccedilas destes servem de apoio Para tanto oferendas foram preparadas para agradaacute-los

bem como a outras entidades integrantes do panteatildeo do templo a exemplo dos Meninos de

Angola o povo Cigano e as Pombas-Gira De modo a organizar os preparativos que antecedem

o rito o grupo saiu da cidade de Montes Claros no Norte de Minas Gerais no dia 17 de abril e

enfrentaram uma longa viagem Uma pousada foi alugada para esperar os trinta e cinco adeptos

do terreiro e mais alguns convidados

Agraves seis horas da tarde do Domingo dia 19 de abril iniciaram-se os preparativos A

cada participante foi conferida uma tarefa como pintar e bordar vestimentas convenientes ao

rito preparar comidas e outras oferendas treinar cacircnticos afinar os atabaques arrumar o barco

dedicado a Iemanjaacute e escolher a praia onde se realizaria o ldquotrabalhordquo Algumas pessoas

permaneceram acordadas durante toda a noite no propoacutesito de conferir cada detalhe Permeia

entre os adeptos uma grande preocupaccedilatildeo com as minuacutecias almeja-se que tudo ocorra de

maneira perfeita Ao amanhecer arrumadas em uma grande mesa estavam todas as oferendas

aleacutem das ferramentas do Orixaacute Ogum espada capacete escudo e colete

Agraves seis horas da manhatilde do dia 20 de abril mesmo com o dia nublado indicando

chuva o grupo sai em direccedilatildeo ao local escolhido uma praia deserta distante de olhares

curiosos Trinta minutos depois chegam agrave praia Agrave frente do grupo o sacerdote Norivaldo se

dirige ao mar para cumprimentaacute-lo Na Umbanda Sertaneja contempla-se vida na natureza

Apoacutes isso todos repetiram o gesto do liacuteder As oferendas foram arranjadas num longo tecido

vermelho entre a vegetaccedilatildeo beira-mar e em meio agraves oferendas foram acesas velas vermelhas

Dois atabaques enfeitados com fitas vermelhas foram alocados a uma distacircncia de cinquumlenta

metros do mar formando um ciacuterculo juntamente com os participantes do trabalho Ao centro

foi colocado o barco de Iemanjaacute com presentes e flores para esta deusa aleacutem de papeacuteis com

pedidos dos participantes e seus seguidores Ao lado do barco foi colocada uma imagem de Satildeo

Jorge simbolizando Ogum velas em forma de espada e as ferramentas do orixaacute Vestindo uma

capa que lembra a vestimenta de um soldado romano o sacerdote inicia a cerimocircnia que seraacute

aqui brevemente apresentada

Sacerdote ldquoMeus irmatildeos nesta obrigaccedilatildeo ao meu pai Ogum eu peccedilo a vocecircs aqueles que

vieram buscar a caridade e fazer seus pedidos para que possam ficar firmes para que possam

ser levadas as coisas boas para com noacutes para que noacutes pudemos assim trazer as coisas boas e as

energias positivas para todos noacutes Primeiramente agradeccedilo a todos vocecircs por terem vindo e

estar participando aqui hoje muitos estatildeo vindo pela primeira vez () Eu agradeccedilo de antematildeo

a todos vocecircs por terem vindo participar dessa obrigaccedilatildeo que noacutes fazemos aqui na beira do

mar E de todo coraccedilatildeo eu peccedilo a Deus para que noacutes pudeacutessemos assim vir e levar as coisas

boas para com noacutes E neste momento noacutes vamos fazer uma prece para iniciar a nossa reuniatildeo

na beira do mar a nossa gira abrindo ela pedindo muita forccedila muita proteccedilatildeo por todos noacutes

(Oraccedilatildeo do Pai Nosso e a Ave Maria)

O sacerdote pergunta se algueacutem quer falar alguma coisa ou mesmo agradecer A sacerdotisa

Nair Lopes Dias agradece a presenccedila de todos e a proteccedilatildeo espiritual que acredita estar

recebendo naquele momento Pede que todos se concentrem e orienta como fazer os pedidos

Outros repetem seu gesto lembrando a missatildeo do sacerdote fundador e de uma adepta falecida

recentemente

Sacerdote Louvado seja o nosso senhor Jesus Cristo

Todos Para sempre seja louvado

O atual sacerdote lembra a adepta morta agradecendo a presenccedila de alguns de seus familiares

Lembra tambeacutem o sacerdote fundador dizendo que todas as obrigaccedilotildees ligadas ao seu

falecimento foram cumpridas naquela praia Em seguida eacute feita uma prece dirigida ao antigo

sacerdote e agrave adepta do terreiro agradecendo suas contribuiccedilotildees ao mesmo enquanto estavam

vivos A prece tambeacutem foi estendida agravequeles que natildeo estavam presentes

Sacerdote Neste momento eu faccedilo essa prece que recebam de coraccedilatildeo essa firmeza toda essa

energia nossa do nosso coraccedilatildeo e do nosso pensamento Como se diz noacutes estamos aqui de

passagem noacutes estamos num ponto de referecircncia quando noacutes cumprimos a nossa missatildeo o que

resta soacute satildeo as lembranccedilas e o amo fraterno que noacutes levamos e deixamos pra todos aqueles que

amamos (Pai Nosso Ave Maria)

Sacerdote Peccedilo a vocecircs bastante firmeza concentraccedilatildeo faccedilam seus pedidos mentalmente

abram um pouco o coraccedilatildeo para que as coisas boas possam entrar em vocecirc e do seu

pensamento tambeacutem Peccedilo licenccedila saudando Iemanjaacute para que noacutes pudeacutessemos abrir o nosso

trabalho com a licenccedila permitida por ela na forccedila maior toma conta de noacutes Iemanjaacute Salve

Iemanjaacute

Os atabaques ressoam Apoacutes isso iniciam saudaccedilotildees a todas as linhas Baianos Xangocirc

Iansatilde Oxum Escoras Pomba-gira Preto Velho Meninos de Angola Caboclos e o povo cigano

Sauacutedam tambeacutem a Aruanda8 e a Quimbanda A saudaccedilatildeo a esta eacute expressa cantando-se para

Exu Apoacutes cumprimentarem todos os orixaacutes e as linhas que compotildeem o terreiro o sacerdote

finalmente invoca Ogum saudando-o

- Ogum Meu Pai Na forccedila maior Ogum iecirc

Todos repetem suas palavras e comeccedilam a cantar para o Orixaacute Em alguns minutos o

sacerdote daacute sinais de estado alterado de consciecircncia logo depois se apresenta com a

personalidade-Ogum Este natildeo fala eacute possiacutevel apenas ouvir o som de sua forte respiraccedilatildeo Eacute

formada uma gira com os meacutediuns em sua maioria mulheres Agrave medida que os cantos satildeo

intensificados seguidos dos atabaques o transe se espalha pela gira Iansatilde Oxum Iemanjaacute e seus

guerreiros se manifestam O rito durante mais de uma hora transcorre da seguinte maneira os

guerreiros realizam descarregos nas pessoas Ogum se coloca de frente para o mar ao seu lado

um a um os adeptos segurando uma garrafa de cerveja se posicionam de frente por mar Com a

espada Ogum abre a garrafa que estaacute na matildeo do adepto Uma vez aberta agrave cerveja a pessoa

acompanhada por um ajudante vai ateacute o mar onde esta eacute derramada sobre sua cabeccedila Todos

passam por este rito e a chuva forte natildeo desestimula os participantes

Terminado o banho com a cerveja Ogum se despede abraccedilando a todos Pega a imagem

de Satildeo Jorge e a levanta em direccedilatildeo ao mar e coloca-a na areia onde tambeacutem crava sua espada

Caminha para o mar seguido da sacerdotisa Nair Lopes Dias a irmatilde e a esposa do sacerdote

Diante do mar o sacerdote sai do transe Consciente retorna ao grupo e faz uma uacuteltima saudaccedilatildeo

ao orixaacute

8 Local metafiacutesico onde acreditam estarem dos deuses

- Salve Ogum

Apoacutes comeccedila a cantar o ponto do Exu Pilatildeo seu Escora9

- Aroeira aroeira jaacute chegou o Pilatildeo aroeira

Em alguns segundos estaacute novamente em transe possuiacutedo pela personalidade-Pilatildeo O

Escora demonstra alegria brinca com todos e faz observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chuva Abraccedila um a

um ouvindo seus pedidos e dando orientaccedilotildees Elogia o empenho de todos em estarem ali e os

agradece por estarem cumprindo aquele compromisso Enquanto conversa outra meacutedium recebe

sua Pomba-Gira que tambeacutem abraccedila os participantes ouvindo seus pedidos O momento com o

Escora e a Pomba-Gira eacute descontraiacutedo e muito espontacircneo Apoacutes conversar e abraccedilar a todos

Pilatildeo e a Pomba-Gira se despedem A meacutedium e o sacerdote saem do transe Sob uma chuva

torrencial duas horas depois do iniacutecio da cerimocircnia o rito Ogum Beira-Mar chega ao fim

Sacerdote Bem meus irmatildeos fizemos nossas obrigaccedilotildees taacute entregue

Sacerdote Ano que vem meus irmatildeos estamos aqui de novo com a ajuda da forccedila maior e dos

nossos irmatildeos espirituais Estaacute encerrado o trabalho de meu Pai Ogum

O sertatildeo vai ao mar atraveacutes do rito Ogum Beira-Mar Atitude metafiacutesica de um grupo

envolvido pela miacutestica sertaneja este rito daacute vida agraves palavras de Riobaldo ldquoO sertatildeo estaacute em

toda parterdquo Como mundo imbricado de elementos diversos e adversos e que transitam num

fluxo constante o sertatildeo habita a alma do sertanejo e a ela pertence No litoral eacute o momento

presente de tracircnsito em que se cruzam espaccedilo e tempo eacute ponte entre dois universos culturais

que acumula enquanto passagem que atravessa Pelo rito o sertatildeo estabelece diaacutelogos culturais

recuperando identidades que pareciam dissolvidas pela morte

A identidade sertaneja eacute garantida pelo seu ethos desvelado na personalidade-Exu

Hiacutebrido e ambivalente como o sertatildeo Exu comparece ao rito tornando mais forte a presenccedila

sertaneja no litoral consigo carrega o sertatildeo e a tensatildeo axioloacutegica nele presente demonstrando

que apesar da modernizaccedilatildeo esta regiatildeo natildeo abandonou as tradiccedilotildees O rito eacute espaccedilo-momento

onde elementos culturais de duas regiotildees se sobrepotildeem produzindo novos signos de identidade

pois a articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais natildeo ocorre em momentos estaacuteticos mas sim nos

interstiacutecios em espaccedilos-momentos quando elementos diferentes em movimentos dialeacuteticos

provocam re-significaccedilotildees

O sertatildeo portanto natildeo repousa no estaacutetico ele se movimenta vai ao mar - fonte

originaacuteria - para re-significar resgatar revitalizar e garantir sua religiosidade A Umbanda

Sertaneja ao conduzi-lo igualmente se apresenta como um espaccedilo de forccedilas hiacutebrido sincreacutetico e

intersticial aberto agrave integraccedilatildeo de novos elementos e assim se caracteriza detentora da

identidade norte-mineira

9 Na Umbanda Sertaneja denomina-se como Escora o Exu doutrinado

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Maracatu rural uma heranccedila religiosa afro-indigena na capital pernambucana

Joseacute Roberto Feitosa de Sena

Antecedentes Histoacuterico-antropoloacutegicos Maracatu Rural A partir de 1888 com a promulgaccedilatildeo da lei Aacuteurea a matildeo-de-obra escrava eacute substituiacuteda

pelo trabalho livre No entanto a aboliccedilatildeo do sistema escravista natildeo deu aos negros condiccedilotildees de ascensatildeo social continuando a viver agrave margem de uma sociedade aristocraacutetica Soacute que agora natildeo eacute mais o negro receacutem chegado da Aacutefrica e sim o afro-brasileiro processo de uma miscigenaccedilatildeo com brancos e iacutendios

Por volta do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX os trabalhadores canavieiros se reuniam nos periacuteodos de folga para brincar e festejar mais um final de semana apoacutes o aacuterduo trabalho na cana de accediluacutecar Segundo Katarina Real (apud VICENTE 2005) aos poucos esses homens foram improvisando ritmos com os instrumentos de trabalho e difundindo elementos dos vaacuterios folguedos da regiatildeo da Zona da Mata Norte de Pernambuco como o Cocircco o Cavalo Marinho Reisado Folia (ou rancho) de Reis Pastoril Bumba-Meu-Boi Caboclinho cheganccedila e etc Incorporando tambeacutem toadas dos Maracatus-naccedilatildeo e ldquoaruecircndasrdquo Assim surge o Maracatu de Baque Solto Em seu livro Folclore no carnaval do Recife a autora defende converge com a tese de outro pesquisador do tema Olimpio Bonald

ldquoO maracatu rural em resumo seria um produto do sincretismo afro-iacutendio gerado pela criatividade do povo rural canavieiro da Zona da Mata-Norte ao ser incorporado e reciclado no caldeiratildeo cultural do grande Reciferdquo (BONALD apud VICENTE 2005 p 31)

O pesquisador Roberto Benjamin (1998) atribui a origem do Maracatu de Baque Solto agraves Cambindas que eram ldquobrincantes masculinos vestidos de mulherrdquo A palavra vem de Cabinda regiatildeo ao norte da Angola acima do rio Congo (MEDEIROS 2005) Haacute ainda hoje grupos de Cambindas informa Benjamin na Paraiacuteba e em Pernambuco nos municiacutepios de Ribeiratildeo Pesqueira Satildeo Bento do Una Triunfo Bonito e Bezerros A hipoacutetese do pesquisador (VICENTE 2005) eacute que o Maracatu de Baque Solto tenha surgido de uma evoluccedilatildeo das Cambindas em contato com os demais folguedos da regiatildeo Inclusive os dois Maracatus deste baque mais antigos de Pernambuco satildeo Cambindinha do Araccediloiaba (1914) e Cambinda brasileira (1918) o mesmo autor salienta que o termo ldquoMaracaturdquo tenha sido uma imposiccedilatildeo dos folcloristas da eacutepoca jaacute que as Cambindas do interior eram ldquofeias e rudesrdquo ao contraacuterio dos Maracatus Naccedilatildeo que jaacute eram atraccedilotildees do carnaval recifense

Guerra-Peixe em sua obra Maracatus do Recife que estuda em especial os aspectos musicais afirma que os Maracatus-de-orquestra se originam da fusatildeo dos folguedos da Zona da Mata e de variaccedilotildees dos Maracatus tradicionais cita ainda Gonccedilalves Fernandes e Maacuterio de Andrade como pesquisadores do termo ldquoMaracaturdquo Segundo ele o primeiro atribui a palavra a uma variaccedilatildeo linguumliacutestica do norte de Angola maracatucaacute que significa ldquovamos debandarrdquo termo utilizado pelos escravos no momento que a manifestaccedilatildeo era reprimida pelas forccedilas oficiais e o segundo se refere a maracaacute (instrumento indiacutegena) e a palavra catu (bonito) (GUERRA-PEIXE 1980) Jaacute Mariana Mesquita Nascimento coloca ainda que o termo

PIBIC UNICAP Orientador Profordm Dr Seacutergio Sezino Douets Vasconcelos Graduando em Histoacuteria Universidade Catoacutelica de Pernambuco joseroberosenahotmailcom

Maracatu venha da Angola onde ainda hoje eacute danccedilada pela tribo dos Bombos ao norte de Luanda (NASCIMENTO 2005)

Conceitos e definiccedilotildees agrave parte esse termo acabou sendo aplicado a essa ldquoexoacuteticardquo danccedila camponesa por possuir semelhanccedilas evidentes ao Maracatu urbano Jaacute a denominaccedilatildeo ldquoMaracatu Ruralrdquo soacute foi dada na deacutecada de 60 pela antropoacuteloga norte-americana Katarina Real quando tentava distinguir os dois tipos de Maracatus principalmente pelos instrumentos de sopro (trompete trombone e clarinete) inexistentes no Maracatu de Baque Virado Segundo Real (1967) nessa mesma deacutecada o Maracatu estudado tambeacutem era conhecido como ldquoMaracatu-de-orquestrardquo ldquoMaracatu-de-trombonerdquo ldquoMaracatu ligeirordquo ldquoMaracatu de caboclordquo ldquoMaracatu de baque singelordquo e ldquosamba de matutordquo entre folgazotildees Neste periacuteodo os grupos sofriam forte preconceito por parte da imprensa que os denominavam pejorativamente de Maracatu descaracterizado ou distorcido O Maracatu Rural no Grande Recife Adaptaccedilotildees e Impactos Culturais

A partir da deacutecada de 30 a crise que antecede a II Guerra Mundial levam os trabalhadores rurais a deslocarem-se do campo para a Regiatildeo Metropolitana do Recife onde passam a adaptar-se a vida na grande cidade na sua grande maioria como vendedores informais operaacuterios pedreiros e biscateiros uma nova realidade social ocupada nos bairros da periferia (VICENTE 2005)

Casa Amarela Bongi Cidade Tabajara Timbi Aacuteguas Compridas Bomba do Hemeteacuterio Torrotildees Cordeiro e Bultrins satildeo alguns dos subuacuterbios que abrigaram o maior nuacutemero de Maracatus procedentes do interior do Estado A dor e o sofrimento de terem que abandonar sua terra para conseguir a sobrevivecircncia na capital esta intimamente ligada agraves intenccedilotildees de preservar as tradiccedilotildees da Zona da Mata

A memoacuteria desses grupos eacute importada para o centro urbano e traduz o sentimento individual e coletivo dos saberes e praacuteticas vivenciadas no mundo rural que agora tentaratildeo reinventar no meio urbano negociando interesses e buscando a manutenccedilatildeo de valores

ldquoA lembranccedila eacute em larga medida uma reconstruccedilatildeo do passado com ajuda de dados emprestados do presente e aleacutem disso preparada por outras construccedilotildees feitas em eacutepocas anteriores e de onde a imagem de outrora jaacute manifestou-se jaacute nem alteradardquo (HALBSWACHS 1930 p71)

O Maracatu de Orquestra ou Maracatu de Trombone como tambeacutem eacute chamado por

esses migrantes foi uma das maneiras utilizadas para matar a saudade e reafirmar os laccedilos daquela comunidade (VICENTE 2005) Desta maneira surgem os Maracatus Cruzeiro do Forte Leatildeo Formoso de Olinda e Piaba de Ouro principais objetos de pesquisa deste projeto Reinvenccedilotildees do rural no urbano A interferecircncia da Federaccedilatildeo Carnavalesca de Pernambuco

A Federaccedilatildeo Carnavalesca de Pernambuco foi criada em 1935 por intelectuais

folcloristas dentre eles o jornalista Maacuterio Melo durante o governo de Carlos de Lima Cavalcanti interventor nomeado por Getuacutelio Vargas no regime do Estado Novo passando a ser responsaacutevel pela organizaccedilatildeo do carnaval e dos desfiles das agremiaccedilotildees A Federaccedilatildeo meses antes da folia de momo recebia verbas da Prefeitura e do Governo do Estado poreacutem o real interesse desta elite intelectual era controlar e fiscalizar tal manifestaccedilatildeo folcloacuterica que ateacute entatildeo pouco se conhecia pois a palavra ldquoMaracaturdquo se referia apenas aos Maracatus Naccedilatildeo (NASCIMENTO 2005)

A fim de pocircr ordem na apresentaccedilatildeo das agremiaccedilotildees carnavalescas a FCP atuava em conjunto com a Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica o Serviccedilo de Censura de Diversatildeo Puacuteblico Delegacia de Ordem Social e o COC (Comissatildeo de Organizaccedilatildeo do Carnaval) Esses oacutergatildeos agiam na intenccedilatildeo de adaptar os grupos de Maracatu Rural e outros folguedos provenientes do interior e das zonas suburbanas ao carnaval tradicional do Recife pressionando as lideranccedilas a adaptarem o seu grupo aos padrotildees carnavalescos da eacutepoca (MEDEIROS 2005)

Muitos foram os Maracatus que sob pressatildeo ou cooptaccedilatildeo mudaram de baque passando a se apresentar como Maracatu Naccedilatildeo enquanto outros que embora tenham mantido o baque assimilaram personagens do Baque Virado Eacute o caso da existecircncia da cocircrte real no Maracatu de Baque Solto pois a representaccedilatildeo do rei da rainha e das demais figuras ligadas ao cortejo real eacute originalmente dos Maracatus de Baque Virado Pressupostos teoacutericos para interpretaccedilatildeo religiosa do Maracatu Rural

Para compreensatildeo antropoloacutegica do Maracatu de Baque Solto nos utilizamos do conceito de cultura elaborado por Clifford Geertz que a interpreta a partir de uma rede simboacutelica

O conceito de cultura que eu defendo eacute essencialmente semioacutetico Acreditando como Marx Weber que o homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e a sua anaacutelise portanto natildeo como uma ciecircncia experimental em busca de leis mas como uma ciecircncia interpretativa em busca de significados (GEERTZ 1989 p 15)

Para Geertz a cultura deve ser compreendida como uma rede de siacutembolos e eacute tarefa da antropologia interpretaacute-la sem cometer generalizaccedilotildees e tentativas de totalizaccedilatildeo Deve-se fazer uma descriccedilatildeo densa atraveacutes do trabalho etnograacutefico e a partir dos dados levantados buscar a compreensatildeo hermenecircutica dos significados que formam as mais variadas manifestaccedilotildees culturais

Nos Maracatus objeto dessa pesquisa percebemos uma vasta rede de significados que expressam a polissemia da ldquobrincadeirardquo Seus sentidos sagrados e profanos satildeo levados agraves ruas como uma forma de pocircr em praacutetica a visatildeo de mundo e as experiecircncias vivenciadas por aquele grupo cultural

O autor avalia que os siacutembolos sagrados satildeo o ethos de um povo onde os homens tecircm uma grande dependecircncia em relaccedilatildeo aos siacutembolos sendo eles decisivos nas suas criaccedilotildees O sistema simboacutelico natildeo apenas interpreta como tambeacutem cria um modelo de sociedade

A religiosidade presente nas agremiaccedilotildees culturais eacute um conjunto de siacutembolos que daacute sentido e permite aos indiviacuteduos uma leitura da sociedade bem como de sua ordem

O ethos de um povo eacute o tom o caraacuteter e a qualidade de sua vida seu estilo moral e esteacutetico e sua disposiccedilatildeo eacute a atitude subjacente em relaccedilatildeo a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete A visatildeo de mundo que este povo tem eacute o quadro que ele elabora das coisas como elas satildeo na simples realidade seu conceito da natureza de si mesmo da sociedade (GEERTZ 1989 p 93)

Portanto o conceito de cultura de Geertz e sua relaccedilatildeo com o ethos dos grupos culturais satildeo as bases fundamentais dessa pesquisa tendo em vista que partimos do pressuposto de que no interior do Maracatu eacute vivenciada uma experiecircncia religiosa que aglutina os sentidos sagrados e sincreacuteticos da cultura afro-brasileira e indiacutegena

Como fundamentaccedilatildeo teoacuterica pertinente para a compreensatildeo de sentido sagrado do Maracatu Rural utilizamos outros autores como do socioacutelogo da religiatildeo Peter Berger que analisa a construccedilatildeo da realidade a partir das concepccedilotildees e sentimentos dos indiviacuteduos e que se torna real com o processo de reproduccedilatildeo e transmissatildeo de sentidos que configuram a identidade social

O sentido se projeta na consciecircncia na construccedilatildeo do individuo que individualizou num corpo e se tornou pessoa atraveacutes de processos sociais [] O sentido nada mais eacute do que uma forma complexa de consciecircncia natildeo existe em si mas sempre possui um objetivo de referecircncia sentido eacute a consciecircncia de que existe uma relaccedilatildeo entre as experiecircncias []Nessas diferentes dimensotildees de sentido eacute que se constroacutei a significacircncia complexa de agir social e das relaccedilotildees sociais a vida cotidiana estaacute repleta de muacuteltiplas sucessotildees de agir social e eacute somente neste agir que se forma a identidade pessoal do individuordquo (BERGER 2004 p 14-17)

Berger considera ainda o sistema sagrado como algo que vai aleacutem das rotinas normais do cotidiano como algo extraordinaacuterio e potencialmente perigoso que eacute domesticado e utilizado como forccedila para as necessidades do dia-a-dia (BERGER 1985) ldquoAchar-se numa relaccedilatildeo correta com o cosmos sagrado eacute ser protegido contra o pesadelo das ameaccedilas do caosrdquo (BERGER 1985 p 39-40)

Nos dias que antecedem ao carnaval observamos que existe uma seacuterie de preparos lituacutergicos para sua saiacuteda que se realizam por meio de cerimocircnias afro-indigenas e que pretendem a partir do diaacutelogo com o divino proteger fiacutesica e espiritualmente os membros integrantes do Maracatu Rural Conforme as consideraccedilotildees de Berger eacute um fator caracteriacutestico do sistema religioso o contato com o mundo miacutetico objetivando as realizaccedilotildees humanas

Peter Berger afirma ainda que o homem eacute um produto da sociedade bem como a sociedade eacute o resultado de suas accedilotildees (BERGER 1985 p15) uma dialeacutetica que consiste em trecircs momentos da construccedilatildeo social humana satildeo elas exteriorizaccedilatildeo objetivaccedilatildeo e a interiorizaccedilatildeo Soacute podemos compreender a sociedade segundo ele se analisarmos empiricamente essas trecircs etapas A exteriorizaccedilatildeo eacute o momento em que o individuo se encontra no mundo e interage com ele eacute o contiacutenuo contato do ser com o meio quer na atividade fiacutesica quer na atividade mental ldquoeacute a contiacutenua efusatildeo do ser sobre o mundordquo (BERGER 1985 p16) Ou seja eacute a partir da interaccedilatildeo homem e mundo eacute que o primeiro vai assimilando os elementos fornecidos pelo segundo e que formaraacute sua personalidade direcionando concepccedilotildees sentimentos e maneiras de ver o mundo A exteriorizaccedilatildeo eacute uma necessidade bioloacutegica (BERGER 1985 p17) particular dos seres humanos que lhe conferem as condiccedilotildees uacuteteis a sua sobrevivecircncia o segundo momento eacute a objetivaccedilatildeo ldquoeacute a conquista por parte dos produtos dessa atividaderdquo (BERGER 1985 p16) eacute a concretizaccedilatildeo dos siacutembolos criados pelo homem onde ele corporifica e interpreta os seus sentidos estabelecidos na sociedade Esse processo acarretaraacute em discordacircncias entre o individuo e o fato interpretado que ele encontrou no ambiente social gerando crises e questionamentos sobre si e o meio O individuo portanto passa a buscar novos sentidos que lhes sejam subjetivamente plausiacuteveis (BERGER 1985 p29)

A objetivaccedilatildeo da atividade humana significa que o homem eacute capaz de objetivar parte de si mesmo no processo de sua proacutepria consciecircncia defrontado-se consigo mesmo em figuras que satildeo geralmente como elementos objetivos do mundo social (BERGER 1985 p27)

O uacuteltimo momento proposto por Berger eacute a interiorizaccedilatildeo Este segundo o autor permite ao homem viver em sociedade A interiorizaccedilatildeo eacute o momento no qual o indiviacuteduo apreende tais exteriorizaccedilotildees tomando-as para si como algo uacutenico e intransponiacutevel podendo posteriormente realizaacute-las (objetivaccedilatildeo) eacute resultado do diaacutelogo questionamentos e crises gerados durante as fases de interaccedilatildeo conclui-se como o momento de integraccedilatildeo entre os dois elementos dialeacuteticos (homem e sociedade) que no entanto natildeo cessa tendo em vista que este processo eacute algo continuo onde os indiviacuteduos cotidianamente dialogam nos grupos sociais em que vivem novas

estruturas de plausibilidade social que lhes decirc sentido Eacute o que o autor denomina de Nomia em oposiccedilatildeo a Anomia A Anomia eacute o viver sem um sentido de existecircncia podendo chegar ao extremo que seria a sua extinccedilatildeo a ser concretizada pela sua exclusatildeo da sociedade sua marginalizaccedilatildeo

Toda sociedade que continua no tempo enfrenta o problema de transmitir os seus sentidos objetivados de uma geraccedilatildeo para a seguinte Esse problema eacute atacado por meio dos processos pelos quais se ensina uma geraccedilatildeo a viver de acordo com os problemas institucionais da sociedade ( BERGER1985 p 28)

Assim nosso objetivo ao incluir neste trabalho a teoria de Peter Berger foi o de

demonstrar como os indiviacuteduos dialogam com a urbanidade no processo de diaacutespora (ecircxodo rural) em que encontram novas estruturas de sentidos num novo ambiente social Refleir sobre quais os mecanismos utilizados para manter os valores dos grupos migrantes e posteriormente refletir como os Maracatus Rurais que surgiram na Regiatildeo do Grande Recife interagem com o processo de globalizaccedilatildeo onde uns satildeo reduzidos e transformados em folclore comercializaacutevel e outros buscam meios alternativos e simboacutelicos de manterem a nomia dos grupos culturais onde o elemento religioso miacutetico- simboacutelico desenvolve um papel importante

Bentto Lima observa o miacutetico enquanto um veiacuteculo da tradiccedilatildeo que expressa um conhecimento emocional um sistema complexo herdado de haacutebitos crenccedilas e valores

Quando o mito eacute coletivamente vivido chama-se ritual uma forma da expressatildeo da emoccedilatildeo grupal com relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees primeiras aos temas ontoloacutegicos pelo ritual o ser toa consciecircncia de sua existecircncia muacuteltipla dentro de um tempo ciacuteclico (LIMA 1979 p 24)

Segundo Lima eacute necessaacuterio examinar nas religiotildees afro-brasileiras a cosmovisatildeo sua praacutexis ritual sua eficaacutecia simboacutelica cuja relaccedilatildeo natildeo visiacutevel no plano da experiecircncia imediata e que camufla e exerce muacuteltiplos significados do simbolismo maacutegico-religioso (LIMA 1979)

A partir desses elementos teoacutericos analisaremos o processo de comercializaccedilatildeo dos Maracatus e o de resistecircncia simboacutelica das tradiccedilotildees religiosas afro-brasileiras uma necessidade constante de reinvenccedilatildeo dos valores e memoacuteria do grupo como afirma Maurice Halbswachs

ldquoUm grupo religioso mas que qualquer outro tem a necessidade de se apoiar sobre um objeto sobre uma realidade que dure por que ele proacuteprio pretende natildeo mudar ainda que em torno dele as instituiccedilotildees e os costumes se transformem e que as ideacuteias e experiecircncias se renovemrdquo (HALBSWACHS 1930 p 156)

Dimensatildeo religiosa do Maracatu Rural

No Maracatu Rural assim como no Maracatu Naccedilatildeo existe uma forte ligaccedilatildeo com a religiatildeo sendo ela entre outras coisas o seu ldquomeio de proteccedilatildeordquo que os livrara de qualquer perigo durante o periacuteodo em que estatildeo nas ruas no periacuteodo do carnaval A religiosidade que o Maracatu de Baque Solto tem forte relaccedilatildeo eacute com o culto da Umbanda que tiveram maior contato e abertura para com os grupos que tiveram que fazer um ecircxodo para cidade grande O culto aacute Jurema que os migrantes trouxeram na sua experiecircncia cultural e memoacuteria para os grandes centros urbanos foi integrada na maioria das vezes pelos adeptos da Umbanda religiatildeo

que na sua formaccedilatildeo eacute profundamente aberta a inovaccedilotildees sincreacuteticas (NASCIMENTO 2005 101)

Sobre tal ligaccedilatildeo religiosa dos Maracatus assinala Guerra-Peixe

ldquoEacute oportuno realccedilar o que nos esclareceram os informantes de vaacuterios grupos a gente do Maracatu tradicional ndash lsquonagocircrsquo como dizem no sentido de africano ndash eacute constituiacuteda maioria por iniciados nos Xangocircs a que prefere o Maracatu-de-orquestra tende para o Catimboacute culto popular de caracteriacutesticas eminentemente nacionais Ao que parece haacute procedecircncia nas informaccedilotildees pois nos cacircnticos do Maracatu-de-orquestra eacute constante o aparecimento de vocaacutebulos como rsquoaldeiarsquo lsquocaboclorsquo lsquojuremarsquo e outros ndash todos refletindo identificaccedilotildees que acusam a preferecircncia religiosa dos participantesrdquo (GUERRA-PEIXE 1980 p 23)

Dentro do Maracatu Rural existem os participantes que o ldquosustentardquo espiritualmente durante sua apresentaccedilatildeo Antes das suas apresentaccedilotildees puacuteblicas eacute vivenciada internamente uma experiecircncia religiosa um contato de alguns integrantes com o mundo sagrado em que as entidades protetoras satildeo invocadas em rituais de proteccedilatildeo contra os ldquoespiacuteritos malfeitoresrdquo para que propiciem aos folgazotildees sucesso e tranquumlilidade em suas andanccedilas e apresentaccedilotildees Estes personagens que necessitam de proteccedilatildeo satildeo o Caboclo de Lanccedila a Dama-do-Paccedilo com a Calunga e o Arreimaacute tambeacutem chamado de Tuxaacuteua ou Caboclo de Pena Cada membro a partir do momento em que desfila pela primeira vez tem que repetir a sua apresentaccedilatildeo obrigatoriamente por no miacutenimo sete anos Inclusive os objetos quase sempre satildeo em nuacutemeros impares segundo informaccedilotildees para natildeo daacute azar

Sobre a religiosidade dos Maracatus de Baque Solto Katarina Real argumenta

Tudo sobre os Maracatus Rurais me daacute a impressatildeo de se tratar de uma sociedade secreta masculina Que haacute muita influecircncia do lsquocatimboacutersquo lsquoXangocirc de Caboclorsquo e lsquodos mestres do aleacutemrsquo entre os associados natildeo haacute duacutevida e eacute assunto que vale estudo mais detalhado Tambeacutem haacute indicaccedilotildees duma influecircncia do Toreacute danccedila guerreira indiacutegena (e culto secreto) que existe nos subuacuterbios do Recife e pelo interior de Pernambuco e Alagoas Eis outro fator que dificultou minha pesquisa ndash a grande desconfianccedila dos homens em responder a qualquer pergunta com referecircncia a religiatildeo (REAL 1967 81)

Personagens Sagrados do Maracatu Rural

O Caboclo de Lanccedila

O Caboclo de Lanccedila filho de uma relaccedilatildeo afro-ameriacutendia eacute o guerreiro de Satildeo Jorge pois sua figura esta ligada ao orixaacute Ogum10 Ele nasce das palhas das canas-de-accediluacutecar dos engenhos da Zona da Mata Norte pernambucana e trazendo consigo a missatildeo de proteger sua cultura e o seu Maracatu Camuflado e vestindo sua ldquoarmadurardquo espiritual e material ele estaacute de prontidatildeo para qualquer tipo de embate O caboclo eacute composto pela sua ldquoarmadurardquo espiritual que eacute a sua entidade da Umbanda que a maioria eacute a cabocla Jurema e a material eacute

10 Na Mitologia Yoruba Ogun eacute o Orixaacute ferreiro senhor dos metais Ele mesmo forjava suas ferramentas tanto para a caccedila como para a agricultura e para a guerra Na Aacutefrica seu culto eacute restrito aos homens ldquoAtrai sobre si o valor da decisatildeo corajosa de enfrentar o mundo-sombra de subjugar os monstros psicoloacutegicos da alma humana fato de significar o dinamismo contraditoacuterio faz com que lhe seja associado grande poder para vencer demandas sendo proacuteprio conflito eacute onde reside o poder da vitoacuteriardquo (LIMA 1979 p 235)

seu chapeacuteu ou cabeleira de papel celofane seu surratildeo sua gola sua calccedila seus meiotildees coloridos seus sapatos(tecircnis) e sua guiada ou lanccedila

Sua lanccedila mede em torno de 2m eacute feita de madeira Imbiriba ou Quiri 11 eacute assada e enterrada na lama por 4 ou 5 dias sua ponta perfurante chega a medir 30cm eacute toda colorida conforme as cores estabelecidas por sua entidade protetora depois de pronta ela eacute ldquoCalccediladardquo em ritual acompanhado banhos de descarrego e limpezas com base em 7 tipos de ervas diferentes e de outros preparos ldquoassentadosrdquo previamente no ldquoPejirdquo12 com o objetivo de servir como instrumento de defesa e de batalha dos folgazotildees(NASCIMENTO2005 95)

Os banhos de limpeza que muitos integrantes tomam nos dias precedentes ao carnaval sobretudo as mulheres que conduzem a Calunga e os caboclos de lanccedila satildeo feitos a base de ervas e plantas consideradas com poder divino tambeacutem utilizadas para fabricaccedilatildeo de remeacutedio fitoteraacutepicos para chaacutes e para o ritual catoacutelico-popular das benzedeiras que trabalham na cura de diversas doenccedilas ferimentos e ldquomal-olhadosrdquo

O caraacuteter sagrado das plantas permite dentro de rituais maacutegicos ou religiosos a funccedilatildeo que Gennep denomina de ldquotransferecircnciardquo nos ritos de passagem Atraveacutes desses rituais puacuteblicos ou secretos as impurezas satildeo transferidas para as plantas [] O liquido obtido eacute utilizado em banhos rituais e outras cerimocircnias pois contem Axeacute isto eacute a forccedila dinacircmica das divindades []rdquo (BACCARELLI 1983 59-60)

A camuflagem dos caboclos eacute feita com tinta urucu13 ou poacute de carvatildeo tendo seu rosto completamente pintado sendo complementado pelos oacuteculos escuro estilo Ray-ban eacute para esconder que estaacute ldquoatuadordquo e o cravo branco na boca eacute a proteccedilatildeo dos caboclos O Caboclo de Lanccedila eacute uma figura emblemaacutetica e misteriosa porque cada folgazatildeo tem seus segredos particulares um sistema de crenccedilas que mistura elementos provenientes do culto africano e dos rituais maacutegico-xamacircnico Procuram ainda o anonimato e muitos satildeo azougados ou seja tomam uma mistura de azeite aguardente limatildeo e poacutelvora chamada de azougue e para resistecircncia fiacutesica e espiritual nos dias de carnaval estando pronto para qualquer batalha fazendo assim uma alusatildeo aos guerreiros do passado danccedilado sempre em forma de gira no sentido anti-horaacuterio sem passar pelo meio do cortejo

O significado da danccedila ritual estaacute na definiccedilatildeo de uma circunferecircncia siacutembolo de totalidade O arqueacutetipo que se manifesta na coreografia desses movimentos eacute o arqueacutetipo da unidade global Essa forma transmite a plenitude e a homogeneidade do grupo ela daacute seguranccedila e forccedila [] As danccedilas rotativas mostram uma busca anciosa pelo eixo central que permite a comunicaccedilatildeo entre a terra e o ceacuteu entre o humano e o divinordquo(LIMA 1979 p 86)

11 Nome popular da aacutervore Paulownia madeira leve apresentando excelentes propriedades mecacircnicas natildeo se deforma facilmente natildeo se empena resiste ao fogo natildeo apodrece e repele a aacutegua 12 Peji em nagocirc eacute espaccedilo reservado nos terreiros de Candombleacute onde satildeo colocados os assentamentos dos Orixaacutes no Ilecirc Orixaacute (casa do Orixaacute) quando individual ou quarto de santo quando coletivo restrito aos filhos da casa natildeo eacute permitida a entrada de estranhos Na Umbanda eacute dado o nome de Peji ou congaacute para o altar onde satildeo colocadas as imagens de santos catoacutelicos e fica na sala principal onde satildeo realizadas as cerimocircnias puacuteblicas 13Tambeacutem conhecida por Urucu e Accedilafroa eacute o nome popular do Fruto do urucumzeiro substacircncia corante extraiacuteda de sua polpa Utilizada pelos iacutendios brasileiros para proteger a pele dos raios solares e como repelente de insetos o urucum tem sua origem na Ameacuterica Tropical seu nome cientifico eacute Bixa orellana

O surratildeo eacute uma estrutura de madeira coberta de latilde leva consigo chocalhos sempre em numero impar pra natildeo dar azar pesa em meacutedia 25 quilos ao final do carnaval eacute comum os brincantes estarem com os ombros e as costas feridas pelo peso da ldquomaquinadardquo Natildeo pode ter relaccedilotildees sexuais entre os 07 a 15 dias que antecedem o carnaval aleacutem de natildeo poder tomar banho durante os quatro dias de momo ldquopara natildeo abrir o corpordquo (NASCIMENTO 200595) como nos informa Dona Neta

lsquoO caboclo de lanccedila ele tem que sair com um cravo na boca tem que tomar seus banho tambeacutem nem tem nada a ver com mulher por que isso eacute um lado muito religioso tambeacutem por isso que vocecirc vecirc que eles satildeo tudo azougadoos caboclo de lanccedila quando sai num sai de boca aberta natildeo satildeo tudo azougado quando bota o Maracatu na rua jaacute viueacute azougado mermo porque cada caacute faz seus perparo taacute entendendo Eles satildeo uns caboclo agitado tem muitos que tomam azouguerdquo

A Dama do Paccedilo e a Calunga

A Dama do Paccedilo eacute muitas vezes uma mulher ldquopurardquo14 e iniciada na umbanda eacute responsaacutevel pelos cuidados da Calunga e soacute ela tem acesso a boneca ateacute os periacuteodos de apresentaccedilatildeo Tambeacutem conhecida como dama de boneca ela eacute responsaacutevel por carregar a defesa do Maracatu por livraacute-lo das malquerenccedilas e maus olhos Nos meses preacutevios inicia-se um trabalho de preparaccedilatildeo onde satildeo oferecidos trabalhos aos espiacuteritos e a calunga recebe todas as energias passando a ser o elemento central da simbologia ritualiacutestica do Maracatu

Suas roupas e chapeacuteus assim como a das baianas que acompanham o coro das loas satildeo vestidos longos armados com arames e colorido geralmente trazem as cores das entidades espirituais que regula cada uma delas e representa o equiliacutebrio miacutetico-espiritual do folguedo Ainda existem as damas de buquecirc que carregam buquecircs de flores para abrilhantar o cortejo

ldquoPra gente que somos eu que sou rainha e as meninas dama do paccedilo que sai com a boneca tem que tomar um banho de limpeza Taacute entendendo Natildeo ter relaccedilatildeo com os homens durante os trecircs dias do carnaval As bonecas tem que ser tudo defumada Antes do Maracatu sair tem que despejar o que Cerveja pras moccedila pituacute pro homem da rua Tem que dexar uma farofa com bastante pimenta que eacute pro homem da rua que eacute pra gente sair e durante os trecircs dias de carnaval nada de mal acontecer porque meu perparo eacute feito todo ano pra esse Maracatu sair Ceccedila tambeacutem se perpara que ela tambeacutem natildeo vai de boca aberta Eu agora esse mecircs de agosto tambeacutem tenho que fazer minha limpeza por que vai chegar o carnaval neacute Eu tenho que ir pra minha Matildee de Santo fazer minhas obrigaccedilotildees com esse negoacutecio de galinha pinto e cada caacute faccedila sua limpeza pra quando agente chegar o carnaval jaacute taacute com o corpo limpo e sair bem bonita linda e maravilhosa e vou brincar o carnaval e nada de mal vai acontecer com agente Durante esses anos que eu saio nesse Cruzeiro do Forte nunca aconteceu nada derna de oito anos que saio nesse Maracatu e sete anos que sou rainhardquo[]

Neste depoimento da Dona Neta percebemos as negociaccedilotildees com o sagrado uma tentativa de comunicaccedilatildeo transcendente entre o mundo fiacutesico e o metafiacutesico uma relaccedilatildeo de ldquotrocardquo entre os homens e seus deuses (orixaacutes e entidades) a fim de obter ganhos terrenos Sobre a boneca calunga o totem dos Maracatus ela descreve

A dama de paccedilo sai com as boneca duas dama de paccedilo uma eacute minha irmatilde outra eacute uma amigaas bonecas tambeacutem antes de sair tem que fazer as limpeza pra botar as boneca na rua por que quem comanda o Maracatu eacute as duas bonecas muitas pessoas natildeo sabe dissomais a coisa

14 ldquoPurardquo termo utilizado por membros do Maracatu em sinocircnimo de virgindade pois no ano em que ela eacute escolhida para ser Dama-do-Paccedilo a mesma deve ser uma jovem que nunca tenha mantido relaccedilotildees sexuais

forte eacute as duas boneca do Maracatu eacute porque eacute e entidade que toma conta do Maracatu eacute as duas bonecas de frente pode ver as dama tatildeo tudo de frente porque as duas boneca carrega as forccedilas de dentro do Maracatu

Maacuterio de Andrade revela que o termo calunga tem muacuteltiplas origens e sentidos muitos de caraacuteter profano no entanto deixa claro que a calunga dos Maracatus (em referecircncia aos Maracatus-Naccedilatildeo) eacute fundamentalmente um elemento sagrado das manifestaccedilotildees que as utiliza exercendo um papel que como nos informou D Neta de talvez maior importacircncia simboacutelica dentro do Maracatu Rural

A meu ver a Calunga eacute tudo isso e mais alguma coisa Iacutedolo feiticcedilo e apenas objeto de excitaccedilatildeo mystica e ainda symbolo poliacutetico-religioso de reis-deuses como a sua nomenclatura o seu conceito natildeo estaacute nem talvez nunca esteve perfeitamente delimitado dentro da mentalidade negra (ANDRADE 1930 p 46)

A Calunga dos Maracatus Rurais eacute um empreacutestimo cultural dos Maracatus-Naccedilatildeo no momento em que o primeiro deveria adaptar sua manifestaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas da segunda como jaacute foi abordado a questatildeo das interferecircncias para sua aceitaccedilatildeo no carnaval do Recife logo a ldquocatitardquo (como se refere o Sr Nazareacute) eacute apropriada e imbuiacuteda de elementos simboacutelicos do Maracatu de Baque Virado e das experiecircncias religiosas do Maracatu de procedecircncia rural A fertilidade do imaginaacuterio popular ressiginifica e daacute agrave Calunga um sentido poderoso e totecircmico dentro do Maracatu de Baque Solto que reforccedila a identidade desse grupo de acordo com Lima (1979) O totem das religiotildees afro-brasileiras eacute um fator de aglutinaccedilatildeo ldquoelemento de confraternizaccedilatildeo ressaltando sua importacircncia como mecanismo de formaccedilatildeo do grupordquo em torno de um ldquoelemento denominador comum de um fator de comunhatildeordquo

As obrigaccedilotildees ldquoassentadasrdquo no Peji correspondem a um legado muito comum em vaacuterias culturas e buscam agradar aos deuses para que afastem todo o mal ou a realizaccedilatildeo de objetivos particulares ou coletivos Satildeo feitas geralmente no terreiro nas encruzilhadas e matas (as duas ultimas principalmente nos trabalhos de ldquodespachordquo) As oferendas contribuem para o fortalecimento dos laccedilos soacutecio-religiosos e eacuteticos que os unem reforccedila os elos maacutegicos entre os adeptos e os deuses A culinaacuteria afro-brasileira amplia as concepccedilotildees mitoloacutegicas sendo reinterpretadas subjetiva e regionalmente (LODY 1979)

O Arreiamaacute

O Arreiamaacute tambeacutem chamado de Tuxaacuteua eacute um personagem do Maracatu Rural que muito lembra o caboclinho15 pois traz consigo arco e flecha e simula uma batalha indiacutegena satildeo folgazotildees com camisa bordada calccedila colorida da cintura aos joelhos com fitas e penas de pavatildeo e de outras aves no chapeacuteu nos braccedilos e nas pernas Eacute dentre os personagens o que mais evidecircncia a influecircncia ameriacutendia sua ldquomissatildeordquo eacute proteger o cortejo de todo mal que venha ameaccedilaacute-lo pedindo proteccedilatildeo aos espiacuteritos do ldquomatordquo A religiatildeo estaacute presente nestes personagens por meio dos cultos de predominacircncia indiacutegena a pajelanccedila religiatildeo dos antepassados eacute em boa parte na Jurema ou no Catimboacute como eacute popularmente conhecida onde atua muitos Caboclos de Pena expressando forte sincretismo com cultos afro-brasileiros

15 Manifestaccedilatildeo popular originaacuteria da mescla indiacutegena os caboclinhos tambeacutem chamados de tribo de caboclinho expressa um forte sentimento de que foram eles os primeiros habitantes do Brasil Satildeo homens mulheres e crianccedilas que apresentam vigorosas coreografias em ritmo marcado pelo estalido das preacas ( espeacutecie de arco e flecha de madeira)

Nas matildeos carrega um machado (ou arco e flecha) que simboliza o guerreiro que luta na resistecircncia as opressotildees dos invasores Para sua preparaccedilatildeo tambeacutem recebe defumaccedilotildees em rituais da Jurema16 O defumador eacute fundamental para abertura dos trabalhos juntamente com os pontos riscados marcados com a Marafa17 (conforme observamos no Maracatu Leatildeo Formoso de Olinda) a fim de afastar as maacutes entidades e atrair as boas As baforadas possuem um poder maacutegico e durante os passes realizam-se gestos encantatoacuterios que espantam os maus fluiacutedos e garantem forccedila e beleza aos bravos Tuxuaacuteuas ldquoO cachimbo eacute preferido pelo preto velhos e na Umbanda no Nordeste pelos mestres Babalaocircs do Catimboacute os quais o acompanham tomando poccedilatildeo de Juremardquo (LIMA 1979)

Sobre o Arreiamaacute Severino Vicente cita o mestre Zeacute Duda do Maracatu Estrela de Ouro que afirma que rdquoSem o Arreiamaacute no Maracatu ele estaacute perdido natildeo tem a visatildeordquo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ANDRADE Maacuterio de Danccedilas dramaacuteticas do Brasil 2 ed Belo Horizonte INL 1982 ASSIS Maria Elizabete Arruda De SCOTT Russel Parry Cruzeiro do Forte A brincadeira e jogo de identidade em um Maracatu Rural 1996 Dissertaccedilatildeo ( Mestrado) ndash Universidade Federal de Pernambuco Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas Curso de Mestrado em Antropologia BIRMAN Patricia O que eacute UmbandaSatildeo Paulo Brasiliense 1985 BERGER Peter L O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulinas 1985 _________ L LUCKMANN Thomas Modernidade pluralismo e crise de sentido a orientaccedilatildeo do homem moderno Petroacutepolis Vozes 2004 BEJAMIMRobertoAMORIM Maria AliceCarnaval cortejos e improvisos Recife Fundaccedilatildeo de Cultura do Recife 2002 Coleccedilatildeo Malungo CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Made in Africa Satildeo Paulo 2002 CONNOR Steven Cultura poacutes-moderna introduccedilatildeo agraves teorias do contemporacircneo 4 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 DARCE Maria Luiza Camelo Folclore da zona canavieira 1973 Recife Monografia ( Graduaccedilatildeo) Universidade Catoacutelica de Pernambuco Curso de Sociologia FONTE FILHO Carlos da Espetaacuteculos populares de Pernambuco Recife Bagaccedilo 1999 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas 1 ed Rio de janeiro Guanabara Koogan c1989

GUERRA-PEIXE Cesar Maracatus do Recife Satildeo Paulo Irmatildeos vitale Recife Fundaccedilatildeo de Cultura Cidade do Recife 1980 HALL Stuart Da diaacutespora identidades e mediaccedilotildees culturais Belo Horizonte UFMG Brasiacutelia UNESCO 2003

16 Jurema eacute uma expressatildeo religiosa do nordeste brasileiro proveniente dos cultos maacutegico-xamacircnico e rituais cabaliacutesticos indiacutegenas com muita influecircncia do Toreacute celebram a natureza e seus deuses conteacutem um forte sincretismo com as religiosidades Afro-brasileiras ao qual cultuam os Mestres e Orixaacutes do panteatildeo Africano por isso eacute considerada uma religiatildeo Afro-indigena recebem ainda uma grande influecircncia do catolicismo popular Seus adeptos estatildeo em maior numero nos estados de Pernambuco e Paraiacuteba 17 Marafa eacute o nome dado na Umbanda a ldquoaacutegua de fogordquo ou aguardente tem grende forccedila maacutegica como siacutembolo sagrado de ligaccedilatildeo entre fogo e aacutegua elementos essecircncias da natureza (LIMA 1979 p 97)

Experiecircncias religiosas como afirmaccedilatildeo de identidade religiosa e cultural afro-

brasileira

Reinaldo Joatildeo De Oliveira

Introduccedilatildeo

O fato da procura por valorizaccedilatildeo da cultura afro-brasileira e da cultura Indiacutegena cabe

bem como afirmaccedilatildeo das suas reflexotildees com enfoque teoloacutegico Isto acontece devido a

importacircncia de entender o processo pelo qual estamos envolvidos hoje num mundo cada vez

mais plural mas tambeacutem carente de lsquosentidosrsquo para a ldquosituaccedilatildeordquo destes povos

Parece que para este estudo ser mais bem situado deveria antes de tudo servir-se de

uma base soacutelida para fundamentar o que gostariacuteamos de tratar no assunto que nos propomos No

entanto logo que iniciamos esta pesquisa jaacute sentimos a carecircncia visiacutevel de materiais produzidos

sobre a questatildeo da ascendecircncia africana no campo da teologia sobretudo da teologia cristatilde ndash ao

menos esta carecircncia refere-se ao que sentimos no decorrer da pesquisa Preferimos assim partir

do acadecircmico e de outras abordagens sobre o fenocircmeno da Religiatildeo e das Culturas esboccedilando

alguns apontamentos para o ldquofazer teoloacutegicordquo em perspectivas ainda natildeo tatildeo fundadas pelo

ldquoterrenordquo das construccedilotildees ocidentais no ambiente acadecircmico esforccedilando-nos no diaacutelogo entre

os mundos (oficialidade e natildeo-oficialidade)

Assim achamos melhor comentar alguns elementos importantes da religiosidade

popular do povo afrodescendente citando fontes dos comentaacuterios ndash baseado em relatos em

conversas informais e em pesquisa mais concentrada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da

PUCRS e do Grupo de Pesquisas lsquoTeologia e Sociedadersquo no mesmo universo acadecircmico

Os relatos neste ensaio servem para uma anaacutelise dentro do campo de pesquisa ainda natildeo

finalizada em seu todo Por isso esperamos acima de tudo aprofundar o que refletimos

perpassando pelo respeito e valorizaccedilatildeo dos povos e culturas afro e indiacutegenas muitas vezes

esquecidos dos processos de inclusatildeo em nosso continente latino-americano

Alguns autores do contexto latino-americano e caribenho nos auxiliam nesta

caminhada tomando estas reflexotildees como tarefa teoloacutegica como forma de dialogar com as

culturas autoacutectones e as que foram trazidas desde o continente Africano

Com acreacutescimos e grifos finais consideramos alguns pontos que nos ajudam propor

accedilotildees mais concretas nas perspectivas teoloacutegica e pastoral para afirmaccedilatildeo de identidade

religiosa e cultural afro-brasileira integrada agrave realidade no que acontece no campo da feacute

Religiatildeo experiecircncias religiosas e culturas algumas anaacutelises

Mestrando em Teologia ndash Grupo de Pesquisa Teologia e Sociedade ndash FATEO-PUCRS

Aleacutem do aspecto cultural a religiatildeo tambeacutem exerce papel importante para a formaccedilatildeo

moral Isso parece ser o que Durkheim procura demonstrar quando reflete sobre o papel em que

a religiatildeo ocupa no desenvolvimento de todas as sociedades Para melhor exemplificar isso

basta considerar que em todas elas as crenccedilas e os valores mais importantes para o ldquobem

comumrdquo no conviacutevio social e na reproduccedilatildeo das sociedades foram tambeacutem considerados

sagrados adquirindo ateacute um caraacuteter de obrigatoriedade para todos os seus membros Logo a

religiatildeo passa ter uma funccedilatildeo central na orientaccedilatildeo da conduta moral dos indiviacuteduos E por isso

Durkheim vincula a ordem social a uma caracteriacutestica religiosa da coletividade onde antes de

qualquer outro aspecto a religiatildeo seria ldquocoisa socialrdquo e as representaccedilotildees religiosas exprimiria

realidades coletivas

Mircea Eliade na introduccedilatildeo de sua obra ldquoO Sagrado e o Profanordquo faz uma alusatildeo ao

livro de Rudolf Otto Das Heilige (1917) pois percebe que este autor teve a perspicaacutecia de

desenvolver sua pesquisa sobre anaacutelise das modalidades da experiecircncia religiosa para aleacutem da

que Durkheim chega via anaacutelise socioloacutegica simplesmente Porque Durkheim aleacutem de

apresentar que a religiatildeo manteacutem coesatildeo social afirma que uma crenccedila religiosa natildeo pressupotildee

necessariamente a associaccedilatildeo ao sobrenatural como podemos notar

Assim haacute ritos sem deuses e haacute ateacute ritos dos quais derivam deuses Todas as virtudes religiosas natildeo emanam de personalidades divinas e haacute relaccedilotildees cultuais que tecircm objetivos diferentes do de unir o homem e uma divindade A religiatildeo ultrapassa portanto a ideacuteia de deuses ou de espiacuteritos e por conseguinte natildeo pode definir-se exclusivamente em funccedilatildeo dessa uacuteltima18

Eliade parece entender que Rudolf Otto aprofunda onde Durkheim natildeo chegou

Fortalecido por uma dupla preparaccedilatildeo de teoacutelogo e de historiador das religiotildees Otto esclarece o

conteuacutedo e os caracteres especiacuteficos da experiecircncia religiosa como fundamentais para

ultrapassar uma anaacutelise simplesmente filosoacutefica ou socioloacutegica do fenocircmeno

Negligenciando o lado racional e especulativo da religiatildeo Otto encontrou-se sobretudo no seu lado irracional Porque Otto tinha lido Lutero e compreendera o que quer dizer para um crente o ldquoDeus vivordquo Natildeo era o Deus dos filoacutesofos o Deus de Erasmo por exemplo natildeo era uma ideacuteia uma noccedilatildeo abstrata uma simples alegoria moral Era pelo contraacuterio um poder terriacutevel manifestada na ldquocoacutelerardquo divina19

No que se refere a experiecircncia do sagrado Mircea fala em reatualizaccedilatildeo dos mitos ou

seja na experiecircncia religiosa faz-se necessaacuterio reatualizar os mitos De que forma

18 DURKHEIM Eacutemile As formas elementares de vida religiosa Satildeo Paulo Paulinas 1989 p 67 19 ELIADE Mircea O Sagrado e o Profano ndash a essecircncia das Religiotildees Colecccedilatildeo Vida e Cultura Traduccedilatildeo de Rogeacuterio Fernandes Livros do BrasilLisboa sd p 23

natildeo eacute sem interesse notar que o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans-humano transcendente Ele soacute se reconhece verdadeiramente homem na medida em que imita os Deuses os Heroacuteis civilizadores ou os antepassados miacuteticos Isto eacute o mesmo que dizer que o homem religioso se quer diferente do que ele acha que eacute no plano da sua existecircncia profana O homem religioso natildeo eacute dado faz-se a si proacuteprio ao aproximar-se dos modelos divinos Estes modelos como dissemos satildeo conservados pelos mitos pela histoacuteria das gesta divinas Por conseguinte o homem religioso tambeacutem se considera feito pela Histoacuteria tal qual o homem profano mas a uacutenica Histoacuteria que o interessa eacute a Histoacuteria sagrada revelada pelos mitos quer dizer a histoacuteria dos deuses () O que eacute preciso sublinhar eacute que desde o iniacutecio o homem religioso situa o seu proacuteprio modelo a atingir no plano trans-humano o revelado pelos mitos O homem soacute se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos quer dizer imitando os deuses20

Outros tambeacutem refletiram sobre as experiecircncias religiosas de acordo com as aacutereas que

se limitam desenvolver alguns entendimentos Como Johnson que considera tratar-se de ldquoum

ordenamento social construiacutedo para oferecer uma maneira participativa coletiva de lidar com

aspectos desconhecidos e incognosciacuteveis da vida humanardquo21 Jaacute Peter Berger sobre a religiatildeo

define como ldquoo empreendimento humano pelo qual se estabelece um universo sagradordquo22

Uma compreensatildeo antropoloacutegica analisa que ldquoa dimensatildeo simboacutelica da religiatildeo fornece

os padrotildees culturais da sociedade considerando o siacutembolordquo23 como uma metaacutefora uma imagem

que representa um conceito Na mesma direccedilatildeo e ao mesmo tempo ultrapassando estas anaacutelises

podemos perceber a necessidade de completarmos nossa pesquisa valendo-se de outras

abordagens considerando que cada ciecircncia chega num determinado limite ao cercar-se das

experiecircncias humanas e mesmo as que transcendem ao humano como eacute o exemplo do

ldquosacrifiacuteciordquo considerado por Evans-Pritchard24 uma ldquorepresentaccedilatildeo dramaacutetica de uma

experiecircncia espiritualrdquo refletindo a religiatildeo Nuer e juntamente a isso a importacircncia da

interdisciplinariedade

ldquoO que eacute essa experiecircncia o antropoacutelogo natildeo pode saber com certeza Experiecircncias desse tipo natildeo satildeo comunicadas com facilidade mesmo quando as pessoas estatildeo dispostas a fazecirc-lo e dispotildeem para isso de um vocabulaacuterio sofisticado Ainda que a prece e o sacrifiacutecio sejam accedilotildees exteriores a religiatildeo nuer eacute em uacuteltima instacircncia um estado interior Esse estado eacute externalizado atraveacutes de ritos que podemos

20 Ibid ELIADE Mircea p 112 21 JOHNSON Allan G Dicionaacuterio de sociologia guia praacutetico da linguagem socioloacutegica Rio de Janeiro Zahar 1997 p 196 22 BERGER Peter L O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1985 p 38 23 Um conjunto de siacutembolos sagrados tecido numa espeacutecie de todo ordenado eacute o que forma um sistema religioso Para aqueles comprometidos com ele tal sistema religioso parece mediar um conhecimento genuiacuteno o conhecimento das condiccedilotildees essenciais nos termos das quais a vida tem que ser necessariamente vivida (GEERTZ Clifford A religiatildeo como sistema cultural ndash in A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro LTC Ed 1989 p 146) 24 Orientador de Godfrey Lienhardt que partiu de pesquisas antropoloacutegicas sobre a Divindade e Experiecircncia baseada em A Religiatildeo dos Dinka (1978)

observar mas seu significado depende finalmente de uma tomada de consciecircncia em relaccedilatildeo a Deus e ao fato dos homens serem dele dependentes e deverem se resignar agrave sua vontade Nesse ponto o teoacutelogo toma o lugar do antropoacutelogordquo (Evans-Pritchard 1956 322)25

Sem querer limitar demais a questatildeo religiosa mas ao contraacuterio ampliar o debate que

tecemos no aprofundamento da Teologia e das Ciecircncias da Religiatildeo faz-se necessaacuterio mais do

que representaccedilotildees conceituais sobre as expressotildees da feacute individual e coletiva

As vivecircncias ligadas agraves culturas dos povos e agraves experiecircncias feitas como praacutetica de

ldquoreligiosidaderdquo deixam lacunas que natildeo satildeo bem solucionadas pelas ciecircncias pois advogam a

causalidade mas nelas habita a ldquobusca pelo sentidordquo

As definiccedilotildees sobre o fenocircmeno da religiatildeo e do Sagrado mergulham em lugares onde o

insondaacutevel ocupa para os religiosos nisso os socioacutelogos podem ateacute admitir que os conceitos natildeo

satildeo capazes de abarcar mas perscrutam a(s) experiecircncia(s) vivenciadas pelos crentes

A definiccedilatildeo substantiva da religiatildeo desencorajou alguns estudiosos de formularem questotildees acerca do sentido da religiatildeo eles ficavam satisfeitos com uma explicaccedilatildeo sumamente fatual Esta abordagem facilmente fazia com que a religiatildeo todas as religiotildees aparecessem como domiacutenio do incriacutevel do primitivo do obscuro do mundo irreal fundamentalmente em conflito com a racionalidade moderna Acontece tambeacutem evidentemente que os funcionalistas concentrando-se no papel social da religiatildeo descuram o sentido que a religiatildeo tem para os que a praticam Weber jamais esqueceu que a compreensatildeo da religiatildeo permanece incompleta enquanto natildeo se atenta ao sentido que ela tem para os crentes O proacuteprio Parsons que desenvolveu a abordagem funcionalista observa que esta abordagem facilmente leva a esquecer que a religiatildeo natildeo se esgota na dimensatildeo social que ela tem de fato referecircncia ao mundo invisiacutevel26

O sentido que trazemos sobre a compreensatildeo das teologias cristatildes africanas mostram o

quatildeo significativo se torna afirmar uma experiecircncia de feacute herdada no interior de uma

comunidade que une com a praacutetica os aspectos da vida do ldquoser africanordquo ldquoafro-ascendenterdquo

A religiatildeo penetrou cada aspecto da vida de tal maneira que eacute impossiacutevel extraiacute-la como simplesmente um elemento da heranccedila tradicional Ser africano na sociedade tradicional significa ser uma pessoa religiosa ter uma interpretaccedilatildeo religiosa da vida27

Interpretaccedilatildeo essa que une todos os outros aspectos ao inveacutes de dividir ou separar

Aliaacutes essa eacute a visatildeo religiosa do africano conceber toda realidade que o cerca natildeo vista

25 In GOLDMAN Marcio Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 19 (2) 09-30 1998 ndash A Experiecircncia de Lienhardt Uma Teoria Etnograacutefica da Religiatildeo p 12 26 BAUM Gregory Definiccedilotildees de Religiatildeo na Sociologia In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 40[744]-41[745] 27 McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo p 77[781]

separadamente uma da outra mas unida ao todo holisticamente Eis o que McVeight articula ao

que se passa na busca pelo pensamento teoloacutegico em referecircncia ao debate sobre a pertinecircncia da

reflexatildeo teoloacutegica africana no mundo O texto segue uma anaacutelise desenvolvida sobre o

documento conclusivo da Conferecircncia Pan-Africana de Teoacutelogos do Terceiro Mundo reunida

em Accra Ghana28 e a reflexatildeo coloca como desafio para Teologia Africana com relaccedilatildeo agrave

realidade

ldquoAfirmamos que nossa histoacuteria eacute ao mesmo tempo sagrada e secularrdquo () ldquoNa estrutura tradicional natildeo havia dicotomia entre o sagrado e o secular Ao contraacuterio o sagrado era experimentado no contexto do secular () Os teoacutelogos africanos tecircm plena consciecircncia daquilo que ocorreu devido ao impacto da cultura ocidental sobre sua vida ordinaacuteria Eles natildeo rejeitam o cristianismo mas estatildeo convencidos de que a interpretaccedilatildeo ocidental do mesmo produziu distorccedilotildees () Num sentido pode-se descrever a presente fermentaccedilatildeo na teologia africana dentro do contexto do tema da libertaccedilatildeo a saber salvaccedilatildeo como libertaccedilatildeo () Jesus preocupava-se com o perdatildeo dos pecados mas tambeacutem com a cura da doenccedila e a libertaccedilatildeo dos pobres e oprimidos29

Ascendecircncia afro e os lsquosujeitosrsquo como autores

Sob uma provocaccedilatildeo da quinta Conferecircncia Geral do Episcopado Latino-americano e do

Caribe reunido em Aparecida tratamos da importacircncia de se valorizar os mesmos povos pelo

significado deles como lsquosujeitosrsquo e autores no contexto de suas comunidades30

Foram vaacuterios discursos que propuseram certa forma de lsquoresgatersquo ou lsquolibertaccedilatildeorsquo dos

povos afro-ameriacutendios mesmo anterior agrave aboliccedilatildeo da Escravatura no Brasil Particularmente um

desses discursos trazemos para uma reflexatildeo em torno da teologia Afro-latino-americana atual

Eacute o que Paulo Suess como criacutetico deste estudo apresenta-nos sobre o assunto

Na antiguidade Greco-romana os egiacutepcios alcunharam seus vizinhos da regiatildeo ao sul de Siene atualmente Assuatilde (Ez 2910) de etiacuteopes o que significa ldquocaras queimadasrdquo Os autores da Biacuteblia hebraica conhecem esta regiatildeo como cuch Ao falar de cuch Isaiacuteas anunciou que dali viria um povo de ldquopele bronzeadardquo para trazer dons a Javeacute e adorar o seu nome no monte Siatildeo (Is 187) O batismo do etiacuteope por Filipe narrado nos Atos dos Apoacutestolos (826ss) tem este fundo literaacuterio e teoloacutegico O etiacuteope dos Atos pede explicaccedilotildees de um texto de Isaiacuteas que fala do Servo de Javeacute No tempo messiacircnico o povo dos confins do mundo encontra o

28 Esta conferecircncia se deu em 17 a 23 de dezembro de 1977 29 In McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 75[779]-80[784] 30 Que ningueacutem fique de braccedilos cruzados () Velamos pelo respeito ao direito que tecircm os povos de defender e promover ldquoos valores subjacentes em todos os estratos sociais especialmente nos povos indiacutegenasrdquo (Bento XVI Discurso em Guarulhos No 4) Assim entre outras ldquoEsperamos Valorizar e respeitar nossos povos indiacutegenas e afro-descendentesrdquo () ndash CELAM ndash Mensagem aos povos da Ameacuterica Latina e do Caribe (In wwwcelaminfo ndash pesquisado em 30 de Abril de 2009)

significado do Servo de Javeacute natildeo na servidatildeo mas no batismo que lhe permite ldquocheio de alegria continuar seu caminhordquo (At 839) 31

Na continuidade da criacutetica lsquoSuessrsquo expotildee alguns aspectos que hoje nos faz deter o olhar

sobre essa realidade com uma leitura conjuntural de perspectivas histoacuterico-teoloacutegica voltada

para na traduccedilatildeo Biacuteblica enquanto linguagem e hermenecircutica

Na traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica pelos Setenta (LXX) ao grego falado em Alexandria no terceiro seacuteculo AC [] e na Vulgata [] cuch geralmente eacute traduzido por Aethiopia () Na eacutepoca grego-romana a alcunha etiacuteope (ldquocara queimadardquo) se tornou designaccedilatildeo geneacuterica dos habitantes desde o sul do Egito passando por toda Aacutefrica ateacute aos paiacuteses em torno do oceano Iacutendico e agrave Iacutendia Mais tarde etiacuteope tornou-se nome geneacuterico do negro () Etiacuteope portanto significava na histoacuteria colonial das Ameacutericas negro africano E negro africano nas Ameacutericas por mais de trecircs seacuteculos era sinocircnimo de escravo E neste paradigma juriacutedico de resgate se articula analogicamente a lsquosalvaccedilatildeo pela comprarsquo de africanos que supostamente foram por inimigos tribais condenados agrave morte com a salvaccedilatildeo de pagatildeos pelo cristianismo sem estes condenados agrave morte eterna Nesta leitura ideoloacutegica a escravidatildeo representa uma dupla reduccedilatildeo de pena reduccedilatildeo de pena de morte ao trabalho forccedilado e reduccedilatildeo da pena fatal do inferno prevista na doutrina cristatilde da eacutepoca para os pagatildeos agraves chances escatoloacutegicas de um cristatildeo32

A partir desta criacutetica percebemos o que depois Paulo Suess reforccedila em sua

compreensatildeo sobre a realidade em torno do que buscamos afirmar neste estudo a identidade

afro-americana

ldquoos afro-americanos constituem uma das raiacutezes da identidade latino-americana e caribenha que foi arrancada da Aacutefrica e trazida para caacute como gente escravizada Sua histoacuteria tem sido atravessada por uma exclusatildeo social econocircmica poliacutetica e sobretudo racial onde a identidade eacutetnica eacute fator de subordinaccedilatildeo socialrdquo33

Cientes de que a ldquojustificaccedilatildeo teoloacutegicardquo da realidade de escravidatildeo teve como autores-

viacutetimados os indiacutegenas e Afro-ascendentes necessariamente passamos pela abordagem sobre a

atual realidade destes povos neste ponto da reflexatildeo

No caso especiacutefico da valorizaccedilatildeo religiosa e cultural aproximamos das experiecircncias

religiosas de ascendecircncia africana-indiacutegena para ldquosentir e fazerrdquo a experiecircncia de resistecircncia e

de libertaccedilatildeo Soacutecio-histoacuterico-teoloacutegico destes povos Torna-se portanto fundamental e

emergente o desenvolvimento da Teologia Iacutendia e da Teologia Afro na Ameacuterica Latina como

31 ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado Empenhado Sustentado Corrigido Instruiacutedo e Libertado ndash Discurso teoloacutegico-juriacutedico sobre a libertaccedilatildeo dos escravos no Brasil de 1758 Introduccedilatildeo criacutetica de Paulo Suess Vozes Petroacutepolis co-ediccedilatildeo com CEHILA Satildeo Paulo 1992 pp IX-X 32 In ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado p X 33 SUESS Paulo Dicionaacuterio de Aparecida 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do documento de Aparecida Satildeo Paulo Paulus 2007 p13

forma de apontamentos correccedilotildees e reparaccedilotildees de questotildees ainda candentes em nosso contexto

principalmente quando mal afirmadas explicitadas anteriormente34

O conflito da afirmaccedilatildeo identitaacuteria e a ascendecircncia africana

O pesquisador Stuart Hall35 em sua obra ldquoA identidade cultural na poacutes-

modernidaderdquo36 distingue trecircs concepccedilotildees de identidade a saber a concepccedilatildeo do sujeito do

Iluminismo a concepccedilatildeo do sujeito socioloacutegico e a concepccedilatildeo do sujeito poacutes-moderno Nesta

uacuteltima concepccedilatildeo Stuart critica o modo de pensar uma identidade plenamente unificada

completa segura e coerente pois este natildeo tem uma identidade fixa e por isso seria uma

fantasia pensar assim pois

dentro de noacutes haacute identidades contraditoacuterias empurrando em diferentes direccedilotildees de tal modo que nossas identificaccedilotildees estatildeo sendo continuamente deslocadas Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento ateacute a morte eacute apenas porque construiacutemos uma cocircmoda estoacuteria sobre noacutes mesmos ou uma confortadora ldquonarrativa do eurdquo () Ao inveacutes disso na medida em que os sistemas de significaccedilatildeo e representaccedilatildeo cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possiacuteveis com cada uma das quais poderiacuteamos nos identificar ndash ao menos temporariamente37

Pode parecer que seja necessariamente igual afirmar que as muacuteltiplas identidades

servem para uma contestaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo e a sociedade Se assumirmos a postura de

admitir uma sociedade fragmentada deveriacuteamos tambeacutem concordar que os sujeitos satildeo

fragmentados no que tange o seu ser identitaacuterio

Parece ser evidente que natildeo podemos acreditar haver apenas uma unificaccedilatildeo cocircmoda de

uma identidade percebendo existir tantos conflitos que desestrutura o ser pessoal do sujeito

Importante saber quais os problemas confrontados ou identificados na histoacuteria individual

durante toda uma vida e neste aspecto podemos nos perguntar - onde e como ldquoeste sujeitordquo

(que se pergunta) encontra resposta para si mesmo quando busca afirmar-se frente a relaccedilatildeo

ldquointerativardquo com outras identidades e culturas sendo ldquoele mesmo enquanto tal originaacuterio de uma

determinada cultura38

34 Referindo-se agraves abordagens que justificaram as vaacuterias formas de subordinaccedilatildeo dos povos afro-ameriacutendios e suas experiecircncias religiosas onde pelo ldquovieacutes teoloacutegicordquo cometeu-se equiacutevocos que ainda natildeo se avanccedilou suficientemente na reflexatildeo teoloacutegica e no aprofundamento do diaacutelogo inter-religioso por exemplo 35 Professor da Open University Inglaterra Foi um dos fundadores do importante Centre for Contemporany Cultural Studies da Universidade de Birmingham Inglaterra 36 HALL Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade traduccedilatildeo de Tomaz Tadeu da Silva Guaracira Lopes Louro ndash 10 ed ndash Rio de Janeiro DPampA 2005 37 Ibid HALL Stuart p 13 38 Ou seja ldquoeste indiviacuteduordquo que se pergunta sobre sua identidade enquanto a desconhece como ldquoraizrdquo histoacuterica originaacuteria familiar ascendente (onde se baseiam os antropoacutelogos que afirmam existir a raiz identitaacuteria cultural jaacute presente neste indiviacuteduo mesmo que ele a desconheccedila cabendo-lhe apenas

Quando um ldquoindiviacuteduo afro-ascendenterdquo se confronta com sua histoacuteria e sua realidade

interior (psicoloacutegica espiritual-religiosa racional afetiva) e exterior (social poliacutetica material

econocircmica) como se vecirc para aleacutem dos sentidos sobre a narrativa do seu ldquoeurdquo O que ele poderaacute

admitir ser ou pertencer quando natildeo consegue encontrar-se em meio ao seu mundo fragmentado

e de muacuteltiplas escolhas Qual seraacute o seu caminho Ou permaneceraacute natildeo identificaacutevel quando

tantos outros na interaccedilatildeo a sua volta ateacute mesmo o fazem por ele superficialmente39

Num constante processo de estranhamento de si mesmo o indiviacuteduo sente-se

entranhado agrave sua proacutepria existecircncia neste mundo que lhe possibilita uma falsa noccedilatildeo de si40

Trazendo mais proacuteximo ao nosso contexto brasileiro este problema relacionado agrave

identidade trouxe-nos desde o periacuteodo poacutes-escravista uma questatildeo ainda natildeo resolvida nem

teoricamente e nem na praacutetica como o antropoacutelogo Kabenguele Munanga menciona

O fim do sistema escravista em 1888 coloca aos pensadores brasileiros uma questatildeo ateacute entatildeo natildeo crucial a construccedilatildeo de uma naccedilatildeo e de uma identidade nacional Ora esta se configura problemaacutetica tendo em vista a nova categoria de cidadatildeos os ex-escravizados negros Como transformaacute-los em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado que os considerava apenas como coisas e forccedila animal de trabalho ainda natildeo mudou Toda a preocupaccedilatildeo da elite apoiada nas teorias racistas da eacutepoca diz respeito agrave influecircncia negativa que poderia resultar da heranccedila inferior do negro nesse processo de formaccedilatildeo da identidade eacutetnica brasileira41

Exatamente na relaccedilatildeo entre a identidade nacional como tentativa de especular uma

sociedade que durante seacuteculos representou um povo reconhecido como inferior quanto a sua

origem cultural eacutetnica econocircmica etc Transcorre daiacute uma necessidade de estabelecer o que

entendemos por ldquocultura superiorrdquo e ldquooutras culturasrdquo que desencadeiam um processo de

legitimaccedilatildeo de direitos por cidadania dignidade e igualdade social histoacuterica enfim

Por sua vez Kwame Anthony Appiah42 problematizaria mais a questatildeo lanccedilando uma

duacutevida para a compreensatildeo sobre os valores da comunhatildeo social e histoacuterica Ele critica outro

encontraacute-la descobri-la neste processo de procura pessoal ou coletiva) quando este o faz em determinados grupos sociais e religiosos que se preocupam com esta busca (movimentos organizaccedilotildees comunidades etc) 39 Questionamos isso frente ao que se daacute no cotidiano de muitos que natildeo se ldquoafirmamrdquo ou dizem natildeo encontrarem-se frente a realidades que ele mesmo natildeo consegue situar-se Por exemplo O proacuteprio conceito de ldquomesticcedilagemrdquo que trataremos mais adiante 40 Eacute o que reflete o professor Dr Ricardo Timm de Souza (do PPG da Faculdade de Filosofia PUCRS) num encontro denominado ldquofeacute e culturardquo promovida pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul em debate no dia 12 de maio de 2009 com o professor Dr Luiz Carlos Susin (do PPG da Faculdade de Teologia da PUCRS) das 1815 agraves 1930 no auditoacuterio da Arquitetura preacutedio 8 do Campus Univeristaacuterio 41 MUNANGA Kabengele Rediscutindo a mesticcedilagem no Brasil ndash Identidade Nacional versus Identidade negra 3 ed - Belo Horizonte Autecircntica 2008 p 48 42 Nascido em Gana em 1954 Kwame Anthony Akroma-Ampim Kusi Appiah doutorou-se em filosofia pela Universidade de Cambridge em 1982 realizou vaacuterios estudos afro-americanos e de filosofia na Universidade de Harvard Publicou centenas de artigos em revistas especializadas e vaacuterios livros dentre

autor que entra num entendimento de ldquoraccedilardquo como sendo importante para se constituir a

identidade de ldquouma vasta famiacutelia de seres humanos sempre de histoacuteria [e] tradiccedilotildees comunsrdquo e

tece partindo disso sua criacutetica

Eacute bem possiacutevel que a histoacuteria nos tenha feito o que somos mas a escolha de uma fatia do passado num periacuteodo anterior ao nosso nascimento como sendo nossa proacutepria histoacuteria eacute sempre exatamente isso uma escolha Embora a expressatildeo ldquoinvenccedilatildeo da tradiccedilatildeordquo tenha um ar contraditoacuterio todas as tradiccedilotildees satildeo inventadas43

Estes entendimentos buscam refletir mais sobre aspectos da ideologia implantada nos

modos de como se concebe o conceito de raccedila vemos que um dos caminhos para uma melhor

fundamentaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de identidades natildeo seja partindo deste conceito Parece talvez que

o auto-conhecimento no interior dos processos pedagoacutegicos histoacutericos sociais religiosos e

tambeacutem teoloacutegicos seja uma das respostas para isso Neste sentido nos perguntamos se seria

possiacutevel afirmar-se ou rejeitar-se pessoalmente (individualmente) afirmando ou negando a uma

histoacuteria ldquoraiacutezesrdquo ldquoorigens soacutecio-culturais e religiosasrdquo Logo nos colocamos num processo de

auto-conhecimento enquanto escolha e construccedilatildeo partindo ldquodo querdquo fomos feitos

historicamente culturalmente como algo necessaacuterio para a afirmaccedilatildeo de uma identidade

cultural ndash individual e coletiva tal como nos apresenta Erikson

Recapitular o conceito de identidade significa esboccedilar a sua histoacuteria (e toda a histoacuteria) e que para estudar a sua construccedilatildeo seraacute preciso estabelecer algumas dimensotildees deste problema universal devendo tambeacutem ser visto como processo do indiviacuteduo na cultura pois eacute esse processo que estabelece de fato a identidade individual e coletiva44

Autoconhecimento e a afirmaccedilatildeo da identidade cultural

Conhece-te a ti mesmo45

O conhecimento eacute fator de afirmaccedilatildeo de identidade e assim o conhecimento soacute pode

vir antes do re-conhecimento pois soacute podemos reconhecer aquilo que antes jaacute fora conhecido

os quais este que tratamos agrave parte alguns conceitos para melhor fundamentar o debate sobre a questatildeo das culturas e da formaccedilatildeo das identidades contrapondo a uma concepccedilatildeo de ldquoraccedilardquo 43 APPIAH Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura traduccedilatildeo Vera Ribeiro revisatildeo de traduccedilatildeo Fernando Rosa Ribeiro - Rio de Janeiro Contraponto 1997 p 59 44 ERIKSON E E Identidade Juventude e Crise Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Cabral Guanabara Rio de Janeiro 1987 p 13 45 Gnothi Seauton (do grego antigo γνῶθι σεαυτόν conhece-te a ti mesmo) aforismo que tradicionalmente estava inscrito nas paredes do Templo de Apolo em Delfos na Antiga Greacutecia e que eacute muito citado pelo filoacutesofo Soacutecrates nos relatos de seu pupilo Platatildeo O oraacuteculo do templo teria proclamado Soacutecrates o homem mais saacutebio na Greacutecia ao que Soacutecrates respondeu com a ceacutelebre frase Soacute sei que nada sei [in httpwikipediaorg]

Neste sentido eacute importante auto-conhecer-se antes para auto-afirmar-se quando se quer e decide-

se percorrer este caminho da busca pela identidade pessoal

Em linhas gerais este ou aquele ser humano natildeo se liberta soacute mas em comunhatildeo e por

isso necessita ser reconhecido e antes disso ldquoconhecidordquo por si mesmo e pelo outro Neste

sentido somente nos realizamos juntos ldquocomrdquo o(s) outro(s)

O auto-conhecimento pode ser comparado como a um motor que move o sujeito a partir

de dentro de si mesmo para uma ldquolibertaccedilatildeo interiorrdquo e posteriormente uma ldquolibertaccedilatildeo

exteriorrdquo que depende natildeo apenas dele mas tambeacutem da relaccedilatildeo com o meio (o outro o mundo

que o circunda) Vale aqui fazer menccedilatildeo da necessidade pelo reconhecimento que se torna um

segundo passo necessaacuterio neste processo de afirmaccedilatildeo

O documento da quinta conferecircncia episcopal latino-americana no Capiacutetulo deacutecimo

com o tema ldquoNossos povos e nossa culturardquo parece esboccedilar um processo de afirmaccedilatildeo das

origens culturais e religiosas dos povos latino-americanos

Pedagogicamente entendida como uma ldquoassunccedilatildeordquo46 destes povos e destas culturas o

documento de Aparecida acena mas natildeo aprofunda para os anseios da Igreja na Ameacuterica

Latina Os desafios comprometem relacionar a cultura com a evangelizaccedilatildeo a educaccedilatildeo como

bem puacuteblico a pastoral urbana a preocupaccedilatildeo no sentido da unidade e fraternidade dos povos a

integraccedilatildeo dos indiacutegenas e afro-americanos e apontamentos como Caminhos de reconciliaccedilatildeo e

solidariedade47

O documento mencionado tambeacutem fala de ldquoreconhecimentordquo48 mas podemos

questionaacute-lo - como reconhecer se natildeo tivermos interesse antes por ldquoconhecerrdquo Ou mais a

fundo que isso uma maneira de investir-se por Deus atraveacutes do diaacutelogo O diaacutelogo com as

culturas pode vir a ser uma experiecircncia de feacute e de responsabilidade

O conhecimento das religiotildees de matrizes africanas com suas experiecircncias pode trazer

um verdadeiro sentido de afirmaccedilatildeo de uma identidade identificaccedilatildeo e de ldquoencontrordquo como

uma experiecircncia com Deus - isso eacute um forte exemplo do que estamos querendo dizer

Haacute muitas inseguranccedilas de iniciar um diaacutelogo com o ldquooutrordquo ldquopara o outrordquo assumi-lo

com a responsabilidade devida que ele merece de unidade e reciprocidade na diversidade

como eacute a relaccedilatildeo entre pessoas distintas que fazem uma experiecircncia divinizada de assumir um

ao outro bem descrita alegoricamente por Leacutevinas

46 Paulo Freire define bem o sentido desta concepccedilatildeo de assunccedilatildeo que no seu modo de entender passa pela significacircncia e importacircncia deste verbete ldquoO verbo assumir eacute um verbo transitivo e que pode ter como objeto o proacuteprio sujeito que assim se assumerdquo [In ibid FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia p 41] 47 Texto conclusivo da V Conferecircncia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe 2007 pp 215-241 48 ldquoO seguimento de Jesus () passa tambeacutem pelo reconhecimento dos afro-americanos como desafio que nos interpela para viver o verdadeiro amor a Deus e ao proacuteximordquo (cf n 532)

Estar sob o olhar sem descanso de Deus eacute precisamente em sua unidade ser portador de um outro algueacutem ndash carregador e apoiador ndash ser responsaacutevel por esse outro como se a face entretanto invisiacutevel do outro prolongasse a minha e me mantivesse alerta em nome de sua proacutepria invisibilidade em nome do imprevisiacutevel do que nos ameaccedila () Maneira essencial para o ser humano de estar exposto ateacute o ponto de perder a pele que o protege pele tornada totalmente face como se nucleando em torno de si um ser sofresse uma desnucleaccedilatildeo e desnucleando-se fosse ldquopara o outrordquo antes de tudo diaacutelogo49

Se procuramos pela ldquoafirmaccedilatildeo identitaacuteriardquo necessariamente deveremos dar certa

ecircnfase ao que queremos afirmar principalmente quando se refere agrave culturas religiosidades ou

experiecircncias que durante muito tempo foram negadas rejeitadas e discriminadas Neste sentido

Suess resgata em ldquoEvangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outrosrdquo50 e em ldquoTravessia

com Esperanccedila memoacuterias diagnoacutesticos horizontes51rdquo os desafios para a teologia que se

concretiza enquanto projeto de alteridade

Em ldquoO Homem Messiacircnicordquo52 Luiz Carlos Susin interpreta o sentido do resgate a partir

desta perspectiva de alteridade nesta compreensatildeo que carrega consigo portanto um

imperativo eacutetico de responsabilidade direcionada como uma palavra eacutetica expressa de diversas

maneiras nos ensinamentos desse ldquooutrordquo em suas vivecircncias em sua cultura que revela quem

ele eacute para mim no seu devido contexto Por isso jaacute natildeo eacute palavra que me conduz a Deus mas

palavra de Deus que conduz o outro a mim

A palavra que Deus profere natildeo eacute sobre si mas sobre o homem como palavra eacutetica ndash seu dom e sua imagem ndash e eacute mandamento e Lei O outro eacute enviado a mim para uma histoacuteria e um drama de responsabilidade eacutetica A conclusatildeo de nosso autor hebreu eacute que a religiatildeo natildeo necessita entatildeo de outro fundamento aleacutem da eacutetica ou melhor a eacutetica eacute religiatildeo53

Religiotildees de ascendecircncia afro-ameriacutendia a etnicidade

Natildeo eacute tatildeo simples e nem muito adequado abusar da abertura e liberdade para tratar

sobre as religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena sem levar em conta aleacutem do que jaacute se

pesquisou sobre este tema o que osas religiososas dizem sobre si mesmos Seria no miacutenimo

uma desconsideraccedilatildeo natildeo tomar o discurso desses ldquoatoresrdquo e fieacuteis do processo de luta e de

resistecircncia no sentido de valorizaccedilatildeo e respeito pelas experiecircncias religiosas diversas do povo

deste nosso chatildeo paacutetria comunidade-terreiro - o Brasil

49 LEVINAS Emmanuel Do sagrado ao santo cinco novas interpretaccedilotildees talmuacutedicas [trad Marcos de Castro] Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p 144 50 SUESS Paulo Evangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outros ndash Ensaio de missiologia Satildeo Paulo Paulus 1995 51 SUESS Paulo Travessia com esperanccedila memoacuterias diagnoacutesticos horizontes Petroacutepolis RJ Vozes 2001 52 SUSIN Luiz Carlos Homem Messiacircnico ndash uma introduccedilatildeo ao pensamento de Emmanuel Levinas Porto Alegre Escola Superior de Teologia Satildeo Lourenccedilo de Brindes 1984 53 Ibid SUSIN Luiz Carlos O homem messiacircnico p 254

As experiecircncias dos praticantes das religiotildees de ascendecircncia africana nos ajudam tanto

no sentido de entendimento sobre o dinamismo da feacute e numa atitude pela busca e construccedilatildeo de

uma afirmaccedilatildeo de identidade cultural que fortalece a autonomia destes povos Por isso

desenvolvemos a maior parte deste assunto sobre as consideraccedilotildees que fieacuteis e religiosos das

religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena disseram de suas experiecircncias

De modo geral podemos salientar que o desenvolvimento do Candombleacute e da Umbanda

coube principalmente aos afro-ascendentes e aos indiacutegenas que no decorrer do tempo assumiram

estas como autecircnticas expressotildees religiosas Contudo estas religiotildees foram mais caracterizadas

e identificadas no ambiente eacutetnico afro embora hoje essa realidade seja muito mais difusa e

diversa entre as etnias Essa mistura eacutetnica estaacute permeada de questionamentos no entanto

permanecem como religiotildees elementares para coesatildeo moral e formadora de identidade religiosa

e cultural afro-indiacutegena

Experiecircncias religiosas sempre estiveram presentes em meio a cultura indiacutegena que jaacute

habitava o solo ainda natildeo desbravado pelos colonizadores imperialistas Contudo a religiatildeo

conhecida como o Candombleacute de heranccedila africana e misturada aos cultos indiacutegenas somente

muito tempo depois foi reconhecida como uma religiatildeo pela ldquosociedade civil

institucionalizadardquo

Grande parte do povo afro-brasileiro incorporou dentro de sua expressatildeo de feacute a religiatildeo

oficial do Estado Brasileiro e dos que ldquoimperializavamrdquo o que era verdadeiro e falso neste

territoacuterio O religioso afro-descendente passa entatildeo ldquoter o seu peacute na Igreja Catoacutelicardquo54 de

acordo com sua necessidade religiosa e expressatildeo de feacute do seu ldquosenhor-dono de escravosrdquo

O Candombleacute dentro da cultura afro-brasileira foi uma das maiores e mais originais

manifestaccedilotildees da religiosidade do povo afro em solo brasileiro

Um dos propoacutesitos mais dignos e importantes do Candombleacute permanece sendo o fato de

ldquoresistir e natildeo deixar com que a cultura religiosa afro-descendente se acaberdquo55 Outro

propoacutesito eacute de servir a comunidade dos filhos e filhas de Deus na promoccedilatildeo da vida e quando

possiacutevel e necessaacuterio

() servir-se para outras utilidades como uma oficina um asilo para idosos ou uma creche para crianccedilas () e pra qualquer outro evento que venha falar da nossa cultura negra ndash a nossa matriz africana () A nossa forccedila tambeacutem eacute com relaccedilatildeo a isso aiacute ajudar as pessoas da periferia natildeo iludindo e sim ajudando numa forma divina em que Deus venha e os Orixaacutes tambeacutem venham iluminar para que as pessoas possam resolver os seus problemas pessoais56

54 Conforme relato oral de um ldquoPai de Santordquo - Tata ti Inkice Arolegi - vulgo Pai Leco do Terreiro Abassaacute de Odegrave em Florianoacutepolis para estudo sobre o ldquouniverso simboacutelico da religiosidade popular na periferia do morro da Cruz na cidade de Florianoacutepolis-SCrdquo [OLIVEIRA RJ Monografia - ITESC 2006] 55 Parte do mesmo relato feito por Pai Leco no exerciacutecio da oralidade para estudo supracitado 56 Parte do relato do mesmo autor ldquoPai Lecordquo

Outro ponto importante para ser considerado neste aspecto eacute a resistecircncia eacutetnica da

cultura afro-brasileira na experiecircncia religiosa do candombleacute como algo caracteriacutestico dessa

religiatildeo apesar de pensamentos contraacuterios neste aspecto alguns temas relacionados agraves religiotildees

brasileiras de matrizes africanas como ldquoO candombleacute sem etnicidaderdquo 57 seguindo outra

ideacuteia58 definida como ldquouma afro-brasilidade sem etnicidaderdquo59 e depois ldquouma desobstruccedilatildeo

eacutetnicardquo60

Uma causa que o autor parece esboccedilar para esse estudo seria a de uma ruptura com a

originalidade de um fenocircmeno religioso igualando-se aos demais dentro do lsquomercadorsquo ou de

ldquoreligiotildees sem reserva de mercado de natureza eacutetnicardquo61 Ele identifica agraves demais religiotildees

eacutetnicas num processo de universalizaccedilatildeo62 segundo comparaccedilatildeo agrave PRANDI63 com os grifos

proacuteprios de que esse fenocircmeno pareccedila traduzir-se em uma ideologia de salvaccedilatildeo e de

recrutamento com o lsquoprejuiacutezorsquo da ldquoperca de identidade eacutetnica religiosardquo64 Contudo parece-nos

arriscado essa leitura definida a partir desse movimento como causa uma perca eacutetnica pois esse

fenocircmeno pode ser explicado tambeacutem como caracteriacutestica de um processo de abertura das

comunidades e terreiros de acordo com a realidade de cada espaccedilo geograacutefico65 Logo natildeo

deveria ser generalizado um fenocircmeno (em causa-efeito) vitimado por um ldquoobjetivordquo das

religiotildees de ascendecircncia africana de atingir a massa com propostas salviacutefico-universalistas e de

recrutamento Ao contraacuterio o que percebemos atraveacutes de uma leitura caminhada em espaccedilos

religiosos deste campo eacute que prevalece a intenccedilatildeo de preservar a cultura e a etnicidade da

religiatildeo

Entendo que o que se refere por resistecircncia eacute natildeo deixar embranquecer aquilo que eacute nosso nossa cultura negra natildeo deixar morrer essa cultura Tanto faz estar nas matildeos do iacutendio nas matildeos dos brancos ou nas matildeos dos negros desde que entatildeo seja a

57 PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura (InTEIXEIRA FaustinoMENEZES Renata ndash orgs As religiotildees do Brasil continuidades e rupturas Petroacutepolis RJ Vozes 2006) pp 22-24 58 SANSONE Liacutevio Negritude sem etnicidade ndash O local e o global nas relaccedilotildees raciais e na produccedilatildeo cultural negra do Brasil Salvador Rio de Janeiro Edufba Pallas 2004 59 Ibid PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura p 22 60 Ibid PIERUCCI p 24 61 Ibid PIERUCCI p 22 62 Parece esboccedilar a intenccedilatildeo de defender que haacute uma ruptura com o esquema inicial proposto ao inveacutes de uma continuaccedilatildeo inicial original tal como se propuseram outras religiotildees como o luteranismo e outras mencionadas por ele como as ldquonovas religiotildees ligadas agrave colocircnia japonesa e seus descendentesrdquo 63 In PRANDI Reginaldo Os candombleacutes de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1991 ndash Raccedila e Religiatildeo In Herdeiras do axeacute ndash sociologia das religiotildees afro-brasileiras Satildeo Paulo Hucitec 1996 e ndash O Brasil com axeacute candombleacute e umbanda no mercado religioso Estudos Avanccedilados vol 18 n 52 set-dez pp 223-238 Satildeo Paulo USP 2004 64 Ibid PIERUCCI p 24 65 Bastaria simplesmente ldquopisarrdquo um pouco o ldquochatildeo desta realidaderdquo para sentir e ver como se daacute a experiecircncia de cada local de cada espaccedilo sagrado individualizada contextualmente O mesmo serve para se afirmar a identidade religiosa e cultural de um povo ou comunidade

resistecircncia sobre a nossa cultura mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave religiatildeo agrave mulher negra ao estudo agrave educaccedilatildeo da crianccedila negra com relaccedilatildeo agrave Capoeira enfim a essa cultura toda () Natildeo eacute proibido do branco cultuar a religiatildeo negra mas ele tem que vir a uma cultura negra e natildeo querer transformar essa religiatildeo ou cultura com meios brancos porque natildeo tem nada a ver Noacutes natildeo temos dificuldade de atender quem quer que seja na periferia porque todos satildeo pobres e haacute tambeacutem o fato de que tanto o negro como o branco tambeacutem fazem coisas erradas 66

Uma religiatildeo eacutetnica que se abre para acolher a quem precisa ensina que a comunhatildeo

acolhe ao inveacutes de dividir aos que vivem em condiccedilatildeo social desfavorecida de etnia diferente

ou por criteacuterios morais Uma das finalidades pode ser dialogar experiecircncias comunitaacuterias

coletivas e lsquosituarrsquo as pessoas no mundo religioso como um processo de reconhecimento e

legitimaccedilatildeo para a Teologia e as Ciecircncias da Religiatildeo

Teologia afro-ameriacutendia e afirmaccedilatildeo de identidade

As leituras sobre os elementos de uma teologia Afro-brasileira busca em comum com

as expressotildees religiosas de ascendecircncia africana a ancestralidade africana traduzida em

Religiatildeo e Experiecircncias de feacute no sentido de ldquosituarrdquo o religioso e o teoloacutegico

Pela necessidade que sentimos de abordar alguns aspectos da ldquoteologia do candombleacute e

da Umbandardquo consideramos ser fundamental essa afirmaccedilatildeo da identidade religiosa e cultural

nas experiecircncias religiosas afro-brasileiras Evidente notar que cada expressatildeo religiosa procura

corresponder culturalmente religiosamente agravequilo que eacute especiacutefico com a expressatildeo de uma

crenccedila na relaccedilatildeo com outro tipo de mentalidade Por isso no acircmbito religioso afro eacute difiacutecil

tratar como ldquocerto ou erradordquo em nossa mentalidade ocidental Antes uma relativizaccedilatildeo da

verdade e do papel da racionalidade eacute necessaacuteria por exemplo

O povo do Candombleacute natildeo raciocina em termos de loacutegica propriamente de racionalidade mas em siacutembolos O instrumento de pensar eacute o instrumento simboacutelico que aliaacutes eacute de uma riqueza maior do que o conceito friamente racional Eacute por isso que para eles natildeo haacute nenhuma incongruecircncia em ser catoacutelico ndash muitos ateacute comungam aparecem aqui na minha missa ndash e ao mesmo tempo praticam os ritos ancestrais Porque na sua mente natildeo haacute incompatibilidade67

Como mencionamos o Candombleacute podemos tambeacutem referir a Umbanda traccedilando

algumas questotildees essenciais para melhor caracteriza-la para o crente-religioso tal como

fizemos no Candombleacute explicitando elementos de suas experiecircncias que configuram-se

primordiais para afirmaccedilatildeo identitaacuteria e fenocircmeno para se ldquofazer teologiardquo

66 Na mesma pesquisa supracitada a fala eacute de Pai Leco (do Candombleacute de Angola) 67 In SANCHIS Pierre Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999 - Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros p 68

Entrariacuteamos portanto no cenaacuterio Umbandista que tecircm um modo peculiar para

expressar os cultos aos Santos e Orixaacutes Por exemplo no terreiro cultua-se Ogum como a Satildeo

Jorge Oxoacutessi como a Satildeo Sebastiatildeo conhece-se como Oxalaacute ou Oxaguiatilde a Jesus Existem

grupos que hoje assumem o culto aos Orixaacutes independentemente dos Santos e outros casos que

mesmo reconhecendo-se como cristatildeos autecircnticos vivenciam suas pertenccedilas nos cultos afro sem

sentir problema de continuarem como catoacutelicos e candomblecistas ou umbandistas Fato eacute que

em meio ao povo afro-religioso esta ldquodupla pertenccedilardquo constitui-se como uma siacutentese das suas

experiecircncias pessoais e comunitaacuterias no campo da feacute Neste aspecto os iacutendios natildeo estavam

separados mesmo lsquoreduzidosrsquo em aldeias-comunidades continuaram lsquosintetizandorsquo a feacute

naturalmente sem renunciarem as experiecircncias no cristianismo nos rituais de pajelanccedila e nas

crenccedilas em divindades indiacutegenas

Muitos negros ao receberem o batismo compulsoriamente mantiveram a feacute cristatilde e a praacutetica catoacutelica por forccedila da imposiccedilatildeo e do condicionamento Outros no entanto embora o tenham recebido em igual situaccedilatildeo entenderam que natildeo havia oposiccedilatildeo entre as suas tradiccedilotildees religiosas de origem e os elementos fundamentais da feacute cristatilde68

Essa anaacutelise vem de encontro com o caso dos Agentes de Pastoral Negros (APNacutes)

como menciona Padre Toninho situando essa discussatildeo dentro do ldquoestatuto soterioloacutegicordquo

Sem abandonar perspectivas teoloacutegicas cristatildes interessante o resgate de Pierre Sanchis

ao mencionar Franccedilois de lacuteEspinay um padre catoacutelico que segundo relatado diz ter vivido seus

uacuteltimos anos numa dupla pertenccedila conscientemente escolhida e o fato de denominar-se como

ldquoministro de Xangocircrdquo Eis sua confissatildeo em tom de testamento

Vocecirc entende Jesus Cristo histoacuterico ainda eacute muito branco para os negros Desde haacute milecircnios Deus lhes falou de modo diferente nos seus corpos e na natureza pelos espiacuteritos dos seus ancestrais Como foi possiacutevel que noacutes a Igreja tenhamos conseguido riscar tudo isso durante 400 anos com a boa consciecircncia de possuir a verdade Temos que ser prudentes quando falamos dessas coisas na Igreja Mas na minha alma e consciecircncia adquiri agora a certeza de que Deus eacute maior do que noacutes imaginamos Utiliza-se para se revelar a seu povo mediaccedilotildees outras que aquelas que conhecemosrdquo69

Sob este depoimento cremos natildeo ser exagerado afirmar que numa relaccedilatildeo de diaacutelogo

as religiotildees de ascendecircncia africana contribui no entendimento do pluralismo eacutetico-religioso na

experiecircncia de feacute como afirma o presidente da UNIAFRO70 Apolocircnio Antocircnio da Silva71

68 SILVA Antocircnio A APNacutes presenccedila negra na Igreja In ATABAQUE-ASETT p 12 69 SANCHIS Pierre Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros (In Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999) p 68 70 Uniatildeo de Cultura Negra em Santa Catarina uma entidade civil sem fins lucrativos apartidaacuteria de caraacuteter de estudo e pesquisa social educacional e cultural que teraacute entre as sua finalidades a elaboraccedilatildeo e a busca de apoio agraves poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees afirmativas que visem principalmente agrave populaccedilatildeo afro-descendente no Estado de Santa Catarina Objetivaraacute tambeacutem resgatar e promover a memoacuteria a histoacuteria

A Umbanda possui vaacuterias caracteriacutesticas haacute quem diga ateacute mesmo que satildeo vaacuterias as umbandas () A umbanda eacute uma uniatildeo de vaacuterias teorias e de vaacuterias religiotildees Nela vocecirc encontra aspectos do espiritismo kardecista do budismo do catolicismo e por isso a umbanda pode contribuir muito para as outras religiotildees () Ela permite que aspectos de outras religiotildees e de outras culturas cheguem a determinadas comunidades passadas de uma forma mais adequada a essa realidade local sem aquela coisa de teorias muito complicadas mas de uma maneira mais simples 72

A partir da compreensatildeo teoloacutegica sobre Deus na religiatildeo da Umbanda em nosso

estudo salientamos uma consideraccedilatildeo importante para tentar entender como se expressa a

religiosidade de quem pratica esta religiatildeo

Tudo o que se faz hoje na religiatildeo da umbanda eacute pensando em Deus como o cuidado com a natureza a evoluccedilatildeo do ser humano E a experiecircncia de feacute que eacute dado estaacute naquilo que a gente vecirc ndash a luta que os umbandistas tem travado o tempo todo para manter essa religiatildeo essa cultura essa maneira de ver a divindade ser respeitada principalmente pelas outras religiotildees Este ao meu ver eacute o maior depoimento de feacute que tem a religiatildeo da Umbanda e a maneira que as pessoas que a praticam com feacute em Deus73

Embora as teologias (afro-americana e iacutendia) tenham suas temaacuteticas especiacuteficas por

razotildees oacutebvias eacute fundamental que haja uma interaccedilatildeo uma implicaccedilatildeo com a teologia

convencional utilizada pelo magisteacuterio das igrejas elaborada pelos teoacutelogos e ensinada nos

institutos de teologia Bem entendida esta relaccedilatildeo poderaacute ser reciprocamente proveitosa

Na oacutetica de uma interaccedilatildeo entre as teologias a experiecircncia emergente nas comunidades

negras questionam a formalidade e o alcance das aacutereas teoloacutegicas desde a reflexatildeo biacuteblica ateacute a

pastoral E ainda o modo como biblistas latino-americanos aprofundam suas reflexotildees eacute de

grande proveito para a comunidade afro Sobretudo quando se pode reconhecer na Biacuteblia a

existecircncia participaccedilatildeo ativa e testemunhal do povo afro na histoacuteria da salvaccedilatildeo Uma

hermenecircutica biacuteblica que assume mitos proacuteprios dos povos afro-americanos ensinamentos

proveacuterbios histoacuterias orais percebe desde aiacute uma original manifestaccedilatildeo de Deus desde as

propostas humanitaacuterias os sofrimentos resistecircncias diaacutesporas e cativeiros

Acreditarmos que seja ldquopor-aiacuterdquo onde podemos comeccedilar desenvolver pela teologia um

intenso processo de afirmaccedilatildeo da identidade afro-ameriacutendia Embora nos esforcemos devemos

reconhecer os limites deste estudo que busca apontar para realidades emergentes na vida

concreta da existecircncia humana e da vivecircncia da feacute em todos os contextos aqui refletidos

a preservaccedilatildeo a integraccedilatildeo a defesa e a valorizaccedilatildeo da cultura afro-brasileira A Uniafro eacute uma entidade combativa e autocircnoma e atuaraacute sem distinccedilatildeo de raccedila gecircnero e credo (In wwwuniafrocombr) 71 que identifica sua funccedilatildeo na Umbanda como ldquoKatetordquo ou Babalorixaacute Iorubaacute na liacutengua Bantuacute ldquoFora do santordquo - diz ele na sociedade - sou funcionaacuterio puacuteblico formado em Letras ndash inglecircs-portuguecircs tenho uma poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Administraccedilatildeo de Universidades 72 Relato de Apolocircnio para estudo de caso no desenvolvimento da pesquisa para o Mestrado em Teologia Sistemaacutetica na PUCRS (em conversa a 04 de maio de 2009 agraves 1315 minutos) 73 Ibid relato de Apolocircnio

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAFICAS APPIAH Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura traduccedilatildeo Vera Ribeiro revisatildeo de traduccedilatildeo Fernando Rosa Ribeiro - RJ Contraponto 1997 BAUM Gregory Definiccedilotildees de Religiatildeo na Sociologia In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 40[744]-41[745] BERGER PL O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo 2 ed SP Paulus 1985 DURKHEIM Eacutemile As formas elementares de vida religiosa Satildeo Paulo Paulinas 1989 ELIADE Mircea O Sagrado e o Profano ndash a essecircncia das Religiotildees Colecccedilatildeo Vida e Cultura Traduccedilatildeo de Rogeacuterio Fernandes Livros do BrasilLisboa sd ERIKSON E Identidade Juventude e Crise Trad de Aacutelvaro Cabral Guanabara RJ 1987 FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia saberes necessaacuterios agrave praacutetica educativa SP Paz e Terra 1996 GEERTZ C A religiatildeo como sistema cultural ndash A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro LTC Ed 1989 GOLDMAN Marcio Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 19 (2) 09-30 1998 ndash A Experiecircncia de Lienhardt Uma Teoria Etnograacutefica da Religiatildeo HALL Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade traduccedilatildeo de Tomaz Tadeu da Silva Guaracira Lopes Louro ndash 10 ed ndash Rio de Janeiro DPampA 2005 JOHNSON Allan G Dicionaacuterio de sociologia guia praacutetico da linguagem socioloacutegica RJ Zahar 1997 LEVINAS E Do sagrado ao santo cinco novas interpretaccedilotildees talmuacutedicas RJ Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 75[779]-80[784] MUNANGA Kabengele Rediscutindo a mesticcedilagem no Brasil ndash Identidade Nacional versus Identidade negra 3 ed - Belo Horizonte Autecircntica 2008 OLIVEIRA Reinaldo J O universo simboacutelico da religiosidade popular na periferia do morro da Cruz na cidade de Florianoacutepolis-SCrdquo [ Monografia - ITESC 2006] ineacutedita PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura (In TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata ndash orgs As religiotildees do Brasil continuidades e rupturas Petroacutepolis RJ Vozes 2006) ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado Empenhado Sustentado Corrigido Instruiacutedo e Libertado ndash Discurso teoloacutegico-juriacutedico sobre a libertaccedilatildeo dos escravos no Brasil de 1758 Introduccedilatildeo criacutetica de Paulo Suess Vozes Petroacutepolis co-ediccedilatildeo com CEHILA Satildeo Paulo 1992 pp IX-X SANCHIS Pierre Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros (In Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999) SILVA Antocircnio A APNacutes presenccedila negra na Igreja In ATABAQUE-ASETT p 12 SUESS Paulo Dicionaacuterio de Aparecida 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do documento de Aparecida Satildeo Paulo Paulus 2007 SUESS P Evangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outros ndash Ensaio de missiologia SP Paulus 1995 SUSIN Luiz Carlos O Homem Messiacircnico ndash uma introduccedilatildeo ao pensamento de Emmanuel Levinas Porto Alegre Escola Superior de Teologia Satildeo Lourenccedilo de Brindes 1984 Internet - Conferecircncia Episcopal Latino Americana - CELAM wwwcelaminfo ndash pesquisa 3004 09 - Enciclopeacutedia livre httpwikipediaorg ndash Pesquisado em 100509 - Uniatildeo de Cultura Negra em SC ndash UNIAFRO - wwwuniafrocombr - pesquisa 250509

A influecircncia da religiosidade africana na sociedade brasileira o olhar de um africano

Luis Tomaacutes Domingos74

INTRODUCcedilAtildeO

Na Aacutefrica haacute uma relaccedilatildeo intima existente entre a religiatildeo e a vida social A religiatildeo africana

se integra profundamente em toda vida da comunidade Para o Africano os vivos e os mortos o

cosmo visiacutevel e o mundo invisiacutevel constituem apenas um soacute e mesmo universo A religiatildeo

africana dentro das suas diversas manifestaccedilotildees crecirc em um Deus Supremo um Ser Supremo

que eacute o soberano absoluto no que concerne ao Cosmo agrave humanidade inteira e agrave natureza As

antinomias do bem e do mal da morte e da vida que tecircm a fonte nos antagonismos inerentes aos

seres existentes natildeo potildeem em causa a unidade desta visatildeo do mundo

O nosso trabalho eacute resultado de pesquisa efetuado na Aacutefrica Moccedilambique Nel pretendemos

apresentar esta visatildeo do mundo a cosmogonia africana avanccedilando ateacute a essecircncia das

experiecircncias religiosas ou miacutesticas com intuito de comparar as religiotildees de matrizes africanas

no Brasil a religiosidade africana na diaacutespora

O encontro dos elementos culturais africanos com aqueles vindos da Europa Ocidental e

Oriente Meacutedio criou certos questionamentos em especial aquele de definir se as crenccedilas

africanas tem o meacuterito de serem consideradas como religiatildeo A resposta de Joseph KI-ZERBO

(1964) a este propoacutesito eacute sem ambiguumlidade

ldquose a religiatildeo como a crenccedila a um ser transcendente no qual eacute ligado pelos deveres e por direitos ao qual as pessoas tem contas a prestar ao qual se fazem sacrifiacutecios se imploram por alguma coisa e se agradece entatildeo haacute efetivamente religiotildees na Aacutefrica tradicional( ) Estas religiotildees crecircem quase todas em um Deus Supremo um Ser Supremo que eacute o soberano absoluto no que concerne ao Cosmos agrave humanidade inteira agrave natureza com todos os seres vivos os animais homens etcrdquo

Ainda muito restritivo esse esquema descrito pode ser estendido a todos os povos do

continente africano tanto para as populaccedilotildees da savana como para aquelas das florestas do

mundo Neoliacutetico e do mundo banto em particular A religiatildeo africana concebida como

monoteiacutesta apresenta uma concepccedilatildeo geral de Universo da vida e do homem numa totalidade

coerente que continua a moldar a alma e o comportamento dos povos africanos e de seus

descendentes Analisando esta visatildeo do mundo e a sua cosmogonia e avanccedilando ateacute a essecircncia

74 Doutor em Antropologia pela Universidade Paris VIII Franccedila (2002) Professor da Universidade Estadual da Paraiacuteba ndash Centro de Humanidades Membro do Baobah ndash Grupo de Pesquisa em Educaccedilatildeo e Religiatildeo ndash CNPq E-mail ltdomingoshotmailcom

das experiecircncias religiosas ou miacutesticas eacute possiacutevel recolher as informaccedilotildees que os grandes

iniciados africanos desejam transmitir aos que eles julgam dignos da confianccedila

A RELIGIAtildeO AFRICANA

Antropoacutelogos modernos foram obrigados a repensar o que eacute a religiatildeo Pois hoje eacute evidente

que a religiatildeo era ou eacute ainda mais complexa e profunda do que um simples ldquoreconforto socialrdquo

ela natildeo se contenta em desempenhar o papel de utilidade nas estruturas tradicionais fundadas

sobre as regras ancestrais condicionadas pelos imperativos da vida quotidiana e reforccediladas pala

ordem moral correspondente A ldquoreligiatildeordquo eacute uma apreensatildeo da realidade global da vida eacute a

possibilidade de explicar toda a realidade que faz sua forccedila e seu poder A ldquoreligiatildeordquo une a

sociedade sustenta valores manteacutem a moral impotildee ordem ao comportamento publico mistifica

o poder racionaliza as desigualdades justifica injusticcedilas e assim por diante

Pode-se hesitar empregar a palavra ldquociecircnciardquo no contexto das sociedades ditas tradicionais

Elas eram consideradas ldquo preacute-cientiacuteficasrdquo ldquopreacute-logicasrdquo no sentido de que majoritariamente

ldquoelas natildeo eram conscientes de uma alternativa possiacutevel no seus [corpus] de doutrinasrdquo

(HORTON 1967) Poreacutem encontrava-se nessas sociedades ditas primitivas uma consciecircncia

desenvolvida que era previsiacutevel graccedilas agrave observaccedilatildeo o que Levi-Strauss chamou ldquociecircncia do

concretordquo Eacute nesta loacutegica de ideacuteias que na filosofia africana natildeo existe fato social sem uma

causa dissimulada sob a razatildeo imediata Nesta ldquociecircncia concretardquo esta explicaccedilatildeo contiacutenua das

causas e das motivaccedilotildees se obstina na sua feacute agrave loacutegica interna de todas as coisas e de cada

comportamento nenhuma pessoa eacute vitima do acaso Em todas as situaccedilotildees accedilotildees e razotildees tem

sentido sob a condiccedilatildeo de seguirem o ponto de vista de algueacutem competente e de escolherem a

linha de accedilatildeo correta diante das alternativas oferecidas Na verdade o pensamento africano eacute

realmente empiacuterico face aos fenocircmenos naturais A intenccedilatildeo principal de grande parte do

ldquognosesrdquo africano parece ser o de estruturar as ligaccedilotildees profundas entre os fenocircmenos no espaccedilo

e tempo o que o pensamento cristatildeo estima ser aleacutem do seu domiacutenio Assim a aspiraccedilatildeo

autecircntica que se esconde em grande parte do pensamento religioso africano eacute evidente trata-se

de uma tentativa de explicar e influenciar os mecanismos do mundo quotidiano descobrindo os

princiacutepios constantes que satildeo subjacentes ao caos desordem aparente e ao fluxo de experiecircncia

sensorial Na tradiccedilatildeo africana a dicotomia natildeo existe a apreensatildeo eacute total O pensamento natildeo se

interessa apenas no que era mas tambeacutem no que seria por aquelas razotildees Ele eacute imperativo e ao

mesmo tempo explicativo

Assim dizia Radcliffe-Brown

ldquoA funccedilatildeo social da religiatildeo eacute independente de sua verdade ou do seu erro e as religiotildees que achamos falsas ou mesmo absurdas e repugnantes como aquelas das tribos selvagens podem desempenhar um papel importante e eficaz no mecanismo social sem essas religiotildees [ditas] ldquofalsasrdquo a

evoluccedilatildeo social e o desenvolvimento da civilizaccedilatildeo moderna seria impossiacutevelrdquo ( RADCLIFFE- BROWN 1968 231)

Segundo os africanos Bantos eacute o munthu (ser humano) que deve nos dizer o que significa

para ele o termo religiatildeo Para os Bantos a religiatildeo eacute uma relaccedilatildeo profunda de uniatildeo entre os

homens e os espiacuteritos Ela eacute parte integrante de uma cultura vivida como um todo ligados pelos

elementos indissociaacuteveis e cujas normas regem todas as expressotildees de vida coletiva e

individual

ldquo Para compreendermos o lugar que ocupa a religiatildeo tradicional para os Bantos e o papel que ela desempenha na cultura Banta e negrondashafricana em geral deveriacuteamos acompanhar o homem africano desde seu nascimento ateacute sua morte e constatar assim que a sua vida individual e coletiva se banha numa atmosfera religiosardquo (LALANDE 1962)

Encontramos esta filosofia nas meditaccedilotildees e na manipulaccedilatildeo das coisas e dos homens pelos

iniciados africanos nos ritos da fecundidade nas danccedilas onde a vontade e a beleza se rivalizam

nos ritos de nascimento de passagem agrave vida adulta de casamento como nos ritos funeraacuterios

Para os Bantos a religiatildeo natildeo eacute uma evasatildeo nem eacute o meio de consolaccedilatildeo nem eacute sequer um

degrau ou escala em direccedilatildeo ao divino A religiatildeo antes de tudo eacute uma maneira de ver estar e

de ser no mundo Ou seja a aplicaccedilatildeo na rotina quotidiana dos princiacutepios filosoacuteficos admitidos

por toda sociedade negro-africana O homem eacute o uacutenico ser vivo que pode construir o caminho

para a fonte energeacutetica situada no Aleacutem que lhe permite dar a essecircncia e seguranccedila e de

perpetuar a sua existecircncia material Neste sentido a relaccedilatildeo entre o setor fiacutesico e o espiritual eacute

estreita Um natildeo se concebe sem outro Os homens praticando o culto aos seus ancestrais

reforccedilam a sua potecircncia miacutestica Pois os ancestrais satisfazem e garantem o bem estar dos vivos

O elemento apropriado e comum agraves religiotildees africanas eacute entatildeo o culto dos antepassados

VISAtildeO DO MUNDO

Segundo a visatildeo africana o universo tem o significado profundamente religioso e a vida do

homem eacute uma experiecircncia religiosa deste Universo O Universo eacute atemporal e natildeo-espacial

espaccedilo e tempo se confundem numa apreciaccedilatildeo comum O Cosmos eacute a propriedade do Criador

de todas as coisas aquele onde tudo encontra a sua origem no ceacuteu e na terra

Confrontado ao enigma do seu destino e ao misteacuterio do universo que o rodeia o homem

africano se organiza e se adapta a uma ordem objetiva de representaccedilatildeo e de significaccedilatildeo

cosmoloacutegicas que o asseguram psicologicamente e o integram com equiliacutebrio no corpus social

Eacute portanto a serviccedilo do ser humano munthu que se engaja na historia que as sociedades

africanas elaboram um sentido religioso do mundo Assim a vida do Universo se organiza numa

hierarquia na qual o munthu ocupa o centro Este valor que eacute a vida humana na sociedade

Banto serve de criteacuterio para o julgamento em relaccedilatildeo a todos os outros valores Constata-se que

quase todas as preces e invocaccedilotildees agrave Deus se concebem e pedem para restaurar a ordem

harmoniosa o equiliacutebrio da vida humana maat Como diz o proveacuterbio Sena-Banto ldquoDeus

lsquoordenoursquo o mundo Ele criou as coisas de uma maneira ordenada um mundo harmonioso na

qual cada um pode desempenhar a sua funccedilatildeordquo Natureza e espiacuterito satildeo inseparaacuteveis Tudo eacute

integral e integrado numa totalidade global o homem vivo eacute ligado ao mundo dos antepassados

que o unem agraves forccedilas e mateacuterias do Cosmos

Assim vaacuterios mitos cosmogonicos existem para explicar o iniacutecio da organizaccedilatildeo universal

para descrever a atividade criadora com metaacuteforas como a do construtor de celeiro de obras de

ceracircmicas etc Atos de criaccedilotildees humanas simbolizam o ato de organizaccedilatildeo do Criador Ou seja

o pensamento cosmoloacutegico africano eacute essencialmente antropocecircntrico Vaacuterios relatos afirmam

que desde a origem o homem foi ldquoconfeccionadordquo a partir dos elementos naturais ldquoo

semelhante produz o semelhanterdquo Nesta dinacircmica o pensamento africano se preocupa em

estabelecer relaccedilotildees de equiliacutebrio de solidariedade de harmonia e participaccedilatildeo com o

Universo

De uma maneira geral a relaccedilatildeo antropocecircntrica tem um impacto real sobre a existecircncia

concreta do negro-africano sua organizaccedilatildeo da sociedade na medida em que a estrutura de

universo reproduz aquela da sociedade na sua forma de conceber o significado profundo das

coisas na sua filosofia da vida e no destino de homem

O universo visiacutevel eacute concebido e sentido como o sinal ou a concretizaccedilatildeo do universo

invisiacutevel e vivo constituiacutedo de forccedilas dinacircmicas equilibradas harmoniosas em movimento

perpeacutetuo Eacute importante insistir na ideacuteia de que na Aacutefrica o lado visiacutevel e aparente das coisas

corresponde sempre a um aspecto invisiacutevel e escondido que eacute como a fonte ou o principio

Assim como do dia sai a noite toda coisa conteacutem o aspecto noturno e o aspecto diurno uma

face aparente e uma face escondida A cada ciecircncia aparente corresponde quase sempre uma

ciecircncia mais profunda especulativa e pode-se dizer ldquoesoteacutericardquo baseada na concepccedilatildeo

fundamental da unidade da vida e de inter-relaccedilatildeo no seio dessa unidade em todos os diferentes

niacuteveis da existecircncia

Nesta unidade coacutesmica onde tudo estaacute inteiramente ligado o comportamento do homem

face a ele mesmo diante do mundo que o rodeia eacute objeto de uma organizaccedilatildeo ritual especiacutefica

podendo variar conforme cada povo e regiatildeo da Aacutefrica O conhecimento para o negro-africano

eacute integral global e vivo Eacute nesta perspectiva que as pessoas idosas na Aacutefrica satildeo consideradas

depositaacuterias do conhecimento e comparadas a uma vasta biblioteca com muacuteltiplas prateleiras

ligadas entre elas por invisiacuteveis conexotildees que constituem precisamente esta ldquociecircncia do

invisiacutevelrdquo autenticada por canais de transmissatildeo iniciaacutetica de tradiccedilatildeo negro-africana Esta eacute a

funccedilatildeo social que era destinada agrave filosofia dentro do quadro das sociedades iniciaacuteticas aquela

de ser portador e conservador do sentido humano global de praacuteticas que se apresentam na vida

todos os dias sob as suas formas diferenciadas Ao querer estabelecer uma concordacircncia mais

precisa com as categorias proacuteprias ocidentais europeacuteias arrisca-se a deixar de fora o que eacute

precisamente o essencial em relaccedilatildeo ao pensamento africano Como dizia Cheik Anta DIOP

(1967 p 214)rdquopara penetrar profundamente a complexidade da realidade africana um

contacto (sic) direto com o meio eacute necessaacuterio um conhecimento das liacutenguas africanasrdquo

A harmonia das concepccedilotildees proacuteprias ao pensamento de Aacutefrica natildeo eacute uma simples coerecircncia

da feacute com o efeito da razatildeo com a tradiccedilatildeo ou do pensamento essencial com a realidade

contingente Eacute uma coerecircncia uma compatibilidade global de todas as disciplinas do

conhecimento O conhecimento global e universal exige uma interaccedilatildeo de pontos comuns dos

benefiacutecios muacutetuos exige o desenvolvimento de comunicaccedilatildeo e trocas com os pensamentos de

outras culturas

TEMPO E ESPACcedilO NA VISAtildeO AFRICANA

O fundamento e o substantivo no sistema de natureza e da ordem das coisas eacute o homem ele

estabelece as relaccedilotildees de comunidade e de comunhatildeo com cada plano da Criaccedilatildeo Um dos

fundamentos da arte de viver africana eacute a ldquoparticipaccedilatildeordquo ou a comunhatildeo profunda com a

natureza Eacute neste elemento que podemos buscar situar as diferenccedilas entre o modo de viver dos

ocidentais e dos africanos Para o Ocidente um projeto maior eacute aquele de controle de

dominaccedilatildeo e de transformaccedilatildeo da natureza mesmo se natildeo possui ainda os meios teacutecnicos Para

os africanos o projeto maior eacute aquele de vida em harmonia com a natureza mesmo se engajado

em um projeto moderno de transformaccedilatildeo Para eles o primeiro mal eacute a desintegraccedilatildeo O bem eacute

a integraccedilatildeo ou a participaccedilatildeo Mais do que em outros lugares o negro-africano pressente esta

participaccedilatildeo total na vida humana no tempo eacute a grande famiacutelia que compreende os ancestrais

os mortos e aqueles que viratildeo Eacute a noccedilatildeo de um ldquotempo oscilante lsquo(MAURIER 1976 p 129)rsquo

que se adiciona sempre agravequele que eacute um pouco mais um tempo relacional em forma de espiral

que avanccedila atraveacutes de ciacuterculos e ritos sem constituir um ciacuterculordquo Um tempo ativo dinacircmico

integrando nos gestos novos as novas relaccedilotildees um tempo diversificado e cumulativo na

atividade dramaacutetica da vida da comunidade Toda ideacuteia de separaccedilatildeo eacute eliminada O homem eacute o

verdadeiro fundamento de tudo Ele eacute um ldquodeusrdquo ele natildeo pode separar-se de si proacuteprio como

tambeacutem natildeo pode separar-se dos outros elementos da natureza O tempo do homem e a

atividade humana se confundem intimamente unidos Natildeo haacute escatologia para concluir o fim

dos tempos na Aacutefrica negra tradicional O tempo jaacute eacute pesado carregado cheio No entanto

passado e futuro interessam ao homem somente na medida em que influem sobre seu presente

Na concepccedilatildeo global do mundo entre os africanos o tempo eacute o lugar onde o homem pode

lutar sem cessar contra a desintegraccedilatildeo ou pela integraccedilatildeo de sua energia vital Cada coisa tem

seu lugar e seu tempo Quando este princiacutepio eacute respeitado fortifica-se o ser pode-se afrontar o

tempo descontiacutenuo e viver plenamente na total diversidade

Comentava Bouah

ldquoTodo este tempo (tempo da circuncisatildeo tempo da excisatildeo tempo da organizaccedilatildeo das classes de idade tempo das iniciaccedilotildees etc tem uma ligaccedilatildeo estreita com as divindades do paiacutes As datas de culto dos deuses escrevem-se tambeacutem em periacuteodos em cerimocircnias religiosas de interesse geralrdquo (BOUAH 1964 p 153)

Assim se encontra consagrado o tempo do homem aquele da conquista de si proacuteprio de sua

essecircncia de seu direito agrave existecircncia Este tempo eacute importante Ele constitui o referencial

privilegiado da inteligecircncia da doutrina sobre Deus o homem a humanidade e a natureza

Humanizar a dialeacutetica da vida e assumir a continuidade da sua existecircncia (perpetuidade da

famiacutelia) satildeo o fundamento da vocaccedilatildeo e da aventura do homem

Eacute essencial compreender essa noccedilatildeo de tempo na Aacutefrica pois ela estaacute ligada agrave noccedilatildeo de

personalidade coletiva tal qual se manifesta no continente No contexto do pensamento negro-

africano a vida humana tem um outro ritmo diferente daquele da natureza ritmo que nada pode

destruir Para os indiviacuteduos observa-se um ritmo que inclui o nascimento a puberdade a

iniciaccedilatildeo o casamento a procriaccedilatildeo a entrada na comunidade e a morte

O ESPACcedilO

O universo no qual vive e morre o homem africano se compotildee de dois espaccedilos ou mundos

distintos Um escondido e invisiacutevel eacute o mundo de todos os seres espirituais o outro visiacutevel e

observaacutevel o mundo dos homens dos animais dos vegetais e de todo reino mineral O homem

se encontra em harmonia com aqueles que estatildeo vivos e com aqueles que partiram A religiatildeo

tradicional dos africanos eacute normalmente destinada a manter as relaccedilotildees com os ancestrais

As ldquocategorias essenciais dos seresrdquo no Universo Negro-Africano-Banto satildeo assim

representadas

I Espaccedilo Invisiacutevel 1 Deus 2 Os espiacuteritos II Espaccedilo Visiacutevel A Mundo Animado 3 Os homens 4 Os animais B Mundo agrave margem da vida 5 Os vegetais C Mundo Inanimado 6 Os minerais

DEUS MULUNGU NZAMBI

Antes de tudo Deus eacute incompreensiacutevel aquele que a inteligecircncia humana natildeo pode

compreender aquele cuja ldquoatituderdquo derrota a razatildeo humana O homem se submete agrave lei do seu

destino porque consente ldquo Ė Deus que o fezrdquo

Na realidade a presenccedila de Deus penetra a vida tradicional africana como a presenccedila de um

Ser superior pessoal e misterioso As pessoas recorrem a Ele nos momentos solenes da vida e

nas horas criacuteticas Todas as vezes que se precisa desafiar o medo Deus eacute invocado como Baba

o Pai As preces que lhe destinam seja individualmente seja coletivamente satildeo espontacircneas e

agraves vezes comoventes Enquanto as formas de sacrifiacutecios se distinguem pela sinceridade de

significados

Mulungu ou Nzambi Deus eacute a explicaccedilatildeo uacuteltima da origem e da substacircncia do homem e de

todas as coisas Os princiacutepios que datildeo vida ao homem vem de Deus Esta eacute a resposta mais

precisa que se pode recolher da boca dos saacutebios africanos Ningueacutem sabe como as origens os

princiacutepios vitais foram unidos ao corpo e o fenocircmeno da reproduccedilatildeo continua a ser para o

homem para o animal para os vegetais no estudo da psicologia de todos os povos do mundo

um misteacuterio Para tentar explicar esse misteacuterio os homens inventam os mitos Escreveu

Tempels sobre o Ser Supremo Deus do africano

ldquo[Ele] eacute grande o Munthu [ser humano grande] a pessoa

grande quer dizer a grande forccedila viva () o Saacutebio que domina todas as coisas e conhece a essecircncia de todo ser que sonda a mateacuteria e a natureza de toda as forccedilas no sua profundeza Ele eacute a forccedila que possui para ele mesmo a energia criadora e que faz surgir todas as outras forccedilasrdquo (TEMPELS 1965 2839)

Todas as divindades foram criadas pelo Ser Supremo Este estatuto lhe eacute atribuiacutedo

reconhecido sobretudo nos mitos da vida quotidiana nos atos religiosos como nos maacutegicos E

por conseguinte esses mitos contam de forma dramaacutetica a histoacuteria do inicio do mundo Os

espiacuteritos aparecem agraves vezes em circunstacircncias onde cometem pequenos enganos na criaccedilatildeo

enganos dos quais o ser Supremo o ldquoGrande Deusrdquonatildeo estaacute excluiacutedo

A explicaccedilatildeo uacuteltima de origem da substacircncia que compotildee o homem e todas as coisas eacute de

que os princiacutepios que animam o homem vecircem de Deus Mas se o Ser Supremo eacute criador de

todas as coisas e se a sua vontade condiciona a realizaccedilatildeo de toda outra vontade incluindo

aquela das divindades inferiores ele natildeo deu a cada uma dessas criaturas um poder que lhe eacute

proacuteprio Assim o futuro das coisas e dos seres desejado pelo Criador eacute um dom total Esta

atitude natildeo se resume a uma resignaccedilatildeo individual ou coletiva ou mesmo agrave omissatildeo diante dos

eventos suscetiacuteveis de se produzirem A convicccedilatildeo de que nada se reproduz se situa fora dos

planos iniciais do Criador o que natildeo significa que os homens possam saber com antecedecircncia

como deveriam ou como poderiam fazer O criador sua forccedila seu nome verdadeiro aparece

tanto nas proclamaccedilotildees verbais como nos comportamentos habituais ou tradicionais e acidentais

ou extraordinaacuterios Este poder ou forccedila natildeo fiacutesica nthu ou espiacuterito pode agir para o bem ou para

o mal Esta forccedila pode tomar em possessatildeo os seres vivos mas circula livremente no universo e

natildeo estaacute fixada a um objeto particular Num Universo concebido como um verdadeiro campo de

virtude de forccedilas ou de poderes soacute as forccedilas inferiores agraves do Ser Supremo podem se associar ou

dissociar-se mais ou menos com eficaacutecia Nenhuma dessas forccedilas inferiores pode entrar em

conflito com a forccedila Suprema

BAZIMU OS ESPIRITOS

Denominam-se Bazimu os espiacuteritos compostos de seres sobre-humanos e de homens mortos

haacute longo tempo Os mortos portam o nome de ldquoWazimurdquo ou ldquoBazimurdquo sendo que este ldquoUrdquo final

indica que eles tiveram a vida mas natildeo tem mais Se os africanos tem o haacutebito de dizer que os

ancestrais ou mortos ldquosatildeordquoe exercem certas atividades natildeo se deve entender por essa afirmaccedilatildeo

que eles vivem mas simplesmente que eles existem e que mesmo morrendo natildeo deixaram de

existir A vida eacute portanto o privileacutegio dos habitantes da terra

O sentimento religioso nos Banto e nos africanos em geral estaacute fixado sobre os espiacuteritos dos

antepassados e natildeo diretamente sobre um Deus Ser-Supremo como eacute comum no judaiacutesmo e

cristianismo Para os Bantos o antepassado fundador natildeo aparece como um ldquodeus preguiccedilosordquo

que depois de realizar as suas obras retirou-se para longe dos homens A sua intervenccedilatildeo eacute dar

vida agrave mateacuteria preacute-existente e disforme A propoacutesito falando dos povos Bantos Francisco de

Sousa escrevia em 1710 ldquoEles natildeo adoram os iacutedolos toda sua supersticcedilatildeo lhes levam a

venerar um muzimus Os muzimus satildeo os seus santos e os seus santos satildeo os mortosrdquo

(SOUSA 1710 p 843) Em contrapartida Kar MAUCH (1971) se aproximou de uma das

verdadeiras caracteriacutesticas de muzimu quando ele escreveu ldquoO mutsimo [sic] eacute sempre o

espiacuterito do membro defunto da famiacuteliardquo

Na realidade o conceito de Muzimu natildeo eacute simples pois ele pode designar natildeo somente o

antepassado de cada um mas tambeacutem a uniatildeo de todos os antepassados da linhagem Os

espiacuteritos (orixaacutes) satildeo feitos dos seres sobre-humanos e dos espiacuteritos dos homens mortos haacute

longo tempo Eacute importante relembrar que a religiatildeo africana sob suas formas atuais dirige-se de

preferecircncia agraves personalidades secundaacuterias espiacuteritos ancestrais gecircnios que vivem na florestas

nos rios mares fontes etc

Os espiacuteritos tem uma dupla explicaccedilatildeo portanto satildeo de dois tipos uns satildeo a personificaccedilatildeo

da forccedila da natureza outros satildeo simplesmente os ancestrais heroacuteis ou condutores mediadores

dos povos idealizados depois da sua morte e que tornaram-se referencias espirituais presentes

nos seus descendentes Eles fortificam a coesatildeo do seu povo Este eacute o caraacuteter eminentemente

social das religiotildees africanas como jaacute temos mencionado desde o principio deste trabalho A

presenccedila dos espiacuteritos eacute fortemente sentida pelos africanos que vivem a sua religiosidade e

mesmo por aqueles que adotam ou se convertem a uma outra religiatildeo Agraves vezes os espiacuteritos

estatildeo ligados a uma famiacutelia ou a um clatilde ateacute a uma pessoa Eles satildeo os gecircnios protetores das

pessoas da aldeia do territoacuterio etc Uns satildeo beneacuteficos e outros satildeo maleacuteficos Uns e outros

contribuem para uma ordem do mundo e constituem um verdadeiro mundo dos espiacuteritos sob a

autoridade do Grande Espiacuterito Mulungu Nzambi Deus

Os bantos de uma forma geral distinguem todo ser que eacute perceptiacutevel aos oacutergatildeos dos sentidos

e ldquoagrave coisa em sirdquo chi-nthu Este uacuteltimo termo nthu significa a modalidade interna a natureza

da essecircncia ou da forccedila Numa linguagem imaginaacuteria os Bantos exprimem isso dizendo ldquoem

todo ser se encontra escondido um outro ser no homem haacute o invisiacutevel o outro pequeno

homemrdquo (TEMPELS 1965 p 27) Este pequeno homem natildeo morre e fica sempre escondido

atraacutes de forma exterior visiacutevel e continua a existir depois da morte Assim o termo Munthu

Banthu natildeo pode ser traduzido em termo ocidental de ldquohomemrdquo Porque o munthu tem

naturalmente um corpo visiacutevel mas este natildeo eacute o proacuteprio Munthu

Assim os mortos transformam-se em ldquoWazimurdquo Para os Bantos os espiacuteritos satildeo

essencialmente criadores do Ser Supremo mas tambeacutem satildeo a obra do saber e da palavra dos

homens Como constatou Henri Junod

ldquoPara eles [os Bantos] os psikwembu [Wazimu] satildeo os mestres de todas as coisas da terra dos campos das arvores da chuva dos adultos das crianccedilas e mesmo os pais dos santos Eles satildeo todo-poderosos sobre os objetos e todas as pessoas Os espiacuteritos podem abenccediloar se as colheitas satildeo abundantes eacute porque eles fizeram os esforccedilos para multiplicar os cereais e se engajaram para evitar a sua destruiccedilatildeo Se vocecircs encontrarem a atmosfera do vinho de palma eacute porque os espiacuteritos vos enviaram essa abundanciaMas os espiacuteritos tambeacutem podem amaldiccediloar e lanccedilar sobre a sua descendecircncia certas maldiccedilotildees sem fim Se haacute falta da chuva a sua fuacuteria eacute a causa () Na verdade toda doenccedila toda calamidade podem vir delesrdquo (JUNOD 1936 ndeg 143 pp341-342)

Assim os defuntos natildeo vivem mas eles existem Os mortos penetram o domiacutenio do

conhecimento profundo das forccedilas naturais e vitais que natildeo podem geralmente ser idecircnticos aos

dos vivos A multiplicidade de formas que pode tomar o culto prestado aos espiacuteritos dos

antepassados chamado de culto dos antepassados acaba por esconder o culto ao Ser Supremo

Deus Os espiacuteritos dos antepassados satildeo tambeacutem sujeitos agraves paixotildees humanas inveja oacutedio e

vinganccedila amor generosidade Por isso existem sacrifiacutecios ritos cerimocircnias para apaziguar a

fuacuteria dos antepassados pedir-lhes as suas becircnccedilatildeos proteccedilatildeo auxiacutelio e sua intercessatildeo juntos ao

Grande Espiacuterito Deus

MUNTHU O HOMEM

Munthu o homem compreende os seres humanos que estatildeo ainda vivos e aqueles que estatildeo

para nascer Todos os seres vivos se reconhecem pelo fato que agem e reagem geralmente de

uma maneira consciente se desenvolvem e exercem certas atividades internas e externas graccedilas

aos princiacutepios vitais que lhes animam Os homens e os animais possuem a caracteriacutestica mais

distintiva do ser vivo ou seja a vida fiacutesica graccedilas agrave qual podem agir sobre o mundo exterior

com vista ao seu proacuteprio desenvolvimentoMas eacute o conhecimento e a aplicaccedilatildeo deste

conhecimento na vida praacutetica que faz com que o homem seja um ser ldquoSuperiorrdquo na escala dos

seres vivos E eacute somente neste contexto que o homem se torna Munthu isto eacute o homem no seu

estado integral e integrante

O homem na realidade eacute a siacutentese de tudo que existe o recipiente por excelecircncia da forccedila

suprema e ao mesmo tempo o local para onde convergem as forccedilas existentes Ele eacute o ponto de

encontro de todas as forccedilas do universo investidas pelo Ser-Supremo Deus portanto

participando dele mesmo Nesta percepccedilatildeo de munthu o espaccedilo e o tempo natildeo satildeo entidades

separadas mas sim um conjunto uacutenico e complexo espaco-tempo no qual um e outro se

relacionam profundamente na sua essecircncia O homem eacute um ser complexo habitado pela

multiplicidade de entidades-forccedilas em movimento permanente Assim o munthu natildeo eacute um ser

estaacutetico concluiacutedo O seu potencial especifico humano se desenvolve e vai se desenvolvendo ao

longo da sua fase ascendente da vida em funccedilatildeo do terreno e das circunstacircncias encontradas As

forccedilas desenvolvidas por esta potencialidade estatildeo em perpeacutetuo movimento assim como no

proacuteprio Cosmos Mas o homem eacute igualmente constituiacutedo por elementos mais pesados cuja a

vocaccedilatildeo essencial eacute de ser ldquointerlocutorrdquo de Mulungu Deus Ele recebeu como heranccedila uma

parcela da potecircncia criadora divina

Poreacutem o drama do Munthu se revela nos conflitos originados pela dualidade de forccedilas que

vivem nele a ruptura de harmonia das forccedilas coacutesmicas ruptura do equiliacutebrio de si mesmo

causando o oacutedio a vinganccedila o desespero etc

Certos componentes do homem satildeo heranccedila outros satildeo dom e outros ainda existem porque o

indiviacuteduo decidiu integraacute-los reforccedilaacute-los e consentiacute-los atraveacutes de diversos sacrifiacutecios e rituais

que exigem esta integraccedilatildeo Todos esses componentes satildeo vivos moacuteveis e se transformam O

munthu deve exercer a sua vigilacircncia permanente para conservaacute-los e fazer convergir todas as

energias que ele sente e das quais eacute resultante E eacute neste sentido que o Negro-Africano considera

que o homem estaacute vivo em um equiliacutebrio fraacutegil Mas o homem estaacute consciente da auto-

transformaccedilatildeo constante porque ele estaacute constantemente agrave procura de equiliacutebrio em funccedilatildeo dos

componentes ricos e em movimento

Viver eacute fazer a gestatildeo da pluralidade dos componentes pessoais explorando os recursos da

natureza Este meio ambiente eacute fato da vida de forccedila ou energia e enfim de virtude Esta vida

eacute certamente a vida de todos os seres vivos homens animais vegetais minerais etc Mas eacute

igualmente a vida dos antepassados das entidades divinas diversas e do Ser Supremo O meio

ambiente em que vive o homem eacute tambeacutem constituiacutedo de forccedilas ou energias da natureza de

diversas formas como o caso de fogo terra aacutegua vento etc que se enquadram no processo de

desenvolvimento integral do homem O individuo deve se comportar de maneira a estar de

acordo com as outras forccedilas superiores e inferiores agraves suas afim de conciliar os seus efeitos

positivos A sauacutede aparece entatildeo como consequumlecircncia ideal desta harmonia Se o fio de vida se

desliga isso causa a solidatildeo uma ruptura que conduz agrave doenccedila e ateacute agrave morte social ou fiacutesica do

individuo E eacute por isso se praticam dois tipos de rituais o que se pratica para a prevenccedilatildeo e o

que se desenvolve com um caraacuteter curativo

O homem recorre aos siacutembolos para estar situado no Universo no decorrer da vida e estaacute

ligado psicologicamente fisicamente agrave fonte primeira-primordial Sendo siacutentese do universo e

da diversidades de forccedilas de vida o homem eacute designado como ponto de equiliacutebrio onde se

encontram atraveacutes dele diversas dimensotildees das quais ele eacute portador E eacute neste sentido que o

homem tem o meacuterito de receber o nome de Maat interlocutor de maa-nala e garantia do

equiliacutebrio da criaccedilatildeo Em virtude das regras estabelecidas pela ldquocrenccedila tradicionalrdquo natildeo se pode

invadir a natureza cortar indiscriminadamente os vegetais matar os animais poluir a aacutegua etc

Existem leis precisas que determinam o comportamento de maat nesses domiacutenios leis que natildeo

podem ser violadas e sem que possam afetar o equiliacutebrio da natureza e das forccedilas e podem

voltar-se contra a proacutepria pessoa criando-lhe perturbaccedilotildees consideraacuteveis O homem aparece no

mundo sobretudo neste caso como um ser chamado a preservar a multiplicidade de seres da

natureza para natildeo cair no caos Assim do comportamento conforme a lei sagrada dos

antepassados dependeraacute a prosperidade da terra o equiliacutebrio das forccedilas da natureza etc A

tradiccedilatildeo Negro-africana se preocupa com o ser humano tanto com a variedade dos seres

inferiores ou complementares chamado agrave ordenar e unificar assim como a encontrar o seu justo

lugar no meio mais vasto que eacute a comunidade humana e o mundo dos seres vivos

PINHAMA NA MITHI OS ANIMAIS E PLANTAS E A VIDA BIOLOGICA

Esta escala dos seres no Universo na Cosmologia do Negro Africano toma forma de vida e

torna-se real por causa do homem que lhe daacute um tipo de ldquoselo de objetividaderdquo atraveacutes da sua

razatildeo O homem africano traz de si proacuteprio esta filosofia que assume um valor por si mesmo O

homem imagina a criaccedilatildeo e atraveacutes dessa imagem aceita-a Definitivamente esta visatildeo de

mundo eacute espiritualista porque coloca o homem face a face com a transcendecircncia A simples

contemplaccedilatildeo do universo celeste o silecircncio da floresta o apego agrave terra podem ser algumas das

atitudes hieraacuteticas que provocam uma experiecircncia religiosa As organizaccedilotildees social poliacutetica e

econocircmica estatildeo em relaccedilatildeo com o sistema de crenccedilas e de representaccedilotildees religiosas As

proacuteprias teacutecnicas como aquelas dos ferreiros ou dos tecelotildees satildeo ligadas agraves crenccedilas e praacuteticas

religiosas

O homem por consequumlecircncia natildeo estaacute exilado no mundo em termos antropoloacutegicos Deus eacute

criador e alimenta o homem os espiacuteritos explicam o destino de homem Portanto o homem estaacute

no centro os animais as plantas os fenocircmenos naturais e os objetos constituem o meio onde ele

vive e lhe proporcionam os meios da sua existecircncia em caso de necessidade o homem

estabelece uma relaccedilatildeo miacutestica com elesO homem agrave luz do seu destino eacute algo natildeo acabado e

assim o sentido total da sua existecircncia lhe escapa A sua verdade eacute aquela de um horizonte

indefinido infinito em constante mudanccedila um abismo sem fundo que se caracteriza no tempo

circular Enfim eacute o homem que procura a sim mesmo

O homem negro-Africano se revela na conquista do seu destino e aparece como um desejo

de viver plenamente num percurso em vista da sua realizaccedilatildeo integral O espiacuterito e a natureza

satildeo inseparaacuteveis Um todo integral e integrado uma totalidade global Ė uma concepccedilatildeo unitaacuteria

da vida uma totalidade global Esta observaccedilatildeo eacute essencial para a compreensatildeo da realidade

africana Aliaacutes Alexis Kagame compreende da mesma forma a concepccedilatildeo banto de mundo

ldquoO Preexistente fez surgir [os antepassados] comeccedilando a

existir eles foram criados E estes por seu turno fizeram surgir os membros de tal sociedade e fictivamente ou realmente os elementos culturais na qual vivem os seus descendentes E nesse surgimento e criaccedilatildeo foi atribuiacuteda agrave potecircncia da Divindade ela eacute analogamente atribuiacuteda aos antepassados pelo fato que eles satildeo criaturas na ordem diferente da sua escalardquo ( KAGAME 1976 p 155)

Deus os antepassados a tradiccedilatildeo os mortos os gecircnios os seres vivos os fenocircmenos

naturais ( a chuva vento animais) e astronocircmicos (sol lua estrelas) a palavra humana a danccedila

a muacutesica os saberes as teacutecnicas(meacutedicas farmacecircuticas) a invocaccedilatildeo legendaacuteria ou histoacuterica

do passado as artes as ideacuteias as sabedorias revelados nos proveacuterbios as iniciaccedilotildees e a magias

os trabalhos enfim toda a vida em todas suas manifestaccedilotildees reais ou imaginarias constituem

uma mecacircnica que une o Universo inteiro Portanto eacute uma relaccedilatildeo ontoloacutegica

Na visatildeo do mundo negro Africano natildeo haacute um olhar que circula apenas agrave volta de um soacute

homem mas sim de toda a comunidade O ser humano possui ldquoforccedila vitalrdquo um Espiacuterito que se

integra no universo dos gecircnios na temporalidade Este principio imaterial natildeo eacute um ser

imaginaacuterio Ele existe Ele cria a imaginaccedilatildeo (faculdade misteriosa e real que natildeo pode ser

confundida com fantasmas do imaginaacuterio) Quando esta imaginaccedilatildeo atinge um certo degrau o

homem torna-se capaz de visatildeo E ele entra em relaccedilatildeo com os espiacuteritos que vivem fora dele os

tais gecircnios as almas dos mortos etc Assim ele ldquoconcretiza e abstrairdquo e lhes daacute imagem e

forma conhecendo desta feita a imortalidade

A RELIGIAtildeO AFRO-BRASILEIRA A RELIGIOSIDADE AFRICANA NA

DIASPORA

O conceito da religiatildeo que adotamos se integra na perspectiva da antropologia interpretativa

de Clifford Geertz

ldquoUm sistema de siacutembolos que atua para estabelecer poderosas penetrantes e duradouras disposiccedilotildees e motivaccedilotildees nos homens atraveacutes da formulaccedilatildeo de conceitos de uma ordem de existecircncia geral e vestindo esses concepccedilotildees com tal aura de fatualidade que as disposiccedilotildees e motivaccedilotildees parecem singularmente realistasrdquo( GEERTZ 1978105)

A religiosidade Africana na diaacutespora estaacute representada no Brasil como batuque em Porto

Alegre candombleacute angola e umbanda em Satildeo Paulo e Rio de Janeiro candombleacute keto em

Salvador xangocirc em Recife e tambor de mina em Satildeo Luis de Maranhatildeo No candombleacute os

grupos satildeo repartidos em ldquonaccedilotildeesrdquo que podem ser agrupados em duas grandes matrizes yoruba

Dahomeacute (Jejeacute ndashNagocirc) e Banto (Angola ndashMoccedilambique) etc E a presenccedila da cultura Afro-

brasileira vai muito aleacutem da que se vecirc nos grupos com os quais ela manteacutem relaccedilotildees de

afinidade Esta cultura de matrizes Africana possui inuacutemeras reinterpretaccedilotildees de diversas

maneiras e com as diferentes finalidades religiosos culturais comerciais turiacutesticas financeiras

etc A religiosidade africana na diaacutespora tem pela sua dinacircmica de trocas simboacutelicas e de

muacuteltiplos diaacutelogos o seu conceito semioacutetico correspondecircncias expressivas ao longo da

historia E eacute deste modo que a religiatildeo Afro-brasileira em seus vaacuterios aspectos diacrocircnicos e

sincrocircnicos local nacional e internacional particular e geral enfim nos vaacuterios significados que

seus elementos simboacutelicos se identificam no discurso social

Natildeo temos informaccedilotildees exatas sobre o inicio das praacuteticas de tradiccedilotildees religiosas africanas no

Brasil O que se sabe eacute que os escravos continuaram suas culturas de origem africana no Brasil

sobretudo as suas praacuteticas religiosas Comparando com outros componentes da cultura africana

que sobreviveram no Brasil constata-se que os elementos religiosos foram os que melhor

sobreviveram( RODRIGUES 1945) Um dos testemunhos mais antigos de praacuteticas religiosas

africanas no Brasil eacute o texto de uma denuacutencia que Sebastiatildeo Barreto fez em 1618 agrave inquisiccedilatildeo

quando da sua visitaccedilatildeo na Bahia Segundo esta noticia os negros haviam matado animais

quando de um enterro e lavado o morto com sangue pois teriam afirmado que ldquo nesse caso a

alma deixa o corpo para subir ao ceacuteurdquo (BASTIDE 1989186) Em outras descriccedilotildees de ritos

fuacutenebres chamou a atenccedilatildeo para o fato de que os negros entoavam cantos acompanhados de

tambores e chegavam agraves vezes ateacute a danccedilar Estas descriccedilotildees dentre outras nos mostram a

presenccedila de diferentes praacuteicas religiosas por ocasiatildeo de rituais fuacutenebres de africanos no Brasil

Muitos documentos da eacutepoca da escravatura descrevem a presenccedila de praacuteticas religiosas de

origem africana eacute a questatildeo de magia O tema aparece muitas vezes tanto nos relatos de

viajantes como nos boletins policiais e nos documentos da Inquisiccedilatildeo Muitos portugueses

supersticiosos natildeo apenas ficavam assustados com as praacuteticas religiosas africanas mas tambeacutem

ficavam fascinados Por outro lado esses ritos eram observados com muita desconfianccedila e

muitas vezes eram classificadas como feiticcedilaria Isto levava agrave perseguiccedilatildeo policial pois a

praacutetica de feiticcedilaria era proibida pela lei portuguesa

Na realidade algumas famiacutelias brancas pobres vivendo com as famiacutelias negras dormindo

em esteiras no chatildeo comendo com as matildeos danccedilando as muacutesicas dos negros e frequumlentando o

candombleacute davam sinais de que a religiatildeo e os habitus natildeo eram exclusivamente de negros mas

de brasileiros (ABREU 1988) Neste contexto o que havia sido designado ateacute entatildeo como

ldquoafricanordquo passa a ser compreendido como ldquoafro-brasileirordquo ou brasileiro Em vez do termo

ldquoseitas africanas passa-se a falar em ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo e os estudos centrados nestas

religiotildees adquirem nova direccedilatildeo Artur Ramos (1940) e posteriormente Edson Carneiro (1978

1981) e Roger Bastide (1978 1985) abandonaram definitivamente a associaccedilatildeo entre a

inferioridade racial e religiosidade dos negros a visatildeo evolucionista (magia politeiacutesta etc) em

prol de uma reinterpretaccedilatildeo histoacuterica e cultural desta

Na Aacutefrica a utilizaccedilatildeo das praacuteticas curativas eacute vista como integrante da praacutetica religiosa A

cura do corpo eacute acompanhada pela sauacutede do espiacuterito e as duas coisas satildeo englobadas pela

religiatildeo E no Brasil muitas pessoas procuram a religiatildeo Afro-brasileira como resposta agraves

dificuldades encontradas nos vaacuterios domiacutenios de vida desequiliacutebrios de sauacutede sejam eles

afetivos familiares financeiros etc Outras a procuram ainda como forma de afirmaccedilatildeo de sua

identidade cultural Identidade que se tem apoiado nos valores culturais de ancestralidade

africana

Essa identidade poreacutem soacute pode ser definida a partir de dentro isso eacute a partir da pessoa que

eacute adepta desta religiatildeo Como jaacute insistimos a identidade religiosa afro-brasileira eacute geralmente

contextual cultural social sobretudo histoacuterica Uma possibilidade de acesso a esta identidade

eacute oferecida pela histoacuteria da visatildeo do mundo do negro africano Sem esta natildeo se pode entender a

religiosidade Afro-brasileira Essa cosmogonia africana tem a dimensatildeo universal Como

constata Stefania Capone

ldquoNa verdade mesmo nos terreiros mais tradicionais de Bahia encontramos iniciados brancos ou ateacute nisseis [sic] Identidade lsquoafricanarsquo estaacute portanto completamente dissociada de toda origem eacutetnica real eacute possiacutevel ser branco louro de olhos azuis e dizer-se lsquoafricanorsquo por ter sido iniciado em um terreiro tido como tradicional O termo ldquoafro-brasileirordquo estaacute evidentemente associado agrave ideacuteia de uma Aacutefrica legitimadora berccedilo ideal e uacutenico de uma religiatildeo que nos nossos de hoje vem se tornando um siacutembolo de resistecircncia Mas seria o termo adequadordquo(CAPONE 2004 48)

O sistema de escravidatildeo significou para muitos africanos trazidos da Aacutefrica para o Brasil

uma perda em todos aspectos da vida A organizaccedilatildeo social em famiacutelias clatildes naccedilotildees foi

totalmente destruiacuteda A economia passou a ser regida de uma forma totalmente diferente que

em seus lugares de origem

Se o traacutefico de escravos foi um fator de desintegraccedilatildeo eacutetnica ele foi tambeacutem

paradoxalmente um componente da construccedilatildeo no Novo Mundo de novas identidades de

ldquonaccedilotildeesrdquo em maior escala do que na Aacutefrica Nesse aspecto o caso da Bahia eacute ilustrativo do

fenocircmeno O termo ldquonagocircrdquopor exemplo foi usado para identificar todos os grupos iorubanos

tambeacutem incorporou elementos natildeo iorubanos os quais no entanto natildeo perderam sua identidade

original de subgrupo ou de ldquonaccedilatildeordquoO termo ldquonagocircrdquo adquiriu um uso suficientemente amplo

para integrar numa espeacutecie de alianccedila muitos grupos que apesar disso natildeo esqueceram nem

abandonaram os nomes originais de seus subgrupos ou ldquonaccedilotildeesrdquo E a histoacuteria da formaccedilatildeo da

religiatildeo afro-brasileira se desenvolveu de forma diversa nas diferentes regiotildees do Brasil Esta

diversidade se deve a muitos fatores a presenccedila de diversas tradiccedilotildees religiosas africanas as

condiccedilotildees sob as quais estas tradiccedilotildees foram preservadas natildeo foram as mesmas As formas

religiosas do cristianismo espiritismo etc com as quais se ldquomisturaram (sincretismo

religioso)rdquo se encontraram e portaram-se de forma diversificada Como dizia Rita Amaral

ldquoAo panteatildeo africano traduzido parao catolicismo (Iansatilde eacute Santa Barbara Oxum eacute Nossa Senhora Aparecida) a umbanda acrescentou os pretosndashvelhos iacutendios (caboclos) boiadeiros [pomba giras] ciganos baianos marinheiros divinizando e valorizando os brasileiros representantes dos grupos marginalizadosrdquo (AMARAL 2001 7)

As tradiccedilotildees de origem africana foram construiacutedas reconstruiacutedas inventadas reinventadas e

agraves vezes abandonadas ou recuperadas conforme as necessidades e as circunstacircncias do

momento Todos estes fatores tiveram consequumlecircncias diretas ou indiretamente na formaccedilatildeo de

diversos tipos de rituais segundo as naccedilotildees oriundas dos escravos Nagocirc o Keto Jeje (Efon)

Angola Moccedilambique etc Estes nuacutecleos da religiatildeo afro-brasileira satildeo profundamente

influenciados pelas tradiccedilotildees africanas de origem Yoruba Daome Banto e outras

A escravidatildeo era quem dava a medida para toda a organizaccedilatildeo na vida destas pessoas Os

escravos tiveram que se adaptar aos novos rituais e cultos religiosos diante deste contexto de

perversidade humana A religiatildeo o culto a ancestralidade para o africano escravizado foi um

dos uacutenicos pilares que significou certa continuidade entre a situaccedilatildeo de antes durante e depois

da escravidatildeo Estes cultos estavam dificilmente sistematizados dada a conjuntura da eacutepoca Agrave

procura de identidade neste contexto a religiosidade de matriz africana teve o papel

preponderante fornecer criteacuterios para interpretar o mundo a vida a morte o sentido da

existecircncia etc A religiatildeo constituiu o ponto de referecircncia para reunir novamente aqueles

africanos que o sistema escravocrata dispersara Os lideres espirituais e suas comunidades eram

pontos de refuacutegio e apoio de solidariedade A antiga identidade eacute ali de certa forma preservada

O espaccedilo onde esta identidade se exerce natildeo eacute mais a Aacutefrica A antiga situaccedilatildeo natildeo pode ser

mais testemunhada vagas lembranccedilas apenas ficaram Surge uma certa necessidade de

restauraccedilatildeo do espaccedilo africano o terreiro com uma organizaccedilatildeo e situaccedilatildeo Africana onde o

transe possibilita uma volta agrave Aacutefrica poreacutem atraveacutes de simbolismo

ldquo O candombleacute eacute mais que uma seita miacutestica eacute um verdadeiro pedaccedilo da Aacutefrica transplantado Em meio agraves bananeiras agraves buganviacutelias agraves arvores frutiacuteferas agraves figueiras gigantes que trazem em seus ramos os veacuteus esvoaccedilantes dos orixaacutes ou agrave beira das praias de coqueiros entre a areia dourada com suas cabanas de deuses suas habitaccedilotildees o lugar coberto onde agrave noite os atabaques com seus toques chamam as divindades ancestrais com sua confusatildeo de mulheres de

moccedilas de homens que trabalham que cozinham que oferecem agraves matildeos saacutebias dos velhos suas cabeleiras encarapinhadas para cortar com galopadas de crianccedilas seminuas sob o olhar atento das matildees enfeitadas com seus colares lituacutergicos o candombleacute evoca bem essa Aacutefrica reproduzida no solo brasileiro de novo florescendo Comportamentos sexual econocircmico e religioso formam aqui uma uacutenica unidade harmoniosa ( BASTIDE 1960 312-3)

Uma determinada identidade religiosa de ancestralidade africana eacute preservada mesmo com

certas limitaccedilotildees e lacunas Pois como considera Gary Urton uma tradiccedilatildeo possui um

passado uma continuidade histoacuterica que o metamorfoseia em sujeitos de sua proacutepria historia

afirmar sua tradicionalidade equivale a se distinguir dos outros aqueles que natildeo tecircm mais

identidade definida Construir sua proacutepria representaccedilatildeo do passado ndash a tradiccedilatildeo- passa a ser

assim um inicio de negociar a posiccedilatildeo ocupada na comunidade em questatildeo (URTON

1993110)

A religiatildeo Afro-basileira eacute aparentemente em muitos casos contraditoacuteria A sua histoacuteria eacute

cheia de conflitos e contradiccedilotildees E a fidelidade simultacircnea agrave Aacutefrica e ao Brasil ( agrave antiga e agrave

nova respectivamente) eacute talvez uma contradiccedilatildeo em si Mas eacute ao mesmo tempo uma

fidelidade agrave proacutepria histoacuteria da qual ambas fazem parte Contudo tanto a preservaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo dos elementos antigos como a acolhida de novos componentes convergem para uma

uacutenica identidade da religiatildeo Afro-brasileira a religiosidade Africana na diaacutespora

Roger Bastide afirma ldquo a transplantaccedilatildeo dos africanos no Novo Mundo de fato coloca um

problema similar ao das lesotildees cerebrais e eacute claro jaacute que amneacutesia pode ser apenas temporaacuteria

da formaccedilatildeo subsequumlente de novos centros mnemocircnicos no ceacuterebrordquo (BASTIDE 1970 b 85)

Se tudo eacute conservado na memoacuteria coletiva a reconstituiccedilatildeo do passado eacute possiacutevel recriando-se

os laccedilos rompidos com a cultura de origem Trata-se pois de preencher as lacunas os vazios

deixados pelo desenraizamento que foi a escravidatildeo e pela ldquoestrutura do segredordquo na base da

hierarquia da religiatildeo Africana causas do desaparecimento progressivo da memoacuteria Isso natildeo

impede a penetraccedilatildeo do presente no passado pois todas imagens da tradiccedilatildeo natildeo satildeo reativadas

somente aquelas satildeo coerentes com o presente (HALBWACHS1925)

A religiosidade africana consiste nos cultos aos espiacuteritos dos ancestrais do mundo invisiacutevel e

a religiatildeo dos Afro-brasileiro designa esses mesmos espiacuteritos dos ancestrais como orixaacutes

inquices egunguns

CONCLUSAtildeO

Esta eacute a descriccedilatildeo de uma religiatildeo vigorosa que seus adeptos misturam a todas as atividades

O que conta em efeito eacute a intenccedilatildeo diante da qual nada resta profano Cada um

intencionalmente deve fazer com que ateacute seus passos e sua respiraccedilatildeo tudo se transforme em

atividade religiosa que coloca o ser em contato constante com seu Deus Se esta eacute a realidade

indefinida de Deus qual eacute a natureza da concepccedilatildeo que os povos lhe datildeo Qual eacute a natureza da

ideacuteia de Deus diante da tradiccedilatildeo

Atraveacutes do exposto pudemos constatar que a ideacuteia de Deus para o africano natildeo eacute uma ideacuteia

um conceito ou um conjunto de conceitos sobre Deus Natildeo existe uma teologia conceitual Mas

no princiacutepio no centro de tudo haacute o homem vivendo seus sentimentos suas crenccedilas as

representaccedilotildees que tem o inexplicado o incompreendido por ele projetando-o inteiro do

mundo visiacutevel do tangiacutevel em direccedilatildeo ao invisiacutevel A ideacuteia de invisiacutevel se existe estaacute contida

inteiramente no corpo atraveacutes da imaginaccedilatildeo Haacute neste sentido a experiecircncia direta vivenciada

de divindade a visatildeo carnal do invisiacutevel Natildeo haacute no homem tradicional um sentido destacado

do resto do universo Eacute com o seu corpo alma e espiacuterito que o homem compreende-se Eacute assim

tambeacutem que compreende os outros homens a natureza e Deus Na realidade laquoas coisas e os

seres natildeo satildeo um obstaacuteculo ao conhecimento de Deus constituem ao contraacuterio significados

indiacutecios reveladores do divino raquo (ZAHAN 1970 p 30) Evidencia-se entatildeo que este

conhecimento miacutestico do invisiacutevel natildeo eacute puramente contemplativo uma fuga da vida concreta

ele [o conhecimento miacutestico] retorna ao proacuteprio conhecimento conduzindo ao crescimento e ao

reforccedilo do princiacutepio

Logo o homem que se faz pela conquista da unidade do seu ser do equiliacutebrio eficiente

algumas vezes dinacircmico e instaacutevel dos seus constituintes e relaccedilotildees aparece como uma

conjunccedilatildeo harmoniosa das energias coacutesmicas e sociais O munthu o homem tornado possiacutevel

pela confluecircncia dos seres natildeo somente pela sua palavra que pode ser proferida pela escuta por

seu nome e pela conduta da danccedila a arte mas tambeacutem por sua constituiccedilatildeo como ser eacute

realizado como ponto de encontro de todas as forccedilas como a siacutentese de todas as coisas

Por esta razatildeo quando se quer estabelecer este conhecimento de Deus como uma realidade

isolaacutevel chegamos a teologias ditas primitivas muitas vezes contraditoacuterias seguidamente

contestaacuteveis ldquoNenhum tema de antropologia social eacute tatildeo contestado quando a teologia dos

primitivosrdquo (EVANS-PRITCHARD 1962 p 162) O conhecimento de Deus como o

conhecimento do que eacute vivo estaacute em comunicaccedilatildeo potencial com tudo o que eacute visiacutevel ou

invisiacutevel tendo como aacutepice a imaginaccedilatildeo que cria o mito e o culto e que atualiza o mito

Este conhecimento muitas vezes misturado com a visatildeo miacutestica que eacute o comeccedilo e o fim da

existecircncia ldquoprimitivardquo e que tem o homem como centro eacute a mesma em todos os lugares quer

seja conhecimento de Deus ou do invisiacutevel ou conhecimento do visiacutevel Ele compreende em si

todos os outros conhecimentos e atividades positivas da vida que se referem ao conhecimento

ao mesmo tempo como iniacutecio e fim

Para compreender esta cosmogonia africana devemos concebecirc-la do ponto de vista do

homem A concepccedilatildeo africana de mundo eacute unitaacuteria e esta unidade eacute fundamental tal como

aparece para o homem como uma evidecircncia que se explica a si proacutepria Na verdade a unidade

do mundo eacute vivida como experiecircncia primeira e evidente a noccedilatildeo de um Deus fora do mundo

acima do mundo e separada do mundo eacute inconcebiacutevel Porque natildeo haacute revelaccedilatildeo possiacutevel da

existecircncia de um Deus fora do mundo dos homens Deus entatildeo eacute o fim no duplo sentido do

termo limite e objetivo Por essa razatildeo natildeo haacute oposiccedilatildeo a este tipo de conhecimento nada pode

afastaacute-lo em suma da essecircncia do humanismo africano

BIBLIOGRAFIA

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Antoinette ed Meacutemoire de la Tradition P 107-44 Recherches theacutematiques 5) ZAHAN Dominique Religion spiritualiteacute et penseacutee africaines Paris Payot 1970

Semelhanccedilas e diferenccedilas Uma anaacutelise das correntes Umbandistas a partir de uma

cidade interiorana

Laiacutes Moacutel Alves75

Simone Rodrigues Barbara76

O presente trabalho pretende analisar a Umbanda religiatildeo de matriz africana na cidade

de Caratinga leste de Minas Gerais na tentativa de demonstrar a presenccedila de pelo menos duas

linhas dessa religiatildeo na cidade e analisar ainda a relaccedilatildeo econocircmica existente entre a

prevalecircncia de uma ou outra doutrina religiosa dentro da corrente Umbandista Para esta anaacutelise

foram escolhidos trecircs terreiros o ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom

fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e ldquoCasa da Mariquinhardquo locais que se pode observar maior

influecircncia das religiotildees afro-brasileira E um outro terreiro (sem nome) que permanece a

influecircncia do Kardecismo no culto

Formaccedilatildeo da Umbanda

O negro inseriu-se na sociedade brasileira como escravo a partir do seacuteculo XV apesar

de marginalizado e sem nenhuma representatividade soacutecio- poliacutetica manteve-se como ponto

chave de todos os sistemas econocircmicos desse periacuteodo A lei Aacuteurea assinada no dia 13 de maio

de 1888 aboliu a escravidatildeo no Brasil e por consequecircncia desintegrou a organizaccedilatildeo social em

que o negro estava inserido Essa lei despejou um grande nuacutemero de ex- escravos sem nenhum

aparato para a sua integraccedilatildeo na sociedade

BASTIDE (1960406) afirma que a industrializaccedilatildeo teve dois efeitos sobre o negro no

primeiro momento desintegrou-o da sociedade pois natildeo fora incluiacutedo nem social nem

economicamente no processo e num segundo momento ocorreu sua reintegraccedilatildeo jaacute como

parte da sociedade de classes

A macumba77 foi o culto que esteve ligado ao negro no periacuteodo de desintegraccedilatildeo

social Devido a sua natildeo inserccedilatildeo na sociedade de classes esse culto ficou estigmatizado na

sociedade caracterizando seus seguidores como feiticeiros Os negros que conseguiram

ascensatildeo social na sociedade industrial procuraram desvincular-se da macumba Para

75 Graduando em Histoacuteria pelo Centro Universitaacuterio de Caratinga 76 Graduando em Histoacuteria pelo Centro Universitaacuterio de Caratinga 77 Segundo Bastide (1960407) a macumba eacute a principio a introduccedilatildeo de certos orixaacutes e de certos ritos ioruba na cabula de origem banto com o sincretismo de cultos africanos ameriacutendios catoacutelicos e espiacuteritas

amenizar as caracteriacutesticas ligadas aos cultos africanos aproximaram-se de outros sincretismos

principalmente da doutrina Kardescista que era melhor aceita na sociedade

A passagem da macumba aacute umbanda estaria ligada ao desejo de ascensatildeo social das classes menos favorecidas Elas buscaram depurar qualquer vinculaccedilatildeo com um grupo ou uma cultura tradicionalmente estigmatizados ao mesmo tempo em que se aproximaram e assumiratildeo valores cristatildeos principalmente atraveacutes do espiritismo o que foi fundamental para a formaccedilatildeo da Umbanda ( MALANDRINO200694)

A umbanda eacute marcada pelo sincretismo de vaacuterias correntes religiosas com intenccedilatildeo de

desmistificar a macumba para propiciar melhor aceitaccedilatildeo do negro na sociedade de classes

Notaremos que sua formaccedilatildeo seraacute o resultado de mudanccedilas econocircmicas e sociais que

atingiram em grande parte o negro ocasionando a re-significaccedilatildeo de sua religiosidade

Constataremos que o nascimento da religiatildeo umbandista coincide justamente com a consolidaccedilatildeo de uma sociedade urbano-industrial e de classes A um movimento de transformaccedilatildeo social corresponde um movimento de mudanccedila cultural isto eacute as crenccedilas e praacuteticas afro-brasileiras se modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da sociedade global brasileira

Umbanda na cidade de Caratinga

O municiacutepio de Caratinga localiza-se a 19ordm 37 30 de latitude sul e a 42ordm 09 00 de

longitude oeste estaacute inserida na regiatildeo VIII denominada Rio Doce e na microrregiatildeo

homogecircnea da Mata de Caratinga na porccedilatildeo leste mineira78 Sua economia eacute voltada para a

agricultura comeacutercio e serviccedilos SENA(200581) ldquoClassifica caratinga como centro de serviccedilos

o que facilita sua caracterizaccedilatildeo como cidade meacutedia propriamente dita e tem em seu destaque

a funccedilatildeo de centro escolarrdquo possui estabelecimentos de ensino de niacutevel superior que atrai

alunos de vaacuterios locais

A cidade tem traccedilos marcadamente interioranos e conservadores o grande nuacutemero de

Centros Espiacuteritas Umbandistas espalhados por toda a cidade assustou no iniacutecio da pesquisa

pois a maioria das pessoas natildeo sabem que existem tais locais de culto mesmo sendo estes

registrados pela Associaccedilatildeo dos Umbandistas de Caratinga Os Centro espiacuteritas Umbandistas

com a exceccedilatildeo do ldquosem nomerdquo localizam-se em bairros de classe meacutedia baixa O

conhecimento desses se daacute na maioria das vezes somente entre os membros

Caracterizaccedilatildeo dos terreiros

Para caracterizaccedilatildeo dos terreiros utilizaremos a proposta de CONCONE(198787) em

quadro fornecido pelo Dr Bandeira O ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do

78 Localizaccedilatildeo e vias de acesso Caratinga Disponiacutevel em httpwwwcaratingamggovbrmat_visaspxcd=67326 Acessado em 10 maio de 2009

Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e o ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecidardquo

enquadraram em ldquoUmbanda ritmadardquo ldquode terreirosrdquo a caracteriacutestica marcante desse tipo de

Umbanda eacute o uso do toque do atabaque para marcar o ritmo e andamento da cerimocircnia

O Centro Espiacuterita ldquoSem nomerdquo enquadra-se em ldquoUmbanda espiritistardquo ldquode mesardquo

Constitui-se numa fase intermediaacuteria entre as Umbandas e o espiritismo de A Kardec O

ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom Fim Caboclo das Matas Virgensrdquo

funciona nos fundos da residecircncia do pai-de-santo conhecido pelos fieis por ldquoPai Sebastiatildeordquo ou

somente ldquopadrinhordquo natildeo possui nenhuma identificaccedilatildeo no portatildeo somente na porta de entrada

do terreiro nos fundos da residecircncia O Centro Espiacuterita eacute um cocircmodo retangular todo

azulejado composto por quatro altares que se dispotildeem da seguinte forma o do meio conta com

uma mistura de todos os santos agrave direita fica o altar de Oxoacutessi que eacute o santo protetor do ldquoPairdquo

da casa agrave esquerda fica o altar dos pretos-velhos e do lado deste encontra-se o altar de Nossa

Senhora e Iemanjaacute Do lado de fora do Centro ficam as ldquocasinhasrdquo dos Exus e o quarto da

Cigana79

As giras80 abertas acontecem de quinze em quinze dias agraves segundas-feiras a ldquorezardquo eacute

marcada pelo toque do atabaque durante todo o tempo Satildeo invocadas todas as sete correntes de

Umbanda81 em pontos82 puxados ora pelo pai do Centro ora por filhos-de-santo sem nenhuma

restriccedilatildeo As mulheres se mantecircm aacute direita do altar e os homens agrave esquerda Todos os filhos-de-

santo trocam de roupa antes do iniacutecio da gira os homens sempre de branco e a maioria das

mulheres tambeacutem poreacutem algumas se vestem com roupas de cores diversas

Nesse Centro trabalha-se com Umbanda e Quimbanda natildeo se tem uma ordem para a

ocorrecircncia dos dias da Quimbanda mas sempre eacute anunciada no fim do culto pela entidade do

Pai-de-santo que pede que todos que no dia marcado utilizem roupas pretas O sincretismo

religioso marcado pelo Catolicismo daacute-se nas oraccedilotildees do ldquo Pai ndash Nossordquo ldquo Ave- Mariardquo ldquoSalve

Rainhardquo pelas vaacuterias imagens de santos presente O Sincretismo com o Candombleacute daacute-se nos

quartinhos dos Exus e no uso do atabaque

O ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecida 83rdquo localiza-se no bairro Esplanada Os

cultos ocorrem numa residecircncia em cima da casa da matildee- de ndashsanto composta por cocircmodos

pequenos e apertados Observamos uma sala com um altar onde ficam todas as imagens de

79 O quarto da cigana foi feito a pedido da entidade Nele conteacutem televisatildeo cama geladeira Ela atende as terccedilas-feiras e a consulta custa 5000 reais 80 A palavra gira eacute de origem portuguesa do verbo girar rodar Adaptada pelos negros teria tornado engira designando a reuniatildeo dos Camanaacutes culto negro do fim do seacuteculo passado ocorrido no estado do Espiacuterito Santordquo MALANDRINO2006109 81 Nessa casa as 7 linhas da Umbanda satildeo pretos-velhos boiadeiros baianos ciganos erecircs marinheiros e exus na pesquisa de Bastide as linhas seriam Oxalaacute Iemanjaacute Oriente Oxocecirc Shangocirc Ogum e Africana Ver Bastide 1960 444-445 82 Pontos satildeo cantos que se referem as sete linhas de Umbanda e aos Exus 83 O Centro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecida eacute o mesmo que Casa da Mariquinha como eacute normalmente chamado

santos e orixaacutes As casinhas do Exu ficam do lado de fora da residecircncia em baixo de uma

aacutervore As cerimocircnias abertas ocorrem todas as quartas-feiras durante a semana ocorrem

cerimocircnias reuniotildees para os filhos- de- santo que estatildeo sendo iniciados Trabalha-se com

Umbanda e Quimbanda sendo que na maioria dos cultos ocorre a ldquovirada da linhardquo natildeo sendo

esporaacutedica como no Pai Sebastiatildeo As mulheres se mantecircm aacute direita do altar e os homens agrave

esquerda O Sincretismo religioso daacute-se da mesma forma que no ldquoCentro Espiacuterita Cabana de

Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo

O culto do Centro Espiacuterita ldquoSem Nomerdquo localiza-se na aacuterea central na cidade (H L

Matos) grande parte dos seus membros tem formaccedilatildeo acadecircmica a maioria de seus adeptos satildeo

brancos incluindo o Meacutedium e seus principais sacerdotes84 Os cultos abertos ao puacuteblico

ocorrem todas as segundas-feiras existem reuniotildees fechadas para trabalhar a espiritualidade dos

meacutediuns e cirurgias espiacuteritas O Centro espiacuterita se localiza nos fundos da casa do liacuteder

espiritual formado por cadeiras um altar com a imagem de vaacuterios santos Nas paredes

encontram-se fotos de pretos-velhos e de caboclos Os homens sentam-se obrigatoriamente do

lado direito do altar e as mulheres do lado esquerdo A maioria dos seguidores do culto ao

chegar trocam suas roupas por roupas brancas O meacutedium se manteacutem sempre ao centro do

altar e eacute rodeado por sacerdotes que seguem a mesma ordem dos fieacuteis homens agrave direita e

mulheres agrave esquerda

O sincretismo religioso marcado pelo Catolicismo se daacute pelas oraccedilotildees do ldquoPai-Nossordquo

ldquo Ave-Mariardquo ldquoSalve Rainhardquo imagens de santos O sincretismo com o Kardescimo eacute marcado

por toda a liturgia usada ( livro dos Espiacuteritos dos meacutediuns evangelho segundo Alan Kardec)

distribuiccedilatildeo de aacutegua fluidificada de passe Eacute importe salientar que todos os meacutediuns

incorporam preto-velho e caboclo

Levantamento da composiccedilatildeo eacutetnica e educacional dos fieis dos Centros Espiacuteritas

estudados

No Centro Espiacuterita ldquoCabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas

Virgensrdquo e no ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecidardquo todos os fieis residem nos bairros

do Centro Espiacuterita que consequentemente corresponde a um bairro suburbano e quase natildeo

haveraacute diferenccedilas nas buscas dos fieis na religiatildeo No primeiro centro de todos os doze

entrevistados dez se consideram negros ou mulatos e dois brancos sendo que os uacuteltimos

procuram elevaccedilatildeo do espiacuterito por meio da religiatildeo e possuem niacutevel educacional superior

todos os outros procuram bens materiais sendo que os mais listados satildeo empregos moradia

proacutepria e dinheiro No segundo centro dos seis entrevistados apenas um se considera branco

84 Sacerdotes eacute uma terminologia usada pelos membros do culto para os meacutediuns que formam a mesa

todos estatildeo em busca de bens materiais sendo os mais citados empregos namorado (a)

dinheiro todos solteiros com idade meacutedia de 25 anos

Dos centros espiacuteritas estudados o ldquoSem Nomerdquo diverge dos acima caracterizados Todos

os cinco entrevistados tecircm curso superior completo se consideram brancos residem no centro

da cidade e buscam na religiatildeo elevaccedilatildeo espiritual Em todas entrevistas por vaacuterias vezes foram

citados os livros de Alan Kardec como leitura baacutesica

Relaccedilatildeo de Negros e Brancos nos centros espiacuteritas Umbandistas estudadas

0

2

4

6

8

10

12

Centro I Centro II Centro III

Brancos

Negros

Centro I - ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo Centro II - Centro Espiacuterita ldquo Nossa Senhora Aparecidardquo CentroIII- ldquoSem Nomerdquo

Escolaridade dos fieis participantes dos Centros espiacuteritas Umbandistas estudados

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

Ens Funda Teacutecnico Ens Superior

Centro I

Centro II

Centro III

Buscas na Religiatildeo

0

2

4

6

8

10

12

Centro I Centro II Centro III

Elevaccedilatildeo deEspirito

Buscas Materiais

A partir das leituras dos dados colhidos em pesquisa de campo observamos que as

diferenccedilas e semelhanccedilas dos fieis dos Centros Espiacuteritas Umbandistas da cidade de Caratinga

estaratildeo intrinsecamente ligadas agraves condiccedilotildees socioeconocircmica e intelectual dos fieis Nos Centro

Espiacuterita ldquoNossa Senhora Aparecidardquo e ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do

Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo os fieis estatildeo em busca de bens materiais soluccedilatildeo de

problemas cotidianos curas de doenccedilas BASTIDE (1960434)85 expotildee que nesse tipo de centro

o espiritismo apareceraacute ldquocomo um caraacuteter meacutedico do espiritismo tanto mais que a tradiccedilatildeo de

curador da magia curativa de definiccedilatildeo da doenccedila pela accedilatildeo miacutestica dos feiticeiros ou da

vinganccedila dos mortos permanece agrave base da mentalidade primitivardquo

No Centro Espiacuterita ldquoSem nomerdquo encontraremos uma diferenccedila de culto e de fieis em

relaccedilatildeo aos outros centros estudados Tem-se como princiacutepios baacutesicos das reuniotildees a busca da

elevaccedilatildeo espiritual como forma de ter uma vida melhor quando se desencarnar Os fieis dos

centros Espiacuteritas ldquoNossa Senhora Aparecidardquo e ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano

Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo como exposto no graacutefico seratildeo em grande

parte negros com pouca escolaridade contraacuterio do Centro Espiacuterita ldquo Sem NomerdquoAcreditamos

que essa diferenccedila possa ser explicada pela piracircmide de Maslow

A piracircmide das necessidades de Maslow pontua cinco tipos de necessidades que satildeo

qualitativamente diferentes entre si fisioloacutegicas seguranccedila participaccedilatildeo auto-estima auto-

realizaccedilatildeo Defende ainda a premissa de que o comportamento eacute determinado pela categoria de

necessidades As de mais baixa ordem tem que se permanecer satisfeita para que possa

satisfazer as outras (GAVIOLI VERARDI )

Fazemos entatildeo a relaccedilatildeo da teoria de Maslow com as caracteriacutesticas soacutecio-religiosas

encontradas em Caratinga como no terreiro ldquoSem Nomerdquo a maioria dos fieis tem uma boa

85 Bastide divide o espiritismo em trecircs sendo que segundo esse autor essas divisotildees tem caracteriacutesticas peculiares devido aacute diferenccedila de formaccedilatildeo intelectual e social dos fieis

condiccedilatildeo financeira procuram na religiatildeo uma busca interior elevaccedilatildeo do espiacuterito jaacute que suas

necessidades primaacuterias estatildeo satisfeitas Os fieis dos outros dois centros espiacuteritas como possuem

uma menor condiccedilatildeo financeira e menor escolaridade (devido agrave condiccedilatildeo financeira) buscaratildeo

na religiatildeo uma forma de realizaccedilatildeo das suas necessidades primaacuterias

MALANDRINO (200762) defende que as pessoas de classe menos favorecidas

economicamente encontram nas religiotildees afro- brasileiras um local de maior afetividade ldquonuma

relaccedilatildeo direta espontacircnea e iacutentima com as divindadesrdquo Ainda encontram respostas para os

seus problemas cotidianos por isso grande parte das pessoas que frequumlentam esses cultos estatildeo

em busca de curas de doenccedilas pobreza desemprego desacertos amorosos pois para eles estes

estatildeo no plano religioso e natildeo social no indiviacuteduo ou na sociedade

Conclui-se que a na Cidade de Caratinga exista duas correntes Umbandistas diferentes

uma que vai de encontro com os princiacutepios doutrinaacuterios do Espiritismo Kardescistas ( mas que

tem incorporaccedilatildeo de preto-velhos e caboclos) e outra com caracteriacutesticas voltadas agraves religiotildees

de matrizes africanas Notaremos que as diferenccedilas natildeo seratildeo apenas doutrinaacuterias encontrar-se-

aacute um puacuteblico especiacutefico para cada corrente A corrente onde predomina o Espiritismo

Kardescista (Centro espiacuterita ldquoSem Nomerdquo) contaraacute com a grande maioria de fieis brancos e que

buscam elevaccedilatildeo espiritual atraveacutes da religiosidade A corrente onde o predomiacutenio religioso eacute

das Religiotildees de matriz africana encontraremos a maioria dos fieis negros e com pouca

escolaridade que buscam a resoluccedilatildeo de problemas cotidianos

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GT Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade

EMENTAS

O verdadeiro sentido do plano salviacutefico de Deus uma proposta libertadora de salvaccedilatildeo

Carlos Renato de Araujo Coutinho

Pensar sobre a salvaccedilatildeo da humanidade como fato anterior a sua criaccedilatildeo pode parecer para muitos aleacutem de intrigante tambeacutem errocircneo visto que uma visatildeo limitada foi construiacuteda ao longo dos anos e continua existindo baseada em antigos paradigmas que permeiam o entendimento do ser humano Em tempos onde estes antigos paradigmas ainda escravizam e oprimem a vida da humanidade no que se refere ao tema Salvaccedilatildeo surge agrave necessidade de imersatildeo ao verdadeiro sentido do plano salviacutefico de Deus Esse trabalho visa apresentar o tema Salvaccedilatildeo a partir de uma anaacutelise com proposta libertadora onde uma nova perspectiva salviacutefica e com liberdade liberta a humanidade para um pleno entendimento para a superaccedilatildeo de antigos paradigmas e para a possibilidade de adesatildeo ao verdadeiro plano salviacutefico de Deus que consiste em um projeto para a vida da humanidade antes mesmo que ela fosse criada

O Fenocircmeno soacutecio-religioso de um ldquoPeregrinar contemporacircneordquo visatildeo socioloacutegica

Maria das Graccedilas Ferreira de Arauacutejo

Tendo em vista a grande expressatildeo que o fenocircmeno religioso das peregrinaccedilotildees apresenta agrave sociedade e pela sua importacircncia na atualidade busco abordar um outro tipo de peregrinaccedilatildeo muito mais singela uma espeacutecie de micro-romaria quase individual Trata-se de pequenas romarias que ocorrem todos os anos por ocasiatildeo da visita aos cemiteacuterios em dia de finados Esse caminhar de esperanccedila cuja chegada conserva algo santo e memoraacutevel os tuacutemulos e a lembranccedila dos mortos abrem-nos perspectivas para pensar o resgate histoacuterico-cultural das expressotildees religiosas dos ritos como viaacutevel resposta agrave integraccedilatildeo da morte e da vida na contemporaneidade Desse modo a proposta da comunicaccedilatildeo consiste em apresentar uma anaacutelise socioloacutegica do ritual de finados buscando demonstraacute-lo como uma forma contemporacircnea de peregrinaccedilatildeo

GT Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade

TEXTO

O fenocircmeno soacutecio-religioso de um ldquoperegrinar contemporacircneordquo

Maria das Graccedilas Ferreira de Arauacutejo

O fenocircmeno soacutecio-religioso das peregrinaccedilotildees leva fieacuteis a deslocar-se e pocircr-se a

caminho em demanda a lugares sagrados O ato de peregrinar eacute uma experiecircncia antropoloacutegica

concreta de sair de casa do seu cotidiano para caminhar ao lado de outras pessoas em busca

desse lugar sagrado para um encontro simboacutelico com o seu santo Eacute uma praacutetica religiosa

bastante antiga mas nem por isso ultrapassada Sua realizaccedilatildeo e propagaccedilatildeo se datildeo de maneira

corrente e impressionante a cada ano Atualmente devido agraves mudanccedilas culturais sociais

tecnoloacutegicas e poliacuteticas essa atividade encontra-se em meio a novos paradigmas

Antigamente o termo usado para se dizer peregrinar era ldquocaminharrdquo Hoje na grande

maioria das peregrinaccedilotildees e romarias se usa o mesmo termo mesmo quando se viaja noutros

meios de locomoccedilatildeo Como por exemplo carros de boi cavalos caminhotildees ocircnibus barcos e

ateacute aviotildees A tecnologia e o aperfeiccediloamento nos meios de transportes favorecem a agilidade e

diminui a duraccedilatildeo das viagens No mundo atual as peregrinaccedilotildees movimentam ainda milhotildees

de pessoas a cada ano E essa significativa expressatildeo natildeo se restringe apenas ao mundo cristatildeo

As peregrinaccedilotildees partem de toda a parte por diferentes crenccedilas e caminhos a variados destinos

Como praacutetica religiosa tem sido uma das mais antigas formas de devoccedilatildeo da religiatildeo

popular86 Adotada por muitos povos chega a se confundir com a proacutepria histoacuteria das religiotildees

Valle87 afirma inclusive que as romarias satildeo uma realidade entranhada no coraccedilatildeo de todas as

religiotildees Existem vaacuterias formas de peregrinaccedilotildees judaicas cristatildes muccedilulmanas hindus

budistas etc Cada uma delas com suas proacuteprias caracteriacutesticas e relacionadas agrave suas diferentes

religiotildees Por exemplo a visita agrave Terra Santa agrave Meca Satildeo Tiago de Compostela ao Ciacuterio de

Nazareacute e tantas outras peregrinaccedilotildees que tambeacutem podem se apresentar sob o aspecto de turismo

religioso No cristianismo essa constante religiosa se concentra em locais conhecidos como em

Mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas GeraisPUC-Minas 86 SANCHIS P Arraial festa de um povo As romarias portuguesas Lisboa Dom Quixote 1983p 39 87 VALLE Edecircnio Santuaacuterios romarias e discipulado cristatildeo Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo Belo Horizonte v4 n8p38jun2006

Roma Lourdes Aparecida e em centro de devoccedilatildeo mais populares como os santuaacuterios do

Padre Ciacutecero Romatildeo em Joaseiro e Bom Jesus na Lapa Bahia

Em vaacuterias partes do mundo os devotos fazem viagens e peregrinaccedilotildees por santuaacuterios e

templos sagrados Em sua maioria as peregrinaccedilotildees satildeo caracterizadas por longas e penosas

viagens quase sempre em grupo acompanhadas de cantos oraccedilotildees e meditaccedilotildees Quando o

romeiro ou o peregrino deixa seu lar sai de seus haacutebitos do seu cotidiano impondo a si mesmo

a penitecircncia de uma caminhada relativamente cansativa ele entra em contato e em comunhatildeo

com outros caminhantes com todos que com ele seguem objetivo comum o encontro com o

sagrado A chegada ao lugar sagrado eacute marcada por um gesto puacuteblico de feacute (ritual banho tocar

uma reliacutequia jejum procissatildeo solene) Haacute sempre um momento em que o peregrino presta

uma homenagem ao santo como quando se chega agrave casa de uma pessoa mais importante

Aquele que peregrina leva consigo a convicccedilatildeo de se ter conseguido um enriquecimento

espiritual uma cura moral ou ateacute fiacutesica

Peregrinar eacute portanto uma marcha ritual que parte de um lugar mais ou menos distante

e se ingressa temporariamente em um outro onde se encontra o sagrado para logo retornar ao

mesmo ponto de partida com a experiecircncia de se ter participado em virtude do sagrado da

presenccedila especial de um santo Nessa devoccedilatildeo se reuacutene em convivecircncia intensa durante o

periacuteodo da mesma milhares de pessoas originaacuterias dos mais diversos locais A peregrinaccedilatildeo eacute

tambeacutem importante na consolidaccedilatildeo da feacute coletiva pois fortalece laccedilos entre as comunidades e

as faz sentirem-se unidas numa caminhada comum As redes de sociabilidades que ali se

formam favorecem o processo dinamizador nas relaccedilotildees sociais

Nesse sentido caminhar peregrinar fazer romarias satildeo experiecircncias que cultivadas

levam os seus agentes ndash os peregrinos- a se abrirem a uma vivecircncia ldquopessoal coletivardquo

Oferecendo-os ocasiatildeo para situarem-se como pessoas na grande caminhada de convivecircncia do

povo de Deus da sociedade e de toda a humanidade Tendo em vista a grande expressatildeo que o

fenocircmeno das peregrinaccedilotildees apresenta agrave sociedade e pela sua importacircncia na atualidade a

pesquisa busca abordar um tipo de peregrinaccedilatildeo contemporacircnea muito mais singela uma

espeacutecie de micro-romaria quase individual Trata-se de pequenas romarias que ocorrem todos

os anos por ocasiatildeo da visita aos cemiteacuterios em dia de finados

Essa atitude aparentemente corriqueira da visita ao cemiteacuterio em dois de novembro

atinge a realidade soacutecio-religiosa da cidade E se apresenta sob a forma de uma romaria Uma

pequena e contemporacircnea romaria Que envolve um grande nuacutemero de pessoas que se dirigem

aos cemiteacuterios em um uacutenico dia com o intuito de visitarem os seus entes falecidos Esse

caminhar de esperanccedila cuja chegada conserva algo santo e memoraacutevel os tuacutemulos e a

lembranccedila dos mortos abrem perspectivas para pensar o resgate histoacuterico-cultural das

expressotildees religiosas da devoccedilatildeo popular dos rituais e cultos fuacutenebres como viaacutevel resposta agrave

integraccedilatildeo da morte e da vida na contemporaneidade

Desse modo a partir de um enfoque socioloacutegico a presente comunicaccedilatildeo consiste em

apresentar a anaacutelise dos dados da pesquisa88 feita com o objetivo de demonstrar o Ritual de

Finados como uma forma contemporacircnea de peregrinaccedilatildeo Os sujeitos participantes da pesquisa

responderam um questionaacuterio89 sobre questotildees relacionadas ao dia de finados Os dados

coletados foram quantitativamente apurados e retratam o rosto de todo o grupo de visitantes do

Cemiteacuterio da Paz em 2 de novembro A coleta das respostas e anaacutelise dos seus indicadores

quantitativos permitiu a interpretaccedilatildeo e interferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de

produccedilatildeo e recepccedilatildeo da mensagem no que se refere a celebraccedilatildeo do rito mortuaacuterio de finados

O produto da apuraccedilatildeo dos dados percentuais objetivos do questionaacuterio segue abaixo

num pequeno esboccedilo da anaacutelise quantitativa da pesquisa Em primeiro lugar os sujeitos da

pesquisa aqueles que se encaminham aos cemiteacuterios a fim de visitarem os tuacutemulos dos seus

falecidos (familiares santos eou famosos) satildeo visitantes anocircnimos que se dirigem a estes

centros religiosos para praticarem seus ritos fuacutenebres Pela pesquisa sua expressiva maioria satildeo

mulheres 67 Um dado interessante pois mostra natildeo soacute a desproporccedilatildeo entre os sexos

apresentando a realidade social vigente da cidade como ainda traduz de forma relevante o papel

da mulher na participaccedilatildeo desse ritual Apontando que o cuidado com os mortos pode ser

interpretado como extensatildeo da tarefa feminina de proteger e cuidar do lar (casa restrita e

ampliada)90

Tabela nordm1 Sexo Frequumlecircncia Percentual

Feminino 131 67

88 Pesquisa realizada em 02112008 no Cemiteacuterio Municipal da Paz na cidade de Belo Horizonte capital do Estado de Minas Gerais Brasil Onde foram aplicados 210 questionaacuterios aos visitantes com perguntas relativas ao ritual de finados A pesquisa contou com a participaccedilatildeo de uma equipe de 07 entrevistadores devidamente treinados e preparados a pesquisadora 01 aluno do Mestrado em Ciecircncias da Religiatildeo 02 membros da Pastoral das Exeacutequias do Cemiteacuterio da Paz (Arquidiocese de Belo HorizonteRegiatildeo Esperanccedila) e 03 alunos do Projeto Teologia Viva (Curso Baacutesico de formaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica da Arquidiocese de Belo Horizonte) A pesquisa em andamento eacute autorizada e acompanhada sob o nuacutemero 02420213000-8 no CEP (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa) da Proacute-Reitoria de Pesquisa e de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais (PUCMG) 89 O questionaacuterio de 16 questotildees (10 fechadas e 06 abertas) foi aplicado a 210 pessoas ndash homens e mulheres ndash acima de 18 anos no dia 02112008 no Cemiteacuterio da Paz em Belo Horizonte MG Para sua aplicaccedilatildeo a pesquisadora e sua equipe estiveram de plantatildeo no Cemiteacuterio das 0700 agraves 2000h entrevistando as pessoas que laacute visitavam os tuacutemulos de seus entes Elencando observaccedilotildees a fim de colher dos sujeitos entrevistados suas percepccedilotildees sobre o ritual de finados 90 Essa interpretaccedilatildeo se baseia na semelhante explicaccedilatildeo de Maria Acircngela VILHENA em Aflitos e enforcados o culto agraves almas no centro de Satildeo Paulo In Religiatildeo amp Cultura Departamento de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo ndash PUCSP vol V n9 p99-124 JanJun de 2006 De acordo com Vilhena as mulheres satildeo vistas como as grandes-matildees a se preocupar e velar pelo bem-estar dos seus e dos outros Em anaacutelise sobre os dados da sua pesquisa ela comenta que a tarefa feminina de proteger e cuidar da casa restrita (filhos pais idosos parentes necessitados) se estende tambeacutem agrave casa ampliada (casa-rua casa-bairro casa-movimento populares casa - polis)

Masculino 64 33

Total 195 100

Quanto agrave faixa etaacuteria os jovens satildeo minoria No geral os que visitam o cemiteacuterio em

dia de finados satildeo pessoas maduras acima de 30 anos de idade O grande percentual tem entre

46 a 60 anos Normalmente eacute nessa fase onde as responsabilidades e consciecircncia com questotildees

de vida e morte ganham mais acento Pode-se observar pelas falas de alguns entrevistados nas

quais aparecem expressotildees como ldquoo dia de finados eacute dia de reflexatildeordquo ldquosinto que o final do

meu corpo eacute aquirdquo ldquoeacute um dia mais humanordquo e ldquofinados significa para mim o dia de aceitaccedilatildeo

da morterdquo Trata-se pois de um culto praticado com mais frequumlecircncia na maturidade quando as

pessoas se vecircem mais sensiacuteveis agraves proacuteprias finitudes humanas e tambeacutem jaacute se encontram

fortemente ligadas agrave tradiccedilatildeo ritualreligiosa herdada dos seus pais

Tabela nordm2 Faixa Etaacuteria Frequumlecircncia Percentual

Ate 30 anos 24 12

De 31 a 45 anos 40 20

De 46 a 60anos 70 35

Mais de 60 anos 68 33

Total 202 100

90 satildeo moradores da capital e regiatildeo metropolitana Comprovando assim a ideacuteia de se

tratar de uma ldquopequena romariardquo Jaacute que na maior parte das declaraccedilotildees dos entrevistados o

tempo gasto de suas casas ateacute o cemiteacuterio eacute de menos de 30 minutos Diferente do longo

percurso geograacutefico comum na maioria das peregrinaccedilotildees

Tabela nordm3

Residecircncia Frequumlecircncia Percentual

Belo Horizonte e

Regiatildeo 187 90

Interior de Minas 18 9

Outros Estados 2 1

Total 207 100

Tabela nordm3b

Quanto tempo levou de sua casa ateacute aqui

Menos de 30 minutos

De 31 a 60 minutos

De 1 a 2 horas

De 2 a 5 horas

Total

Como veio ateacute o Cemiteacuterio A peacute 17 2 1 0 20 Automoacutevel 54 16 0 0 70

taxi

Ocircnibus coletivo

29 51 32 4 116

Caravana 1 0 1 0 2

A peacute e de ocircnibus

0 1 1 0 2

Total 101 70 35 4 210

Pela escolaridade podemos observar que o grau de instruccedilatildeo dos que visitam o

cemiteacuterio em finados se predominam naqueles que tem ensino fundamental incompleto 35

Esse resultado provavelmente esteja relacionado com a questatildeo da faixa etaacuteria Contudo a

pesquisa veio demonstrar tambeacutem que essa predominacircncia natildeo equivale agrave exclusividade Afinal

a percentagem dos que tem ensino meacutedio completo eacute bastante consideraacutevel 21 Foram

entrevistadas inclusive pessoas com formaccedilatildeo universitaacuteria 10 Tal constataccedilatildeo vem indicar a

extensividade do culto aos mortos por diversas camadas da populaccedilatildeo em Belo Horizonte

Tabela nordm4 Escolaridade Frequumlecircncia Percentual

Fund Incompleto 73 35

Fund Completo 36 17

Meacutedio Incompleto 29 14

Meacutedio Completo 45 21

Superior Incompleto 3 1

Superior Completo 21 10

Analfabeto 3 1

Total 210 100

Os cemiteacuterios em dia de finados tornam-se como os santuaacuterios nas peregrinaccedilotildees

lugares de encontros de pessoas de muitos povos liacutenguas e regiotildees Satildeo centros de trocas

culturais religiosas e tambeacutem comerciais No ritual de finados os cemiteacuterios satildeo visitados os

tuacutemulos decorados com flores e milhares de velas satildeo acesas Nessa celebraccedilatildeo quanto agrave

pertenccedila religiosa uma significativa maioria dos visitantes estaacute ligada agrave religiatildeo catoacutelica o que

confere ao rito um caraacuteter devocional proacuteprio da forte tradiccedilatildeo catoacutelico-romana no paiacutes A

pesquisa demonstra que 81 dos visitantes se declaram catoacutelicos (tabela 5) Uma pequenina

parte insere-se nos grupos evangeacutelicos 7 espiacuteritas 3 e outras denominaccedilotildees 7 Esse dado

pode levar a compreender que as pessoas ainda fazem uma ideacuteia de que o espaccedilo fiacutesico do

cemiteacuterio representa um espaccedilo religioso tipicamente catoacutelico onde nesse dia ateacute se celebra

missa

Por outro lado para os visitantes no que tange ao plano espiritual no cemiteacuterio eacute onde

estatildeo presentes as almas dos falecidos E estas independem da pertenccedila religiosa Eacute por isso que

neste dia podemos observar nos cemiteacuterios catoacutelicos espiacuteritas evangeacutelicos umbandistas

candomblecistas e outros todos livres expressando sua feacute juntos em um mesmo espaccedilo Por

isso o dia 02 de novembro possui esta caracteriacutestica desperta e reuacutene multidatildeo de crentes e

natildeo-praticantes habituais para um mesmo objetivo religioso ldquovisitar os tuacutemulos dos seus

mortosrdquo

Tabela nordm5 Religiatildeo Frequumlecircncia Percentual

Catoacutelica 171 81

Evangeacutelica 14 7

Espiacuterita 7 3

Outra 15 7

Natildeo tem 3 1

Total 210 100

Por todo o mundo no Ocidente e no Oriente o dia de finados eacute esperado por muitos

como o momento especiacutefico para manifestar saudade piedade e memoacuteria aos seus antepassados

A praacutetica popular da visita aos cemiteacuterios neste dia faz-se pela saudade dos parentes ou

conhecidos falecidos Procede da seguinte maneira enfeitam-se os tuacutemulos rezam pelos

mortos acendem velas em favor das almas dos que partiram

Dessa forma os brasileiros cultivam esse haacutebito de visitar os cemiteacuterios anualmente em

finados na expectativa de rezar interceder ou pedir intercessatildeo aos seus entes falecidos Esse

dado se confirma na grande maioria das respostas da pesquisa Onde se tem que 73 dos

entrevistados afirmam visitar regularmente o cemiteacuterio todos os anos em dia de finados (tabela

6) Questionados se tambeacutem faziam agrave visita em outros dias durante o ano 54 disseram que

natildeo apenas 46 afirmaram visitar noutros dias poreacutem sempre por ocasiatildeo das datas

comemorativas dia das matildees dos pais aniversaacuterios nataliacutecio ou de falecimento (tabela 7)

Tabela nordm6 Visita o Cemiteacuterio Frequumlecircncia Percentual

Todos os Anos 153 73

Irregular 34 16

1 ou 2 Vez que Visita 22 11

Total 209 100

Tabela nordm7 Visita o Cemiteacuterio noutros dias Frequumlecircncia Percentual

Natildeo 110 54

Sim em datas com 95 46

Total 205 100

Outro dado interessante na pesquisa diz respeito ao caraacuteter familiar da visitaccedilatildeo neste

dia Abordados sobre quais os tuacutemulos visitam no cemiteacuterio em finados 76 das pessoas

responderam que satildeo os tuacutemulos dos parentes (quase sempre os dos pais mas tambeacutem avoacutes

irmatildeos esposos tios primos etc)

Haacute tambeacutem agravequeles que visitam a cada 02 de novembro outros tuacutemulos como os dos

santos ou de pessoas famosas Na pesquisa os tuacutemulos de santos e famosos mais visitados

foram os do Beato Padre Eustaacutequio da Irmatilde Benigna e da menina Marlene91 que se encontram

no cemiteacuterio do Bonfim92

Tabela nordm8 Quais tuacutemulos visita Frequumlecircncia Percentual

De parentes 159 76

De parentes famosos santos e

outros 41 20

Outros 8 4

Total 208 100

A visita ao cemiteacuterio trata-se pois de um rito privado onde por ocasiatildeo de finados os

mortos satildeo obrigatoacuteria e religiosamente visitados por seus familiares Mas eacute interessante

perceber que a visita aos mortos no cemiteacuterio ainda que seja prestada de maneira privada

familiar ou individual ocorre em culto puacuteblico e coletivo 91 O Padre Eustaacutequio nasceu na Holanda em 03111890 e faleceu no Brasil na cidade de Belo Horizonte em 30081943 Em 1956 inicia-se o processo de sua canonizaccedilatildeo No ano de 2003 lhe foi conferido o tiacutetulo de veneraacutevel e em maio de 2006 elevado a beato pelo Papa Bento XVI A cerimocircnia de sua beatificaccedilatildeo ocorreu no dia 15062006 no Estaacutedio de futebol Magalhatildees Pinto (Mineiratildeo) em Belo Horizonte Minas Gerais na festa de Corpus Christi durante a 12ordf Torcida de Deus evento religioso que acontece a cada trecircs anos na capital mineira A aceitaccedilatildeo de sua beatificaccedilatildeo estaacute atribuiacuteda agrave cura de um cacircncer de garganta no Padre Gonccedilalo Beleacutem de Belo Horizonte como milagre comprovado cientificamente Sob o lema ldquoSauacutede e Pazrdquo o beato Padre Eustaacutequio tem a histoacuteria marcada pela dedicaccedilatildeo aos doentes e sofredores dos males fiacutesicos e da alma Cf dados in Jornal O Tempo de 15de Junho de 2006 p A12 e A13 A Irmatilde Benigna nasceu em DiamantinaMG no dia 16081907 com o nome de Maria da Conceiccedilatildeo Santos mas em 19031936 em sua 1ordf profissatildeo de feacute na Congregaccedilatildeo mineira das Irmatildes Auxiliares de N Sra da Piedade passa a chamar-se Irmatilde Benigna Victima de Jesus Formada em enfermagem dedicou-se toda sua vida religiosa aos doentes e necessitados desenvolvendo trabalhos em hospitais creches e asilos de Minas Gerais Eacute conhecida como a ldquoSanta da Farturardquo Apoacutes uma vida de total entrega faleceu em 16101981 em Belo horizonte deixando para todos sua marca de feacute e oraccedilatildeo atraveacutes da doaccedilatildeo caridade forccedila humildade e simplicidade Cf Resumo biograacutefico Irmatilde Benigna In Irmatilde Benigna Notiacutecias Informativo da AMAIBEN (Associaccedilatildeo dos Amigos de Irmatilde Benigna Ano 1 nordm5 Belo Horizonte Maio2009 p 3 E a menina Marlene uma crianccedila que para muitas pessoas tem a capacidade de fazer milagres Os trecircs se encontram na classe de santos populares e seus tuacutemulos no Cemiteacuterio do Bonfim satildeo os mais visitados em finados 92 Importa ressaltar que os peregrinos em finados agraves vezes visitam mais de um cemiteacuterio Neste caso por exemplo os visitantes afirmavam visitar o cemiteacuterio da Paz (por causa dos parentes) e o do Bonfim (pelos santos de devoccedilatildeo)

Culto privado pois mas tambeacutem desde a origem culto puacuteblico O culto da recordaccedilatildeo estendeu-se imediatamente do indiviacuteduo agrave sociedade na sequumlecircncia de um mesmo movimento da sensibilidade93

Dessa forma o culto aos mortos em dia de finados tradicionalmente concebido como

um culto privado eacute tambeacutem um dia de culto puacuteblico e coletivo que tem lugar no cemiteacuterio Eacute um

dia anualmente propiacutecio para o encontro e reconhecimento reciacuteproco94 em que se celebram

antes de tudo os mortos privados da e pela famiacutelia

O Dia de Finados traz um significado de inversatildeo da realidade cotidiana ao celebrar a

lembranccedila dos irmatildeos falecidos Seu ritual consiste na forma de recordaccedilatildeo da qual apresenta a

manifestaccedilatildeo de piedade dos vivos pelos mortos atraveacutes da visita agrave sepultura dos seus falecidos

Eacute um momento de lembrar e homenagear agravequeles que se foram ofertando-lhes flores

acendendo velas e fazendo oraccedilotildees

Aliaacutes eacute bastante comum a praacutetica de ofertas oraccedilotildees ou preces nos tuacutemulos Pode-se

dizer que representa o momento mais individual e iacutentimo entre os familiares e seu morto A

visita ao tuacutemulo tem esse aspecto simboacutelico de remeter a presenccedila do falecido Presenccedila esta

que para muitos eacute vista como reproduccedilatildeo da personalidade que o morto tinha em vida Por

exemplo muitos visitantes apoacutes fazerem suas oraccedilotildees depositam no tuacutemulo natildeo apenas flores

ou velas como tambeacutem outros objetos95 que em vida ou na hora da morte lhe faltou aacutegua patildeo e

no caso de crianccedilas brinquedos e chocolates Alguns visitantes inclusive conversam com os

seus entes diante da sua sepultura Eacute importante esse tempo para a oraccedilatildeo que poderaacute ser de

agradecimento suacuteplica pedido ou ateacute mesmo de promessa dos vivos para os mortos A visita

em finados tem essa caracteriacutestica tornar-se um momento iacutentimo entre vivos e mortos

De fato sobre isso a pesquisa mostra com quase unanimidade que 99 dos visitantes

tecircm o costume de fazer alguma oraccedilatildeo ou prece no tuacutemulo Nas respostas aparece liderando a

oraccedilatildeo do pai-nosso e ave-maria 54 Depois em proporccedilotildees aproximadas estatildeo oraccedilotildees

espontacircneas 12 junto com a oraccedilatildeo do terccedilo 13 e somando as demais oraccedilotildees (para almas

santo anjo salve rainha mensagem dia de finados etc) temos 20 das respostas

Tabela nordm9 Vocecirc faz oraccedilatildeo ou prece nos tuacutemulos Frequumlecircncia Percentual

Sim Pai-nosso 43 21

Sim Pai-nosso e Ave-maria 70 33

93 ARIEgraveS Philippe Histoacuteria da Morte no Ocidente desde a Idade Meacutedia Lisboa Teorema 1975 p 50 94 Na relaccedilatildeo devoto e santo haacute uma reciprocidade ldquoFazem parte da biografia e dos atributos de qualquer mediador sobrenatural obrigaccedilotildees de socorro aos humanos assim com fazem parte do compromisso de qualquer devoto atos rotineiros de confirmaccedilatildeo da fidelidade ao padroeirordquo Cf Brandatildeo (1986-192) 95 Esse tipo de oferta se observa mais comumente em tuacutemulos de mortos com caracteriacutesticas de santo popular que sofreram algum tipo de privaccedilatildeo no momento da morte Inclusive pode mesmo ser de um morto bandido que posteriormente se torna santo Como no caso de Baracho (bandido perseguido pela poliacutecia que em fuga antes de morrer pede aacutegua mas morre com sede E hoje considerado santo seus devotos ofertam garrafas de aacutegua em sua sepultura como gesto de gratidatildeo pelas graccedilas alcanccediladas)

Sim Terccedilo 27 13

Sim Oraccedilotildees espontacircneas 26 12

Sim Outras 42 20

Natildeo 2 1

Total 210 100

A caminhada ao tuacutemulo em dia de finados eacute um acontecimento socio-religioso e

apresenta caracteriacutesticas comuns agraves peregrinaccedilotildees Pois haacute um deslocar-se a um lugar santo o

qual estaacute de certo modo fora do mundo habitual em que tradiccedilotildees religiosas do povo estatildeo

reunidas e estatildeo sendo vividas com a maior intensidade

Para os visitantes em finados as almas dos mortos estatildeo presentes no cemiteacuterio e visitaacute-las em seu tuacutemulo lhes eacute agradaacutevel e traz para os vivos o sentido de missatildeo cumprida Em alguns entrevistados por exemplo observam-se falas nas quais aparecem expressotildees do tipo ldquoo dia de finados eacute dia de cumprir nosso dever para com os que jaacute se foramrdquo ou ldquovir ao cemiteacuterio no dia de finados eacute cumprir uma obrigaccedilatildeordquo ldquoos mortos gostam de receber a nossa visitardquo e ldquoeles ficam esperando se a gente natildeo vem ficam tristesrdquo

Dessa forma entende-se que o culto aos mortos no cemiteacuterio em dia de finados tem como rito principal a visita ao tuacutemulo com o seu caraacuteter familiar e privado Donde prevalece a praacutetica da oraccedilatildeo ou prece diante da sepultura indicando que pela consciecircncia do povo tudo que diz respeito aos mortos eacute coisa espiritual revestida de sacralidade daiacute a necessidade da ritualizaccedilatildeo Pela pesquisa o culto mais difundido no cemiteacuterio nesse dia eacute a celebraccedilatildeo da missa para os defuntos De acordo com o resultado do questionaacuterio 47 dos visitantes participam dessa celebraccedilatildeo Reforccedilando assim a ideacuteia de se tratar de um ritual tipicamente catoacutelico

Tabela nordm10 Vai Participar de Celebraccedilatildeo ou Ritual para os defuntos Frequumlecircncia Percentual

Sim Missa 98 47

Sim Missa ou culto 68 32

Sim Outras 25 12

Natildeo 19 9

Total 210 1000

Assim como no fenocircmeno da peregrinaccedilatildeo a visita aos cemiteacuterios em dia de finados

apresenta tambeacutem esse caminhar Mas haacute um diferencial no ritual de finados que eacute o seu caraacuteter

individual e (ou) familiar nem sempre com objetivo religioso expliacutecito mas que tambeacutem

representa um forte momento de manifestaccedilatildeo socio-religiosa um caminhar de esperanccedila ao

encontro dos entes queridos que se foram

O que chamamos de ldquopequenas romariasrdquo se refere a esse lsquocaminharrsquo aos cemiteacuterios

para a visita aos tuacutemulos dos mortos os quais se tornam santificados pelos seus e que satildeo

capazes de levar aos cemiteacuterios no segundo dia de novembro milhotildees de ldquoperegrinosrdquo para

fazer suas oraccedilotildees agradecimentos demonstrar sua lembranccedila ou simplesmente manifestar

saudades Ou seja a visita ao cemiteacuterio em finados se assemelha a uma romaria pelo fato do seu

lsquodeslocar-sersquo e pocircr-se a caminho em demanda ao campo santoo cemiteacuterio Para o encontro

simboacutelico com agravequele que pode ser lembrado e homenageado com oferendas e de modo

especial com agradecimentos

De acordo com a pesquisa assim como nas peregrinaccedilotildees religiosas muitos visitante-

peregrinos dos cemiteacuterios em finados pedem ou esperam receber neste dia com a visita alguma

graccedila (tabela 11)

Tabela nordm11 Vocecirc pede ou espera receber graccedilas ou meacuteritos com a visita Frequumlecircncia Percentual

Sim 117 56

Natildeo 92 44

Total 209 1000

Para o devoto peregrino a dinacircmica de sair do seu lugar cotidiano e retornar ao lugar de

origem tem um caraacuteter de missatildeo cumprida Esse retornar marca a forccedila da realizaccedilatildeo do

simboacutelico encontro com o seu santo numa relaccedilatildeo direta e sem intermediaacuterios

A romaria eacute essa jornada esse estaacute a caminho que leva um romeiro a sair de sua casa

sua realidade concreta para ir sozinho ou em caravana fazer romaria a um santuaacuterio de sua

devoccedilatildeo A fim de cumprir promessas ou agradecer becircnccedilatildeos recebidas

Por isso as romarias representam um forte momento de intensa praacutetica religiosa onde se

daacute o encontro do santo com o fiel De maneira mais singela eacute justamente isso o que acontece no

caso das pequenas romarias em finados

A celebraccedilatildeo de finados produz impacto na realidade contemporacircnea

O culto nos cemiteacuterios de visita aos tuacutemulos dos parentes ganhou grande impacto e

proporccedilatildeo nas sociedades ocidentais Principalmente devido agrave adoccedilatildeo de um dia especiacutefico para

a sua visitaccedilatildeo96 O costume funeraacuterio de visita ao tuacutemulo em dia de finados eacute uma praacutetica

96 A igreja cristatilde sempre rezou pelos mortos Os cristatildeos do primeiro seacuteculo visitavam os tuacutemulos dos maacutertires da feacute nas catacumbas para homenageaacute-los Mas a origem do Omnium Fidelium Defunctorum (dia dos fieacuteis defuntos) tambeacutem chamado Dia de Finados ou dia dos mortos surge no Ocidente no seacuteculo X com o abade beneditino Odilon do Mosteiro de Cluny na Franccedila O monge Odilon introduz aos demais monges essa praacutetica de rezar por todos os mortos sejam eles conhecidos ou desconhecidos leigos ou religiosos e de todos os lugares De acordo com O Padre Antocircnio Gonccedilalves o abade Odilon mandou que fosse celebrado o ofiacutecio pelos defuntos na tarde do dia primeiro de Novembro Soacute mais tarde somente quatro seacuteculos depois a Igreja Catoacutelica adotou no mundo inteiro essa praacutetica passando o dia 02 de Novembro a ser considerado um dia de oraccedilotildees pelos irmatildeos jaacute falecidos Este dia portanto consiste na visita aos cemiteacuterios e estaacute ligado agrave

contemporacircnea que proporciona a manifestaccedilatildeo da incriacutevel peregrinaccedilatildeo de novembro que leva

em um uacutenico dia milhotildees de peregrinos aos cemiteacuterios

Nesse sentido o presente comportamento humano na expressatildeo religiosa da celebraccedilatildeo do rito de finados produz impacto na realidade contemporacircnea Jaacute que a complexa situaccedilatildeo contraditoacuteria existente entre a crisenegaccedilatildeo da morte na atualidade e a atitude humana de visita ao cemiteacuterio e ao tuacutemulo da famiacutelia atinge a proacutepria realidade da estrutura social proporcionando agrave difusatildeo do religioso numa sociedade secularizada pouco favoraacutevel as manifestaccedilotildees religiosas

Com as respostas da questatildeo nordm 15 do questionaacuterio aplicado aos visitantes do Cemiteacuterio Municipal da Paz em Belo Horizonte o resultado apresenta o objetivo a que se propocircs demonstrar o fenocircmeno religioso do Dia de Finados como um tipo de peregrinaccedilatildeo contemporacircnea Contribuindo assim para maior compreensatildeo sobre a vida e a morte Re-significando a morte como parte integrante da proacutepria vida humana

Tabela nordm12 Vocecirc considera a visita ao cemiteacuterio uma forma de peregrinaccedilatildeo ou romaria Frequumlecircncia Percentual

Sim 159 77

Natildeo 48 23

Total 207 100

Tabela nordm12b Visita o Cemiteacuterio

Vocecirc considera

Todos os anos

Irregular 1ordf ou 2ordf vez que visita

Natildeo respondeu

Total

a visita ao cemiteacuterio Sim

113 30 15 1 159

uma forma de Natildeo

37 4 7 0 48

Romaria Total 150 34 22 1 207

Portanto o termo pequenas romarias em dia de finados possui a marcante caracteriacutestica de um ldquoperegrinar contemporacircneordquo Pelo fato de que a visita aos cemiteacuterios que leva os familiares a fazerem suas manifestaccedilotildees puacuteblicas de devoccedilatildeo aos seus falecidos pessoas simples que representam para eles algo sagrado remete ao mesmo objetivo que levam peregrinos ao final de sua peregrinaccedilatildeo chegar ao santuaacuterio e encontrar o seu sagrado seu santo

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GT Novos Movimentos Religiosos

EMENTAS Um movimento religioso em torno agrave reza do terccedilo uma devoccedilatildeo masculina em Itauacutena-MG Elizabeth Carvalho Vou descrever e analisar o movimento religioso da cidade de Itauacutena (MG) onde em 1955 teria aparecido Nossa Senhora fato que se repetiu algumas vezes ateacute 1966 dando lugar a uma grande devoccedilatildeo mariana na cidade Apoacutes o teacutermino das apariccedilotildees o local passou a abrigar celebraccedilotildees oficiais mas principalmente devoccedilotildees isoladas ateacute que em agosto de 2006 um padre receacutem-chegado convidou dezessete homens para rezarem o terccedilo e hoje esse grupo chega a dois mil homens (sem presenccedila feminina) que se reuacutenem toda quarta-feira Durante uma hora rezam cantam e participam do sorteio que define quem levaraacute para casa um oratoacuterio com a imagem da santa e reuniraacute pessoas da vizinhanccedila para rezarem o terccedilo Eacute um movimento religioso recente que combina devoccedilotildees tradicionais e algumas inovaccedilotildees

Neopentecostalizaccedilatildeo de igrejas histoacutericas protestantes

Nina Gabriela Moreira Braga Rosas

Desde o iniacutecio e no desenrolar do seacuteculo XX destacaram-se no Brasil ondas de pentecostalismo que levaram ao surgimento de novas igrejas como a IURD Renascer em Cristo e outras e tambeacutem influenciaram dissensotildees transformaccedilotildees e desdobramentos de alguns segmentos protestantes histoacutericos (como batistas e presbiterianos) O pentecostalismo alterou grandemente tanto algumas concepccedilotildees teoloacutegicas quanto certos haacutebitos lituacutergicos Jaacute o neopentecostalismo movimento mais recente no cenaacuterio protestante brasileiro tambeacutem tem afetado as igrejas ldquoaindardquo ditas protestantes Essa reflexatildeo pretende traccedilar alguns pontos do cenaacuterio evangeacutelico no Brasil revistando as categorias de compreensatildeo dessas diferenccedilas e apontando para a aparente tendecircncia de neopentecostalizaccedilatildeo das igrejas protestantes histoacutericas A figura do conselheiro no catolicismo sertanejo catolicismo popular Joatildeo Everton da Cruz A expressatildeo ldquocatolicismo popularrdquo sempre esteve distante de uma definiccedilatildeo uniacutevoca O termo catolicismo levanta uma ldquopoeirardquo antiga no acircmbito dos cientistas sociais e teoacutelogos sendo que a expressatildeo utilizada como fenocircmeno religioso direciona-nos para uma pura abstraccedilatildeo Podemos definir o catolicismo popular como uma variaccedilatildeo de crenccedilas e praacuteticas que ao longo da tradiccedilatildeo do cristianismo foram socialmente incorporados como ldquocatoacutelicasrdquo Jaacute com relaccedilatildeo a expressatildeo popular o problema eacute mais complicado e natildeo estaacute imune de uma ambiguumlidade Natildeo vamos tornaacute-la aqui no sentido pejorativo vulgar pois acabariacuteamos identificando-o como uma produccedilatildeo cultural de qualidade subalterna O fenocircmeno religioso do conselheiro no catolicismo popular da cultura nordestina tem suas raiacutezes mais profundas na cultural africana e indiacutegena daiacute o nascedouro onde o conselho eacute de extrema importacircncia na vida das pessoas mesmo com as dependecircncias que ele pode causar mesmo assim o conselho eacute considerado um grande valor que impulsiona as pessoas para o ajustamento da conduta moral e espiritual

GT Novos Movimentos Religiosos

TEXTOS

Um movimento religioso em torno agrave reza do terccedilo uma devoccedilatildeo masculina

em Itauacutena ndash MG

Elizabeth Carvalho97

Itauacutena eacute uma cidade que fica na regiatildeo centro-oeste de Minas e foi fundada em

1901 Jaacute nos anos 50 deacutecada em que para a sociedade brasileira em geral representou

um periacuteodo de grandes mudanccedilas para Itauacutena em particular foi a eacutepoca em que se

popularizou como a cidade onde teriam ocorrido apariccedilotildees de Nossa Senhora O local

das apariccedilotildees era um terreno particular coberto por uma densa mata nativa rodeado por

algumas casas distante aproximadamente a 15 km do centro da cidade Neste local que

hoje segundo o padre Adilson pertence agrave Mitra Diocesana de Divinoacutepolis foi

construiacuteda uma gruta Mais tarde foi entalhada uma imagem de acordo com a descriccedilatildeo

dos videntes que recebeu o nome de Nossa Senhora de Itauacutena O local sempre foi

frequumlentado pela comunidade e por devotos de cidades da regiatildeo Abriga celebraccedilotildees

oficiais e eacute considerado um ponto de oraccedilotildees e peregrinaccedilotildees incrementando muito a

devoccedilatildeo Mariana

Esta comunicaccedilatildeo visa descrever o movimento religioso que vem acontecendo

semanalmente agraves quartas-feiras no local A semente do movimento foi o convite feito

por um padre a alguns homens que rezavam na Gruta mas cada um agrave sua maneira

Padre Adilson Neres atualmente eacute o Vigaacuterio da Paroacutequia de Santanense (bairro de

Itauacutena) mas na eacutepoca atuava na da Paroacutequia de SantrsquoAna agrave qual pertence a Gruta Eacute um

padre ainda jovem muito dinacircmico que gosta de compor e cantar muacutesicas e tambeacutem

toca alguns instrumentos O primeiro terccedilo em grupo foi rezado em uma quarta-feira

agosto de 2006 com apenas alguns homens e atualmente jaacute houve dias em que se

reuniram 2500 Filhos de Maria (como se denominam os homens que participam da reza

do terccedilo) O motivo de ser um movimento apenas masculino eacute segundo relato do Padre

Psicoacuteloga mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo pela PUC Minas

Adilson um pedido dos homens para que possam ldquorezar do seu jeito com mais

liberdaderdquo O grupo continua se reunindo todas as quartas-feiras e a reza do terccedilo dura

uma hora

O presente relato eacute da reza do terccedilo no dia 100609 Fazia frio em Itauacutena o

horaacuterio do terccedilo seria agraves 2000 a noventa minutos de um jogo da seleccedilatildeo brasileira A

movimentaccedilatildeo comeccedilou laacute pelas 1830 quando alguns Filhos de Maria comeccedilaram a

chegar Uns chegam cedo para escolher um local melhor outros para rezar ou pegar

aacutegua benta O local possui 400 assentos entre bancos de alvenaria e cadeiras de plaacutestico

e muitos participantes jaacute levam de casa bancos ou cadeiras dobraacuteveis A maioria usa

uma camisa branca com alguma referecircncia agrave oraccedilatildeo e agrave Nossa Senhora de Itauacutena O

local eacute muito bem iluminado e acolhedor e como fica cercado por aacutervores eacute tambeacutem

muito silencioso

A chegada eacute quase que festiva com um cumprimento oficial de ldquoSalve Mariardquo

Dois voluntaacuterios aguardam no portatildeo de entrada e entregam folhetos com as muacutesicas as

oraccedilotildees e a contemplaccedilatildeo dos misteacuterios No cabeccedilalho uma numeraccedilatildeo que foi

idealizada para a participaccedilatildeo em sorteios e acabou servindo tambeacutem para se estabelecer

a contagem dos participantes Agraves 1915 o folheto entregue jaacute eacute o de nuacutemero 203 Os

participantes vatildeo se acomodando nos assentos e a conversa de alguns natildeo chega a

incomodar aqueles que querem rezar Um dos voluntaacuterios tem a tarefa de vender

camisas e o DVD sobre o terccedilo A renda vai para a receacutem criada Associaccedilatildeo Particular

dos Fieacuteis Agrave medida que se aproxima das 2000 os passos dos que chegam tornam-se

mais raacutepidos Os instrumentos que estavam sendo afinados ou testados jaacute se encontram

dispostos em seus lugares Satildeo vaacuterios dentre eles violatildeo craviola cavaquinho

saxofone gaita pandeiro atabaque etc O padre chega ocupa seu lugar pega seu

violatildeo e com a saudaccedilatildeo de ldquoSalve Mariardquo inicia a oraccedilatildeo O local jaacute se encontra

lotado com aproximadamente 1500 Filhos de Maria

Primeiro vem os avisos (feitos pelo Padre Adilson) das datas em que iratildeo a outras

cidades (Satildeo Joatildeo Del Rey Itapecerica e Juiz de Fora) para participarem da reza do

terccedilo e da entrevista a um programa de TV em Belo Horizonte Informa que os

interessados devem se inscrever mas caso haja mais interessados do que vagas

haveratildeo sorteios Orienta que todos deveratildeo estar com a camisa do movimento e caso

sejam entrevistados que se comportem com naturalidade diante do microfone Fala

tambeacutem sobre as visitas que receberatildeo da gravaccedilatildeo do CD e da ida agrave Aparecida do

Norte (SP) para o Encontro Nacional dos homens que rezam o Terccedilo e tambeacutem do

lanccedilamento do CD na Canccedilatildeo Nova em Cachoeira Paulista Aiacute o padre pergunta se estatildeo

todos armados e eles mostram o terccedilo Anuncia as intenccedilotildees e pede que cada um pense

em sua intenccedilatildeo particular Surge no fundo uma faixa agradecendo por estar a um ano

sem o viacutecio do aacutelcool Um dos organizadores anuncia o sorteio de dois oratoacuterios Um

deles de presente e o outro que deveraacute permanecer sob a guarda do contemplado mas

que deveraacute ser devolvido na proacutexima semana Durante a permanecircncia com o oratoacuterio o

guardiatildeo estaraacute encarregado de rezar o terccedilo em casa E assim todos de peacute com a

expressatildeo serena e o terccedilo na matildeo inicia-se a reza com uma muacutesica composta pelo

Padre Adilson O sinal da cruz tambeacutem eacute cantado assim como as trecircs Ave-Marias O

Pai Nosso e o Gloacuteria satildeo rezados de forma convencional Existe uma muacutesica especiacutefica

para cada um dos misteacuterios e a de hoje dos misteacuterios gozozos eacute ldquoTaacute caindo fulocirc Taacute

caindo fulocirc (2x) Laacute do ceacuteu caacute na terra taacute caindo fulocirc Das matildeos de Nossa Senhora taacute

caindo fulocircrdquo

Todos cantam muitos levantam os braccedilos em gestos contidos mas firmes Forma-

se entre duas fileiras de bancos uma fila de bandeirinhas brancas Satildeo os onze homens

que vatildeo rezar o Pai Nosso e as dez Ave Marias Satildeo crianccedilas ou adultos que se oferecem

para rezar As bandeirinhas coladas em um bastatildeo de um metro mais ou menos satildeo

distribuiacutedas de forma setorizada para facilitar a movimentaccedilatildeo dos participantes Cada

um dos participantes que vai rezando vai devolvendo a bandeirinha para um dos

voluntaacuterios e retorna a seu lugar E assim cada misteacuterio eacute rezado de modo bem

democraacutetico e organizado Cada misteacuterio com bandeirinhas de uma cor e em um local

para dar oportunidade a todos Transcorre assim a reza do terccedilo com muita feacute e

participaccedilatildeo Apoacutes o quinto misteacuterio um manto branco (com mais ou menos 30 msup2

como aquelas bandeiras enormes usadas em campo de futebol) e com a imagem de

Nossa Senhora de Itauacutena eacute desenrolado laacute na frente e vai passando para traacutes e todos os

participantes fazem questatildeo de tocaacute-lo sem palavras apenas o feito de tocar o objeto

sagrado O agradecimento e a Salve Rainha satildeo declamados e em seguida mais trecircs

muacutesicas pequenas e bem conhecidas satildeo cantadas Com um ldquoreforccedilordquo aos avisos

encerra-se o encontro deste dia Apoacutes a despedida os Filhos de Maria vatildeo saindo com

passos firmes mas discretos e com calma Sozinhos ou em pequenos grupos vatildeo

percorrendo o caminho de volta para casa onde a famiacutelia como um tronco firme apoacuteia

a sua devoccedilatildeo

Percebe-se que o movimento religioso em Itauacutena vem crescendo rapidamente Eacute

uma manifestaccedilatildeo popular atraveacutes de uma oraccedilatildeo (Reza do Terccedilo) sempre praticada

mas que foi revigorada apoacutes o Conciacutelio Vaticano II e floresceu mais ainda com a

Renovaccedilatildeo Carismaacutetica Catoacutelica atraveacutes da grande ecircnfase dada agrave Nossa Senhora

Segundo o proacuteprio Padre Adilson o grande cultivador do movimento existem muitos

grupos masculinos que se reuacutenem para rezar mas nenhum com nuacutemero tatildeo avantajado

como o grupo de Itauacutena O grupo jaacute possui uma identidade na cidade e sementes estatildeo

sendo lanccediladas devido agrave significativa participaccedilatildeo de crianccedilas Os frutos satildeo a

ldquoexportaccedilatildeordquo do formato do terccedilo para outras localidades a criaccedilatildeo de uma Associaccedilatildeo

Beneficente a contiacutenua divulgaccedilatildeo pelos fieacuteis e o sentimento de pertenccedila que como

uma irrigaccedilatildeo promove a motivaccedilatildeo semanal do grupo Se o movimento sugere uma

forma de institucionalizar a devoccedilatildeo Mariana ou a religiosidade oferece tambeacutem aos

Filhos de Maria uma oportunidade para excursotildees a outras cidades oportunidade para

participar de programas de raacutedio e televisatildeo e ateacute da gravaccedilatildeo de um DVD e de um CD

Hoje os Filhos de Maria se ramificam e buscam uma estruturaccedilatildeo para que possam

crescer de forma mais ordenada e com objetivos mais especiacuteficos Se o movimento se

esvair deixaraacute marcas por onde passou como o movimento carismaacutetico que influenciou

vaacuterios destes novos movimentos religiosos talvez o proacuteprio Terccedilo dos Homens de

Itauacutena

Neopentecostalizaccedilatildeo de igrejas histoacutericas protestantes

Nina Gabriela Moreira Braga Rosas

Protestantismo histoacuterico pentecostalismo e neopentecostalismo uma introduccedilatildeo

Chama atenccedilatildeo nos dias de hoje a ampla gama de possibilidades evangeacutelicas O nuacutemero

desse grupo de religiosos brasileiros tem crescido constantemente Sob a categoria de

evangeacutelicos o IBGE (2000) agrega protestantes de tipo histoacuterico pentecostais e

neopentecostais Compreendem-se por evangeacutelicos fieacuteis pertencentes agraves igrejas tais como

Luterana Presbiteriana Congregacional Anglicana Metodista Batista Congregaccedilatildeo Cristatilde do

Brasil Assembleacuteia de Deus Igreja do Evangelho Quadrangular Brasil para Cristo Deus eacute

Amor Casa da Benccedilatildeo Igreja Universal do Reino de Deus Nova Vida etc que perfazem cerca

de 26184942 de pessoas Poreacutem essa conspiacutecua expansatildeo dos evangeacutelicos natildeo se deve ao

aumento de igrejas protestantes histoacutericas caracterizadas principalmente pelas denominaccedilotildees

batistas e presbiterianas mas sim ao grupo que tem assumido grande visibilidade e destaque a

saber os antigos e novos pentecostais98 Essa diferenccedila fica muito evidente em termos

numeacutericos quando se percebe que de 1991 a 2000 os pentecostais passaram de cerca de 8

milhotildees para quase 18 milhotildees de adeptos enquanto o aumento dos protestantes histoacutericos

elevou a taxa de cerca de 4 milhotildees para menos de 7 milhotildees Apesar de aparentemente irrisoacuteria

se comparada agrave taxa de crescimento dos pentecostais os protestantes histoacutericos tambeacutem

ampliaram o alcance de fieacuteis visto que na deacutecada anterior tiveram taxa de crescimento negativo

de -04 Natildeo obstante o fato de jaacute poder ser percebido a presenccedila de profissionais liberais

empresaacuterios atletas e artistas nas igrejas pentecostais dados desse mesmo Censo salientam o

fato de que a maior parte dos pentecostais tem renda e escolaridade inferior agrave meacutedia da

populaccedilatildeo brasileira grande parte deles possuindo empregos domeacutesticos e recebendo ateacute trecircs

salaacuterios miacutenimos Jaacute protestantes histoacutericos apresentam renda e escolaridade bem mais elevadas

satildeo indiviacuteduos ligados a setores urbanos meacutedios conservadores com ecircnfase na educaccedilatildeo de

ensino meacutedio por vezes graduaccedilatildeo e poacutes- graduaccedilatildeo e renda entre seis e vinte salaacuterios miacutenimos

Instituiccedilatildeo de origem UFMG bull Atividade Estudante de poacutes-graduaccedilatildeo bull Instituiccedilatildeo financiadora CNPq 98 Esse trabalho leva em conta o aacuterduo esforccedilo da literatura socioloacutegica no sentido de percorrer as ceacuteleres modificaccedilotildees da conjectura protestante brasileira Apresenta-se desde jaacute a expectativa de que ao longo desse trabalho esses esforccedilos apareccedilam naturalmente no sentido de clarificar as terminologias aqui empregadas tanto no sentido de natildeo desconhecer o esforccedilo classificatoacuterio quanto no sentido de levar em conta determinadas irredutibilidades de certas formas de expressotildees religiosas

99 O crescimento numeacuterico e a apariccedilatildeo na miacutedia de pentecostais e neopentecostais aumentou

consequumlentemente a produccedilatildeo acadecircmica sobre esse fenocircmeno Observa-se que pobres e

marginalizados optam voluntariamente por religiotildees de tipo pentecostais onde encontraram

apoio conforto ajuda emocional espiritual e muitas vezes ateacute material Mas essas natildeo satildeo as

uacutenicas fontes de crescimento do pentecostalismo e de suas vertentes A consolidaccedilatildeo e a

institucionalizaccedilatildeo dessas religiotildees emotivas certa ldquopentecostalizaccedilatildeordquo do protestantismo

histoacuterico (ou renovaccedilatildeo) e a raacutepida expansatildeo da Renovaccedilatildeo Carismaacutetica100 tornaram o cenaacuterio

brasileiro eminentemente pentecostal

Haacute uma grande dificuldade de classificar e tipologizar igrejas pelos criteacuterios de

tamanho raio de accedilatildeo estrutura burocraacutetica e financeira fidelidade do pagamento de diacutezimos

assiduidade dos fieacuteis nos cultos rigidez no coacutedigo doutrinaacuterio grau de acesso aos sacramentos

do batismo e da ceia haacutebitos asceacuteticos de santidade movimento cronoloacutegico do surgimento

dessas igrejas surgimento por missionaacuterios fusotildees cisotildees ou ateacute mesmo pelos criteacuterios de

definiccedilatildeo de movimentos paraeclesiaacutesticos independentes Atualmente esses fatores se

combinam esboccedilando diferentes possibilidades Brandatildeo (citado em Mariano 1999) oferece

uma divisatildeo classificatoacuteria colocando de um lado eruditos dominantes representados pelo

protestantismo histoacuterico e de outro populares caracterizados por pequenas seitas e pelo

movimento de cura divina No meio desses dois grandes grupos estariam igrejas de mediaccedilatildeo

como os pentecostais tradicionais sendo um exemplo a Assembleacuteia de Deus

Para os fins dessa discussatildeo entender-se-aacute por pentecostais os protestantes que se

pautam na crenccedila da contemporaneidade dos dons do Espiacuterito de que os grandes feitos

operados por Jesus continuam ainda hoje atraveacutes da cura divina da realizaccedilatildeo de milagres

ldquoprofeciasrdquo da manifestaccedilatildeo dos dom de liacutenguas e discernimento de espiacuteritos (baseado na

descida do Espiacuterito Santo em Pentecostes) que se manifestam sobretudo no emocionalismo

religioso que pode levar agrave catarse Seguindo a caracterizaccedilatildeo de Paul Freston (1993) as

classificaccedilotildees do CEDI (Centro Ecumecircnico de Documentaccedilatildeo e Informaccedilatildeo) as anaacutelises de

Mendonccedila de 1989 e as de Brandatildeo de 1980 para aleacutem das peculiaridades de suas

categorizaccedilotildees as primeiras igrejas pentecostais a chegarem ao Brasil dataram entrada em 1910

- 1911 sendo elas a Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil fundada pelo missionaacuterio italiano Louis

Francesco em Satildeo Paulo e no Paranaacute e a Assembleacuteia de Deus fundada por Gunnar Vingren e

Daniel Berg suecos que se instalaram em Beleacutem do Paraacute sendo os trecircs disciacutepulos de William

H Durham de Chicago A maior parte da membresia dessas igrejas eram pessoas pobres e de

99 Tais informaccedilotildees foram retiradas dos trabalhos ldquoExpansatildeo pentecostal no Brasil o caso da Igreja Universalrdquo (Mariano 2000) ldquoNeopentecostaisrdquo (Mariano 2005) ldquoO mal exorcizado cura divina entre os neopentecostais da Igreja Internacional da Graccedila de Deusrdquo (Pinezi e Romanelli 2003) e ldquoA construccedilatildeo da diferenccedila no protestantismo brasileirordquo (Tiago Watanabe 2007) 100 Movimento leigo da linha pentecostal oriundo dos EUA que afetou o catolicismo brasileiro no iniacutecio dos anos 70 (Mariano 1999)

baixa escolaridade Tambeacutem apresentava um anticatolicismo exacerbado acompanhado da

grande ecircnfase no dom de liacutenguas (glossolalia) e na crenccedila na volta imediata de Cristo

(paroussia) o que se contrapunha agrave espera resignada de protestantes histoacutericos (batistas

presbiterianos luteranos) Fieacuteis oriundos de igrejas da primeira onda do pentecostalismo criam

na salvaccedilatildeo e na existecircncia do paraiacuteso se comportavam de modo sectaacuterio e asceacutetico rejeitando

o mundo e suas seduccedilotildees Eacute visiacutevel a postura de apego aos usos e costumes asceacuteticos de

santidade por parte dos pentecostais claacutessicos 101 como exemplificado nas palavras de Ricardo

Gondin teoacutelogo e pastor da Assembleacuteia de Deus quando questionado sobre o abandono dos

usos e costumes

ldquoO que nos faz parecer com o mundo natildeo eacute o jeito como a gente se veste ou a maneira como a gente fala ou que tipo de lugares que frequumlentamos Estamos sim mais mundanos mas natildeo porque a gente deixou de ser legalista O que faz a gente ser parecido com o mundo satildeo os conteuacutedos do nosso caraacuteter as opccedilotildees que fazemos ndash se dizemos ldquosimrdquo ou ldquonatildeordquo a determinadas oportunidades que surgemrdquo (Entrevista agrave Revista Ecleacutetica dezembro de 2004)

Jaacute a segunda onda eacute marcada pela implantaccedilatildeo de outras igrejas no territoacuterio brasileiro

na deacutecada de 50 Contraacuterio a algumas classificaccedilotildees Marino mostra que essas igrejas de

segunda fase do pentecostalismo foram denominaccedilotildees novas surgidas como fruto da Cruzada

Nacional de Evangelizaccedilatildeo coordenada pelos missionaacuterios americanos Harold Williams e

Raymond Boatright ex-atores de filmes faroestes e vinculados agrave International Church of

Foursquare Gospel que trazida para o Brasil foi chamada de Igreja do Evangelho Quadrangular

Essa campanha da Cruzada enfatizava a cura divina centrada no evangelismo de massa e atingia

a camadas mais pobres da populaccedilatildeo No sucesso desse proselitismo surgiram a igreja Brasil

para Cristo em Satildeo Paulo no ano de 1955 a igreja Deus eacute Amor tambeacutem em Satildeo Paulo em

1962 a Casa da Benccedilatildeo em Belo Horizonte em 1964 e vaacuterias outras igrejas de expressotildees

menores De acordo com Beatriz Muniz de Souza (citada em Mariano 2005) o nuacutecleo

teoloacutegico-doutrinaacuterio dessas igrejas quase natildeo apresentou mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves igrejas da

primeira onda salvo na ecircnfase nos dons do Espiacuterito que enquanto a Assembleacuteia de Deus e a

Congregaccedilatildeo Cristatilde enfatizavam a glossolalia as igrejas que surgiram em torno da deacutecada de 50

enfatizavam o dom de cura divina Com exceccedilatildeo da crenccedila na predestinaccedilatildeo que era mantida

pela Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil a proximidade teoloacutegica entre essas igrejas pode ser

atribuiacuteda pelo fato da igreja Quadrangular vinda dos EUA (que deu origem agrave segunda onda)

compartilhar das mesmas doutrinas dos missionaacuterios estrangeiros que fundaram as igrejas de

101 Ricardo Mariano adota o termo claacutessico ao se referir agraves igrejas pentecostais pioneiras Assembleacuteia de Deus e Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil Ele chama a atenccedilatildeo para o processo de rotinizaccedilatildeo do carisma a que essas igrejas tecircm passado institucionalizando-se enquanto religiatildeo ascendendo-se social e economicamente criando um corpo burocraacutetico para administrar a igreja e dificultando a ascensatildeo eclesiaacutestica por estimular a formaccedilatildeo teoloacutegica de seu clero (Mariano 2005 p 24)

primeira onda Outra caracteriacutestica distintiva que aparece nos anos 60 eacute o uso de meios de

comunicaccedilatildeo de massa como o raacutedio jornais e folhetos que eram considerados (devido agraves

praacuteticas sectaristas das igrejas das deacutecadas de 20 e 30) como instrumentos satacircnicos O

evangelismo dessas novas igrejas tambeacutem se valeu de teatros praccedilas puacuteblicas ginaacutesios e outros

espaccedilos informais para propagaccedilatildeo da mensagem do evangelho

O neopentecostalismo eacute o chamado ldquonovo pentecostalismo no Brasilrdquo por diferir em

muito enquanto movimento das caracteriacutesticas que marcaram as igrejas de primeira e segunda

onda De fato o que ocorre eacute certo hibridismo no que tange aos trecircs momentos do fenocircmeno

pentecostal mostrado nas peculiaridades doutrinaacuterias e lituacutergicas de cada igreja que impede a

classificaccedilatildeo generalista de tais comunidades enquanto unicamente pertencentes a apenas uma

das trecircs ondas102 Ricardo Mariano por exemplo natildeo se aborrece em usar o termo

neopentecostais Essa expressatildeo jaacute tem sido consolidada ao tratar desse assunto na sociologia da

religiatildeo 103 Tratada como a terceira onda do movimento pentecostal aparece em meados dos

anos 70 e 80 com o surgimento da igreja Universal do Reino de Deus sua principal expressatildeo e

com a fundaccedilatildeo posteriormente das igrejas Internacional da Graccedila de Deus Renascer em Cristo

e Comunidade Evangeacutelica Sara Nossa Terra Os neopentecostais contrariamente aos

pentecostais das primeiras ondas promoveram grande liberdade quanto agraves representaccedilotildees em

torno do corpo exacerbaram a guerra contra o diabo em seu maacuteximo aderiram e acentuaram a

pregaccedilatildeo da Teologia da Prosperidade _ de que eacute devido aos filhos de Deus o usufruir dos bens

que Ele reservou aos seus ainda na terra Como exemplo na paacutegina online da Igreja Universal

(retirado em 26112007) constava os seguintes dizeres ldquoMedo Eacute exatamente o que impede

muita gente de sair da caverna Diz a Biacuteblia que Gideatildeo se revoltou partiu para o tudo ou

nada arriscando a proacutepria vida Essa era a chamada de uma das Novenas que acontecia aos

domingos E ainda continuava ldquoDeus se sente indignado revoltado porque as pessoas que natildeo

tecircm absolutamente nada a ver com Ele estatildeo aiacute vivendo bem comendo do bom e do melhor e o

Seu povo comendo das migalhas vivendo na mais completa miseacuteriardquo ressaltava o bispo

orientando a todos que estavam nessa condiccedilatildeo a natildeo aceitarem mais o fracasso tendo em vista

102 Nas discussotildees do Seminaacuterio Pentecostalismo em debate realizado em 1996 e formatado como livro publicado em 1998 Ceciacutelia Mariz retoma a discussatildeo sobre os criteacuterios de classificaccedilatildeo apontando para a possibilidade de existirem muacuteltiplas terminologias e distinccedilotildees no sentido de serem as categorizaccedilotildees construccedilatildeo e exploraccedilatildeo de um dado objeto em uma realidade especiacutefica Esse trabalho concorda aleacutem disso que a imensa riqueza da pluralidade pentecostal pode se perder nessas tentativas de tipologizar determinado fenocircmeno mas que em outra medida a resistecircncia agrave realizaccedilatildeo de um esforccedilo classificatoacuterio implica necessariamente em assumir a natildeo correspondecircncia a natildeo aproximaccedilatildeo ou a natildeo evidecircncia de um conjunto de fatores comuns representando pobreza na qualidade de descriccedilatildeo e compreensatildeo do fenocircmeno estudado de seus alcances de suas implicaccedilotildees e de suas possiacuteveis direccedilotildees 103 Segundo Emerson Giumbelli (2000) na deacutecada de 60 o termo neopentecostais serviu para designar o movimento carismaacutetico que atingiu igrejas protestantes histoacutericas e a Igreja Catoacutelica Posteriormente tal termo foi utilizado em outros contextos e passou a ganhar novos sentidos tais como nos trabalhos de Mendonccedila (1994) Sanchis (1994) Mariano (199519961998) Monteiro (1995) e muitos outros aleacutem de ter sido tiacutetulo de um dossiecirc organizado pela Revista Novos Estudos CEPRAP de 1996

a grandeza do Deus que serviam As pessoas eram convidadas a participarem da Fogueira Santa

de Israel fazendo sacrifiacutecios (especialmente de ordem financeira) para a ldquomaterializaccedilatildeo da feacute

para a conquista do impossiacutevelrdquo Apesar da igreja mais conhecida desse novo modo de ser

pentecostal ser a Igreja Universal do Reino de Deus em outras comunidades evangeacutelicas eacute

possiacutevel notar tambeacutem o uso crescente de objetos sagrados a ampla liberdade das emoccedilotildees e

expressotildees e a acentuada catarse individual e coletiva Paralela agrave triacuteade_ cura exorcismo

prosperidade _ as igrejas tem ser estruturado empresarialmente incrementando sua participaccedilatildeo

na poliacutetica partidaacuteria nos postos de poder nos setores puacuteblico e privado e usado religiosamente

a TV e o raacutedio como nunca antes Diferentemente dos pentecostais claacutessicos haacute um rompimento

com a relaccedilatildeo de dependecircncia entre estado de santidade (estar cheio do Espiacuterito) e as distinccedilotildees

asceacuteticas de aparecircncia De fato jaacute natildeo se distingue mais alguns evangeacutelicos por haacutebitos como

deixar de usar maquiagem saias longas recusa a ouvir muacutesicas ldquodo mundordquo ou a participar de

um churrasco de faculdade De acordo com Mariano haacute um crescente processo de

ldquomundanizaccedilatildeordquo em que as fronteiras do mundo e da igreja encontram-se cada vez menos

acentuadas Ao inveacutes de rejeitar o mundo esse novo pentecostalismo passa a afirmaacute-lo uma vez

que o principal sacrifiacutecio exigido por Deus satildeo os diacutezimos e ofertas polpudas em funccedilatildeo de

benefiacutecios materiais sejam eles financeiros sejam de sauacutede uma vez que a maior parte dos fieacuteis

tem dificuldade no acesso a esse tipo de serviccedilo

Joseacute Bittencourt Filho tambeacutem aponta para esse efervescente jeito de ser pentecostal

Utilizando da expressatildeo pentecostalismo autocircnomo ele percebe uma religiosidade muito

original de ldquouma forccedila proselitista extraordinaacuteriardquo que eacute livre a propor novas formas de se

organizar enquanto igreja Assim faz uso pouco comprometido da Biacuteblia (se comparado com o

que defende pastores eou teoacutelogos de outro tipo de protestantismo) se preocupa pouco com a

formaccedilatildeo teoloacutegica de seus liacutederes (e muita das vezes desestimula essa formaccedilatildeo catequeacutetica

pastoral) orienta os cultos como programas de auditoacuterio ou torcidas organizadas aleacutem de

substituir o sacerdoacutecio de todos os santos (desempenho das funccedilotildees espirituais por todos os

crentes sem intermeacutedio) por autoritarismo verticalismo e concentraccedilatildeo de poder Giumbelli

mostra que para Bittencourt tais igrejas descomprometidas com qualquer ldquosenso eclesialrdquo se

tornaram ldquoagecircncias de prestaccedilatildeo de serviccedilo para uma clientela flutuanterdquo Os neopentecostais104

tem um baixo ldquosentimento de adesatildeordquo e muitas das vezes isso implica em baixa

responsabilidade social e moral Para Jesuacutes Hortal os grupos religiosos mais bem sucedidos satildeo

precisamente os que aparentemente apresentam menos exigecircncias e que se comportam como

ldquoagecircncias de prestaccedilatildeo de serviccedilos religiososrdquo de acordo com a sociedade de consumo (citado

104 Para os fins desse trabalho vislumbramos a possibilidade de entender pentecostalismo autocircnomo e neopentecostalismo como a mesma coisa sem entrar nas querelas que o uso distinto de tais categorias possa implicar uma vez elas satildeo utilizadas aqui com o intuito de desenhar o cenaacuterio do diferente pentecostalismo dos dias atuais para assim apontar posteriormente como eacute possiacutevel vislumbrar tais caracteriacutesticas em igrejas protestantes histoacutericas

em Giumbelli) Wania Mesquita tambeacutem ressalta que essa nova forma de religiosidade essa

distinta configuraccedilatildeo pentecostal eacute um ajustamento ao mundo moderno uma acomodaccedilatildeo agrave

cultura de consumo

Nesse iacutenterim as proacuteprias igrejas pentecostais mais antigas como a Assembleacuteia de

Deus tambeacutem sentiram o fogo das outras ondas pentecostais As igrejas do protestantismo

histoacuterico tambeacutem tem se deixado afetar pelo movimento do Espiacuterito Santo trazido pelas ondas

pentecostais mais novas Segundo Francisco Cartaxo Rolim (1985 p 59) a ldquopentecostalizaccedilatildeordquo

das igrejas protestantes histoacutericas105 deu origem ao movimento de renovaccedilatildeo e de restauraccedilatildeo

As igrejas renovadas satildeo para o autor grupos batistas e metodistas wesleyanos adotam um

estilo pentecostal embora conservem a organizaccedilatildeo de suas igrejas de origem Igrejas de

restauraccedilatildeo por outro lado tal qual presbiterianos e metodistas adotam o estilo de culto

pentecostal cacircnticos populares e oraccedilotildees espontacircneas mas sob estrita vigilacircncia para que o

excesso de liberdade natildeo solape o legalismo religioso Em 1996 a pesquisa ldquoNovo Nascimentordquo

do ISER criou a categoria ldquohistoacutericas renovadasrdquo para se referir a outras denominaccedilotildees que

acreditavam na contemporaneidade dos dons do Espiacuterito denominaccedilotildees essas oriundas de

cisotildees de igrejas protestantes histoacutericas a partir da deacutecada de 60 Segundo Mariano

ldquoRenovadas portanto satildeo igrejas dissidentes de denominaccedilotildees protestantes tradicionais que adotam teologia pentecostal incluindo conforme as idiossincrasias do pastor local vaacuterias das inovaccedilotildees teoloacutegicas identificadas com o neopentecostalismordquo (Mariano 2005 p 48)

Eacute possiacutevel apontar ademais que natildeo haacute homogeneidade teoloacutegica ou social quando se

fala de igrejas protestantes As referecircncias de composiccedilatildeo social como escolaridade e renda que

serviam para separar histoacutericos renovados de pentecostais jaacute natildeo serve mais uma vez que jaacute natildeo

satildeo tatildeo distintas Segundo Mariano as pesquisas em torno dessas anaacutelises e classificaccedilotildees natildeo

vatildeo aleacutem disso Natildeo eacute por conseguinte encontrada grande literatura sobre o assunto Segundo o

Censo de 1991 os protestantes renovados eram 194 mil fieacuteis apenas A influecircncia maciccedila das

caracteriacutesticas do pentecostalismo nas igrejas histoacutericas pode levar inclusive a uma futura

dissoluccedilatildeo eou reordenaccedilatildeo dessas classificaccedilotildees que salvo a diferenccedila cronoloacutegico-

institucional natildeo vatildeo aleacutem disso Nesse iacutenterim eacute quanto a influecircncia propriamente do

neopentecostalismo nas igrejas protestantes histoacutericas nesse ensaio se restringindo a algumas

experiecircncias vivenciadas na Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte que a proacutexima

sessatildeo desse trabalho se destina

105 Por igrejas protestantes histoacutericas compreendem-se as igrejas que surgiram na Europa a partir do seacuteculo XVI com a Reforma Protestante tais como as presbiterianas batistas metodistas congregacional e chegaram ao Brasil quer por imigraccedilatildeo ou por missatildeo no final do seacuteculo XIX em diante

A Igreja Batista da Lagoinha protestante histoacuterica protestante renovada

pentecostal neopentecostal

ldquo() quanto mais proacutexima destas caracteriacutesticas estiver tanto mais adequado seraacute classificaacute-la como neopentecostal Isto eacute quanto menos sectaacuteria e asceacutetica e quanto mais liberal e tendente a investir em atividades extra-igreja (empresariais poliacuteticas culturais assistenciais) sobretudo naquelas tradicionalmente rejeitadas ou reprovadas pelo pentecostalismo claacutessico mais proacuteximo tal hipoteacutetica igreja estaraacute do espiacuterito do ethos do modo de ser das componentes da vertente neopentecostalrdquo (Mariano 1999 p37)

As fronteiras jaacute pouco perceptiacuteveis entre ldquomundordquo e ldquoigrejardquo vistas pelo viacuteeis do

crescente abandono do comportamento asceacutetico e sectarista que os pentecostais claacutessicos

mantinham tecircm sido percebidas tambeacutem na pentecostalizaccedilatildeo neopentecostalizaccedilatildeo das

igrejas protestantes histoacutericas Para esse trabalho vou me ater no caso da Igreja Batista da

Lagoinha em Belo Horizonte como exemplo da significativa influecircncia neopentecostal Eacute

devido ressaltar antes de mais nada o acanhamento desse trabalho sua pequeniacutessima pretensatildeo

seu grande aspecto inicialmente especulativo descritivo que pretende recolher-se ao caraacuteter de

uma exploraccedilatildeo em parte socioloacutegica em parte nativa 106 uma investigaccedilatildeo para futuras

pesquisas e desenvolvimentos Natildeo tem de modo algum a perspicaacutecia de uma pesquisa de

longo prazo o focirclego de um trabalho intenso de campo a complexa polifonia do cenaacuterio

evangeacutelico brasileiro Ainda assim a anotaccedilatildeo de alguns incocircmodos pode apontar para mais

uma minuacutecia do pentecostalismo no Brasil uma de suas direccedilotildees um de seus matizes

As igrejas protestantes histoacutericas ao passarem por um processo de pentecostalizaccedilatildeo e

se autodenominarem ldquoigrejas renovadasrdquo adotam os dons do Espiacuterito Santo em especial a

glossolalia e a cura divina Ricardo Mariano em um artigo publicado em 1999 com o tiacutetulo de

ldquoO futuro natildeo seraacute protestanterdquo demonstra o decliacutenio derradeiro do protestantismo tradicional ou

histoacuterico e o crescimento alarmante do pentecostalismo Infelizmente omito a citaccedilatildeo pontual

do livro ldquoFogo sobre a terra brasileira o impacto do pentecostalismo no protestantismo histoacuterico

brasileiro de Magalhatildees Jr por falta de acesso Segundo ele esse processo pelo qual algumas

igrejas protestantes passaram foi de fundamental importacircncia para romper com a diferenccedila

abissal que existia entre protestantismo histoacuterico e pentecostalismo (aparentemente

irreconciliaacuteveis) aparecendo como mediador entre poacutelos opostos (citado em Siepierski 2001)

Esse processo foi certamente desgastante pois muitas igrejas foram expulsas das convenccedilotildees a

que pertenciam Um caso digno de nota eacute o da Igreja Batista

106 Essa posiccedilatildeo tratada por Pedro Ribeiro de Oliveira em ldquoEstudos da religiatildeo no Brasil um dilema entre academia e instituiccedilotildees religiosasrdquo demonstra a ambivalecircncia da posiccedilatildeo de por um lado pesquisador suspeito no mundo acadecircmico por seu comprometimento com a religiatildeo e por outro leigo um tanto quanto intrometido e assim desqualificado em alguma medida no ambiente eclesiaacutestico Esse desconforto parece contudo uma vantagem de natildeo se passar de um lado para outro sem uma devida consciecircncia

A igreja Batista surgiu107 na Europa em 1609 na Holanda fundada por John Smyth e

Thomas Helwys que criam na necessidade de realizarem um batismo com consciecircncia Apoacutes a

morte de Jonh Smyth Thomas Helwys organizou a Igreja Batista em Spitalfields nos arredores

de Londres em 1612 A praacutetica comum de batizar por imersatildeo soacute ocorreu em 1642 e em 1644

foi elaborada a primeira Confissatildeo dos particulares No Brasil a crenccedila batista chegou apenas

em 1867 com os refugiados da Guerra Civil Americana na regiatildeo de Santa Baacuterbara do Oeste

onde hoje se localiza a cidade de Americana Os batistas de entatildeo em Santa Baacuterbara do Oeste

se uniram para solicitar a Junta de Richmond dos Estados Unidos o envio de missionaacuterios ao

Brasil Em razatildeo do trabalho de evangelizaccedilatildeo intenso que jaacute realizavam percebem a abertura

dos brasileiros para receberem o evangelho Em 1881 chegam os missionaacuterios William Buck

Bagby Ana Luther Bagby Zacarias Taylor e Katarin Taylor que logo se filiam agrave Igreja Batista

existente e comeccedilam o estudo da liacutengua portuguesa tendo Antonio Teixeira de Albuquerque

um ex-padre catoacutelico como professor

As igrejas Batistas no Brasil se organizam atraveacutes de Convenccedilatildeo (organizaccedilotildees

religiosas federativas sem fins lucrativos) A maior delas Convenccedilatildeo Batista Brasileira

segundo seu proacuteprio estatuto se considera ldquoo oacutergatildeo maacuteximo da denominaccedilatildeo batista no Brasil

Representa cerca de 7000 igrejas 4000 missotildees e 1350000 fieacuteis Como instituiccedilatildeo existe

desde 1907 funciona definindo o padratildeo doutrinaacuterio e unificando o esforccedilo cooperativo dos

batistas do Brasilrdquo (texto adaptado) Suas caracteriacutesticas mais importantes satildeo a liberdade

religiosa o governo democraacutetico a estrutura congregacional a accedilatildeo cooperativa a visatildeo

missionaacuteria o padratildeo de doutrinas e a responsabilidade social Existe ainda outra grande

Convenccedilatildeo que foi criada em 1967 cisatildeo da primeira denominada Convenccedilatildeo Batista

Nacional fundada por iniciativa das igrejas batistas por tempo indeterminando que tem como

base a crenccedila em Jesus Cristo como Senhor e Salvador e a doutrina do batismo no Espiacuterito

Santo bem como o exerciacutecio dos dons espirituais buscando sempre o avivamento Essa

Convenccedilatildeo foi criada pelo pastou Eneacuteas Tognini a partir da experiecircncia do batismo pentecostal

por fieacuteis em Belo Horizonte Reunindo cerca de 1500 igrejas atinge em torno de 390000

adeptos desse tipo de batista Sua ecircnfase estaacute em cooperar com as igrejas para ldquoque cumpram

seus objetivos de modo a transformar a sociedade pelo cumprimento da missatildeo integral da

igreja pelo poder do Espiacuterito Santordquo com accedilotildees seculares e teoloacutegicas discipulado e

107 O advento da Igreja Batista enquanto denominaccedilatildeo seu surgimento e expansatildeo no Brasil a divisatildeo dos batistas em suas principais Convenccedilotildees bem como a histoacuteria da Igreja Batista da Lagoinha _ aleacutem das experiecircncias particulares e conhecimento evangeacutelico pessoal _ foram retiradas predominantemente dos seguintes endereccedilos eletrocircnicos httpptwikipediaorgwikiIgreja_Batista httpwwwlagoinhacomenginephp httpwwwbatistasorgbrindexphpoption=com_contentampview=articleampid=19ampItemid=12 httpwwwcbnorgbrindexphpoption=com_contentampview=articleampid=49ampItemid=140

responsabilidade social para promover o reino de Deus (texto adaptado) No histoacuterico dessas

Convenccedilotildees eacute interessante notar suas narrativas sobre a dissidecircncia

ldquoMas neste momento (renovaccedilatildeo espiritual) o inimigo furioso quis destruir Conseguiu dividir a unidade batista e o mesmo aconteceu com outras denominaccedilotildees histoacutericas Apoacutes muitos acontecimentos oficialmente em janeiro de 1965 na cidade de Niteroacutei a Convenccedilatildeo Batista Brasileira excluiu cerca de 32 igrejas de seu rol No ano seguinte o nuacutemero de igrejas desarroladas chegou a 52rdquo (Excerto retirado da histoacuteria da Convenccedilatildeo Batista Nacional) ldquoNem tudo satildeo flores na caminhada da obra batista do Brasil e da Convenccedilatildeo Ela tem atravessado problemas administrativos seacuterios ameaccedilas de divisatildeo e questotildees doutrinaacuterias Poreacutem tornou-se centro de vida batista brasileira e da motivaccedilatildeo do trabalho realizado em todo o territoacuteriordquo (Uacutenica menccedilatildeo encontrada sobre a divisatildeo na histoacuteria da Convenccedilatildeo Batista Brasileira)

Muitas igrejas batistas se organizam de modo independente sem estarem ligadas a nenhuma das

duas Convenccedilotildees Algumas delas se ligaram agrave Comunhatildeo Batista Biacuteblica Nacional e agrave

Comunhatildeo Reformada Batista no Brasil A maior parte dessas comunidades satildeo de orientaccedilatildeo

pentecostal Outro exemplo que pode ser evocado eacute a Primeira Igreja Batista do Brasil em

Salvador com cerca de 4 mil membros que se pentecostalizou no final da deacutecada de 80 e jaacute

tentou se desligar muitas vezes da Convenccedilatildeo Brasileira (a mais tradicional) Permanece a ela

ligada e nunca foi questionada por suas praacuteticas inovadoras (Magalhatildees Jr citado por Siepierski

2001)

A igreja batista de maior expressatildeo em Belo Horizonte108 eacute a Igreja Batista da Lagoinha

(IBL) Circula-se a informaccedilatildeo entre seus membros de que ela atinge a cifra de 40 mil fieacuteis A

IBL foi fundada em dezembro de 1957 com ata assinada por trecircs irmatildeos de outras

denominaccedilotildees batistas sendo ela considerada a 6ordf igreja batista em Belo Horizonte O primeiro

pastor a assumir a frente desse ministeacuterio foi o paraibano Joseacute Rego do Nascimento que havia

sido batizado pelo Espiacuterito Santo em seu escritoacuterio e em casa Criticado por muitos dos

membros e acusado de herege por uma minoria o pastor e outros fieacuteis se mudaram do endereccedilo

onde estavam e deram iniacutecio a outra igreja Com essa iniciativa ldquoLagoinha abriu uma nova

geraccedilatildeo na histoacuteria do protestantismo brasileiro no meio dos evangeacutelicos histoacutericos (os

tradicionais) havia agora os ldquorenovadosrdquo (batizados com o Espiacuterito Santo)rdquo (retirado do site da

IBL) Com a doenccedila do liacuteder Joseacute Rego a igreja passou por vaacuterios pastores ateacute ser liderada por

Maacutercio Roberto Viera Valadatildeo em 1972 pastor que a lidera ateacute os dias de hoje apoiado por sua

108 Registro um agradecimento especial ao teoacutelogo Claacuteudio de Castro Correcirca pelas discussotildees e grande contribuiccedilatildeo no fornecimento de informaccedilotildees que foram preciosas para esse trabalho por ele experimentadas durante o periacuteodo de sua formaccedilatildeo acadecircmica que em parte foi vinculada a IBL

famiacutelia que encabeccedila alguns ministeacuterios na igreja como a liacuteder de louvor do ldquoDiante do Tronordquo 109 Ana Paula Valadatildeo Bessa e os irmatildeos a cantora Mariana Valadatildeo e o pastor Andreacute Valadatildeo

A Igreja Batista da Lagoinha eacute em parte uma protestante claacutessica visto que pertence a

uma Convenccedilatildeo de Igrejas protestantes histoacutericas_ Convenccedilatildeo essa que apesar de ter se

desligado da mais antiga por crer na contemporaneidade dos dons do Espiacuterito conserva em seus

estatutos dogmas e preceitos exatamente o mesmo conteuacutedo da Convenccedilatildeo da qual saiu Mas

pelo mesmo motivo satildeo pentecostais pois se surgiram na renovaccedilatildeo da crenccedila e na aceitaccedilatildeo

das manifestaccedilotildees do Espiacuterito Santo como jaacute apresentado Tambeacutem satildeo neopentecostais uma

vez que acompanham todas as inovaccedilotildees que as igrejas que surgiram na deacutecada de 80 em diante

criaram Ao longo do restante desse trabalho procurar-se-aacute mostrar em que medida a IBL se

apresenta pentecostal e tambeacutem neopentecostal uma vez que eacute notoacuterio o seu sentido renovado

em sua proacutepria constituiccedilatildeo enquanto igreja Antes contudo se abri um parecircntese para pensar

como de modo geral as religiotildees tendem a atender as exigecircncias das massas que natildeo cultivam a

religiosidade em seu sentido intelectual

Certa condescendecircncia

Condescender significa ceder agrave vontade alheia pelo desejo de agradar Para Weber ldquo()

essa situaccedilatildeo eacute comum a todo tipo de sacerdoacutecio Para manter sua posiccedilatildeo de poder

frequumlentemente tem de condescender em alto grau agraves necessidades dos leigosrdquo (Economia e

Sociedade 1991) As igrejas que expressam uma forma outra110 de religiosidade bem como as

que dela ldquobebemrdquo parecem se dotar de atributos extremamente atrativos para seus fieacuteis Pinezi e

Romanelli atribuem a grande adesatildeo agraves denominaccedilotildees neopentecostais ao fato dessas

apresentarem soluccedilotildees praacuteticas e imediatas para problemas cotidianos e por terem um tipo de

culto caracterizado pelo forte teor de emoccedilatildeo em que os fieacuteis quase tocam a divindade (opcit

paacuteg 67) Prandi a exemplo disso afirma que

ldquoo que haacute de mais caracteriacutestico na multiplicaccedilatildeo mais recente de religiotildees e na expansatildeo da conversatildeo ou reconversatildeo a essa novas ou renovadas formas de crenccedilas eacute a falta de compromisso com qualquer postura que revele o caraacuteter racional cientiacutefico e historicista fundante da sociedade na sua presumida

109 O Ministeacuterio de Louvor Diante do Trono eacute hoje amplamente conhecido natildeo apenas no meio batista mas no evangeacutelico de modo geral Comeccedilou em 1997 quando Ana Paula Valadatildeo e o maestro Seacutergio que estudavam nos EUA no seminaacuterio RHEMA regressaram ao Brasil e sentiram grande desejo de formar um grupo musical Com a lucratividade do CD manteriam o Projeto Ashastan ndash Iacutendia com a finalidade de retirar meninas da prostituiccedilatildeo 110 A utilizaccedilatildeo dessa expressatildeo tem como intuito apontar a contribuiccedilatildeo da perspectiva de retorno agrave religiatildeo presente por exemplo em Gianni Vattimo e que propotildee revolver as concepccedilotildees sobre o assunto no sentido de pensar natildeo novas mas outras possibilidades de compreensatildeo do religioso aqui no caso do pentecostalismo mais recente Vaacuterios pesquisadores tem guiado seus trabalhos nessa perspectiva como o que Leacutea Freitas Perez chamou de ldquooxigenar as perspectivas correntesrdquo Essa ideacuteia de retorno poacutes-moderno tambeacutem aparece pontuada em ldquoNovas perspectivas globalizaccedilatildeo Otaacutevio Velho 1995 p 222

modernidade desencantadardquo (Prandi citado em Siepierski 2001)

Pelo que parece a promessa da salvaccedilatildeo instantacircnea a atribuiccedilatildeo aos males da vida ao

diabo e agraves forccedilas espirituais a crescente toleracircncia em relaccedilatildeo aos costumes ldquomundanosrdquo

hedonistas a valoraccedilatildeo dos bens dessa vida a possibilidade cataacutertica pessoal e coletiva bem

como a oferta raacutepida e imediata de produtos que atendam agraves necessidades dos fieacuteis enfim ldquoo

pronto-socorro espiritualrdquo que tem se constituiacutedo a partir dessas praacuteticas tecircm sido responsaacuteveis

pelo aumento absurdo que se observa na aderecircncia ao neopentecostalismo

Trago Weber para ilustrar que segundo ele frente agrave forccedila da profecia do

tradicionalismo leigo e do racionalismo leigo haacute o pleito do exerciacutecio sacerdotal Quanto mais

uma congregaccedilatildeo e seus sacerdotes se tornam portadores de uma religiatildeo maiores satildeo as

distinccedilotildees dogmaacuteticas de natureza tanto praacutetica quanto teoacuterica que apresentam

consequumlentemente O autor frisa sobre a postulaccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo que decida sobre a

ortodoxia de uma doutrina com vistas a preservar a unidade congregacional que pode ser

ameaccedilada pela concorrecircncia entre o trabalho intelectual do sacerdote e o racionalismo leigo

despertado pela educaccedilatildeo Entretanto Weber acrescenta que eacute a ldquocura das almasrdquo (assistecircncia

religiosa aos indiviacuteduos) o grande poder que os sacerdotes detecircm Poreacutem outro poder que os

sacerdotes tecircm de enfrentar eacute o tradicionalismo leigo um retorno no sentido de recuperar

alguns traccedilos maacutegicos certa condescendecircncia a despeito das praacuteticas e das ideacuteias dos leigos

O ldquovale do salrdquo (na IURD eacute um caminho de sal colocado no altar da igreja para

proporcionar a manifestaccedilatildeo de democircnios nos que passam por ele) a conversa com os diabos

os copos de aacutegua que satildeo consagrados em cima da televisatildeo e proporcionam cura e mudanccedila de

vida as expressotildees de catarse ocasionadas pelo sopro agrave distacircncia de um liacuteder entre outros natildeo

seriam exemplos dessa condescendecircncia E o que dizer da invasatildeo de praacuteticas performaacuteticas

proacuteprias do neopentecostalismo nas demais igrejas de hoje Natildeo seriam mostras de

condescendecircncia Talvez natildeo alcance exatamente o que Weber queria inferir com essas

colocaccedilotildees mas posso ousar dizer que os exemplos dados sobre essas igrejas no Brasil parecem

ilustrar perfeitamente a frase que trata de um ldquoprocesso de incorporaccedilatildeo de elementos

populares e ao mesmo tempo maacutegicos pela religiosidade sistematizada pelos sacerdotesrdquo

(Weber 1991 paacuteg 320) Deixando Weber falar por si sobre a inevitabilidade da

condescendecircncia vecirc-se

ldquoPor isso quanto mais um sacerdoacutecio pretende regulamentar de acordo com a vontade divina a praacutetica da vida tambeacutem dos leigos e sobretudo apoiar nisso seu poder e suas receitas tanto mais tem de adaptar sua doutrina e suas accedilotildees ao mundo de ideacuteias tradicional dos leigos () Quanto mais a grande massa se torna entatildeo objeto da influecircncia e apoio do poder dos sacerdotes tanto mais o trabalho sistematizador destes tem de

se concentrar nas formas mais tradicionais isto eacute nas formas maacutegicas das ideacuteias e das praacuteticas religiosasrdquo (Opcit paacuteg 319)

E ainda

ldquo() regularmente muda (a profecia) seu caraacuteter no momento em que se estende aos ciacuterculos leigos que natildeo cultivam especiacutefica e profissionalmente o intelectualismo como tal e mais ainda () o produto da adaptaccedilatildeo inevitaacutevel agraves necessidades das massasrdquo (Opcit paacuteg 322)

Segundo o autor o termo maacutegico (accedilatildeo religiosa magicamente motivada) parece se

referir ao oposto do que se entende por racionalismo e intelectualismo sendo o recurso utilitaacuterio

ao sobrenatural uma accedilatildeo racional (mesmo que natildeo orientada por meios e fins) que se guia

pelas regras da experiecircncia (Weber Opcit p 279) norteada para esse mundo e que natildeo se

pode separar do ciacuterculo das accedilotildees cotidianas Weber parece conceber as massas como

responsaacuteveis sempre por ldquopuxarem pra traacutesrdquo as religiotildees fazendo com que essas retornem em

alguma medida agrave magia que foi abandonada com a ruptura profeacutetica Ele aponta que todas as

religiotildees todas as religiotildees e eacuteticas religiosas com exceccedilatildeo apenas do judaiacutesmo e do

protestantismo tiveram de admitir ao se adaptarem agraves necessidades das massas o culto aos

santos a deuses ou a heroacuteis os quais recebem a verdadeira e cotidiana devoccedilatildeo das massas Mas

ao sobrepor o cenaacuterio neopentecostal ao esboccedilo weberiano exposto alguma coisa parece estar

errada Estariacuteamos de fato falando do protestantismo ao qual Weber se referiu Grande maioria

dos pesquisadores pensa que natildeo Rubem Alves111 chega a considerar que esse protestantismo

weberiano (erudito secularizado racionalizado promotor da modernidade e da ciecircncia) nunca

existiu no Brasil Mesmo assim eacute possiacutevel pensar ateacute que ponto essa inserccedilatildeo de valores e

praacuteticas trazidas pelo neopentecostalismo natildeo concentraria a verdadeira devoccedilatildeo cotidiana das

massas Rotomando os excertos do site da Convenccedilatildeo Batista Nacional um ponto eacute digno de

nota na descriccedilatildeo de sua histoacuteria

ldquoRenovaccedilatildeo Espiritual como a palavra bem o expressa eacute aproveitar o que existe Joseacute Rego do Nascimento gritou muitas vezes Renovaccedilatildeo Espiritual eacute uma mensagem biacuteblica no poder do Espiacuterito para sacudir as igrejas que existem mas que dormem embaladas pelo comodismo e pela inatividade Quando esta mensagem comeccedilou a entrar nas igrejas histoacutericas correspondia exatamente ao anseio do nosso povo Era resposta divina de oraccedilotildees que os servos do Senhor fizeram de joelhos ou com o rosto em terra e com laacutegrimas Igrejas se despertaram e comeccedilaram a viver no poder do Espiacuterito e a experimentarem vitoacuterias retumbantes no Senhorrdquo (grifo acrescentado descuidos gramaticais acertados)

111 Alves citado em Mariano 1999

Ao lado dessa ideacuteia de magia Giumbelli pontua que ldquoreligiotildeesrdquo (opostas agraves praacuteticas

maacutegicas) seriam os movimentos distinguiacuteveis por um culto agrave divindade e pela busca da salvaccedilatildeo

por um conjunto de adeptos coesamente articulados pela adesatildeo a uma doutrina e a uma eacutetica

que respondem a um chamado e natildeo que tem livre escolha diante do mercado de bens

espirituais A religiosidade maacutegica segundo ele natildeo serve a Deus mas procura Dele se servir

ou se servir de algo colocado no lugar Dele para atingir fins desejados Haacute assim uma

fragilidade na dimensatildeo eacutetica fragilidade esta vista (atualmente) pela ecircnfase na accedilatildeo demoniacuteaca

descristalizaccedilatildeo das noccedilotildees de responsabilidade moral livre-arbiacutetrio e culpa na valorizaccedilatildeo da

posse de bens e no abandono das praacuteticas asceacuteticas que separavam os indiviacuteduos do mundo O

sentido de retorno ao comportamento maacutegico tambeacutem pode ser visto a partir das consideraccedilotildees

do neopentecostalismo a la Ricardo Mariano se for imputada a interpretaccedilatildeo de Giumbelli

quanto agrave noccedilatildeo de magia no autor Citando-o

Quanto agrave ldquomagiardquo ela ficaria expliacutecita na forma de relaccedilatildeo do fiel ldquoneopentecostalrdquo com Deus que se efetiva atraveacutes dos diacutezimos e especialmente atraveacutes das ofertas jaacute que estas expressariam um compromisso em funccedilatildeo do qual por iniciativa do fiel Deus estaria coagido a cumprir seus desejos Mas tambeacutem como explicita outro texto (Mariano 1996a) na incorporaccedilatildeo sincreacutetica de elementos de religiotildees maacutegicas e na atribuiccedilatildeo de poderes sobrenaturais a uma miriacuteade de objetos distribuiacutedos nos cultos (Gimbelli 2000 p 106)

Leonildo Silveira Campos (1997) mostra que o exorcismo a cura e a prosperidade

passaram a integrar o pentecostalismo com vistas a atingir as necessidades dos fieacuteis Igrejas

organizadas por meio de praacuteticas de marketing e administraccedilatildeo e que tem uma lideranccedila forte

apresentam tambeacutem uma magia organizada ou sindicalizada ou seja a institucionalizaccedilatildeo de

praacuteticas e crenccedilas maacutegico-religiosas (Mariano 2005) que uma vez que eacute a igreja a mediadora

dos poderes divinos e no intuito de atender eficientemente agraves necessidades da clientela a

rotinizaccedilatildeo desses serviccedilos religiosos se daacute pela apresentaccedilatildeo de um calendaacuterio de cultos com

objetivos e propoacutesitos especiacuteficos Na IURD por exemplo domingo eacute reuniatildeo de louvor e

adoraccedilatildeo segunda a reuniatildeo eacute empresarial da Naccedilatildeo dos 318 e saacutebado eacute a Terapia do Amor

Demais reuniotildees satildeo destinadas a correntes campanhas e rituais de libertaccedilatildeo Na IBL do

mesmo modo segunda culto das grandezas de Deus dos empresaacuterios e dos desempregados

terccedila culto com o pastor Andreacute Valadatildeo (de cura e manifestaccedilotildees espirituais) quarta culto de

milagres saacutebado culto de jovens e domingo culto com o pastor Maacutercio Valadatildeo que eacute culto de

adoraccedilatildeo

A influecircncia que o neopentecostalismo tem exercido dentro das igrejas eacute notoacuteria

Entende-se dentro dessa tipologia neopentecostalismo principalmente a presenccedila da triacuteade

exorcismo cura e prosperidade o abandono aos usos e costumes que estigmatizavam os crentes

a organizaccedilatildeo das igrejas empresarialmente o uso pouco sistemaacutetico da biacuteblia o verticalismo de

sua lideranccedila a magia institucionalizada Vejamos alguns exemplos Em um excerto de uma

muacutesica cantada na IBL e em seus shows aparece a guerra espiritual contra o diabo

COMO UM LEAtildeO QUE RUGE O DIABO QUER NOS DEVORAR ESTAacute BUSCANDO BRECHAS PARA DESTRUIRROUBAR E MATAR

NAtildeO Eacute NA NOSSA FORCcedilA QUE PODEMOS VENCER MAIOR Eacute JESUS EM NOacuteS VEM NOS DEFENDER ()

() JESUS CRUCIFICADO E O INFERNO EM FESTA SE ALEGROU PENSAVAM TER VENCIDO E DERROTADO O SALVADOR

() BEM NO MEIO DA FESTA O DIABO COMECcedilOU A OUVIR PASSOS FORTES QUE TREMIAM TODA A TERRA E FOI CONFERIR

QUANDO AS PORTAS SE ABRIRAM AO CORDEIRO VIU E COMO UM LEAtildeO JESUS RUGIU

CAIU COMO SERPENTE E TODO PRINCIPADO SE PROSTROU O LEAtildeO DE JUDAacute PISOU BEM FORTE E OS ESMAGOU

TOMOU A CHAVES DAS MAtildeOS DO DIABO ABRIU MINHAS CADEIAS E ME RESGATOU

() HOJE EU SOU LIVRE PARA AMAR A DEUS

VIVER VITORIOSO COMO UM FILHO SEU HOJE EU SOU LIVRE PARA CELEBRAR

O PECADO NAtildeO PODE MAIS ME DOMINAR A Vitoacuteria da Cruz- CD Aacuteguas Purificadoras ndashLagoinha

(negrito acrescentado)

Apesar de a muacutesica tratar da ressurreiccedilatildeo de Cristo no final e da vitoria do Salvador o

diabo precisa ser exorcizado da vida dos crentes A Igreja da Lagoinha tinha ateacute 2008 um culto

agraves quartas-feiras denominado ldquoBatalha Espiritualrdquo com a Pastora Laeacutelcia Neles acontecem

curas das enfermidades expulsatildeo maciccedila de democircnios e manifestaccedilotildees espirituais das mais

diversas Os liacutederes que tem a funccedilatildeo de ldquobatalha espiritualrdquo ou ldquodom de maravilhasrdquo (espeacutecie

de crente que tem o dom de expulsar democircnios e de curar respectivamente) recebem e satildeo

instruiacutedos com uma ficha com as mais distintas classificaccedilotildees para preencher junto aos fieacuteis

anotando os tipos de diabos existentes nomes que retomam reafirmando o universo afro tais

como ldquotranca ruardquo ldquoexuacute-caveirardquo ldquopomba-girardquo ldquomaria-mulambordquo ldquopreto-velhordquo ldquomenino de

angolardquo aleacutem de suas classificaccedilotildees regionais comarcas de influecircncias entre outras

caracteriacutesticas

O pastor Andreacute Valadatildeo filho do atual liacuteder Maacutercio Valadatildeo titular da igreja tem uma

grife de roupas modernas (Ameacutem) com mensagens discretamente evangeacutelicas trajes que podem

ser comprados em algumas lojas de shopping como a Ponto M ( M) Tambeacutem sobre o

abandono dos usos e costumes evidenciado pela crescente indistinccedilatildeo que se vecirc entre um crente

e um natildeo crente no site da Lagoinha haacute uma mateacuteria intitulada ldquoO que tem de errado com

minha roupardquo em que se destaca a seguinte passagem

ldquoA beleza principal vem de dentro para fora e natildeo eacute de fora para dentro que vocecirc vai conseguir isso Natildeo eacute por acaso que vemos vaacuterios casais que podemos dizer satildeo um tanto

incompatiacuteveis aos nossos olhos mas se completam perfeitamente graccedilas ao amor de Deus e ao Espiacuterito Santo do Senhor que estaacute entre eles Seja ungido ou ungida santo ou santa e principalmente mostre em seu exterior o que o mundo mais precisa ver ultimamente JESUS (negrito acrescentado)

O usufruir da vida que Deus daacute a seus filhos ainda na terra eacute evidenciado pelo caraacuteter das

pregaccedilotildees e exemplo de sucesso financeiro emocional e social do Pr Maacutercio Valadatildeo e famiacutelia

Os muitos cultos semanais (49 ao todo) as diversas iniciativas de congressos (Cura da Alma

Nacional para a conquista dos Sete Montes da sociedade Casados para Sempre Reuniatildeo de

Marketing e Venda Encontro de Avivamento) e os ldquoEncontrosrdquo 112 para a libertaccedilatildeo cura

preparaccedilatildeo espiritual e batismo satildeo espaccedilos onde satildeo enfatizadas as ldquobatalhas espirituaisrdquo ldquoatos

profeacuteticosrdquo ldquocobertura espiritualrdquo e ldquoquebra de maldiccedilotildees

Ainda eacute perceptiacutevel a grande importacircncia que a Igreja da Lagoinha atribui agrave televisatildeo

uma vez que eacute proprietaacuteria do Canal Rede Super Inuacutemeros programas satildeo destinados a

propagar a feacute e a doutrina por eles defendida Aleacutem disso essa igreja tem voltado suas

preocupaccedilotildees a realizar diversos programas sociais como o ldquoDia da Super Accedilatildeordquo em que

promovem um assistencialismo proselitista Para completar ainda pode ser acrescentada a

participaccedilatildeo cada vez maior de membros da IBL na poliacutetica partidaacuteria Um exemplo eacute o

deputado e pastor Wanderley Miranda um dos mais votados em Minas Gerais A complexidade

e funcionalidade da IBL eacute difiacutecil de ser compreendida engloba inuacutemeras aacutereas de atuaccedilatildeo

seminaacuterios escolas ministeacuterios iniciativas sociais aleacutem de grande variedade de culto

ampliando cada vez mais o alcance a fieacuteis

Algumas consideraccedilotildees a fim de pensar uma neopentecostalizaccedilatildeo das igrejas

protestantes histoacutericas

Pensar as terminologias utilizadas para a compreensatildeo do fenocircmeno pentecostal faz

sentido na medida em que a realidade se torna mais plural e mais complexa e carece de novas

categorizaccedilotildees Segundo Ricardo Mariano as alteraccedilotildees trazidas pelo neopentecostalismo

acabam por colocar as religiotildees evangeacutelicas muito proacuteximas do mundo Esse novo

pentecostalismo promove ajustamentos sociais e transforma a religiatildeo protestante em um

fenocircmeno cada vez menos sectaacuterio e asceacutetico e quase indistinguiacutevel do mundo Antocircnio Gouvecirca

Mendonccedila113 afirma que o protestante histoacuterico de hoje eacute fundamentalista conservador

112 ldquoEncontrosrdquo satildeo retiros espirituais oriundos da teologia do Movimento G12 criado por Castellantildeos que pensava a igreja dividida em pequenos grupos chamados ceacutelulas Os ldquoEncontrosrdquo duram normalmente 03 dias e satildeo realizados por membros das ceacutelulas O batismo dos fieacuteis atualmente eacute orientado para que seja realizado apenas apoacutes a participaccedilatildeo do fiel nessa espeacutecie de acampamento pois eacute atraveacutes das praacuteticas laacute vivenciadas que o indiviacuteduo ldquotoma consciecircncia espiritualrdquo e se arrepende de seus pecados e dos delitos de seus antepassados 113 Mendonccedila e Velasques citado em Mariano 1999

autoritaacuterio passivo e anticultural Ele pontua que sua mensagem teoloacutegica encontra-se em crise

e agrave beira da indigecircncia E ainda conclui que natildeo haacute outra saiacuteda ao protestantismo tradicional se

natildeo voltar agrave Reforma iniciada por Lutero Apesar de esse escrito datar da deacutecada de 90 parece

que os protestantes encontraram outro caminho_ o caminho da neopentecostalizaccedilatildeo A

classificaccedilatildeo114 sugerida por Freston para o campo protestante apresenta as categorias

ldquoprotestantismo de migraccedilatildeordquo ldquoprotestantismo de missatildeordquo ldquopentecostalismordquo ldquocarismaacuteticosrdquo

Essa tipologia natildeo se distingue em quase nada da proposta de Mendonccedila e Bittencourt

respeitando a divisatildeo entre ldquohistoacutericosrdquo e ldquopentecostaisrdquo e adotando para os primeiros o ldquocriteacuterio

histoacuterico-institucionalrdquo Siepierski sugere uma alternativa para a categoria neopentecostalismo

a expressatildeo ldquopoacutes-pentecostalismordquo Pois para ele os elementos protestantes que haviam no

pentecostalismo tais como a centralidade da figura de Cristo o uso diligente da Biacuteblia e a

uniatildeo da feacute com a eacutetica estatildeo praticamente ausentes rompendo com os princiacutepios centrais da

Reforma ldquoA Reforma significou um processo de ldquodesmagicizaccedilatildeordquo do catolicismo e a produccedilatildeo

de um ethos em que a riqueza sinal de salvaccedilatildeo tornasse o corolaacuterio de uma disciplinardquo

(Giumbelli 2000) A menor presenccedila de uma proposta eacutetica e moral em funccedilatildeo da maior

adesatildeo a elementos maacutegicos e suas soluccedilotildees imediatas leva a pensar na neopentecostalizaccedilatildeo

das igrejas de hoje ao inveacutes de apenas renovaccedilatildeo e restauraccedilatildeo A organizaccedilatildeo empresarial e

mercadoloacutegica das igrejas os cultos cataacuterticos preparados para as grandes massas que cada vez

mais atingem membros de pouca escolaridade e baixo acesso a bens de sauacutede a composiccedilatildeo de

uma lideranccedila forte e bem-sucedida que concentra grande poder em suas matildeos a presenccedila de

empresaacuterios esportistas cantores celebridades e poliacuteticos nas igrejas a eminente guerra contra

o diabo e a afirmaccedilatildeo de deuses afros na busca de cura e libertaccedilatildeo dos democircnios bem como a

ecircnfase na prosperidade satildeo marcas evidentes de que as igrejas ora protestantes ora

pentecostais estatildeo se neopentecostalizando Os crentes satildeo livres para viverem uma vida normal

e tranquumlila fazerem faculdade irem a estaacutedios de futebol cinema festas bares Ao mesmo

tempo que satildeo bem sucedidos no mundo satildeo liacutederes de ceacutelulas participam de ldquodanccedilas

profeacuteticasrdquo se engajam em uma infinidade de projetos ministeacuterios movimentos

Rubem Alves faz o diagnoacutestico de que o cenaacuterio percebido nos dias de hoje natildeo se trata

de uma ldquoexplosatildeordquo de pentecostalismo mas sim de uma ldquoimplosatildeordquo do protestantismo

Gimbelli ao inveacutes de procurar pelas formas de ldquoadaptaccedilatildeordquo ao ldquomundordquo propotildee que busquemos

enxergar os mundos que essas igrejas em suas relaccedilotildees com outros agentes sociais constroem

Ateacute que ponto vai tal condescendecircncia Ela pode levar os evangeacutelicos como estes mesmo

dizem a ldquovenderem suas almas pro diabordquo

114 Essas propostas de classificaccedilotildees daqui pra frente citadas foram retiradas do artigo ldquoA vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro publicado na Revista Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 21 (1) 87-119 2000 por Emerson Giumbelli

Referecircncias bibliograacuteficas

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A figura do conselheiro no catolicismo sertanejo catolicismo popular

Joatildeo Everton da Cruz

INTRODUCcedilAtildeO

Este trabalho compotildee a pesquisa de mestrado do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Ciecircncias

da Religiatildeo da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais ndash PUCMINAS - intitulado

ldquoFrei Damiatildeo uma anaacutelise socioloacutegica sobre o fenocircmeno religioso no Catolicismo Popular

no Nordeste brasileirordquo sob a orientaccedilatildeo do Dr Pedro Assis Ribeiro de Oliveira No mundo

contemporacircneo assistimos ldquoa religiatildeo em movimento constatando o fim das entidades

religiosas antigas e o aparecimento de novas crenccedilas com outras motivaccedilotildees para crer e com a

independecircncia em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees religiosas histoacutericasrdquo causando uma crise nas

instituiccedilotildees religiosas tradicionais O que tem determinado a sociedade contemporacircnea natildeo eacute o

desinteresse face agraves crenccedilas religiosas mas o desaparecimento de sua ldquoregulamentaccedilatildeordquo por

parte das instituiccedilotildees tradicionais que sempre foram portadoras de valores morais e geradoras de

orientaccedilatildeo e esperanccedila

O estudo do Conselheiro no Catolicismo Popular Sertanejo do Nordeste brasileiro vem se

intensificando e abrindo novos horizontes para a Sociologia da Religiatildeo Cada vez mais somos

convencidos de que conhecer eacute sempre um ato de poetar E poetar segundo a etimologia eacute

ldquofazerrdquo eacute ldquocriarrdquo ou ldquoinventarrdquo Por isso a pesquisa natildeo pretende ser mais do que um possiacutevel

diaacutelogo com as outras Eacute uma tese com intenccedilatildeo dialeacutetica natildeo de ensinar mais muito mais de

aprender Contudo maior seraacute a procura sincera das simples afirmaccedilotildees de verdades Pretendo

tecer um texto que seja significativo que ajude a entender melhor a figura do conselheiro na

cultura nordestina Desenvolver uma pesquisa numa oacutetica socioloacutegica acerca da figura do

conselheiro presente na cultura nordestina eacute como fazer uma peregrinaccedilatildeo pelos caminhos das

origens da alma sertaneja do Nordeste brasileiro observando os seus traccedilos e penetrando na sua

intimidade Eacute revelar o misteacuterio eacute perseguir caminhos desvendar os rastros mais profundo da

vida e da morte do presente e do passado do real e do imaginaacuterio

Frei Damiatildeo de Bozzano caminhou pelo Nordeste do Brasil que trata-se de uma regiatildeo

conhecida pelos seguintes Estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute Rio Grande do Norte Paraiacuteba

Pernambuco Alagoas Sergipe e Bahia Sendo que a regiatildeo pode ser dividida em trecircs sub-

regiotildees bem distintas com diversas condiccedilotildees climaacuteticas O sertatildeo (semi-aacuterido) o agreste

(chuvas normais) e regiatildeo da cana-de-accediluacutecar (chuvas abundantes) O fenocircmeno religioso que

Mestrando pela PUCMinas (2008-2010)

se formou em torno de Frei Damiatildeo se deu praticamente na regiatildeo do sertatildeo nordestino (no

semi-aacuterido)115 o que natildeo exclui que muitos devotos tenham saiacutedos tambeacutem do agreste116

Para tratar da expressatildeo catolicismo popular numa visatildeo socioloacutegica necessitamos

evidenciar o que se compreende por cada um dos termos e depois a proacutepria expressatildeo

catolicismo popular Por catolicismo entendemos que eacute ldquouma grandeza teoloacutegica como

concretizaccedilatildeo do Evangelho no tempo Eacute tambeacutem uma realidade histoacuterica poliacutetica socioloacutegica

e religiosardquo(BOFF 1976 p 19) Jaacute o termo popular pode exprimir uma conotaccedilatildeo que demarca

uma triacuteade de oposiccedilotildees como o ldquoeruditordquo ldquooficialrdquo e de ldquoeliterdquo (RIBEIRO DE OLIVEIRA

1988 p 139) O termo popular natildeo estaacute isento de uma ambiguidade Natildeo seraacute a nossa intensatildeo

tornaacute-la aqui no sentido pejorativo vulgar depreciativa pois acabariacuteamos identificando-o como

uma produccedilatildeo religiosa de maacute qualidade ou ateacute mesmo subalterna

Para compreendermos o catolicismo popular partimos da expressatildeo de RIBEIRO DE

OLIVEIRA 1985 p 239-240

ldquoO catolicismo popular representa a dominaccedilatildeo pessoal como uma reproduccedilatildeo terrena das relaccedilotildees que ligam o homem a seus protetores celestiaisdesempenham uma funccedilatildeo social importante para a dominaccedilatildeo senhorial uma vez que ele a identifica como a ordem do mundo desejada por Deusrdquo

Na esfera do catolicismo popular existe a figura do conselheiro que passa a reproduzir a

dominaccedilatildeo pessoal como um protetor O catolicismo popular sertanejo eacute uma das formas do

catolicismo popular e tem a sua funcionalidade a partir da figura nuclear que satildeo as devoccedilotildees

aos santos Dito de outra maneira esse catolicismo pode ser definido usando a expressatildeo

popular de existe ldquomuita reza pouca missa muito santo pouco padrerdquo

Pierre Bourdieu (1974 p 27-98) em seu artigo ldquoGecircnese e Estrutura do Campo Religiosordquo

diz que esse esquema de representaccedilotildees e praacuteticas religiosas por meio das quais um valor

religioso eacute dado ao mundo e agrave vida humana resultando numa possiacutevel polarizaccedilatildeo entre a

atividade anocircnima e a atividade coletiva Com a atividade anocircnima todos os componentes do

grupo dominam de forma satisfatoacuteria os esquemas das representaccedilotildees religiosas que satildeo

adquiridas por familiaridade Eacute um serviccedilo religioso de autoconsumo pois os produtores satildeo os

mesmos consumidores possibilitando o estreitamento com os sistemas miacutetico-rituais de

sociedades simples e das ldquoreligiotildees popularesrdquo Com a atividade coletiva acontece que os

agentes religiosos satildeo socialmente oficializados e somente eles podem manejar o conjunto de

conhecimentos normas e rituais enquanto os outros membros do grupo estatildeo limitados a

consumir esse trabalho religioso sofisticando e separando os agentes religiosos dos ldquoleigosrdquo

115 ldquoA identificaccedilatildeordquo do Nordeste e mesmo do SemiAacuterido Nordestino como uma regiatildeo problema eacute simplista diante da heterogeneidade da economia da regiatildeo (LIMA Joseacute Fernandes (Org) Uma proposta de desenvolvimento sustentaacutevel para a regiatildeo de Xingoacute Canindeacute de Satildeo Francisco Instituto de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico de Xingoacute 2003 p 19) 116 Agreste (do latim relativo ao campo campestre) designa uma aacuterea na Regiatildeo Nordeste do Brasil de transiccedilatildeo entre a Zona da Mata e o Sertatildeo Estendendo-se numa vasta aacuterea dos Estados da Bahia Sergipe Alagoas Pernambuco Paraiacuteba e Rio Grande do Norte A aacuterea ocupada pelo Ageste situa-se numa estreita faixa paralela agrave costa Poreacutem eacute uma aacuterea sujeitas a SECAS (Cf httpptwikipediaorgwikiAgreste)

O catolicismo popular sertanejo tem costumes proacuteprios e vive a sua maneira com o miacutenimo

de sacramentos e teorizaccedilotildees e com o maacuteximo de devoccedilotildees rezas procissotildees romarias e santos

intermediadores da salvaccedilatildeo As devoccedilotildees aos santos na cultura popular sertaneja se apresentam

como resposta para dar sentido a sua vida Surge daiacute a importacircncia do conselheiro na vida dos

sertanejos do Nordeste brasileiro Haacute uma fragmentaccedilatildeo deste tipo de catolicismo popular

sertanejo quando recebe uma accedilatildeo repressiva e utilizante face ao catolicismo oficial Essa

repressatildeo por parte da cultura oficial ocorre sobretudo em natildeo pretender compreender os

diversos elementos significativos que compotildeem esse catolicismo estabelecendo uma dicotomia

cultural que se exprime na existecircncia de uma cultura oficial dominante e outra meramente

popular e muitas vezes considerada como algo perifeacuterico e supersticioso Para tanto ambas as

culturas relacionam-se numa contiacutenua tensatildeo sendo que a cultura oficial acaba provocando

continuamente dois posicionamentos agrave cultura natildeo-oficial a repressatildeo e a utilizaccedilatildeo

As devoccedilotildees aos antigos conselheiros como o padre Ibiapina o beato Antocircnio Conselheiro

o padre Ciacutecero e frei Damiatildeo ocorreram a partir do esquema da tipologia do catolicismo

sertanejo Esse fenocircmeno religioso do conselheiro no catolicismo popular da cultura Nordestina

tem as suas raiacutezes mais profundas na cultural africana e indiacutegena daiacute o nascedouro onde o

conselho eacute de extrema importacircncia na vida das pessoas mesmo com as dependecircncias que ele

pode causar mesmo assim o conselho eacute considerado um grande valor que impulsiona as pessoas

para o ajustamento da conduta moral e espiritual

Do Padre Ibiapina (1806-1883) o povo recorda pouco mas as instituiccedilotildees que ele deixou

testemunham o seu papel de conselheiro e pai espiritual do seu povo Do beato Antocircnio Vicente

Mendes Maciel (1830-1897) todos os devotos e peregrinos eram atraiacutedos pelo poder dos seus

conselhos pelo lenitivo que lhes podia proporcionar E todos os chamavam de Santo

Conselheiro ldquoque vai desempenhar o papel de liacuteder carismaacuteticordquo desembocando no movimento

de Canudos Jaacute com o padre Ciacutecero Romatildeo Batista (1844-1934) sendo ele impedido de exercer

a sua atividade pastoral sobretudo na administraccedilatildeo dos Sacramentos estando suspenso de

ordem teve que realizar um trabalho que identificou com a accedilatildeo do padre Ibiapina exercendo a

funccedilatildeo de conselheiro Com Frei Damiatildeo acontece que ele natildeo eacute tatildeo lembrado na cultura

nordestina como pregador quanto como conselheiro e confessor O povo natildeo recorda os temas

das pregaccedilotildees do Frei Damiatildeo mas sim os conselhos Atraveacutes da figura do conselheiro na

cultura nordestina frei Damiatildeo soube alimentar muito bem o cotidiano e organizar a vida do

povo sertanejo no seu agir Somente para exemplificar a importacircncia dos conselhos de Frei

Damiatildeo vejamos a fala de Maria Garcia Vieira com 60 anos idade solteira tida pela

comunidade local como conselheira e professora aposentada da cidade de Nossa Senhora das

Dores Sergipe Cidade em que Frei Damiatildeo pregou santa missatildeo na deacutecada de 80

A entrevistada declarou que Frei Damiatildeo ldquosuavizava a vida das pessoas mais sofridas com seus

conselhos orientaccedilotildees e mostrando ao peregrino que ele tinha condiccedilotildees superar as dificuldades da

vida Era uma pessoa serena e muito paciente com os peregrinos Embora existiam momentos que ele

tinha uma catequese forte digo sendo interpretado por algumas pessoas como um conservador ou

mesmo missionaacuterio rigoroso Jaacute confessei com ele e recebi orientaccedilotildees seguras Mas eu acolhia como

verdade e que ia de encontro ao meu ponto de vista Esse acolhimento acontecia pelo desejo que eu tinha

de mudanccedila e ele teve a coragem de ser autecircntico e fiel aos princiacutepios da Doutrina Cristatilde Eu acredito

que ele era um disciacutepulo do padre Ciacutecero Noacutes acreditamos nisso O sertanejo crer porque vive mais

proacuteximo da natureza Devido ao seu espiacuterito em sintonia com Deus e automaticamente acolhendo a

palavra dos profetas Eu creio nele como um profeta humano e inspirado em Deusrdquo

Conforme constataccedilatildeo da entrevista a tese aponta de que o povo natildeo guarda lembranccedila

sobre os assuntos das suas pregaccedilotildees nas santas missotildees mas sim dos seus conselhos que o frade

dava aos romeiros e devotos Eacute interessante notar que o sucesso de Frei Damiatildeo como

conselheiro se encontra na forma como abordava as pessoas A sua fala era mansinha e ao peacute do

ouvido do confessado Chegando o povo a dizer que ele era um ldquohomem santordquo O fato eacute que

depois de 20 anos de sua chegada ao Nordeste brasileiro em 1931 jaacute na deacutecada de 50 Frei

Damiatildeo de Bozzano eacute tido pelos sertanejos como um conselheiro respeitado e consagrado

passando a orientar o povo em problemas da vida

Atraveacutes da devoccedilatildeo dos sertanejos do Nordeste brasileiro Frei Damiatildeo foi transformado de

missionaacuterio da ordem dos capuchinhos para engajar-se na linha dos conselheiros existentes na

cultura nordestina pois soube alimentar muito bem o cotidiano e organizar a vida do povo

sertanejo no seu cotidiano Surge portanto daiacute a necessidade do conselheiro dentro do

imaginaacuterio religioso e cultural do povo sertanejo valorizando e resgatando as suas histoacuterias as

suas devoccedilotildees aos santos os seus benditos e as suas rezas e cantos Os conselhos dados pelo

frade aos sertanejos tinham uma contingecircncia humana que eram passiacuteveis de sofrimento e tendo

como orientaccedilatildeo central ajustar aos sertanejos para o caminho da bondade e da mansidatildeo

alcanccedilando a salvaccedilatildeo da alma A sua funccedilatildeo era o de exercer esse papel de aconselhador que

impulsionasse as pessoas a encontrar o caminho que levava ao ceacuteu

Para tanto os conselhos de Frei Damiatildeo natildeo tinham nada de anormal da matriz dos antigos

conselheiros Os seus conselhos eram guiados pelo bom senso comum que todo confessor saacutebio

tem contudo pelo fato de serem pronunciados pela boca do frade lhes dava um valor maior

uma enorme relevacircncia O catolicismo popular sertanejo existe e se desenvolve num contexto

humano determinado numa inter-relaccedilatildeo com o espaccedilo geograacutefico seu momento histoacuterico e

tambeacutem com o meio ambiente social concreto Isso demarca que o catolicismo popular eacute

dependente do seu contexto e executa sobre ele alguma espeacutecie de influecircncia Eacute assim que o

sertanejo do Nordeste brasileiro ao longo dos anos apropriou-se dessa figura do Conselheiro via

substrato religioso que foi sendo transmitido de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo particularmente nas

classes populares atraveacutes da presenccedila marcante dos antigos missionaacuterios e beatos

A demonstraccedilatildeo deste catolicismo popular sertanejo face ao desempenho do conselheiro

Frei Damiatildeo no Nordeste brasileiro deve ser analisado como uma praacutetica religiosa ldquodistintardquo do

catolicismo oficial O catolicismo popular sertanejo seria o uacuteltimo e uacutenico suspiro que dar

sustentaccedilatildeo a sua vida e consequentemente a uacutenica expressatildeo da proacutepria auto-afirmaccedilatildeo que

restou aos sertanejos Nesse contexto Frei Damiatildeo eacute um conselheiro forte do catolicismo

popular sertanejo que corporiza a heranccedila cultural do povo

Eacute evidente que tudo isso vai acontecer num determinado contexto histoacuterico A segunda

metade do seacuteculo XIX foi uma eacutepoca de crise que asola mais duramente o Nordeste devido a

economia escravista da cana-de-accedilucar com a extinccedilatildeo do traacutefico negreiro A lavoura do cafeacute no

sul torna-se o principal equiliacutebrio das exportaccedilotildees do paiacutes Visto que a cana-de-accedilucar e o

algodatildeo entram em decadecircncia no Nordeste devido agrave concorrecircncia norte-americana e das

Antilhas Daiacute que para sanar as diacutevidas os senhores do Nordeste vendiam seus escravos para os

fazendeiros do cafeacute passando a intensificar a exploraccedilatildeo dos camponeses que viviam em suas

terras (RIBEIRO DE OLIVEIRA 1985 p 241) Daiacute o entendimento de que o sertanejo busca

na figura do conselheiro uma maneira de amenizar os seus problemas que na maioria das vezes

dificilmente conseguiria resolver sem o auxiacutelio da devoccedilatildeo aos santos

Isso demonstra que o catolicismo popular eacute um rico espaccedilo de liberrdade e de autonomia

em que o sertanejo sente poder mover-se na comunidade Entatildeo seja uma febre uma dor de

cabeccedila uma mordida de cobra e se natildeo haacute meacutedicos na comunidade ele acaba recorrendo agrave

benzedura e a feiticcedilaria Fica claro que o catolicismo popular sertanejo existe para uma ampla

camada da populaccedilatildeo nordestina localizada numa regiatildeo do semiaacuterido e que a sua

manifestaccedilatildeo religiosa estaacute em comum acordo com os anseios de liberdade buscando com isso

escapar ao menos momentaneamente ao pesado fardo do cotidiano bem como agrave pressatildeo riacutegida

da estrutura poliacutetico-social dominante

O ambiente faz o homem Embora o homem natildeo seja somente produto do seu meio este

vem a influenciar e a forjar sua personalidade Tal eacute o caso dos sertanejos que satildeo filhos do

sertatildeo Eacute triste e surpreendente a paisagem comburida do Nordeste Secularmente a sua

vegetaccedilatildeo eacute castigada pelas queimadas A terra fica exposta a voracidade do fogo durante as

queimadas causando a infertilidde do solo O clima eacute instaacutevel com as perioacutedicas secas

perdendo a sua primitiva flora e fauna A cultura do Nordeste tem a sua origem atraveacutes de duras

lutas do homem do campo ora em defesa da propriedade ora pelo domiacutenio poliacutetico Na

verdade todo Nordeste eacute uma soacute comunidade cimentada em passado de sofrimentos heroacuteicos e

tradiccedilotildees comuns Satildeo os rincotildees sertanejos com a profissatildeo do vaqueiro que vai passando de

pai para filho durante muitas geraccedilotildees A vida de vaqueiro eacute uma vida de risco e surpresas

talvez por isso cheia de encanto para a civilizaccedilatildeo sertaneja Sertatildeo em si mesmo eacute monoacutetono

Toda a natureza eacute uma lentidatildeo O ser humano o cavalo o boi a cabra todos andam sem

pressa Lento satildeo os gestos lentas satildeo as rezas as ladainhas os cantos os passos Lentas satildeo as

conversas das histoacuterias que parecem natildeo ter fim Natildeo haacute pressa nessa natureza ardente e hostil

que aprendeu a esperar a morosidade com que as sombras da noite e da morte caem sem cessar

sobre a realidade e as pessoas As linhas que se seguem tem a intenccedilatildeo de realccedilar como os

sertanejos reagem diante da natureza da salvaccedilatildeo da morte do pecado do sobrenatural pois

certamente satildeo o resultado do realismo da observaccedilatildeo da cultura popular do Nordeste

Numa cultura marcada pela seca eacute comum que as pessoas rezem para chover Aliaacutes pedir

chuva eacute um ato eminentemente humano e milenar conhecido As mortificaccedilotildees ocorrem entre os

penitentes que ficam agrave noite rezando nas encruzilhadas em torno das cruzes se agrupam numa

agitaccedilatildeo macabra de flaglantes impondo-se o ciliacutecio dos espinhos das urtigas e outros duros

tratos de penitecircncia (CUNHA 1967 p 110) Satildeo os penitentes com as suas recomendaccedilotildees das

almas que ocorrem na eacutepoca da quaresma e semana santa As praacuteticas do catolicismo popular

sertanejo das curas atraveacutes da benzeccedilatildeo eacute um fenocircmeno corriqueiro nas comunidades do

Nordeste Pode rezar para curar uma bicheira de animal na mairia das vezes nem precisa ver o

animal doente curando simplesmente pelo rastro Geralmente o benzedor ou a benzedera diz

natildeo vir dele ou dela o poder de curar mas vem de Deus ou ateacute um santo que eacute invocado na hora

da benzeccedilatildeo

A praacutetica da benzeccedilatildeo estaacute ligada ao catolicismo popular e tambeacutem pela medicina caseira

Ou mesmo ligada agraves simpatias que se datildeo no niacutevel material Talvez que o nuacutemero de mulher

benzedeira seja maior do que o de homem Essa praacutetica pode ser explicada devido ser a mulher

mais atenta aos ritos O segredo das palavras sagradas Eacute evidente que no ato de benzer aleacutem

do poder sagrado das palavras necessariamente estatildeo presentes elementos da Natureza a aacutegua

o fogo o ar a terra e a vegetaccedilatildeo Estes elementos segundo a tradiccedilatildeo tecircm a propriedade de

domiacutenio do mal Podemos afirmar que ascendecircncia do conselheiro sobre a cultura sertaneja do

Nordeste brasileiro se baseia em primeiro lugar na habilidade pessoal de cada conselheiro em

aproveitar as tradiccedilotildees populares oriundas da corrente indiacutegena e africana

Ateacute os dias atuais os sertanejos gostam de tomar conselhos principalmente daqueles que

eles consideram ser bom conselheiro Pode ser um sacerdote um pai de santo uma benzedeira

uma parteira uma catequista um curandeiro enfim algueacutem que inspira uma certa

confiabilidade e habilidade na arte de aconselhar

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CERTEAU M de Cultura popular e religiosidade popular Cad do CEAS 40 novdez 1975

BOZZANO Frei Damiatildeo de Em Defesa da Feacute Recife Paulinas 1955 MOURA Abdalaziz Frei Damiatildeo e os impasses da religiatildeo popular Petroacutepolis Vozes 1978

OLIVEIRA Pedro Ribeiro Religiatildeo e dominaccedilatildeo de classe gecircnese estrutura e funccedilatildeo do

catolicismo romanizado no Brasil Petroacutepolis Vozes 1985 347 p

____ Religiosidade Popular na Ameacuterica Latina REB Petroacutepolis Vozes 32126 junho de 1972

GT Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia EMENTAS A perspectiva espiacuterita diante da globalizaccedilatildeo tecno-cientiacutefica Andreacute Andrade Pereira Neste trabalho buscamos avaliar qual a postura do Espiritismo diante da Globalizaccedilatildeo em especial com relaccedilatildeo ao totalitarismo da tecno-ciecircncia O objetivo deste trabalho eacute mostrar que se haacute um otimismo com relaccedilatildeo ao progresso das teacutecnicas e das ciecircncias o espiritismo estaacute permanentemente preocupado com as questotildees de finalidade Na diferenciaccedilatildeo proposta por Garaudy entre ciecircncia e sabedoria o espiritismo estaria buscando constituir-se como uma sabedoria espiritual Uma ciecircncia holista e espiritualista campo de um feacutertil diaacutelogo ocidente-oriente mantendo a conexatildeo entre a produccedilatildeo teacutecnica de conhecimento e as exigecircncias eacuteticas da humanidade o espiritismo traz a pretensatildeo de ser natildeo soacute uma ciecircncia mas uma sabedoria que entende a ciecircncia e a teacutecnica como meios e o pleno desenvolvimento humano como fim Religiatildeo ciecircncia e tecnologia dos distanciamentos agraves aproximaccedilotildees no pensamento social brasileiro contemporacircneo Silas do Carmo Delfino Este trabalho pretende somar esforccedilos as pesquisas sobre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo O primeiro momento consiste na tentativa de encontrar definiccedilotildees razoaacuteveis sobre o que representam os conceitos de ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo Desde as designaccedilotildees etimoloacutegicas dos termos ateacute as alteraccedilotildees e variaccedilotildees do sentido original resultantes das transformaccedilotildees sociais e apropriaccedilotildees indevidas destes termos O segundo momento consiste na tentativa de encontrar os distanciamentos e as aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no pensamento social brasileiro contemporacircneo Aspectos tiacutepicos da feacute e da eacutetica da religiatildeo satildeo capazes de proporcionar dois tipos de reaccedilotildees aceitaccedilatildeo ou a rejeiccedilatildeo E no terceiro momento conclui-se que a consonacircncia entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no Brasil possibilita a existecircncia de um mundo concreto mais solidaacuterio Deus na era digital miacutedia e linguagem religiosa Leomar Brustolin A pesquisa visa estudar aspectos teoloacutegicos e comunicativos da linguagem para analisar o impacto da miacutedia sobre a religiosidade catoacutelica brasileira dos uacuteltimos anos especialmente atraveacutes dos programas televisivos Busca identificar as mudanccedilas de atitudes e de conceitos que a comunicaccedilatildeo virtual do sagrado estabelece e apresentar limites e possibilidades dessa nova forma de viver a feacute catoacutelica no paiacutes Ciborgue e imortalidade da carne tecnologia e ressurreiccedilatildeo da carne Oscar R Chemello A pesquisa tem como tema a ressurreiccedilatildeo da carne como dom salvaccedilatildeo e sanaccedilatildeo de Deus para o corpo humano fraacutegil e mortalReflete-se sobre a possibilidade do poacutes-humano em que com a intervenccedilatildeo da biotecnologia espera-se tambeacutem superar a fragilidade da natureza O

humano exercendo sua vocaccedilatildeo de co-criador aprimorando a natureza e buscando superar toda fragilidade e mortalidade humana Poreacutem esta busca possui seu aspecto de condenaccedilatildeo do corpo e negaccedilatildeo da proacutepria fragilidade Com a salvaccedilatildeo vinda de Deus aceita-se a fragilidade aleacutem de receber a sanaccedilatildeo da carne natildeo na impessoalidade teacutecnica mas na relaccedilatildeo de Deus Principais autores Juumlrgen Moltmann e Ruiz de la Pentildea Do real ao virtual a corporeidade humana na poacutes-modernidade Juliana Hermont de Melo O fenocircmeno poacutes-moderno da ldquoespetacularizaccedilatildeo do corpordquo e sua interface com a vulnerabilizaccedilatildeo do humano representam um dos desafios postos agrave religiatildeo pela biotecnologia Neste sentido objetiva-se analisar o processo pelo qual a corporeidade assume o papel de mercadoria na poacutes-modernidade e depreender as consequumlecircncias deste cenaacuterio para a compreensatildeo da identidade humana como imagem e semelhanccedila de Deus A globalizaccedilatildeo da tecnologia e as novas configuraccedilotildees do espaccedilo religioso Omar Lucas Perrout Fortes de Sales O processo de globalizaccedilatildeo atual difunde a tecnologia sendo por ela globalizado Apresenta aos povos uma multiplicidade de recursos tecnoloacutegicos veios portadores dos ditos ldquobens da globalizaccedilatildeordquo Por tratar-se de realidade excludente a globalizaccedilatildeo possibilita o desfrute de tais benefiacutecios a poucos atores sociais As inovaccedilotildees tecnoloacutegicas tecem nova realidade por meio do espaccedilo da circulaccedilatildeo de ideias cultura desencontros e pertenccedila (espaccedilo usado) Transfiguram-se as relaccedilotildees do ser humano sob vaacuterios aspectos O espaccedilo religioso compotildee este cenaacuterio Interessa-nos abordar os impactos da unicidade da teacutecnica sobre o espaccedilo religioso bem como suas reaccedilotildees positivas e negativas Traccedilar o perfil da realidade atual permite apontarmos caminhos de reflexatildeo para posicionamento criacutetico e coerente Bioeletrografia em participantes de reuniotildees mediuacutenicas Marileuza Fernandes Correia de Lima Maria do Socorro Sousa Wallace Ferreira de Souza A Bioeletrografia compreende o registro fotograacutefico do halo luminoso que existe ao redor dos corpos dos seres vivos e eacute utilizada na anaacutelise de estados alterados de consciecircncia As reuniotildees mediuacutenicas se caracterizam por estabelecer esses estados como forma de acesso ao denominado mundo espiritual Elas satildeo compostas por meacutediuns que exercem papeacuteis de incorporador passista dialogador e um coordenador Essa investigaccedilatildeo apresenta um estudo experimental tomando como padratildeo kirliangraacutefico o modelo desenvolvido por Newton Milhomens Foi aplicada em vinte participantes de reuniotildees de desenvolvimento mediuacutenico que se submeteram a essa tecnologia antes do iniacutecio da reuniatildeo e apoacutes o encerramento Os resultados apontam alteraccedilotildees significativas no halo luminoso em termos grupais e individuais

GT Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia TEXTOS A perspectiva espiacuterita diante da globalizaccedilatildeo tecnoloacutegica

Andreacute Andrade Pereira

Introduccedilatildeo

O seacuteculo XXI abre o terceiro milecircnio com uma imensa esperanccedila de entendimento e

paz entre os povos de despertar de coraccedilotildees e mentes para a promoccedilatildeo da vida e da dignidade

do ser humano podendo se tornar o seacuteculo em que veremos o fim da fome das guerras dos

preconceitos e da destruiccedilatildeo inconsequumlente da natureza Estudiosos apontam que esse seraacute o

seacuteculo da sensibilidade e da arte o que possibilitaraacute o desenvolvimento do sentimento humano

da intuiccedilatildeo abrindo a possibilidade de se alcanccedilar um novo patamar de hominizaccedilatildeo

Nunca antes na histoacuteria o homem dispocircs de condiccedilotildees teacutecnicas que lhe permitissem o

intenso fluxo de comunicaccedilotildees trocas materiais e espirituais entre todos os lugares do globo de

tal forma a dar a impressatildeo de estarmos todos vivendo em um soacute tempo em um soacute espaccedilo e

numa mesma loacutegica de sobrevivecircncia e interdependecircncia O homem cada vez mais percebe a

Terra como a casa comum a todos e jaacute comeccedila a despertar para a necessidade de preservar as

fontes de vida e as fontes de riquezas culturais e espirituais desenvolvidas ao longo dos

seacuteculos pelos diferentes povos

Estatildeo sendo dados os primeiros passos do projeto de humanidade vista agora como

uma soacute famiacutelia sobre a Terra e satildeo infinitas as possibilidades de configuraccedilatildeo social poliacutetica

econocircmica cultural e espiritual desta verdadeira oikoumene A consciecircncia de que todos

partilhamos um destino comum nesse pequeno planeta azul em viagem pelo espaccedilo abre novos

horizontes e novas exigecircncias eacuteticas para a vida social O desafio que se apresenta eacute o da paz da

compreensatildeo da preservaccedilatildeo da vida da justiccedila e da realizaccedilatildeo dos projetos de vida de todos e

de cada um

A construccedilatildeo de uma convivecircncia paciacutefica da aceitaccedilatildeo e respeito universal aos

direitos humanos e da preservaccedilatildeo da vida do planeta no entanto dependeraacute de algo mais do

que das possibilidades abertas pela tecnologia e pelas conquistas do conhecimento cientiacutefico

PPCIR - UFJF

Para alcanccedilar o horizonte de realizaccedilotildees acalentados nos sonhos de tantos lutadores e

missionaacuterios dos seacuteculos anteriores seraacute preciso o aprendizado da arte de dialogar de

compreender e sobretudo de amar

Verdade seja dita ao mesmo tempo em que os homens experimentam uma abertura de

possibilidades de amorizaccedilatildeo e compaixatildeo universais nosso tempo tem sido marcado pelos

fundamentalismos por uma completa ausecircncia de diaacutelogo pela imposiccedilatildeo de dogmatismos

econocircmicos poliacuteticos e religiosos Testemunhamos uma ausecircncia de muacutetuo entendimento um

empobrecimento da sensibilidade uma ausecircncia de compaixatildeo uma aceitaccedilatildeo da atitude de

desprezo pelo outro e por toda parte falta o desenvolvimento maduro da capacidade humana de

amar

O quadro atual se torna mais grave na medida em que as energias humanas que

poderiam ser utilizadas no desenvolvimento de qualidades espirituais tais como a compaixatildeo a

toleracircncia a reverecircncia pela vida o amor estatildeo embotadas graccedilas agrave imposiccedilatildeo de um

pensamento uacutenico que seduz e conquista coraccedilotildees e mentes para valores anti-humanistas tais

como o egoiacutesmo a competitividade o materialismo a cobiccedila o consumismo o inchaccedilo do

racionalismo em detrimento da sensibilidade o narcisismo dentre outros

O fasciacutenio pela tecno-ciecircncia a crenccedila idolaacutetrica nos mecanismos do sistema de

mercado a aceitaccedilatildeo da vida acelerada das grandes metroacutepoles satildeo o substrato ideoloacutegico

idolaacutetrico mesmo que legitimam socialmente a expansatildeo mundial do sistema capitalista

levando consigo as naturais externalidades do sistema geraccedilatildeo de pobreza desigualdade

fragmentaccedilatildeo solidatildeo corrupccedilatildeo e violecircncia

Um diagnoacutestico atual de nossa condiccedilatildeo mundial foi dada por Thich Nhat Hanh um

monge budista indicado por Martin Luther King Jr ao precircmio Nobel da Paz Fundador do

budismo engajado por descobrir a possibilidade de se praticar a contemplaccedilatildeo e a meditaccedilatildeo

enquanto socorriam as viacutetimas da Guerra do Vietnatilde e pela atitude amorosa de meditar em

benefiacutecio de americanos e vietnamitas ele disse que a humanidade hoje se assemelha a um

homem montado num cavalo em disparada e que ao ser perguntado Para onde vocecirc estaacute

indo ele responde Natildeo sei pergunte ao cavalo

Essa seria a imagem da humanidade diante da inevitaacutevel expansatildeo da estrutura social

capitalista cujo destino eacute determinado impessoalmente pelas engrenagens de funcionamento da

proacutepria estrutura e assim ao que tudo indica ningueacutem parece se responsabilizar pelo

crescimento da produccedilatildeo mundial de armamentos pelas viacutetimas da violecircncia nas grandes

cidades pela expansatildeo do traacutefico de drogas pelos acidentes que matam rios e incendeiam as

florestas e pelo silencioso e crescente desemprego estrutural Satildeo os impessoais caacutelculos

maximizadores das curvas de oferta e demanda diratildeo os crentes do sistema de mercado satildeo os

resultados da neutra eficiecircncia tecnoloacutegica diratildeo os crentes da tecno-ciecircncia E tudo parece

caminhar bem segundo a loacutegica do discurso hegemocircnico

A Globalizaccedilatildeo como Totalitarismo

Uma das caracteriacutesticas da globalizaccedilatildeo atual eacute a expansatildeo impositiva de uma

racionalidade especiacutefica absolutizada como a uacutenica contra a qual natildeo se teriam alternativas

Nesse periacuteodo o mercado e a teacutecnica ditam as regras mais que a reflexatildeo humana que natildeo sabe

mais ateacute onde vai a responsabilidade de seus atos O ator econocircmico natildeo se sente responsaacutevel

pelo que ocorre no restante da cadeia produtiva em que se insere O usuaacuterio da tecnologia vecirc sua

criatividade balizada pelas possibilidades preacute-programadas da maacutequina e jaacute natildeo sabe mais se eacute

produtor ou produto E a subsunccedilatildeo da criatividade teacutecnica aos interesses das grandes

corporaccedilotildees limita ainda mais as possibilidades ateacute mesmo dos criadores e pesquisadores de

novas tecnologias

Milton Santos denomina esse periacuteodo de Globalitarismo por se tratar do totalitarismo

da racionalidade tecno-cientiacutefica Qualquer racionalidade que fuja a essas premissas consensuais

satildeo apresentados como irracionais irresponsaacuteveis Eacute o pensamento uacutenico da globalizaccedilatildeo que

penetra todas as localidades e domina na razatildeo pela qual eacute desconhecida mas admirada

Frutos da civilizaccedilatildeo e da elaboraccedilatildeo racional mais avanccedilada do homem o mercado

global e a tecnologia parecem fugir ao controle e tomar as reacutedeas da conduccedilatildeo das accedilotildees A

interconexatildeo global e os processos automotivos obrigam a totalidade dos participantes desta

ordem global preacute-programada a aderirem sem questionar sob o risco de estagnarem e natildeo

sobreviverem e entatildeo ningueacutem sabe quem estaacute no controle geral Segundo a ideologia da

globalizaccedilatildeo natildeo se pode viver fora da ordem natildeo se pode recusar a entrada na modernidade E

uma vez inseridos o que implica abdicar da soberania (no caso de paiacuteses) da poliacutetica da

cultura da identidade natildeo se eacute mais dono do proacuteprio destino e a uacutenica accedilatildeo autocircnoma eacute a

ilusoacuteria tentativa de se defender da volatilidade das financcedilas internacionais e da loacutegica

impessoal das maacutequinas

O resultado imediato eacute a diminuiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio eacute a perda da sensaccedilatildeo de

responsabilidade pelos resultados agregados do sistema Se haacute fome desemprego violecircncia e

morte desmatamento aquecimento global natildeo se consegue punir os responsaacuteveis pelo

sofrimento gerado Natildeo eacute por acaso que se vive mundialmente uma crise de impunidade seja

na poliacutetica seja no mundo empresarial ou mesmo na conduta cotidiana As regras mais

importantes os coacutedigos de eacutetica que contam natildeo estatildeo mais na esfera da decisatildeo humana satildeo

os criteacuterios neutros e impessoais da eficiecircncia econocircmica e teacutecnica

Nesse paradigma uma vez cortado o mecanismo de responsabilizaccedilatildeo pelos atos a

sociedade tende a regredir a voltar agrave infacircncia E como aparentemente ningueacutem eacute diretamente

responsaacutevel natildeo se sabe como corrigir os rumos O mundo teacutecnico e econocircmico tende a nos

levar a uma cataacutestrofe anunciada e como as accedilotildees satildeo apresentadas como difusas e impessoais

espera-se a trageacutedia qual se fora uma cataacutestrofe natural

Se a sociedade se infantiliza o humano se atrofia embota-se a sensibilidade e o

entendimento e sente-se impotente em dirigir as accedilotildees com vistas a um fim Em pleno periacuteodo

das maiores conquistas da humanidade no campo da ciecircncia e da tecnologia vive-se a

generalizaccedilatildeo do analfabetismo emotivo a insensibilidade o descaso a alienaccedilatildeo O homem

atraveacutes das tecnologias de informaccedilatildeo accedilambarca o mundo mas sente-se soacute desconhece seus

vizinhos mais proacuteximos perde a capacidade de comunicar-se com seus familiares e natildeo conhece

o significado das palavras amigo e confianccedila

O Globalitarismo gera a fragmentaccedilatildeo uma vez que a loacutegica global vecircm de cima

perdendo-se a horizontalidade das relaccedilotildees e os homens tornam-se ilhas A crise do sentido de

vida eacute tambeacutem a crise do sentido de sociedade de agrupamento de coletividade eacute a era da

solidatildeo No tempo do discurso tecno-cientiacutefico da realidade prioriza-se a fala dos especialistas

Povo natildeo tem voz natildeo sabe natildeo tem o que dizer Fecha-se os ouvidos e os olhos uns para os

outros e espera-se o anuacutencio da verdade racional pelos meios globais de comunicaccedilatildeo

Onde a Esperanccedila

O otimismo se pergunta pelas saiacutedas Retirar o homem atual da indiferenccedila ainda que

no contexto de grandes cidades e complexa divisatildeo do trabalho eacute tarefa que possivelmente soacute

seraacute levada a frente se houver um questionamento radical da cultura ocidental que se expande

por todo o mundo globalizado para romper a mutilaccedilatildeo do homem de si mesmo e redescobrir

sua inexauriacutevel riqueza interior

A noccedilatildeo de compaixatildeo exige que se decirc menos ecircnfase ao criteacuterio de racionalidade que

impera no ocidente e nos mecanismos econocircmicos globais em favor do sentimento e das

emoccedilotildees A anaacutelise que Georg Simmel faz sobre a filosofia do dinheiro mostra como as

relaccedilotildees mercantis exigem que os homens se alienem de seus sentimentos e do ldquoeu profundordquo

para dar conta das operaccedilotildees quantitativas com as quais se defronta O mesmo alerta Garaudy

para quem a racionalidade exclui a interioridade do homem e esta eacute a principal caracteriacutestica

do mundo ocidental que precisamos romper ao nos abrir para outras formas de espiritualidade

o erro baacutesico () estaacute em crer que podemos reencontrar o homem em sua plenitude e

transcendecircncia sem romper com nossa cultura ocidental117

Com relaccedilatildeo a isso vale a pena narrar uma experiecircncia muito interessante O psicoacutelogo

Ouspensky foi da Ruacutessia a Paris passar um tempo de aprendizado com o grande saacutebio Gurdjeff

O mestre o recebeu em seu apartamento jaacute dizendo que precisavam imediatamente comeccedilar a

trabalhar Sendo uma sexta-feira disse-lhe que passaria o fim de semana na casa de uns amigos

e que Ouspensky deveria ficar em seu apartamento ateacute que ele voltasse na segunda-feira e que

deveria seguir estritamente as seguintes recomendaccedilotildees natildeo poderia abrir as janelas nem ligar

o raacutedio deveria guardar o silecircncio diante de si mesmo e olhar profundamente para sua proacutepria

vida

Na segunda-feira como combinado Gurdjeff buscou Ouspensky em seu apartamento

e o convidou para um passeio pelas ruas da cidade luz Caminharam silenciosamente por um

tempo e Ouspenspky olhava espantado para os transeuntes ateacute que segurando o saacutebio pelo

braccedilo exclamou

Mestre parece que estatildeo todos dormindo andando como sonacircmbulos pelas ruas Tenho niacutetida impressatildeo de que soacute noacutes estamos despertos noacutes dois E Gurdjeff respondeu Que bom disciacutepulo vocecirc eacute Esta eacute a primeira liccedilatildeo que precisamos aprender a maior parte da humanidade estaacute sonacircmbula no mundo precisamos encontrar modos de despertaacute-la para a vida118

Esta redescoberta da interioridade como mecanismo de potencializar um outro modo

de vida compartilha a intuiccedilatildeo miacutestica de que a parte mais iacutenfima da alma eacute mais nobre que a

parte mais alta do ceacuteu119

Se a evoluccedilatildeo eacute um fato ainda que as estruturas sociais aprisionem o impulso criativo

e evolutivo das capacidades humanas em algum momento a forccedila de vida e de liberdade daraacute

seu grito de rebeldia

Quais seratildeo os mecanismos pelos quais a humanidade voltaraacute a ser dona de seu

destino Como o homem cuidaraacute dos fins das suas accedilotildees utilizando a tecnologia como um

meio Que tipo de controle social seraacute estabelecido sobre as movimentaccedilotildees econocircmicas de

forma a se estabelecer maiores niacuteveis de equumlidade social

117 Roger GARAUDY Apelo aos vivos p71 118 Regis MORAIS Evoluccedilatildeo humana e fatos histoacutericos p 145 119 Mestre Eckhart

Quando a tecnologia poderaacute cumprir finalmente o objetivo sonhado pelo homem

ampliar o tempo de lazer de dedicaccedilatildeo ao cultivo das faculdades do espiacuterito humano a fruiccedilatildeo

dos relacionamentos

O que o Espiritismo interpelado por essas questotildees urgentes pode fornecer como

pistas a uma saiacuteda civilizatoacuteria Ou seraacute que sua postura modernizante alia-se ao atual domiacutenio

da ideologia tecno-cientiacutefica

O Espiritismo e a tecno-ciecircncia

Eacute bem verdade que o Espiritismo pareceria aprovar o atual mundo tecno-cientiacutefico

especialmente por seu otimismo cientiacutefico e sua busca pelo progresso material e espiritual De

acordo com a perspectiva espiacuterita o mundo tecnoloacutegico trazendo facilidades e bem estar ao

homem moderno seria visto como um gesto da misericoacuterdia do criador que permite ao homem

usufruir e participar da sua atividade criativa O homem auxilia o criador no seu gesto de

modelar o mundo tornando-o mais doacutecil e habitaacutevel mais civilizado e de molde a permitir o

desenvolvimento das faculdades intelectuais e espirituais dos seres humanos

Herdeiro do iluminismo o Espiritismo propotildee a alianccedila da feacute com a razatildeo da ciecircncia

com a religiatildeo e manteacutem aberta a porta de sua proacutepria revisatildeo agrave medida que novas descobertas

cientiacuteficas forem trazendo novas luzes agrave Humanidade Considerando as leis de Deus impressas

no livro da natureza o Espiritismo crecirc na capacidade do esforccedilo humano em desvendar

continuamente os segredos da criaccedilatildeo atraveacutes da ciecircncia e aposta nesse esforccedilo como uma

forma de aproximar o homem do Criador O sucessivo progresso das teacutecnicas uma vez que

permite o sucessivo progresso das culturas e civilizaccedilotildees aproxima continuamente a

Humanidade do Belo do Verdadeiro do Bem Eacute assim que o evolucionismo espiacuterita vecirc o

movimento sucessivo de aproximaccedilatildeo do homem ao Criador nas criaccedilotildees artiacutesticas cada vez

mais belas e harmocircnicas no desvendar das leis naturais no aprimoramento das leis sociais cada

vez mais justas e assim haacute de ser na tecnologia ou seja na forma de se tornar um agente co-

criador do Universo

Arrancando o homem do estado permanente de medo e ansiedade diante das

intempeacuteries naturais tiacutepicas do estado de barbaacuterie e suprindo as necessidades baacutesicas da

civilizaccedilatildeo material o mundo tecnoloacutegico permitiria ao homem viver em seguranccedila e ocupar-se

com as conquistas espirituais Na civilizaccedilatildeo espiritual conceituaccedilatildeo de Kardec de inspiraccedilatildeo

pestalozziana o homem eacute todo um ser moral jaacute que a tecnologia pode resolver o problema da

materialidade da vida e os conflitos selvagens jaacute natildeo possuem mais lugar Certamente na visatildeo

espiacuterita a teacutecnica eacute a ferramenta necessaacuteria na conquista de novos estaacutegios evolutivos na

sucessatildeo das sociedades humanas ao longo da histoacuteria

No entanto se esse otimismo tecnoloacutegico parece coerente com a Doutrina Espiacuterita

essa eacute ainda uma concepccedilatildeo parcial uma vez que a tecnologia natildeo eacute vista como um fim em si

mesma e o Espiritismo estaacute permanentemente preocupado com as questotildees de finalidade Na

diferenciaccedilatildeo proposta por Garaudy entre ciecircncia e sabedoria120 o Espiritismo estaria buscando

constituir-se como uma sabedoria espiritual Diante do uso de uma inovaccedilatildeo teacutecnica o espiacuterita

se perguntaraacute qual a finalidade

O questionamento pela finalidade pelo destino soacute o homem poderia fazer E nesse

caso a criacutetica a idolatria da teacutecnica se faz necessaacuteria antes de tudo Conforme apontou

Garaudy em Deus eacute Necessaacuterio a absolutizaccedilatildeo das novas tecnologias eacute caracteriacutestica do

nosso tempo a despeito do homem A santa alianccedila entre economia de mercado e essa teacutecnica

de informaccedilatildeo realizou-se naturalmente quanto mais uma e outra se fundavam na mesma

concepccedilatildeo redutora e quantitativa do homem e de seu futuro121 E ironiza sobre a capacidade

do computador em dar respostas humanas espirituais que fugissem aos criteacuterios dominantes do

status quo Ele me aconselharaacute a abnegaccedilatildeo de Jesus ou o sacrifiacutecio de Gandhi ou qualquer

outra accedilatildeo que natildeo vise somente a eficaacutecia na dominaccedilatildeo da natureza ou dos homens122

A capacidade humana de inventar e progredir eacute admiraacutevel e isso estaacute mais do que

provado no que diz respeito ao progresso intelectual mas natildeo se negligencia a importacircncia da

eacutetica dos fins humanos do uso da inteligecircncia para o bem de todos Eacute aiacute que mais que aplaudir

a tecnologia o Espiritismo volta os olhos para aquele que a utiliza e indaga como para que

fim para atender a necessidade de todos O Espiritismo mais que uma ciecircncia seria a proposta

de uma revoluccedilatildeo de paradigma evitando a especializaccedilatildeo disciplinar mantendo unidos ceacuterebro

e coraccedilatildeo tecnologia e sensibilidade ciecircncia e sabedoria

Uma revoluccedilatildeo de paradigma cientiacutefico

Na verdade a proacutepria concepccedilatildeo de ciecircncia espiacuterita eacute de uma ciecircncia sem os

reducionismos das ciecircncias positivistas do seacuteculo XIX Nascida da anaacutelise de fenocircmenos

espirituais a ciecircncia espiacuterita jaacute daacute mostras de ser natildeo soacute uma outra ciecircncia mas uma outra

forma de fazer ciecircncia uma ruptura de paradigma A proposta de Kardec eacute a de uma nova forma 120 A sabedoria estaria ligada agraves questotildees de finalidade enquanto a ciecircncia seria um meio 121 Roger GARAUDY Deus eacute necessaacuterio p18 122 ibid p18

de ciecircncia porque leva em conta a um soacute tempo a observaccedilatildeo empiacuterica dos fenocircmenos a

racionalidade e a revelaccedilatildeo espiritual A ciecircncia espiacuterita procura conhecer a realidade atraveacutes da

observaccedilatildeo da razatildeo e da revelaccedilatildeo em que cada uma controla a outra num campo aberto sem

dogmatismo e sem sistematizaccedilatildeo fechada

A interferecircncia do mundo espiritual eacute assumida explicitamente na construccedilatildeo do

pensamento humano sob o controle da racionalidade e isso por si soacute eacute uma inovaccedilatildeo sem

precedentes no acircmbito das ciecircncias e das religiotildees O Espiritismo eacute na definiccedilatildeo de Dora

Incontri ldquoum grande debate de ideacuteias em que os espiacuteritos encarnados e desencarnados

participamrdquo123 Trata-se sem duacutevida de uma revoluccedilatildeo no paradigma cientiacutefico

Este eacute inclusive um contraponto central do Espiritismo ao mundo moderno Apesar

de nascer das entranhas do Iluminismo a Doutrina Espiacuterita sempre se recusou a um lugar de

mera disciplina cientiacutefica ou mais uma filosofia que natildeo ousa extrapolar meros limites

determinados ou mais um conjunto de interpretaccedilatildeo religiosa fechado em si mesmo Pelo

contraacuterio ao se apresentar como simultaneamente ciecircncia filosofia e religiatildeo e persistir neste

aspecto triacuteplice ao longo dos anos a Doutrina Espiacuterita conservaria um caraacuteter abrangente e

totalizante em sua visatildeo da realidade verdadeiramente uma cosmovisatildeo contrariando a

tendecircncia agrave especializaccedilatildeo nas disciplinas cientiacuteficas Segundo Dora Incontri essa abertura foi

mantida graccedilas a formaccedilatildeo ampla que se exige dos pedagogos e Kardec como tal cultivava em

si mesmo esse caraacuteter inter-disciplinar ldquose o codificador tivesse sido um cientista apenas

poderia ter restringido sua abordagem do Espiritismo ao aspecto fenomecircnico Se tivesse sido um

filoacutesofo especializado poderia ter se embrenhado em especulaccedilotildees remotas com linguagem de

difiacutecil acesso E se tivesse sido um religioso profissional poderia ter fundado uma nova

igrejardquo124

E ateacute hoje a doutrina conserva majoritariamente a abrangecircncia de se ligar a todas as

questotildees do conhecimento Tudo que eacute da alccedilada de qualquer ciecircncia de qualquer filosofia de

qualquer fenocircmeno religioso o Espiritismo tem algo a dizer Uma siacutentese do conhecimento

mas uma siacutentese aberta na medida em que o processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento natildeo se

completa

A influecircncia de Mesmer para a visatildeo holista do Espiritismo

Para compreendermos melhor como surgiu esse caraacuteter abrangente da doutrina

espiacuterita natildeo se resumindo ao conjunto de leis que explicam os fenocircmenos das mesas girantes e

das comunicaccedilotildees com os Espiacuteritos eacute preciso conhecer um pouco do seu precursor direto o

magnetismo animal de Franz Anton Mesmer (1734-1815) Nas palavras do proacuteprio codificador

123 Dora INCONTRI Para entender Allan Kardec p 73 124 Dora INCONTRI Para entender Allan Kardec p 30

da doutrina espiacuterita que estudou o magnetismo por 35 anos o magnetismo preparou o caminho

do Espiritismo e os raacutepidos progressos dessa uacuteltima doutrina satildeo incontestavelmente devidos agrave

vulgarizaccedilatildeo das ideacuteias sobre a primeira Dos fenocircmenos magneacuteticos do sonambulismo e do

ecircxtase agraves manifestaccedilotildees espiacuteritas haacute apenas um passo sua conexatildeo eacute tal que eacute por assim dizer

impossiacutevel falar de um sem falar de outro125

O magnetismo foi a primeira proposta terapecircutica cientiacutefica da era moderna antes

mesmo das pesquisas laboratoriais iniciados por Claude Bernard e da Homeopatia descoberta

por Hahnemann Trata-se de um meacutetodo de cura inspirado na corrente vitalista da medicina em

que o magnetizador uma vez identificando o desequiliacutebrio no organismo do doente exerce uma

accedilatildeo dinacircmica pelo magnetismo animal atraveacutes de imposiccedilatildeo de matildeos massagens insuflaccedilatildeo

no corpo do paciente etc Com a regularidade das sessotildees do tratamento o ciclo da doenccedila se

completa rapidamente invertendo a accedilatildeo desagregadora provocada pelo desequiliacutebrio

instaurado Atingindo o estado criacutetico o estado doentio estaacute superado o equiliacutebrio orgacircnico se

restabelece e o paciente volta ao seu estado saudaacutevel126

Satildeo inuacutemeros os casos de cura relatados por Mesmer e seus seguidores e por mais

pareccedilam estranhas ao homem de hoje acostumado aos meacutetodos da medicina alopaacutetica as

descobertas do magnetismo animal segundo Mesmer ldquonatildeo satildeo produtos do acaso mas sim o

resultado do estudo e da observaccedilatildeo das leis da naturezardquo127

De formaccedilatildeo ecleacutetica e interesse pela ciecircncias nascentes Mesmer defendeu sua tese

de doutorado em medicina com o tiacutetulo ldquoDa influecircncia dos planetas sobre o corpo humanordquo

Sua proposta de ciecircncia era inspirada num modelo filosoacutefico holiacutestico espiritualista e deiacutesta

Segundo seu bioacutegrafo Paulo Henrique Figueiredo foi no monasteacuterio que Mesmer teve contato

com a muacutesica sua verdadeira paixatildeo128 o que lhe inspiraria uma correlaccedilatildeo entre as harmonias

musicais o equiliacutebrio do corpo humano e o universo inteiro Mais tarde concluiraacute que ldquoas leis

pelas quais o universo eacute regulado satildeo as mesmas que regem a harmonia do corpo animal A vida

do mundo eacute uma soacute e a do homem individual eacute apenas parte delardquo129

Esse insight natildeo lhe surgiu por acaso A vida de Mesmer era uma incessante busca por

desvendar os segredos da natureza Seu objetivo era observaacute-la escutando seu iacutentimo e natildeo

reduzi-la com pressupostos teoacutericos formulados a priori Buscava a verdade no contato com a

natureza Em sua obra ldquoResumo histoacuterico dos fatos relativos ao magnetismo animalrdquo publicado

em 1781 relata uma incursatildeo solitaacuteria no interior da floresta em que descreve sua inquietude em

125 RE vol 1 p 95 126 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 20 127 ibid p 17 128 Mesmer tocava clavicoacuterdio violoncelo e a harmocircnica de vidro Patrocinava agradaacuteveis saraus nos jardins de sua casa em Viena e revezava nas apresentaccedilotildees com Haydn Gluck e o pequeno Mozart Wolgang homenagearaacute seu patrono e amigo com o papel do meacutedico (lsquodoutor magneacuteticorsquo) que salva os protagonistas da poccedilatildeo envenenada com uso de um iacutematilde em sua ceacutelebre oacutepera bufa Cosi fan tutte 129 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 530

indagar da natureza os seus misteacuterios Teria sido uma experiecircncia miacutestica de Mesmer Com

certeza trata-se de uma experiecircncia de insight Assim relata sua experiecircncia

E entatildeo um ardor vivo se apoderou de meus sentidos Eu natildeo procurava mais a verdade com amor Eu a procurava com inquietude O campo as florestas as solidotildees as mais retiradas eram os uacutenicos atrativos para mim Eu me sentia perto da natureza Violentamente agitado parecia-me algumas vezes que ao coraccedilatildeo cansado dos inuacuteteis convites da natureza parecia que iria recusaacute-la com furor Oacute natureza eu gritava nesses acessos que pretende de mim Em outros momentos ao contraacuterio eu me imaginava estreitando-a em meus braccedilos com ternura ou apertando-a com impaciecircncia e sapateando fortemente desejando-a render-se aos meus desejos Felizmente meus gritos perdiam-se no silecircncio dos bosques havia somente aacutervores para testemunhar sua veemecircncia Eu tinha certamente o aspecto de um freneacutetico130

Jaacute em outro momento Mesmer em seu autodidatismo esforccedilando-se por desprender-

se da forma em proveito do conteuacutedo criou um mecanismo proacuteprio para transcender o comum e

buscar o novo Percebendo que todas as vezes que se tem uma ideacuteia a tendecircncia eacute traduzi-la em

palavras tomou o ldquodesiacutegnio bizarrordquo de libertar-se ldquodessa escravidatildeordquo e ficou trecircs meses

pensando sem nenhum idioma Apoacutes essa experiecircncia de concentraccedilatildeo sentia que os objetos

tomavam nova forma as combinaccedilotildees comuns se mostravam sujeitas agrave revisatildeo e olhando os

homens achava raro encontrar uma opiniatildeo acertada Soacute entatildeo ldquoa calma voltou ao meu espiacuteritordquo

diz ele e ldquosenti que a verdade que havia perseguido tatildeo ardorosamente natildeo mais deixava

duacutevidas quanto agrave sua existecircncia131

Uma visatildeo holista da realidade

As experiecircncias de imersatildeo na natureza e de observaccedilatildeo das coisas rejeitando ao

maacuteximo as ideacuteias preconcebidas permitiram a Mesmer a criaccedilatildeo de uma nova ciecircncia De

origem claramente intuitiva sua busca pela natureza operou a ruptura com a ciecircncia de seu

tempo mas acima de tudo influenciou-o na construccedilatildeo de um pensamento holiacutestico que

mantivesse a explicaccedilatildeo de tudo ou seja sua busca era de uma lei oniabrangente que desse

conta de todos os fenocircmenos Parece-nos que o que moveu sua atividade era a anguacutestia da

separaccedilatildeo O fervor de sua uniatildeo freneacutetica no interior das florestas eacute testemunha da rejeiccedilatildeo de

toda ciecircncia que abra matildeo do contato direto com a natureza e seus fenocircmenos em busca de um

racionalismo a prioriacutestico

O grande desafio que obrigou Mesmer assim como mais tarde Kardec a romper com

a ciecircncia de seu tempo foram os fenocircmenos extra sensoriais na eacutepoca chamados de

sonambulismo Atraveacutes da magnetizaccedilatildeo ou no caso de sonambulismo natural um homem

demonstrava uma sabedoria que iria muito aleacutem de conhecimento adquirido Ambos

130 ibid 131 ibid p114-5

pesquisaram esses fatos e soacute conseguiram explicaacute-los recorrendo a uma nova visatildeo do homem e

do universo

Na obra intitulada ldquoMemoacuteria de F A Mesmer doutor em medicina sobre suas

descobertasrdquo publicada em Paris em 1828 apresenta os elementos centrais de sua cosmovisatildeo e

que lhe permitem responder a uma agenda de questotildees relacionadas ao fenocircmeno sonambuacutelico

tais como Como algueacutem pode julgar e prevenir suas moleacutestias e mesmo a dos outros

dormindo Como sem nenhuma instruccedilatildeo eacute capaz de indicar os meios mais adequados agrave cura

Como pode ver os objetos afastados e pressentir os acontecimentos Como o homem pode

receber as impressotildees de uma outra vontade que natildeo a sua Por que o homem natildeo eacute sempre

dotado dessas faculdades Por que este estado eacute mais frequumlente e parece ser mais perfeito apoacutes o

emprego do processo do magnetismo animal132

Ao buscar responder estas questotildees tiacutepicas de quem observa os fenocircmenos

observados em pessoas em transe sonambuacutelico Mesmer descreve sua teoria que mais tarde

inspiraraacute a cosmovisatildeo espiacuterita Segundo Mesmer a fonte primaacuteria de tudo o que existe na

natureza eacute o fluido universal Eacute a partir das transformaccedilotildees do fluido universal que se daacute origem

a todos os fluidos e toda a mateacuteria As partiacuteculas elementares de mateacuteria ou as formas mais

simples de energia seriam na verdade transformaccedilotildees do fluido universal que permeia todo o

universo no qual todos estatildeo mergulhados

Segundo esta teoria o universo eacute o conjunto de todas as partes co-existentes da

mateacuteria em estado soacutelido ou fluiacutedico que preenche o espaccedilo e ateacute mesmo os soacutelidos

conteacutem interstiacutecios preenchidos por mateacuteria menos soacutelida ou mais sutil que por sua vez consiste de pequenas massas com forma determinada estando presentes ainda interstiacutecios com uma mateacuteria mais fluida Estas divisotildees entre os interstiacutecios e os fluidos como foi dito sucedem-se por uma espeacutecie de gradaccedilatildeo ateacute a uacuteltima das subdivisotildees da mateacuteria que chamo de elementar ou primordial que eacute apenas de fluidez absoluta e os interstiacutecios natildeo satildeo mais ocupados pois que natildeo existe mateacuteria mais sutil

O fluidos satildeo invisiacuteveis mas preenchem todo o espaccedilo e sua existecircncia pode ser

comprovada pelo efeito de sua transformaccedilatildeo no corpo do ser humano bem como na alteraccedilatildeo

quiacutemica de uma substacircncia qualquer como a aacutegua por exemplo

Eacute a partir dessa perspectiva que a teoria do magnetismo fornece um senso de uniatildeo de

tudo com tudo um holismo uma espeacutecie de impossibilidade de existir algo em separado de todo

o restante do universo O que hoje a fiacutesica tem debatido em questotildees como a influecircncia no

Brasil do bater de asas de uma borboleta na China era tema do magnetismo de Mesmer Ainda

que o fluido universal seja invisiacutevel ele estaria em toda a parte e tudo estaria ligado por ele e eacute

refletindo sobre isso que ldquose pode conceber que natildeo chegue nenhum movimento ou

132 ibid p 548

deslocamento nas suas menores partes que natildeo responda a um certo grau a toda extensatildeo do

universo133

A capacidade de curar pela imposiccedilatildeo de matildeos estaria ligada ao fato de que o fluido

universal poderia ser conduzido e manipulado pelo pensamento e a pela forccedila de vontade do

meacutedico Diz Deleuze um disciacutepulo do doutor Mesmer que ldquoa vontade eacute a primeira condiccedilatildeo

para magnetizar A segunda condiccedilatildeo eacute a feacute do magnetizador na sua capacidade A terceira eacute o

desejo de fazer o bem134 O mesmerismo enfatiza dessa forma a importacircncia dos sentimentos

elevados do magnetizador da sua conduta moral e sua pureza de propoacutesitos para realizar a cura

Natildeo basta o domiacutenio de uma teacutecnica fiacutesica para curar eacute preciso desejar o aliacutevio e o bem dos

pacientes

O mesmo passa a valer para o paciente A cura depende da vontade do paciente e a

conscientizaccedilatildeo de que a cura fiacutesica depende da cura da alma O magnetismo animal natildeo curaraacute

certamente aquele que sentiraacute o retorno de suas forccedilas apenas para se voltar para novos

excessos Antes de todas as coisas eacute indispensaacutevel que o doente deseje ser curadordquo135 Nasce

no ocidente a concepccedilatildeo que conjuga mente e corpo A cura do corpo comeccedila com a cura da

alma Daiacute se estabelece a conexatildeo entre a harmonia do universo e a harmonia do indiviacuteduo seu

estado mental seus pensamentos equilibrados e sentimentos voltados para o bem A pulsaccedilatildeo do

universo ganha jaacute em Mesmer uma conotaccedilatildeo moral e o sofrimento manifestado na doenccedila

tem origem no rompimento dessa harmonia

A sabedoria superior da pessoa em transe sonambuacutelico revelava a existecircncia do que

Mesmer e mais tarde Kardec denominava senso iacutentimo E eacute ele a base explicativa para os

variados fenocircmenos observados pelos pesquisadores tais como a telepatia a capacidade de

prever o futuro a vista agrave distacircncia e a comunicaccedilatildeo com os Espiacuteritos 136

A lucidez sonambuacutelica eacute a faculdade que o homem possui de ver e sentir sem os

oacutergatildeos materiais atraveacutes do seu senso iacutentimo Enquanto ligada ao corpo a alma vecirc

confusamente pelos oacutergatildeos materiais mas desprendida da mateacuteria em transe sonambuacutelico ela

ganha liberdade e consegue perceber o que lhe era invisiacutevel O magnetismo evidencia que o

133 ibid p 552 134 DELEUZE apud Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos 135 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos 136 No Espiritismo soma-se a explicaccedilatildeo baseada nos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores

parcialmente esquecidos com a encarnaccedilatildeo Em cada uma de suas existecircncias corporais o Espiacuterito

adquire um acreacutescimo de conhecimento e de experiecircncia Esquece-os parcialmente quando encarnado em

mateacuteria por demais grosseira poreacutem deles se recorda como Espiacuterito Assim eacute que certos sonacircmbulos

revelam conhecimentos acima do grau da instruccedilatildeo que possuem e mesmo superiores agraves suas aparentes

capacidades intelectuais Portanto da inferioridade intelectual e cientiacutefica do sonacircmbulo quando

desperto nada se pode inferir com relaccedilatildeo aos conhecimentos que porventura revele no estado de

lucidez (LE 455)

homem natildeo tem apenas cinco sentidos acrescentando-lhe um sexto o sentido espiritual Essa

percepccedilatildeo aleacutem dos sentidos eacute decorrente de uma espeacutecie de extensatildeo do senso iacutentimo tambeacutem

chamado instinto Diz Mesmer que eacute por essa extensatildeo que ldquoo homem adormecido pode ter a

intuiccedilatildeo das doenccedilas e distinguir entre todas as substacircncias as que convecircm agrave sua conservaccedilatildeo e

cura137

A percepccedilatildeo aprimorada se daacute uma vez que estando pelo senso iacutentimo em contato

com toda a natureza encontra-se sempre colocado de modo a sentir o encadeamento das causas

e dos efeitos E eacute dessa forma que antevecirc acontecimentos futuros A metaacutefora utilizada por

Mesmer se tornou comum nos ciacuterculos de magnetizadores e natildeo eacute outra que Kardec se utiliza

para explicar a origem dos fenocircmenos da presciecircncia dos acontecimentos

[imaginemos] que um homem [] colocado sobre uma montanha perceba ao longe no caminho uma tropa inimiga se dirigindo para uma aldeia que quer incendiar ser-lhe-aacute faacutecil calculando o espaccedilo e a velocidade prever o momento da chegada da tropa Se descendo agrave aldeia diz simplesmente a tal hora a aldeia seraacute incendiada o acontecimento vindo a se cumprir ele passaraacute aos olhos da multidatildeo ignorante por um adivinho um feiticeiro ao passo que muito simplesmente viu o que os outros natildeo podiam ver e disso deduziu as consequumlecircncias138

E assim o magnetismo de Mesmer antecipou diversos elementos da Doutrina espiacuterita e

certamente inspirou sua concepccedilatildeo holista que liga o microcosmo ao macrocosmo as leis fiacutesicas

agraves leis morais numa perspectiva espiritualista cuja unidade do todo e a inter-conexatildeo de tudo

com tudo transcende o dualismo corpoalma

Respeito pelas crenccedilas populares

Aleacutem disso um outro elemento herdado do magnetismo eacute o respeito pelas crenccedilas

populares Tanto o magnetismo quanto o Espiritismo buscavam nas crenccedilas populares

elementos de pesquisa para desvendar nelas o resquiacutecio de uma verdade primitivamente

reconhecida Para Mesmer entre as opiniotildees vulgares de todos os tempos () algumas

absurdas e extravagantes () natildeo existem as que natildeo possam ser consideradas como os

resquiacutecios de uma verdade primitivamente reconhecida139 Algumas das conclusotildees que

Mesmer tira do desenvolvimento da teoria que explica os fenocircmenos sonambuacutelicos satildeo

que as antigas opiniotildees natildeo devem ser desdenhadas soacute porque estatildeo associadas a alguns erros Que os fenocircmenos do sonambulismo foram percebidos em todos os tempos e desnaturados segundo os preconceitos do seacuteculo ao qual pertenceram Que o homem foi sempre imperfeitamente conhecido sobretudo no seu estado de doenccedila E que as faculdades extraordinaacuterias que nele se manifestam devem ser vistas apenas como a extensatildeo de suas sensaccedilotildees e do seu instinto140

137 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 553 138 OP p104 139 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 517 140 ibid p 561-62

E isso se deu particularmente com relaccedilatildeo aos fenocircmenos sonambuacutelicos que por mais

fossem perseguidos ao longo da histoacuteria () quaisquer um desses fatos satildeo conhecidos de

todos os tempos sob diversas denominaccedilotildees () Algumas outras foram completamente

negligenciadas Outras foram cuidadosamente ocultadasrdquo e para ele esse fenocircmenos tatildeo

antigos quanto as enfermidades dos homens ldquosempre espantaram e muitas vezes alucinaram o

espiacuterito humanordquo141

Essa mesma vontade de desencavar o conhecimento espalhado no meio do povo

movia Kardec para quem

a coincidecircncia entre o que hoje nos dizem [os espiacuteritos] e as crenccedilas das mais remotas eras eacute um fato significativo do mais elevado alcance Quase por toda a parte a ignoracircncia e os preconceitos desfiguraram esta doutrina cujos princiacutepios fundamentais se misturam agraves praacuteticas supersticiosas de todos os tempos exploradas com o fim de abafar a razatildeo Entretanto sob esse amontoado de absurdos germinam as mais sublimes ideacuteias com sementes preciosas ocultas sob as sarccedilas142

Imerso num contexto dogmaacutetico e fechado ao diaacutelogo e de certa forma prevendo seu

destino Mesmer aponta para o novo fanatismo que emergia junto ao materialismo das ciecircncias

modernas Ao que tudo indica os sonacircmbulos continuariam sendo perseguidos natildeo mais a

perseguiccedilatildeo da Igreja mas a difamaccedilatildeo puacuteblica dos increacutedulos143 e natildeo haveria muitas

diferenccedilas entre o autoritarismo da feacute e o do materialismo Temos ainda presentes as

perseguiccedilotildees que o fanatismo muito creacutedulo exerceu nos seacuteculos da ignoracircncia sobre as

pessoas que tiveram a infelicidade de serem os personagens desses prodiacutegios ou que foram os

seus ministros Eacute de se acreditar que sejam hoje viacutetimas do fanatismo da incredulidade natildeo

seratildeo punidos como idoacutelatras ou sacriacutelegos mas seratildeo tratados talvez como impostores e

perturbadores da ordem puacuteblica144

Contraacuterio a esse espiacuterito dogmaacutetico marcante nos sistemas filosoacuteficos do seacuteculo XIX

Kardec buscou um espiacuterito criacutetico de abertura e acolhida a novas descobertas Temos assim que

o Espiritismo por heranccedila do magnetismo de Mesmer manteacutem uma abertura agraves descobertas

cientiacuteficas tanto do passado quanto do futuro Na perspectiva de quem busca a totalidade do

conhecimento natildeo soacute no sentido enciclopeacutedico como na descoberta da lei universal que

explicasse todos os fenocircmenos por meio da qual Deus se manifesta Kardec fez questatildeo de

deixar a porta aberta agraves descobertas cientiacuteficas se alguma comprovaccedilatildeo cientiacutefica viesse a

141 ibid 142 RE 1858 abril p95 143 Com relaccedilatildeo a essa questatildeo o meacutedico Paulo Figueiredo eacute ainda mais duro em sua sugestiva criacutetica ao silenciamento das teses mesmeristas() o despotismo acadecircmico de inspiraccedilatildeo feudal manobrado pelas instacircncias de poder poliacutetico econocircmico e ideoloacutegico da eacutepoca de Mesmer iria ganhar forccedilas desenvolver sutilezas e se aperfeiccediloar ateacute se transformar na atual e cruel ditadura capitalista da pesquisa acadecircmica (p 80-1) 144 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 547

contrariar alguma verdade da doutrina espiacuterita deveria-se optar pela verdade cientiacutefica Haacute aiacute a

recusa a todo dogmatismo a todo argumento natildeo fundado na razatildeo e no empiricismo bem

como uma abertura ao novo aos misteacuterios que a humanidade ainda estaria por desvendar

Consideraccedilotildees finais

Vivemos um momento de transiccedilatildeo civilizatoacuteria em que as sementes de uma

humanidade nova mais amorosa mais fraterna germinam no interior de movimentos de grande

perversidade configurados pelas desigualdades econocircmico-sociais pela imposiccedilatildeo do mundo

tecno-cientiacutefico pelo desprezo e insensibilidade diante da pobreza e da miseacuteria da grande

maioria da populaccedilatildeo mundial O resultado desse processo dependeraacute da capacidade ou natildeo de

se construir consensos eacuteticos universais em favor da compaixatildeo e da fraternidade capazes de

frear os impulsos das forccedilas competitivas e auto-centradas (mas vazias de interioridade) do

homem tecnoloacutegico

As soluccedilotildees portanto hatildeo de passar por um processo de diaacutelogo As soluccedilotildees que se

apresentam como prontas satildeo justamente as maiores fontes de fundamentalismo religioso e de

violecircncia estrutural como infelizmente vivemos com o neoliberalismo e com o imperativo de

se adequar a nova ordem mundial

Ao se recusar a participar do movimento geral de especializaccedilatildeo cientiacutefica o Espiritismo

pode se manter como uma fonte de inspiraccedilatildeo no atual periacuteodo de globalizaccedilatildeo na medida em

que torna-se imperioso apontar caminhos eacuteticos e com respeito ao sentido uacuteltimo da existecircncia

humana sem se abandonar as conquistas inquestionaacuteveis da ciecircncia e da tecnologia Na tarefa

de equacionar a um soacute tempo os impulsos criativos da tecno-ciecircncia e a responsabilidade em

cuidar do bem estar de todos os seres vivos eacute preciso criar um campo aberto ao diaacutelogo entre as

ciecircncias entre as filosofias e entre as religiotildees Na era da comunicaccedilatildeo e da informaccedilatildeo em que

a ampliaccedilatildeo da capacidade de diaacutelogo planetaacuterio surge como o grande fruto civilizatoacuterio o

Espiritismo pode ser ao menos uma fonte de inspiraccedilatildeo e ateacute mesmo o campo de passagem a

partir de onde as novas ideacuteias poderatildeo brotar

Sugerimos aqui que se intensifiquem as pesquisas em torno das filosofias e religiotildees que

se apresentem como capazes de dialogar e de ser palco de diaacutelogos como conseguimos iniciar

com o Espiritismo Muito ainda haacute de ser feito nesse campo

Religiatildeo ciecircncia e tecnologia dos distanciamentos agraves aproximaccedilotildees no pensamento

social brasileiro contemporacircneo

Silas do Carmo Delfino145

INTRODUCAtildeO

Este trabalho pretende somar esforccedilos agrave iniciativa de vital importacircncia que consiste o

estabelecimento de diaacutelogo interdisciplinar entre aacutereas do saber orientadas na perspectiva da

investigaccedilatildeo dos distanciamentos e aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no

pensamento social brasileiro contemporacircneo Tema cuja complexidade possibilita o

aprofundamento da anaacutelise de uma mateacuteria rica em possibilidades para a construccedilatildeo de uma

consciecircncia compromissada com a aceitaccedilatildeo dos desafios que o mesmo propotildee O que eacute mais

importante o desenvolvimento tecnoloacutegico e o progresso cientiacutefico ou o aspecto humano e a

preservaccedilatildeo ambiental Qualquer pesquisador atento agrave questatildeo proposta de imediato perceberaacute

que as linhas de orientaccedilatildeo de tal pensamento devem ser guiadas na proposiccedilatildeo de questotildees

mais consistentes Incontestavelmente o questionamento que deveraacute ser feito eacute em que medida

o desenvolvimento e o progresso podem criar accedilotildees afirmativas de promoccedilatildeo de bem estar

social humano e de preservaccedilatildeo ambiental

O entendimento atual eacute que a contemporaneidade eacute o cenaacuterio de inuacutemeras descobertas e

avanccedilos em todas as aacutereas do saber entretanto a existecircncia do fasciacutenio por dar respostas agraves

impossibilidades ou seja as incoacutegnitas procedentes da dinacircmica deste processo de acumulaccedilatildeo

de conhecimento dos modos de ser e de saber tiacutepicos do processo histoacuterico-social da

humanidade A investigaccedilatildeo sobre as definiccedilotildees dos termos ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo

bem como a ocupaccedilatildeo em encontrar as aproximaccedilotildees e os distanciamentos entre estes no

pensamento social brasileiro contemporacircneo possibilita uma leitura mais aprimorada da

importacircncia deste tema para a sociedade brasileira

1 Religiatildeo ciecircncia e tecnologia definiccedilotildees importantes ao estudo do tema

Neste capiacutetulo minha argumentaccedilatildeo consiste na reflexatildeo teoacuterica sobre a definiccedilatildeo

equivalente a alguns dos termos de fundamental importacircncia na busca de uma argumentaccedilatildeo

consistente sobre a temaacutetica pretendida

ldquoReligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo quais as implicaccedilotildees na formulaccedilatildeo do pensamento

cientiacutefico sobre a relaccedilatildeo entre estes temas na medida em que a definiccedilatildeo sobre aquilo que cada

um deles representa natildeo eacute coerente No miacutenimo tendenciosa em meu ponto de ver constitui

qualquer pesquisa corrente que natildeo se aproprie em todas as instacircncias de uma definiccedilatildeo

145 Teoacutelogo especialista em Ciecircncias da Religiatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais

positiva e livre de preconceitos de qualquer matiz a respeito dos conceitos dos termos referidos

acima Natildeo apenas em ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo mas em qualquer aacuterea de conhecimento

existem desafios aspectos negativos aleacutem dos positivos que satildeo proacuteprios e que contribuem para

o aperfeiccediloamento cientiacutefico A religiatildeo pode ser compreendida como uma ciecircncia E o que

dizer agravequeles que a ela atribuem o caraacuteter apenas de senso comum E quanto agrave teacutecnica e o saber

cientiacutefico o que argumentar quando algueacutem atribui a eles a culpa pelo desespero proveniente do

estabelecimento de novos paradigmas Na tentativa humilde poreacutem gloriosa eacute que

empreenderemos o aprofundamento destas questotildees

O termo religiatildeo pode ser utilizado para designar outro estado de consciecircncia diferente

do verdadeiro sentido que o termo possui e em alguns casos de maneira equivocada expressar

algum descontentamento tiacutepico dos ceacuteticos idealistas Os quase sempre descontentes com a

verdadeira definiccedilatildeo e significado que a religiatildeo possui na impossibilidade de fazecirc-la extinguir

utilizam o termo como metaacutefora em seus discursos o que acaba por fortalecer ainda mais a

definiccedilatildeo da religiatildeo que eacute positiva e reforccedilar o seu caraacuteter de importacircncia central nas relaccedilotildees

soacutecio-culturais Trabalhei arduamente na tentativa de expressar o significado do termo religiatildeo

em ldquoO impacto da religiatildeo na contemporaneidade sobre a identidade e a instabilidade inter-

religiosardquo146 Entretanto a questatildeo que nos eacute pertinente neste momento consiste no mesmo

questionamento que deu origem aos trabalhos de Emiacutele Durkheim Satildeo dois questionamentos

claacutessicos em mateacuteria de religiatildeo O primeiro sobre a natureza ou seja ldquoo que eacute religiatildeordquo O

segundo sobre a finalidade e importacircncia ou seja ldquoqual o papel que a religiatildeo desempenha na

sociedade humanardquo Evidentemente o mesmo questionamento deve ser feito a respeito da

ciecircncia e da tecnologia o que elas satildeo e qual a finalidade das mesmas na sociedade humana

Emiacutele Durkheim atraveacutes de suas pesquisas chegou agrave conclusatildeo que a religiatildeo eacute uma ldquocoisa

socialrdquo no seu modo excelente O que possibilita a sociologia observar a religiatildeo atraveacutes dos

fatos sociais

A religiatildeo eacute ldquouma fonte poderosa de identidade que estaacute diretamente vinculada ao

ethos de um povordquo Como em grande parte dos trabalhos sobre a religiatildeo na atualidade as

definiccedilotildees do antropoacutelogo contemporacircneo Clifford Geertz estatildeo presentes nas pesquisas

brasileiras deste modo acredito ser de vital importacircncia agrave definiccedilatildeo deste celebre pensador que

experimentou os infortuacutenios da II Guerra Mundial e dedicou a maior parte de sua vida aos

estudos da antropologia da religiatildeo e etnologia

ldquoA religiatildeo eacute um sistema de siacutembolos que atua para estabelecer poderosas penetrantes e duradouras disposiccedilotildees e motivaccedilotildees nos homens atraveacutes da formulaccedilatildeo de conceitos de uma ordem de existecircncia geral e vestindo essas concepccedilotildees com tal aura de fatualidade que as disposiccedilotildees e motivaccedilotildees parecem singularmente realistasrdquo (GEERTZ 1989)

146 DELFINO Silas do Carmo Monografia de especializaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo PUC Minas 2007

Uma tentativa mais simples poreacutem bastante segura de definiccedilatildeo de religiatildeo eacute a

utilizaccedilatildeo da etimologia do termo que esclarece ldquoreligiatildeordquo do vocaacutebulo portuguecircs eacute a traduccedilatildeo

do termo ldquoreligiordquo herdado do latim Uma forma de relaccedilatildeo entre o homem e a divindade O

homem vive em determinado tempo histoacuterico e segundo Gruen (1995 p 75) ldquosua religiosidade

eacute exteriorizada dentro dos sistemas formais proacuteprios do seu espaccedilo existencial constitui-se

religiatildeordquo

Desde a antiguidade os homens na busca pelo conhecimento e pela verdade recorreram

agraves fontes de tradiccedilatildeo e autoridade reconhecidas em determinado momento histoacuterico das mais

antigas destacam-se as fontes de autoridade teoloacutegica e filosoacutefica A aquisiccedilatildeo do conhecimento

atraveacutes da intuiccedilatildeo induccedilatildeo e deduccedilatildeo ou do senso comum fruto da experiecircncia cotidiana

tambeacutem satildeo reconhecidas formas de aquisiccedilatildeo do conhecimento pelo homem Na antiguidade

claacutessica os gregos jaacute possuiacuteam a preocupaccedilatildeo central em estabelecer criteacuterios especiacuteficos sobre a

linguagem teacutecnica e sobre a forma de argumentaccedilatildeo loacutegica Na Greacutecia antiga os gregos

desenvolveram a geometria a fiacutesica matemaacutetica a astronomia e a filosofia Entretanto a

definiccedilatildeo de ciecircncia como eacute conhecida somente se desenvolve no seacuteculo XVI

Expressotildees significativas do pensamento cientiacutefico europeu do seacuteculo XVI preocupados

com os fundamentos da investigaccedilatildeo cientiacutefica e sobre a verificaccedilatildeo de seus resultados realizam

uma revoluccedilatildeo no pensamento da eacutepoca Reneacute Descartes com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo dedutivo

na Franccedila Francis Bacon com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de induccedilatildeo experimental na Inglaterra e

Galileu Galilei com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de experimentaccedilatildeo na Itaacutelia O tratamento dado agrave

ciecircncia por esses pensadores possibilitou posteriores avanccedilos durante o seacuteculo XVII entretanto

o maior destaque somente acontece no seacuteculo XVIII com a Revoluccedilatildeo Industrial em que

acontece o viacutenculo entre o conhecimento e a produccedilatildeo A recapitulaccedilatildeo dos antecedentes que

contribuiacuteram para o entendimento do que consiste a ciecircncia atual eacute importante mas a pretensatildeo

natildeo eacute a revisatildeo histoacuterica e sim a definiccedilatildeo do que eacute a ciecircncia e qual a sua finalidade Gressler

(2003 p 35) mediante suas pesquisas destaca uma definiccedilatildeo de ciecircncia de faacutecil compreensatildeo

ldquoA ciecircncia eacute uma das maneiras de ler e interpretar o mundo fiacutesico e social Usa para tanto vocabulaacuterio particular muito especifico essencial agrave precisatildeo agrave clareza e agrave objetividade Eacute ainda um conjunto de regras quanto agrave maneira correta de colher organizar quantificar e trabalhar as informaccedilotildees e compartilhar de uma comunidade cientiacutefica internacional um processo de inferecircncia loacutegica que guia a tomada de decisotildeesrdquo (GRESSLER 2003 p 35 )

Uma tentativa mais simples poreacutem bastante segura de definiccedilatildeo de ciecircncia eacute a

utilizaccedilatildeo da etimologia do termo que esclarece ldquociecircnciardquo do vocaacutebulo portuguecircs eacute a traduccedilatildeo

do termo ldquoScirerdquo ou ldquoScientiardquo herdado do latim A forma como o homem conhece e explica a

realidade fiacutesica e social A ciecircncia eacute entatildeo utilizada no controle praacutetico da natureza na descriccedilatildeo

e compreensatildeo do mundo e na previsatildeo de fenocircmenos e acontecimentos

A definiccedilatildeo da UNESCO sobre a ciecircncia compreende a mesma como uma dimensatildeo na

qual a humanidade desempenha um tipo de atividade distinta e sistemaacutetica objetivando a

soluccedilatildeo e a resposta agraves questotildees apresentadas como desafios a dinacircmica da vida

ldquoA palavra lsquociecircnciarsquo significa o empreendimento pelo qual a humanidade agindo individualmente ou em pequenos ou grandes grupos faz uma tentativa organizada por meio do estudo objetivo de fenocircmenos observados para descobrir e dominar a cadeia de causalidades reuacutene em forma coordenada os subsistemas resultantes do conhecimento por meio de reflexatildeo sistemaacutetica e conceptualizaccedilatildeo frequentemente expressa nos siacutembolos de matemaacutetica por esse meio provecirc a si proacutepria a oportunidade de usar para sua proacutepria vantagem a compreensatildeo dos processos e fenocircmenos que ocorrem na natureza e na sociedaderdquo (O STATUS do pesquisador 1978 p 1439)

Deste modo percebemos a importacircncia que a ciecircncia possui pois vai aleacutem da dimensatildeo

empiacuterica no momento em que busca a explicaccedilatildeo do por que dos fatos Segundo Gressler (2003

p 29) ldquoA ciecircncia realmente se destaca quando consegue unir o saber e o fazer dando origem agrave

tecnologia ou seja agrave ciecircncia aplicada agraves teacutecnicasrdquo

Segundo Aacutelvaro Vieira (2005 p 175) a teacutecnica eacute considerada como ldquoa mediaccedilatildeo na

obtenccedilatildeo de uma finalidade humana conscienterdquo Desde antiguidade o conceito de teacutecnica vem

sendo desenvolvido um dos primeiros termos que auxiliam no estabelecimento da compreensatildeo

atual utilizado por Aristoacuteteles eacute ldquotechnerdquo do grego o mesmo que ldquoArsrdquo do latim Aristoacuteteles se

referia a um modo de trabalho sem a mateacuteria Para uma compreensatildeo mais simples o que

Aristoacuteteles formulou eacute que a teacutecnica eacute fruto do esforccedilo humano ou seja como principio

somente eacute realizada no outro um logos que precede a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo Na natureza as

realizaccedilotildees satildeo espontacircneas o seu movimento existe no proacuteprio produto Kant aprofundou o

pensamento a respeito da teacutecnica dividindo a em intencional e natildeo intencional A intencional eacute a

capacidade produtiva da natureza e a natildeo intencional eacute a idecircntica ao mecanismo da natureza A

teacutecnica pode ser considerada sob o ponto de vista de muitos pensadores na contemporaneidade

tendo por observaccedilatildeo o fato que na definiccedilatildeo central do que a mesma eacute natildeo ocorrem muitas

diferenciaccedilotildees

A questatildeo principal referente agrave teacutecnica na contemporaneidade cuja origem pode ser

observada principalmente na II Guerra Mundial eacute o fator ldquomaterialidaderdquo Mas assim como na

definiccedilatildeo de ldquoreligiatildeordquo e ldquociecircnciardquo a ldquoteacutecnicardquo tambeacutem deve ter como fundamento central o

sujeito que realiza cada uma destas nesse caso o homem Na tentativa de apurar a definiccedilatildeo de

tecnologia uma questatildeo presente no pensamento corrente e que a elucidaccedilatildeo eacute necessaacuteria

consiste no fato da confusatildeo entre o que eacute tecnologia e teacutecnica Com o objetivo de alcanccedilar uma

definiccedilatildeo razoaacutevel do termo foi que nas colocaccedilotildees anteriores a definiccedilatildeo de teacutecnica foi

considerada

Em alguns estudos eacute comum a observaccedilatildeo da apropriaccedilatildeo do termo tecnologia para

designar algum tipo de teacutecnica Em alguns casos provenientes da traduccedilatildeo de alguns textos em

outros idiomas e nesse caso mais especificamente a liacutengua inglesa possivelmente pela

utilizaccedilatildeo do termo ldquoknow howrsquo Neste caso acontece a utilizaccedilatildeo do terno tecnologia para

referir a qualquer tipo de teacutecnica utilizada Outra possibilidade tambeacutem encontrada sobre a

definiccedilatildeo de tecnologia consiste na utilizaccedilatildeo do termo como o conjunto de todas as teacutecnicas

disponiacuteveis por uma sociedade em determinado tempo Outras formas encontradas satildeo as

apropriaccedilotildees do termo para fazer referecircncia a conhecimento que pode ser comprado e

transferido como se esse conhecimento fosse independente de outras consideraccedilotildees sociais E

em alguns casos verifica-se a utilizaccedilatildeo do termo como sendo um objeto um produto uma

maacutequina instrumentos ou aquilo que estaacute sendo comercializado Uma confusatildeo comum

tambeacutem em consideraccedilatildeo ao termo ciecircncia que eacute utilizado erroneamente para fazer referecircncia a

biologia ou ao ambiente de estudo e trabalho como um laboratoacuterio

A definiccedilatildeo da UNESCO (1978 p 1439) sobre tecnologia compreende a tecnologia

como conhecimento capaz de proporcionar a melhoria do bem estar da sociedade em que este

conhecimento eacute aplicado ldquoA palavra lsquotecnologiarsquo significa conhecimento que se relaciona

diretamente com a produccedilatildeo ou melhoria de bens e serviccedilosrdquo

ldquoDe acordo com o primeiro significado etimoloacutegico a lsquotecnologiarsquo tem de ser a teoria a ciecircncia o estudo a discussatildeo da teacutecnica abrangidas nesta uacuteltima noccedilatildeo as artes as habilidades do fazer as profissotildees e generalizadamente os modos de produzir alguma coisa () A lsquotecnologiarsquo aparece aqui como valor fundamental exato de lsquologos da teacutecnicarsquo (PINTO 2005 p 219)

Feitas as consideraccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo sobre o que eacute ldquoreligiatildeo ciecircncia e

tecnologiardquo na contemporaneidade a reflexatildeo sobre os distanciamentos e aproximaccedilotildees entre

estes no pensamento social brasileiro seraacute objeto de analise

2 Distanciamentos e aproximaccedilotildees entre religiatildeo ciecircncia e tecnologia

O pensamento social brasileiro eacute muito amplo qualquer pesquisador dedicado ao tema

e que possua verdadeiro afinco e dedicaccedilatildeo perceberaacute que para a compreensatildeo do mesmo

necessaacuterio eacute percorrer a trilha interdisciplinar A histoacuteria da formaccedilatildeo do continente e em

especial da naccedilatildeo brasileira a maneira como as potecircncias imperiais e os povos aqui existentes se

relacionaram desde a implantaccedilatildeo das colocircnias ateacute a consumaccedilatildeo da independecircncia destas

uacuteltimas O modo distinto da relaccedilatildeo entre o indiacutegena os negros e os colonizadores europeus As

implicaccedilotildees soacutecio-culturais de natureza histoacuterica a configuraccedilatildeo do ambiente geograacutefico o

clima e o meio ambiente o desenvolvimento das manifestaccedilotildees culturais e religiosas o modo de

produccedilatildeo econocircmica e as relaccedilotildees com o exterior todas estas satildeo aspectos que possibilitam a

compreensatildeo do pensamento social brasileiro

A sociedade brasileira possui sua linguagem e estruturas de pensamento distintas de

todas as demais sociedades no mundo e com um aspecto definidor da mesma que eacute o de uma

sociedade de ldquomuacuteltiplas identidadesrdquo147 ldquoRegionalismosrdquo e ldquolocalismosrdquo existentes devido a

grande extensatildeo do territoacuterio atribuem agrave sociedade caracteriacutesticas muacuteltiplas ndash interconectadas -

formando uma totalidade Um paiacutes continental com diversos climas e configuraccedilotildees

geograacuteficas mas tambeacutem com muitas realidades sociais e econocircmicas O Brasil paiacutes em

desenvolvimento poderia ser considerado o mundo se observado apenas atraveacutes de suas

desigualdades uma vez que o mundo atual eacute desigual dividido entre naccedilotildees ricas e pobres

O fator de maior contribuiccedilatildeo na relaccedilatildeo cordial dos brasileiros com os demais povos

estaacute no fator diversidade desta naccedilatildeo Ser brasileiro eacute relacionar-se com o ldquodiversordquo por

excelecircncia uma diversidade de formas de expressatildeo e de compreensatildeo A existecircncia de muitos

matizes culturais proporciona visotildees de mundo muacuteltiplas expressotildees e manifestaccedilotildees diversas

em constante aglutinaccedilatildeo Essa diversidade ndash diversificaccedilatildeo - eacute fruto da construccedilatildeo social

poliacutetica e econocircmica

ldquoO conceito baacutesico subjacente agraves teorias de evoluccedilatildeo soacutecio-cultural eacute o de que as sociedades humanas no curso de longos periacuteodos experimentam dois processos simultacircneos e mutuamente complementares de auto transformaccedilatildeo um deles

147 Para uma compreensatildeo ampliada a respeito desta ldquomuacuteltipla identidaderdquo a leitura da vida e obra de algum destes autores de - nobre missatildeo acadecircmica e literaacuteria - possibilitaraacute a visatildeo deste universo concreto em seus sentidos formas e expressotildees denominado Brasil no mercado literaacuterio existem versotildees de obras destes autores comentadas o que permite uma compreensatildeo referenciada do contexto de vida de cada um deles Segue o nome do autor e uma sugestatildeo de meio eletrocircnico para acessar informaccedilotildees sobre os mesmos vida e contribuiccedilotildees Ver (1) Adeacutelia Prado em httpwwwreleiturascomaprado_bioasp (2) Affonso Romano de SantrsquoAnna em httpwwwreleiturascomarsant_bioasp (3) Ariano Suassuna em httpwwwarianosuassunacombr (4) Carlos Drummond de Andrade em httpwwwmemoriavivacombrdrummondindexhtm (5) Ceciacutelia Meireles em httpwwwreleiturascomcmeireles_bioasp (6) Clarice Lispector em httpwwwclarice-lispectorcjbnet (7) Cristoacutevatildeo Tereza em httpwwwcristovaotezzacombrp_biografiahtm (8) Fabriacutecio Carpinejar em httpwwwcarpinejarcombrhomehtm (9) Erico Veriacutessimo em httpwwwreleiturascomeverissimo_bioasp (10) Euclides da Cunha em httpwwwreleiturascomedacunha_bioasp (11) Fernando Sabino em httpwwwreleiturascomfsabino_bioasp (12) Ferreira Gullar em httpliteralterracombrferreira_gullar (13) Graciliano Ramos em httpwwwgracilianocombr (14) Gregoacuterio de Matos em httpwww2ufbabr~gmgwelcomehtml (15) Joatildeo Cabral de Melo Neto em httpwwwtvculturacombraloescolaliteraturajoaocabral (16) Joatildeo Guimaratildees Rosa em httpwwwtvculturacombraloescolaliteraturaguimaraesrosaindexhtm (17) Joatildeo Ubaldo Ribeiro em httpwwwreleiturascomjoaoubaldo_bioasp (18) Jorge Amado em httpwwwreleiturascomjorgeamado_bioasp (19) Luiz Fernando Veriacutessimo em httpwwwreleiturascomlfverissimo_bioasp (20) Lygia Fagundes Telles em httpwwwreleiturascomlftelles_bioasp (21) Machado de Assis em httpwwwmachadodeassisorgbr (22) Manoel de Barros em httpwwwfmborgbr (23) Manuel Bandeira em httpwwwreleiturascommbandeira_bioasp (24) Maacuterio de Andrade em httpwwwreleiturascommarioandrade_bioasp (25) Maacuterio Quintana em httpwwwccmqcombr (26) Monteiro Lobato em httpwwwmuseumonteirolobatocombr (27) Murilo Rubiatildeo em httpwwwmurilorubiaocombr (28) Raduan Nassar em httpwwwreleiturascomrnassar_bioasp (29) Vinicius de Moraes em httpwwwviniciusdemoraescombr

responsaacutevel pela diversificaccedilatildeo o outro pela homogeneizaccedilatildeo das culturasrdquo (RIBEIRO 1987 p 35)

Segundo Ribeiro (1987 p 38) ldquoAs sociedades satildeo constituiacutedas e mantidas por

sociedades que natildeo existem isoladamente mas em permanente interaccedilatildeo umas com as outrasrdquo

Uma forma de relacionamento que acontece de dois modos ldquodiretardquo e ldquoindiretamenterdquo no caso

brasileiro a experimentaccedilatildeo desta relaccedilatildeo acontece na contemporaneidade por meio de uma

posiccedilatildeo consciente do processo de homogeneizaccedilatildeo desta sociedade amplamente diversa O que

eacute diferente em algumas sociedades contemporacircneas agraves quais experimentam ldquoinstabilidadesrdquo e

ldquotensotildeesrdquo provindas de algum dos aspectos contidos no processo de ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-

culturalrdquo148

As etapas desta ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo consistem segundo o autor em trecircs sistemas

distintos o primeiro ldquoadaptativordquo - o segundo ldquo associativordquo - o terceiro ldquoideoloacutegicordquo Em cada

uma destas etapas sistecircmicas existem diversos aspectos internos referente a cada uma delas O

que possibilita a formaccedilatildeo cultural e consequentemente o pensamento social em determinado

tempo

ldquoO sistema adaptativo compreende o conjunto integrado de modos culturais de accedilatildeo sobre a natureza necessaacuterios agrave produccedilatildeo e agrave reproduccedilatildeo das condiccedilotildees materiais de existecircncia de uma sociedade O sistema associativo compreende fundamentalmente os modos estandardizados de regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees entre as pessoas para o efeito de atuarem conjugadamente no esforccedilo produtivo e na reproduccedilatildeo bioloacutegica do grupo Como decorrecircncia () surgem () instituiccedilotildees reguladoras de caraacuteter poliacutetico religioso educacional etc A terceira ordem () corresponde ao seu sistema ideoloacutegico Compreende aleacutem das teacutecnicas produtivas e normas sociais em seu caraacuteter de saber abstrato todas as formas de comunicaccedilatildeo simboacutelica com a linguagem as formulaccedilotildees explicitas de conhecimento com respeito a natureza e a sociedade os corpos de crenccedilas e as ordens de valores bem como as explanaccedilotildees ideoloacutegicas em cujos termos os povos explicam e justificam seu modo de vida e de condutardquo (RIBEIRO 1987 p 43)

O Brasil contemporacircneo tem diversidades como antes referido mas eacute um Estado de

Direito Democraacutetico independente com Constituiccedilatildeo proacutepria e divisatildeo entre os poderes possui

instituiccedilotildees leis mecanismos de controle social organizaccedilotildees da sociedade civil que

possibilitam a participaccedilatildeo da sociedade em aacutereas onde o Estado articula accedilotildees eficientes

atraveacutes da presenccedila destas organizaccedilotildees Um Estado em desenvolvimento mas em um estaacutegio

de maturaccedilatildeo positiva ou seja as etapas (adaptativa associativa e ideoloacutegica) satildeo

148 Darcy Ribeiro destaca a base conceitual utilizada em suas pesquisas para estabelecer a analise sobre o processo de formaccedilatildeo eacutetnica e sobre os problemas de desenvolvimento com que se defrontam os povos americanos O autor o traduz como ldquoo movimento histoacuterico de mudanccedila dos modos de ser e de viver dos grupos humanos desencadeado pelo impacto de sucessivas revoluccedilotildees tecnoloacutegicas (agriacutecolas industriais etc) sobre sociedades concretas tendentes a conduzi-las agrave transiccedilatildeo de uma etapa evolutiva a outra ou de uma a outra formaccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo RIBEIRO Darcy O processo civilizatoacuterio estudos de antropologia da civilizaccedilatildeo 9ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1987 Ver paacuteginas 40-46

compreensiacuteveis e estatildeo articuladas num processo evolutivo Um exemplo satildeo as relaccedilotildees149 com

os Estados potecircncias e com os Estados pobres o Brasil possui 74 Embaixadas no Exterior e 31

Consulados e Vice-Consulados bem como 7 Delegaccedilotildees Missotildees e Escritoacuterios Brasileiros no

Exterior Aleacutem de algumas empresas totalmente brasileiras produzindo bens e serviccedilos em

outros paiacuteses Outro exemplo eacute a multiplicidade de interlocutores representantes de movimentos

sociais ou culturais no cenaacuterio nacional atuando diretamente por meio da representaccedilatildeo poliacutetica

em sindicatos ou organizaccedilotildees do terceiro setor

O Brasil contemporacircneo possui um modelo de produccedilatildeo agriacutecola desenvolvido que

fornece ao mercado interno e externo uma variedade de gecircneros alimentiacutecios O termo

agricultura tem sido substituiacutedo por outro a cultura brasileira consagrou o novo termo

ldquoagronegoacuteciordquo150 termo mais atual para um tema de importacircncia nas relaccedilotildees externas

contemporacircneas do Brasil ainda que agricultura continue possuindo seu sentido original

Atraveacutes de uma poliacutetica de desburocratizaccedilatildeo dos aspectos protocolares agrave abertura de novos

negoacutecios e a oferta de capital atraveacutes dos bancos estatais e privados nacionais e internacionais

juntamente com a vasta opccedilatildeo de negoacutecios que podem ser empreendidos a induacutestria o comeacutercio

e o setor de serviccedilo tecircm obtido desempenho crescente e encorajador na uacuteltima deacutecada151 Nos

uacuteltimos cinco anos as montadoras brasileiras exportaram aproximadamente 40 milhotildees de

unidades de automoacuteveis Outro setor em expansatildeo eacute o de extraccedilatildeo mineral o Brasil na ultima

deacutecada alcanccedilou a autonomia em relaccedilatildeo ao petroacuteleo e tem se tornado um dos grandes

exportadores mundiais assim como eacute em relaccedilatildeo ao mineacuterio de ferro Observa-se uma retraccedilatildeo

neste ano de 2009 provenientes da desaceleraccedilatildeo da economia mundial resultando em alguns

reajustes pontuais uma pequena queda na oferta de creacutedito e consequumlentemente de empregos

entretanto o Brasil tem demonstrado bom acircnimo para lidar com as incertezas

O pensamento social brasileiro contemporacircneo eacute desde a compreensatildeo da existecircncia do

neocolonialismo perverso do qual o processo de exploraccedilatildeo das neocolonias por uma burguesia

internacional estatal e privada natildeo possibilitaria a acensatildeo dos Estados em desenvolvimento

subjulgando-os a eterna dependecircncia externa Ateacute a compreensatildeo de um desenvolvimento

149 O Brasil possui um notoacuterio histoacuterico de relaccedilotildees pacificas com as naccedilotildees amigas e desde a formaccedilatildeo de suas primeiras escolas e profissionais de diplomacia a cultura que orientou as decisotildees em mateacuteria de Poliacutetica Externa sempre foi a da cordialidade do respeito e da preocupaccedilatildeo pela luta por uma ordem mundial mais justa As contribuiccedilotildees do Baratildeo do Rio Branco permanecem como um exemplo a ser seguido e compotildeem ldquoo pensamento social brasileiro contemporacircneordquo em mateacuteria de Poliacutetica Externa Para uma descriccedilatildeo detalhada das contribuiccedilotildees do Baratildeo do Rio Branco ver CERVO Amado Luiz amp BUENO Clodoaldo Historia da Poliacutetica Exterior do Brasil 3ordf Ed Brasiacutelia UNB 2008 Ver ainda httpwwwmregovbr 150 O Brasil que de colocircnia de exploraccedilatildeo de monocultura na contemporaneidade compotildeem o Grupo dos 20 paiacuteses mais desenvolvidos do mundo defende a quebra das barreiras comerciais e dos subsiacutedios sobre os produtos agriacutecolas dos paises europeus na OMC Para mais informaccedilotildees sobre o agronegoacutecio no Brasil ver httpwwwagriculturagovbr 151 As projeccedilotildees comparaccedilatildeo com os demais paiacuteses da Ameacuterica Latina ldquoAnuaacuterio Estatiacutesticordquo ver em httpwwwmdicgovbrsitiointernainternaphparea=2ampmenu=1479 para o ldquoRelatoacuteriordquo indicadores econocircmicos e sociais ver em httpwwwmdicgovbrarquivosdwnl_1234969449pdf

glorioso capaz de romper com as delimitaccedilotildees de uma ordem econocircmica preacute-configurada

atraveacutes da ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo das naccedilotildees mundiais ou da historia humana como um

todo152 Mas a prudecircncia eacute amiga da vida e neste sentido facilmente chega-se a compreensatildeo

que embora a histoacuteria do Brasil seja marcada pelas consequumlecircncias que a colonizaccedilatildeo lhe impocircs

eacute liacutecito caminhar com feacute e esperanccedila no desespero ou na convicccedilatildeo de que se pode ser um paiacutes

desenvolvido

Na medida em que se refere agrave feacute aspecto marcante do ldquoser brasileirordquo153 ndash configuraccedilatildeo

pautada nas bases da originalidade distinta e das circunstacircncias exigecircncias de soluccedilotildees - a

questatildeo da religiosidade deste povo se torna visiacutevel e embora a quem julgue que religiatildeo seja

assunto de difiacutecil trato no Brasil devido agraves muitas existentes natildeo existem conflitos entre as

religiotildees no Brasil O brasileiro vive imerso numa pluralidade cultural que carrega na sua

representaccedilatildeo maacutexima a ambiecircncia da religiatildeo marcada pela cultura costumes ritos e mitos

destes brasileiros (iacutendios negros provenientes da Aacutefrica e brancos vindos da Europa)

As questotildees sobre os distanciamentos e as aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e

tecnologiardquo possuem um elemento comum estatildeo ligadas a aspectos que envolvem a feacute e a eacutetica

da religiatildeo No campo da biologia e da medicina natildeo existem uma concordacircncia a respeito de

alguns temas de significativa importacircncia para a sociedade brasileira principalmente os de

bioeacutetica A eutanaacutesia o aborto a inseminaccedilatildeo artificial a clonagem e as ceacutelulas tronco satildeo

dilemas eacuteticos a serem tratados e superados A religiatildeo no processo de ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-

culturalrdquo das sociedades possui por natureza um caraacuteter de componente do sistema ldquoassociativordquo

que eacute muito marcante A ciecircncia e a tecnologia a seu modo tambeacutem possuem este caraacuteter de

componente do sistema ldquoassociativordquo entretanto foi a partir do ldquoiluminismordquo que a ciecircncia e a

tecnologia ganharam o status de autoridade capaz de intervir sobre o mundo e a natureza

No Brasil a criaccedilatildeo de mecanismos institucionalizados que possibilitam a referecircncia

sobre o pensamento social brasileiro em mateacuteria de ciecircncia e tecnologia somente acontece a

partir da deacutecada de 20 quando surgem as primeiras ldquouniversidadesrdquo Na deacutecada de 50 eacute

instituiacutedo o Conselho Nacional de Pesquisa hoje Conselho Nacional de Ciecircncia e Tecnologia e

a Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior A partir da deacutecada de 60

152 Para uma maior compreensatildeo e neste caso a compreensatildeo correta ver os teoacutericos da corrente denominada ldquoTeoria da Dependecircnciardquo Natildeo confundir ingenuamente o termo ldquodependecircnciardquo como fizeram outros teoacutericos sobre esta leitura pois a utilizaccedilatildeo do termo e sua validade na anaacutelise da dinacircmica de relaccedilotildees soacutecio-economicas de poder derivadas do capital necessita de um esforccedilo quanto ao meacutetodo Ver o ldquocaso chilenordquo Cap V Parte 3 B ldquoDependecircncia e Desenvolvimentordquo Cap VI Parte 3 In CARDOSO Fernado Henrique amp FALLETO Enzo Dependecircncia e Desenvolvimento na Ameacuterica Latina Ensaios de Interpretaccedilatildeo Socioloacutegica 8ordf Ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2004 153 QUEIROZ Maria Isaura Identidade nacional religiatildeo expressotildees culturais a criaccedilatildeo religiosa no Brasil In SACHS Viola Brasil amp EUA religiatildeo e identidade nacional Rio de Janeiro Graal 1988 pp 59-83 A autora sugere leitura de outros autores para uma maior compreensatildeo do ldquoser brasileirordquo ROMERO 1871 TORRES 1914 OLIVEIRA VIANNA 1923 PRADO 1928 BUARQUE DE HOLLANDA 1936 MELLO FRANCO 1936 FREYRE 1947 MOREIRA LEITE 1968 AZEVEDO 1981

surgem os primeiros programas de poacutes-graduaccedilatildeo O Ministeacuterio da Ciecircncia e Tecnologia154 foi

criado em 1958 um dos aspectos de sua missatildeo consiste em definir a ldquoPoliacutetica Nacional de

Ciecircncia e Tecnologia e Inovaccedilatildeordquo existem na atualidade algumas instituiccedilotildees cujo objetivo

consiste em fomentar a pesquisa cientiacutefico tecnoloacutegica no paiacutes atraveacutes de accedilotildees ligadas a este

Ministeacuterio ou em parceria direta com as instituiccedilotildees de ensino e pesquisa

Outro fator importante eacute que a religiatildeo entende que a mentalidade cientiacutefica e

tecnoloacutegica na ausecircncia de paracircmetros adequados conduz a uma eacutetica utilitarista capaz de

conduzir a sociedade a uma descontrolada degradaccedilatildeo ambiental e ao consumismo E tambeacutem a

substituiccedilatildeo crescente do culto ao divino e da alteridade nas relaccedilotildees interpessoais pela relaccedilatildeo

entre o homem e o ldquoobjeto funcionalrdquo natildeo criacutetico criado atraveacutes da tecnologia

A religiatildeo tambeacutem se utiliza da tecnologia para expansatildeo e manutenccedilatildeo de seus ideais e

crenccedilas A tecnologia possibilitou a globalizaccedilatildeo das religiotildees atraveacutes dos meios de

comunicaccedilatildeo A evangelizaccedilatildeo cristatilde e o proselitismo das demais tradiccedilotildees ganharam um

alcance significativo na contemporaneidade o modelo de organizaccedilatildeo institucional das

tradiccedilotildees bem como a relaccedilatildeo entre os fieis participantes natildeo resistiu agrave adesatildeo de algumas das

inovaccedilotildees tecnoloacutegicas Deste modo a forma de compreensatildeo sobre os aspectos lituacutergicos e dos

espaccedilos sagrados ganhou um novo sentido Na contemporaneidade um fiel pode prestar um

reverente culto agrave divindade em quem acredita sem necessitar ir a um templo atraveacutes da internet

ou da televisatildeo onde quer que uma pessoa esteja facilmente pode prestar um culto A religiatildeo

pode deslocar-se para aleacutem dos limites geograacuteficos locais de uma maneira antes nunca

experimentada na histoacuteria humana O cristianismo protestante cresceu significativamente na

sociedade brasileira contemporacircneo o deslocamento do centro do cristianismo das naccedilotildees do

norte para as do sul considera-se um dos fatores outro pode ser visto na facilidade deste modo

de cristianismo lidar com o capital e consequentemente as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas adaptando-as

rapidamente agrave sua maneira de praacutexis religiosa

Uma leitura na contemporaneidade bastante congruente as reflexotildees atuais sobre a que

caminhos o desenvolvimento tecnoloacutegico pode conduzir a histoacuteria da humanidade estatildeo entorno

de questotildees ligadas agrave engenharia ciberneacutetica O criador desta ciecircncia o matemaacutetico norte-

americano Norbert Wiener (1964) intelectual que experimentou a II Guerra Mundial projetando

sistemas de defesa para os EUA na tentativa de contribuir para o tema escreveu ldquoGod amp

Golem Inc A Comment on Certain points Where Cybernets Impinges on Religionrdquo onde

destaca trecircs aspectos fundamentais em seu entendimento da relaccedilatildeo entre a ciecircncia ciberneacutetica e

a religiatildeo O primeiro eacute sobre as maacutequinas capazes de aprender autonomamente o segundo

sobre maacutequinas dotadas de sistemas com capacidade criativa para produzir outras maacutequinas e o

terceiro sobre o problema eacutetico de relaccedilatildeo entre maacutequinas e humanos

154 Ver em wwwmctgovbr

A utilizaccedilatildeo reflexionada do texto biacuteblico de Joacute para demonstrar que assim como Deus

possui comando indistinto sobre a vida de Joacute e sobre o democircnio pois eacute criador de todas as

coisas e estes uacuteltimos satildeo criaccedilotildees sua permitiu-lhe estabelecer o criteacuterio eacutetico em que o homem

possui o domiacutenio irrevogaacutevel sobre a maacutequina pois eacute um ser vivo e tambeacutem aquele quem criou

a maacutequina A questatildeo certamente encontra-se no ldquoconhecimento na maquinardquo e no

ldquoconhecimento da maacutequinardquo e no caso das ciberneacuteticas com capacidade de retroaccedilatildeo em

segundo grau natildeo tatildeo complexas como o ceacuterebro humano mas com capacidades superiores a de

instrumentos de trabalho os quais o funcionamento exclusivamente depende do homem

O termo ldquociberneacuteticardquo estaacute cada vez mais presente na cultura brasileira e aos poucos

torna-se parte do imaginaacuterio que compotildee o pensamento sobre a sociedade anteriormente restrito

apenas a ambientes acadecircmicos e aos ciacuterculos da produccedilatildeo tecnoloacutegica presente agora nos

modos de relaccedilatildeo e de produccedilatildeo das sociedades contemporacircneas

CONCLUSAtildeO

Na relaccedilatildeo entre a ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no Brasil observam-se um diaacutelogo o

qual as questotildees ligadas agrave feacute e a eacutetica proporcionam um debate capaz de impulsionaacute-las no

sentido de um intercacircmbio em que a promoccedilatildeo do desenvolvimento humano social e

ambiental eacute entendida como missatildeo a ser desempenhada por todas as instituiccedilotildees da sociedade

Um compromisso comum - ldquosolidariedaderdquo - que possibilita a aceitaccedilatildeo dos desafios do

empreendimento de desvendar o mundo a natureza e o espaccedilo de forma segura e responsaacutevel

ldquoReligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo compromissadas com a promoccedilatildeo da esperanccedila de um mundo

mais justo do desenvolvimento das regiotildees brasileiras marcadas pela pobreza do acolhimento

dos povos empobrecidos do avanccedilo do conhecimento e da educaccedilatildeo e da transformaccedilatildeo eacutetica

dos tomadores de decisatildeo satildeo temas que possiacuteveis agrave criaccedilatildeo de uma agenda comum

BIBLIOGRAFIA

Anuaacuterio Estatiacutestico Ministeacuterio do Desenvolvimento Induacutestria e Comeacutercio Exterior Secretaria do Desenvolvimento da Produccedilatildeo - Brasiacutelia SDP 2009 CARDOSO Fernado Henrique amp FALLETO Enzo Dependecircncia e Desenvolvimento na Ameacuterica Latina Ensaios de Interpretaccedilatildeo Socioloacutegica 8ordf Ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2004 CERVO Amado L amp BUENO Clodoaldo Historia da Poliacutetica Exterior do Brasil 3ordf Ed Brasiacutelia UNB 2008 DURKHEIM Emile As formas elementares da vida religiosa Satildeo Paulo Paulinas 1989 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro LTC 1989 GRESSLER Lori Alice Introduccedilatildeo agrave pesquisa projetos e relatoacuterios Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2003 GRUEN W O Ensino Religioso na Escola 2ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1995 PINTO Aacutelvaro Vieira O Conceito de Tecnologia 1ordf Ed Volume II Rio de janeiro Contraponto 2005 RIBEIRO D O processo civilizatoacuterio estudos de antropologia da civilizaccedilatildeo 9 Ed Petroacutep Vozes 1987 SACHS Viola Brasil amp EUA religiatildeo e identidade nacional Rio de Janeiro Graal 1988 SOUZA B M (Org) GOUVEIA E H (Org) JARDILINO J R L (Org) Sociologia da Religiatildeo no Brasil (Revisitando Metodologias Classificaccedilotildees e Teacutecnicas de Pesquisa) Satildeo Paulo UMESP (Universidade Metodista de Satildeo Paulo) 1998 WIENER Norbert God amp Golem Inc A Comment on Certain points Where Cybernets Impinges on Religion The MIT Press Massachusetts Institute of Technology Cambridge Massachusetts 1973

Deus na era digital miacutedia e linguagem religiosa155

Leomar Antocircnio Brustolin156

Este artigo eacute resultado da reflexatildeo teoloacutegica sobre o fenocircmeno religioso marcado pela

linguagem religiosa na miacutedia digitalizada no Brasil Essa realidade causa forte impacto sobre a

vivecircncia comunitaacuteria da feacute a noccedilatildeo de religiosidade e as praacuteticas religiosas nas diferentes

confissotildees A religiatildeo tradicional sofre profundas mutaccedilotildees que precisam ser analisadas sob o

ponto de vista da Comunicaccedilatildeo e da Teologia Termos convencionais como comunidade

participaccedilatildeo espaccedilo e presenccedila adquirem novos significados jamais pensados O fenocircmeno que

iniciou com as chamadas igrejas eletrocircnicas expandiu suas potencialidades sobre diferentes

meios e em diferentes tradiccedilotildees religiosas As mudanccedilas raacutepidas e profundas interpelam novos

caminhos para o anuacutencio e a vivecircncia da feacute O desafio consiste em investigar a relaccedilatildeo do

sagrado experimentado tradicionalmente no espaccedilo presencial com o sagrado reconstruiacutedo pela

miacutedia moderna

Alguns denominam o nosso tempo de ldquopoacutes-modernidaderdquo caracterizado pela

desconfianccedila da razatildeo e desencantado com as ofertas e os ideais da modernidade O mundo

racionalizado a sociedade com sua ciecircncia e teacutecnica liquidam as alteridades reduzindo-as ao

proacuteprio indiviacuteduo - ldquoo outro sou eurdquo Essa eacute a loacutegica na avalanche do sagrado selvagem No

hiperconsumo e hiperindividualismo as pessoas procuram a religiatildeo individualmente natildeo eacute

mais atraveacutes da famiacutelia da comunidade eacute uma demanda fragmentada Essa procura natildeo se daacute

por sua pertenccedila religiosa confessional mas por vaacuterias modalidades de sincretismo Nos dias

atuais eacute cada vez mais possiacutevel crer sem pertencer a nenhuma religiatildeo

A procura da religiatildeo no indiviacuteduo poacutes-moderno se daacute por cura conquista no amor

negoacutecios busca de riqueza seguranccedila sentimento de utilidade gosto de viver sem anguacutestia

realizaccedilatildeo do seu ser profundo e do fim uacuteltimo Nessa demanda fragmentada a religiatildeo natildeo eacute a

uacutenica opccedilatildeo ela concorre com especialistas das ciecircncias humanas Ocorre assim um amplo

espaccedilo de atuaccedilatildeo dos movimentos religiosos casando o narcisismo agrave necessidade de ter uma

tribo

No campo religioso evidencia-se o desaparecimento das verdades de feacute e o crescimento

da emergecircncia da subjetividade para normatizar a experiecircncia religiosa que passa a ser

privatizada Haacute uma espeacutecie de religiatildeo ala carte de acordo com as preferecircncias de cada fiel

Decorrem dessa perspectiva individualista a pluralidade de verdades a dissoluccedilatildeo dos sentidos

155 O artigo eacute resultado parcial da pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre miacutedia mercado e religiatildeo realizada para a conferecircncia Deus como mercadoria na era digital a ser apresentada no Mutiratildeo da Comunicaccedilatildeo da Ameacuterica Latina e Caribe em fevereiro de 2010 156 Doutor em Teologia e professor na PUCRS

e a fragmentaccedilatildeo da realidade Nesse contexto evidencia-se o retorno do sagrado como

alternativa para reencantar um mundo dessacralizado pela ciecircncia A novidade estaacute no fato do

acircmbito religioso ter se cruzado com o acircmbito midaacutetico nessa tarefa de dar ldquosaborrdquo agrave insipidez

produzida pelo estilo de vida no ocidente atual

Diante da influecircncia dos meios de comunicaccedilatildeo entre eles a televisatildeo e o acesso agraves

redes virtuais cabe questionar as perspectivas da religiatildeo numa sociedade individualista pautada

pela miacutedia

1 A era da miacutedia digital

A atual sociedade vive pautada pela miacutedia eletrocircnica A era da informaccedilatildeo consolida-se

como um novo paradigma sustentado pelos sistemas midiaacuteticos Encontramos cada vez mais

meios de comunicaccedilatildeo diversificados para atender agraves diferentes demandas do consumidor

Pretende-se falar diretamente com ele buscando maior interaccedilatildeo para entretecirc-lo informaacute-lo e

tornaacute-lo mais comprador Isso propicia um acelerado desenvolvimento dos meios de

comunicaccedilatildeo do cinema agrave televisatildeo da raacutedio agrave internet A miacutedia natildeo eacute mais apenas um monitor

para ser visto ou um aparelho de raacutedio que chama atenccedilatildeo do ouvido Eacute um clima um ambiente

no qual estamos inseridos e nos envolve e penetra de todos os lados Vivemos num mundo de

sons imagens cores impulsos e vibraccedilotildees como o homem primitivo que vivia no meio das

florestas marcado por muitos sinais comunicativos Essa nova situaccedilatildeo configura um novo

ambiente e os meios de comunicaccedilatildeo constituem um novo modo de ser e de viver

Essa influecircncia marcou de tal forma o nosso tempo que afetou a proacutepria relaccedilatildeo do ser

humano com o mundo As novas tecnologias alteraram a relaccedilatildeo do ser humano com o espaccedilo e

geraram uma sociedade em rede caracterizada pelo espaccedilo de fluxos Este segundo Castells eacute

ldquoa organizaccedilatildeo material das praacuteticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de

fluxos 157rdquo Trata-se de um novo espaccedilo virtual de comunicaccedilatildeo navegaacutevel e focado no fluxo da

informaccedilatildeo um novo domiacutenio um novo espaccedilo e duma nova possibilidade de relaccedilotildees geradas

pela interconexatildeo da rede mundial de computadores Esta possibilita a tele-presenccedila na qual as

pessoas podem estar presentes em lugares distantes daqueles nos quais se encontram

fisicamente Ultrapassam fronteiras poliacuteticas e limites geograacuteficos sem sair do lugar

Natildeo eacute possiacutevel deixar de entrar em contato direto com essas novas formas de

comunicaccedilatildeo num mundo em acelerado processo de mudanccedilas especialmente na era da

informaacutetica e das telecomunicaccedilotildees digitais Ainda haacute outros avanccedilos que estatildeo sendo

projetados A popularizaccedilatildeo da televisatildeo digital por exemplo possibilitaraacute maior interatividade

e transformaraacute os telespectadores em atores mais ativos do processo comunicativo Contudo 157 CASTELLS Manuel A Sociedade em Rede Satildeo Paulo Paz e Terra 2000 p436

natildeo se pode esquecer o risco de alimentarmos uma experiecircncia religiosa individualista

privatizada com raros momentos de convivecircncia e participaccedilatildeo presencial

A miacutedia afeta o coraccedilatildeo humano com suas informaccedilotildees iacutecones mensagens e linguagem

singular Ela informa entreteacutem educa forma e paradoxalmente distorce manipula controla e

destroacutei o senso criacutetico das pessoas A novidade maior contudo eacute a sua interatividade Com a

popularizaccedilatildeo da televisatildeo esta comeccedilou a influenciar e determinar o comportamento de seus

telespectadores Nos uacuteltimos tempos atraveacutes da interatividade multimidial esse processo

cresceu quantitativa e qualitativamente As muacuteltiplas ofertas os horaacuterios alternativos e as

pesquisas da audiecircncia permitem ao espectador escolher aquilo que pretende assistir quando lhe

conveacutem e na modalidade que lhe agrada

As novas tecnologias causam novos haacutebitos de percepccedilatildeo da realidade desde a refraccedilatildeo

ao discurso abstrato e meramente racional ateacute a emergecircncia de uma abertura e nova

sensibilidade para a linguagem simboacutelica e o comportamento eacutetico

No momento surgem relaccedilotildees virtuais que enchem o tempo e o espaccedilo interior das pessoas unicamente por meio da telemaacutetica Algo fantaacutestico estaacute acontecendo Pessoas passam semanas interagindo pela Internet em que se datildeo desde conversas de alto niacutevel teoacuterico ateacute vulgaridades e estabelecem as mais diversas relaccedilotildees afetivas entrando ateacute na aacuterea do cibersexo158

A ldquosociedade do espetaacuteculordquo assim denominada por Guy Debord produz a

invasatildeo da miacutedia atraveacutes da deploraacutevel ldquoespetacularizaccedilatildeordquo das informaccedilotildees sobre eventos

traacutegicos como guerras e cataacutestrofes Segundo Guy Debord ldquoNesse mundo o espectador natildeo se

sente em casa em lugar algum No espetaacuteculo bem como na religiatildeo cada momento da vida

cada ideacuteia e cada gesto soacute encontram seu sentido fora de si mesmosrdquo 159

O espetaacuteculo natildeo eacute soacute uma propaganda difundida pelos meios de comunicaccedilatildeo toda

atividade social eacute captada pelo espetaacuteculo visando seus proacuteprios fins Os problemas satildeo as

imagens e representaccedilotildees que veiculam uma independecircncia banindo da vida qualquer diaacutelogo

As representaccedilotildees nascem da praacutetica social coletiva mas se comportam como seres

independentes A era da informaacutetica e a popularizaccedilatildeo do computador permitem novas

caracteriacutesticas

Hoje o computador estaacute organizando as comunicaccedilotildees de um modo revolucionaacuterio o que o torna ferramenta ideal para gerenciar uma economia onde todos buscam ter experiecircncias emocionantes e divertidas interagem em mundos paralelos ao mesmo tempo para se

158 STORCHL COZACJ Relaccedilotildees Virtuais- O lado humano da comunicaccedilatildeo eletrocircnica in LIBANIO JB Eu creio noacutes cremos Satildeo Paulo Loyola 2000 p111 159 JAPPE Anselm Guy Debord Rio de Janeiro Vozes 1999 22

adaptar a qualquer realidade Neste processo o computador estaacute mudando lentamente a proacutepria consciecircncia humana160

Tudo isso poreacutem natildeo significa maior conhecimento sobre a verdade ou sobre a

realidade Por estarmos acostumados a um conhecimento midiatizado a distacircncia da realidade

pode atingir o niacutevel da falsificaccedilatildeo A seduccedilatildeo das palavras pode tomar posse da nossa vontade

e nos encantar com uma verdade produzida pelos meios manipulando a proacutepria realidade Os

meios de comunicaccedilatildeo transmitem junto com suas mensagens alguns modelos e modos de

pensar que influenciam e condicionam A comunicaccedilatildeo midiaacutetica e a tecnologia que lhe daacute

suporte nunca satildeo neutras mesmo que assim sejam consideradas A mentalidade e as escolhas

das pessoas dependem das notiacutecias que recebem e como as coisas lhes satildeo comunicadas e da

tecnologia utilizada

A miacutedia pode dirigir a opiniatildeo puacuteblica convencer sobre verdades inexistentes e fazer

passar como um bem comum o que na realidade eacute interesse pessoal ou de um grupo de poder

Pelo seu caraacuteter universal e sua rapidez a miacutedia condiciona as realidades do mundo A verdade

fica sempre mais dependente do consenso ou do grau de visibilidade que os meios de

comunicaccedilatildeo imprimem

Eacute preciso considerar a influecircncia da tecnologia para forjar uma nova cultura

() os meios realmente natildeo satildeo simples instrumentos neutros eles satildeo ao mesmo tempo meio e mensagem portadores de uma nova cultura que nasce antes mesmo dos conteuacutedos do proacuteprio fato de existir novos modos de comunicar com novas linguagens novas teacutecnicas novas atitudes psicoloacutegicas161

A miacutedia difunde novas liacutenguas novos coacutedigos novas formas comunicativas novos

conteuacutedos e novos modos de aproximaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo da realidade Assim ela educa e forma

uma nova mentalidade que se insere no cotidiano das pessoas e daacute vida agrave sociedade de massa e

agrave consequumlente cultura de massa Esta eacute condicionada pelas imagens e pelos coacutedigos

comunicativos induzidos pela miacutedia Os sinais envolvem permeiam estruturam e natildeo raras

vezes dominam

2 Miacutedia e religiatildeo

Durante muito tempo antes da invenccedilatildeo da imprensa a forma mais comum de

comunicaccedilatildeo era a linguagem oral e a imagem A feacute cristatilde encontrou no recurso visual uma

160 RIFKIN Jeremy A era do acesso Satildeo Paulo Makron Books 2001 p 169 161 CONFERENZA EPISCOPALE ITALIANA Comunicazione e Missione Direttorio sulle Comunicazioni Sociali nella Missione della Chiesa Cittagrave Del Vaticano Libreria Editrice Vaticana 2004 n 4

excelente forma de comunicar o misteacuterio da salvaccedilatildeo Para isso valeu-se da escultura da

pintura dos vitrais e de tantas outras manifestaccedilotildees culturais Desde os desenhos das

catacumbas agraves obras de arte das catedrais medievais a arte ocupou lugar privilegiado pra

comunicar simbolicamente uma verdade transcendente

Foi com o advento da imprensa que a letra impressa tornou-se meio privilegiado

de comunicaccedilatildeo O livro se impocircs como o melhor meio para a transmissatildeo da cultura Essa

mudanccedila da imagem para a letra impressa serviu muito para a comunicaccedilatildeo da feacute mas hoje

associada agrave impressatildeo outras formas de comunicaccedilatildeo interpelam o ser humano e por isso

tambeacutem as religiotildees procuram responder aos novos apelos

Atualmente percebe-se a interferecircncia do sagrado na era digital pela publicidade e pela

visibilidade midiaacutetica de diferentes manifestaccedilotildees religiosas As igrejas eletrocircnicas as ofertas de

ocultistas adivinhos taroacutelogos as transmissotildees de piedade popular e a missa diaacuteria televisiva

podem ser citados como exemplos desse fenocircmeno A feacute passou a ser transmitida e

experimentada atraveacutes das multimiacutedias No Brasil eacute possiacutevel acessar diferentes canais de

televisatildeo com tais ofertas Catoacutelicos protestantes pentecostais kardecistas umbandistas e ateacute

grupos orientais apresentam-se na ldquotelinhardquo nos diferentes horaacuterios da programaccedilatildeo Se

conectarmos a internet entatildeo nos depararemos com um oceano de possibilidades para acessar

experiecircncias com o sagrado Natildeo daacute para subestimar e nem supervalorizar tais experiecircncias O

certo eacute que estamos diante de uma nova forma de vivecircncia religiosa Haacute poucos anos atraacutes se

dizia que as Igrejas eletrocircnicas eram especialmente pentecostais que difundiam sua mensagem

atraveacutes de hinos pregaccedilotildees e relatos de testemunhos de feacute162 Hoje proliferam-se essas praacuteticas

entre os meios catoacutelicos163

162 No Brasil a experiecircncia americana de pregaccedilotildees religiosas pela televisatildeo chegou especialmente com Pat Robertson Rex Humbard Billy Grahan e Oral Roberts Especialmente nas manhatildes de saacutebado nos anos 70 era possiacutevel ouvir as pregaccedilotildees dubladas desses telepastores Suas reflexotildees eram intercaladas por hinos biacuteblicos entoados em inglecircs por grandes corais Posteriormente eles foram substituiacutedos por pastores brasileiros que comeccedilaram a usar o raacutedio e a TV para difundir suas mensagens Davi Miranda fundador da Igreja Deus eacute Amor comeccedilou o seu trabalho de pregaccedilatildeo atraveacutes de emissoras de raacutedio Contudo foi Edir Macedo quem mais usou as miacutedias para a difusatildeo da Igreja Universal do Reino de Deus Aleacutem do raacutedio valeu-se de um sistema de televisatildeo que acabou adquirindo a Rede Record As iniciativas de Miranda e Macedo ultrapassaram as fronteiras nacionais A mesma estrada foi trilhada pelo pregador R R Soares o fundador da Igreja Internacional da Graccedila que comprou um espaccedilo em horaacuterio nobre na Rede Bandeirantes e o manteacutem diariamente 163 A Igreja Catoacutelica Romana entrou na expansatildeo da comunicaccedilatildeo midiaacutetica depois de experiecircncias mais locais (Difusora de Porto Alegre e Pato Branco no Paranaacute) com a Rede Vida de Televisatildeo Atualmente os catoacutelicos contam com seis redes de televisatildeo Rede Vida (Satildeo Joseacute do Rio Preto-SP) TV Aparecida (Aparecida-SP ) TV Horizonte ( Belo Horizonte ndash MG) TV Nazareacute ( Beleacutem ndashParaacute) Seacuteculo XXI ( Campinas) e Canccedilatildeo Nova ( Cachoeira Paulista ndash SP)

A nova ambiecircncia forjada pela miacutedia descarta objetividades e caminhos absolutos

Prefere-se a experiecircncia pessoal a vivecircncia o contado direto com o misteacuterio feito por

sensaccedilotildees impressotildees e impactos sobre a subjetividade Eacute muito difiacutecil portanto anunciar algo

absoluto numa cultura formada por verdades subjetivas Vivemos num contexto de pluralidade

que natildeo aceita mais uma soacute verdade As pessoas preferem fazer muitas escolhas ter muitas

possibilidades evitam ter a existecircncia marcada por uma soacute direccedilatildeo A maioria das pessoas

declara-se crente mas tambeacutem natildeo hesita em seguir os apelos de uma religiatildeo reduzida ao

caraacuteter provisoacuterio e ocasional Considere-se a mobilidade existente entre os evangeacutelicos no

Brasil Com facilidade migram de uma igreja para outra determinados a encontrar uma

experiecircncia que satisfaccedila suas buscas mais imediatas

A problemaacutetica se intensifica com o advento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo

Elas propotildeem novos modelos comunicativos e natildeo se limitam agrave informaccedilatildeo ou agrave argumentaccedilatildeo

pois permitem uma performance quase ritual A miacutedia moderna tem uma poliacutetica de expansatildeo

fundada na ideacuteia de que ldquonada em nenhuma parte deve permanecer secreto164rdquo Basta recordar

a accedilatildeo tempestuosa dos ldquopaparazzirdquo famintos em revelar aspectos da privacidade das

celebridades Tal comunicaccedilatildeo sem resiacuteduos e nem segredos totalmente transparente acaba

eliminando as diversificaccedilotildees homologando tudo sob um criteacuterio uacutenico Eacute justamente esse

criteacuterio uacutenico da transparecircncia que natildeo tem consistecircncia na comunicaccedilatildeo religiosa O rito

religioso tem um valor testemunhal que jamais eacute totalmente captado no processo comunicativo

Haacute uma irredutibilidade que reflete o caraacuteter inalienaacutevel do misteacuterio que fundamenta o rito

A comunicaccedilatildeo ritual testemunha o que permanece escondido quando se discursa sobre

o misteacuterio A revelaccedilatildeo do transcendente co-implica tirar o veacuteu e ocultar-se novamente O Deus

revelado tambeacutem eacute o Deus absconditus O que entra em debate nesse ponto eacute a questatildeo da

interioridade explicitada e nesse movimento esvaziada pois se trata de uma dimensatildeo iacutentima

que ao se tornar totalmente puacuteblica perde sua forccedila integradora

Na comunicaccedilatildeo ritual haacute certa prioridade do sistema simboacutelico em relaccedilatildeo agrave

experiecircncia do seu significado porque pretendem mediar a participaccedilatildeo dos seres humanos em

Deus Ele enquanto espiacuterito habita todos os seres humanos numa presenccedila imanente agrave

personalidade e agrave subjetividade de cada indiviacuteduo Na consciecircncia humana poreacutem essa

presenccedila natildeo eacute objeto claro e expliacutecito Ela pode ser manifestada como uma experiecircncia do

desejo de liberdade sem tematizar o transcendente ou o sagrado Pelos ritos explicita-se a

presenccedila a priori de Deus ao ser humano Desta forma as pessoas participam conscientemente

de Deus mediante uma consciecircncia reflexiva

164 Cf BRETON Ph Lrsquoutopia della comunicazzione il mito del villaggio planetario Torino UTET 1995 p52-53

3 A linguagem do Misteacuterio

A comunicaccedilatildeo primordial estaacute em Deus eacute o proacuteprio Deus Sua comunicaccedilatildeo eacute criadora

de vida ldquoNo princiacutepio a Palavra estava em Deus e a Palavra era Deusrdquo (Jo 11) Deus pela

sua comunicaccedilatildeo cria para aleacutem dele mesmo O ser humano eacute comunicaccedilatildeo de Deus mas natildeo eacute

Deus Assim afirma o teoacutelogo alematildeo Karl Rahner o ser humano eacute a gramaacutetica de Deus

expressatildeo que surge da comunicaccedilatildeo de Deus Ele cria algueacutem que natildeo seja Deus O ser humano

surge quando Deus quer ser natildeo-Deus isto eacute aquele pronunciar-se como Palavra no vazio do

diverso de si 165

Ele se comunica com o ser humano adotando a liacutengua de cada povo ao qual se

dirige Essas liacutenguas tornam-se sagradas porque satildeo instrumentos de anuacutencio da parte de Deus

e dos seus enviados Isso natildeo significa apenas um fato linguumliacutestico Conhecer e falar a liacutengua do

outro natildeo eacute necessariamente comunicar-se com ele A comunicaccedilatildeo depende da sintonia com o

outro capaz de captar suas exigecircncias interpretar suas expectativas e despertar um desejo

profundo Falar ao outro portanto quer dizer encontraacute-lo na verdade do seu ser uacutenico e na

singularidade da sua situaccedilatildeo concreta Natildeo basta ter algo a dizer para ser compreendido Eacute

necessaacuterio provocar o interesse

Natildeo desprezar as diversas formas de comunicaccedilatildeo que a humanidade conhece eacute uma

condiccedilatildeo inerente agrave feacute cristatilde pois a comunicaccedilatildeo natildeo eacute simples movimento psicoloacutegico proacuteprio

da natureza humana Trata-se na verdade de uma categoria fundamental da revelaccedilatildeo cristatilde

Deus eacute comunicaccedilatildeo e revela sua proacutepria essecircncia seu amor Na encarnaccedilatildeo do Verbo podemos

dizer que Deus se faz audiovisual Atraveacutes desse meio Ele se comunica agrave humanidade Na

vinda de Jesus Cristo ocorre o maravilhoso encontro entre ceacuteu e terra numa comunicaccedilatildeo que

ultrapassa os limites do tempo e do espaccedilo Eacute assim que Deus adapta-se agrave linguagem que os

seres humanos satildeo capazes de entender e aos meios com os quais se comunicam

O encontro com o sagrado contudo sempre eacute percebido pela mediaccedilatildeo O divino se

revelao infinito se deixa perceber no limite da experiecircncia humana Nesse sentido vale-se de

um elemento material uma pessoa um lugar ou um fato histoacuterico De certa forma sacraliza-se e

diviniza-se a mediaccedilatildeo para que ela seja capaz de comunicar o encontro como misteacuterio Ela visa

a relaccedilatildeo simboacutelica

A linguagem religiosa se realiza basicamente atraveacutes do siacutembolo Ele funda toda as

outras formas de comunicaccedilatildeo da religiatildeo Ele eacute a representaccedilatildeo de uma ausecircncia e diz mais do

que aparenta Eacute expressatildeo do profundo da intuiccedilatildeo e da utopia O objeto simboacutelico traduz uma

hierofania experimentada e traduzida para que outros tenham possibilidade de fazer a mesma

165 Cf RAHNER Karl Curso Fundamental da feacute Introduccedilatildeo ao conceito de cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1989 p 293

experiecircncia do numinoso A comunicaccedilatildeo simboacutelica pretende portanto iniciar o outro no

encontro com o misteacuterio A necessidade hermenecircutica dos siacutembolos remete ao seu caraacuteter

relacional O ser humano vale-se do siacutembolo para se relacionar e comunicar

O siacutembolo contudo natildeo eacute um texto ou um relato claro e expliacutecito Sua representaccedilatildeo

natildeo eacute linguumliacutestica mas visual e figurativa porque eacute um signo aberto e sugestivo cuja significaccedilatildeo

depende do seu produtor Tal significaccedilatildeo eacute captada por uma interpretaccedilatildeo realizada num ato

segundo O siacutembolo eacute evocativo e orientador insinua e sugere Eacute por isso que ele supotildee

interpretaccedilatildeo ldquoO siacutembolo nos transmite o sentido da transparecircncia opaca do enigma e natildeo pela

vida da traduccedilatildeordquo166

Batista Mondin afirma que a linguagem religiosa possui trecircs caracteriacutesticas auto-

implicaccedilatildeo doxologia e missionariedade167 Ora a linguagem da feacute natildeo eacute descompromissada e

abstrata pois remete ao sujeito em sua relaccedilatildeo com o sagrado e ao seu envolvimento numa auto-

implicaccedilatildeo Igualmente eacute uma confissatildeo de louvor a Deus reconhecido como misteacuterio tremendo

e fascinante nas palavras de Rudolf Otto por isso se expressa em oraccedilotildees e ritos como

doxologia Enfim toda linguagem religiosa remete ao anuacutencio Precisa essencialmente ser

comunicada Ora com todo esse pressuposto de engajamento a relaccedilatildeo entre miacutedia e religiatildeo

supotildee uma reflexatildeo que deixa muitas perguntas sem respostas Contudo alguns aspectos satildeo

imprescindiacuteveis

4 Questotildees abertas

Diante das novas possibilidades de comunicaccedilatildeo e dos novos tipos de relacionamentos

que a miacutedia possibilita a religiatildeo tambeacutem interage de forma diferenciada com seus fieacuteis Haacute

muitas perspectivas e preocupaccedilotildees O ser humano atual eacute informado e conectado acessa dados

e ldquoviverdquo entre os espaccedilos virtuais A ausecircncia religiosa nesses meios eacute quase inconcebiacutevel

Contudo os questionamentos que se impotildeem especialmente no cristianismo catoacutelico referem-

se ao novo estilo de praticar a feacute resultante da miacutedia O choque aparece quando se estuda os

poderes da miacutedia Ela aleacutem de persuadir tem a capacidade de seduzir e na maioria das vezes

estaacute instrumentalizada pelo consumismo O espetaacuteculo eacute transformado em produto

Os meios de comunicaccedilatildeo tecircm a capacidade de influir natildeo soacute nas maneiras de pensar mas tambeacutem nos conteuacutedos do pensamento Para muitas pessoas a realidade corresponde ao que os meios de

166 RICOEUR Paul La simboacutelica del mal Madrid Taurus 1982 p 180 167 Cf MONDIN Battista A linguagem teoloacutegica como falar de Deus hoje Satildeo Paulo Paulinas 1979 p 72ss

comunicaccedilatildeo definem como tal o que eles explicitamente natildeo reconhecem parece insignificante 168

Especialmente para a feacute cristatilde o desafio acentua-se quando se refere ao encontro com

os outros Isto natildeo pode ser apenas midiatizado pois deveria ser um compromisso de

comensalidade de comunhatildeo de mesa como se faz na celebraccedilatildeo eucariacutestica169 A feacute vivida

atraveacutes da miacutedia natildeo pode trair o princiacutepio da Encarnaccedilatildeo do Verbo pois a vinda de Jesus

Cristo revelou uma inaudita relaccedilatildeo de proximidade entre o ceacuteu e a terra atraveacutes de uma

vizinhanccedila de Deus com as pessoas a qual interpela a comunhatildeo de vida entre as pessoas A

miacutedia pode transformar desejos em necessidades manipular expectativas e transformaacute-las em

sonho de consumo Nessa loacutegica o poder fascinante da miacutedia se levanta de forma majestosa

Tudo pode ser manipulado um rito uma pregaccedilatildeo um pop star religioso O problema eacute que o

Evangelho natildeo se deixa manipular Como manter a identidade nesse areoacutepago novo Na

perspectiva do Evangelho o sagrado natildeo se deixa domesticar pela miacutedia embora muitas

transmissotildees religiosas tendam a essa subordinaccedilatildeo das loacutegicas religiosas ao sistema midiaacutetico

A era digital supotildee uma comunicaccedilatildeo diferenciada uma linguagem religiosa capaz de

devolver o sentido agrave vida e produzir produtos culturais que atendam agraves perguntas

concretamente Seraacute preciso vencer dois desafios que se impotildeem a insuficiecircncia do significante

e a dissociaccedilatildeo entre significante e significado No significante o ser humano natildeo encontra a

realidade concreta soacutelida e consistente para apoiar sua contemplaccedilatildeo e dirigir-se ao invisiacutevel A

percepccedilatildeo muitas vezes fica reduzida a um mecanismo racional que vincula necessariamente

um objeto e um conceito Atualmente as pessoas estatildeo habituadas aos sinais e gostariam de ver

na liturgia um sinal evidente um significante que fosse acolhido por todos num modo uniacutevoco e

uniforme Este sinal contudo natildeo existe mas a sua leitura na traz nenhum conteuacutedo

informativo trata-se de uma situaccedilatildeo que natildeo favorece uma atitude de feacute antes a complexifica

Quando a religiatildeo eacute mediatizada e manipulada pelo marketing haacute uma construccedilatildeo

extraordinaacuteria de maacutequinas simboacutelicas sobre objetos vazios Procura-se identidades dispersas

pois siacutembolos e valores satildeo substituiacutedos a cada dia conforme a moda e o impulso de novidades

Hoje somos interpelados a narrar Deus a uma sociedade marcada pela era digital plural

e altamente informada Somos chamados a dar uma referecircncia sobre Deus tornaacute-lo mais

acessiacutevel e atual Muitas vezes poreacutem respondemos a esses apelos mediante abstraccedilotildees e

foacutermulas preacute-constituiacutedas sem comunicar experiecircncias de feacute do sujeito crente Presos aos nossos

168 Aetatis Novae 4 169 A missa transmitida pela televisatildeo comporta diversas questotildees complexas quando se pretende analisar a relaccedilatildeo entre o rito lituacutergico da eucaristia e as loacutegicas da miacutedia televisiva Trata-se de perceber como a teologia catoacutelica confronta-se com as novas expressotildees religiosas da miacutedia Deste encontro com seus diaacutelogos e conflitos possiacuteveis resultam as noccedilotildees de revelaccedilatildeo graccedila e sacramento

estudos e sondas conceituais muitas vezes natildeo somos capazes de estabelecer relaccedilotildees entre os

crentes e nem com o misteacuterio Acabamos criticando demais e nos tornamos mudos para

comunicar Deus numa sociedade que sofre constantes mutaccedilotildees comunicativas

A grande questatildeo que se impotildee hoje natildeo eacute como dizer as coisas mas o que dizer Para o

apoacutestolo Paulo a dificuldade era como chegar agraves pessoas e aos povos porque ele sabia o que

dizer Atualmente o problema natildeo eacute mais como chegar agraves pessoas mas o que dizer para elas

porque se multiplicam os canais de comunicaccedilatildeo e fragmentam-se os conteuacutedos Num mundo

sempre mais raacutepido e sedento de imediatismo o conteuacutedo da comunicaccedilatildeo tambeacutem fica afetado

Onde a mensagem eacute visiacutevel verdadeira e convincente nada deveraacute condicionaacute-la

Muitas expressotildees religiosas se constroem pela miacutedia e transformam a feacute em produto do

mercado gerando adeptos indiviacuteduos consumidores do sagrado Atraveacutes dos meios de

comunicaccedilatildeo de massa dilui-se a experiecircncia comunitaacuteria da religiatildeo e esvazia-se o caraacuteter

inter-relacional que a feacute exige Por conseguinte aumenta a religiosidade da emoccedilatildeo do

sentimento e da euforia em detrimento da feacute pautada por uma revelaccedilatildeo que exige uma praacutexis e

formulaccedilatildeo racional

Diante das melodias e dos ruiacutedos que os novos processos de comunicaccedilatildeo permitem agraves

Igrejas seraacute preciso discernir o que se pretende com a comunicaccedilatildeo religiosa Os criteacuterios natildeo

poderatildeo esquecer os princiacutepios da verdade da bondade e da beleza Uma transmissatildeo religiosa

natildeo pode deixar de conciliar esteacutetica com eacutetica O belo deve ser bom

Cada novo instrumento de comunicaccedilatildeo torna-se ocasiatildeo de relaccedilatildeo mas eacute preciso ter

conteuacutedos pessoas com vontade de inovar produccedilotildees capazes de ousar e vontade de colocar

tudo isso em praacutetica A passagem do globo para a aldeia nos interpela como pessoas de feacute seja

na comunicaccedilatildeo com os outros seja na vivecircncia pessoal dessa modalidade nova de comunicar

Natildeo interessa mais tanto a massa mas a individualidade

Enfim a experiecircncia do encontro com o sagrado com o numinoso implica numa

relaccedilatildeo afetiva e participativa Esse interesse e engajamento natildeo eacute vivido no isolamento mas na

partilha porque comunicar a experiecircncia eacute uma necessidade de quem a testemunhou A religiatildeo

reconhece o valor da comunicaccedilatildeo e lhe atribui um significado especiacutefico interesse e

engajamento Na vida humana haacute informaccedilotildees e dados que nem sempre supotildeem envolvimento

e interesse O conhecimento da ciecircncia da histoacuteria e do cotidiano natildeo dependem de forte

engajamento existencial Diferente eacute o niacutevel de interesse da linguagem religiosa pois se trata de

um conhecimento que demanda um engajamento subjetivo existencial e experiencial Ao dom

oferecido impotildee-se uma tarefa correspondente A comunicaccedilatildeo sagrada natildeo se realiza por mero

significado externo e objetivo pois supotildee conexatildeo com a vida interior dos destinataacuterios Os

siacutembolos ritos e sinais religiosos medeiam algo diferente da inteligibilidade da experiecircncia

cotidiana pois estatildeo vinculados a uma experiecircncia de transcendecircncia Isso supotildee uma

experiecircncia existencial participativa e engajada

A comunicaccedilatildeo do misteacuterio pode ser estudada e entendida facilmente como processo

psicoloacutegico antropoloacutegico e socioloacutegico Haacute contudo uma essecircncia mais complexa tal

comunicaccedilatildeo possibilita uma nova presenccedila do sagrado Ela remete agrave experiecircncia do passado

para acessar uma nova vivecircncia do numinoso no presente Usando diversas linguagens atraveacutes

do mito do rito e do siacutembolo busca-se recriar a experiecircncia religiosa fundante para atualizaacute-la

Nesse sentido natildeo se pretende alcanccedilar o inefaacutevel ou explicaacute-lo Deseja-se apenas tornaacute-lo

presente como outrora se vivenciou Toda linguagem supostamente religiosa que natildeo possibilite

tal mistagogia eacute diaboacutelica pois se rebela contra a natureza proacutepria da comunicaccedilatildeo com o

divino para manipulaacute-la em benefiacutecio de algum outro interesse infinitamente menor no seu

significado

Referecircncias

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Ciborgue e imortalidade da carne tecnologia e ressurreiccedilatildeo da carne

Oscar R Chemello O presente trabalho aborda a temaacutetica do desenvolvimento da biotecnologia e a reflexatildeo

eacutetica e teoloacutegica realizada para confrontar o progresso cientiacutefico que avanccedila para o

relacionamento com o corpo humano Graccedilas ao desenvolvimento da biotecnologia um novo

conceito de humanismo comeccedila a ser elaborado Para refletir sobre este tempo de possiacutevel

superaccedilatildeo das dependecircncias corpoacutereas poacutes-humano a teologia entra no debate eacutetico sobre o

corpo A teologia trazendo agrave luz da ressurreiccedilatildeo corpoacuterea de Jesus contribui para o pensamento

eacutetico questionar a atuaccedilatildeo tecnoloacutegica na vida humana De onde vem a salvaccedilatildeo completa para o

corpo Trazer salvaccedilatildeo significa trazer sauacutede para o corpo danificado e fraacutegil Para o debate

inicia-se apresentando o pano de fundo da pesquisa o contexto do poacutes-humano A biotecnologia

avaliada nos seus aspectos positivos para a medicina mas analisada criticamente nos atos de

desumanizaccedilatildeo Apoacutes a resposta da ressurreiccedilatildeo da carne como alternativa antropoloacutegica para

um novo relacionamento do ser humano com seu corpo e com sua dualidade sauacutede-doenccedila

vida-morte Por fim a antropologia biacuteblica sobre a criaccedilatildeo do ser humano e a salvaccedilatildeo pela accedilatildeo

de Deus que glorifica pelo Espiacuterito Santo a nossa corporalidade

1) TEMPOS DE POacuteS-HUMANO

A mudanccedila na ciecircncia moderna resultou numa nova relaccedilatildeo do ser humano com a

natureza A nova mentalidade moderna possibilitou um novo paradigma e nova forma de

interaccedilatildeo com o proacuteprio corpo com a natureza e com seu futuro A dessacralizaccedilatildeo do corpo e

do cosmos legitimaram a intervenccedilatildeo no corpo a descoberta das leis da natureza com o intuito

de dominaacute-las As tendecircncias fixistas do mundo sacralidade do corpo entendido com proibiccedilatildeo

da manipulaccedilatildeo satildeo substituiacutedas pelo antropocentrismo que domina manipula e interveacutem com a

sua mente subjugando a natureza

O domiacutenio da ciecircncia moderna chegou ao tempo atual num estaacutegio de intervenccedilatildeo na

natureza humana como nunca se tinha presenciado A tecnologia transformada em biotecnologia

possibilita a intervenccedilatildeo nos segredos do corpo humano Ateacute entatildeo a tecnologia modificava o

exterior mesmo o corpo era investigado mas sem a modificaccedilatildeo da natureza aquilo que eacute

constitutivo do humano A biotecnologia possibilita ao ser humano um poder impensaacutevel de

modificar a essecircncia do humano A engenharia geneacutetica exemplo desse poder biotecnoloacutegico

pode modificar escolher aperfeiccediloar os genes que compotildee a base para a vida humana A

natureza humana natildeo estaacute suspensa sobre o acaso o destino de recebermos as caracteriacutesticas dos

progenitores Agora os genes podem ser alterados e formar uma nova vida aprimorada pode-se

dominar a formaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas A natureza natildeo tem mais o poder sobre o humano e

sim o humano domina a natureza

Essa nova situaccedilatildeo gerou uma discussatildeo que estaacute apenas no inicio O poder do ser

humano se tornou mateacuteria de reflexatildeo e debate eacutetico A intervenccedilatildeo dentro do corpo humano

gera uma discussatildeo eacutetica sobre os limites do humano Nos eacute permitido intervir na vida humana

nestas condiccedilotildees Estamos brincando de deus Devem existir limites para o progresso humano

As questotildees apresentadas questionam toda a Antropologia Ocidental Faz-se uma

interrogaccedilatildeo sobre o humano sobre o valor da natureza a inter-relaccedilatildeo do humano e o natural e

o sobre o futuro do humano com o surgimento do poacutes-humano ou a era poacutes-bioloacutegica O que

estaacute em jogo neste debate Hoje tratar do corpo humano eacute sem duacutevida uma das questotildees mais

complexas e difiacuteceis A antropologia ainda natildeo definiu o termo poacutes-humano ainda ele natildeo estaacute

conceitualmente definido mas a mentalidade estaacute presente no pensamento cientifico e mesmo

cultural da eacutepoca

Poacutes-humano eacute um conceito recente que pode ser entendido de vaacuterios modos Entre as teorias do poacutes-humano algumas propotildee uma visatildeo eufoacuterica e hiperotimista de um futuro caracterizado pela libertaccedilatildeo do orgacircnico e dos seus limites (transumanismo cibercultura etc) Aqui se descortina a total transcendecircncia do corpo e da natureza a completa ultrapassagem pelo homem do processo evolutivo em nome de um desprezo do vivente e de tudo o que conta (emoccedilotildees corpo finitude morte) reduzido ao inuacutetil e residual fardo a puro lsquopeso mortorsquo() (PULCINI 2006 pg 11)

Depara-se com um dualismo sobre o poacutes-humano A afirmaccedilatildeo de um processo

evolutivo da humanidade que se encaminha para a superaccedilatildeo de toda fragilidade humana de

limites impostos pela natureza O poacutes-humano representa a libertaccedilatildeo e o domiacutenio humano

sobre o poder do acaso natural O ser humano a mercecirc das forccedilas naturais que determinam as

caracteriacutesticas pessoais recuperaccedilatildeo de doenccedilas geneacuteticas e mesmo recuperaccedilatildeo de partes do

corpo danificadas por proacuteteses O corpo humano salvo dos riscos da natureza das limitaccedilotildees

bioloacutegicas e podendo enfrentar a mortalidade e fragilidade do ser humano Afasta-se da natureza

para subjugaacute-la e impor sua mentalidade

O sonho de uma total emancipaccedilatildeo do ser humano em relaccedilatildeo aos seus limites a

vocaccedilatildeo destinada ao ilimitado guiou os esforccedilos humanos para melhores condiccedilotildees de vida na

Terra Para se tornar humano ocorreu constantemente na histoacuteria uma superaccedilatildeo do humano A

alegaccedilatildeo dos defensores mais entusiasmados do poacutes-humano lembram que o ser humano

somente consegue se humanizar ultrapassando seus limites humanos A humanizaccedilatildeo requer a

superaccedilatildeo da natureza Os desejos de imortalidade sauacutede perfeita para o corpo evitar o

sofrimento e transcendecircncia satildeo caracteriacutesticas do ser humano que busca superar o proacuteprio

humano Defensores como Dominique Lecourt (LECOURT 2005) procuram tirar o impacto

negativo que a biotecnologia pode causar pela opiniatildeo mais critica ao poacutes-humano

A filosofia do poacutes-humano tambeacutem reivindica uma nova postura em frente ao

humanismo Ocidental Elena Pulcini aponta para o fim de um antropocentrismo ontoloacutegico

ocorrido no Ocidente entendido como um ser isolado no universo O humanismo ateacute entatildeo foi

considerado como algueacutem isolado ontoloacutegico e fechado em si mesmo O poacutes-humano pretende

ser uma humano integrado com o natildeo-humano O humanismo ateacute agora foi fechado em si

mesmo o poacutes-humano abre o humano para a integraccedilatildeo com o natildeo-orgacircnico (maacutequinas

proacuteteses nanotecnologia) formando um novo ser hiacutebrido Uma integraccedilatildeo harmoniosa entre o

humano e o natildeo-humano ou seja harmonia entre o orgacircnico e o ciliacutecio formando o ciborgue

um ser uacutemido da junccedilatildeo do molhado do orgacircnico e do seco do ciliacutecio

Outro pensador italiano Roberto Marchesini defende a nova posiccedilatildeo humana diante do

humano Rejeita o ser humano como uacutenico protagonista da criaccedilatildeo e retoma o ser humano

como ser relacional O humano natildeo estaacute pronto como ser ontoloacutegico fechado em si mesmo O

poacutes-humano vive a integraccedilatildeo com a teacutecnica formando um ser hiacutebrido com a teacutecnica

(MARCHESINI 2006 pg 19)

O poacutes-humano vem em encontro da tendecircncia humana de superar seus limites Uma

nova sociedade estaacute surgindo baseada na primazia do espiacuterito livre sem o peso do corpo e de

suas fraquezas O desejo de sempre transcender os limites humanos impulsiona o ser humano a

livrar-se da naturalidade Para o processo de humanizaccedilatildeo para o ser humano ser mais humano

a natureza precisa ser vencida Ser o ser humano permanece no seu estado natural natildeo

humaniza-se assim lanccedila-se para superar a sua proacutepria naturalidade

Neste processo a fala e a escrita satildeo exemplos citados de superaccedilatildeo da naturalidade Os

oacutergatildeos respiratoacuterios natildeo possuem em si a capacidade natural para a fala nem mesmo braccedilos e

matildeos satildeo naturalmente destinados para a escrita O ser humano ao falar e escrever estaacute

superando a naturalidade esta usando a teacutecnica para sua humanizaccedilatildeo A teacutecnica estaacute a serviccedilo

da humanizaccedilatildeo O desenvolvimento do coacutertex cerebral extrapola a caixa craniana e se

desenvolve fora corpo na forma de cultura artes pinturas Mais uma vez usa-se o principio da

utilizaccedilatildeo da teacutecnica para a humanizaccedilatildeo o ser humano natildeo se humaniza apenas na

naturalidade

A essecircncia do homem natildeo estaria na sua parte animal mas na sua inteligecircncia Por infortuacutenio essa inteligecircncia acha-se petrificada na confusatildeo de emoccedilotildees com as quais o corpo a agride e alem disso ela eacute terrivelmente limitada por uma duraccedilatildeo de vida () Vamos libertaacute-la (LECOURT 2005 pg 56-57)

A sutiliza do pensamento da defesa do poacutes-humano baseia-se na noccedilatildeo de que o ser

humano precisa a todo custo superar a sua naturalidade para se tornar mais humano A teacutecnica eacute

uma aliada para superar a mortalidade humana a natureza criada por Deus se mostra deficiente

e fraacutegil dependendo do ser humano aperfeiccediloar pela teacutecnica e alcanccedilar um estaacutegio superior

Busca-se o rompimento com os limites naturais

A promessa da teacutecnica pode-se falar de biotecnologia de resoluccedilatildeo dos problemas

humanos referidos a doenccedilas geneacuteticas a partes do corpo humano defeituosas sendo

substituiacutedas por proacuteteses a cura para todos os males causados por um corpo mortal e defeituoso

gera na sociedade um entusiasmo pelas novas descobertas A promessa de um corpo perfeito

livre de todos os males causados pela natureza finita parece ser meta deste novo movimento

Na sequumlecircncia dessa evoluccedilatildeo o poacutes-humano significaria a superaccedilatildeo das fragilidades e vulnerabilidade de nossa condiccedilatildeo humana sobretudo do nosso destino para o envelhecimento e a morte Tal superaccedilatildeo seria atingida pela substituiccedilatildeo de nossa natureza bioloacutegica por uma outra natureza artificialmente produzida que natildeo sofreria as limitaccedilotildees e constrangimentos de nosso ser orgacircnico hoje obsoleto (SANTAELLA 2007 pg 45)

Mas o pensamento poacutes-humano merece uma reflexatildeo aprofundada Se os defensores da

utilizaccedilatildeo da tecnologia para superar as limitaccedilotildees humanas evitam a ldquodemonizaccedilatildeordquo da ciecircncia

tambeacutem deve-se evitar o otimismo exagerado dessas novas tecnologias A atuaccedilatildeo

biotecnologica estaacute inserida num contexto de criacuteticas sobre a manipulaccedilatildeo indiscriminada sobre

o corpo de rejeiccedilatildeo da mortalidade e fragilidade humana A natureza humana pode ser alterada

indiscriminadamente pelo ser humano

O poacutes-humano estaacute inserido por outro lado na dificuldade humana de enfrentar a proacutepria

finitude e mortalidade A busca pelo corpo perfeito pela negaccedilatildeo da fragilidade e dos limites

humanos gera um estado doentio de rejeiccedilatildeo de uma caracteriacutestica humana nossa mortalidade e

fragilidade A negaccedilatildeo de nosso estado natural causa uma enorme discussatildeo eacutetica sobre o valor

do humano e da natureza Em busca de uma vida prolongada livre da doenccedila e das limitaccedilotildees o

ser humano coloca em discussatildeo o proacuteprio futuro da humanidade e a artificializaccedilatildeo do corpo

Os mais recentes desenvolvimentos do progresso (bio)tecnoloacutegico reavivam e atualizam a reflexatildeo sobre o futuro da natureza humana diversos autores partilham a convicccedilatildeo de que as biotecnologias representam um dos maiores desafios da humanidade Envolvem questotildees do acircmbito das ciecircncias naturais da antropologia da filosofia e da teologia do direito e da poliacutetica da eacutetica (COUTINHO 2007 pg 151)

Vive-se o tempo da negaccedilatildeo da doenccedila e mortalidade e afirmaccedilatildeo da sauacutede perfeita

Poreacutem com esta busca o ser humano nega-se a si mesmo criando uma atitude doentia frente a

doenccedila e a dor A humanidade criou uma utopia de um sociedade sem dor sem sofrimento e

uma felicidade ilimitada e sauacutede perfeita Moltmann critica o conceito de sauacutede elaborado pela

OMS170 como sendo apenas a vida sem nenhum sofrimento ou doenccedila A pessoa humana

apenas tem seu valor enquanto tem sauacutede perfeita porque pode assim ser sujeito de sua vida

trabalhar e produzir Com a doenccedila se torna menos pessoa natildeo podendo consumir produzir e

ter independecircncia em relaccedilatildeo aos outros O culto moderno pela sauacutede perfeita produz uma

situaccedilatildeo de enfermidade da vida em relaccedilatildeo a doenccedila e a nossa mortalidade O culto de sauacutede

perfeita tornou-se uma ilusatildeo produzida pela biotecnologia o sonho da vida sem dor mas esta

justamente eacute a grande dor perceber que ainda o ser humano eacute fraacutegil (cf MOLTMANN 2007

pg 81-83)

O culto moderno da sauacutede produz precisamente aquilo que se quer ultrapassar nomeadamente o medo da doenccedila o receio perante o morrer e perante a morte Em vez de ultrapassar as doenccedilas e as enfermidades produz uma utopia de um bem-estar universal da qual satildeo excluiacutedas as doenccedilas incuraacuteveis os deficientes e os moribundos Sempre que o morrer e a morte natildeo satildeo considerados qualquer definiccedilatildeo de sauacutede torna-se ilusoacuteria (MOLTMANN 2007 pg 83)

O corpo humano tornou-se problemaacutetico um campo de atuaccedilatildeo da bioacutetica que precisa

responder agraves novas tendecircncias tecnoloacutegicas que problematizaram o humano e seus limites

Ocorre uma interaccedilatildeo do humano com a maacutequina formando um novo ser humano hiacutebrido numa

harmonia entre o orgacircnico e o ciliacutecio que chama-se ser uacutemido o ciborg A tecnologia que

atuava fora do corpo passou a intervir dentro do corpo humano alargando suas fronteiras Numa

fase embrionaacuteria a relaccedilatildeo do humano com a teacutecnica era sobreposta

Um exemplo satildeo as proacuteteses onde uma parte do corpo eacute substituiacuteda por uma parte

mecacircnica De uma forma rudimentar a proacutetese permanecia separada do corpo como um

170 Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

apecircndice Agora a proacutetese faz parte do proacuteprio corpo interagindo com o sistema nervoso

ligado aos nervos do corpo e respondendo aos comandos do ceacuterebro A proacutetese natildeo apenas

preenche um local mas se torna o proacuteprio corpo

A naturalidade humana estaacute sendo posta a prova O que pensar da lei natural O que

seraacute do humano A biotecnologia promoveu uma revoluccedilatildeo do pensamento sobre o futuro do

humano Sem fechar a questatildeo que receacutem estaacute sendo debatida busca-se uma visatildeo eacutetica que

possa assegurar a vocaccedilatildeo humana de busca de melhores condiccedilotildees de vida superar a

naturalidade que nos prende a um estado menos humano com os limites e o respeito intriacutenseco

desta mesma natureza A tecnologia humaniza e desumaniza natildeo existem mais fronteiras claras

do certo e do errado mas cabe encontrar um equiliacutebrio que possa legitimar a intervenccedilatildeo no

corpo humano

A biotecnologia proporcionou o aumento do potencial humano de preservaccedilatildeo da vida

imortalidade e sanaccedilatildeo das doenccedilas do ser humano Poreacutem coloca-se em risco o futuro da

humanidade juntamente com a perseguiccedilatildeo do corpo perfeito cria-se novas doenccedilas e uma luta

contra o proacuteprio corpo A natureza tornou-se inimiga a ser vencida pela teacutecnica humana Em

resumo a biotecnologia traz sanaccedilatildeo e condenaccedilatildeo ao corpo A questatildeo norteadora da pesquisa

eacute a salvaccedilatildeo para o corpo humano Quem pode salvar o corpo fraacutegil e mortal

A salvaccedilatildeo do corpo fraacutegil natildeo pode passar pela accedilatildeo humana Como percebe-se a accedilatildeo

tecnoloacutegica do ser humano sobre o corpo trouxe benefiacutecios mas uma serie de dificuldades

eacuteticas a rejeiccedilatildeo do fraacutegil e do imperfeito a eugecircnia e uma aniquilaccedilatildeo das mediaccediloes corporais

que satildeo substituiacutedas pela teacutecnica e pela maacutequina

2) A RESSURREICcedilAtildeO DA CARNE ALTERNATIVA PARA TEMPOS DE POacuteS-HUMANO

O poacutes-humano mesmo sem ser um conceito elaborado oferece o questionamento sobre

a superaccedilatildeo dos limites do humano e a salvaccedilatildeo para a natureza fraacutegil criada por Deus O ser

humano busca mais humanidade superando com sua proacutepria potencia seus limites mas gerando

malefiacutecios para sua proacutepria sauacutede A ressurreiccedilatildeo da carne eacute a resposta de Deus para a sanaccedilatildeo

do corpo fraacutegil sem contudo tornar-se uma obsessatildeo pela sauacutede sem correr os riscos do

eugenismo e fazer da sauacutede uma mercadoria que nem todos possuem capacidade de conseguir

Com a influecircncia da ressurreiccedilatildeo da carne propotildee-se uma nova leitura para a tratar dos

avanccedilos da biotecnologia A intervenccedilatildeo na natureza humana que pode considerar o corpo

descartaacutevel reduzir a vida humana apenas ao desespero pela sauacutede pode ser transformada numa

relaccedilatildeo harmoniosa entre sauacutede do corpo e aceitaccedilatildeo da mortalidade Uma nova mentalidade

deve surgir a partir da graccedila de Deus que salva sua primeira criaccedilatildeo A salvaccedilatildeo de Deus para o

ser humano deve reconciliar as relaccedilotildees de inimizade que o projeto moderno fez entre humano e

natural

O Espiacuterito de Deus recria a criaccedilatildeo afetada pelo pecado salva sem rejeita a mortalidade

Oferece ao ser humano a cura para suas doenccedilas e para toda a limitaccedilatildeo humana ldquoA natureza

natildeo eacute nenhum mecanismo hiacutebrido de cuja absurdez somente a inteligecircncia humana pode salvar

Como criaccedilatildeo possui dignidaderdquo (BRAKEMEIER 2005 pg 156)

A interferecircncia do pensamento teoloacutegico pode produzir uma reflexatildeo eacutetica sobre os

limites do desenvolvimento humano e sobre princiacutepios fundamentais que devem ser respeitados

Em nome da busca de sauacutede deve-se rejeitar a manipulaccedilatildeo indiscriminada que gera exclusotildees

na sociedade A Teologia propotildee dar sentido para o agir tecnoloacutegico sobre a vida humana A

intervenccedilatildeo cientiacutefica pode prolongar a vida ocasionar uma melhora significativa mas o sentido

para a vida e para o morrer lhe foge da sua capacidade A ressurreiccedilatildeo oferecida por Deus para o

ser humano retira a fadiga de perfeiccedilatildeo humana que se torna ilusoacuteria

A esperanccedila para o corpo fraacutegil natildeo vem apenas do progresso cientiacutefico Juntamente

com a vocaccedilatildeo humana de superar a pura naturalidade de natildeo estar entregue ao acaso a accedilatildeo de

Deus traz a vida nova para o corpo humano mortal Ocorre um salto qualitativo de vida para o

ser humano que por si natildeo consegue conquistar a vida eterna As fantasias de onipotecircncia satildeo

desfeitas e o ser humano confronta-se com sua necessidade de salvaccedilatildeo fora de si por graccedila

divina

Neste sentido Deus natildeo eacute compreendido como um opositor do progresso humano Sua

criaccedilatildeo natildeo se reduz a uma realidade que precisa ser manipulada constantemente Busca-se uma

accedilatildeo responsabilizada para a biotecnologia Evita-se com isso os extremos a compreensatildeo do

ser humano dominador de seu corpo e de sua natureza que tudo pode modificar sem se

preocupar com as consequumlecircncias para o futuro da humanidade outro extremo eacute considerar a

natureza intocaacutevel fixista onde qualquer manipulaccedilatildeo eacute violaccedilatildeo da lei de Deus

A perspectiva cristatilde engloba uma vida antes da morte e a esperanccedila de uma vida apoacutes a morte Um simples prolongamento bioloacutegico da vida natildeo trataria por si nenhuma vida qualitativamente melhor nem a resposta aos anseios mais profundos do ser humano Talvez seja mesmo

a consciecircncia de um limite no tempo que torne mais valioso o tempo da vida (COUTINHO 2007 pg 176)

21) O CORPO CRIADO

As perspectivas do poacutes-humano fizeram um questionamento de todo o humanismo

Ocidental Portanto autores como Moltmann se debruccedilam numa revisatildeo histoacuterica dos caminhos

seguidos pela antropologia Claramente tem-se dois pensamentos antropoloacutegicos basilares para

o formaccedilatildeo dos conceitos do humanismo A visatildeo biacuteblica e grega de ser humano Percebe-se

que existe um predomiacutenio grego na formaccedilatildeo da antropologia Ocidental que pode-se dizer

possibilita o poacutes-humano de dominaccedilatildeo da alma sobre o corpo Iniciando por Platatildeo haacute uma

tendecircncia de espiritualizaccedilatildeo da pessoa A separaccedilatildeo do corpo e da alma onde a alma

assemelha-se a divindade eacute imortal mas fica aprisionada num corpo mortal e transitoacuterio A vida

eacute uma luta pela alma liberta-se da fraqueza do corpo a enfim viver no mundo ideal (cf

MOLTMANN 1993 pg 253-254)

A perspectiva continua no contexto moderno com Descartes Manteacutem-se o mesmo

esquema de diferenciaccedilatildeo do corpo e da alma entendida como substacircncia superior O eu

pensante domina o seu corpo eacute seu mandataacuterio que o transforma numa extensatildeo do eu A

dicotomia e a subordinaccedilatildeo do corpo pela alma continua com nova roupagem ao inveacutes do alma

e corpo eacute sujeito-objeto (cf MOLTMANN 1993 pg 357-360)

A antropologia dualista legitima o atual pensamento moderno de dominaccedilatildeo da mente

sobre o corpo A biotecnologia continua o ideal moderno de uma imortalidade humana da alma

ou do sujeito pensante tratando o corpo como empecilho mortal para essa realizaccedilatildeo A primazia

da mente da teacutecnica condena o corpo a ser mera coisificaccedilatildeo e instrumentalizaccedilatildeo O corpo

tratado como maacutequina defeituosa que precisa de reparos e todo instante e mesmo trocas de

peccedilas por proacuteteses O corpo perde sua dignidade criatural seu valor intriacutenseco e torna-se objeto

de manipulaccedilatildeo humana

Essa antropologia natildeo corresponde a visatildeo biacuteblica da criaccedilatildeo do ser humano Na

doutrina da criaccedilatildeo natildeo existe uma dicotomia entre alma e corpo mas uma relaccedilatildeo integrada

entre as duas dimensotildees Muito menos uma dominaccedilatildeo ou primazia de um em detrimento de

outro A corporalidade possui um valor igualitaacuterio com a alma O corpo eacute o fim de toda a

criaccedilatildeo eacute nele que a pessoa se relaciona com o mundo eacute o destino do amor de Deus

Se lsquocorporalidadersquo eacute o fim de todas as obra de Deus entatildeo o corpo humano natildeo pode ser compreendido nem como uma forma inferior de vida nem como meio para alcanccedilar o objetivo e muito menos como

algo que deva ser superado lsquoCorporalidadersquo tambeacutem eacute correspondendo agraves obras de Deus o objetivo mais nobre da pessoa e o fim de todas as suas obras (MOLTMANN 1993 pg 351)

A antropologia biacuteblica afirma a unidade do corpo e da alma Na criaccedilatildeo a

corporalidade eacute a finalidade da obra de Deus que natildeo rejeita sua mortalidade mas daacute

significado e sentido A dignidade da carne criada eacute exaltada na encarnaccedilatildeo do Filho de Deus

A Palavra que se fez carne como afirma o Evangelho de Satildeo Joatildeo eacute a carne assumida por Deus

para que a partir dela possa redimir toda a criaccedilatildeo Deus natildeo rejeita a mortalidade corpoacuterea sua

fragilidade mas a partir dela faz acontecer a redenccedilatildeo da carne

A proacutepria encarnaccedilatildeo jaacute antecipa a salvaccedilatildeo para o corpo humano e para toda a

criaccedilatildeo No corpo assumido por Deus Ele jaacute antecipa a reconciliaccedilatildeo e a sauacutede para o corpo

doente A salvaccedilatildeo para o corpo vai aleacutem de toda obra biotecnoloacutegica A encarnaccedilatildeo eacute um sinal

de esperanccedila para o corpo que sofre a sua mortalidade

Tornando-se carne o Deus conciliador aceita a carne pecadora doente e mortal da pessoa e a cura na sua comunhatildeo A palavra eterna de Deus se torna corpo humano uma crianccedila na manjedoura um salvador das pessoas doentes um corpo humano torturado no Goacutelgota Nesta forma corporal de Cristo eacute trazida a reconciliaccedilatildeo do mundo atraveacutes de Deus (Rm 83) Em sua encarnaccedilatildeo os corpos explorados doentes e destruiacutedos experienciam sua salvaccedilatildeo e sua dignidade indestrutiacutevel (MOLTMANN 1993 pg 352)

A criaccedilatildeo de Deus natildeo isola o corpo da alma mas implanta seu proacuteprio Espiacuterito

vivificador na carne criada A forccedila redentora do corpo jaacute comeccedila quando a naturalidade

corpoacuterea natildeo eacute ameaccedilada O corpo natildeo eacute mais tratado como um inimigo que precisa ser domado

pela alma ou simplesmente um maacutequina imperfeita que precisa de reparos O corpo e sua

mortalidade satildeo constituintes fundamentais para a pessoa A vida humana nestes moldes natildeo

consiste em rejeitar a carne e elevar a alma para um mundo espiritualizado mas justamente

assumir sua corporalidade O ser humano humaniza-se na medida que aceita sua carne sua

corporalidade bem como a mortalidade e finitude Assumi-se como corpo

Outro ponto para a reflexatildeo eacute sobre a vida eterna Na dicotomia alma-corpo a

imortalidade humana eacute garantida pela imortalidade da alma Ela teria uma qualidade intriacutenseca

de ser imortal semelhante a divindade Por si o ser humano eacute imortal Esta visatildeo eacute diferente

para a antropologia biacuteblica A imortalidade humana natildeo eacute intriacutenseca mas estaacute fundamentada na

relaccedilatildeo com o Criador A relaccedilatildeo de amor do Criador com a criatura garante a vida apoacutes a

morte Eacute um dom recebido uma graccedila de Deus e natildeo algo imanente no ser humano O Espiacuterito

criador de Deus permanece na sua criaccedilatildeo A pessoa natildeo estaacute entregue a si proacutepria com a missatildeo

de garantir a vida para si Ela eacute acompanhada pelo Espiacuterito que santifica cura sana as miseacuterias

humanas A nossa mortalidade natildeo causa desespero mas ganha sentido salvaccedilatildeo pela obra de

Deus

22) O CORPO GLORIFICADO

Chega-se ao aacutepice da salvaccedilatildeo oferecida por Deus para o corpo humano Jaacute na

encarnaccedilatildeo percebe-se a insuficiecircncia da teacutecnica humana para a sanaccedilatildeo da precariedade

corpoacuterea O ser humano natildeo eacute apenas conquista de seus meacuteritos de sua tecnologia o ser

humano eacute muito mais recebimento que produccedilatildeo de si O corpo eacute salvo por gratuidade divina A

accedilatildeo de Deus cura a carne desumanizada fraca e mortal Com a ressurreiccedilatildeo da carne o corpo

criado eacute salvo e liberto da mortalidade

Por isso a ressurreiccedilatildeo da carne natildeo se trata de uma esperanccedila para um mundo futuro e

espiritualizado A ressurreiccedilatildeo eacute uma esperanccedila corpoacuterea uma esperanccedila para a carne humana

A salvaccedilatildeo oferecida pela graccedila de Deus jaacute comeccedila a acontecer no tempo presente O corpo foi

criado natildeo para o fim na morte mas para transformar-se atraveacutes dela num corpo glorificado por

Deus O corpo natildeo eacute destruiacutedo natildeo eacute rejeitado mas salvo e transformado

O corpo ressuscitado de Jesus leva esperanccedila para toda a criaccedilatildeo Sua ressurreiccedilatildeo foi

corpoacuterea integra no seu corpo mortal transfigurado num corpo imortal donde leva para junto do

reino de Deus toda a natureza criada No seu Espiacuterito eacute salvo todo corpo humilhado pelo

pecado torturado doente e desprezado Todas as injusticcedilas contra o corpo satildeo saradas pelo

ressuscitamento de Jesus Sua carne glorificada natildeo conhece mais a corrupccedilatildeo a morte as

limitaccedilotildees naturais bem como natildeo eacute rejeitada a sua fraqueza Eacute uma salvaccedilatildeo total e corpoacuterea a

partir do corpo mortal

O fundamento para a ressurreiccedilatildeo da carne se encontra na ressurreiccedilatildeo da carne de

Cristo A sua ressurreiccedilatildeo abre a criaccedilatildeo para a nova criaccedilatildeo de Deus que natildeo destroacutei mas

transfigura a criaccedilatildeo mortal numa nova criaccedilatildeo sem sofrimento sem dor e sem o impeacuterio da

morte O corpo perfeito desejado pelo ser humano natildeo eacute uma conquista biotecnoloacutegica mas

uma accedilatildeo salviacutefica de Deus A vida perfeita sem dor e morte eacute recebida na forccedila do Espiacuterito

vivificador de Deus

Nas disputas entre filosofia grega e a feacute biacuteblica afastam-se no tocante a vida apoacutes a

morte A visatildeo grega-dualista- percebe a alma imortal que vive independente do corpo Para a

visatildeo biacuteblica a imortalidade natildeo eacute algo proacuteprio da alma humana mas accedilatildeo salvadora de Deus

que faz a pessoa na sua integralidade ressuscite num corpo glorioso A concepccedilatildeo biacuteblica de

imortalidade natildeo eacute fruto de um poder inerente agrave pessoa A imortalidade eacute um dom da relaccedilatildeo

com o criador que ressuscita o ser humano por completo A ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute a

ressurreiccedilatildeo do ser humano total

A ressurreiccedilatildeo da carne como dom para a salvaccedilatildeo da corporalidade O corpo seraacute salvo

pela accedilatildeo de Deus com seu espiacuterito transfigura a nova criaccedilatildeo A corporalidade seraacute sanada

pela accedilatildeo de Deus e natildeo pela obsessatildeo biotecnoloacutegica que no afatilde de superar toda fraqueza acaba

desumanizando o corpo

A alternativa antropoloacutegica da ressurreiccedilatildeo da carne promove uma atitude saudaacutevel em

relaccedilatildeo a doenccedila aceitaccedilatildeo da fragilidade e contribuiccedilatildeo para o pensamento bioeacutetico O

Espiacuterito que ressuscita os mortos eacute o espiacuterito que transfigura a nova corporalidade dos

ressuscitados A nova criaccedilatildeo inclui o cosmos e o ser humano pois nenhum dos dois pode ser

visto isoladamente O ser humano estaacute relacionado com este mundo eacute este mundo que Cristo eacute

o redentor A humanidade gloriosa pela forccedila do Espiacuterito que ressuscitou Jesus dentre os

mortos inclui a mateacuteria a biologia e toda a relaccedilatildeo com este mundo que seraacute transfigurado num

mundo sem o domiacutenio da morte

O Espiacuterito Santo que ressuscitou o corpo de Jesus ressuscitaraacute a carne humana ldquoA

ressurreiccedilatildeo transformaraacute o corpo e vai lhe sanar as deficiecircnciasrdquo (BRAKEMEIER 2005 pg

139) Se a busca de perfeiccedilatildeo corpoacuterea da biotecnologia acaba como consequumlecircncia a degradaccedilatildeo

do corpo processos de eugenismo riscos para sobrevivecircncia do humano a ressurreiccedilatildeo como

dom de Deus para o corpo possibilita uma atitude sadia diante da fragilidade do corpo A carne

glorificada de Cristo eacute salvaccedilatildeo para a carne do gecircnero humano natildeo excluindo selecionando ou

desprezando o corpo

A teologia da ressurreiccedilatildeo da carne questiona a pretensatildeo tecnoloacutegica de oferecer

salvaccedilatildeo ao humano A verdadeira salvaccedilatildeo e o sentido para a fragilidade natildeo se encontram na

teacutecnica mas na accedilatildeo salvadora de Deus que aceita nossa fragilidade e a leva a perfeiccedilatildeo pela sua

graccedila A salvaccedilatildeo pela accedilatildeo de Deus inclui toda a humanidade e toda fragilidade O que pela

intenccedilatildeo da tecnologia acaba excluindo e eliminado o fraacutegil

No entanto a recriaccedilatildeo escatoloacutegica desta criaccedilatildeo deve pressupor toda essa criaccedilatildeo Pois no fim o velho natildeo eacute substituiacutedo por algo novo mas este velho seraacute criado novo A transformaccedilatildeo para a gloacuteria ocorre no dia do Senhor diacronicamente com toda criaccedilatildeo real desde o primeiro dia ateacute o uacuteltimo dia Ela natildeo eacute algo que acontece depois deste mundo mas algo que acontece com este mundo (MOLTMANN 1993 pg 351)

Com o tempo da ressurreiccedilatildeo da carne pretende-se elaborar uma antropologia

alternativa para o corpo mecanizado e manipulado pela intervenccedilatildeo humana Uma antropologia

cristatilde natildeo admite dualismos de alma e corpo onde segundo Moltmann o Ocidente se

caracterizou pela dominaccedilatildeo e desprezo do corpo pela alma A antropologia cristatilde proporciona

uma integraccedilatildeo do humano com a sua natureza e com todo o gecircnero humano e com o cosmos A

natureza natildeo eacute inimiga a ser superada corpo danificado mas destinataacuterio da ressurreiccedilatildeo de

Jesus

O tema eacute importante pela urgecircncia de resposta frente ao avanccedilo da tecnologia da

manipulaccedilatildeo do corpo e suas implicaccedilotildees eacuteticas e religiosas Pode-se superar o limite humano e

a dependecircncia de Deus Que implicaccedilotildees isso traz para a Teologia O desenvolvimento da

biotecnologia provoca um dos grandes debates eacuteticos para a humanidade Ela estaria diante de

uma evoluccedilatildeo que resultaria na extinccedilatildeo do humano A busca de sauacutede perfeita a todo custo os

limites do humano estatildeo no debate dos pensadores eacuteticos poliacuteticos filosoacuteficos cientiacuteficos e

religiosos O tema propotildee um auxiacutelio para atitudes saudaacuteveis diante da mortalidade do corpo

CONCLUSAtildeO

O tema do poacutes-humano ainda estaacute apenas no comeccedilo da reflexatildeo A pergunta crucial

sobre o futuro do humano e se a tecnologia humaniza ou desumaniza natildeo possui uma conclusatildeo

O que se percebe eacute que a questatildeo da biotecnologia estaacute em aberto com suas vantagens e uma

seacuterie de desafios eacuteticos poliacuteticos que precisam ser resolvidos O certo eacute que a teologia possui

um papel importante neste processo Mesmo com a recusa de uma eacutetica com base metafiacutesica a

proacutepria bioeacutetica busca a interdisciplinariedade na sua reflexatildeo A tecnologia precisa avaliar natildeo

somente o humano bioloacutegico mas o humano em todas as suas dimensotildees Busca-se com a luz

da teologia uma biotecnologia responsaacutevel pela real humanizaccedilatildeo preocupada com o futuro das

geraccedilotildees que correm o risco de receber um planeta em condiccedilotildees inabitaacuteveis

A ressurreiccedilatildeo da carne propotildee uma forma de vida para o ser humano Auxilia na

relaccedilatildeo do com o corpo fraacutegil criado por Deus A obsessatildeo pelo corpo perfeito seja nas

academias mesas ciruacutergicas pela manutenccedilatildeo da vida a todo custo revelam uma dificuldade de

conviver com a mortalidade humana O corpo deixando de ser inimigo a ser superado pode

fazer com que o ser humano tenha uma atitude mais saudaacutevel diante de suas limitaccedilotildees

A proposta natildeo significa abandonar as pesquisas biotecnoloacutegicas mas de colocar limites

e orientaccedilotildees para esse desenvolvimento Atualmente parece que existe um discurso cientifico

onipotente que natildeo aceita dialogar com outras ciecircncias O progresso cientifico jaacute produziu armas

nucleares e estaacute colocando em risco a sobrevivecircncia do planeta satildeo motivos para um repensar

na relaccedilatildeo humano e ciecircncia

Pela ressurreiccedilatildeo oferecida por Deus para o gecircnero humano alcanccedila-se esperanccedila para o

corpo humano A medicina oferece tratamento e qualidade de vida mas a graccedila de Deus eacute que

daraacute salvaccedilatildeo completa ao ser humano Ciecircncia e teologia buscam a sauacutede do corpo humano

mas somente na glorificaccedilatildeo do corpo alcanccedila-se a salvaccedilatildeo da vida eterna

REFEREcircNCIA BRAKEMEIER Gottfried O ser humano em busca de identidade contribuiccedilotildees para uma antropologia teoloacutegica 2 ed Satildeo Lepoldo Sinodal Satildeo Paulo Paulus 2005 COUTINHO Vitor Artificializaccedilatildeo da natureza humana Biotecnologias agrave busca de sentido Humanitas e teologia Porto tomo XXVIII fasciacuteculo 1 dez 2007 p 151- 176 LECOURT Dominique Humano poacutes-humano a teacutecnica e a vida Satildeo Paulo Loyola 2005 MARCHESINI Roberto O poacutes-humanismo como ato de amor e hospitalidade In Revista Humanitas Unisinos nordm 200 dez 2006 MOLTMANN Juumlrgen O que eacute a vida humana Antropologia e desenvolvimento biomeacutedico Humaniacutestica e teologia Porto tomo XXVIII fasciacuteculo 1 dez 2007 p66- 87 ______ O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas 2 ed Petroacutepolis Vozes 1993 ______ Deus na criaccedilatildeo doutrina ecoloacutegica da criaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1993 PULCINI Elena Um poder sem controles In Revista Humanitas Unisinos nordm 200 Dez2006 SANTAELLA Lucia Culturas e artes do poacutes-humano da cultura das miacutedias aacute cibercultura 3 ed SP Paulus 2008 ______ Linguagens liquidas na era da mobilidade Satildeo Paulo Paulus 2007

Do real ao virtual a corporeidade humana na poacutes-modernidade

Juliana Hermont de Melo

Na atualidade o corpo eacute o filtro de todas as realidades Tudo passa pelo crivo da

corporeidade171 Assim esta se mostra o caminho para o encontro do humano consigo mesmo e

chave de leitura de para criacutetica e superaccedilatildeo da cultura espetacularizada O futuro da

humanizaccedilatildeo da humanidade no contexto da cultura somaacutetica espetacular depende do resgate da

corporeidade integral defendida pela teologia

Na poacutes-modernidade a corporeidade configura-se lugar obrigatoacuterio para o pensar

teoloacutegico o labor cultural e a moral O espaccedilo para o fazer histoacuterico e racional assim como da

experiecircncia de Deus e da Igreja eacute o humano em especial na concretude de sua humanidade que

eacute ser no corpo Eacute em funccedilatildeo desse espaccedilo privilegiado ocupado pelo humano e daiacute

consequumlentemente da sua forma histoacuterica concreta que eacute o corpo que se compreende o

fenocircmeno denominado cultura somaacutetica a qual elege somente a dimensatildeo bioloacutegica do humano

(o corpo) como centro como expressatildeo da autonomia do sujeito e sua presenccedila como a forma

mais elevada de realizaccedilatildeo humana

A cultura somaacutetica caracteriza-se como movimentaccedilatildeo soacutecio-cultural calcada nos

cuidados com o corpo e na valorizaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas172 com fundamentaccedilatildeo esteacutetica

em detrimento da eacutetica para a definiccedilatildeo e formaccedilatildeo da identidade humana173 Trata-se de algo

semelhante agrave bioascese174 pois o bem-estar fiacutesico passou a representar papel tatildeo importante na

realizaccedilatildeo pessoal quanto o sucesso intelectual ou o desenvolvimento espiritual A diferenccedila da

cultura somaacutetica para as demais formas culturais e sociais humanas jaacute experimentadas estaacute no

pressuposto de uma relaccedilatildeo iacutentima e indissociaacutevel entre a vida psicoloacutegica-moral e a vida fiacutesica-

somaacutetica175

A eacutetica cristatilde pauta-se pelo respeito e cuidado para com todo e cada ser humano

pois todos e cada um satildeo criaccedilatildeo de Deus investidos de dignidade enquanto criaturas humanas

Docente mestre em teologia pela FAJE trabalho financiado pela CAPES 171 Neste trabalho tomar-se-aacute os termos corpo corporalidade e corporeidade como sinocircnimos entre si jaacute que para a abordagem feita nesta pesquisa a diferenccedila entre eles apresentada pela literatura mostra-se insignificante 172 O substantivo fiacutesico refere-se a totalidade somaacutetica do ser ou seja tanto aos aspectos orgacircnicos quanto psicoloacutegicos e mentais 173 Cf Conceitos desenvolvidos por COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo Rio de Janeiro Garamond 2004 p 203-206 e MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo Petroacutepolis Vozes 2004 p 18-22 174 Cf COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 190 175 Cf COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 204

como imagem e semelhanccedila de Deus acolhidos no seio da Trindade no misteacuterio da encarnaccedilatildeo

e ressurreiccedilatildeo de Jesus Cristo Na compreensatildeo cristatilde o ser humano eacute constituiacutedo como unidade

psicossomaacutetica espiritual que vivencia a experiecircncia de divinizaccedilatildeo Jesus assumiu a

corporeidade ao tempo em que a santificou vez que a feacute cristatilde professa e confessa que Jesus eacute o

Cristo Ou seja o homem de Nazareacute eacute o Filho primogecircnito de Deus

O olhar cristatildeo sobre o humano desvela que a compreensatildeo e a percepccedilatildeo do

mundo do ser humano da vida e por consequumlecircncia o posicionamento eacutetico mediatiza-se pelo e

no corpo176 Cristo ao assumir a corporalidade humana atraveacutes da encarnaccedilatildeo revela o humano

para o humano e proclama a verdadeira vocaccedilatildeo da humanidade o relacionamento e comunhatildeo

com o Criador haja vista a criatura ser convidada a viver a relacionalidade e a comunhatildeo com

o Criador e em Cristo com toda a criaccedilatildeo Jesus segundo o disposto na Gaudim et Spes (GS)

configura-se como o humano perfeito pois nele a criatura humana encontra sua plenitude177

Segundo Ladaria a perfeiccedilatildeo atribuiacuteda a Jesus pela GS reside na completude perfeita e

paradigmaacutetica da humanidade revelada no Cristo ldquopois o crescimento em Cristo significa

crescimento em humanidade Ser cristatildeos natildeo nos separa de ser homens mas ajuda-nos a secirc-lo

com maior plenituderdquo178 Assim a dignidade portada pelo ser humano encontra sua suprema

justificativa no Cristo vez que ele Filho Unigecircnito do Pai desvela por amor a dignidade do

corpo O ser humano eacute imagem e semelhanccedila de Deus

O fenocircmeno da cultura somaacutetica malgrado as possibilidades e expectativas

positivas desenvolveu facetas outras como da sociedade do espetaacuteculo no que neste trabalho

se cunhou de cultura somaacutetica espetacularizada O adjetivo espetacularizada faz referecircncia aos

neologismos desenvolvidos a partir da expressatildeo ldquoespetacularizaccedilatildeordquo e ldquosociedade do

espetaacuteculordquo por Guy Debord na sua obra fundamental para a compreensatildeo da sociedade

contemporacircnea A Sociedade do Espetaacuteculo179 Nesse ldquodesviordquo espetacularizado da cultura

somaacutetica depara-se com a face cruel da desumanizaccedilatildeo que reclama a praacutexis cristatilde da

promoccedilatildeo da vida e da libertaccedilatildeo promovendo abertura para a humanizaccedilatildeo seja pela denuacutencia

profeacutetica seja pela sabedoria da eacutetica cristatilde

A questatildeo trazida agrave baila pela cultura somaacutetica positivamente aloca-se no cuidado

com o corpo pois tal eacute legiacutetimo e humanizador Com tal enfoque alinha-se a eacutetica e a praacutexis

cristatilde Os textos biacuteblicos datildeo testemunho da integralidade humana e a tradiccedilatildeo apostoacutelica

176 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 6 177 Cf LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 26-27 e GROSSI Vittorino et al O homem e sua salvaccedilatildeo (seacuteculos V-XVII) antropologia cristatilde criaccedilatildeo pecado original justificaccedilatildeo e graccedila fins uacuteltimos A eacutetica cristatilde das ldquoautoridadesrdquo ao magisteacute p 130 - 131 178 LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 28 179 DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo Rio de Janeiro Contraponto 1997

ensina-o como direito e justiccedila sinal da presenccedila divina Entretanto constata-se que eacute

justamente o aspecto mais negativo e corrosivo da cultura somaacutetica que cresce

exponencialmente na atualidade talvez por encontrar nas promessas natildeo cumpridas da

modernidade terreno feacutertil para sua forma alienante Ainda mais quando se associa a outro

fenocircmeno social tambeacutem recente a sociedade do espetaacuteculo

Segundo Guy Debord a sociedade do espetaacuteculo caracteriza-se por ser ldquouma

organizaccedilatildeo social onde seus membros satildeo obrigados a contemplar e a consumir passivamente

as imagens de tudo o que lhes eacute projetado pelo capital como elemento faltante em sua existecircncia

realrdquo180 O espetaacuteculo retrata a dramaacutetica substituiccedilatildeo do real pelo ideal181 possibilitada pela

hegemonia midiaacutetica diante da qual ao ser humano resiste e persiste ainda que o faccedila

reduzindo-se a um ser mutante pulverizaacutevel cintilante e efecircmero para fazer frente agraves exigecircncias

do espetaacuteculo social182

A sociedade do espetaacuteculo funda-se e alimenta-se da inversatildeo de valores provocada

pela exarcebaccedilatildeo do valor da corporeidade elevada a culto idolaacutetrico ao corpo E pela

insustentabidade e inconsistecircncia da corporeidade como tal fundamentaccedilatildeo daacute-se a substituiccedilatildeo

do concreto por uma versatildeo maquiada representada do corpo real183 pelo ideal em que o real

se transverte em projeccedilatildeo imagem apenas

Nos moldes do deslocamento ocorrido na modernidade do ser para o ter na cultura

somaacutetica espetacular haacute o deslocamento do ter para o parecer ou melhor para o aparecer Por

cultura somaacutetica espetacular entende-se a faceta corrosiva dilacerante e desumanizante do culto

ao corpo184 No vocabulaacuterio da induacutestria do entretenimento a preocupaccedilatildeo do sujeito social natildeo

reside mais no ter como na Modernidade mas sim no show off185 valoriza-se a aparecircncia e a

atenccedilatildeo midiaacutetica e natildeo necessariamente o que seja bom ou justo ou digno Os quinze minutos

de fama de Andy Wharol tecircm conotaccedilatildeo de direito inalienaacutevel

Por um vieacutes soacutecio-criacutetico a maquiagem do real pelo imaginaacuterio representa a

tentativa de sobrevivecircncia do capitalismo econocircmico frente agraves promessas fracassadas de

igualdade e progresso criadas pela humanidade na modernidade Pode ser vista como a

180 Cf DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo p 13-19 181 Aqui no sentido de imagem perfeita projetada pela miacutedia a utopia espetacular y182 Cf SUSIN Luiz Carlos Isto eacute meu corpo dado por voacutes In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 234 183 Por corpo real entende-se aquele natildeo ajustado agraves exigecircncias esteacuteticas da sociedade somaacutetica espetacular 184 Essa nomenclatura eacute desenvolvida e utilizada neste trabalho a partir das leituras de DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo 1997 e COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo 2004 185 Expressatildeo inglesa que significa atrair a atenccedilatildeo por meio da auto-exibiccedilatildeo

reinvenccedilatildeo do capitalismo na era da aparecircncia186 em que o humano e os valores humanos se

reduzem a mercadorias as quais por sua vez reduzem-se a imagens Como numa reaccedilatildeo em

cadeia ldquoa sociedade e as relaccedilotildees que mediam os sujeitos se reduzem agrave aparecircncia e agrave quantidade

de mercadorias consumidas A imagem eacute um valor em sirdquo187

Os sujeitos sociais da cultura somaacutetica espetacular satildeo forjados em uma visatildeo de

mundo calcada na percepccedilatildeo da vida como entretenimento e no ideal de felicidade na satisfaccedilatildeo

plena de suas sensaccedilotildees Na maioria das vezes percebe-se que a satisfaccedilatildeo das sensaccedilotildees

resume-se em satisfaccedilatildeo das sensaccedilotildees fiacutesicas Satildeo homens e mulheres de uma geraccedilatildeo que natildeo

vive mas ldquocurterdquo sorvendo a vida ateacute a uacuteltima gota numa perspectiva hedonista sem limites na

busca pela satisfaccedilatildeo Tal geraccedilatildeo compreende que a satisfaccedilatildeo pessoal eacute ldquoa coincidecircncia

perfeita entre a intenccedilatildeo e seus proacuteprios fins Trata-se de uma categoria valorativa que engloba

fatos empiacutericos como realizaccedilatildeo de intenccedilotildees cognitivas volitivas afetiva ou fiacutesicasrdquo188 Essa

satisfaccedilatildeo guarda estreita relaccedilatildeo na gecircnese de seu conceito com a negaccedilatildeo da possibilidade de

tristeza dor e frustraccedilatildeo Ora a coincidecircncia perfeita entre a intenccedilatildeo (o desejo) e sua realizaccedilatildeo

plena (o real) na praacutetica eacute histoacuterica e humanamente impossiacutevel

Como natildeo haacute limites para o desejo humano constata-se que no momento que o

humano possui o objeto desejado o desejo se esvai e o frustra por natildeo poder conter em si todo

o conteuacutedo desejado Assim o ser humano contemporacircneo vive simultacircnea e paradoxalmente o

prazer e dor felicidade e tristeza satisfaccedilatildeo e frustraccedilatildeo prazer e gozo poreacutem sem qualquer

sentido finalidade ou esperanccedila esvaindo-se todo esforccedilo em anguacutestia e debilidade O

espetaacuteculo dentro da cultura somaacutetica mostra-se onipotente atraente grandioso e positivo mas

inalcanccedilaacutevel A busca pelo corpo perfeito transforma-se em perversa maratona em jogo

destrutivo entre o humano e seu corpo Haja vista a ideacuteia de positivo de belo e de bom no

espetaacuteculo vincular-se ao proacuteprio espetaacuteculo o qual incute a ideacuteia no indiviacuteduo de sua

necessidade visceral para continuar vivo Assim somente o bom aparece pois somente o bom

torna-se digno de ser convertido em imagem

Na cultura somaacutetica espetacularizada o julgamento do valor da pessoa humana se

daacute em primeira instacircncia na imagem refletida no espelho do corpo Eacute ele o veiacuteculo e o criteacuterio

do valor moral das pessoas189 A compleiccedilatildeo fiacutesica esculpida e tonificada eacute sinal de sucesso e

186 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 81 187 KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 80 188 Conceito elaborado e adotado por COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 213 189 Cf MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo p 37

prestiacutegio social190 Por sua vez o corpo flaacutecido e com formas consideradas natildeo atraentes

caracteriza natildeo soacute falta de cuidado pessoal como tambeacutem frouxidatildeo de caraacuteter e personalidade

Natildeo haacute como se esconder o ldquoeurdquo eacute exibido e examinado o tempo todo pelo corpo e a exposiccedilatildeo

do ldquoeurdquo perante o ldquoturdquo eacute constante e ininterrupta191 A uacutenica possibilidade de preservaccedilatildeo do

ldquoeurdquo ante ao escrutiacutenio contiacutenuo do outro se encontra na homogeneizaccedilatildeo192 da imagem pessoal

na sociedade espetacular Parafraseando Hebdige somente debaixo da luz eacute possiacutevel esconder-

se193 Entretanto tal estrateacutegia de autopreservaccedilatildeo revela-se uma armadilha pois se misturar ao

ambiente ou seja eacute negar a individualidade a diferenccedila e se submeter agrave banalizaccedilatildeo da

imagem corporal Para eliminar o corpo que desnuda (expotildee) deve-se submetecirc-lo a dietas

alimentares rigorosas a horas de modelagem muscular em academias de ginaacutestica agrave ingestatildeo de

suplementos alimentares a cirurgias plaacutesticas e a altas doses de antidepressivos e ansioliacuteticos

tudo para enquadrar esse corpo ao padratildeo ou seja tornaacute-lo o mais invisiacutevel possiacutevel194 e

preservar o ser do julgamento diuturno do outro195

Aleacutem da evidente escravizaccedilatildeo ao inveacutes da liberdade social e comportamental

apregoada e possibilitada na cultura somaacutetica paradoxalmente o que apavora o sujeito da

cultura somaacutetica espetacular o julgamento do outro eacute justamente o que lhe daacute consistecircncia e o

faz existir o olhar do outro para que se possa existir Eacute nesse paradoxo que a insanidade da

cultura somaacutetica espetacular instala-se o outro eacute juiz implacaacutevel e legitimador da existecircncia

Precisa-se visceralmente desse olhar que eacute justamente o que consome e destroacutei Ante tal

conflito a cultura somaacutetica espetacular eacute incompatiacutevel com a integridade e plenitude do ser

humano negando-lhe a vocaccedilatildeo para a transcendecircncia pois as preocupaccedilotildees humanas limitam-

se em construir o corpo perfeito mostrado na miacutedia

O ser humano somaacutetico espetacularizado reduz-se a se encapsular em si mesmo

como princiacutepio e fim de sua existecircncia em que o outro existe apenas para legitimar sua imagem

ou seja para sua satisfaccedilatildeo Mostra-se cada vez mais isolado e absorto em suas questotildees

pessoais e as necessidades sociais alocam-se em planos inferiores196 e segundo Ortega

190 O inimigo satildeo as gorduras o colesterol o sedentarismo personificados na giacuteria estadunidense couch potatoes (ORTEGA Francisco Praacuteticas de ascese corporal e constituiccedilatildeo de bioidentidades 2003) 191 Cf ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia Satildeo Leopoldo [sd] (Entrevista) Disponiacutevel em lthttpwwwunisinosbrihuindexphpoption=com_entrevistasampItemid=29amp task=entrevistaampid=2188gt Acesso em 02 jan 2007 192 Trata-se da anulaccedilatildeo das particularidades individuais 193 HEBDIGE Dick Hidding in the light - on images and things London Comedia 1989 194 Cf MOSER Antonio Corpo e sexualidade do bioloacutegico ao virtual In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia p 142-144 em diaacutelogo com LE BRETON David Adeus ao corpo antropologia e sociedade 2003 195 Cf ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia [sd] 196 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 78

ldquoperdemos o mundo e ganhamos o corpordquo197

Diante da pluralidade de discursos presentes na poacutes-modernidade a cultura

somaacutetica espetacularizada apesar de pretendecirc-lo natildeo tem a palavra final sobre o significado

humano do corpo e da pessoa A compreensatildeo biacuteblico-teoloacutegica do humano e de seu corpo

interpelam a moral do espetaacuteculo ao apresentar proposta alternativa de existecircncia para a

humanidade

A antropologia biacuteblica e teoloacutegica configura-se como forma de compreensatildeo

integral da pessoa198 Dentro da concepccedilatildeo cristatilde a criatura humana natildeo eacute apenas uma unidade

um dado bioloacutegico199 Do fato de ser criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus redimida e

santificada no Cristo faz com que a humanidade possua dignidade iacutempar e irredutiacutevel Como

ensina De la Pentildea a dignidade da corporalidade humana encontra-se assegurada A doutrina

cristatilde valoriza ldquopositivamente tanto a dimensatildeo espiritual quanto a corporeidade articuladas

fecundamente numa relaccedilatildeo de integraccedilatildeo-inclusatildeordquo200 A antropologia teoloacutegica

contemporacircnea201 resguarda cabalmente a dignidade do ser humano integral pois o corpo

participa da redenccedilatildeo pela ressurreiccedilatildeo e deve ser considerado uma realidade redimida porque

o Verbo assumiu a carne humanardquo202

Nesse sentido o pensamento antropoloacutegico cristatildeo a respeito da humanidade se

opotildee ao da loacutegica da cultura espetacular Porque a antropologia teoloacutegica na fundamentaccedilatildeo

biacuteblica e na Magisterial pensa o ser humano como unidade integral um todo Natildeo haacute para a

antropologia cristatilde qualquer possibilidade de pensar o humano a partir do conceito de imagem-

fetiche visto que a humanidade eacute concebida como corpo-palavra corpo-ouvido corpo-vivente

enfim corpopessoa A dignidade do humano (em sua integralidade) encontra justificativa no

Cristo porque ele Filho Unigecircnito do Pai revela por amor a toda a humanidade a verdade

uacuteltima do ser humano ser a imagem e semelhanccedila de Deus Pai Criador203 Em Cristo se

esclarece verdadeiramente o misteacuterio acerca da realidade humana204 realizada histoacuterica e

concretamente no corpo e na vida na sua carne e na carne de todos os homens e mulheres

criados agrave sua imagem e semelhanccedila e que satildeo conduzidos por Deus o Espiacuterito agrave plenificaccedilatildeo

dessa imagem e semelhanccedila

197 ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia [sd] 198 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 355 199 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 345 200 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 358-359 201 Cf LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 28 202 JUNGES Joseacute Roque Bioeacutetica Hermenecircutica e casuiacutestica p 128 Grifo nosso 203 Cf BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador p 132-133 204 Cf CONSTITUICcedilAtildeO pastoral gaudium et spes sobre a igreja no mundo de hoje In CONCILIO DO VATICANO 2 1962-1965 Documentos do Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II (1962-1965) item 22 p 563

Como proposta de libertaccedilatildeo para a corporeidade encapsulada pela cultura

somaacutetica a teologia cristatilde oferece a partir do ethos da humanidade em Cristo uma palavra

sobre o corpo pensado em funccedilatildeo de sua criaturalidade ou seja de sua finitude Se o Filho de

Deus assumiu a condiccedilatildeo humana sem renunciar a essa finitude isto significa do ponto de vista

eacutetico que a humanizaccedilatildeo da humanidade passa necessariamente pela convivecircncia e assunccedilatildeo

dos limites do corpo abdicando-se do esforccedilo de tornar o corpo desencarnado pelas teacutecnicas que

modificam ou negam mesmo seus limites

Na visatildeo cristatilde eacute o outro que interpela para que natildeo se negue a finitude da

condiccedilatildeo humana e se pretenda um corpo absolutamente sem fim e sem dores mas tambeacutem sem

histoacuteria e sem responsabilidade Nesse sentido graccedilas agrave finitude a humanidade encontra no

mundo e no outro a condiccedilatildeo de possibilidade para assumir a carecircncia o limite a

vulnerabilidade como lugar de construccedilatildeo da identidade como corpo de Cristo

Uma via se apresenta que eacute a compreensatildeo da dignidade da criatura humana e da

corporeidade como condiccedilatildeo de possibilidade do encontro com o outro com o mundo e com

Deus Mas na estrutura da sociedade do espetaacuteculo o espaccedilo para tal proclamaccedilatildeo precisa ser

conquistado nos mais diversos foacuteruns em um esforccedilo puacuteblico e poliacutetico da teologia cristatilde para o

diaacutelogo e para a palavra profeacutetica e criacutetica que interpela e anuncia a presenccedila de Deus na

corporeidade humana e na criaccedilatildeo

No misteacuterio da salvaccedilatildeo cristatilde a encarnaccedilatildeo do Filho revela o corpo como lugar da

salvaccedilatildeo e santificaccedilatildeo da humanidade205 Desta feita como afirma Le Breton se a

corporeidade no contexto da cultura da tecnologia do corpo foi capaz de isolar o humano e

encapsulaacute-lo egoisticamente em si mesmo por outro lado a mesma corporeidade do ponto de

vista da antropologia e eacutetica cristatilde porta em si as prerrogativas de reconciliaacute-lo consigo e abri-lo

ao mundo vez que a plenitude humana fim uacuteltimo da criaccedilatildeo humanal alcanccedila-se somente com

a doaccedilatildeo sincera de si206 no dom de Cristo

Diante disso a assunccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade da eacutetica do cuidado

impotildee-se como elemento determinante para que o corpo seja ressignificado tendo como

referecircncia os misteacuterios da vida do Cristo Tal equivale a promover o cuidado do proacuteprio corpo e

do corpo do outro ao reconhecer e louvar a obra de Deus existente em cada um Por

consequumlecircncia humanizar essa obra atraveacutes do cuidado significa tambeacutem glorificar a Deus207

O valor que a eacutetica cristatilde do corpo atribui agrave humanizaccedilatildeo em Cristo engloba aceitar

205 BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador p 132-133 206 Cf JOAtildeO PAULO II Salvifici doloris 3 ed Satildeo Paulo Paulinas 1988 p 61 207 Cf AUDOLLENT Philippe Sexualidade e vida cristatilde Satildeo Paulo Paulinas 1983 p 50-51

a criaturalidade a finitude e a vulnerabilidade bem como assumir a experiecircncia e a

compreensatildeo redentora do sofrimento e do padecimento vivido pelo Filho Jesus ao assumir a

condiccedilatildeo humana em tudo menos no pecado experimenta igualmente a dor e o sofrimento

humanos traduzidos de maneira radical na sua paixatildeo e morte na cruz A expressatildeo do amor de

Deus se revela tanto na criaccedilatildeo como na entrega de ldquosirdquo ateacute agrave morte do Filho No padecimento

do Filho na cruz se daacute a redenccedilatildeo da humanidade de maneira definitiva Desse modo a morte eacute

tambeacutem salviacutefica e graciosa em Jesus e nele eacute oferecido ao ser humano a possibilidade de

ressignificar seu padecimento como obra co-redentora da humanidade em Cristo Em Cristo

cada ser humano com seu corpo eacute chamado a carregar o corpo do outro sobretudo quando esse

outro padece dores desgastes enfermidades e morte Pela redenccedilatildeo Deus cumula de dignidade

a humanidade padecente Nela Deus revela e ao mesmo tempo desmascara a violecircncia e a

injusticcedila que satildeo experimentadas na carne e no corpo especialmente no corpo das viacutetimas da

cultura somaacutetica espetacularizada

Na contramatildeo dessa loacutegica no misteacuterio da criaccedilatildeo encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo os

humanos sobretudo os que se encontram mais identificados com o Filho desfigurado na cruz -

feito viacutetima pela maldade - podem interpelar o que haacute de mais des-humano na denominada

ldquosociedade do espetaacuteculordquo O misteacuterio da redenccedilatildeo se opotildee agrave loacutegica da forccedila do sistema no qual

tem valor aquele que tem potencial para concorrer consumir e competir no mercado em que o

descartaacutevel eacute axiomaacutetico

A eacutetica cristatilde assume o significado da morte de Cristo como recriaccedilatildeo da

humanidade De tal maneira que o corpo-pessoa exprime-se simultaneamente como obra da

salvaccedilatildeo de Cristo e como sinal de contradiccedilatildeo diante dessa maneira de conceber a pessoa Na

cultura somaacutetica espetacularizada em que a dor eacute absolutamente inconcebiacutevel e sua assunccedilatildeo

banida de um corpo idealizado pelo mercado a eacutetica do fazer cristatildeo se propugna como

exerciacutecio da compaixatildeo e do engajamento na proteccedilatildeo do corpo da viacutetima qual sacramento da

morte redentora de Cristo Tal exigecircncia eacutetica comporta a proclamaccedilatildeo e a assunccedilatildeo da proposta

evangeacutelica ldquoAmaraacutes o proacuteximo como a ti mesmordquo208

Bibliografia

A BIacuteBLIA Traduccedilatildeo ecumecircnica Satildeo Paulo Loyola Satildeo Paulo Paulinas 2002 AUDOLLENT Philippe Sexualidade e vida cristatilde Satildeo Paulo Paulinas 1983 BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador 18 ed Petroacutepolis Vozes 1986COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo Rio de Janeiro Garamond 2004 CONSTITUICcedilAtildeO pastoral gaudium et spes sobre a igreja no mundo de hoje In CONCILIO DO VATICANO 2 1962-1965 Doc do Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II (1962-1965) item 22 p 563

208 Mt 5 43 Mr 1231 Jo 1314 Como amar o proacuteximo se natildeo se ama a si mesmo Nesse contexto pode-se refletir a exigecircncia eacutetica ldquoNatildeo mataraacutesrdquo O cuidado para com o corpo supotildee a valorizaccedilatildeo e a garantia da manutenccedilatildeo e propagaccedilatildeo da vida

DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo Rio de Janeiro Contraponto 1997

GROSSI Vittorino et al O homem e sua salvaccedilatildeo (seacuteculos V-XVII) antropologia cristatilde criaccedilatildeo pecado original justificaccedilatildeo e graccedila fins uacuteltimos A eacutetica cristatilde das ldquoautoridadesrdquo ao magisteacute Satildeo Paulo Loyola 2003 t 2 Histoacuteria dos dogmas

HEBDIGE Dick Hidding in the light - on images and things London Comedia 1989 JOAtildeO PAULO II Salvifici doloris 3 ed Satildeo Paulo Paulinas 1988 p 61 JUNGES Joseacute Roque Bioeacutetica Hermenecircutica e casuiacutestica Satildeo Paulo Loyola 2006

KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre Satildeo Paulo Paulus 2005

LADARIA Luis F Antropologia teoloacutegica Roma Editrice Pontifiacutecia Universitaacute Gregoriana 1995 LE BRETON David Adeus ao corpo antropologia e sociedade 2003 ______ Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica 2ed Satildeo Paulo Loyola 2002 MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo Petroacutepolis Vozes 2004 MOSER Antonio Corpo e sexualidade do bioloacutegico ao virtual In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia p 142-144 ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia Satildeo Leopoldo [sd] (Entrevista) Disponiacutevel em lthttpwwwunisinosbrihuindexphpoption=com_entrevistasampItemid=29amp task=entrevistaampid=2188gt Acesso em 14 junho 2009 ______ Praacuteticas de ascese corporal e constituiccedilatildeo de bioidentidades Cadernos de Sauacutede Coletiva Rio de Janeiro p 59-77 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwnescufrjbr cadernos2003_12003_120FOrtega pdfgt Acesso em 14 junho 2009 RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade 3 ed Satildeo Paulo Paulus 2001 SUSIN Luis Carlos Isto eacute meu corpo dado por voacutes In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 231-262

GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo EMENTAS Religiatildeo Ciecircncia e Modernidade Magnoacutelia Gibson Cabral da Silva A ciecircncia e a religiatildeo representam dois grandes sistemas do pensamento humano Existe uma ligaccedilatildeo muito estreita entre essas duas perspectivas de conhecimento Ambas pretendem desvendar o universo e no iniacutecio foi o pensamento miacutestico que inspirou o pensamento cientiacutefico Poreacutem ao longo do tempo a ciecircncia foi assumindo postura e metas bem diversas daquelas da religiatildeo Diriacuteamos que eacute um caso tiacutepico em que a criatura se rebela contra o criador Com efeito a religiatildeo ensina que os seres humanos devem ser subservientes agrave divindade enquanto que a ciecircncia recomenda ignoraacute-la A presente discussatildeo se propotildee a sublinhar alguns dos aspectos fundamentais desta disputa simboacutelica pela hegemonia no campo do conhecimento suas possiacuteveis causas e consequecircncias Biodiversidade e modernidade problemas e desafios Paulo Agostinho N Baptista A modernidade representou uma mudanccedila profunda na histoacuteria trazendo implicaccedilotildees em todos os acircmbitos Surge como um novo paradigma Na esteira dessa mudanccedila se estrutura nova compreensatildeo da razatildeo o desenvolvimento das ciecircncias e uma nova visatildeo cosmoloacutegica a terra natildeo eacute mais o centro O universo se apresenta diverso A ciecircncia comeccedila a se desenvolver na perspectiva das descobertas de outras diversidades Dentre essas recentemente emerge a ideacuteia de biodiversidade e suas implicaccedilotildees Natildeo foi possiacutevel o surgimento desse conceito sem o ambiente criado pela modernidade especialmente de suas contradiccedilotildees Mas o locus mais imediato do aparecimento dessa categoria eacute a consciecircncia de que a diversidade da vida estaacute ameaccedilada acontece no contexto do surgimento do paradigma ecoloacutegico O objetivo desta comunicaccedilatildeo eacute refletir sobre as aproximaccedilotildees os questionamentos os problemas e os desafios da relaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade Ciberespaccedilos para o encontro do sagrado inteligecircncia artificial e religiatildeo Claudia Maria de Assis Rocha Lima Pretende-se uma reflexatildeo sobre a assistecircncia psicorreligiosa na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos processos subjetivos do ser humano no acircmbito da cibercultura O objeto do estudo satildeo profissionais em situaccedilatildeo de estresse que tende a refletir subjetivamente no ritmo do seu organismo tais tensotildees O estudo sugere um ambiente propiacutecio no qual possam descobrir em sua subjetividade essecircncias inerentes para promover o bem-estar tendo como instrumento perspectivas simboacutelicas religiosas na interface da vulnerabilidade das situaccedilotildees-limite eminentes do cotidiano Tendo a consciecircncia do papel desse encontro virtual como terapia mediadora natildeo substituindo os espaccedilos religiosos convencionais e nem tatildeo pouco os atendimentos psicoloacutegicos tradicionais

Transdisciplinar e transreligioso em busca de uma visatildeo integral Gilbraz Aragatildeo O ldquocomordquo da ciecircncia e o ldquoporquerdquo da teologia satildeo intimamente ligados O teoacutelogo de qualquer religiatildeo precisa sempre reinterpretar os seus mitos mas partindo da e visando agrave realidade soacutecio-natural ndash que eacute interpretada pela ciecircncia Acontece que as ciecircncias e as religiotildees se descobrem hoje muacuteltiplas confusas e contraditoacuterias resvalando em fundamentalismos eou relativismos desumanizantes Queremos entatildeo perguntar pela possibilidade de uma Abordagem Integral que associe tanto as crenccedilas mais tradicionais das grandes religiotildees quanto os princiacutepios culturais e cientiacuteficos modernos e poacutes-modernos propondo um papel radicalmente novo para a religiatildeo no mundo uma espiritualidade transreligiosa em diaacutelogo com uma ciecircncia transdisciplinar Feacute cristatilde ciecircncia e modernidade Antonio Carlos Ribeiro O debate entre feacute cristatilde ciecircncia e modernidade resultou em movimentos como o Humanismo a Renascenccedila e a Reforma Protestante implicando a limitaccedilatildeo do direito pontifiacutecio A ciecircncia proporcionou a dessacralizaccedilatildeo e desconstruccedilatildeo do mundo gerando o rompimento do antigo equiliacutebrio Esses fatos fizeram abandonar a cosmologia preacute-moderna devolvendo agrave razatildeo sua dignidade e direitos sacudindo o jugo da autoridade A reaccedilatildeo preacute-moderna criticou o Humanismo por desrespeitar os direitos de Deus o Renascimento por desprezar a civilizaccedilatildeo ocidental cristatilde a Reforma Protestante por romper a unidade religiosa e administrativa o Iluminismo por insistir na razatildeo e a Revoluccedilatildeo Francesa por romper a relaccedilatildeo Igreja-Estado

GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo TEXTOS Religiatildeo Ciecircncia e Modernidade

Magnoacutelia Gibson Cabral da Silva

Introduccedilatildeo

Ciecircncia e religiatildeo representam dois grandes sistemas do pensamento humano O objetivo da

ciecircncia eacute entender os princiacutepios e relaccedilotildees na natureza o conhecimento da natureza permite o

desenvolvimento de accedilotildees visando o aumento do conforto e do tempo de sobrevivecircncia do

homem A ciecircncia eacute baseada na observaccedilatildeo e na experimentaccedilatildeo cuidadosa dos fatos

permitindo a construccedilatildeo de teorias e a conexatildeo de diferentes experiecircncias O objetivo da ciecircncia

eacute entender os princiacutepios e relaccedilotildees na natureza Por exemplo o objetivo da psicologia eacute dar

equiliacutebrio ao ser humano de modo a que ele tenha um paraiacuteso na terra o da medicina eacute combater

as doenccedilas e aumentar o tempo meacutedio de vida do homem (SSILVA E 2003)

A religiatildeo procura explicar as origens do homem e do universo bem como seu papel dentro

deste numa perspectiva bastante ampla que inclui tambeacutem o poacutes vida Diferentemente da

ciecircncia a religiatildeo se baseia na revelaccedilatildeo e na sabedoria recebida

O objetivo da religiatildeo eacute entender o poacutes vida e dar aos fieacuteis uma certeza do poacutes morte que lhe

permita um equiliacutebrio nesta vida um paraiacuteso na outra vida e em alguns casos um paraiacuteso na

terra Ela se baseia na revelaccedilatildeo e na sabedoria recebida Embora hoje hajam divergecircncias entre

a ciecircncia e a religiatildeo isto nem sempre foi assim (Ibid)

A relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia estaacute na ordem do dia em todas as esferas da cultura ocidental

contemporacircnea por se tratar da relaccedilatildeo entre os dois principais sistemas de pensamentos que

dirigem a vida humana sobre a terra Trata-se de um tema bastante amplo e complexo de difiacutecil

abordagem uma vez que compreende vaacuterias aacutereas do conhecimento de ambos os lados e como

tal pode ser abordado de diferentes acircngulos filosoacutefico religioso teoloacutegico cientiacutefico e cada

um destes a partir de diferentes vertentes que englobam as diferentes ciecircncias fiacutesicas e culturais

sob prismas religiosos filosoacuteficos teoacuterico epistemoloacutegico e metodoloacutegico

Aqui abordaremos o assunto numa perspectiva socioloacutegica mais especificamente da

sociologia da religiatildeo e do conhecimento em seus aspectos epistemoloacutegicos e metodoloacutegicos

Nosso objetivo eacute destacar alguns aspectos fundamentais desta disputa simboacutelica entre ciecircncia e

magnoliagibsonbolcombr Profa Doutora em Sociologia lotada na Unidade Acadecircmica de Ciecircncias Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Federal da Campina Grande

religiatildeo seus efeitos sobre esta uacuteltima e a importacircncia dos atores sociais na disputa pela

legitimaccedilatildeo do saber

Recorrendo a uma grande simplificaccedilatildeo diriacuteamos que os diversos grupos que manteacutem e

alimentam esta disputa podem ser divididos em trecircs amplas e diversificadas frentes - nenhuma

delas homogecircnea nem claramente definida - compostas de um lado por estudiosos intelectuais

e profissionais em geral de diversas aacutereas do saber E por outro por especialistas e

profissionais filoacutesofos da religiatildeo e da ciecircncia diretamente encarregados na conduccedilatildeo do

debate em sua incansaacutevel busca de soluccedilotildees sejam estas praacuteticas imediatas eou

teoacutericometodoloacutegicas No centro desta arena estamos todos noacutes tentando nos situar enquanto

seres humanos A participaccedilatildeo como pessoa pode se dar de forma consciente e ativa ou

simplesmente inconsciente deixando-se levar ao sabor da corrente Ou ainda em trincheiras

claramente demarcadas sustentando posiccedilotildees Nesse sentido todos noacutes participamos direta ou

indiretamente individual ou coletivamente nos rumos e nos efeitos deste debate uma vez que

este interfere diretamente nossas em vidas influenciando nossas percepccedilotildees de realidade e os

direcionamentos que damos a estas

A presente discussatildeo toma como base as reflexotildees de autores claacutessicos e contemporacircneos

que se debruccedilaram direta ou indiretamente sobre a questatildeo Entre os claacutessicos Eacutemile Durkheim

Max Weber George Simmel e contemporacircneos Stefano Martteli Anthony Giddens Clifford

Geertz Leila Amaral entre outros Argumentamos que a ligaccedilatildeo entre os sistemas religioso e

cientiacutefico eacute intriacutenseca e estaacute na origem da ciecircncia e que as disputas entre estes dois sistemas

redundam tanto prejuiacutezos quanto em benefiacutecios para ambos em todos os sentidos bem como

para a vida humana em geral Iniciamos a discussatildeo a partir da interpretaccedilatildeo de Durkheim a

respeito da relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia os pontos de aproximaccedilatildeo e as tentativas de afastamento

entre os dois sistema e seus efeitos praacuteticos sobre a sociedade Em seguida ilustraremos a

discussatildeo com a atual relaccedilatildeo entre ciecircncia religiatildeo e sistemas de cura na sociedade ocidental

moderna e o papel dos atores sociais como legitimadores do saber

Religiatildeo e ciecircncia disputa e resistecircncia na luta pela legitimidade do saber

Na sociologia Eacutemile Durkheim foi o primeiro a refletir mais profundamente sobre a

relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia sob a influecircncia da visatildeo positivista na perspectiva da sociologia da

religiatildeo e do conhecimento A reflexatildeo de Durkheim a respeito da relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia eacute

muito rica merece que nos debrucemos unicamente sobre ela o que natildeo eacute nosso propoacutesito

aqui Como jaacute foi dito queremos simplesmente salientar alguns aspectos do debate religiatildeo e

ciecircncia que permanecem atuais para mostrar como ele eacute construiacutedo e mantido e como os

resultados desta disputa simboacutelica se refletem em nossas formas de encarar o mundo e conduzir

nossas vidas como tem sido evidenciado pela sociologia Consoante Giddens (2000) aquilo que

as pessoas dizem e fazem aquilo que acreditam e aquilo que desejam como elas constroem

instituiccedilotildees e interagem entre si ndash satildeo distintos dos objetos das ciecircncias naturais como a fiacutesica a

quiacutemica ou a biologia na medida em que as accedilotildees e interaccedilotildees das pessoas bem como suas

crenccedilas e desejos constituem um aspecto essencial do mundo que o socioacutelogo investiga

(GIDDENS 2000 P 12-13)

A partir deste raciociacutenio pretendemos mostrar como as interpretaccedilotildees dos pensadores

em geral e dos cientistas em particular influenciam nossa percepccedilatildeo de realidade e nossos

modos de viver de pensar agir e de reagir diante do mundo Ou seja eacute no fluxo contiacutenuo entre

a produccedilatildeo e a difusatildeo de saberes praacuteticas sociais diaacuterias que devemos buscar as tendecircncias e os

direcionamentos da disputa entre religiatildeo e ciecircncia No caso interessam natildeo apenas as disputas

mas as reaccedilotildees e resistecircncias a estas por parte dos atores sociais Retornando Durkheim e sua

reflexatildeo sobre a ascensatildeo do pensamento cientiacutefico na sociedade ocidental contemporacircnea

vemos que esta eacute bem atual condizente como o modo de pensar contemporacircneo o qual ele

proacuteprio ajudou a construir Na conclusatildeo de Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse ele

afirma

ldquocontrariamente agraves aparecircncias verificamos que as realidade a que se aplica a

especulaccedilatildeo religiosa satildeo exatamente aquelas que mais tarde serviratildeo como objetos

para a reflexatildeo (cientiacutefica) dos pensadores a natureza o homem a sociedade () A

religiatildeo esforccedila-se por traduzir essas realidades em linguagem inteligiacutevel que natildeo

difere quanto agrave natureza daquela empregada pela ciecircncia209 de ambas as partes trata-

se de ligar as coisas entre si de estabelecer relaccedilotildees internas de classificaacute-las de

sistematiza-lasrdquo (DURKHEIM 1989 P 507)

Como salienta Durkheim ldquoateacute as noccedilotildees essenciais da loacutegica cientiacutefica satildeo de origem

religiosardquo A ciecircncia diz ele para utilizaacute-las submete-as a novas elaboraccedilotildees purifica-as de todo

tipo de elementos oportunistas de maneira geral ela emprega em todos os seus procedimentos

um espiacuterito criacutetico ignorado pela religiatildeo cerca de precauccedilotildees para ldquoevitar a precipitaccedilatildeo e a

prevenccedilatildeordquo para manter agrave distacircncia as paixotildees os preconceitos e todas as influencias subjetivas -

ou seja procedimentos loacutegicos Mas continua ele esses aperfeiccediloamentos metodoloacutegicos natildeo

bastam para diferenciaacute-la da religiatildeo Uma e outra sob esse aspecto perseguem o mesmo

objetivo o pensamento cientiacutefico eacute apenas uma forma mais perfeita do pensamento religioso

Parece pois natural afirma ele que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro agrave

medida que este se torna mais apto para cumprir a tarefardquo (Ibid)

Aqui evidencia-se claramente a influecircncia do positivismo sistema de pensamento que

passaria a predominar na sociedade ocidental contemporacircnea inicialmente entre os cientistas e

209 Grifo nosso para ressaltar na fala da Durkheim aquilo que consideramos essencial no debate socioloacutegico contemporacircneo em relaccedilatildeo agrave disputa entre ciecircncia e religiatildeo tanto em termos teoacutericos como praacuteticos sobre a vida humana

posteriormente na proacutepria sociedade Modo de pensar que aparece hoje como ldquoperfeitamente

naturalrdquo

Continua ele

ldquo natildeo haacute duacutevida de que essa regressatildeo tenha se produzido no curso da histoacuteria Saiacuteda da religiatildeo a ciecircncia tende a substituir essa uacuteltima em tudo o que diz respeito agraves funccedilotildees cognitivas e intelectuais O cristianismo jaacute consagrou definitivamente essa substituiccedilatildeo na ordem dos fenocircmenos materiais Vendo na mateacuteria a coisa profana por excelecircncia abandonou facilmente o seu conhecimento a uma disciplina estranha traditit mundum hominum disputationi foi assim que as ciecircncias da natureza puderam estabelecer-se e fazer reconhecer a sua autoridade sem grandes dificuldades Mas natildeo podia renunciar tatildeo facilmente ao mundo das almas porque eacute sobre as almas que o Deus dos cristatildeo aspira e reinar antes de tudo Eacute por isso que (Op cit P 507) durante muito tempo a ideacuteia de submeter a vida psiacutequica agrave ciecircncia produzia o efeito de uma espeacutecie de profanaccedilatildeo tambeacutem hoje em dia ela ainda repugna a muitos espiacuteritos (Op cit P 508) Entretanto a psicologia experimental e comparativa se constituiu e hoje devemos contar com ela A grande maioria dos homens continua a acreditar que existe uma ordem de coisa nas quais o espiacuterito soacute pode penetrar por vias muito especiais Vecircm daiacute as fortes resistecircncias encontradas as vezes que se procura tratar cientificamente os fenocircmenos religiosos e morais Mas a despeito das oposiccedilotildees essas tentativas se repetem e essa mesma persistecircncia permite prever que essa uacuteltima barreira acabaraacute cedendo e que a ciecircncia dominaraacute inclusive nessa regiatildeo reservada210

Eis em que consiste o conflito entre a ciecircncia e a religiatildeo Temos dele muitas vezes ideacuteia inexata Diz-se em linha de princiacutepio que a ciecircncia nega a religiatildeo Mas a religiatildeo existe eacute um sistema de fatos dados em uma palavra eacute uma realidade Como a ciecircncia poderia negar a realidade Aleacutem disso a ciecircncia natildeo pode substituir a religiatildeo enquanto accedilatildeo enquanto meio de fazer os homens viverem porque se ela exprime a vida natildeo a cria ela pode perfeitamente procurar explicar a feacute mas por isso mesmo ela a supotildee Portanto soacute haacute conflito em ponto circunscrito Das duas funccedilotildees que a religiatildeo exercia primitivamente existe uma apenas uma que tende a escapar-lhe cada vez mais a funccedilatildeo especulativa O que a ciecircncia contesta na religiatildeo natildeo eacute o direito de ser mas o direito de dogmatizar sobre a natureza das coisas eacute a espeacutecie de competecircncia especial que ela se atribui para conhecer o homem e o mundo De fato ela natildeo conhece nem a si proacutepria Natildeo sabe nem de que eacute constituiacuteda nem a que necessidades responde Ela proacutepria eacute objeto de ciecircncia ela estaacute longe de poder impor leis agrave ciecircncia E como por outro lado fora do real a que se aplica a reflexatildeo cientiacutefica natildeo existe objeto proacuteprio sobre o qual recaia a especulaccedilatildeo religiosa eacute evidente que esta natildeo poderia desempenhar no futuro a mesma funccedilatildeo que no passadordquo Entretanto ela parece chamada a se transformar mais do que desaparecer (Ibid)

E eacute exatamente isso que estaacute acontecendo como sustentaram Max Weber e Clifford Geertz

Na introduccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo de A eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismo (2001)

Weber acrescentou uma introduccedilatildeo na qual salienta a influecircncia do pensamento cientiacutefico

ocidental em todo o mundo mostrando que na ldquocivilizaccedilatildeo ocidental e soacute nela tecircm aparecido

fenocircmenos culturais que como queremos crer apresentam uma linha de desenvolvimento de

significado e valor universaisrdquo (WEBER 2001 P 21)

Mais recentemente Geertz em Observando o Islatilde (2004) mostra a influecircncia da visatildeo

cientiacutefica ocidental sobre o islamismo no Marrocos e na Indoneacutesia paises fisicamente distantes

que embora desfrutem da mesma tradiccedilatildeo religiosa como sistema de crenccedila religiosa

dominante o islamismo apresentam caracteriacutesticas particulares e onde eacute perfeitamente

perceptiacutevel a penetraccedilatildeo da interpretaccedilatildeo cientiacutefica ocidental de mundo 210 Esse eacute um dos aspectos centrais no debate que trataremos a seguir

A progressiva ascensatildeo do pensamento cientiacutefico a uma posiccedilatildeo hegemocircnica na escala do

conhecimento humano eacute o primeiro aspecto importante que gostariacuteamos de assinalar nesta

disputa simboacutelica que de certa forma seguiremos ateacute o final do trabalho E nesta o aspecto

ldquoreflexivo permanenterdquo que passaraacute caracterizar a sociedade ocidental contemporacircnea no

chamado processo de secularizaccedilatildeo Com efeito a secularizaccedilatildeo eacute um dos efeitos mais

marcantes da disputa entre religiatildeo e ciecircncia Por seu caraacuteter e autoridade respaldados na

pesquisa cientiacutefica a secularizaccedilatildeo tem-se constituiacutedo como um dos principais fatores

responsaacuteveis pela globalizaccedilatildeo cultural e econocircmica que hoje penetra na maioria das sociedades

do mundo ateacute mesmo as natildeo ocidentais

Na medida em que a pesquisa cientiacutefica produz efeitos materiais imediatos termina por

tornar-se necessaacuteria e mesmo indispensaacutevel ateacute mesmo para alguns setores da esfera religiosa

pois funciona como recurso eficiente para o aperfeiccediloamento e esclarecimento das mensagens e

questotildees religiosas que envolvem lsquocomprovaccedilatildeo cientiacuteficarsquo Na sociedade secularizada

portanto o pensamento cientiacutefico natildeo aparece mais como ameaccedilar agrave sobrevivecircncia do

pensamento religioso ao contraacuterio as chamadas ldquonovas religiotildeesrdquo frequentemente recorrem agrave

ciecircncia como instacircncia de legitimaccedilatildeo como se pode ver no espiritismo e nas inuacutemeras religiotildees

da ldquonova Erardquo (SILVA M 2000) Poreacutem natildeo se pode dizer o mesmo em relaccedilatildeo a seus efeitos

e desdobramentos sobre a vida e a sauacutede a doenccedila e a cura onde esta aparece muitas vezes

como insuficientes e ateacute mesmo inoperante no discurso de inuacutemeros muitos doentes (SILVA

MP 207)

Com efeito embora nos uacuteltimos seacuteculos o sistema cientiacutefico tenha suplantado oficial e

culturalmente o sistema religioso recorrendo ateacute mesmo agrave forccedila da lei para obter seu intento ateacute

hoje os perseguidos reivindicam seu direito agrave assistecircncia meacutedico-espiritual de seus pacientes

Nesse sentido a legitimaccedilatildeo proporcionada pelos atores sociais tem demonstrado ser mais

poderosa do que imaginaram os burocratas oficiais Todo o aparato oficial e todos os esforccedilos

no sentido de separar os diversos setores de atuaccedilatildeo natildeo foram capazes de romper a ligaccedilatildeo

seminal entre estes dois sistemas centrais de conhecimento pois embora autocircnomos

inevitavelmente caminham por vias paralelas perpassando todos os setores do conhecimento

humano e fornecendo explicaccedilotildees agrave compreensatildeo do universo e orientando as accedilotildees humanas O

mesmo pode-se dizer dos sistemas e rituais de cura onde os pacientes parecem acreditar que

quanto mais recursos utilizar para se curar mais eficiecircncia obteraacute

Do ponto de vista oficial os sistemas de cura popular satildeo vistos como uma ameaccedila agrave sauacutede

puacuteblica Este eacute o segundo aspecto fundamental neste debate que gostariacuteamos destacar pois

malgrado o enorme aparto oficial em defesa da medicina cientiacutefica e da enorme repressatildeo dos

poderes constituiacutedos sobre os ldquosistemas populares de curardquo ao contraacuterio da medicina oficial

esta conta com a legitimidade de largos setores da populaccedilatildeo destituiacuteda de recursos e de

educaccedilatildeo formal (mas natildeo exclusivamente desta) para as quais a medicina formal eacute taxada de

cara inoperante fria e indiferente ao sofrimento dos pacientes (Ibid) Eacute o que discutiremos a

seguir

Ciecircncia e religiatildeo vida e sauacutede doenccedila e cura

Ao contraacuterio do que supunha Durkheim quando afirmou ldquoas ciecircncias da natureza puderam

estabelecer-se e fazer reconhecer a sua autoridade sem grandes dificuldadesrdquo (Durkheim op cit

P 508) em certos setores a autoridade cientiacutefica natildeo obteve tatildeo facilmente a aceitaccedilatildeo esperada

E o mais interessante eacute que esse fenocircmeno natildeo se daacute apenas entre as camadas despossuidas da

populaccedilatildeo embora nestas seja muito maior Na biomeacutedica diante de todas as conquistas

passadas e recentes era de se esperar que a ciecircncia natildeo teria dificuldade de se afirmar e

facilmente sobrepujaria os ruacutesticos sistemas populares e miacutesticos de cura Mas natildeo foi isso que

aconteceu nem mesmo na Europa Tudo parece indicar que a aceitaccedilatildeo popular eacute um processo

bem mais complexo do que aparenta Ora durante milecircnios era a religiatildeo que provia todas as

necessidades humanas Em todas as civilizaccedilotildees a religiatildeo aparece como coacutedigo de conduta

individual e social bem como de eacutetica e de cura para a manutenccedilatildeo da sauacutede fiacutesica moral e

social constituindo amplos sistemas interligados sem soluccedilatildeo de continuidade Nas sociedades

arcaicas e antigas o sacerdote era tambeacutem o meacutedico (curandeiro pajeacute xamatilde etc)

Segundo George Ohsawa (1979) meacutedico macrobioacutetico de origem japonesa a finalidade das

cinco grandes religiotildees vaacuterias vezes milenares inventadas no Oriente antes de tudo parece ser

a de salvar os seres humanos de suas ldquoquatro maiores afliccedilotildees fisioloacutegicasrdquo (o sofrimento de

viver o sofrimento da doenccedila o sofrimento da velhice e o sofrimento da morte) Ao contraacuterio

do que muitos pensam para ele estas religiotildees seriam verdadeiros ldquotratadosrdquo onde as pessoas

devem buscar orientaccedilatildeo para conseguir a sauacutede a longevidade e a manutenccedilatildeo da juventude

fatores que constituiriam a base fundamental para o ser humano encontrar a felicidade e a

liberdade (OHSAWA 1979 9)

Na Iacutendia a medicina teve origem na tradiccedilatildeo Vede (palavra sacircnscrita que significa

aprendizado conhecimento) O livro Ayurvede (Vede da longa vida) era especificamente

dedicado agrave medicina Eram textos sagrados revelados por entidades divinas onde as referecircncias

histoacutericas entrelaccedilavam-se com lendas A tradiccedilatildeo foi seguida do periacuteodo bramacircnico IX aC

que marca o apogeu da medicina indiana (MARGOTA 1998 16)

A biomeacutedica eacute muito jovem em comparaccedilatildeo com os milenares sistemas populares Ao

contraacuterio da medicina oficial as medicinas tradicionais satildeo holiacutesticas natildeo separam mente

corpo e espiacuterito enquanto que a biomeacutedica baseia-se em princiacutepios mecanicistas e materialistas

A medicina popular eacute milenar e facilmente acessiacutevel Toda matildee e toda avoacute tem acesso agrave praacuteticas

simples e em geral eficientes grandemente enriquecidas pelo carinho e pelo dedicaccedilatildeo dos

familiares Do ponto de vista do paciente a assistecircncia emocional e espiritual ndash sobretudo nos

casos mais delicados ndash e que estaacute inteira ou parcialmente ausente da medicina oficial eacute

fundamental em todas as etapas do tratamento nos sistemas populares A biomeacutedica origina-se

numa cultura que soacute eacute acessiacutevel a intelectuais E o Ocidente adotou exatamente o ramo racional

da medicina grega que era materialista e mercenaacuteria (SILVA M 20002007)

Segundo os interpretes da Iliacuteada na eacutepoca de Homero na Greacutecia a medicina era o oposto

da Iacutendia natildeo se baseava na magia nem na religiatildeo era uma disciplina independente praticada

por profissionais pagos (Op cit 22-23) Muito provavelmente aiacute se encontram as bases da

medicina ocidental contemporacircnea porque o caraacuteter mercenaacuterio da medicina grega descrita em

Homero soacute encontra paralelo no Ocidente moderno

Ainda assim com o tempo a influecircncia oriental foi deixando sua marca sobre a cultura

grega e a medicina grega foi se tornando mais sacerdotal As praacuteticas meacutedicas sacerdotais

alastraram-se por toda a Greacutecia durante o seacuteculo V a C permanecendo em uso ateacute os seacuteculos

IV ou V d C periacuteodo no qual o culto a Esculaacutepio (deus da cura) funde-se ao dos santos da era

Cristatilde (Ibid)

A civilizaccedilatildeo ocidental moderna foi muito aleacutem da grega separando todas instacircncias da

vida que nas tradiccedilotildees arcaicas e antigas eram interligadas e constitutivas da esfera do sagrado

Na chamada sociedade poacutes-tradicional (Giddens 1997) a maior parte das funccedilotildees antes

atribuiacutedas agrave religiatildeo passaram para a alccedilada dos especialistas laicos Os meacutedicos os psicoacutelogos

os advogados os administradores os especialistas em geral passaram a ser as autoridades

Como vimos os especialistas natildeo conseguiram responder satisfatoriamente a inuacutemeras

questotildees que embora bastante antigas continuam a atormentar o homem contemporacircneo Uma

destas questotildees mal resolvidas eou natildeo satisfatoriamente explicadas pela ciecircncia ocidental eacute

exatamente a cura Para a proacutepria ciecircncia a cura ainda eacute em muitos casos um fenocircmeno

misterioso e inexplicaacutevel e a medicina estaacute muito longe de conseguir a cura para todos os males

A ciecircncia ocidental eacute um sistema altamente mercantilista Os grandes laboratoacuterios satildeo acusados

de retardar a cura de certos males quando as possibilidades de satildeo limitadas Os doentes

crocircnicos natildeo satildeo devidamente assistidos porque em geral essas doenccedilas natildeo matam

Especificamente no que diz respeito agrave sauacutede na praacutetica as conquistas e as orientaccedilotildees da

biomeacutedica ainda deixam muito a desejar e isso por inuacutemeros fatores Primeiro eacute uma medicina

dispendiosa necessita de muito investimento financeiro para custear seus sofisticados

instrumentos e dispendiosos medicamentos industrializados que em geral tecircm muitos efeitos

colaterais indesejaacuteveis

Esta seria talvez uma das razotildees da aceitaccedilatildeo das soluccedilotildees de cura propostas pelas

diferentes correntes religiosas e ou miacutesticas No Brasil a umbanda o espiritismo o Santo

Daime as igrejas pentencostais em geral a catoacutelica atraveacutes das promessas aos santos bem

como as inuacutemeras fraternidades esoteacutericas continuam a ocuparem-se da cura dos males fiacutesicos

emocionais e morais dos fieacuteis apesar das legislaccedilotildees proibitivas E o mais curioso eacute que a

religiatildeo natildeo apenas natildeo abdicou de sua atribuiccedilatildeo da cura como as diferentes formas miacutestica de

tratamento tem-se ampliado e se diversificado grandemente na modernidade

Natildeo sei se seria correto falar em lsquoreaccedilatildeorsquo mas a verdade eacute que a disputa que se origina com

o desenvolvimento cientiacutefico e que deu origem ao movimento de secularizaccedilatildeo que levou agrave

contestaccedilatildeo do sistema religioso dominante no Ocidente o catolicismo na modernidade

termina por favorecer o surgimento de religiotildees individualizadas e de novas religiotildees nacionais

e estrangeiras

Mas o fato eacute que a expansatildeo da ciecircncia na sociedade ocidental moderna foi reduzindo o

campo de accedilatildeo da religiatildeo fazendo com que esta natildeo pudesse mais desempenhar as mesmas

funccedilotildees que no passado era de sua alccedilada Ao contraacuterio do que pensavam muitos para

Durkheim a religiatildeo estaria sendo chamada a se transformar mais do que desaparecer (Op cit P

508) Ele tinha razatildeo eacute exatamente isso que se verifica hoje A ciecircncia continua expandindo-se

cada vez mais inclusive com um novo olhar para a religiatildeo Com efeito depois de seacuteculos de

tentativa de desacreditar as supostas ldquoverdades religiosasrdquo em alguns setores do pensamento

cientiacutefico vislumbram-se encaminhamentos no sentido da cooperaccedilatildeocompreensatildeo em lugar

da negaccedilatildeo e da simples imposiccedilatildeo E o mais interessante eacute que embora por motivos diferentes

de ambas as partes estaacute ocorrendo hoje uma espeacutecie de movimento em matildeo dupla tanto da

ciecircncia em direccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo como se vecirc na fiacutesica quacircntica e em alguns ramos da biomeacutedica

como das novas religiotildees em direccedilatildeo agrave ciecircncia

De fato nos uacuteltimos trinta anos observa-se na sociedade ocidental um crescente interesse

por parte de alguns profissionais da sauacutede em utilizar antigas tradiccedilotildees como a alimentaccedilatildeo

natural a fitoterapia o relaxamento a acupuntura a ioga entre outras como coadjuvante da

medicina oficial Isso eacute facilmente constataacutevel pelo crescente nuacutemero de institutos211 de

pesquisas com este fim e consequumlentes publicaccedilotildees bem como o surgimento de novas

especialidades meacutedicas que unem a ciecircncia moderna e os conhecimentos milenares (SILVA M

1989- 2000)

Por outro lado diversas formas de conhecimento e decisotildees na aacuterea religiosa hoje estatildeo

sujeitas ao julgamento de cientistas uma vez que a ciecircncia ocidental moderna constitui-se como

211 Na Inglaterra o New Englad Memorial Hospital eacute uma das instituiccedilotildees pioneiras que une a medicina Ayuveacutedica `a ocidental Nos Estados Unidos existem inuacutemeros centros e universidades que incluem o estudo de conhecimentos milenares em seus curriacuteculos A Califoacuternia eacute uma das regiotildees mais ativas neste sentido Um dos mais famosos centros eacute o Sharp Institute for Human Potencial and MindBody Medicine em San Diego O instituto oferece terapias mentecorpo e ayurveacutedicas tanto para pacientes externos quanto para residentes em associaccedilatildeo com o Center Form MindBody Medicine treinamento em medicina mentecorpo e ayurveacutedicas para profissionais da aacuterea da sauacutede e para o puacuteblico em geral e pesquisas para confirmar a eficaacutecia dos tratamentos mentecorpo Maiores informaccedilotildees podem ser obtidas atraveacutes do telefone 1-800-82-SHARP No Brasil a pioneira neste tipo de estudo eacute a USP Hoje a acupuntura teacutecnica milenar chinesa eacute oferecida em todo o paiacutes tendo sido oficialmente aceito e hoje eacute empregado tanto pelo INSS como por inuacutemeros planos de sauacutede privado

a instacircncia de legitimaccedilatildeo do conhecimento mais importante Eacute o caso da comprovaccedilatildeo de

milagres perante a Igreja Catoacutelica nos processos de canonizaccedilatildeo por exemplo

O proacuteprio misticismo da Nova Era procura se revestir de um caraacuteter cientiacutefico colocando-

se assim numa situaccedilatildeo ateacute certo ponto ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que critica a

ciecircncia materialista ocidental (que continua sendo o conhecimento hegemocircnico) a ela recorre

em busca de respaldo e de legitimaccedilatildeo (Ibid 2000) Visto dessa forma tudo isso pode parecer

extremamente confuso e realmente eacute Pois ao mesmo tempo em que parece estar se processando

uma espeacutecie de fusatildeo entre o tradicional e o moderno o misticismo propotildee uma visatildeo diversa

daquela da ciecircncia moderna Na grande Rede Internacional da Nova Era a cura dos males

humanos a realizaccedilatildeo do homem integral (corpomenteespiacuterito) a partir de uma visatildeo holiacutestica

aparece como uma das preocupaccedilotildees fundamentais (SILVA M 2000 e AMARAL 2001)

Nesse processo de adaptaccedilotildees e mudanccedilas estas podem se dar atraveacutes das mais estranhas

formas de ressignificaccedilatildeo A esse respeito tivemos oportunidade de presenciar cerimocircnias

realizadas por xamatildes em San Cristobaacuten de las Casas no Meacutexico em 2004 e tambeacutem no museu

da cultura Maia onde estes pela dificuldade de conseguir os ingredientes de preparaccedilatildeo das

bebidas preparadas com ervas utilizadas nos rituais de cura a estavam substituindo por

refrigerantes Para eles o ritual natildeo perde a eficaacutecia em razatildeo desta substituiccedilatildeo Muitos

pacientes chegam curar-se de doenccedilas graves somente com o apoio da feacute Eacute o milagre da cura

que a ciecircncia constata mas natildeo explica Mas os pacientes carecem de explicaccedilatildeo e a dos

cientistas natildeo os satisfaz Eles necessitam de uma explicaccedilatildeo mais abrangente

As mulheres testemunhas de Jeovaacute viacutetimas do diabetes por exemplo entrevistadas pela

antropoacuteloga mexicana Elia Juarez (1998) acreditam que males como o diabetes assinalam o fim

dos tempos Para elas eacute chegada a hora de um novo reino de Deus as doenccedilas satildeo

oportunidades que Ele nos daacute de refletir e de tomar consciecircncia da vontade divina Soacute nos cabe

pedir consolo a Jeovaacute ante o sofrimento e dar graccedilas pela vida que ele nos concede Seu estudo

com diabeacuteticos idosos baseado em Geertz ilustra bem a importacircncia da religiatildeo na vida destes

enfermos

considero que la religioacuten como sistema de siacutembolos que les permite enteder y dar um significado a su experiecircncia com com la enfermidad estabelecer estados aniacutemicos de aceptacioacuten o rechazo ante su situacioacuten asiacute como motivaciones para seguir o no los tratamientos que les recomiendan de esta manera en el enfrentamiento cotidiano de su padecer el vieejo com diabetes redefine los elementos simboacutelicos aprendidos a lo largo de su vida y asumidos como parte de su identidad religiosa para una explicacioacuten a su existecircncia

Aqui mais uma vez somos obrigados a concordar com Durkheim quando afirma ldquoa ciecircncia

natildeo pode substituir a religiatildeo enquanto accedilatildeo enquanto meio de fazer os homens viveremrdquo

(DURKHEIM op cit P 508) Neste ponto consideramos bastante apropriado a assertiva de

Simmel a respeito da religiatildeo Para ele ldquoo homem eacute naturalmente religiosordquo A religiosidade eacute

um modo de ser do ser humano quer ela tenha ou natildeo uma caracteriacutestica que possa ser ou natildeo

incorporada numa feacute Religiatildeo natildeo seria o correspondente subjetivo de um objeto transcendente

pelo contraacuterio seria um processo que submete a si todo conteuacutedo da experiecircncia vital tornando-

o precisamente ldquoreligiosordquo (SIMMEL apud MARTELLI 1995 243) Nesse sentido toda a

experiecircncia humana pode ser assumida sob o ldquoa priorirdquo religioso Consoante Simmel existem

trecircs acircmbitos da vida nos quais as probabilidades que tal atividade geneacuterica plasme siacutembolos

religiosos satildeo mais altas trata-se do comportamento humano diante da natureza da proacutepria

sorte e a dos outros seres humanos (Ibid) Diriacuteamos que esta interpretaccedilatildeo de Simmel nos

ajuda a entender a relaccedilatildeo entre cura e religiatildeo em seu sentido mais amplo Porque a religiatildeo nos

faz acreditar que somos parte de algo muito maior do que uma simples e finita comunidade

humana Tanto em Durkheim como em Simmel o poder de integraccedilatildeo atraveacutes da difusatildeo e

manutenccedilatildeo de ideais elevados constituiria uma das funccedilotildees mais importantes da religiatildeo Em

Simmel a religiatildeo exprime a forma socioloacutegica da reciprocidade que ele denomina de unidade

de grupo (SIMMEL 1997 P 57)

O saber curativo lsquocarismaacuteticorsquo proposto pelos profetas da Nova Era eacute bem mais complexo

que o da nossa tradiccedilatildeo popular Neste sistema a visatildeo da cura dos males humanos parte de uma

perspectiva holiacutestica (corpomenteespiacuterito) e eacute essencialmente individual em todos os sentidos

Eacute uma cura pessoal deve ser conseguida peccedilo proacuteprio paciente No maacuteximo pode dispor de um

mestre para auxiliaacute-lo

Como tatildeo apropriadamente saliente Amaral (2001) em Carnaval da Alma comunidade

essecircncia e sincretismo na Nova Era o sistema carismaacutetico da Nova Era eacute essencialmente

aberto Para a referida autora na Nova Era a cura eacute quase uma obsessatildeo (AMARAL 2001 P

61)

Trata-se de uma quase obsessatildeo uma atitude de suspeita permanente em relaccedilatildeo ao mundo

contemporacircneo que se expressa no discurso da Nova Era como uma crise avassaladora que assola o

planeta () Trata-se enfim da restauraccedilatildeo da sauacutede da Terra concebendo-a como ldquoa grande

reconciliaccedilatildeordquo ()

Na busca dessa transformaccedilatildeo radical cura e salvaccedilatildeo acabam por se tornar sinocircnimos e a

afirmaccedilatildeo primeira em resposta a esse objetivo eacute categoacuterica e recorrente na Nova Era a ldquodoenccedilardquo e

o ldquomedordquo que a acompanha satildeo provocados pela ldquo ilusatildeo da separaccedilatildeordquo e seus efeitos perversos no

mundo fiacutesico emocional social e planetaacuterio Os males da modernidade e da civilizaccedilatildeo proviriam

em uacuteltima instacircncia da alienaccedilatildeo do ego dos outros planos da existecircncia para aleacutem dos seus proacuteprios

limites e dos da mateacuteria (Ibid)

Ela classifica os processos de cura da Nova Era em dois tipos a cura harmocircnica e a cura

xamacircnica

No primeiro tipo curar significa harmonizar as energias do corpo de maneira que elas

ressoem com as mais amplas forccedilas e leis da natureza Segundo a teoria do Magnetismo

Planetaacuterio desenvolvida por Mesmer existiria uma seacuterie de substacircncias produzindo efeitos umas

sobre as outras devido a sua fluidez e atraveacutes de sua sutileza elas penetrariam e preencheriam

todos os interstiacutecios Segundo este autor todo ser humano irradiaria um fluido magneacutetico que

pode influenciar as mentes e os corpos de outras pessoas atraveacutes do desejo A cura entatildeo pare

ele seria a transmissatildeo diretamente do curador para o paciente de uma forccedila vital que ele

denomina de ldquomagnetismo animalrdquo (Op cit 63)

No modelo harmonial curar significa transforma-se no sentido do reencontro da pessoa com

a totalidade entendida como junccedilatildeo a ligaccedilatildeo do espiacuterito agrave mateacuteria e da mente agrave substacircncia

fiacutesica (Op cit64)

Jaacute no modelo xamacircnico ao contraacuterio do anterior curar significa ldquoviajarrdquo para o reino da natildeo

mateacuteria no qual as forccedilas sutis se transmudam em substacircncia material isto eacute a mateacuteria se

dissolve na energia e reconfigura-se como mateacuteria Atraveacutes da visualizaccedilatildeo criativa o xamatilde

seja o proacuteprio paciente ou o curador procura penetrar o mais profundamente possiacutevel na mateacuteria

(o interior do seu corpo) a ponto de sentir-se naquele reino no qual a natureza natildeo se mostra

mais como blocos baacutesicos de construccedilatildeo isolados isto eacute objetos soacutelidos fixos e acabados em si

mesmos mas apenas como ondas de luz (Op cit 65)

Em suma no modelo xamacircnico curar significa transformar-se no sentido do reencontro da

pessoa com a totalidade entendida como abertura vastidatildeo ou passagem enfatizando mais o

sentido de comunicaccedilatildeo incessante e ilimitada do que o sentido de relaccedilotildees reificadas ou

substancializadas (Ibid)

Na praacutetica no entanto frequumlentemente os meacutedico e popular podem aparecem mescladas

porque existem numa realidade essencialmente dinacircmica e de alguma forma podem interferir

uns nos outros conforme as circunstacircncias e disposiccedilotildees do especialista e do doente

Eacute importante ressaltar tambeacutem que a contestaccedilatildeo agraves estruturas estabelecidas hoje eacute

celebrada e estimulada Em consequumlecircncia a estrutura tornou-se flexiacutevel para acomodar a

mudanccedila O processo eacute bem mais dinacircmico do que no passado e permite estudar a mudanccedila no

momento mesmo em que estaacute se processando

Agrave medida em que sobrevivem e de alguma forma convivem todos estes sistemas de saber

curativo satildeo legiacutetimos pois foram legitimados pelos usuaacuterios que os aceitam e neles confiam

Frequumlentemente haacute disputas entre os diferentes sistemas desde que os partidaacuterios de algum

deles se sintam prejudicados pelos outros

Na sociedade ocidental contemporacircnea as elites dominantes tentaram em vatildeo desacreditar

as medicinas tradicional e maacutegica chegando mesmo a impor leis proibitivas agraves suas praacuteticas e

perseguindo seus praticantes Contudo apesar das longas e interminaacuteveis disputas e da forccedila

institucional a medicina oficial natildeo conseguiu erradicar a medicina milenar nem mesmo pela

lsquoforccedila da leirsquo E natildeo consegue por vaacuterias razotildees Entre noacutes o alto custo da medicina alopaacutetica eacute

um deles O estado que impotildee as leis proibitivas natildeo oferece a infra-estrutura nem os recursos

necessaacuterios ao cumprimento das mesmas

Mas talvez a maior razatildeo do natildeo desaparecimento dos sistemas de cura tradicional e

maacutegica seja mesmo a visatildeo mecanicista que embasa a medicina cientiacutefica e que deixa o

paciente sem amparo humano emocional ou espiritual quando estes se fazem necessaacuterio De

fato enquanto a medicina oficial se restringe aos aspectos puramente fisioloacutegicos da doenccedila as

medicinas popular e maacutegica abrangem um espectro bem mais amplo incorporando os campos

simboacutelicos espiritual psicoloacutegicos e emocionais dos pacientes Este suporte eacute essencial

principalmente nos casos de doenccedilas graves ou de males crocircnicos Essa carecircncia da medicina

oficial deixa uma enorme vazio que leva os pacientes a buscar soluccedilotildees em outros sistemas seja

ele a religiatildeo a tradiccedilatildeo ou a magia ou todos os sistemas em conjunto inclusive o oficial

No Brasil como no Ocidente em geral o sistema preponderante eacute o hegemocircnico que eacute

aceito principalmente pelas camadas ilustradas e instruiacutedas da populaccedilatildeo O sistema popular

sobrevive principalmente na zona rural e nos subuacuterbios das grandes cidades sendo utilizado

sobretudo pelas camadas menos instruiacutedas e pior servidas pela medicina oficial Mas isso natildeo

quer dizer que as camadas mais instruiacutedas e economicamente mais elevadas estejam ausentes

dos sistemas tradicionais principalmente quando satildeo acometidas por doenccedilas graves ou

crocircnicas

Pode-se afirmar seguramente que quanto maior a gravidade do mal que se deseja curar

maior seraacute a probabilidade de doente buscar auxiacutelio em diferentes sistemas de cura ao mesmo

tempo Um bom exemplo eacute o dos catoacutelicos de todos os niacuteveis sociais que acorrem aos

santuaacuterios de Faacutetima em Portugal Aparecida em Satildeo Paulo Juazeiro no Cearaacute ou outros em

busca de um milagre

O inverso tambeacutem eacute verdadeiro Quanto menor a gravidade do um mal menor seraacute a

probabilidade de busca de outras opccedilotildees Quando um uacutenico sistema satisfaz o paciente e seus

familiares natildeo haacute razatildeo para recorrer a outros sistemas

Outro fator que facilita esta mobilidade entre os vaacuterios sistemas eacute o amplo leque de opccedilotildees

de cura agrave disposiccedilatildeo na sociedade ocidental moderna e a inoperacircncia do sistema de saber

curativo oficial

Medicina oficial versus medicina alternativa

Haacute aproximadamente trinta anos um nuacutemero cada vez maior de profissionais do sistema de

saber curativo oficial comeccedila a aderir agrave chamada lsquomedicina alternativarsquo Com efeito inuacutemeros

profissionais da sauacutede incorporaram sistemas tradicionais de cura como coadjuvante em seus

tratamentos convencionais entre outros a fitoterapia a acupuntura a meditaccedilatildeo transcendental

a ioga entre outros para tratar seus pacientes (SILVA M op cit 1989 e GIDDENS 2006 P

129) como podemos constatar nos exemplos a seguir Dr A R meacutedico pediatra com curso de

Mestrado e Residecircncia no Rio de janeiro professor universitaacuterio (PB) aderiu agrave macrobioacutetica e a

Homeopatia em 1974 por motivo de sauacutede

O que me encucava na medicina eram as limitaccedilotildees em relaccedilatildeo a certas doenccedilas como asma cacircncer

amigdalite crocircnica etc Foi esse motivo que me levou agrave procurar alternativas como Homeopatia Do-In

Acupuntura Moxa-bustatildeo A massagem eu considero um tratamento mais integral ele elimina a doenccedila

e acalma a crianccedila O problema eacute que os brasileiros estatildeo condicionados ao uso de medicamentos por

isso eu alio a massagem ao tratamento homeopaacutetico(Silva 1998 91)

Segundo Dr G S C cliacutenico geral professor universitaacuterio (PE) adepto da acupuntura

moxabustatildeo homeopatia e fitoterapia

A cura de todas as doenccedilas a cura do cacircncer estaacute muito relacionada com as condiccedilotildees

de consciecircncia haacute no organismo de cada um a substacircncia curativa o homem pode se auto-

curar A condiccedilatildeo fraacutegil de sauacutede que temos hoje se deve agrave ignoracircncia do homem da verdadeira

realidade As ciecircncias que fazem parte do componente das medicinas alternativas satildeo muito

antigas muito sutis muito especiais A medicina ocidental eacute muito nova muito pouco

explorada daiacute seus efeitos colaterais

Dr G B V psiquiatra (PE) depois de utilizar a ioga para tranquumlilizar a si proacuteprio passou a

utilizaacute-la tambeacutem em seus pacientes

Busquei na ioga a tranquumlilidade para mim mesmo Continuei meus estudos e graccedilas aos livros me iniciei no meu trabalho de busca de tranquumlilidade e de crescimento interior Alguns anos mais tarde 1977 usei a ioga de forma experimental com pacientes que estavam sofrendo ou passando uma ldquoviagemrdquo psicoacutetica Para a grande maioria a ioga permitiu um maior auto-domiacutenio atraveacutes da respiraccedilatildeo Ela ajudou a diminuir os estados depressivos e de ansiendade A praacutetica da respiraccedilatildeo ajuda em todos os sentidos Nos estados patoloacutegicos de esquisofrenia profunada eu natildeo consegui nenhuma melhora No entanto o conceito da ioga vem modificando a nossa ideacuteia de Deus que eacute limitada a um Deus castrador isso ajuda a qualquer tipo de doenccedila mental

Para Simmel somente na esfera religiosa seria possiacutevel realizar simbolicamente a unidade

da sociedade isto eacute aquela coesatildeo perfeita do grupo imune agraves rivalidades da competiccedilatildeo entre

os membros porque na vida cotidiana significa tensatildeo destinada a ser permanentemente

frustrada (MARTELLI 1995 P 250)

Considerando verdadeiro os argumentos de Durkheim e Simmel a respeito do papel da

religiatildeo na coesatildeo social diriacuteamos que os fatos parecem indicar que a ciecircncia jamais conseguiraacute

substituir completamente a religiatildeo sobretudo em seus aspectos simboacutelicos espirituais e

emocionais acircmbitos sobre os quais as possibilidade de controle cientiacutefico satildeo muito limitadas

Reflexotildees finais

Diriacuteamos que em relaccedilatildeo ao embate entre medicina e religiatildeo no Brasil hoje embora o

sistema de saber curativo legal seja predominantemente aceito (principalmente pelas camadas

sociais media e alta (mas natildeo exclusivamente) o prestiacutegio dos sistemas de saber curativo

tradicional (popular) e carismaacutetico (miacutestico) satildeo extremamente significativos para a populaccedilatildeo

como um todo E estes uacuteltimos embora sejam predominantemente utilizados pelas camadas

meacutedia e baixa tecircm uma significativa penetraccedilatildeo nas camadas elevadas e instruiacutedas da

populaccedilatildeo especialmente o espiritismo a chamada medicina alternativa da Nova Era

Como vimos os esforccedilos para sobrepujar os sistemas curativos tradicionais parecem natildeo ter

surtido o efeito desejado Diriacuteamos que a imposiccedilatildeo do saber curativo cientiacutefico como o uacutenico

vaacutelido teve um lsquoefeito colateralrsquo indesejado As tentativas dos oacutergatildeos oficiais natildeo apenas natildeo

foram capazes de sobrepujar os sistemas tradicional e carismaacutetico como natildeo os impediu de

crescer e adquirir ainda mais em prestiacutegio e aceitaccedilatildeo do antes A prova disso eacute o crescente

interesse da ciecircncia biomeacutedica pelo saber curativo tradicional e carismaacutetico

O interesse da biomeacutedica pelos sistemas tradicionais eacute visto por alguns como negativo uma

vez que na pode redundar em apropriaccedilatildeo do saber popular pelos setores oficiais e proibiccedilatildeo das

praacuteticas dos profissionais populares De fato isso tem ocorrido com frequumlecircncia A verdade eacute

que na praacutetica mesmo sem interferecircncia do poder oficial frequumlentemente os sistemas meacutedico

popular e religioso aparecem mesclados porque a realidade eacute essencialmente dinacircmica e de

alguma forma os diverso setores podem interferir uns nos outros conforme as circunstacircncias e

disposiccedilotildees dos especialistas e dos doentes

No que diz respeito agrave religiatildeo em si a questatildeo eacute bem mais complexa porque envolve

aspectos simboacutelicos espirituais e emocionais acircmbitos sobre os quais as possibilidade de

controle cientiacutefico ainda satildeo muito limitadas se comparadas aquelas obtidas em niacuteveis mais

concretos de realidade

Tudo parece indicar que enquanto o saber curativo oficial se restringir aos aspectos

puramente fisioloacutegicos da doenccedila continuaraacute a sofrer a concorrecircncia dos sistemas de cura

tradicional maacutegico e religioso que oferecem aos pacientes natildeo apenas um suporte fiacutesico mas

tambeacutem simboacutelico espiritual psicoloacutegico e emocional A biomeacutedica estaacute se dando conta disso

como comprovam os recentes incentivos oficiais agrave medicina psicossomaacutetica a fitoterapia e a

sistemas como acupuntura e meditaccedilatildeo entre outros Nesse sentido diriacuteamos que alguns

profissionais do setor cientiacutefico parecem se dar conta de que a ciecircncia natildeo pode abranger todos

os campos do saber pois por suas proacuteprias caracteriacutesticas inuacutemeros fenocircmenos lhe escapam e

que por isso mesmo eacute muito mais vantajoso para todos somar esforccedilos do que dividir E em

todo esse processo natildeo se deve desconsiderar os atores sociais e o senso comum pois no final

satildeo eles os verdadeiros legitimadores do saber

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WEBER Max A eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismo Satildeo Paulo Ed Martin Claret 2001

Biodiversidade e Modernidade212

Paulo Agostinho N Baptista213

ldquoSoacute uma sociedade bem informada a respeito da riqueza do valor e da importacircncia da biodiversidade eacute capaz de preservaacute-lardquo

Washington Novaes

ldquoO progresso daacute-nos tanta coisa que natildeo nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar forardquo Carlos Drumond

Introduccedilatildeo

Eacute muito provocativo no contexto em que vivemos articular essas duas questotildees

importantes ldquobiodiversidade e modernidaderdquo Comeccedilamos refletindo sobre o que eacute a

modernidade o que ela representou e representa O seu advento significou uma profunda

mudanccedila na histoacuteria Surge um novo paradigma Na esteira dessa mudanccedila se estrutura nova

compreensatildeo da razatildeo e o desenvolvimento das ciecircncias Ela surge junto ao lado de outra

mudanccedila a cosmoloacutegica ndash a terra natildeo eacute mais o centro O universo se apresenta diverso A

ciecircncia comeccedila a se desenvolver na perspectiva das descobertas de outras diversidades

Depois desse olhar passamos a refletir sobre o conceito ldquobiodiversidaderdquo seu

surgimento e suas implicaccedilotildees Natildeo foi possiacutevel o aparecimento desse conceito sem o ambiente

criado pela modernidade especialmente de suas contradiccedilotildees Mas o locus mais imediato da

emergecircncia dessa categoria eacute a consciecircncia de que a diversidade da vida estaacute ameaccedilada

acontece no contexto do paradigma ecoloacutegico Finalmente o momento de fazer aproximaccedilotildees

questionamentos e trazer problemas sobre a relaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade

A modernidade um paradigma marcante

Etimologicamente modernidade eacute um termo latino provindo do adveacuterbio ldquomodordquo que

significa recentemente ocorrido haacute pouco A palavra segundo Lima Vaz soacute aparece como

212 Este tema foi apresentado oralmente no VI Simpoacutesio do ICH ndash PUC Minas ndash ldquoParadigmas Perdidos Ciecircncias Humanas Cultura e Subjetividaderdquo em 24 de setembro de 2008 na mesa redonda ldquoBiodiversidade e modernidaderdquo Participaram tambeacutem da mesa a professora Uacutersula Ruchkys de Azevedo e o professor Alfeu Trancoso de Campos A presente comunicaccedilatildeo se baseou na estrutura de 2008 foi atualizada e agora desenvolvida como texto 213 Doutor em Ciecircncia da Religiatildeo (UFJF) professor e coordenador de Cultura Religiosa da Poacutes-graduccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo da PUC Minas E-mail pagostingmailcom

substantivo na Franccedila em meados do seacuteculo XIX214 O vocaacutebulo ldquomodernordquo poreacutem jaacute se faz

presente na idade meacutedia ndash seacuteculo XIV215 Para Habermas que se refere a estudos de Hans R

Jauss modernus eacute uma expressatildeo que surge no seacuteculo V fazendo a distinccedilatildeo entre o passado

(romano e pagatildeo) e o presente cristatildeo216 Haacute nesse conceito a ideacuteia de uma consciecircncia existe

uma nova eacutepoca diferente da antiga Mas essa consciecircncia soacute eacute possiacutevel a partir do momento

em que se quebra o esquema do tempo repetitivo do mito do eterno retorno com o

aparecimento da filosofia na Greacutecia Diz Lima Vaz que a modernidade eacute a

estruturaccedilatildeo modal na representaccedilatildeo do tempo em que este passa a ser representado como uma sucessatildeo de modos ou de atualidades constituindo segmentos temporais privilegiados pela forma de Razatildeo que neles se exerce Nesse sentido o tempo eacute vivido como propriamente histoacuterico e nele alguma coisa acontece que pode ser chamada qualitativamente moderna [] a modernidade emerge como diferenciaccedilatildeo modal do tempo histoacuterico ou como segmento privilegiado do lsquotempo do conceitorsquo217

Foi quando o homem se colocou diante de si da natureza e do mundo se perguntando o

que sou eu o que eacute a realidade que ele rompeu o esquema do mito Vendo-se diferente diante

e frente a frente com a realidade o ser humano teve a consciecircncia da delimitaccedilatildeo e a partir daiacute

abre-se o caminho da criaccedilatildeo do conceito do meacutetodo enfim da racionalidade loacutegica Aqui

surge a filosofia trazendo ao presente a possibilidade de avaliar compreender e julgar o

passado ou ainda de apontar o novo o diferente E tudo isto tem lugar na Greacutecia por volta

do seacuteculo VI a C

Modernidade portanto eacute uma categoria de interpretaccedilatildeo do tempo histoacuterico eacute uma

concepccedilatildeo que passa a existir em civilizaccedilotildees que tecircm desenvolvido essa percepccedilatildeo filosoacutefica

pois ao contraacuterio natildeo poderiam julgar o ldquoseu passado a partir do presenterdquo

Mas antes da filosofia era a religiatildeo quem dava identidade ao tempo visto como

imutaacutevel ou repetitivo Entre as religiotildees haacute exceccedilotildees Por exemplo o Judaiacutesmo e o

Cristianismo construiacuteram uma visatildeo interessante O Judaiacutesmo produziraacute antes dos gregos uma

consciecircncia teoloacutegica na qual Deus caminha com seu povo uma ideacuteia de tempo

qualitativamente diferente de outras religiotildees avaliando o passado sempre significativo ao

lembrar a presenccedila libertadora de Deus no Ecircxodo mas tambeacutem anunciando o futuro atraveacutes dos

Profetas Surge uma concepccedilatildeo transcendentalizada de Deus a ideacuteia de uma ldquohistoacuteria da

salvaccedilatildeordquo e uma racionalizaccedilatildeo eacutetica Esses trecircs traccedilos fazem com que Israel se revele

religiosamente de forma totalmente nova perante os outros povos Natildeo seraacute mais o Deus

214 Cf VAZ Henrique C de Lima Escritos de Filosofia III Filosofia e Cultura Satildeo Paulo Loyola 1997 p 225 215 Cf Idem Escritos de Filosofia VII ndash Raiacutezes da modernidade Satildeo Paulo Loyola 2002 p 12 216 Cf HABERMAS Juumlrgen Modernidade versus poacutes-modernidade Trad de Anne Marie Summer e Pedro Moraes Arte em Revista Satildeo Paulo Kairos n 7 p 86-91 1983 Cf tb esse artigo em New German Critique University of Winsconsin Milwaukee Winter n 22 1981 217 Cf VAZ Henrique C de Lima Religiatildeo e modernidade filosoacutefica Siacutentese Nova Fase Belo Horizonte v 18 n 53 p 151 1991

coacutesmico o homem prisioneiro do ldquodestinordquo ou a eacutetica ldquofundada numa ordem coacutesmica eternardquo218

que balizaratildeo a feacute e a accedilatildeo humana O Judaiacutesmo rompe a visatildeo cosmoloacutegica de seus vizinhos

egiacutepcios e mesopotacircmios abrindo-se a tendecircncias dessacralizantes ou desmitologizantes

O Cristianismo herdeiro dessa tradiccedilatildeo judaica se apropriaraacute dessas concepccedilotildees

aprofundando-as especialmente a partir da afirmaccedilatildeo da crenccedila na ldquoencarnaccedilatildeo de Deusrdquo

gerando grandes consequumlecircncias na antropologia religiosa e na teologia Haveraacute uma interaccedilatildeo

constante com diversos sistemas filosoacuteficos produzindo uma verdadeira filosofia cristatilde

Stephen Toulmin historiador e adepto de uma concepccedilatildeo histoacuterico-hermenecircutica da

ciecircncia pensa que a modernidade natildeo eacute um fenocircmeno ldquodataacutevelrdquo Que criteacuterio nortearia a

escolha do iniacutecio da modernidade Haacute tantas possibilidades de datas que natildeo se poderia defini-

la precisamente E questiona mais natildeo seria paradoxal datar o seu fim Ele diz que o que se

chama ldquoera modernardquo poderia ter um fim mas com outro sentido um momento identificado na

Histoacuteria (que se inicia em torno de 1436 ou 1648 ou 1895) e que parece estar se completando219

Sua atitude primeira eacute de questionar e duvidar daquilo que se ensinou sobre a modernidade pois

estaacute se baseia numa histoacuteria ldquounilinearrdquo ldquootimistardquo e ldquoauto-enaltecedorardquo220 Ele critica a ideacuteia

de que o desenvolvimento do pensamento de Galileu Kepler ou Newton foi expressatildeo da

superaccedilatildeo da ldquotradiccedilatildeordquo e da ldquosupersticcedilatildeordquo ou seja da ldquoheranccedila medievalrdquo pela razatildeo por uma

racionalidade metoacutedica221 Como Vaz Toulmin natildeo enxerga a modernidade como uma ruptura

com o periacuteodo precedente Sem as condiccedilotildees medievais e por sua vez sem as bases gregas da

filosofia natildeo haveria tal ldquoprogressordquo tais mudanccedilas

Pode-se encontrar em Duns Escoto (iniacutecio do seacuteculo XIV ndash 1265-1308) importante

fundamento da modernidade a substituiccedilatildeo da ldquoteoria aristoteacutelico-tomista da informaccedilatildeo

imediata do ato intelectivo (causa eficiente do conhecer)rdquo pelo ldquoser objetivo ou

representadordquo222 Passando por F Suarez e Descartes esta posiccedilatildeo daacute os passos primeiros de

nossa cultura ocidental para entrar no ciclo da ldquomodernidade modernardquo Mas longe da tese

muito conhecida e ateacute aceita de que a modernidade inaugura um periacuteodo de progresso e

desenvolvimento fruto de ideacuteias inovadoras e originais num contexto construtivo Toulmin

pensa justamente o contraacuterio mostra que o periacuteodo entre os anos 1605 e 1650 foi muito difiacutecel

para a Europa Desta forma argumenta que o avanccedilo filosoacutefico e cientiacutefico foi uma reaccedilatildeo a

essa situaccedilatildeo ldquodesconfortaacutevelrdquo agrave crise e natildeo resultado de ldquoexpressatildeo intelectualrdquo223

218 Cf BERGER Peter L O dossel sagrado Satildeo Paulo Paulinas 1985 p 132 219 Cf TOULMIN Stephen Cosmopolis The hidden agenda of modernity New York The Free Press 1990 Utilizou-se aqui a traduccedilatildeo livre e a siacutentese do livro realizada pela profordf Beatriz Helena Domingues (UFJF) Juiz de Fora Mimeo 1998 220 Ibidem 221 Ibidem 222 Cf VAZ Henrique C de Lima O Sentido e o natildeo-sentido na crise da modernidade Siacutentese Nova Fase Belo Horizonte v 21 n 64 p 6 1994 223 Cf TOULMIN 1990 Utilizou-se aqui a traduccedilatildeo livre e a siacutentese do livro realizada pela profordf Beatriz Helena Domingues (UFJF) Juiz de Fora Mimeo 1998

Stephen Toulmin afirma que as questotildees do seacuteculo XVII estreitaram a discussatildeo jaacute

existente trecircs seacuteculos antes no seacuteculo XIV A atitude moderna pode ser identificada nos

humanistas Tambeacutem esse autor revela que a crise que se abateu sobre a sociedade nos seacuteculos

XV e XVI especialmente com as guerras de religiatildeo fez surgir uma nova visatildeo ilusoacuteria para

ele de buscar enquadrar tanto a natureza quanto a sociedade em ldquocategorias racionais precisas e

controlaacuteveisrdquo224 Por isto surge a formulaccedilatildeo da duacutevida como meacutetodo da busca de alguma

certeza miacutenima o ldquopenso logo existordquo de Descartes

Eacute importante destacar portanto que a modernidade natildeo eacute uma eacutepoca geralmente

situada apoacutes o periacuteodo medieval nascente com a ilustraccedilatildeo o iluminismo a ciecircncia etc

Existem vaacuterias modernidades A primeira foi grega e essa marcou todas as demais Com a

modernidade grega surge a consciecircncia histoacuterica e mais do que isto a consciecircncia historiadora e

a proacutepria ciecircncia histoacuterica evidentemente natildeo como a conhecemos atualmente225

Mas existe ainda uma distinccedilatildeo importante a ser feita sobre o conceito e a interpretaccedilatildeo

do fenocircmeno ldquomodernidaderdquo Como fenocircmeno complexo a ldquomodernidaderdquo deve ser entendida

tambeacutem sob os olhos da sociologia Na conclusatildeo de seu livro ldquoCriacutetica agrave modernidaderdquo Alan

Touraine diz que a ldquohistoacuteria da modernidade eacute a histoacuteria da dupla afirmaccedilatildeo da razatildeo e do

Sujeitordquo226 Eacute um processo de racionalizaccedilatildeo e de surgimento de um novo ator social o sujeito

moderno Essa visatildeo aponta para uma distinccedilatildeo importante ldquoModernidaderdquo e ldquoIlustraccedilatildeordquo natildeo

satildeo realidades simeacutetricas227 O processo de racionalizaccedilatildeo da modernidade e a construccedilatildeo da

subjetividade moderna natildeo se identificam totalmente

O pensamento de Max Weber eacute fundamental para a compreensatildeo da modernidade e daacute

oportunidade para mostrar o contraste ou a assimetria que existe nessa realidade A anaacutelise de

Weber em ldquoA eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismordquo228 e ldquoEconomia e Sociedaderdquo

(especialmente o cap V Sociologia da religiatildeo)229 mostra essa dinacircmica

Segundo Rouanet para Weber a modernidade se realiza como modernizaccedilatildeo que

significa racionalizaccedilatildeo aumento de eficaacutecia de eficiecircncia (visatildeo funcional da modernidade)

Seu juiacutezo eacute extremamente pessimista Na visatildeo de Gregory Baum

a tendecircncia racionalizante da modernidade a forccedila cultural da razatildeo instrumental era tatildeo avassaladora que acabaria sobrepujando todas as tendecircncias contraacuterias [] produzindo uma sociedade inflexiacutevel opressora cientificamente programada a lsquogaiola de ferrorsquo (das eherne

224 Ibidem 225 Cf VAZ Henrique C de Lima Religiatildeo e modernidade filosoacutefica p 151 226 Cf TOURAINE Alan Criacutetica da modernidade Petroacutepolis Vozes 1999 p 394 227 Sobre o desenvolvimento dessa distinccedilatildeo cf o texto que ocupa todo o caderno ROUANET Seacutergio Paulo Iluminismo e Modernidade Extensatildeo Cadernos de Ciecircncias Sociais da PUC-MG Belo Horizonte v 2 n 1 set 1990 228 Cf WEBER Max A eacutetica do protestantismo e o espiacuterito do capitalismo Satildeo Paulo Livraria Pioneira 1967 229 Cf Idem Economia e socidade v 1 Satildeo Paulo UNB 2004 (Cap V Sociologia da religiatildeo) Cf tb COHN Gabriel (Org) Weber Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Gehaumluse) acompanhada pelo decliacutenio cultural e a morte de todos os sonhos verdadeiramente humanos [] era o fim da utopia230

A distinccedilatildeo de Rouanet entre modernidade funcional e modernidade iluminista revela

que para esta aleacutem da eficaacutecia deve haver tambeacutem um aumento de autonomia Haacute entatildeo

viacutenculo histoacuterico (relaccedilatildeo causal) entre ilustraccedilatildeo e modernidade mas ele eacute parcial pois a

modernidade ilustrada natildeo conseguiu fazer prevalecer historicamente o seu sentido

Na histoacuteria cultural do ocidente a modernidade ilustrada preconizava a universalidade

a individualidade e a autonomia a cruzada pela emancipaccedilatildeo do ser humano Nesse projeto

civilizatoacuterio da modernidade iluminista encontram-se entatildeo a universalidade que visa todos os

seres humanos independentemente de qualquer barreira (nacional eacutetnica ou cultural) a

individualidade ou seja os seres humanos satildeo considerados como pessoas concretas e natildeo

como integrantes de uma coletividade valorizando-se eticamente sua crescente

individualizaccedilatildeo e a autonomia compreendendo que os indiviacuteduos satildeo aptos a pensarem por si

mesmos sem a tutela da religiatildeo ou da ideologia podem agir publicamente e garantirem sua

sobrevivecircncia pelo trabalho bem como os bens necessaacuterios para o seu bem-estar

De outro lado a modernidade na perspectiva funcional era concebida como um

processo global de racionalizaccedilatildeo ldquoinjetar a razatildeo instrumental nos processos decisoacuterios do

Estado e da Empresardquo231 em trecircs esferas econocircmica poliacutetica e cultural Essa distinccedilatildeo sobre

o conceito modernidade eacute muito significativo e a leitura de Seacutergio Paulo Rouanet muito

elucidativa232

Pode-se ainda destacar sob o ponto de vista filosoacutefico que a modernidade representou

uma verdadeira mudanccedila de paradigma233 Ela prevaleceu ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX reagindo

ao essencialismo e dogmatismo claacutessico e medieval Introduziu a subjetividade e o cogito

produzindo uma racionalidade que se tornou cada vez mais dualista ldquoa divisatildeo do mundo entre

material e espiritual a separaccedilatildeo entre a natureza e a cultura entre ser humano e mundo razatildeo e

emoccedilatildeo feminino e masculino Deus e mundo e a atomizaccedilatildeo dos saberes cientiacuteficosrdquo234

A modernidade em seu processo de objetivaccedilatildeo produziu um novo tipo de

racionalidade a razatildeo instrumental-analiacutetica Hoje percebe-se que essa razatildeo natildeo eacute mais

suficiente para compreender a complexidade dos fenocircmenos e natildeo pode manter sua pretensatildeo de

legitimar os criteacuterios de verdade ldquoA razatildeo instrumental natildeo eacute a uacutenica forma de uso de nossa

230 Cf BAUM Gregory A modernidade perspectiva socioloacutegica Concilium Petroacutepolis v 244 n 6 p 8 1996 231 Cf ROUANET Seacutergio Paulo Mal-estar na modernidade Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 122 232 Cf ROUANET 1990 233 Sobre o conceito de paradigma e de mudanccedila de paradigma a partir da obra de Thomas Kuhn cf BAPTISTA Paulo Agostinho N Teologia e ecologia A mudanccedila de paradigma de Leonardo Boff In GUIMARAtildeES Juarez (Org) Leituras criacuteticas sobre Leonardo Boff Satildeo Paulo Perseu Abramo 2008 p 101-41 234 Cf BOFF Leonardo Dignitas Terrae Ecologia Grito da Terra grito dos pobres Satildeo Paulo Aacutetica 1995 p 29

capacidade de intelecccedilatildeo Existe tambeacutem a razatildeo simboacutelica e cordial e o uso de todos os nossos

sentidos corporais e espirituaisrdquo235 Nessa perspectiva o pensamento de Edgar Morin a partir

do iniacutecio da deacutecada de 70 ofereceraacute novo horizonte de compreensatildeo da epistemologia e do

proacuteprio pensamento conhecido como pensamento complexo236

A forma analiacutetica e instrumental de pensar e de agir das ciecircncias modernas comeccedila a

entrar em crise ldquopassam para o primeiro plano as relaccedilotildees que constituem a interdependecircncia

de todos os elementos do universo []rdquo237 O filoacutesofo Manfredo Oliveira afirma que o modelo

mecacircnico da maacutequina cede lugar para o ldquomundo atocircmico e subatocircmico [] que [] se

disssolvem em ondas de probalidades e que portanto soacute podem ser entendidas como

interconexotildees dinacircmicas e entre processosrdquo238

Ainda segundo este autor pode-se apresentar em trecircs toacutepicos as principais mudanccedilas

ocorridas no paradigma das ciecircncias atuais da visatildeo estaacutetico-determinista para a processual-

contingencial da realidade de uma concepccedilatildeo isolacionista para uma visatildeo integracional de

todos os seres e de uma consideraccedilatildeo materialista para uma concepccedilatildeo idealista-objetiva do

universo239 Tais mudanccedilas colocam em crise o paradigma moderno e enseja o surgimento de

um novo paradigma

A biodiversidade e o surgimento de um novo paradigma o paradigma ecoloacutegico

O conceito biodiversidade ou diversidade bioloacutegica natildeo eacute antigo Surge no final da

deacutecada de 1980 cunhado por Thomas Lovejoy bioacutelogo norte-americano Aparece numa

publicaccedilatildeo de 1988 nos EUA em livro que foi organizado pelo entomologista or Edward O

Wilson Biodiversity240

235 Cf Ibidem p 31 236 Edgar Morin socioacutelogo francecircs teve suas ideacuteias rejeitadas na deacutecada de 70 sendo hoje considerado um dos trecircs maiores pensadores vivos Suas publicaccedilotildees especialmente a partir do livro ldquoO paradigma perdidordquo (Cf MORIN Edgar O paradigma perdido a natureza humana 4 ed Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1973) e ldquoO meacutetodordquo (Cf Idem O meacutetodo I ndash A natureza da natureza 2 ed Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1977) se concentram na ideacuteia do ldquoPensamento complexordquo criando as bases para o despertar do ldquoparadigma ecoloacutegicordquo ou do ldquopensamento eco-sistecircmicordquo Para o aprofundamento nesses temas cf tb PENA-VEJA Alfredo O despertar ecoloacutegico Edgar Morin e a ecologia complexa Rio de Janeiro Garamond 2003 PENA-VEJA Alfredo NASCIMENTO Elimar Pinheiro do O pensar complexo Edgar Morin e a crise da modernidade 2 ed Rio de Janeiro Garamond 1999 Cf ainda MORAES Maria Cacircndida Pensamento eco-sistecircmico Petroacutepolis Vozes 2004 237 Cf OLIVEIRA Manfredo A Ampliaccedilatildeo do sentido de libertaccedilatildeo Perspectiva Teoloacutegica Belo Horizonte v 30 p 281 1998 238 Cf OLIVEIRA 1998 p 280 Uma melhor e mais completa abordagem desta visatildeo neste autor eacute encontrada em ANJOS Maacutercio Fabri dos (Org) Teologia aberta para o futuro Satildeo Paulo Loyola 1997 p21-39 no artigo ldquoA mudanccedila de paradigma nas ciecircncias contemporacircneasrdquo 239 Ibidem p21-39 Vale a pena citar sua conclusatildeo ldquopode-se interpretar o processo evolutivo que constitui o universo enquanto tal a partir da visatildeo das ciecircncias contemporacircneas como as diferentes etapas do processo de desdobramento do espiacuterito que vem a si toma consciecircncia de si em suas diferentes figuras ateacute chegar agrave consciecircncia plena de todo o processo cosmogecircnico no espiacuterito humanordquo (p 39) 240 Cf WILSON Edward O (Ed) Biodiversity Washington National Academy Press 1988

Durante a Eco-92 no Rio de Janeiro ndash ldquoConferecircncia das Naccedilotildees Unidas para o Meio

ambiente e o Desenvolvimentordquo (de 03 a 14 de junho de 1992) acontece um importante passo

para a proteccedilatildeo da biodiversidade foi assinada a ldquoConvenccedilatildeo sobre a Diversidade Bioloacutegicardquo

por mais de 150 paiacuteses O Brasil aleacutem de signataacuterio ratificou esse documento em 1994 e pelo

decreto 2519 (16 de marccedilo de 1998) promulgou a Convenccedilatildeo da Biodiversidade

Os antecedentes histoacutericos que revelam o surgimento de uma preocupaccedilatildeo ambiental

datam da deacutecada de 1960 Em 1968 realiza-se a Conferecircncia sobre a Biosfera em Paris

organizada pela UNESCO Foi uma discussatildeo acadecircmica sobre o uso racional dos recursos

naturais Neste mesmo ano eacute formado o Clube de Roma um grupo de cientistas poliacuteticos e

representantes da induacutestria preocupados em pensar o desenvolvimento o problema ambiental e

os limites do crescimento O relatoacuterio deste grupo em 1972 visou analisar a relaccedilatildeo entre

paiacuteses os problemas decorrentes da complexidade das relaccedilotildees e da interdependecircncia entre

elas especialmente em relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo da natureza Sua conclusatildeo foi

Caso as presentes tendecircncias de crescimento da populaccedilatildeo mundial industrializaccedilatildeo poluiccedilatildeo produccedilatildeo de comida e uso de recursos naturais natildeo se alterarem os limites para o crescimento no planeta seratildeo atingidos em algum ponto nos proacuteximos 100 anos O resultado mais provaacutevel seraacute um raacutepido e descontrolado decliacutenio tanto em termos de populaccedilatildeo como capacidade industrial241

A reaccedilatildeo foi imediata e no mesmo ano a ONU promoveu uma conferecircncia conhecida

como ldquoConferecircncia de Estocolmordquo que discordando sobre a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo do ritmo

de crescimento propunha ldquoproduzir melhorrdquo com menos lixo Comeccedila aiacute a construccedilatildeo de uma

ideacuteia problemaacutetica e contraditoacuteria que se torna ldquomadurardquo por ocasiatildeo da Eco-Rio 92

ldquodesenvolvimento sustentaacutevelrdquo

Aleacutem da Convenccedilatildeo sobre Diversidade Bioloacutegica a Eco-Rio produziu outros

importantes documentos ldquoDesertificaccedilatildeordquo ldquoDeclaraccedilatildeo-Quadro sobre Mudanccedilas climaacuteticasrdquo

ldquoDeclaraccedilatildeo do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimentordquo ldquoAgenda 21rdquo ldquoDeclaraccedilatildeo de

Princiacutepios sobre as Florestasrdquo e o iniacutecio da proposta de elaboraccedilatildeo de uma ldquoCarta da Terrardquo

O conceito biodiversidade segundo a Convenccedilatildeo significa ldquoa variabilidade de

organismos vivos de todas as origens compreendendo dentre outros os ecossistemas terrestres

marinhos e outros ecossistemas aquaacuteticos e os complexos ecoloacutegicos de que fazem parte

compreendendo ainda a diversidade dentro de espeacutecies entre espeacutecies e de ecossistemasrdquo242

Essa conceituaccedilatildeo mostra que haacute diversos niacuteveis e ambientes onde a vida se manifesta

A diversidade de espeacutecies eacute certamente a aacuterea de maior pesquisa Pode-se mencionar ainda

outras diversidades a geneacutetica e a dos ecossistemas Revela ainda que a vida eacute relaccedilatildeo Tudo

interage com tudo 241 Cf MEADOWS Dennis L et al The Limits to Growth New York Universe Books 1972 242 MINISTEacuteRIO DO MEIO AMBIENTE Convenccedilatildeo sobre Diversidade Bioloacutegica Brasiacutelia Ministeacuterio do Meio Ambiente 2000

Apesar de ser um conceito relativamente novo (20 anos) a ideacuteia de diversidade natildeo eacute

nova Desde a Greacutecia os filoacutesofos jaacute faziam listas sobre variedade de espeacutecies e formas de

vida como Aristoacuteteles que deu iniacutecio agrave taxonomia em biologia Antes os preacute-socraacuteticos

Empeacutedocles e Anaxaacutegoras defendiam uma posiccedilatildeo pluralista sobre a origem sobre os

princiacutepios que originaram o universo A proacutepria concepccedilatildeo cristatilde de Deus busca articular

unidade e pluralidade na ideacuteia de Trindade Pai Filho e Espiacuterito Santo Encontramos algo

parecido no Hinduiacutesmo com Brahma Vishnu e Shiva (os princiacutepios criador mantenedor e

transformador) e ateacute no radical monoteiacutesmo islacircmico os 99 nomes de Deus acrescidos de

mais um nome misterioso soacute conhecido dos miacuteticos

Mas foi soacute nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX que surge a consciecircncia de que a riqueza

da diversidade bioloacutegica estaacute ameaccedilada Satildeo trecircs espeacutecies por hora que somem Alguns

caacutelculos apontam para 18 mil espeacutecies que desaparecem anualmente243 Todas as reuniotildees e

protocolos que pretendem garantir a defesa da vida ainda natildeo produziram mudanccedilas efetivas

A degradaccedilatildeo da vida natural e da vida humana destruindo espeacutecies e desequilibrando

o tecircnue dinamismo vital ou reduzindo 23 da populaccedilatildeo mundial agrave condiccedilatildeo de pobreza ao

mesmo tempo em que concentra o bem-estar e qualidade de vida (225 pessoas no mundo tecircm

renda equivalente a 25 bilhotildees de pessoas)244 chegou a um limite insuportaacutevel Natildeo se pode

mais aceitar que apenas um paiacutes (EUA) que possui 75 da populaccedilatildeo mundial tenha um

consumo equivalente a ldquo13 dos recursos natildeo renovaacuteveis e 37 da energia produzida no mundo

anualmenterdquo245 E o tempo se faz curto para muitos pesquisadores jaacute se ultrapassou o momento

de parar esse desastre a contabilidade da luta pela vida estaacute devedora eacute negativa

Como fruto da percepccedilatildeo e da pesquisa cientiacutefica num longo processo especialmente

no seacuteculo XX percebeu-se que tudo interage com tudo todo o tempo Os estudos de Ilya

Prigogine246 sobre a irreversibilidade mostram que a evoluccedilatildeo caminha numa perspectiva de

complexificaccedilatildeo ldquoa seta do tempo e a linha da evoluccedilatildeo vatildeo no sentido de criar cada vez mais

complexidades auto-organizadas diversidades e inter-retro-relacionamentosrdquo247 Para isso

tambeacutem a fiacutesica deu enorme contribuiccedilatildeo ao descobrir as iacutenfimas partiacuteculas e a proacutepria

243 Cf REUTERS Mundo perde 3 espeacutecies por hora diz ONU no Dia da Diversidade O Globo 22 mai 2007 Disponiacutevel em httpogloboglobocomcienciamat20070522295857809asp Acesso em 21 set 2008 244 Cf COSTA Jurandir Freire Estrateacutegia de Avestruz Folha de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 23 mar1999 Cad Mais 245 Cf LAGO Antonio PAacuteDUA Joseacute Augusto O que eacute ecologia Satildeo Paulo Brasiliense 1984 p 59 246 Ilya Prigogine foi quiacutemico da Universidade de Bruxelas e da Universidade de Austin (Texas) Ganhou o precircmio Nobel de quiacutemica em 1977 e se dedicou a investigar a questatildeo do tempo Faleceu em 2003 De sua publicaccedilatildeo pode-se indicar PRIGOGINE I A nova alianccedila Metamorfose da ciecircncia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1990 Idem O fim da certeza tempo caos e as leis da natureza Satildeo Paulo UNESP 1996 Cf tb PRIGOGINE I STENGERS I Entre o tempo e a eternidade Lisboa Gradiva 1990 247 Cf BOFF Leonardo Nova era a civilizaccedilatildeo planetaacuteria desafios agrave sociedade e ao cristianismo 3 ed Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p 45 Esse livro foi reeditado com o tiacutetulo Idem Civilizaccedilatildeo Planetaacuteria desafios agrave sociedade e ao cristianismo Rio de Janeiro Sextante 2003

impossibilidade de separar como antes mateacuteria e energia De uma concepccedilatildeo dualista passa-se

para uma visatildeo efetivamente dialeacutetica (mais que dialeacutetica ela eacute circular complexa) e

interativa tudo carrega informaccedilatildeo tudo tem histoacuteria dos aacutetomos das estrelas agraves amebas

Leonardo Boff situa tal mudanccedila simbolicamente na esteira do desenvolvimento da

ldquoconquista do espaccedilordquo especialmente quando a ldquoterra comeccedilou a ser vista de fora da Terrardquo248

Em sua unidade e pequenez a Terra aparece como um ser vivo carregando uma pluralidade de

formas de vida ldquosurge destarte como um imenso superorganismo vivo chamado por Lovelock

de Gaia consoante a claacutessica denominaccedilatildeo da Terra de nossos ancestrais culturais gregosrdquo249

Da distacircncia de uma nave espacial a Terra emerge em toda a sua beleza e sua fragilidade250

revelando a existecircncia de uma interdependecircncia fundamental Mas tal concepccedilatildeo da Terra como

organismo vivo natildeo se fundamenta apenas nessa percepccedilatildeo esteacutetica

James Lovelock justifica sua posiccedilatildeo sobre essa nova forma de perceber a Terra

dizendo ldquoDefinimos a Terra como Gaia porque se apresenta com uma entidade complexa que

abrange a biosfera a atmosfera os oceanos e o solo na sua totalidade esses elementos

constituem um sistema ciberneacutetico ou de realimentaccedilatildeo que procura um meio fiacutesico e quiacutemico

oacutetimo para a vida neste planetardquo251

Essa visatildeo nasce tambeacutem da interaccedilatildeo de estudos da fiacutesica e da biologia que revelam a

natildeo-linearidade (tudo eacute rede de relaccedilotildees que natildeo se limitam a causa-efeito) a dinacircmica ciacuteclica

(adaptaccedilatildeo e equiliacutebrio eacute um processo constante em movimento num processo de crescimento

ciacuteclico incluindo a morte que gera vida) sistema estruturado (os sistemas se subdividem e

248 Cf BOFF Leonardo Nova era p 41 Idem Dignitas terrae p 32 249 Cf Idem Dignitas terrae p 36 Na mitologia grega haacute uma versatildeo que diz que Eacuterebo (as Trevas Infernais) liberta a noite e esta se transforma numa grande esfera Dividida como um ovo quebrado daacute origem a Eros (o Amor) As cascas do ovo tornam-se uma aboacutebada (ceacuteu) e um disco achatado a terra (Gaia) Esta ideacuteia de Gaia (ou Geacuteia) como organismo vivo estaacute presente em vaacuterios mitos de culturas primitivas Thomas Berry (cf BERRY Thomas O sonho da terra Petroacutepolis Vozes 1991) aponta diversas expressotildees culturais que denotam essa ideacuteia jen e chrsquoeng (amor e integridade na China) bhakti (amor de devoccedilatildeo na Iacutendia) karuna (compaixatildeo no Budismo) expressotildees que tecircm uma significaccedilatildeo coacutesmica (p 35) Mas os primeiros cientistas a formularem a postulaccedilatildeo da Terra como Gaia um superorganismo vivo foram James Lovelock (meacutedico e bioacutelogo inglecircs) e Lynn Margulis (microbioacuteloga americana) De sua pesquisa sobre vida em outros planetas pela Nasa Loverlock conclui que haacute ldquoum imenso equiliacutebrio do sistema-terra e a sua espantosa dosagem de todos os elementos benfazejos para vida []rdquo Cf BOFF Leonardo Princiacutepio-Terra A volta agrave Terra como Paacutetria comum Satildeo Paulo Aacutetica 1995 p 43 Gaia tem um significado que transcende ao termo biosfera (criado em 1875 por Edward Seuss) Sobre Gaia haacute grande literatura (cf BERRY 1991 p 34-8 cf tb LOVELOCK James Gaia Um novo olhar sobre a vida na terra Lisboa Ediccedilotildees 70 1989 Idem As eras de Gaia A biografia da nossa Terra viva Satildeo Paulo Campus 1991 Idem A vinganccedila de gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 MARGULIS L Quatro bilhotildees de anos de evoluccedilatildeo microbiana Lisboa Ed 70 1990 LUTZENBERGER J Gaia o planeta vivo Porto Alegre L ampPM 1990) 250 Cf o excelente capiacutetulo de Sagan ldquoVocecirc estaacute aquirdquo SAGAN Carl Paacutelido ponto azul Uma visatildeo do futuro da humanidade no espaccedilo Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 25-31 Confira tambeacutem trecircs outros trabalhos que oferecem uma visatildeo muito importante da histoacuteria do Universo e da Terra HAWKING Stephen MLODINOW Leonard Uma nova histoacuteria do tempo Rio de Janeiro Ediouro 2005 BRAHIC Adnreacute et al A mais bela histoacuteria da Terra Rio de Janeiro DIFEL 2002 REEVES Hubert et al A mais bela histoacuteria do mundo Petroacutepolis Vozes 1998 251 Cf LOVELOCK James Gaia p 27

guardam interaccedilatildeo entre si cada um fazendo parte de um organismo maior) autonomia e

integraccedilatildeo (haacute autonomia e integraccedilatildeo entre os sistemas) auto-organizaccedilatildeo e criatividade (cada

sistema complexo pode estruturar-se criativamente num contiacutenuo processo evolutivo)252 Tudo

isto revela a vida que corre nesse superorganismo que eacute a Terra

O conceito de ecologia formulado por Ernst Haeckel (1834-1919) em 1866 vai se

ampliando Segundo Leonardo Boff significa ldquoo estudo da interdependecircncia e da interaccedilatildeo

entre os organismos vivos (animais e plantas) e o seu meio ambiente (seres inorgacircnicos)rdquo253 ou

numa formulaccedilatildeo mais recente (1999) ldquoo estudo do inter-retro-relacionamento de todos os

sistemas vivos e natildeo-vivos entre si e com seu meio ambiente entendido como uma casa donde

deriva a palavra ecologia (oikos em grego = casa a mesma raiz etimoloacutegica de

ecumenismo)rdquo254

Ainda segundo Boff esse conceito vai superando seu nicho ldquoregionalrdquo e se torna

universal um novo paradigma que deteacutem a grande forccedila ldquomobilizadora do futuro milecircniordquo255

Leonardo fala entatildeo de diversas dimensotildees da ecologia eco-tecnologia eco-poliacutetica ecologia

ambiental ecologia social ecologia mental eacutetica ecoloacutegica e ecologia integral Como se vecirc ela

atinge todos os setores apontando criteacuterios e valores apresentando um novo olhar sobre tudo

Por isso se diz que eacute um novo paradigma Mas como ele ainda estaacute nascendo haacute longa

caminhada a percorrer Ainda natildeo virou certeza pois quando isso acontece transforma-se ldquona

atmosfera das evidecircncias existenciais () em convicccedilatildeo geral no elemento evidente e

inquestionaacutevel de uma sociedaderdquo256

A consciecircncia desse novo paradigma nascente coincide quase totalmente com a

descoberta de que o proacuteprio universo estaacute em gecircnese em criaccedilatildeo ldquose encontra em

cosmogecircneserdquo257 Se o universo vive esse processo tambeacutem os seres humanos o vivem

(antropogecircnese) Assim natildeo se pode falar em ldquonatureza humanardquo como um dado determinado

por mais que conheccedilamos o dinamismo geneacutetico A natureza humana estaacute em processo de

construccedilatildeo E tanto natureza humana quanto o cosmos vivem numa dinacircmica explicada atraveacutes

de trecircs concepccedilotildees ldquoa complexidadediferenciaccedilatildeo a auto-organizaccedilatildeoconsciecircncia a re-

ligaccedilatildeorelaccedilatildeo de tudo com tudordquo258

Mas o processo eacute contiacutenuo diferenciando-se e complexificando-se ao mesmo tempo

em que cresce a auto-organizaccedilatildeo e o crescimento da consciecircncia e de sua interioridade

chegando agrave capacidade reflexiva humana Dessa complexidade e consciecircncia avanccedila a 252 Cf BOFF Leonardo Ecologia mundializaccedilatildeo espiritualidade A emergecircncia de um novo paradigma Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 43-4 253 Ibidem p 17 254 Cf Leonardo BOFF Eacutetica da vida Brasiacutelia Letraviva 1999 p 25 255 Ibidem p 25 256 Cf Ibidem p 104 Leonardo continua ldquoAquilo que natildeo precisa ser explicado e que explica todas as demais coisasrdquo E ele proacuteprio diz que isto soacute surge do ldquobojo de uma grande criserdquo 257 Ibidem p 32 258 Ibidem

relacionalidade a re-ligaccedilatildeo de tudo e todos259 Tudo isto natildeo se fez e natildeo estaacute acontecendo sem

grande crise nos modelos estabelecidos Eacute do confronto com o paradigma moderno com sua

razatildeo instrumental-analiacutetica e da ameaccedila que este gera de colapso da proacutepria vida da

sobrevivecircncia humana de seu futuro que vai se forjando novo horizonte de compreensatildeo e daiacute

novo agir e tambeacutem nova Eacutetica

Biodiversidade e modernidade o desafio da defesa da diversidade da vida

Pensar a articulaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade hoje eacute um grande desafio

A racionalizaccedilatildeo moderna aplicada agrave economia e agrave poliacutetica tem produzido contradiccedilotildees que

colocam em risco o equiliacutebrio do sistema Terra Recentemente Lovelock apresenta um quadro

dramaacutetico da questatildeo ecoloacutegica

Gaia me tornou um meacutedico planetaacuterio e eu levo minha profissatildeo a seacuterio Agora tambeacutem devo trazer as maacutes notiacutecias Os centros de climatologia espalhados pelo mundo que satildeo os equivalentes aos laboratoacuterios de patologia dos hospitais tecircm relatado as condiccedilotildees fiacutesicas da Terra e os climatologistas acham que ela estaacute gravemente doente prestes a passar a um estado de febre moacuterbida que pode durar ateacute 100 mil anos [] A civilizaccedilatildeo usa energia intensamente e natildeo podemos desligaacute-la de forma abrupta eacute preciso ter a seguranccedila de um pouso motorizado [] Noacutes faremos o possiacutevel para sobreviver mas infelizmente eu natildeo consigo ver os EUA ou as economias emergentes da China e da Iacutendia voltando no tempo - e eles satildeo as maiores fontes de emissotildees [CO2] O pior vai acontecer e os sobreviventes teratildeo de se adaptar a um clima infernal Talvez o mais triste seja que Gaia [a Terra eacute um sistema vivo] perderaacute tanto quanto ou mais do que noacutes Natildeo soacute a vida selvagem e ecossistemas inteiros seratildeo extintos mas na civilizaccedilatildeo humana o planeta tem um recurso precioso Natildeo somos meramente uma doenccedila somos por meio da nossa inteligecircncia e comunicaccedilatildeo o sistema nervoso do planeta Atraveacutes de noacutes Gaia se viu do espaccedilo e comeccedila a descobrir seu lugar no Universo Noacutes deveriacuteamos ser o coraccedilatildeo e a mente da Terra natildeo sua moleacutestia Entatildeo sejamos corajosos e paremos de pensar somente nos direitos e necessidades da humanidade e enxerguemos que noacutes ferimos a Terra e precisamos fazer as pazes com Gaia Precisamos fazer isso enquanto somos fortes o bastante para negociar e natildeo uma turba esfacelada liderada por senhores da guerra brutais Acima de tudo precisamos lembrar que somos parte dela e que ela eacute de fato nosso lar260

O grande gargalho de todo o problema que coloca em risco a biodiversidade eacute a ideacuteia

equivocada e falaciosa de desenvolvimento sustentaacutevel O grande capital natildeo tem interesse em

frear o ritmo de crescimento e seu representante maior ndash os EUA ndash expressam seu cinismo de

modo claro Em 1992 George W H Bush reagia ao Clube de Roma dizendo ldquoVinte anos atraacutes

o Clube de Roma falava de lsquolimites para o crescimentorsquo Mas hoje sabemos que o crescimento eacute

a motriz da mudanccedila O crescimento eacute o amigo do meioambienterdquo261

259 Retomam-se aqui questotildees que satildeo o centro do pensamento de Edgar Morin jaacute citado anteriormente 260 Cf LOVELOCK James A vinganccedila de Gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 p 9 Na obra que tem o mesmo tiacutetulo do artigo Lovelock faz um diagnoacutestico sobre o ldquoestado da Terrardquo previsotildees para o seacuteculo XXI aleacutem de discutir questotildees como energia alimentos mateacuterias-primas tecnologia etc Cf tb LOVELOCK A vinganccedila de Gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 261 Cf FIESP Globalizando a democracia e democratizando a globalizaccedilatildeo Capiacutetulo Brasileiro do Clube de Roma 29 ago 2005 Disponiacutevel em lthttpwwwfiespcombrdownloadacao_politicaclube_romapdfgt Acesso em 04 abril 2007 Cf tb IBPS Meio Ambiente - Histoacuteria desafios e possibilidades Disponiacutevel em

As economias emergentes como China e Iacutendia para ficar nos paiacuteses com maiores

contingentes populacionais estatildeo crescendo vertiginosamente a China com taxas de 10 ao

ano A meacutedia dos emergentes eacute de 71 O problema do petroacuteleo trouxe para a agenda mundial

a utilizaccedilatildeo de biocombustiacuteveis As implicaccedilotildees ambientais de uma economia baseada no

petroacuteleo e agora com os combustiacuteveis renovaacuteveis de forma simplificadora satildeo catastroacuteficas

aquecimento global e suas consequumlecircncias sobre as espeacutecies e o equiliacutebrio climaacutetico e o

desmatamento no terceiro mundo de aacutereas de florestas com problemas sociais na questatildeo da

terra e na produccedilatildeo de alimentos

A questatildeo que deveria presidir os debates sobre o Ambiente natildeo diz respeito ao

desenvolvimento mas agrave sociedade agrave sociedade sustentaacutevel Eacute uma questatildeo de natureza poliacutetica

e que tem como principais responsaacuteveis os agentes econocircmicos as empresas

Quando examinamos e reconstituiacutemos o surgimento da lsquoquestatildeo ambientalrsquo verificamos que ela estaacute atrelada ao interesse das grandes e poderosas instituiccedilotildees internacionais intimamente relacionada e dependente das grandes potecircncias e do grande captital Por isso a imensidatildeo de recursos existentes para essa questatildeo maiores do que aqueles necessaacuterios ao desenvolvimento das pesquisas para o enfrentamento do conhecimento jmprescindiacutevel agrave extinccedilatildeo das epidemias doenccedilas da fome etc [] O periacuteodo teacutecnico cientiacutefico e informacional produto da acumulaccedilatildeo de conhecimento teacutecnico e cientiacutefico trouxe para a humanidade a possibilidade de superar a maioria dos obstaacuteculos ateacute entatildeo oferecidos pela natureza Terremotos tornados vendavais tsunamis surprendiam a todos Temia-se a natureza Hoje ele surpreendem apenas as pessoas e naccedilotildees pobres aqueles que natildeo dispotildeem de informaccedilatildeo e conhecimento teacutecnico Esse eacute aliaacutes o sentido da teacutecnica criadora permanente de exclusatildeo pois a informaccedilatildeo eacute o motor da poliacutetica262

Esta visatildeo de Maria Adeacutelia Souza mostra que discutir a questatildeo ambiental eacute discutir a

vida humana as condiccedilotildees fundamentais de sobrevivecircncia humana Que sociedade eacute

sustentaacutevel para os recursos de que dispomos Que modo de vida deveremos e poderemos ter

para garantir a sustentabilidade da vida social e ambiental

lthttpwwwibpscombrindexaspidnoticia=1996 Acesso em 04 abril 2007 Em Boff cf Leonardo BOFF Dignitas terrae p 16 262 Cf SOUZA Maria Adeacutelia A de A geopoliacutetica do desenvolvimento sustentaacutevel panorama mundial O planeta e as metaacuteforas In SOTER (Org) Sustentabilidade da Vida e Espiritualidade Satildeo Paulo Paulinas 2008 p 30-1

Em diversos de seus livros e artigos263 Leonardo Boff tem procurado apontar para

uma saiacuteda Propotildee uma outra loacutegica inspirada em Francisco de Assis em lugar da atitude de

estar-sobre-as-coisas o estar-com-as-coisas Para isso o cuidado eacute a categoria fundamental de

mudanccedila ldquoO cuidado serve de criacutetica agrave nossa civilizaccedilatildeo agonizante e tambeacutem de princiacutepio

inspirador de um novo paradigma de convivialidaderdquo264 Seraacute necessaacuterio conviver com a

limitaccedilatildeo natildeo poderemos continuar consumindo no ritmo atual Deveremos optar por uma

ldquoauto-limitaccedilatildeordquo antes que a natureza o faccedila forccediladamente um consumo solidaacuterio ldquoque supera o

individualismo e se auto-limita por causa do amor e da compaixatildeo para com aqueles que natildeo

podem consumir o necessaacuteriordquo265

Conclusatildeo

O crescimento da populaccedilatildeo mundial eacute dado previsiacutevel e de seacuterias consequumlecircncias

especialmente se ele for acompanhado do mesmo processo de crescimento irresponsaacutevel do

consumo Se os estudos do IPCC sobre as mudanccedilas climaacuteticas se confirmarem ndash jaacute existem

constataccedilotildees de antecipaccedilotildees266 ndash os problemas econocircmicos sociais demograacuteficos agravados

pela questatildeo ambiental criaratildeo uma situaccedilatildeo insustentaacutevel

Os dados sobre o desaparecimento das espeacutecies eacute assustador Se natildeo houver uma

mudanccedila de visatildeo e de consciecircncia traduzidas em atitudes poliacuteticas e praacuteticas o futuro e a

qualidade de vida das proacuteximas geraccedilotildees estaratildeo comprometidos Sustentabilidade e cuidado

segundo Leonardo Boff satildeo os princiacutepios que devem nortear esse compromisso Para ele deve-

se alimentar a esperanccedila de nova relaccedilatildeo entre os seres ndash humanos e bioacuteticos Essa crise eacute

chance de crescimento e superaccedilatildeo de demonstraccedilatildeo de resiliecircncia de construccedilatildeo de relaccedilotildees

sociais respeitosas e includentes Devemos nos abrir a uma razatildeo cordial e compassiva que

religue e natildeo separe pois haacute uma interdependecircncia fundamental entre todos os seres em sua

biodiversidade As mudanccedilas criativas devem comeccedilar pelos pequenos os mais excluiacutedos e os

que mais sofrem os pobres Haacute uma pluralidade de soluccedilotildees e todos os sujeitos sociais ndash

especialmente as mulheres ndash devem participar garantindo-se a orientaccedilatildeo de princiacutepios eacuteticos

263 Cf os artigos de Leonardo Boff Auto-limitaccedilatildeo virtude ecoloacutegica (2003) Impasses do crescimento com inclusatildeo (2004) Devastaccedilatildeo amazocircnica (2005) Sociedade de sustentaccedilatildeo da vida (2006) Biodiversidade e futuro da vida (2006) Biodiversidade e novo paradigma (2006) Desenvolvimento ou sociedade sustentaacutevel (2006) Consumo solidaacuterio e responsaacutevel (2008) Esses textos podem ser encontrados no siacutetio ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo Disponiacutevel em httpalainetorgactiveshow_authorphtmlautor_apellido=Boffampautor_nombre=Leonardo 264 Cf BOFF Leonardo Saber cuidar Eacutetica do humano ndash compaixatildeo pela terra Petroacutepolis Vozes 1999 p 13 265 Cf Idem Consumo solidaacuterio e responsaacutevel ALAI 25 abril de 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive23730amplang=es Acesso em 21 set 2008 266 Cf BLOG DO PLANETA Ateacute os cientistas estatildeo assustados Revista Eacutepoca Satildeo Paulo 16 nov 2007 Disponiacutevel em httpblogdoplanetacomcolunaepoca20071116ate-os-cientistas-estao-assustados Acesso em 21 set 2008 Diversos fenocircmenos recentes satildeo indicados como expressatildeo da mudanccedila climaacutetica como o furaccedilatildeo que devastou Nova Orleans nos EUA em 2005

A espiritualidade os valores da gratuidade solidariedade e cooperaccedilatildeo satildeo fundamentais para

auto-limitaccedilatildeo e o envolvimento efetivos de todos na soluccedilatildeo dos graves desafios que temos267

Em niacutevel acadecircmico e dos movimentos sociais avanccedila-se na pesquisa e na mobilizaccedilatildeo

de ideacuteias e accedilotildees para enfrentar o grave desafio que se tem pela frente Um exemplo acadecircmico

foi a realizaccedilatildeo do Simpoacutesio Internacional de Ciecircncias da Religiatildeo na PUC Minas ldquoConsciecircncia

Planetaacuteria e Religiatildeordquo em 2009268

Uma reflexatildeo sobre as pistas praacuteticas para cuidar da terra de Leonardo Boff eacute uma

boa conclusatildeo sobre nosso tema Ele nos orienta

Procure em tudo o caminho do diaacutelogo e da flexibilidade porque eacute ele que garante o ganha-ganha e eacute uma forma de diminuir os conflitos e ateacute poder resolvecirc-los Valorize tudo o que vem da experiecircncia dando especial atenccedilatildeo aos que natildeo satildeo ouvidos pela sociedade Tenha sempre em mente que o ser humano eacute um ser contraditoacuterio sapiente e ao mesmo tempo demente por isso seja critico e simultaneamente compreensivo Tome a seacuterio o fato de que as virtualidades cerebrais e espirituais do ser humano constituem um campo quase inexplorado Por isso sempre esteja aberto agrave irrupccedilatildeo do improvaacutevel do inconcebiacutevel e do surgimento de emergecircncias Por mais problemas que surjam a democracia sem fim eacute sempre a melhor forma de convivecircncia e de superaccedilatildeo de conflitos democracia a ser vivida na famiacutelia a comunidade nas relaccedilotildees sociais e na organizaccedilatildeo do estado Natildeo queime lixo e outro rejeitos pois eles fazem aumentar o aquecimento global Eles podem ser reciclados Avise agraves pessoas adultas ou agraves autoridades quando souber de desmatamentos incecircndios florestais comeacutercio de bromeacutelias plantas exoacuteticas e de animais silvestres Ajude a manter um belo visual de sua casa da escola ou do local de trabalho pois a beleza eacute parte da ecologia integral Anime a grupos para que no bairro se crie um veiacuteculo de comunicaccedilatildeo uma folha ou um pequeno jornal para debater questotildees ambientais e sociais e acolher sugestotildees criativas Fale com frequumlecircncia em casa com os amigos com os moradores de seu preacutedio e na rua sobre temas ambientais e de nossa responsabilidade pelo bem viver humano e terrestre Reduzir reutilizar reciclar rearborizar rejeitar (a propaganda espalhafatosa) respeitar e se responsabilizar Estes 7 erres (r) nos ajudam a sermos responsaacuteveis face agrave escassez de bens naturais e satildeo formas de sequestar dioacutexido de carbono e outros gaacuteses poluentes da atmosfera O Pe Ciacutecero Romatildeo Batista um dos iacutecones religiosos do povo do Nordeste do Brasil elaborou no iniacutecio do seacuteculo XX dez preceitos de conteuacutedo ecoloacutegico ldquoNatildeo derrube o mato nem mesmo um soacute peacute de pau Natildeo toque fogo no roccedilado nem na caatinga Natildeo cace mais e deixe os bichos viverem Natildeo crie o boi nem o bode soltos faccedila cercados e deixe o pasto descansar para que possa se refazer Natildeo plante serra acima nem faccedila roccedilado em ladeira muito em peacute deixe o mato protegendo a terra para que a aacutegua natildeo a arraste e para que natildeo se perca a sua riqueza Faccedila uma cisterna no canto de sua casa para guardar a aacutegua da chuva Represe os riachos de cem em cem metros ainda que seja com pedra solta Plante cada dia pelo menos peacute de aacutervore ateacute que o sertatildeo seja uma mata soacute Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga Se o sertanejo obedecer a estes preceitos a seca vai se acabando o gado melhorando e o povo teraacute o que comer Mas se natildeo obedecer dentro de pouco tempo o sertatildeo todo vai virar um deserto soacuterdquo 269

267 Cf BOFF Leonardo Pistas praacuteticas para cuidar da Terra (I) ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo 05 set 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive26108amplang=es Acesso em 21 set 2008 268 Cf o resultado do grupo de pesquisa na publicaccedilatildeo do livro OLIVEIRA Pedro A Ribeiro de SOUZA Joseacute Carlos Aguiar de Consciecircncia planetaacuteria e religiatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2009 269 Cf BOFF Leonardo Pistas praacuteticas para cuidar da Terra (II) ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo 12 set 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive26253amplang=es Acesso em 21 set 2008

Leonardo termina dizendo que tais praacuteticas e compromissos produzem esperanccedila e

revelam que a crise e suas consequumlecircncias ldquodoloridasrdquo satildeo de parto ldquode um novo nascimentordquo

natildeo satildeo dores de morte pois a ldquovida triunfaraacuterdquo

Diante da biodiversidade somos desafios a respeitar a pluralidade e a integrar a

racionalidade moderna noutras formas de racionalidades que revelam a riqueza da vida

Enquanto natildeo aprendermos a conviver com a diversidade comeccedilando pela nossa pluralidade

cultural e humana natildeo conseguiremos respeitar a diversidade da vida Eacute urgente a mudanccedila de

nossa maneira de ver e viver Como nos ensina o antropoacutelogo Clifford Geertz ldquoDevemos

aprender a apreender o que natildeo podemos abraccedilar [] precisamos tornar-nos capazes de

enxergar com larguezardquo270

Referecircncias

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270 Cf GEERTZ Clifford Nova luz sobre a antropologia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 p 84-5

DOMINGUES Beatriz Helena Siacutentese do livro ldquoCosmoacutepolisrdquo de Stephen Toulmin Juiz de Fora 1998 [mimeo]

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Ciberespaccedilos para o encontro do sagrado inteligecircncia artificial e religiatildeo271

Claudia Lima272

Introduccedilatildeo

Este artigo encontra-se ancorado na Aacuterea de Ciecircncias da Religiatildeo tal estudo tem

como proposta a assistecircncia psicorreligiosa na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos

processos subjetivos do ser humano e oportuniza uma discussatildeo entre a praacutetica e a

teoria da essecircncia das religiotildees no acircmbito da cibercultura273 O espaccedilo das

comunicaccedilotildees por rede de computador oportuniza novos espaccedilos para diferentes pontos

de vista e novas abordagens de valores culturais

Embora haja centenas de atividades para a reduccedilatildeo do estresse como a praacutetica

de esportes a teacutecnica especiacutefica desse estudo estaacute instaurada na lsquopsiquersquo propondo

trabalhar individualmente as necessidades subjetivas de cada indiviacuteduo no aspecto

psicorreligioso O espaccedilo fiacutesico para tanto torna-se de extrema necessidade para a

viabilizaccedilatildeo da proposta desse projeto oferecendo a possibilidade de integraccedilatildeo entre

corpo e mente no acircmbito das tensotildees e dos conflitos do cotidiano Essa oportuna

comunicaccedilatildeo com o sagrado tem como via de regra o despertar para um estado de

renovaccedilatildeo psiacutequica harmonia individual e por conseguinte melhor relacionamento

profissional e social como tambeacutem na prevenccedilatildeo de novas situaccedilotildees e accedilotildees sempre

em processo de reiteraccedilatildeo

Os benefiacutecios de credibilidade da religiatildeo segundo Kuumlng (2004) advecircm de um

discernimento racional pois o destino do ser humano estaacute mais relacionado com o seu

proacuteprio agir tendo em conta que as praacuteticas contemplativas trazem transformaccedilotildees

271 Artigo resultante de trabalho de pesquisa (em andamento) na aacuterea de Ciecircncias da Religiatildeo da Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Orientadores Prof Dr Seacutergio Sezino Duets Vasconcelos e Prof Dr Gilbraz de Souza Aragatildeo para o - GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo ndash Profordm Gilbraz de Souza Aragatildeo 272 Mestra em Gestatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo na Universidade Catoacutelica de Pernambuco ndash UNICAP Especialista em Histoacuteria da Aacutefrica 273 Eacute o termo utilizado na definiccedilatildeo do espaccedilo eletrocircnico virtual

sociais e reorientaccedilatildeo espiritual A psicorreligiatildeo age em funccedilatildeo da autoconscientizaccedilatildeo

nesse contexto de forma individual introduzindo uma marcante mudanccedila de paradigma

2 Inteligecircncia artificial e religiatildeo

21 Cibercultura

Buscamos na concepccedilatildeo da cibercultura274 o estabelecimento de uma relaccedilatildeo

iacutentima entre as novas formas sociais e as novas tecnologias digitais como instrumental

que pretende despertar forccedilas latentes dissolver tensotildees superar cansaccedilos sem no

entanto se prender a nenhuma ideologia preestabelecida a natildeo ser a percepccedilatildeo de que

em algum momento do dia o indiviacuteduo natildeo estaraacute restrito agraves ocorrecircncias comuns do

cotidiano mas poderaacute alternar seu movimento com a introspecccedilatildeo e a interiorizaccedilatildeo da

experiecircncia do sagrado quando menos atraveacutes de alguns minutos meditativos

A cibercultura eacute o que se vive hoje Contatos diretos e pessoais como os home

banking (bancos eletrocircnicos) cartotildees inteligentes voto eletrocircnico pages palms

imposto de renda via rede inscriccedilotildees via internet etc provam que a cibercultura estaacute

presente na vida cotidiana de cada indiviacuteduo No que se refere agrave comunicaccedilatildeo o papel

das tecnologias foi de liberar os indiviacuteduos das limitaccedilotildees de espaccedilo e tempo Dessa

forma pode-se dizer que a cibercultura se caracteriza tambeacutem e fundamentalmente

pela apropriaccedilatildeo social-midiaacutetica (micro-informaacutetica internet e as atuais praacuteticas

sociais) da teacutecnica Andreacute Lemos professor da Universidade Federal da Bahia e um dos

principais teoacutericos do tema no Brasil afirma que a cibercultura nasceu nos anos 50 com

a informaacutetica e a ciberneacutetica tornando-se popular atraveacutes dos microcomputadores na

deacutecada de 70 consolidando-se completamente nos anos 80 atraveacutes da informaacutetica de

massa e nos 90 com o surgimento das tecnologias digitais e a popularizaccedilatildeo da

Internet275

Primo (1999) explicita que mesmo nesses ambientes se permite uma muacutetua

construccedilatildeo Esse estudo tem como grande desafio a reflexatildeo no (re)pensar de

organizaccedilotildeesempresas sob um novo olhar na dinacircmica dos novos paradigmas que satildeo

ajuizados na assistecircncia de accedilotildees continuadas especificamente se esta aacuterea atinge

pessoas Novas estrateacutegias se fazem urgentes quando o niacutevel de tensatildeo do cotidiano eacute

274 Cultura contemporacircnea fortemente marcada pelas tecnologias digitais 275 Disponiacutevel em lthttpptwikipediaorgwikiCibercultura gt Acesso em 06 jul 2008

somado ao exacerbado niacutevel de estresse a que estatildeo submetidas agrave grande maioria dos

profissionais Seja pela pressatildeo por resultados pela intensidade e elevado niacutevel de

competiccedilatildeo pelo medo da perda da funccedilatildeo ou do proacuteprio emprego e das incertezas em

relaccedilatildeo a seus familiares Tais indiviacuteduos ainda concentram estados de apatia

indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave proacutepria carreira sentimentos de vazio existencial conflitos

familiares em relaccedilatildeo agrave carreira sendo todas essas causas reais e muitas vezes

invisiacuteveis mesmo esses profissionais fazendo parte dos quadros das melhores empresas

ou organizaccedilotildees Portanto introduzir novas ferramentas terapecircuticas para uma melhor

qualidade de vida e desempenho de trabalho eacute mister na medida em que em tais

situaccedilotildees de estresse exacerbar-se a universal necessidade de auto-conhecimento e de

sentido para a existecircncia ndash que eacute trabalhada pelas tradiccedilotildees religiosas e movimentos

espirituais

O ecircxito de uma nova conformaccedilatildeo existencial estaacute no processo da legitimaccedilatildeo da

accedilatildeo Nesse contexto Berger (1999) trata a legitimaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo de

sentido de ldquosegunda ordemrdquo A legitimaccedilatildeo produz novos significados que servem para

integrar os significados jaacute ligados a processos institucionais diacutespares A funccedilatildeo da

legitimaccedilatildeo consiste em tornar objetivamente acessiacutevel e subjetivamente plausiacutevel as

objetivaccedilotildees de ldquoprimeira ordemrdquo que foram institucionalizadas Levando-se em conta

os motivos especiacuteficos que inspiram qualquer processo particular legitimador Berger

ainda chama atenccedilatildeo sobre a questatildeo da plausibilidade referente nesse processo ao

reconhecimento subjetivo de um sentido global ldquopor traacutesrdquo dos motivos do indiviacuteduo e de

seus semelhantes motivos predominantes no que diz respeito agrave situaccedilatildeo mas apenas

parcialmente institucionalizados

Nessa linha em niacutevel ldquomicrordquo visando trabalhar a motivaccedilatildeo e o desempenho

vem esse artigo apresentar uma estrateacutegia de accedilatildeo focada na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-

limite direcionando teacutecnicas para melhor eficaacutecia e excelecircncia no trabalho e na ecircnfase

ao bem-estar especificamente nos processos subjetivos dos profissionais a partir do

distensionamento ancorando-os na aacuterea da psicorreligiatildeo onde a modelagem de um

cenaacuterio organizado com instrumental adequado possibilite a fluidez psicossocial nos

processos de atuaccedilatildeo profissional do cotidiano

Destacando ainda como objeto desse estudo profissionais das mais

diversificadas aacutereas em situaccedilatildeo de estresse e como objetivos especiacuteficos provocar a

abertura de uma nova via de diaacutelogo em relaccedilatildeo ao campo da psicorreligiatildeo no acircmbito

das empresas buscar uma possiacutevel disposiccedilatildeo de envolvimento com a essecircncia das

religiotildees como elemento condutor de estabilidade nas situaccedilotildees-limite idealizar um

ambiente fiacutesico propiacutecio e positivo aos profissionais em situaccedilatildeo-limite de estresse

tendo como princiacutepio a subjetividade como instrumental de perspectivas

psicorreligiosas inerentes a todo ser humano sistematizar uma assistecircncia

individualizada com recursos de planos de accedilatildeo atendendo agrave constataccedilatildeo de que a

sauacutede psicoloacutegica passa pela esfera da construccedilatildeo e do entendimento do sagrado de

cada indiviacuteduo de forma proacutepria natildeo obstante a realidade nos oferecer uma enorme

variabilidade dos fenocircmenos psicorreligiosos propor um modelo no acircmbito das

empresas e organizaccedilotildees dessa abordagem-teacutecnica inovadora para aleacutem de uma

assistecircncia religiosa on-line concentrada na construccedilatildeo de um modelo sociopsicoloacutegico

na prevenccedilatildeo de situaccedilotildees-limite

22 Metodologia

Chegamos nesse contexto com o ponto focalizado na natureza humana seus

efeitos e suas relaccedilotildees muacutetuas Para a delimitaccedilatildeo metodoloacutegica desse estudo

encontramos em Bronislaw Malinowski (1997) a referecircncia que norteia nossa visatildeo

cientiacutefica do objeto de estudo no contexto do comportamento humano que se move

num meio multidimensional e complexo de interesses culturais compreendendo nesse

contexto especiacutefico orientaccedilatildeo psicoloacutegica e socioloacutegica a partir de sistemas conceitos

e valores

Destaca Malinowski que a anaacutelise funcional permite-nos verificar o uso de um

objeto como parte de um comportamento determinado pela teacutecnica pela lei ou pelo

ritual que conduz o ser humano a satisfazer uma necessidade O funcionalismo nortearaacute

o impulso principal que nesse vieacutes verificaraacute a proposta de assistecircncia psicorreligiosa

na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos processos subjetivos dos profissionais em

situaccedilatildeo de estresse considerando essa necessidade relacionada agraves funccedilotildees bioloacutegicas

pelos laccedilos que unem os objetos aos seres humanos

Malinowski (1997) chega agrave definiccedilatildeo do funcionalismo ao demonstrar que as

instituiccedilotildees humanas assim como as atividades parciais que elas englobam se

relacionam com as necessidades primaacuterias ou seja bioloacutegicas e com as derivadas isto

eacute culturais Assim funccedilatildeo significa sempre o satisfazer de uma necessidade desde o

simples ato de comer ateacute ao dos sacramentos em que comungar se associa a todo um

sistema de crenccedilas determinadas pela necessidade cultural de uniatildeo com o Deus Vivo

A teacutecnica da assistecircncia psicorreligiosa realizada por meio de princiacutepios

computacionais simbolicamente sistematizados com o auxiacutelio de processos

tecnoloacutegicos de ponta encontra-se no acircmbito da manifestaccedilatildeo cultural religiosa onde

de acordo com Malinowski (1997) pode ser interpretada de modo funcional como

complemento imprescindiacutevel dos sistemas de pensamento e de tradiccedilatildeo puramente

racional e empiacuterica

23 Ciecircncias da Religiatildeo

Ao questionar-se sobre o que eacute lsquoCiecircncia da Religiatildeorsquo Usarski (2006) explicita

que eacute uma disciplina empiacuterica que investiga sistematicamente a religiatildeo em todas as

suas manifestaccedilotildees Natildeo se questiona entretanto a lsquoverdadersquo ou a lsquoqualidadersquo de uma

religiatildeo Do ponto de vista metodoloacutegico religiotildees satildeo ldquosistemas de sentido

formalmente idecircnticosrdquo Eacute especificamente esse princiacutepio metateoacuterico que distingue a

Ciecircncia da Religiatildeo da Teologia276 O objetivo da Ciecircncia da Religiatildeo eacute fazer um

inventaacuterio o mais abrangente possiacutevel de fatos reais do mundo religioso um

entendimento histoacuterico do surgimento e desenvolvimento de religiotildees particulares uma

identificaccedilatildeo e seus contatos muacutetuos e a investigaccedilatildeo de suas inter-relaccedilotildees com outras

aacutereas da vida A partir de um estudo de fenocircmenos religiosos concretos o material eacute

exposto agrave anaacutelise comparada Isso leva ao entendimento das semelhanccedilas e diferenccedilas

de religiotildees singulares a respeito de formas conteuacutedos e praacuteticas O reconhecimento de

traccedilos comuns do cientista da religiatildeo permite deduzir elementos que caracterizam a

religiatildeo em geral ou seja como um fenocircmeno antropoloacutegico universal

Para a histoacuteria da Ciecircncia da Religiatildeo segundo Usarski (2006) na sua qualidade

de ldquofilha emancipada da Teologiardquo eacute importante ressaltar que as uacuteltimas trecircs deacutecadas do

seacuteculo XIX foram para a Ciecircncia da Religiatildeo pelo menos tatildeo decisivas como para

vaacuterias das suas ldquodisciplinas de referecircnciardquo entre elas a sociologia a etnologia e a

psicologia A primeira caacutetedra de ldquoHistoire decircs Religionsrdquo fora da Teologia foi criada

em 1873 na Facultegrave decircs Lettres da Universidade de Genebra Apoacutes a crise do

positivismo no iniacutecio do seacuteculo XX Filoramo (1999) ressalta que o problema

epistemoloacutegico baacutesico da Ciecircncia da Religiatildeo surge pela primeira vez em toda sua

276 Um discurso racional sobre Deus Esta palavra natildeo eacute exclusivamente cristatilde nem se encontra no Novo Testamento vem do mundo grego e mais concretamente da filosofia Foi Aristoacuteteles quem empregou o termo teologia para falar de Deus Cf SANTRIDIAacuteN Pedro R Dicionaacuterio baacutesico das religiotildees Aparecida Satildeo Paulo Santuaacuterio 1996 p474

complexidade constituiacutedo pela alternativa ldquoexplicar ou compreender a religiatildeordquo De

maneira focal a Ciecircncia da Religiatildeo difere de outras ciecircncias Como qualquer outro

objeto de estudo a religiatildeo tem uma dimensatildeo visiacutevel De forma que Hans-Juumlrgen

Greschat (2005) contextualiza-a diferentemente dos objetos de outras disciplinas a

religiatildeo tem tambeacutem uma dimensatildeo invisiacutevel quando se refere ao ldquotranscendenterdquo ao

ldquoespiritualrdquo ao ldquodivinordquo ou as semelhantes Cientistas de outras disciplinas ignoram

essa dimensatildeo sem que isso distorccedila seus resultados Se cientistas da religiatildeo negassem

o transcendente natildeo levariam os fieacuteis a seacuterio e posicionar-se-iam arrogantemente contra

eles

O que chamamos de religiatildeo tem-se manifestado no decorrer da histoacuteria e em

todas as partes do mundo em diversificaccedilotildees e diferenccedilas muacuteltiplas De acordo com

essa complexidade natildeo eacute adequado pensar em uma definiccedilatildeo fechada de religiatildeo mas

optar por certo conceito aberto capaz de superar um entendimento preacute-teoacuterico que

generaliza fenocircmenos religiosos sobretudo os de origem cristatilde com os quais estamos

culturalmente acostumados Usarski (2006) a partir de uma entrevista com alunos do

programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo da PUC-SP em julho de 2002

divide o conceito de religiatildeo em quatro elementos

Primeiro religiotildees constituem sistemas simboacutelicos com plausibilidades proacuteprias

Segundo do ponto de vista de um indiviacuteduo religioso a religiatildeo caracteriza-se como a

afirmaccedilatildeo subjetiva de que existe algo transcendental algo extra-empiacuterico algo maior

mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos eacute imediatamente acessiacutevel

atraveacutes do instrumentaacuterio sensorial humano

Terceiro religiotildees se compotildeem de vaacuterias dimensotildees particularmente temos de pensar

na dimensatildeo da feacute na dimensatildeo institucional na dimensatildeo ritualiacutestica na dimensatildeo da

experiecircncia religiosa e na dimensatildeo eacutetica

Quarto religiotildees cumprem funccedilotildees individuais e sociais Elas datildeo sentido agrave vida

alimentam esperanccedilas para o futuro proacuteximo ou remoto sentido esse que algumas vezes

transcende o da vida atual e com isso possui a potencialidade de compensar

sofrimentos imediatos Religiotildees podem ter funccedilotildees poliacuteticas no sentido ou de legitimar

e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionaacuterias Aleacutem disso

religiotildees integram socialmente uma vez que membros de determinada comunidade

religiosa compartilham a mesma cosmovisatildeo seguem valores comuns e praticam sua feacute

em grupos

Ultrapassado o obstaacuteculo da afirmaccedilatildeo de que ldquotal religiatildeo eacute a verdadeirardquo Vigil

(2006) centra-se na afirmaccedilatildeo de que ldquotodas as religiotildees satildeo verdadeirasrdquo As religiotildees

tecircm seu valor em si mesmo O autor ainda trata de conceituar espiritualidade e religiatildeo

estabelecendo distinccedilatildeo entre o religioso ou a religiatildeo e o espiritual ou a

espiritualidade pois natildeo eacute a mesma coisa Ainda segundo Vigil (2006) a

espiritualidade eacute muito mais ampla do que a religiatildeo A espiritualidade natildeo eacute como se

pensa tradicionalmente um subproduto da religiatildeo uma atitude produzida pela religiatildeo

em seus adeptos pelo contraacuterio a religiatildeo eacute simplesmente uma forma dentre muitas nas

quais se pode expressar essa realidade abrangente e maximamente profunda que eacute a

espiritualidade acessiacutevel a todo ser humano antes e na base de sua adesatildeo a uma

religiatildeo

Acolher a pluralidade religiosa eacute a proposiccedilatildeo desse estudo entatildeo natildeo faz

sentido perguntar pelas identidades religiosas do puacuteblico alvo pois a questatildeo principal

estaacute no fator da espiritualidade intriacutenseca em cada indiviacuteduo e nessa perspectiva a

priori a verdadeira religiatildeo simplesmente eacute a que faz a diferenccedila dentro de cada ser a

que complementa seus momentos de infortuacutenio e a que eacute elevada no agradecimento das

graccedilas alcanccediladas

Durkheim (1996) considera que quando certo nuacutemero de coisas sagradas

manteacutem entre si relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo e de subordinaccedilatildeo de maneira a formar um

sistema dotado de certa unidade mas que natildeo participa ele proacuteprio de nenhum outro

sistema do mesmo gecircnero o conjunto das crenccedilas e dos ritos correspondentes constitui

uma religiatildeo Trata-se de um todo formado de partes distintas e relativamente

individualizadas O autor ainda entende que cada grupo homogecircneo de coisas sagradas

ou mesmo um centro organizador em torno do qual gravita um grupo de crenccedilas e ritos

um culto particular natildeo haacute religiatildeo por mais unitaacuteria que seja que natildeo reconheccedila uma

pluralidade de coisas sagradas

24 Psicologia da Religiatildeo

Entendendo o desafio e conscientes das nossas argumentaccedilotildees esse estudo busca

em Edecircnio Valle (2007) justificativas teoacutericas referentes agrave histoacuteria da humanidade que

haacute milecircnios tenta esclarecer o problema do relacionamento entre psiquismo e a religiatildeo

do ponto de vista da complexidade da alma humana em sua busca de sentido havendo

da parte dos pesquisadores o entendimento da enorme diversidade nas motivaccedilotildees

objetivos e dinacircmicas dos comportamentos religiosos

Valle (2007) afirma que a Psicologia da Religiatildeo estaacute consciente de que a

metodologia da pesquisa e compreensatildeo do humano natildeo pode se fechar aos aspectos

proacuteprios de comportamentos complexos como o religioso Sendo a religiosidade

idiossincraacutetica277 e a religiatildeo polissecircmica278 em cada uma das suas fontes e

manifestaccedilotildees a Psicologia da Religiatildeo natildeo esta autorizada a partir do pressuposto de

que a religiosidade seja uma realidade uacutenica Ao contraacuterio ela precisa pressupor que os

fenocircmenos psicorreligiosos satildeo de enorme variedade razatildeo pela qual solicita da parte

de quem a observa uma grande lucidez teoacuterico-epistemoloacutegica e metodoloacutegica Nesse

propoacutesito uma condiccedilatildeo para que a Psicologia da Religiatildeo aborde seu objeto sem

equiacutevocos e reduccedilotildees injustificadas eacute equilibrar o rigor do meacutetodo com suficiente

amplidatildeo teoacuterica para assim abraccedilar os muacuteltiplos processos subjetivos e objetivos

implicados na experiecircncia do ser humano colocado ante as questotildees-limite de seu

existir

Poreacutem de forma bem direta podemos dizer que religiatildeo eacute uma doutrina

estabelecida e reconhecida uma pessoa diante de uma religiatildeo natildeo tem alternativas para

inventar novas regras ou crenccedilas essas questotildees jaacute estatildeo preacute-estabelecidas e podem ser

aceitas ou natildeo pelos seus fieis jaacute a religiosidade eacute uma praacutetica coletiva mas que admite

certo grau de criatividade por exemplo os grupos moldam uma espeacutecie de religiosidade

dentro de uma religiatildeo jaacute estruturada secularmente e finalmente a espiritualidade eacute uma

dimensatildeo mais individual do contato com o sagrado aiacute as pessoas podem desenvolver

praacuteticas pessoais

A Psicologia da Religiatildeo eacute ressaltada em Valle (2007) como um dos embriotildees

dos quais nasceu agrave proacutepria psicologia moderna Algumas grandes obras dos pioneiros da

psicologia foram dedicadas a temas expressamente religiosos As relaccedilotildees entre teologia

e a psicologia natildeo tinham naquele momento a agressividade que passou a caracterizaacute-

las em iniacutecios do seacuteculo XX As novidades trazidas pelo conjunto das ciecircncias

relacionadas agrave psique humana segundo Valle (2007) provocaram uma reviravolta em

277 Idiossincrasia Disposiccedilatildeo do temperamento do indiviacuteduo que o faz reagir de maneira muito pessoal agrave accedilatildeo dos agentes externos maneira de ver sentir reagir proacutepria de cada pessoa Aureacutelio Buarque de Holanda Ferreira Novo Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 2 ed Rio de Janeiro Nova fronteira 1986 p 914 278 Polissemia Ter uma palavra muitas significaccedilotildees Cf FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 2 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 p 1357

concepccedilotildees milenarmente assumidas e transmitidas como indiscutiacuteveis pelas religiotildees

A Psicologia associou-se em dado momento agraves outras ciecircncias da modernidade para

usar das religiotildees o prestiacutegio e a credibilidade de que gozavam no mundo antigo e

medieval Muitos desses questionamentos e pendecircncias estatildeo ateacute hoje mal resolvidos e

ou sem soluccedilatildeo Um fato que ajudou na amenizaccedilatildeo dessa situaccedilatildeo esta sendo a

autocriacutetica agrave qual as ciecircncias se submetem atualmente reconhecendo muitas vezes a

precariedade de seus paracircmetros tidos antes como totalmente objetivos e neutros

Jung via a religiosidade como uma funccedilatildeo natural e inerente agrave psique Chegava a

consideraacute-la como aponta Silveira (1983) um instinto um fenocircmeno genuiacuteno A

religiatildeo era vista mais como uma atitude da mente do que qualquer credo sendo este

uma forma codificada da experiecircncia religiosa original Jung considerava todas as

religiotildees vaacutelidas visto que todas recolhem e conservam imagens simboacutelicas advindas

do inconsciente coletivo elaborando-as em seus dogmas e assim realizando conexotildees

com as estruturas baacutesicas da vida psiacutequica A autora afirma ainda que Jung reconhecia

todos os deuses como possiacuteveis desde que tenham sido atuantes no psiquismo humano

Isto apesar de as afirmaccedilotildees religiosas natildeo poderem ser universalmente comprovaacuteveis

Segundo Jung ainda todos os psicoacutelogos que estudem os fenocircmenos religiosos devem

abster-se de considerar como verdadeiro somente o que apresentar-se como um dado

fiacutesico visto natildeo ser este seu uacutenico criteacuterio de veracidade Haacute aleacutem verdades psiacutequicas

que natildeo podem ser recusadas mesmo sendo de difiacutecil explicaccedilatildeo Todas as religiotildees

vecircm do mesmo solo o inconsciente coletivo

O conceito de inconsciente explicita Paden (2001) inclui tudo aquilo sobre si

mesmo que por uma ou outra razatildeo o indiviacuteduo eacute incapaz de tornar consciente Nos

anos que se seguiram a 1912 Jung rompe com Freud porque o modelo do seu famoso

amigo era de concepccedilatildeo demasiada estreita e uma noccedilatildeo mais ampla da psique

precisava ser construiacuteda Na visatildeo de Jung o inconsciente freudiano estava limitado a

uma esfera onde o ego potildee todo o seu passado pessoal reprimido onde traumas desejos

inaceitaacuteveis e noacutes psicoloacutegicos natildeo-resolvidos de diversos tipos ficam armazenados

poreacutem continuando inconscientemente ativos Embora esses conteuacutedos sejam

suprimidos seu proacuteprio status inconsciente interfere nas vidas dos indiviacuteduos ateacute que

sejam trazidos agrave luz pela psicanaacutelise Contrapondo-se a essa imagem que foi vitima de

reducionismos por disciacutepulos de Freud Jung postulou um esquema mais amplo que via

o inconsciente natildeo soacute na sua dimensatildeo pessoal mas tambeacutem e principalmente na sua

dimensatildeo coletiva um reservatoacuterio das experiecircncias psiacutequicas da histoacuteria da

humanidade Na visatildeo de Jung o inconsciente era tatildeo profundo e tinha tantos niacuteveis

quanto o proacuteprio mundo refletindo as funccedilotildees criativas da vida assim como as

patologias Eacute aqui que entra a religiatildeo segundo Paden (2001) Enquanto para Freud os

siacutembolos religiosos eram fragmentos irocircnicos disfarccedilados da infacircncia natildeo-resolvida

para Jung eles podiam tambeacutem funcionar como mediadores positivos entre o ego e uma

parte mais profunda do self279 como agentes ativos de mudanccedila psicoloacutegica e

recentramento ou individuaccedilatildeo na linguagem junguiana do ser humano Se os deuses

representam projeccedilotildees de relaccedilotildees de dependecircncia eles tambeacutem representam projeccedilotildees

de transcendecircncia do ego e de uma emergente e mais abrangente autoconsciecircncia O

termo-chave de Jung para a totalidade da vida consciente e inconsciente eacute psique Ele

via a linguagem religiosa da religiatildeo como parte da linguagem natural da psique o

pensamento religioso natildeo nos diz o que eacute o universo mas revela o modo como a psique

simboliza a si mesma

Para Jung de acordo com Paden (2001) o poder das imagens religiosas eacute

portanto natildeo apenas o de representar a dependecircncia do ego como Freud poderia dizer

mas tambeacutem o de ativar o self que de certo modo ajuda a superar as neuroses e

fraquezas do ego Esse modelo de interpretaccedilatildeo da psicologia jungiana traduziu a

linguagem religiosa sobre o relacionamento entre humanidade e divindade para a

dinacircmica da relaccedilatildeo ego-self

O desenvolvimento psicoloacutegico moderno leva-nos segundo Jung (2007) a uma

compreensatildeo melhor daquilo de que o ser humano realmente se compotildee Primeiro os

deuses de poder e beleza sobrenaturais viviam nos cumes nevados dos montes ou nas

profundezas das cavernas dos bosques e dos mares Mais tarde fundiram-se num soacute

Deus que logo se fez homem Mas em nossa eacutepoca parece que ateacute o proacuteprio Deus-

Homem desce de seu trono para se diluir no homem comum Eacute por este motivo talvez

que seu lugar se encontre vazio E por isso tambeacutem o homem moderno sofre de uma

hybris da consciecircncia que se aproxima de um estado patoloacutegico

O mito religioso eacute uma das maiores e mais importantes aquisiccedilotildees que datildeo ao

homem segundo Jung (1995) a seguranccedila e a forccedila para natildeo ser esmagado pela

imensidatildeo do universo O siacutembolo eacute a chave da linguagem inteira da experiecircncia

279 O conceito de self fornece um esquema para explicitar o extraordinaacuterio papel desempenhado pelos siacutembolos miacuteticos e religiosos na experiecircncia humana Interpretando o sagrado modos de conceber a religiatildeo Cf PADEN 2001 p101

religiosa O simbolismo implica em uma funccedilatildeo social de comunicaccedilatildeo mas antes

disso ou ao mesmo tempo em uma vivecircncia Croatto (2001) explicita o significado

etimoloacutegico do termo ldquosiacutembolordquo como sendo do grego sum-ballo ou sym-ballo que se

refere agrave uniatildeo de duas coisas

Consideraccedilotildees finais

Eacute interessante para a reflexatildeo e tambeacutem muito surpreendente que hoje

numericamente do ponto de vista estatiacutestico as paacuteginas da web de cibersex e

cibereligiatildeo satildeo os dois best sellers absolutos da web Tambeacutem surpreende a quem entra

no ciberespaccedilo uma sensaccedilatildeo de ldquopromiscuidade temaacuteticardquo como bem coloca Andacht

(2000) quando expotildee o exemplo do Yahoo como um grande buscador no qual muitos

clubes onde se misturam em um modo fantaacutestico num sentido forte de ldquofantaacutesticordquo os

tipos mais diferentes e ateacute antiteacuteticos de religiotildees como algo mais forte ainda poderia

ateacute se falar de um shopping de religiotildees porque com somente um click se pode passar

de uma visita a uma congregaccedilatildeo com caracteriacutesticas de cristianismo adolescente e

ingecircnuo a uma de satanismo feroz e expliacutecito Quem passeia pelo ciberespaccedilo eacute muito

forte essa ideacuteia de hiper-viacutenculo de ldquosaltarrdquo de ldquosurfarrdquo como se fala na internet de

um mundo da crenccedila a outro

Na privacidade de um espaccedilo virtual fora da internet onde natildeo haja a

possibilidade de ldquosurfarrdquo (pelos diversos sites) eacute um dos focos de reflexatildeo desse estudo

objetivando portanto um programa especiacutefico desenvolvido exclusivamente para

atender aos profissionais em situaccedilatildeo de estresse de empresas e organizaccedilotildees atores

sociais focais nessa reflexatildeo

Entretanto eacute preciso que fique bem esclarecido que o estudo aqui apresentado

como reflexatildeo natildeo se propotildee a substituiccedilatildeo ao atendimento tradicional psicoloacutegico mas

sim no acircmbito da psicorreligiatildeo oferecer assistecircncia espiritualreligiosa tratado como

atendimento de suporte tendo como objetivo direto como bem explicita Andacht

(2000) o lsquovirtualrsquo que quer dizer uma coisa que tem a virtus a forccedila o poder a

potecircncia de outra coisa como instrumento de encontros cibersagrados tendo tambeacutem a

consciecircncia de que esse encontro virtual natildeo substitui os espaccedilos religiosos

convencionais ou tradicionais

Nesse sentido essa reflexatildeo tange a possibilidade de se construir um espaccedilo de

psicoterapia religiosa para atender a princiacutepio tais profissionais como tambeacutem a

pretensatildeo de no desdobramento dessa proposta de estudo dar continuidade instrumental

Dessa forma natildeo haacute intenccedilatildeo de buscar resultados parciais ou finais nesse momento

Referecircncias

ANDACHT Fernando 2000 Ciberespaccedilo e cibersagrado como a nova e maior assembleacuteia poliacutetica religiosa de nosso tempo Palestra proferida no Seminaacuterio Miacutedia Poliacutetica e Religiatildeo Org Poacutes-Graduaccedilatildeo da ECOUFRJ Disponiacutevel em lthttpwwwecoufrjbreposartigosart_andachthtmgt acesso em 16 jun 2008

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VIGIL Joseacute Maria 2006 Teologia do pluralismo religioso para uma releitura pluralista do cristianismo Satildeo Paulo Paulus 469 p

GT Religiatildeo Economia e Poliacutetica EMENTAS A feacute nas ondas do raacutedio a miacutedia empresarial-religiosa Luther King de Andrade Santana Em geral nos estudos sobre a relaccedilatildeo evangeacutelicos e miacutedia a ecircnfase recai na possiacutevel influecircncia dos veiacuteculos de comunicaccedilatildeo para o crescimento deste grupo no discurso e posicionamento poliacutetico que o grupo assume em suas miacutedias ou na concorrecircncia entre igrejas donataacuterias de empresas de miacutedia Tambeacutem eacute crescente o interesse sobre a relaccedilatildeo entre evangeacutelicos e televisatildeo destacando-se aiacute o investimento o proselitismo e a disputa religiosa Interessa-nos poreacutem duas raacutedios evangeacutelicas do Rio de Janeiro por se estabelecerem com tecnologia e linguagem para disputar audiecircncia tendo o pluralismo religioso e o consumo como mediaccedilatildeo para a livre concorrecircncia em substituiccedilatildeo ao proselitismo denominacional e aos viacutenculos institucionais

Economia ecumene e ecologia e o desenvolvimento sustentaacutevel oikos-teologia e habitat na perspectiva wesleyana

Helmut Renders Na teologia wesleyana destacam-se nos uacuteltimos 10 anos a sua ecircnfase no tema da nova criaccedilatildeo [heranccedila anglicana] e seu desdobramento para a soteriologia [soteriologia social] O artigo relaciona nesta perspectiva os trecircs temas do desenvolvimento sustentaacutevel (economia social meio ambiente) com os trecircs elementos da oikos-teologia (economia [economia da salvaccedilatildeo trinitaacuteria e ser humano como ecocircnomo] ecumene [alianccedilas sustentaacuteveis e da promoccedilatildeo da sustentabilidade] e ecologia [missatildeo da sustentabilidade e sustentabilidade da missatildeo]) O autor alega que o modelo da terra geia natildeo deve significar o retorno para sua divinizaccedilatildeo mas a ecircnfase na criaccedilatildeo como organismo inclusive com a capacidade de ato-organizaccedilatildeo ou auto-regulamento e sugere o modelo complementar da criaccedilatildeo como sacramento Perseguiccedilotildees e Preconceitos Religiosos em Caratinga no periacuteodo de 1936 a 1941 Simone Rodrigues Baacuterbara Este trabalho tem como objetivo estudar as relaccedilotildees entre a poliacutetica e a religiatildeo no interior de Minas Gerais na cidade de Caratinga no periacuteodo de 1936 a 1941 O estudo de caso proposto relata uma desavenccedila entre catoacutelicos e espiacuteritas no governo do prefeito municipal Omar Coutinho quando o caso foi parar na capital do paiacutes e nas mais altas ordenanccedilas catoacutelicas do Brasil O prefeito citado era de famiacutelia espiacuterita quando assumiu a prefeitura encontrou forte resistecircncia do Bispo local Iniciandashse uma seacuterie de desavenccedilas que culminam em grande movimentaccedilatildeo poliacutetica utilizando os jornais locais em uma grande campanha para que o prefeito fosse deposto e que a ldquotradicional famiacutelia catoacutelicardquo voltasse ao comando poliacutetico do municiacutepio

GT Religiatildeo Economia e Poliacutetica TEXTOS

A feacute nas ondas do raacutedio a linguagem da miacutedia empresarial-religiosa

Luther King de Andrade Santana

De modo geral nos estudos sobre a relaccedilatildeo evangeacutelicos e miacutedia280 a ecircnfase recai na

possiacutevel influecircncia dos veiacuteculos de comunicaccedilatildeo para o crescimento deste grupo281 no discurso

e posicionamento poliacutetico que o grupo assume em suas miacutedias ou na concorrecircncia entre igrejas

donataacuterias de empresas de miacutedia Tambeacutem eacute crescente o interesse sobre a relaccedilatildeo entre

evangeacutelicos e televisatildeo destacando-se aiacute o investimento o proselitismo e a disputa religiosa

Nesta pesquisa pretendemos investigar a construccedilatildeo de uma linguagem religiosa e

midiaacutetica por empresas de comunicaccedilatildeo de radiodifusatildeo Nosso interesse se volta para o raacutedio

por entendermos ser o meio de comunicaccedilatildeo popular com grande audiecircncia no horaacuterio

comercial282 A dinacircmica da comunicaccedilatildeo no raacutedio eacute direta intimista e inclusiva As pessoas

ouvem raacutedio em diferentes lugares em escritoacuterios em consultoacuterios em casa em bairros que

tenham sistema de som puacuteblico que funciona nas ruas em lojas no carro O raacutedio tem um

alcance maior que a televisatildeo tanto territorialmente quanto demograficamente283

Para nossa pesquisa escolhemos duas raacutedios orientadas para o puacuteblico evangeacutelico da

Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro a Raacutedio Melodia FM 973 e a Raacutedio El Shadai FM

933284 Pelo fato dessas raacutedios natildeo pertencerem a nenhuma denominaccedilatildeo igreja autocircnoma ou

liacuteder carismaacutetico nos perguntamos o que justifica elas estarem disputando os primeiros lugares

de audiecircncia entre todas as FMs da Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro285 Qual a

UERJUSSUNICARIOCA 280 Definimos como evangeacutelicas as igrejas protestantes e pentecostais de variados matizes P FRESTON Protestantismo e poliacutetica no Brasil Tese de Doutorado em Ciecircncias Sociais UNICAMP 1993 A B FONSECA Evangeacutelicos e miacutedia no Brasil Dissertaccedilatildeo de Mestrado PPGSA IFCSUFRJ 1997 V FIGUEIREDO FILHO Entre o palanque e o puacutelpito religiatildeo miacutedia e poliacutetica Dissertaccedilatildeo de Mestrado PPGCP IFCSUFRJ 2002 281 Em nuacutemeros absolutos os catoacutelicos caem de 952 (39177880) em 1940 para 738 (124980131) em 2000 enquanto os evangeacutelicos crescem no mesmo periacuteodo de 26 (1074857) para 1545 (26184942)L S CAMPOS Protestantismo brasileiro e mudanccedila social in SOUZA B M et al (org) Sociologia da religiatildeo e mudanccedila social SP Paulus 2004 p 129 282 J L O A SILVA Raacutedio oralidade mediatizada o spot e os elementos da linguagem radofocircnica SP Annablume 1999 p 38 283 Idem 284 Essas raacutedios atingem quase todo territoacuterio nacional via sateacutelite ou reproduzidas por pequenas repetidoras formando uma rede de comunicaccedilatildeo 285 Em 15 agosto de 2007 a Raacutedio Melodia FM ocupava o segundo lugar e a raacutedio El Shadai o quarto lugar no ranking geral das fmacutes na Regiatildeo Metropolitana do RJ Fonte Ranking das FMrsquos

linguagem (rede de significados) utilizada por elas que mesmo fora da regulaccedilatildeo institucional

consegue inserccedilatildeo no campo religioso evangeacutelico Quais satildeo suas estrateacutegias de marketing e

comunicaccedilatildeo Em quais aacutereas da Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro a audiecircncia eacute maior

O que elas priorizam em suas programaccedilotildees

Sustentando um ethos e uma visatildeo de mundo a linguagem dessas raacutedios divulga crenccedilas e

valores comuns aos evangeacutelicos tecendo uma teia de significados (Geertz 1978)286 fora da

regulaccedilatildeo institucional das igrejas Considerando a complexidade de nossa sociedade

entendemos que natildeo haacute mais um nuacutecleo central de onde procedem o sentido da realidade e a

definiccedilatildeo do religioso Satildeo muacuteltiplas as fontes de definiccedilatildeo e de sentido da realidade A miacutedia

tem sido apontada como uma dessas fontes e talvez a de maior influecircncia em nossos dias

Segundo Vattimo (1996) a miacutedia eacute o lugar da visibilidade atual estar na miacutedia eacute existir eacute ser

comprado eacute ditar normas eacute atingir a consciecircncia criando consenso A miacutedia faz parte da massa

de tal forma que soacute nela e nela mesma que se constitui a linguagem comum Tal linguagem eacute

produzida e distribuiacuteda com muito peso para todos os indiviacuteduos ldquo[] a miacutedia produz consenso

instauraccedilatildeo e intensificaccedilatildeo de uma linguagem comum no socialrdquo287

ldquo[] a miacutedia que distribui informaccedilatildeo cultura entretenimento mas sempre sob criteacuterios gerais de ldquobelezardquo (atraccedilatildeo formal dos produtos) assumiu na vida de todos um peso infinitamente maior do que em qualquer outra eacutepoca do passado Ela natildeo eacute um meio para a massa a serviccedilo da massa eacute o meio da massa no sentido de que a constitui como tal como esfera puacuteblica do consenso dos gostos e dos sentimentos comunsrdquo (VATTIMO 1996 p44)

Desta forma essas raacutedios mesmo fora do reduto eclesiaacutestico com sua linguagem

compartilham siacutembolos comuns aos evangeacutelicos criando assim consistecircncia cultural (Velho

1994)288 necessaacuteria para se estabelecerem no campo religioso evangeacutelico

A existecircncia de muitas fontes de sentido e de definiccedilatildeo fato comum numa sociedade

complexa pode sugerir uma disputa entre vaacuterios discursos diferentes uma polifonia289 -

segundo Bakhtin (1988) - ou seja discursos articulados uns aos outros e ao mesmo tempo

autocircnomos que disputam a cena social Essa disputa se daacute pela relaccedilatildeo entre os discursos pelo

diaacutelogo que travam entre si dentro de um contexto soacutecio-cultural especiacutefico

No entanto aleacutem de reconhecer a polifonia numa sociedade complexa eacute necessaacuterio

tambeacutem (re)interpretar esses discursos para se desvelar as disputas as negociaccedilotildees as

interlocuccedilotildees existentes entre eles O recurso de uma hermenecircutica de profundidade tal qual

nos mostra Thompson (1995)290 pode enriquecer a anaacutelise da linguagem dessas raacutedios

Thompson afirma que a hermenecircutica de profundidade tem trecircs momentos No primeiro uma 286 C GEERTZ A interpretaccedilatildeo das culturas RJ Zahar 1978 p15 287 G VATTIMO O fim da modernidade SP Martins Fontes 1996 288 G VELHO Projeto e metamorfose antropologia das sociedades complexas RJ Zahar 1994 p 17 289 M BAKHTIN Questotildees de literatura e esteacutetica Teoria do romance SP HucitecUnesp 1988 D L P BARROS amp J L FIORIN Dialogismo polifonia e intertextualidade em torno de Bakhtin SP USP 1999 290 J B THOMPSON Ideologia e cultura moderna teoria social criacutetica na era dos meios de comunicaccedilatildeo de massa Petroacutepolis Vozes 1995 p356-365

anaacutelise do contexto soacutecio-histoacuterico do discurso No segundo uma anaacutelise formal do discurso E

no terceiro a interpretaccedilatildeo ou re-interpretaccedilatildeo do discurso Ou seja tanto Bakhtin quanto

Thompson nos apontam para a urgecircncia em conhecer o contexto histoacuterico-social dos discursos

analisar sua retoacuterica e por fim investigar a interpretaccedilatildeo e re-interpretaccedilatildeo desses discursos por

parte dos envolvidos neles

Segundo Geertz (1978) os estudos claacutessicos em Antropologia da Religiatildeo datildeo maior

ecircnfase agrave relaccedilatildeo dos sistemas religiosos com os processos soacutecio-estruturais e psicoloacutegicos o que

ele chama de segundo estaacutegio Para ele eacute necessaacuterio voltarmos a atenccedilatildeo para a construccedilatildeo dos

sistemas de significados incorporados nos siacutembolos que formam a religiatildeo propriamente

dita291 o primeiro estaacutegio Geertz entende que eacute necessaacuteria a inversatildeo no procedimento

cientiacutefico para que se conheccedila a accedilatildeo simboacutelica motivada pelos sistemas de significados

A pouca satisfaccedilatildeo que venho obtendo com grande parte do trabalho antropoloacutegico social contemporacircneo sobre religiatildeo provecircm natildeo do fato dele se preocupar com o segundo estaacutegio mas do fato de negligenciar o primeiro e ao fazecirc-lo considerar como certo aquilo que precisa ser elucidado [hellip] Somente quando tivermos uma anaacutelise teoacuterica da accedilatildeo simboacutelica comparaacutevel em sofisticaccedilatildeo agrave qual temos hoje para a accedilatildeo social e para a accedilatildeo psicoloacutegica estaremos em condiccedilotildees de enfrentar decisivamente aqueles aspectos da vida social e psicoloacutegica nos quais a religiatildeo (ou a arte a ciecircncia a ideologia) desempenha um papel determinante (GEERTZ 1978 p142)

Entendemos que uma das formas de compreendermos a linguagem das raacutedios citadas eacute

por meio da anaacutelise da teia de significados produzida por elas Apesar dessas raacutedios natildeo serem

vinculadas a instituiccedilotildees religiosas a linguagem usada por elas eacute religiosa Somente quando

entendermos o que como com quem e por que as raacutedios falam o que falam eacute que

compreenderemos a relaccedilatildeo dessa accedilatildeo simboacutelica com o plano soacutecio-estrutural e psicoloacutegico

Por outro lado natildeo podemos supor que o ouvinte dessas raacutedios seja uma folha em branco

na qual elas iratildeo imprimir o que acharem melhor Esse indiviacuteduo eacute tambeacutem um grande

negociador da sua consciecircncia Ele escolhe controla as tradiccedilotildees mistura fazendo com que os

conteuacutedos religiosos passem a ser privados individuais e se refiram agrave existecircncia individual a

histoacuteria de vida Isto eacute mais um indicativo de que a linguagem religiosa pode estar sendo usada

fora dos limites institucionais religiosos com legitimidade e aceitabilidade

O contexto de pluralismo da atualidade contribui para uma mudanccedila da religiatildeo na

consciecircncia individual (Berger 1985)292 A minimizaccedilatildeo (ou natildeo) do discurso religioso em

busca de legitimaccedilatildeo social a afinidade empresarial entre as vaacuterias agecircncias de miacutedia

evangeacutelica a formulaccedilatildeo de um discurso sem ecircnfase doutrinaacuteria a apropriaccedilatildeo da linguagem

religiosa pela miacutedia satildeo fatores que podem alterar a religiatildeo na consciecircncia isto eacute modificar o

habitus religioso

291 C GEERTZ op cit p142

292 P L BERGER O Dossel Sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo SP Paulus 1985p160

Em funccedilatildeo de sua posiccedilatildeo na estrutura da distribuiccedilatildeo do capital de autoridade propriamente religiosa as diferentes instacircncias religiosas indiviacuteduos ou instituiccedilotildees podem lanccedilar matildeo do capital religioso na concorrecircncia pelo monopoacutelio da gestatildeo dos bens de salvaccedilatildeo e do exerciacutecio legiacutetimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representaccedilotildees e praacuteticas dos leigos inculcando-lhes um habitus religioso princiacutepio gerador de todos os pensamentos percepccedilotildees e accedilotildees segundo as normas de uma representaccedilatildeo religiosa do mundo natural e sobrenatural ou seja objetivamente ajustados aos princiacutepios de uma visatildeo poliacutetica do mundo social (LUCKMANN apud MARTINO 2003 p58 - grifo nosso)

Todo esse processo nos conduz a identificaccedilatildeo da contemporaneidade como condiccedilatildeo

soacutecio-cultural necessaacuteria e suficiente para todo esse empreendimento comunicacional

[hellip] como jaacute se observou muitas vezes e acertadamente essas instituiccedilotildees [meios de comunicaccedilatildeo de massa] desempenham um papel-chave na orientaccedilatildeo moderna de sentido ou melhor na comunicaccedilatildeo de sentido Satildeo intermediadoras entre a experiecircncia coletiva e individual oferecendo interpretaccedilotildees tiacutepicas para problemas definidos como tiacutepicos Tudo o que as outras instituiccedilotildees produzem em mateacuteria de interpretaccedilotildees de realidade e de valores os meios de comunicaccedilatildeo selecionam organizam (empacotam) transformam na maioria das vezes no curso desse processo e decidem sobre a forma de sua difusatildeo (BERGER amp LUCKMANN 2004 p 68 grifo nosso)

Sabemos que muitos desses condicionantes citados anteriormente tecircm sido explicados

pela teoria da secularizaccedilatildeo293 poreacutem ela natildeo se aplica a esta pesquisa Ainda que entendamos

a perda de domiacutenios que as religiotildees institucionais sofrem e a consequente transformaccedilatildeo de

alguns de seus setores em modelos empresarial-administrativos as raacutedios supracitadas

transitam fora da regulaccedilatildeo institucional o que nos impede de explicar essa linguagem dentro

do tenso quadro da secularizaccedilatildeo

Freston (1993)294 apresenta algumas justificativas para a relaccedilatildeo entre os evangeacutelicos e a

miacutedia Segundo ele os evangeacutelicos tecircm por princiacutepio religioso a divulgaccedilatildeo de sua feacute e isto

deve acontecer por quaisquer meios de comunicaccedilatildeo Como consequecircncia sempre existe entre

os evangeacutelicos o desejo missionaacuterio do proselitismo que tem como caracteriacutestica principal a

simplificaccedilatildeo da mensagem para conversatildeo de muitos Aleacutem disso com o crescimento dos

evangeacutelicos e a negaccedilatildeo dos atrativos mundanos feita por eles surgem condiccedilotildees culturais para

uma socializaccedilatildeo dirigida atraveacutes de discursos de variados tipos e produtos de bens simboacutelicos e

materiais para dar sustentaccedilatildeo agrave feacute

293 P L BERGER op cit 1985 P L BERGER A dessecularizaccedilatildeo do mundo uma visatildeo global Religiatildeo e Sociedade vol 21 no1 abril 2001 pp9-24 A FORTIN-MELKEVIK A exclusatildeo reciacuteproca da modernidade e da religiatildeo nos pensadores contemporacircneos Juumlrgen Habermas e Marcel Gauchet Concilium 244 pp 70[850]-82[862] 19926 C L MARIZ Secularizaccedilatildeo e dessecularizaccedilatildeo comentaacuterios a um texto de Peter Berger Religiatildeo e Sociedade vol 21 no1 abril 2001 pp 25-39 P A R OLIVEIRA Secularizaccedilatildeo mercado e o sagrado imanente [s d] (mimeo) A F PIERUCCI Reencantamento e dessecularizaccedilatildeo a propoacutesito do auto-engano em sociologia da religiatildeo Novos Estudos CEBRAP 49 pp99-119 1997 P SANCHIS A profecia desmentida Folha de SP Caderno Mais 20041997 p58 294 P FRESTON op cit p135-136

Como jaacute dissemos o interesse crescente sobre a relaccedilatildeo entre evangeacutelicos e miacutedia se

deteacutem mais no uso que estes fazem da televisatildeo Na produccedilatildeo cientiacutefica o raacutedio tem o menor

destaque comparativamente agraves outras miacutedias Haussen295 fez um levantamento nos Programas

de Poacutes-graduaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo entre os anos de 1991 e 2001 para identificar quantas

produccedilotildees acadecircmicas versavam sobre o raacutedio Em 10 anos foram escritos 82 artigos sobre

raacutedio entre esses somente 1 artigo era sobre as raacutedios religiosas Ainda foram identificadas 89

dissertaccedilotildees 16 teses e 63 livros296 dos quais nenhum destes faziam referecircncia ao raacutedio como

meio de transmissatildeo de mensagens religiosas Ou seja a pesquisa sobre raacutedios religiosas ou

com discurso religioso no Brasil em 10 anos foi pequena o que por si soacute jaacute nos desperta

interesse

Com certeza a televisatildeo daacute maior visibilidade a qualquer grupo Poreacutem poucas satildeo as

denominaccedilotildees297 evangeacutelicas que possuem concessatildeo de televisatildeo298 Para noacutes estas

denominaccedilotildees formam o que chamamos de Miacutedia Denominacional (MD) isto eacute miacutedias que

estatildeo em funccedilatildeo de alguma igreja especiacutefica por exemplo a IURD e a Igreja Internacional da

Graccedila de Deus

Haacute ainda as investidas de lideranccedilas evangeacutelicas nas emissoras comerciais com programas

proacuteprios alguns auto-sustentaacuteveis e outros que vivem de mantenedores alcanccedilados pelo proacuteprio

programa Eacute o caso dos programas Vitoacuteria em Cristo do Pastor Silas Malafaia exibido na Rede

TV aos saacutebados pela manhatilde e outros com menos tempo na mesma emissora e em outras

exemplos que denominamos de Miacutedia de Lideranccedilas Evangeacutelicas (MLE) Isto porque apesar de

todos os pastores e apresentadores que fazem esses programas estarem ligados a alguma

denominaccedilatildeo exceto as que tecircm sua proacutepria miacutedia eles natildeo fazem divulgaccedilatildeo de suas

denominaccedilotildees mas de si mesmos e de suas igrejas locais

Identificamos tambeacutem os programas de igrejas autonocircmas299 Igrejas que tecircm se

notabilizado por um grande aparato administrativo-empresarial que investem muito em sua

marca para conquistar fieacuteis Eacute o caso do Programa Diante do Trono da Igreja Batista da

Lagoinha em Belo Horizonte tambeacutem exibido na Rede TV no saacutebado de manhatilde e no seu canal

fechado a Rede Super A estas iniciativas chamamos de Miacutedia de Igrejas Autonocircmas (MIA)

295 D F HAUSSEN A produccedilatildeo cientiacutefica sobre o raacutedio no Brasil livros artigos dissertaccedilotildees e teses (1991-2001) Revista FAMECOS miacutedia cultura e tecnologia Vol 1 No 25 (2004) httprevcom2portcomintercomorgbrindexphpfamecosarticleview4080 296 Idem 297 Usamos o conceito denominaccedilatildeo como referecircncia a qualquer grupo de igrejas 298 A IURD [hellip] tem a Rede Record a Igreja Assembleacuteia de Deus [hellip] opera no norte do paiacutes a Rede Boas Novas a Igreja Renascer em Cristo opera em Satildeo Paulo a Rede Gospel de Comunicaccedilatildeo [hellip] a Igreja Internacional da Graccedila de Deus tem uma exposiccedilatildeo de 60 horas semanais na TV aberta [Aleacutem dessas a Igreja Batista da Lagoinha tem um canal fechado a Rede Super que opera a partir de Belo Horizonte]rdquo L S CAMPOS op cit pp125-126 299 Chamamos de igrejas autonocircmas aquelas que natildeo estatildeo vinculadas a nenhuma denominaccedilatildeo a nenhuma convenccedilatildeo e que se estruturam eclesiasticamente como empresas inclusive abrindo franquias

No entanto como afirma o proacuteprio Freston (1997) o raacutedio domina a miacutedia evangeacutelica

ainda hoje e os argumentos usados para esse domiacutenio radiofocircnico satildeo esclarecedores ldquoo custo

mais acessiacutevel a facilidade teacutecnica da produccedilatildeo e a disponibilidade maior de horaacuteriosrdquo300 Ou

seja eacute ainda atraveacutes do raacutedio que os evangeacutelicos se inserem na comunicaccedilatildeo de massa do Brasil

O raacutedio eacute a miacutedia de maior alcance de puacuteblico pelo tipo de linguagem utilizada pelo seu poder

de mobilizaccedilatildeo divulgaccedilatildeo de posiccedilotildees e informaccedilotildees No raacutedio se especiacutefica com mais clareza

a quem se quer atingir qual o puacuteblico alvo natildeo de um programa mas de toda uma empresa de

comunicaccedilatildeo Cabe agora uma breve descriccedilatildeo das raacutedios que pretendemos estudar

A Raacutedio El Shadai FM 933 tem como proprietaacuterio Arolde de Oliveira desde maio de

1992 poliacutetico formado em engenharia de telecomunicaccedilotildees tendo trabalhado na Embratel nos

seus cinco mandatos de deputado federal se notabilizou pela participaccedilatildeo na Comissatildeo de

Ciecircncia Tecnologia Comunicaccedilatildeo e Informaccedilatildeo da Cacircmara Federal Membro de uma igreja

batista Oliveira faz parte da executiva do diretoacuterio regional do PFL no estado do Rio de Janeiro

desde marccedilo de 1993 Ele afirma que o tipo de muacutesica tocada na sua raacutedio eacute uma escolha

pensada em aspectos de mercado pois a raacutedio foi adquirida para divulgar e vender os CDs da

MK Publicitaacute (sua gravadora) e a classe meacutedia eacute o seu alvo Pesquisa desenvolvida por Fonseca

(1997) mostra que membros de igrejas renovadas com perfil ldquomais modernordquo e ldquomais classe

meacutediardquo satildeo os maiores ouvintes desta raacutedio (51 contra 26 que ouvem a Melodia) A Raacutedio

El Shadai possui uma programaccedilatildeo mais musical do tipo das FMrsquos tradicionais locutores com

linguagem para jovem e com ritmos modernos que vatildeo do rock ao funk Segundo dados

divulgados pela emissora o ouvinte da 933 FM fica ligado em meacutedia 4 horas e meia por dia

60 dos quais natildeo trocam de estaccedilatildeo Em 15 dias de programaccedilatildeo a Raacutedio El Shadai atinge 7

dos ouvintes de FM o que equivale a 62000 ouvintes por minuto diariamente de 6h agraves 19h301

Atualmente ocupa o quinto lugar de audiecircncia entre todas as fms do Rio de Janeiro com uma

meacutedia de 109208 mil pessoas por dia302 Essa raacutedio faz parte do Grupo MK de Comunicaccedilotildees

que conta ainda com a gravadora jaacute citada a MK Editora o portal de internet Elnet e um

programa de tv e internet chamado Conexatildeo Gospel

A Raacutedio Melodia 973 FM eacute outra empresa de grande penetraccedilatildeo entre os evangeacutelicos

Seu proprietaacuterio desde 1986 eacute o ex-deputado federal Francisco Silva (PL-RJ) Nas eleiccedilotildees de

1994 foi o campeatildeo de votos para Deputado Federal por Satildeo Paulo 220000 Sua inserccedilatildeo no

universo das igrejas evangeacutelicas deu-se tambeacutem a partir de uma opccedilatildeo comercial Adquiriu a

Raacutedio Melodia em 1986 e se tornou conhecido do grande puacuteblico evangeacutelico Segundo Fonseca

(1997) apenas 1 dos ouvintes tem niacutevel de terceiro grau sendo portanto uma raacutedio para os

menos escolarizados A programaccedilatildeo tem muitas pregaccedilotildees ao longo do dia e as muacutesicas

300 P FRESTON op cit p136-137 301 A B FONSECA op cit pp 88-92 1997 V FIGUEREDO FILHO op cit pp 62-84 2000 302 IBOPE abril-2009

seguem o padratildeo dos ritmos populares (baiatildeo forroacute lambada) com letras pentecostais que

falam em ldquofogordquo ldquopoderrdquo ldquounccedilatildeordquo marcas da teologia pentecostal Ocupa o terceiro lugar geral

no ranking das fms do Rio de Janeiro com 115977 mil pessoas por minuto303 A Raacutedio Melodia

faz parte tambeacutem de um grupo de comunicaccedilatildeo que conta com editora gravadora Top Gospel e

o Portal Melodia

No segmento de raacutedios religiosas a ordem eacute esta Melodia em seguida a El Shadai e a

Rede Aleluia de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus com 22965 mil pessoas por

minuto Por entendermos que estas duas raacutedios natildeo se enquadram em nenhuma das

classificaccedilotildees que fizemos anteriormente nossa hipoacutetese eacute a de que essas raacutedios podem estar

formando o que chamamos de Miacutedia Empresarial-Religiosa (MER) Elas satildeo formadas por

grupos empresariais desvinculados administrativamente de qualquer instituiccedilatildeo religiosa Tecircm

estrutura de comunicaccedilatildeo bem definidas contando em seus quadros com profissionais de

marketing comunicaccedilatildeo contabilidade evidenciando uma racionalidade administrativa Natildeo haacute

o compromisso de uma linguagem legitimada por alguma igreja lideranccedila carismaacutetica ou

denominanccedilatildeo O direcionamento eacute para o indiviacuteduo visto como cliente Natildeo fazem

proselitismo mas lutam pela audiecircncia divulgando e vendendo seus produtos seus cantores

seus cds fazendo circular linguagens e siacutembolos comuns aos evangeacutelicos Assim considerando a fragmentaccedilatildeo do universo evangeacutelico sua polifonia no campo

religioso e a autonomia do indiviacuteduo com relaccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo religiosa eacute importante sabermos

que tipo de linguagem ou discurso essas raacutedios utilizam para conseguir abarcar diferentes

grupos e manter uma expressiva audiecircncia

Segundo Peter Berger304 a religiatildeo passa por uma crise das suas estruturas de

plausibilidade isto eacute com o fim da metafiacutesica e o advento da modernidade foi tirada da religiatildeo

a funccedilatildeo de sustentar e explicar a realidade A crise da religiatildeo eacute um dos efeitos claros da

secularizaccedilatildeo ldquoo processo pelo qual setores da sociedade e da cultura satildeo subtraiacutedos agrave

dominaccedilatildeo das instituiccedilotildees e siacutembolos religiososrdquo305 Com o fim da funccedilatildeo da religiatildeo como

ordenadora do cosmos entramos numa situaccedilatildeo de pluralismo onde todas as instituiccedilotildees podem

explicar e fundamentar a realidade O pluralismo eacute uma situaccedilatildeo objetivada real de algo que jaacute

aconteceu dentro do indiviacuteduo na consciecircncia dele Neste sentido a adesatildeo agrave religiatildeo passa a ser

voluntaacuteria depende da escolha e preferecircncia do indiviacuteduo e por isso eacute uma religiatildeo limitada agrave

vida privada sem com isso desempenhar a tarefa anteriormente claacutessica a saber ldquoconstruir um

mundo comum no acircmbito do qual toda vida social recebe um significado uacuteltimo que obriga a

todosrdquo306

303 Idem

304 BERGER P L O Dossel Sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo SP Paulus 1985

305 Ibid p119 306 Ibid p145

Para conseguir a adesatildeo de fieacuteis-clientes a religiatildeo tem agora que usar da loacutegica da

economia de mercado pois essa eacute uma situaccedilatildeo de mercado As tradiccedilotildees religiosas podem ou

natildeo ser assumidas como comodidades de consumo Aleacutem disso as tradiccedilotildees religiosas tecircm que

disputar a ldquodefiniccedilatildeo da realidade com rivais socialmente poderosos e legalmente toleradosrdquo307

Na situaccedilatildeo de pluralismo as tradiccedilotildees religiosas satildeo agecircncias de mercado elas sofrem

uma pressatildeo por resultados que provoca a racionalizaccedilatildeo das estruturas criando a burocracia A

burocracia se expande para as relaccedilotildees sociais internas (administraccedilatildeo) e as relaccedilotildees sociais

externas (instituiccedilotildees religiosas com instituiccedilotildees sociais) ou seja todas as relaccedilotildees sociais satildeo

burocratizadas para minimizar gastos (tempo dinheiro) e maximizar os resultados para poder

se relacionar com a sociedade o Estado e outras instituiccedilotildees e para executar meacutetodos de

trabalhos A montagem dessa administraccedilatildeo religiosa exige formaccedilatildeo e seleccedilatildeo de pessoal

adequado haacutebil tanto funcional quanto psicologicamente para lideranccedila Isso faz com que as

diferenccedilas entre as diversas tradiccedilotildees religiosas sejam diminuiacutedas A lideranccedila religiosa

burocraacutetica eacute semelhante a burocrata de outras instituiccedilotildees ldquoativista pragmaacutetico alheio a

qualquer reflexatildeo administrativamente irrelevante haacutebil nas relaccedilotildees interpessoais lsquodinacircmicorsquo e

conservador ao mesmo tempordquo308

A semelhanccedila administrativa entre as tradiccedilotildees religiosas provoca o ecumenismo como forma de ordenaccedilatildeo do mercado Nesse sentido as tradiccedilotildees religiosas reconhecem afinidades muacutetuas e promovem accedilotildees conjuntas Isto leva a competiccedilatildeo a um alto grau de racionalizaccedilatildeo ou seja as instituiccedilotildees religiosas lanccedilam matildeo da pesquisa de mercado para implantaccedilatildeo de novas frentes Haacute entatildeo uma demarcaccedilatildeo de espaccedilos determinados levando a cartelizaccedilatildeo ou seja surgem as incorporaccedilotildees e os remanescentes se organizam por acordos muacutetuos309

O pluralismo atinge os conteuacutedos religiosos que satildeo mudados pela preferecircncia dos

consumidores Essas preferecircncias acabam por formar os conteuacutedos da moda O mundo eacute

secularizado as preferecircncias de igual modo tambeacutem satildeo o que faz com que os produtos

religiosos se adequumlem as consciecircncias secularizadas Por isso a imposiccedilatildeo doutrinaacuteria ainda

que exista dificilmente aparece niacutetida na miacutedia religiosa Haacute uma aparecircncia objetiva

informativa sobre o real concreto sem que se faccedila distinccedilatildeo doutrinaacuteria310 Poreacutem onde for

necessaacuteria a legitimaccedilatildeo das formas tradicionais da religiatildeo ali elas seratildeo mantidas para

legitimar os novos liacutederes e as novas accedilotildees O uso da tradiccedilatildeo311 para legitimar os novos agentes

sociais e as novas maneiras de agir de uma instituiccedilatildeo aleacutem de ser uma reorganizaccedilatildeo

307 Ibid p149 308 Ibid p152 309 Ibid p155 310 MARTINO L M S Miacutedia e poder simboacutelico SP Paulus 2003 p9 311 ldquo[] entendemos que a tradiccedilatildeo eacute construiacuteda social e historicamente a partir das muitas possibilidades do presente e de dados fornecidos pela histoacuteria Natildeo se pode construir uma tradiccedilatildeo isenta do passado e da credibilidade social do presente Neste sentido a tradiccedilatildeo eacute ao mesmo tempo uma continuidade com o passado e uma ruptura com ele Por um lado quando a construccedilatildeo da tradiccedilatildeo faz uma releitura do passado de alguma forma faz com que se estenda e se prolongue por outro lado quando se faz uma releitura ou reinterpretaccedilatildeo do passado eacute porque elementos novos do momento presente estatildeo contribuindo para uma nova construccedilatildeo da tradiccedilatildeo Isto eacute a construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo eacute sempre uma nova forma de se referir ao mesmo passado que a tradiccedilatildeo anterior se referiardquo (SANTANA op cit p31)

identitaacuteria mostra que as religiotildees conseguem se organizar para continuar existindo num mundo

plural Ou seja se eacute verdade que o sentido de religiatildeo mudou foi esvaziado perdeu valor pela

pulverizaccedilatildeo de loacutegicas religiosas tambeacutem eacute verdade que novas formas de religiatildeo apareceram e

tentam se firmar acompanhando as mudanccedilas da sociedade312

Juntamente a esse ordenamento Acontece tambeacutem um recrudescimento das ldquoheranccedilas confessionaisrdquo A ecircnfase na identidade eacute ldquoparte do processo de racionalizaccedilatildeo da concorrecircnciardquo Pode ser que essa diferenciaccedilatildeo seja soacute externa mas internamente haja a padronizaccedilatildeo descrita acima A busca das heranccedilas confessionais eacute um correlato estrutural do ecumenismo313 No pluralismo as estruturas de plausibilidade satildeo multiplicadas relativizadas e entram em concorrecircncia Os conteuacutedos religiosos passam a ser privados individuais e passam a se referir a existecircncia individual a histoacuteria de vida A pluralidade faz com que os grupos religiosos busquem cada qual manter seu fragmento frente aos outros fragmentos do mundo Assim as possibilidades de legitimaccedilotildees satildeo muito variadas sem serem seguras O indiviacuteduo escolhe a legitimaccedilatildeo se certifica dela e a legitima com dados existenciais para si mesmo

Segundo Martino as instituiccedilotildees estatildeo em busca da legitimidade social a fim de se

fazerem ver e divulgar suas ideologias e para tanto oferecem bens simboacutelicos e bens materiais

para os consumidores314 As alteraccedilotildees ocorridas nas formas tradicionais das instituiccedilotildees

religiosas eacute que criam a necessidade de uso da miacutedia para ao mesmo tempo existirem e criarem

demandas de bens simboacutelicos religiosos315

Assim a religiatildeo responde agraves necessidades micros natildeo mais as necessidades macro da

sociedade a relevacircncia da religiatildeo se limita ao privado Esse controle do indiviacuteduo sobre a

religiatildeo e seus conteuacutedos leva as tradiccedilotildees religiosas a uma padronizaccedilatildeo que facilita a

cartelizaccedilatildeo e o ecumenismo diminuindo logicamente a diferenccedila entre as vaacuterias tradiccedilotildees

religiosas e cria a moda como dissemos acima Essa padronizaccedilatildeo aproxima a religiatildeo enquanto

produtora de bens simboacutelicos da induacutestria cultural ou seja ela tambeacutem produz nos indiviacuteduos

efeitos psiacutequicos que isentam os bens simboacutelicos de serem vistos como mercadoria mas

tambeacutem cria o desejo do consumo de tais bens simboacutelicos316

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GT Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea EMENTAS La Miacutestica seguacuten Nicolaacutes de Cusa y los Desafiacuteos de la Teologiacutea Contemporaacutenea Peter Casarella Nos passos de Karl Rahner que jaacute reconhecera a atualidade da miacutestica para a teologia contemporacircnea faz-se aqui uma aproximaccedilatildeo entre os desafios atuais e Nicolau de Cusa (1401-1464) filoacutesofo alematildeo e Cardeal da igreja catoacutelica que impulsionou a noccedilatildeo de uma igreja reformada no seacutec XV A forma dialeacutetica de sua miacutestica segue um caminho original que segundo o autor desta comunicaccedilatildeo natildeo eacute gnosticismo moderno nem puramente hegeliano Contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde para a teologia uma reflexatildeo em busca de referecircncias fundamentais

Ceci Baptista Mariani

A palavra miacutestica frequumlenta o discurso contemporacircneo Observa-se todavia que no uso que se faz dela natildeo se encontra mais as referecircncias da tradiccedilatildeo cristatilde que fizeram dela uma experiecircncia que desafiou a vivecircncia da feacute e a reflexatildeo sobre essa vivecircncia a teologia Neste artigo buscaremos refletir sobre as caracteriacutesticas da miacutestica e considerar sua contribuiccedilatildeo para a teologia a partir de duas referecircncias fundamentais a teologia miacutestica de Dioniacutesio Areopagita e alguns exemplos da miacutestica medieval

De Beata Vita de Santo Agostinho uma reflexatildeo sobre a felicidade Neuza de Faacutetima Brandellero De Beata Vita de Santo Agostinho uma reflexatildeo sobre a felicidade eacute uma abordagem a partir do pensamento agostiniano sobre a vida feliz A discussatildeo desse tema era muito comum na antiguidade Felicidade foi a finalidade do ser humano sob a oacutetica de muitas correntes por exemplo socraacutetica aristoteacutelica epicurista e estoacuteica Onde encontrar a felicidade Santo Agostinho pretende resolver estas questotildees agrave luz das certezas cristatildes A Reflexatildeo Teoloacutegica como Obra do Amor Cleide Cristina da Silva Scarlatelli Aqui se apresentam os resultados de tese doutoral que no horizonte da teologia da libertaccedilatildeo visa elaborar uma razatildeo compassiva apresentando uma configuraccedilatildeo da atividade teoloacutegica a partir do amor O esforccedilo eacute iluminado pelas reflexotildees de S Kierkegaard Como alternativa ao modo de pensar dominante em seu tempo Kierkegaard busca reconfigurar a reflexatildeo incluindo a teoloacutegica a partir do amor A tese divide-se em quatro partes analisa o primado do amor no cristianismo reflete sobre a relaccedilatildeo entre amor e conhecimento na atividade teoloacutegica potildee em cena o pensador Soumlren Kierkegaard que nos apresenta caminhos para nossa busca de uma configuraccedilatildeo da atividade teoloacutegica a partir do amor e afinal apresenta um balanccedilo conclusivo a respeito dessa configuraccedilatildeo da teologia enquanto intellectus amoris

GT Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea TEXTOS La Miacutestica seguacuten Nicolaacutes de Cusa y los Desafiacuteos de la Teologiacutea Contemporaacutenea

Peter Casarella PhD

Seguacuten Karl Rahner el cristiano del siglo XXI seraacute miacutestico o no seraacute Rahner reconocioacute

la actualidad de la miacutestica para la teologiacutea contemporaacutenea Su meditacioacuten de 1938 Palabras al

Silencio (Worte ins Schweigen) aparecioacute durante la crisis de la Segunda Guerra Mundial Ese

texto muy pastoral comienza con la franca confesioacuten que todo discurso teoloacutegico tiene que ser

una conversacioacuten con Dios aunque tal discurso es inevitablemente autoreferencial

Rahner no queriacutea facilitar la comodificacioacuten de la miacutestica cristiana pero su dicho sobre

la necesidad de entrar en el camino del miacutestico puede ser mal entendido Rahner entendioacute bien

que la afirmacioacuten del Dios de la vida cotidiana no puede ser la afirmacioacuten de la mera

uniformidad del cotidiano En realidad la miacutestica como fuente renovadora de la teologiacutea es

asimismo un camino a la experiencia de diferencia dentro de la vida La miacutestica del cotidiano es

llena de interupciones y ruacutepturas En su capiacutetulo sobre lo cotidiano Rahner reconoce que el

ritmo de Dios en su plenitud no puede ser identificado con la rutina de mi vida La siacutentesis

miacutestica de la vida seraacute entonces una siacutentesis del diacutea de Dios en su plenitud eterna con el diacutea

cotidiano de mi vida El cristiano del futuro crearaacute una disponibilidad dentro de su propria

interioridad para dejar entrar el Dios de la vida Este proceso de interiorizacioacuten es esencial en la

apropriacioacuten de la sabiduriacutea experimental de los miacutesticos (la llamada cognitio Dei

experimentalis) pero tambieacuten presupone una explicacioacuten maacutes amplia que no provee Rahner en

su escrito de 1938 sobre la relacioacuten entre interioridad de la experiencia y su exterioridad en

compromisos sociales El camino a una interiorizacioacuten siempre maacutes profunda por ejemplo

puede muy faacutecilmente conducir a la ignorancia de las condiciones de injusticia que imponen una

uniformidad opresiva en la vida de los maacutes vulnerables en la sociedad DePaul University ndash Chicago EUA

Maria Clara Luchetti Bingemer ha aclarado muy bien la relacioacuten entre la miacutestica y la

experiencia de Dios y en un modo que refleja las nuevas condiciones de la teologiacutea

contemporaacutenea317 Ella subraye que la experiencia miacutestica no es mero sentimiento sino una

forma de conocimiento de la alteridad Asiacute ha formulado el viacutenculo entre la miacutestica y la

alteridad ldquoeste sentir ecirc um sentir que implica una alteridade e uma relaccedilaordquo318 Se nota en la

teoriacutea de Bingemer la influencia de Emanuel Levinas Levinas ha formulado una eacutetica de

responsibiildad enfrente del rostro del Otro Seguacuten Levinas el encuentro con el otro en su

exteriorizacioacuten provoca el mandamiento de no matarlePor eso la experiencia miacutestica no

consiste sencillamente de una totalidad numeacuterica de experiencias de individuos Aunque la

dimensioacuten personal de la experiencia es decisivo la relacioacuten con el otro co-determina la

experiencia misma El individuo como tal participa en la experiencia pero su experiencia debe

ser considerado a la luz del conocimiento de una relacioacuten con el otro La experiencia del

individuo es entonces una experiencia de individuacioacuten o sea que un proceso que separa el

individuo de la relacionidad que constituye nuestra identidad formada en comunioacuten con el otro

La experiencia del otro dentro de la comunioacuten de personas no es una experiencia de un objeto

Si se puede objectivizar la realidad personal de la persona enfrente de siacute mismo pero jamaacutes

puede el cristiano reducer la epifaniacutea o revelacioacuten del Otro como otro a la existencia de un

objeto319 El caso de Dios no es distinto Seguacuten Bingemer ldquoO caminho de relaccedilatildeo com o outro

Transcendente e Divino e constitutivo mesmo de la experiencia miacutesticardquo320 Como en el caso de

la espiritualidad de Rahner se encuentra el Dios de la vida como si fuera una parte integral de la

vida

Rahner introduce descubre la miacutestica del cotidiano por la internalizacioacuten de la vida

dinaacutemica y eternal de Dios El Dios Rahneriano como un ritmo de trabajo y descanso (como se

encuentra tambieacuten en la espiritualidad trinitaria de Ruusbroec) es un Dios que nos ayuda

enfrentar el ritmo caacuteotico de la vida cotidiana Pero Bingemer muestra justamente la suma

317 Maria Clara Lucchetti Bingemer ldquoExperiecircncia de Deusmdashuna busca por uma identidaderdquo Atualidade Teologica 611 (2002) 241-55 318 Ibid 250 319 Ibid 320 Ibid 251

importancia de la exterioridad en la experiencia de Dios Se puede seguir desde aquiacute con la idea

de que tenemos que aceptar la dialeacutectica entre la trascendencia de Dios como el totalmente Otro

y la imanencia de la experiencia incluso la experiencia de Dios como fundacioacuten y presupuesto

absoluto de mi propria experiencia Pero la forma de una dialeacutectica dentro de la miacutestica cristiana

huye la resolucioacuten hegeliano de la antinomiacutea entre trascendencia y imanencia en el concepto

filosoacutefico (die Anstrengung des Begriffes) Dios puede ser llamado el totalmente Otro (der ganz

Andere de Karl Barth por ejemplo) pero la relacionalidad entre el Dios de la vida y la

experiencia del miacutestico no sigue entonces la loacutegica de una dialeacutectica abstracta El Dios de la

vida no es un concepto colgado del cielo para fomentar dentro de nosotros el deseo de huirse del

mundo creado Este planteamiento es en realidad el puro gnosticisimo que tambieacuten tiene sus

nietos en la modernidad321

Nicolaacutes de Cusa (1401-1464) fue un filoacutesofo aleman y Cardenal de la iglesia catoacutelica

que impulsoacute la nocioacuten de una iglesia reformada en el siglo XV (o sea antes de la Reformacioacuten

Protestante) La forma dialeacutectica de su miacutestica sigue un camino que no es ni gnosticismo

moderno ni puramente hegeliano Asiacute tenemos de examinar la relacioacuten entre la trascendencia de

Dios y su imanencia en la obra de Nicolaacutes322 Su tratado sobre la miacutestica Sobre la visioacuten de Dios

fue su respuesta a los monjes de Tegernsee en torno a una cuestioacuten sobre la relacioacuten entre

affectividad y intelecto dentro de la gnoseologiacutea cristiana En su escrito El No-Otro (De li non

aliud) ofrece una definicioacuten de Dios como el No Otro y tambieacuten una definicioacuten de la definicioacuten

como tal como el no-otro La complejidad de su lenguaje puede conducirnos a otra forma

puramente speculativa de la dialeacutecitca Pero en realidad el investigador de los escritos miacutesticos

de Dionisio Areopagita y del pensamiento del Absoluto del filoacutesofo neoplatoacutenico Proclo quiere

decir nada maacutes de que el Dios del universo debe sobrepasar nuestras ideas muy limitadas de la

distinction entre trascendencia y imanencia Aunque la revelacioacuten de Jesucristo no es el enfoque

321 La cuestioacuten del gnosticismo en la modernidad fue elaborado por Hans Urs von Balthasar y Erich Voegelin Un teoacutelogo actual que reclama este tema es Cyril OrsquoRegan Veacutease su libros Gnostic Return in Modernity (State University of New York Press 2001) y Gnostic Apocalypse Jacob Boehmersquos Haunted Narrative (State University of New York Press 2002) 322 El mejor libro sobre este tema se queda Mariano Alvaacuterez Goacutemez Das verborgene Gegenwart des Unendlichen

de este tratado (su cuerpo de casi 300 sermones publicadas tematiza cristologiacutea ampliamente)

Nicolaacutes quiere destacar una unidad en diferencia que recibe su forma maacutes concreta y absoluta en

la revelacioacuten uacutenica de la palabra encarnada de Dios Para Nicolaacutes la imanencia de Dios nunca

puede ser una limitacioacuten con respeto a su trascendencia y vice versa El filoacutesofo alemaacuten ha

pensado la radicalidad de trascendencia y de imanencia en su intimidad sin aceptar una

resolucioacuten conceptual

La alteridad es una dimensioacuten del mundo creado por Dios Nicolaacutes de Cusa ha intentado

reflexionar sobre el origen de la alteridad Su planteamiento fue lo de un buscador de una

posible metafiacutesica de la creacioacuten Seguacuten Nicolaacutes no podemos comprender el origen de la

alteridad como tal En su tratado Sobre la Geacutenesis Dios es lo mismo (idem) El concepto de lo

mismo no es un concepto de lo mismo en el mundo creado sino lo del mismo absoluto Su

absolutizacioacuten de lo mismo en realidad es la restitucioacuten del valor de la alteridad dentro de la

creacioacuten Dios como lo mismo ha creado un mundo de diferencias

Queacute es la alteridad seguacuten el tratado Sobre la Geacutenesis Alteridad puede ser identificado

con multiplicidad A causa de su identidad con multiplicidad hay que hablar de alteridades en

vez de alteridad como tal La alteridad como una realidad singular no existe seguacuten el

Cusanus323 La alteridad es una forma de presentacioacuten de las cosas Asiacute encontramos la doctrina

de Nicolaacutes sobre la perspectiva Cuando Nicolaacutes examina el mundo su investigacioacuten revela

diferencias y concordancias La mente asimilitiva siempre considera estas diferencias y

concordancias en la condicioacuten de ser codeterminado La mente que asimila no puede trascender

la realidad de aquel mundo fiacutenito de perspectivas para ascender a una asimilacioacuten de todo sin

diferencias y concordancias Dice Nicolaacutes ldquoEl ojo no puede ver una esfera por una sola

miradardquo No quiero negar la capaz del intelecto de sobrepasar las medidas de la mente dentro de

la gnoseologiacutea del Cusano Sin embargo la presentacioacuten de la alteridad es el producto de una

mente que asimila y en este sentido nos presenta un viacutenculo entre alteridad y perspectiva

323 La cuestioacuten de singularitas nos aborda al pensamiento de nominalismo y Nicolaacutes de Cusa rechazoacute el nominalismo aunque hay semejanzas entre sus creaciones filosoacuteficas y el nominalismo de su tiempo

Hay mucho maacutes que me gustariacutea relatar sobre la miacutestica de Nicolaacutes porque este breve

resumen toca soacutelo una parte de su contribucioacuten a la discusioacuten contemporaacutenea sobre la alteridad

La contribucioacuten maacutes original de Nicolaacutes fue el pensamiento radical de la relacioacuten entre unidad y

diferencia Dentro de la metafiacutesica del Medievo no hay otro pensador que muestra tanta

originalidad en este campo ldquoEl ojo no puede ver una esfera por una sola miradardquo es un dicho

que nos recuerda de la productividad intelectual y espiritual de nuestra finitud en el camino de

buscar el Dios infinito de nuestras vidas

Obrigado pela atenccedilatildeo

Contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde para a teologia uma reflexatildeo em busca de

referecircncias fundamentais

Ceci Baptista Mariani

A palavra miacutestica na atualidade se refere a um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo eacute em geral utilizado

de forma fluida e aparece muitas vezes entendido como sinocircnimo de esoterismo ou

simplesmente como sinocircnimo de religiatildeo324 Haacute tambeacutem quem utilize o conceito para falar de

uma energia ou forccedila interior que mobiliza o sujeito ou como um sentimento uma sensaccedilatildeo ou

uma emoccedilatildeo Sentidos que tem certamente relaccedilatildeo com o uso que fizeram dele os romacircnticos

sentidos que emergem da valorizaccedilatildeo da experiecircncia religiosa subjetiva quando do processo

operado pela reforma de interiorizaccedilatildeo da religiatildeo Um melhor entendimento desse conceito e

da contribuiccedilatildeo que a miacutestica pode oferecer agrave vivecircncia e agrave reflexatildeo sobre a experiecircncia religiosa

supotildee no entanto entendemos a recuperaccedilatildeo de elementos importantes que caracterizam a

miacutestica presentes na histoacuteria da utilizaccedilatildeo desse conceito no interior da tradiccedilatildeo cristatilde

A Teologia Miacutestica de Dioniacutesio Areopagita

Em seu pequeno tratado denominado Teologia Miacutestica de importacircncia fundamental para todo o

desenvolvimento do pensamento cristatildeo Dioniacutesio Areopagita natildeo soacute cria o termo ldquoteologia

miacutesticardquo afirma Bernard McGinn como daacute expressatildeo sistemaacutetica agrave visatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo

entre Deus e o mundo que foi a fonte de sistemas mistico-especulativos por pelo menos mil

anos325 A estrutura do sistema teoloacutegico de Dioniacutesio segundo esse autor eacute a mais importante

contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da miacutestica latina326

Doutora em ciecircncias da religiatildeo leciona na EDT no ITESP e na PUCCAMP 324 Carlos Eduardo SELL e Franz Josef BRuumlSEKE Miacutestica e Sociedade p17 325 McGINN Bernard The Foundations of Mysticis The Presence of God A History of Western Christian Mysticism New York Crossroad 2003 p 158 326 Cf Ibidem p 161

Nesse tratado que deve ser interpretado em relaccedilatildeo ao conjunto de sua obra327 ldquomiacutesticasrdquo satildeo

revelaccedilotildees dos misteacuterios simples absolutos e imutaacuteveis da teologia revelados na treva

superluminosa do silecircncio que ensina ocultamente Treva que ilumina e ldquosuperpleniza com

esplendores dos superbens espirituais as inteligecircncia espirituaisrdquo328 Revelaccedilotildees a que se chega

aconselha Dioniacutesio quando se deixa de lado ldquoas sensaccedilotildees as operaccedilotildees intelectuais todas as

coisas sensiacuteveis e inteligiacuteveis tudo o que natildeo existe e que existerdquo para unir-se com Aquele que

estaacute acima de todo o ser e de todo conhecimento num abandono irrestrito absoluto e puro

ldquoVisotildees miacutesticasrdquo satildeo para Dioniacutesio no entanto possibilidades dadas a iniciados a saber

aqueles que natildeo permanecem prisioneiros por supor ldquonada existir de modo superessencial acima

dos seresrdquo e que natildeo ldquopresumem conhecer com a proacutepria sabedoria lsquoAquele que fez da treva seu

esconderijorsquordquo 329

Para ver atraveacutes da cegueira e da ignoracircncia e para conhecer o princiacutepio superior agrave visatildeo e ao

conhecimento explica Dioniacutesio eacute preciso ir removendo todas as coisas ldquodo mesmo modo pelo

qual aqueles que modelam uma bela estaacutetua aplainam-lhe os impedimentos que poderiam

obnubilar a pura visatildeo de sua arcana beleza sendo capazes de mostraacute-la plenamente mediante

remoccedilatildeordquo330 Agrave Treva superluminosa enquanto Causa de tudo aplicam-se-lhe todas as

afirmaccedilotildees positivas dos seres todavia enquanto a tudo transcende ldquoeacute mais apropriado negar-

Lhe todos os atributosrdquo331 As negaccedilotildees no entanto natildeo se opotildeem agraves afirmaccedilotildees pois a Causa

universal estaacute acima de ambas e eacute feita ldquode muitas palavras de poucas palavras e desprovida de

palavras porque natildeo se Lhe aplica discurso ou pensamento algumrdquo332 A teologia ou teosofia

sabedoria de Deus conforme indica Dioniacutesio implica uma dialeacutetica ascendente que envolve

afirmaccedilotildees e negaccedilotildees que para ele ldquodevem ser louvadas com procedimentos contraacuteriosrdquo

Com efeito afirmamos quando partimos dos princiacutepios mais originaacuterios e descemos atraveacutes dos membros intermeacutedios agraves uacuteltimas coisas no caso das negaccedilotildees todavia removemos tudo quando subimos das uacuteltimas coisas agraves mis originaacuterias para conhecer a ignoracircncia escondida em todos os seres por todas as coisas cognosciacuteveis e para ver a treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres333

327 No capiacutetulo III de sua Teologia Miacutestica Dioniacutesio explicita o lugar dessa uacuteltima no conjunto de sua obra e indica que o silecircncio miacutestico eacute fruto de uma ascese e antes de chegar a ele eacute preciso considerar as muitas palavras e a presenccedila de Deus em toda a criaccedilatildeo ldquoNo livro Dos nomes divinos (explicamos) como Deus eacute chamado bom e como eacute chamado ser vida sabedoria e potecircncia e todas as denominaccedilotildees divinas Na Teologia simboacutelica (tratamos) dos nomes transferiacuteveis dos objetos sensiacuteveis agraves coisas divinas formas e figuras divinas partes instrumentos lugares divinos ornatos iras afliccedilotildees dores coacuteleras ebriedades excessos juramentos imprecaccedilotildees sonos vigiacutelias e todas as sacras figuraccedilotildees da representaccedilatildeo de Deus Creio que te daacutes conta do modo pelo qual esses uacuteltimos temas demandam mais palavras do que os primeiros os Esboccedilos teoloacutegicos e as explicaccedilotildees dos nomes divinos satildeo mais concisos que a Teologia simboacutelica Quanto mais olhamos para cima mais os discursos se contraem pela contemplaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis assim tambeacutem agora ao penetrarmos na treva superior do intelecto jaacute natildeo encontramos discursos breves mas uma total ausecircncia de palavras e de pensamentosrdquo (Dioniacutesio Areopagita opcit p 25-26) 328 Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Teologia Miacutestica p15 Usaremos aqui a traduccedilatildeo de Marco Lucchesi 329 Ibidem p 15-16 330 Ibidem p21 331 Ibidem p16 332 Ibidem p17 333 Ibidem p 21-22

Segundo Balthasar para Dioniacutesio o conhecimento de Deus requer uma penetraccedilatildeo sempre mais

profunda e o ultrapassamento sempre mais completo da imagem e as duas coisas natildeo separadas

nem justapostas mas se integrando sempre mais profundamente A teologia eacute adoraccedilatildeo

admirada diante da Beleza insondaacutevel que aparece em todas as manifestaccedilotildees334 Porque Deus eacute

em tudo e aleacutem de tudo a existecircncia e o conhecimento satildeo uma celebraccedilatildeo permanente da gloacuteria

divina que reina em tudo e aleacutem de tudo e que se comunica em tudo335

Miacutestica em Dioniacutesio segundo esse mesmo autor eacute a realizaccedilatildeo do que Deus que eacute Treva mais

que luminosa opera no ser e no conhecer humano que se volta para ele em relaccedilatildeo estabelecida

por ele portanto natildeo eacute uma experiecircncia psicoloacutegica Ela representa uma realizaccedilatildeo filosoacutefica-

teoloacutegica do que eacute ecircxtase de si a Deus por imitaccedilatildeo do eros extaacutetico divino que entra por amor

na multiplicidade do mundo Ecircxtase que natildeo seraacute em Dioniacutesio perda de identidade mas

fundamento e aprofundamento dela336 A relaccedilatildeo da criatura com Deus sempre maior eacute relaccedilatildeo

estabelecida por Deus a partir da criaccedilatildeo Nesta relaccedilatildeo cabe a Deus mesmo elevar os veacuteus

dissimuladores do ser e do conhecer criados A impressatildeo negativa disso que Deus opera eacute o

meacutetodo de pensar apofaacutetico

O meacutetodo de negaccedilatildeo contiacutenua e de remoccedilatildeo crescente dos envoltoacuterios simboacutelicos sensiacuteveis e dos conceitos espirituais natildeo eacute para Dioniacutesio separado da experiecircncia positivamente miacutestica que procede de Deus O que de concreto ele tem constantemente em vista natildeo eacute o meacutetodo de pensamento mas eacute um encontro carregado de experiecircncia evento que se realiza diante do misteacuterio do Deus vivo apreendido na feacute Por isso o ldquoterceiro passordquo somente mencionado e que ultrapassa a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo o movimento de ultrapassamento (hyperochecirc) natildeo eacute um ldquomeacutetodordquo de conhecimento mas uma demonstraccedilatildeo que aleacutem de toda a afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo de que eacute capaz a criatura natildeo haacute mais que a transcendecircncia absoluta de Deus A palavra suprema da ldquoteologia miacutesticardquo deve entatildeo ser que Deus natildeo eacute somente aleacutem de todas as afirmaccedilotildees mas tambeacutem aleacutem de todas as negaccedilotildees337

Neste sentido Deus que levanta o veacuteu leva agravequele que fecha os olhos transformando o ser e o

conhecer agrave afirmaccedilatildeo de que Deus eacute aleacutem de todas as afirmaccedilotildees e negaccedilotildees Treva mais que

luminosa Dioniacutesio concorda com autores cristatildeos antigos ao acreditar que a alma eacute divina e

pode alcanccedilar uma forma de uniatildeo indistinta com Deus mas em sua visatildeo menos platocircnica do

que a de muitos autores patriacutesticos comenta McGinn entende que ela eacute divina somente como

uma manifestaccedilatildeo e eacute unificada e divinizada somente pelo eros ascendente de Deus

Divinizaccedilatildeo neste sentido eacute um dom e natildeo um direito de nascenccedila338

A uniatildeo miacutestica identificada aqui com a divinizaccedilatildeo seraacute portanto na concepccedilatildeo de Dioniacutesio

baseada na transcendentalizaccedilatildeo do conhecimento em natildeo conhecimento e do desejo eroacutetico339

334 Cf Hans Urs VON BALTHAZAR La Gloire e la Croix les aspects estheacutetiques de la Reacuteveacutelation Paris Aubier 155 335 Cf Ibidem p 157 336 Cf Ibidem p 187 337 Ibidem p 188 338 Cf Ibidem p 178 339 Eacute importante lembrar que Eros deve aqui ser entendido natildeo a partir de uma perspectiva sexualizada e intersubjetiva mas como princiacutepio metafiacutesico

em possessatildeo extaacutetica Amor e conhecimento tecircm papel essencial na ascese amorosa Para

Dioniacutesio o desejo amoroso (Eros) que eacute ao mesmo tempo amor caridoso (Aghapeacute) pode ser

entendido como poder para efetuar uniatildeo reuniatildeo e conservaccedilatildeo

Todavia dirigindo-se agravequeles que sabem entender o verdadeiro sentido das palavras divinas os santos teoacutelogos para lhes revelar os segredos divinos atribuem mesmo valor agraves duas expressotildees de caridade e desejo Com efeito as duas designam um mesmo poder de unificaccedilatildeo e de reuniatildeo e mais ainda de conservaccedilatildeo que pertencem desde de toda eternidade ao Belo-e-Bem graccedilas ao Belo-e-Bem que emana do Belo-e-Bem que une uns aos outros os seres da mesma categoria que leva os superiores a exercer sua providecircncia em relaccedilatildeo aos inferiores que converte os inferiores e os liga aos superiores340

Esse desejo amoroso eacute capacidade que preexiste em Deus na Tearquia e eacute a partir dela

comunicado agrave criaccedilatildeo no coacutesmico pulsar da processatildeo e reversatildeo O desejo amoroso que vem

de Deus em Deus para noacutes eacute extaacutetico Graccedilas a ele afirma Dioniacutesio os amorosos natildeo mais se

pertencem mas pertencem agravequeles que amam Eacute poder de unificaccedilatildeo pelo ecircxtase que eacute saiacuteda de

si para o exerciacutecio da providecircncia e da comunhatildeo

() O proacuteprio Deus que eacute causa universal e cujo desejo amoroso ao mesmo tempo belo e bom se estende agrave totalidade dos seres pela superabundacircncia de sua bondade amorosa sai tambeacutem de si mesmo quando exerce suas Providecircncias em relaccedilatildeo a todos os seres e que de alguma foram ele os cativa pelo sortileacutegio de sua bondade de sua caridade e de seu desejo Eacute assim que total e perfeitamente transcendente natildeo condescende menos ao cuidado de todos os seres graccedilas a este poder extaacutetico supra-essencial e indivisiacutevel que lhe pertence341

Fundamentalmente o que Dioniacutesio nos ensina sobre miacutestica eacute que essa palavra anuncia por um

lado a inefabilidade a liberdade e a grandeza da Realidade Uacuteltima que nos envolve e por outro

lado a insuficiecircncia do nosso conhecimento e a inadequaccedilatildeo de nossa linguagem incapaz de

definiccedilotildees e conceitos que decircem conta de enquadrar essa Realidade Ele vai nos mostrar que a

relaccedilatildeo com Deus absolutamente transcendente implica o ecircxtase operado atraveacutes do

procedimento da negaccedilatildeo (remoccedilatildeo) com a finalidade uacuteltima da uniatildeo transformadora

(divinizaccedilatildeo) pelo amor que eacute Deus absolutamente transcendente e totalmente presente em toda

a criaccedilatildeo Miacutestica eacute para ele qualidade da teologia um tipo de sabedoria de Deus na qual

penetram os iniciados que se dispotildeem a despojarem-se do proacuteprio saber e abandonando-se de

forma irrestrita absoluta e pura deixam-se conduzir para o alto e viver nAquele que a tudo

transcende unindo-se ao princiacutepio superdesconhecido segundo o melhor (de suas faculdades)

mas conhecido aleacutem da inteligecircncia342

A miacutestica medieval e a experiecircncia subjetiva de Deus

Eacute no mundo medieval entretanto que uma literatura miacutestica se afirma por si mesma e se

desenvolve como busca do divino dentro da alma e como experiecircncia miacutestica de unidade com

Deus unio mystica experiecircncia subjetiva que transborda todos os conceitos e doutrinas

340 Pseudo-Dioniacutesio o Areopagita Os Nomes Divinos 412 (709C-709D) Em Obras Completas p 53 341 Ibidem 413 (712A-712B) p54 342 Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Teologia Miacutestica p18

teoloacutegicas Uma literatura claramente influenciada por Dioniacutesio Areopagita uma vez que

descobre e anuncia que no fundamento de todo o esforccedilo de falar sobre Deus existe uma

experiecircncia indiziacutevel e que para chegar a Ele eacute preciso remover ou como entendem os

medievais exige despojamento de todas as coisas e mais que isso despojamento de si mesmo

isto eacute aniquilamento A miacutestica medieval vai se expressar num discurso mais voltado para os

movimentos provocados na alma experiecircncia de ecircxtase (ecircxodo de si) e transformaccedilatildeo pela

uniatildeo com Deus E aqui talvez possamos falar em miacutestica como ldquoexperiecircnciardquo entendendo esse

termo como Congar

percepccedilatildeo da realidade de Deus vindo ateacute noacutes ativo em noacutes e por noacutes atraindo-nos a si numa comunhatildeo numa amizade isto eacute num ser para o outro Tudo isso eacute claro aqueacutem da visatildeo sem abolir a distacircncia na ordem do conhecimento do proacuteprio Deus mas superando-a no plano de uma presenccedila de Deus em noacutes como fim amado de nossa vida presenccedila que se torna sensiacutevel atraveacutes dos sinais nos efeitos de paz alegria certeza consolaccedilatildeo iluminaccedilatildeo e tudo aquilo que acompanha o amor343

De Bernardo de Claraval (1091-1153) ateacute Mestre Eckhart (1260-1328) estende-se uma

grande corrente de teoacutelogos e especialmente de teoacutelogas acompanhadas por um

verdadeiro movimento popular que vatildeo falar de Deus absolutamente transcendente a

partir da transformaccedilatildeo operada por Ele nelas Escritos muitas vezes redigidos em

primeira pessoa como testemunho ou em versos em forma de canccedilatildeo e em liacutengua

vernaacutecula como eacute o Espelho das Almas Simples de Marguerite Porete344 O texto de

Marguerite Porete natildeo eacute fala sobre Deus ou sobre o humano aberto para Deus mas eacute

fala da alma com Deus e em Deus No Espelho das Almas Simples segundo Luisa

Muraro eacute possiacutevel ouvir as palavras de uma conversaccedilatildeo natildeo apenas nova mas

ldquoinauditardquo entre uma mulher e Deus

Uma mulher estava com certeza ela diz Deus natildeo sei mas com certeza ela natildeo era soacute estava um outro ou outra cuja voz natildeo chegava ateacute mim mas que ouvia o mesmo porque fazia uma interrupccedilatildeo nas palavras dela ou melhor uma cavidade que transformava a leitura a tornava semelhante ao gesto de quem bebe lentamente de uma taccedila345

Na escritura de Marguerite Porete e de outras mulheres desse mesmo periacuteodo o absoluto natildeo eacute

o objeto de uma procura mas eacute a experiecircncia de uma Presenccedila que desfaz aquele que o estaacute

buscando De posse da pergunta pelo absoluto reflete ainda Luisa Muraro

Elas comeccedilam da proacutepria experiecircncia e trabalham a tirar do meio e abrir passagens desfazem sem substituir o mundo desfeito com produtos de pensamento e a escritura delas eacute um desfazer-se de si () Natildeo satildeo construtivas

343 Yves CONGAR Revelaccedilatildeo e experiecircncia do Espiacuterito p13-14 344 Cf Georgette EacutePINEY-BURGARD y Eacutemilie ZUM BRUNN Mujeres Trovadoras de dios Una tradicioacuten silenciada de la Europa medieval 345 Luisa MURARO Il Dio delle donne p 14

A pergunta que natildeo desfaz a procura construtiva visa a embaraccedilar assim tanto a mente com os seus objetos e os seus meacutetodos que natildeo aparece mais uma verdadeira pergunta Como verdadeira pergunta entendo uma pergunta cuja resposta natildeo depende de nada que eu tenho e que sou Uma verdadeira pergunta chama a existecircncia de outra coisa346

A experiecircncia religiosa relatada fala de um amor voltado para um objeto inacessiacutevel sempre

disposto a perder e nunca seguro de possuir amor a nada do que se pode imaginar no entanto

algo real e dotado de poder Fala da relaccedilatildeo com Deus que se faz reconhecer sem nunca se

deixar pegar Nesses textos a experiecircncia com Deus eacute descrita como experiecircncia de liberdade

que nasce (e isso desafia a compreensatildeo moderna) do aniquilamento

A alma aniquilada afirma Marguerite Porete se apoacuteia sobre dois pilares que a faz forte contra

seus inimigos forte como um castelo sobre um monte rodeado pelo mar Um dos pilares eacute o

conhecimento de sua proacutepria pobreza O outro eacute o conhecimento elevado que ela recebe da pura

Divindade De tatildeo tomada pelo conhecimento de sua pobreza a alma eacute estranha aos olhos do

mundo e aos olhos dos seus Por outro lado ela eacute tatildeo embriagada do conhecimento do amor e da

graccedila da pura divindade que estaacute sempre becircbada de conhecimento e repleta de louvores do

amor divino Becircbada natildeo somente do que tem bebido mas becircbada do que jamais bebeu e do que

jamais beberaacute Becircbada da bebida que bebe seu bem-amado pois que entre ele e ela por

transformaccedilatildeo do amor natildeo haacute nenhuma diferenccedila Esta alma eacute um abismo pela humildade de

sua memoacuteria de seu entendimento e de sua vontade ao mesmo tempo em que eacute muito livre pelo

amor da Divindade347 A alma aniquilada conhecendo sua pobreza ao mesmo tempo conhece a

bondade de Deus que eacute a sua salvaccedilatildeo Pois Deus de bondade natildeo poderia deixar de favorececirc-la

em sua mendicacircncia sem se renegar Tamanha pobreza entretanto afirma natildeo poderia se

acomodar com menos do que o cume da abundacircncia de toda a bondade divina

A salvaccedilatildeo para Porete consiste portanto no conhecimento da bondade de Deus a partir do

reconhecimento da proacutepria maldade A autocompreensatildeo da alma como mina de desgraccedila

explica Babinski eacute ao mesmo tempo o meio pelo qual a alma recebe a divindade Neste

sentido a humildade torna-se a ocasiatildeo para o divino preenchimento348 E nisso consiste a

nobreza na transformaccedilatildeo de amor operada por Deus naquele que se despojou de tudo ateacute de si

mesmo O homem nobre para a tradiccedilatildeo renana da qual participa Porete eacute o homem livre no

entanto natildeo porque nasceu nessa condiccedilatildeo explica M Eckhart em seu sermatildeo O homem nobre

mas porque argumenta ele inspirado em Agostinho avanccedila no caminho do desprendimento

degrau a degrau ateacute o limite que implica despojar-se da proacutepria imagem humana para assumir a

imagem divina

346 Ibidem p 19-20 347 Cf ibidem p 85-86 348 Ellen BABINSKI op cit p 6

O primeiro degrau eacute aquele do homem interior e novo diz Santo Agostinho consiste em modelar o homem sua vida pelo exemplo de pessoas boas e santas mas continuando a caminhar pegado agraves cadeira e cosido agraves paredes e a sustentar-se com leite

O segundo degrau eacute aquele em que o homem jaacute natildeo olha apenas para os modelos exteriores inclusive os de homens bons Mas corre a buscar pressuroso a doutrina e o conselho de Deus e da sabedoria divina dando as costas agrave humanidade e voltando o rosto para Deus deixando o regaccedilo da matildee e sorrindo para o pai

O terceiro degrau consiste em apartar-se o homem mais e mais de sua matildee e em distanciar-se sempre mais de seu colo fugindo ao cuidado e depondo o temor de modo tal que embora pudesse praticar o mal e a injusticcedila sem dar escacircndalo a toda a gente nem assim queria faze-lo tatildeo iacutentima eacute sua uniatildeo de amor com Deus e tatildeo zelosa a sua diligecircncia (que natildeo descansa) ateacute que seja introduzido na alegria na doccedilura e na bem-aventuranccedila que lhe faccedilam aborrecer tudo que lhe eacute dessemelhante e alheio

O quarto degrau consiste em que o homem cresccedila e se fixe mais e mais no amor e em Deus dispondo-se assim a enfrentar com vontade e gosto com sofreguidatildeo e alegria toda espeacutecie de provaccedilatildeo de tentaccedilatildeo de contrariedade e de padecimento

O quinto degrau estaacute em que o homem viva em toda a parte na paz interior descansando tranquumlilamente na riqueza e na superabundacircncia da suprema e inefaacutevel sabedoria

O sexto degrau consiste no despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da eternidade divina pelo esquecimento total e perfeito da vida transitoacuteria e temporal de tal modo que feito filho de Deus e atraiacutedo por Deus o homem se transmude em imagem de Deus349

Eacute nobre aquele que se despoja de si e nasce do alto O segredo da nobreza eacute revelado pelo Filho

de Deus

Com referecircncia a este homem interior e nobre no qual se encontra impressa e implantada a semente de Deus e a imagem de Deus e agrave maneira como se manifesta esta semente e esta imagem da natureza e da essecircncia divina o Filho de Deus e como dela se toma conhecimento e tambeacutem como por vezes ela se oculta ndash sobre isso o grande mestre Oriacutegenes apresenta uma comparaccedilatildeo O Filho de Deus diz estaacute no fundo da alma como uma fonte viva350

A alma aniquilada eacute nobre porque pelo aniquilamento acolhe a obra de Deus nela Essa alma

que leva a marca de Deus como o lacre toma a forma do selo afirma Marguerite Porete sabe

que a obra de Deus na criaccedilatildeo natildeo eacute condenaacute-la mas conformaacute-la a Ele351 Este eacute o segredo do

Filho que eacute dado a ela pelo amor do Espiacuterito Santo A alma aniquilada eacute portanto semelhante agrave

divindade A liberdade perfeita que define a nobreza vem pela graccedila de Deus que daacute agrave alma o

conhecimento do seu nada conhecimento que leva do mais profundo abismo agrave mais elevada

condiccedilatildeo Em sua nobreza a oraccedilatildeo e a prece da alma jaacute natildeo pede mais nada repousa em paz

Esses teoacutelogos e teoacutelogas vatildeo constituir no interior da teologia cristatilde medieval uma tradiccedilatildeo ao

lado e em controveacutersia com a teologia escolaacutestica mais racional e cientiacutefica Miacutestica porque se

funda na experiecircncia da alma que procura julgar a realidade com os olhos de Deus e que para

isso considerando a diferenccedila imensa que separa o finito do infinito deve percorrer um

itineraacuterio atravessar suas proacuteprias faculdades despojando-se da inteligecircncia e da vontade

349 Mestre ECKHART A Miacutestica de Ser e de natildeo Ter p 92-93 350 Ibidem p 93 351 Ibidem p 115

confiando que ao longo desse trabalho Deus vem a ela e fazendo aiacute sua morada transforma

seu saber e seu querer

Miacutestica eacute entatildeo nesse contexto discurso sobre a relaccedilatildeo com Deus daquele que faz um percurso

que implica o envolvimento num trabalho de despojamento de si para deixar-se transformar pelo

totalmente Outro que em sua grandeza e liberdade eacute absolutamente transcendente impossiacutevel

para o entendimento e o querer humanos Esse processo em muitos escritos desses que seratildeo

posteriormente eles mesmos denominados miacutesticos eacute descrito como caminho que conduz a um

alto grau de intimidade experiecircncia de amor que seraacute expressa como nos poemas de Satildeo Joatildeo

da Cruz atraveacutes de imagens nupciais352

Em uma noite escura De amor em vivas acircnsias inflamada Oh ditosa ventura Saiacute sem ser notada Jaacute minha casa estando sossegada Na escuridatildeo segura Pela secreta escada disfarccedilada Oh ditosa ventura Na escuridatildeo velada Jaacute minha casa estando sossegada Em noite tatildeo ditosa E num segredo em que ningueacutem me via Nem eu olhava coisa Nem outra luz nem guia Aleacutem da que no coraccedilatildeo me ardia Essa luz me guiava Com mais clareza que a do meio-dia Aonde me esperava Quem eu bem conhecia Em siacutetio onde ningueacutem aparecia Oh noite que me guiaste Oh noite que juntaste Amado com amada Amada no Amado transformada Em meu peito florido Que inteiro para ele soacute guardava Quedou-se adormecido E eu terna o regalava E dos cedros o leque o refrescava

352 Segundo comentaacuterio de Satildeo Joatildeo da Cruz esses satildeo versos que tratam do modo e maneira que tem a alma no caminho da uniatildeo de amor com Deus (Cf Satildeo Joatildeo da Cruz Obras Completas p439)

Da ameia brisa amena Quando eu os seus cabelos afagava Com sua matildeo serena Em meu colo soprava E meus sentidos todos transportava Esquecida quedei-me O rosto reclinado sobre o Amado Tudo cessou Deixei-me Largando meu cuidado Por entre as accedilucenas olvidado353

Essa podemos dizer satildeo as caracteriacutesticas fundamentais do que se entendeu como miacutestica ou

misticismo discurso sobre a experiecircncia de Deus que toma impulso nos paiacuteses do norte entre os

seacuteculos XII e XIII e que floresce tambeacutem nos seacuteculos XVI na Espanha e no seacuteculo XVII na

Franccedila Esse discurso que recebeu grandes criacuteticas do iluminismo354 ganha atualmente

renovada atenccedilatildeo pela contribuiccedilatildeo que pode dar ao contexto contemporacircneo desafiado pelo

retorno agrave preocupaccedilatildeo com o sagrado e pela diversidade religiosa

Contribuiccedilotildees

Natildeo se pode negar que um dos grandes desafios da teologia hoje mais do que o ateiacutesmo eacute o

enfrentamento da diversidade religiosa o obrigatoacuterio encontro entre tradiccedilotildees religiosas num

mundo globalizado e tenso entre a violecircncia e a promessa de uma frutuosa convivecircncia Muitas

vezes o impulso para o diaacutelogo representa mais um desejo de assimilaccedilatildeo do que verdadeiro

respeito agrave diferenccedila e ao valor da alteridade Nesse contexto e em vista do itineraacuterio que

fizemos procurando destacar alguns pontos importantes para o entendimento da miacutestica

queremos propor aqui algumas consideraccedilotildees sobre as contribuiccedilotildees da mesma para a teologia

Em primeiro lugar e fundamentalmente a miacutestica ensina um grande respeito agrave verdade

abrangente de Deus que eacute sempre mais do que aquilo que algueacutem reconhece e percebe Misteacuterio

353 Satildeo Joatildeo da Cruz opcit p 438-439 354 Para os modernos a miacutestica contradiz a eacutetica Entendida como feacute no milagre isto eacute feacute em que o humano estaria submetido a uma influecircncia do sobrenatural a miacutestica levaria necessariamente ao quietismo Para Kant na obra ldquoO conflito das faculdadesrdquo a miacutestica se refere a uma experiecircncia que natildeo podendo se reduzir agrave regra da razatildeo acaba sendo apenas interpretaccedilatildeo (aleatoacuteria segundo o nosso entender) de certas sensaccedilotildees conhecimento interpretativo sem aplicaccedilatildeo praacutetica Para aceitarmos que a transformaccedilatildeo do humano em um humano melhor seja fruto de uma experiecircncia miacutestica afirma Kantldquo() o homem deveria demonstrar que nele se realizou uma experiecircncia sobrenatural a qual eacute em si mesma uma contradiccedilatildeo Poderia quando muito admitir-se que o homem teria em si mesmo feito uma experiecircncia (por exemplo de determinaccedilotildees novas e melhores da vontade) de uma transformaccedilatildeo que ele natildeo sabe explicar de outro modo a natildeo ser por milagre por conseguinte de algo sobrenatural Mas uma experiecircncia da qual nem sequer se pode convencer que eacute de fato experiecircncia porque (enquanto sobrenatural) natildeo pode reduzir-se a regra alguma da natureza do nosso entendimento nem comprovar-se eacute uma interpretaccedilatildeo de certas sensaccedilotildees a cujo respeito natildeo se sabe o que com elas se haacute-de fazer se teratildeo um objeto efetivo para o conhecimento ou se seratildeo simples devaneiosrdquo (Immanuel KANT O conflito das faculdades p70)

sempre Absconditus nunca totalmente revelado porque sempre maior do que se pode pensar e

ateacute de tudo que se pode desejar Nesse sentido a afirmaccedilatildeo jaacute presente na tradiccedilatildeo miacutestica

cristatilde expressa na Teologia Miacutestica de Dioniacutesio Areopagita que Deus eacute Treva luminosa parece

profundamente questionadora de posturas que se arrogam detentoras da totalidade do saber

sobre Deus Para a tradiccedilatildeo miacutestica todo conceito positivo sobre Deus por mais importante que

deva ser considerado em sua funccedilatildeo de sustentaccedilatildeo no caminho para Deus se relativiza ou se

desfaz na medida da aproximaccedilatildeo com o Deus vivo absolutamente transcendente

Em segundo lugar e articulado a esse primeiro ponto a tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde mostra que o

misteacuterio de Deus se revela como Amor transformador na intimidade daquele que se dispotildee a

desprender-se de tudo e ateacute de si mesmo aquele que sabe reconhecer seu limite sua fraqueza e

sua pobreza Experimentar Deus supotildee portanto testemunham os miacutesticos atravessar e

ultrapassar tudo o que serve de mediaccedilatildeo no caminho para essa experiecircncia todos os ldquonomes

transferiacuteveis dos objetos sensiacuteveis agraves coisas divinas formas e figuras divinas partes

instrumentos lugares divinos ornatos iras afliccedilotildees dores coacuteleras ebriedades excessos

juramentos imprecaccedilotildees sonos vigiacutelias e todas as sacras figuraccedilotildees da representaccedilatildeo de

Deusrdquo355 como mostra Dioniacutesio e supotildee como ousa afirmar Mestre Eckhart perder ateacute mesmo

a Deus

Se a alma contempla Deus na qualidade de Deus enquanto ele eacute imagem ou na medida que ele eacute trinitaacuterio existe nela uma insuficiecircncia Mas quando todas as imagens da alma satildeo descartadas e ela contempla somente o uacutenico Uno o ser despido da alma descobre o ser despido sem forma da unidade divina que eacute o ser superessencial que repousa impassiacutevel nele mesmo Ah Maravilha das maravilhas que nobre sentimento existe no fato de natildeo poder o ser da alma sofrer outra coisa a natildeo ser a uacutenica e pura unidade de Deus356

Essas duas grandes caracteriacutesticas da experiecircncia de Deus enfatizadas pela miacutestica a saber a

abertura ao misteacuterio incontiacutevel de Deus e a necessidade do despojamento como caminho para o

encontro eacute hoje uma grande contribuiccedilatildeo para o estabelecimento de uma postura aberta ao

diaacutelogo que sempre esbarra no confronto entre imagens positivas de Deus e definiccedilotildees de

caminhos de Salvaccedilatildeo A miacutestica alerta para a fragilidade de todo edifiacutecio que se arroga como

uacutenico caminho para Deus Afirmando a grandeza e a liberdade infinita de Deus propotildee uma

desconfianccedila criacutetica de todo caminho positivo para o encontro com Deus e afirma a necessidade

do reconhecimento dos limites de toda construccedilatildeo humana que apoacuteia esse caminho Confia mais

na via do despojamento e no potencial da pobreza que promove abertura para a transformaccedilatildeo

amorosa de Deus do que no poder das instituiccedilotildees e suas indicaccedilotildees dos meios de salvaccedilatildeo A

tradiccedilatildeo miacutestica convida a natildeo perder de vista a distinccedilatildeo entre os meios que conduzem a Deus

355 Cf nota 8 356 Esse trecho do Sermatildeo 83 de Mestre Eckhart estaacute citado em Jean Franccedilois Malherbe Sofrer Deus A pregaccedilatildeo de Mestre Eckhart AparecidaSP Editora Santuaacuterio 2006 p 35

dispostos no interior das religiotildees e a experiecircncia da Presenccedila Dele que transborda todos as

limites ateacute mesmo os limites dos quais natildeo escapam as religiotildees

Uma terceira caracteriacutestica do discurso miacutestico sobre a experiecircncia de Deus a se destacar diz

respeito agrave ecircnfase na intimidade de determina a maneira como esse discurso articula

singularidade e universalidade O problema do diaacutelogo muitas vezes estaacute associado ao discurso

sobre Deus que procura sempre uma projeccedilatildeo universal O miacutestico a miacutestica ao contraacuterio natildeo

tem como ponto de partida as verdades universais celebra sua proacutepria experiecircncia fala em

primeira pessoa da sua intimidade com Deus No entanto esse mesmo discurso que eacute particular

ao mesmo tempo testemunha que o relacionamento com Deus eacute absolutamente livre que natildeo se

prende a nenhuma determinaccedilatildeo de pessoa de lugar ou de tradiccedilatildeo A miacutestica revela que o

Amor de Deus manifestado na intimidade do sujeito tem abertura universal A miacutestica ensina

entatildeo que todo edifiacutecio construiacutedo toda tradiccedilatildeo religiosa determinada pelas condiccedilotildees

limitadas do tempo e do espaccedilo a que pertence tem no seu fundamento um momento de

intimidade com Deus que se manifesta como uma experiecircncia universal possiacutevel para todos

mas que natildeo eacute posse de ningueacutem

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WILDERINK Ocarm Vital J G Miacutestica e Miacutesticos Belo Horizonte Ed Divina Misericoacuterdia 2004

De Beata Vita de Santo Agostinho Uma reflexatildeo sobre a felicidade

Neuza de Faacutetima Brandellero 357

De Beata Vita eacute escrito em forma de diaacutelogo comum em sua eacutepoca e com uma

estrutura simples Compotildeem-se de um uacutenico livro abrangendo quatro capiacutetulos Comentarei os

trecircs paraacutegrafos do primeiro capiacutetulo da obra De Beata Vita de Santo Agostinho O jovem

Agostinho nos apresenta o magniacutefico quadro da humanidade navegando no oceano da vida em

direccedilatildeo ao porto da Filosofia interceptado por escolho escarpado ( o orgulho ) A alegoria da

navegaccedilatildeo

ldquoSe fosse possiacutevel atingir o porto da Filosofia uacutenico ponto de acesso agrave regiatildeo e terra

firme da vida felizrdquo358 A Filosofia seria o porto a terra firme e a felicidade seriam onde nossa

viagem nossa navegaccedilatildeo terminaria Mas o nuacutemero de pessoas que atingem a terra firme eacute

muito pequeno Por que eacute tatildeo difiacutecil chegar ao porto Quais os obstaacuteculos Aos poucos aquelas

pessoas vatildeo aprendendo a superar os perigos do mar conduzindo a navegaccedilatildeo com cuidado ateacute

o porto

Todos convidados estatildeo atentos ao que Agostinho vai falar ldquoCom efeito estamos

lanccedilados neste mundo como em um mar tempestuoso e por assim dizer ao acaso e agrave aventura

seja por Deus seja pela natureza seja pelo destino seja ainda por nossa proacutepria vontaderdquo359 O

mar eacute o proacuteprio mundo nossa existecircncia com suas tempestades e seus medos Somos lanccedilados

neste mar tempestuoso O nosso barco quer retornar agrave terra firme O que garante esse retorno agrave

paacutetria tatildeo almejada eacute o porto ou seja a filosofia Haacute uma valorizaccedilatildeo da filosofia sendo ela

porto que vai levar ateacute agrave paacutetria tatildeo almejada que eacute a vida feliz A paacutetria eacute aquilo que todos

querem encontrar a felicidade

Segundo Santo Agostinho existem trecircs tipos de navegantes rumos agrave Filosofia

A primeira eacute daqueles que tendo chegado agrave idade em que a razatildeo domina afastam-se da terra mas natildeo demasiadamente Com pequeno impulso e algumas remadas chegam a fixar-se em algum lugar de tranquumlilidade de onde manifestam sinais luminosos por meio de obras realizadas na intenccedilatildeo de atingir o maior nuacutemero possiacutevel de seus concidadatildeos para estimulaacute-los a virem ao seu encalccedilo360

Aqueles que amadurecidos pela razatildeo sabem se conduzir se afastam da regiatildeo soacutelida e

se conduzem agrave tranquumlilidade dando o exemplo a ser seguido por outros

A segunda espeacutecie de navegantes ao contraacuterio da primeira eacute constituiacuteda dos que iludidos pelo aspecto falacioso do mar optam por lanccedilar-se ao longe Ousam aventurar-se

357 Doutoranda em Ciecircncias da Religiatildeo na Pucsp 358 SANTO AGOSTINHO De Beata Vita I 1 359 IdemIbidem I 1 360 Idem Ibidem I 2

distante de sua paacutetria e com frequumlecircncia esquecem-se dela Se a esses natildeo sei por qual inexplicaacutevel misteacuterio sopra-lhes o vento em popa perdem-se nos mais profundos abismos da miseacuteria ( ) Nessa segunda categoria entretanto acontece que alguns por natildeo terem arriscado longe de mais satildeo trazidos de volta ao porto graccedilas a adversidades menos danosas Tais por exemplo os que sofrem alguma vicissitude em seus bens ou grave dificuldade em seus negoacutecios A esse contacto acordam de certa forma no porto de onde natildeo mais os tiraraacute nenhuma promessa nenhum sorriso ilusoacuterio do mar 361

Estes navegantes longe da terra firme se deixando levar pelo vento que lhes parece

favoraacutevel sem saber que satildeo conduzidos pelos prazeres e honras enganadoras Parecendo-lhes

tudo tatildeo agradaacutevel por que procurar outros caminhos Talvez estes navegadores natildeo tenham ido

longe o suficiente para distinguir o caminho certo Estes navegadores satildeo aqueles que por natildeo

terem nada a perder se guiam por falsos saacutebios e conduzem seus destinos achando que iratildeo

encontrar o porto seguro

Finalmente haacute a terceira categoria de navegantes a meio termos entre as outras duas Compreende os que desde o iniacutecio da adolescecircncia ou apoacutes terem ido longe e prudentemente balanccedilados pelo mar natildeo deixam de dar sinais de se recordarem da doce paacutetria ainda que no meio de vagalhotildees Poderiam entatildeo recuperaacute-la de imediato sem se deixar desviar ou atrasar Frequumlentemente poreacutem acontece que perdem a rota em meio a nevoeiro ou fixam astros que declinam no horizonte Deixam-se reter pelas doccediluras do percurso Perdem a boa oportunidade do retorno Erram longamente e muitas vezes correm ateacute o risco de naufraacutegio A tais pessoas sucede por vezes que alguma infelicidade adveacutem em meio agraves suas fraacutegeis prosperidades como por exemplo uma tempestade a desbaratar seus projetos362 Seratildeo assim reconduzidos agrave desejada e apraziacutevel paacutetria onde recuperaratildeo o sossego 363

Esta terceira classe por sua vez eacute daqueles que se lanccedilam ao mar ainda muito jovens e

atraveacutes da contemplaccedilatildeo recordam da sua paacutetria querida E assim reconduz-se a ela mesmo

atraveacutes das adversidades do tempo enfrentando ventos fortes e neblinas desviando-os do

361 Idem Ididem I 2 362 CREMONA Carlo Agostinho de Hipona P62-66 Esta metaacutefora colocada nos primeiros paraacutegrafos do De Beata Vita eacute em suma confidecircncia pessoal de sua vida que Agostinho faz a Macircnlio Teodoro Eis como Carlo Cremona nos apresenta O relato recorda-nos certamente a Sexta sinfonia de Beethoven A vida eacute semelhante a um mar natildeo igual para todos As aacuteguas tranquumlilas convidam-te a te distanciares da paacutetria e do porto Aacuteguas sempre enganosas De improviso pode desabar uma tempestade Tu de aforas entatildeo por acaso Elas te arrastam como naacuteufrago para a paacutetria Quem se afasta da paacutetria por mares enganosos tambeacutem se natildeo passa por tempestades eacute infeliz E seria caso de augurar-lhe temporal bem cruel pois nem sempre eacute desventura irreparaacutevel se te devolve violentamente agrave terra firme Mas ao primeiro sinal de tempestade temem e retornam apavorados ao porto Eacute a sua salvaccedilatildeo Vem depois uma terceira categoria de navegantes aqueles que seja como for se encontram em alto mar e lutam com vagalhotildees tendo os olhos impedidos de divisar um farol distante bem ao longe que indica a paacutetria amada Ou se neacutevoa oculta aquela luz ficam com os olhos a procurar uma estrela indicadora a declinar Alguns tendo recuperado alguma efecircmera seguranccedila retardam ainda o retorno Os homens falam sempre de tempestade como de desventura No entanto haacute tempestades que reconduzem agrave margem segura precisamente graccedilas agrave sua violecircncia Apud SANTO AGOSTINHO A vida feliz diaacutelogo filosoacutefico Satildeo Paulo Paulinas 1993 p 70 Nota de rodapeacute 8 363 SANTO AGOSTINHO De Beata Vita I 2

caminho e agraves vezes arriscando suas proacuteprias vidas encontram o local desejado podendo entatildeo

regozijar da tranquumlilidade da terra firme

Podemos perceber atraveacutes desta alegoria que para Agostinho a terra firme ou seja o

lugar da felicidade seraacute encontrado por meio da filosofia A meta ou o fim a ser alcanccedilado pelo

navegante seraacute retornar ao local de onde partiu para sua vivecircncia total364 Percebe-se

implicitamente que a utilizaccedilatildeo da alegoria parece fazer uma comparaccedilatildeo aos conflitos internos

vividos pelo ser humano que seria a navegaccedilatildeo no mar ou mais a inquietaccedilatildeo do filoacutesofo que

estaacute agrave busca da certeza da sabedoria encontrando a inveacutes atalhos desvios turbulecircncias em sua

caminhada de retorno ao porto Porto paacutetria terra e lugar seguro satildeo palavras que expressam a

finalidade do que se procura O porto eacute ponto de saiacuteda e partida mas tambeacutem o ponto de

chegada Angustiado no interior da alma e que por si soacute natildeo encontra explicaccedilatildeo nem o porquecirc

de tanta dor e da incerteza dos passos que se deve dar e tambeacutem nem por onde e nem para onde

se encaminha Onde estaacute a verdade Nas coisas da terra Entre os seres humanos Em Deus A

criatura procura seu criador sem saber como se conduzir para encontraacute-Lo

Para Agostinho eacute necessaacuterio ser forte e evitar um enorme rochedo que se

encontra na entrada do porto365 Porque existe neste lugar uma luz enganadora que brilha de tal

maneira e faz pensar aos que aiacute chegaram a ter encontrado a terra da felicidade Pois a filosofia

seduz prometendo a satisfaccedilatildeo dos desejos e detendo estas pessoas por longo tempo Estas

pessoas por sua vez se declinando com o que encontram chegam a desprezar os outros

navegantes Aqueles que se dedicam agrave filosofia natildeo devem procurar por honra e gloacuteria Pois este

rochedo eacute fraacutegil racha e os engole em trevas profundas e a soberba deixa-os longe da doce

paacutetria

Ora que outro rochedo a razatildeo indica como temiacutevel aos que se aproximam da filosofia do que esse da busca orgulhosa Pois esse rochedo eacute oco interiormente e sem consistecircncia Aos que se arriscam a caminhar sobre ele abre-se o solo a tragaacute-los sorvecirc-los e submergindo-o em profundas trevas Desvia-os assim da esplecircndida mansatildeo que havia apenas entrevisto366

Santo Agostinho continua dizendo que haacute vaacuterios tipos de navegantes Haacute aqueles que

sempre estatildeo no mar mas que perderam o rumo devido agrave mentira ilusatildeo e erros mas devido agrave

providecircncia de Deus conseguiram voltar Ele mostra de maneira bem sucinta e chama a atenccedilatildeo

364 Note-se que esta alegoria ao fundar a universalidade do desejo da felicidade aponta-o simultaneamente como meta e tarefa Se o percurso da tarefa culmina em escatologia o homem que navega comprazendo-se embora no ato da navegaccedilatildeo natildeo pode deixar de regressar ao porto donde zarpou a meta seraacute a sua vivecircncia total Cf Idem Ibidem nota de rodapeacute 4 p 93 365 Que o leitor medite esta descriccedilatildeo da vangloacuteria monte situado agrave entrada do porto da sabedoria barrando a entrada e natildeo menos perigoso para os que natildeo deixaram o porto Constitui obstaacuteculo aos que chegam assim como atraccedilatildeo aos que laacute permanecem Quem pode escapar a ele Eacute rochedo oco onde se afunda se soccedilobra na obscuridade nada mais se podendo ver com clareza SANTO AGOSTINHO De Beata Vita nota de rodapeacute n 10 p 71 366 Idem De Beata Vita I 3

de que na entrada do porto haacute uma rocha significando a possibilidade do erro e da ilusatildeo

Aquele que chega ateacute o porto da filosofia portanto atraveacutes da filosofia e da razatildeo comeccedila a

buscar a verdadeira sabedoria a verdade absoluta ele tem que tomar cuidado para que sua

busca natildeo seja impulsionada pela vaidade vatilde gloacuteria ou seja o orgulho Natildeo pode ser o orgulho

ou a vatilde gloacuteria que impulsiona o ser humano a buscar a verdade e a sabedoria prejudicaraacute a

pessoa e sua filosofia mundana que ao inveacutes de ajudar a chegar agrave paacutetria almejada que eacute a vida

feliz vai se perder no meio da vatilde gloacuteria e ilusatildeo

Com esta alegoria da navegaccedilatildeo Santo Agostinho vai introduzir seus convidados no

contexto da natureza da alma e coloca a felicidade como um dom de Deus Talvez a felicidade

natildeo seja uma mera conquista humana A questatildeo da alma eacute aquilo que haacute de mais semelhante

entre o ser humano e Deus E a felicidade mesmo que natildeo esteja claro percebe-se que haacute um

viacutenculo com Deus na conservaccedilatildeo da mesma Eacute preciso buscar a felicidade na interioridade pois

eacute na natureza da alma que existe uma certa possibilidade de resposta para estas questotildees

REFEREcircNCIAS

CREMONA Carlo Agostinho de Hipona Petroacutepolis Vozes 1990 SANTO AGOSTINHOSoliloacutequios e a vida feliz Satildeo Paulo Paulus 1998 Traduccedilatildeo de Nair de Assis Oliveira ----------A vida feliz diaacutelogo filosoacutefico Satildeo Paulo Paulinas 1993 Traduccedilatildeo de Nair de Assis Oliveira

GT Interculturalidade e Religiatildeo EMENTAS

Existe uma hermenecircutica afroamericana Proposta de um ensaio de linguagem teoacutelogica visual Reinaldo Joatildeo De Oliveira Joe Marccedilal G Santos Existe um pensar hermenecircutico negro A partir dessa questatildeo buscamos refletir uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo da cultura na construccedilatildeo local de saber de apropriaccedilatildeo contextual e poliacutetica de linguagem A proposta dessa reflexatildeo se vale da metaacutefora do ldquoolhar-escutardquo para pensar a proacutepria teologia concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teoacuterico de uma etnografia natildeo como mera produccedilatildeo de imagem e representaccedilatildeo desobre o outro mas na construccedilatildeo um olhar-narrativo uma forma de mediaccedilatildeo cognitiva e eacutetica relacionada situada e que se movimenta junto dessa alteridade O objetivo dessa proposta eacute fazer o recorte teoacuterico do que seria um ensaio de linguagem teoloacutegica determinada pela racionalidade imageacutetica metafoacuterica e narrativa proacutepria agrave cultura afroamericana postulando uma razatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidade Venha o teu Reino ilustraccedilotildees indagaccedilotildees e ponderaccedilotildees sobre interculturalidade e religiatildeo a partir das HQs Iuri Andreacuteas Reblin Apresenta-se o tema da interculturalidade e da religiatildeo a partir do universo das Histoacuterias em Quadrinhos em particular das histoacuterias dos super-heroacuteis Surgidos na primeira parte do seacuteculo XX os super-heroacuteis satildeo mitologias modernas que expressam o universo de valores do ser humano o que ele aspira o que ele crecirc o que ele espera o que ele teme Como narrativas mitoloacutegicas as histoacuterias dos super-heroacuteis tornam-se loacutecus de representaccedilatildeo da realidade cultura religiatildeo sociedade poliacutetica tudo pode ser encontrado em suas histoacuterias em proporccedilotildees desiguais de acordo com aquilo que se intenta contar A partir dessa premissa o presente texto lanccedila um olhar sobre a forma com que acontece o intercacircmbio cultural e a transposiccedilatildeo de um super-heroacutei a outros contextos e por meio de ilustraccedilotildees e ponderaccedilotildees conjetura e de igual modo como a religiatildeo e o estudo sobre ela se inserem nesse contexto Interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica uma abordagem latino-americana a partir do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade Roberto E Zwetsch O autor apresenta o desafio que a pluralidade de culturas na Ameacuterica Latina representa para a Educaccedilatildeo Teoloacutegica Ecumecircnica Seu ponto de partida seraacute uma anaacutelise do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade lanccedilado em dezembro de 2007 por uma ONG de La Paz Boliacutevia Servicios Pedagoacutegicos y Teoloacutegicos documento coordenado pelo Dr Matthiacuteas Preiswerk e que depois foi assinado por quase uma centena de teoacutelogas e teoacutelogos de diferentes paiacuteses latino-americanos representando um referencial teoacuterico e pedagoacutegico para a compreensatildeo da Interculturalidade na Educaccedilatildeo Teoloacutegica que se oferece em Faculdades de Teologia e Seminaacuterios em toda a regiatildeo e Caribe As culturas e a Biacuteblia Flaacutevio Schmitt

A Biacuteblia eacute um livro forjado ao longo do tempo No processo de formaccedilatildeo do texto sagrado de judeus e cristatildeos satildeo reunidas informaccedilotildees e contribuiccedilotildees de diversos grupos geograacutefica e culturalmente distintos Atraveacutes de diferentes processos sociais satildeo reunidos diferentes aspectos que contribuem de forma heterogecircnea na constituiccedilatildeo do texto atual Comeccedila pelas culturas semitas do oriente passa pela tradiccedilatildeo ocidental grega e incorpora inuacutemeras tradiccedilotildees locais O resultado eacute uma siacutentese que reflete tensotildees ajustes e consensos perceptiacuteveis no texto sagrado Trabalho com mulheres negras no Quilombo do ValongosTijucas-SC Rita de Caacutessia Maraschin da Silva Silva Como a experiecircncia das mulheres negras da comunidade quilombola dos Valongos encravadas no interior de Porto Belo na Grande Florianoacutepolis motivadas pela feacute cristatildeo adventista do 7ordm dia desejam contribuir no processo de emancipaccedilatildeo como mulheres visando a melhoria das suas condiccedilotildees de vida e dos niacuteveis de organizaccedilatildeo atraveacutes de processos de qualificaccedilatildeo social e profissional formaccedilatildeo e apoio a iniciativas grupais de geraccedilatildeo de trabalho e renda para que possam ter maior participaccedilatildeo e intervenccedilatildeo no desenvolvimento local sustentaacutevel com equidade de gecircnero embasados na democracia direta na cooperaccedilatildeo e na solidariedade A questatildeo negra e a interculturalidade em evidecircncia abordagem discussatildeo e inclusatildeo nos curriacuteculos escolares e dos cursos de formaccedilatildeo acadecircmica Selenir Correcirca Gonccedilalves Kronbauer

A partir da temaacutetica pretende-se abrir possibilidades para uma reflexatildeo e discussatildeo sobre a questatildeo negra cultura e religiosidade desenvolvida nos curriacuteculos escolares e dos cursos de formaccedilatildeo em geral do Curso de Teologia em particular Toda essa questatildeo passa pela necessidade de organizaccedilatildeo de um programa que venha subsidiar as accedilotildees pedagoacutegicas realizadas nas instituiccedilotildees Com base na experiecircncia vivida na Faculdades EST atraveacutes da disciplina Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira o tema nos remete a essas reflexotildees seguidas de sugestotildees para o desenvolvimento de accedilotildees concretas que venham desencadear atividades que visem a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias para o cumprimento da Lei 106392003 no que se refere ao cumprimento dos art 26-A e 79-B da LDB

GT Interculturalidade e Religiatildeo TEXTOS

Existe uma hermenecircutica afroamericana Proposta de um ensaio de linguagem teoacutelogica visual

Reinaldo Joatildeo De Oliveira

Joe Marccedilal G Santos

Nosso maior desafio eacute o de uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo da cultura na construccedilatildeo local de saber de apropriaccedilatildeo contextual e poliacutetica de linguagem

O diaacutelogo inter-cultural inter-religioso e ecumecircnico como ldquoespaccedilo de re-conhecimento e legitimaccedilatildeo de culturardquo nos auxilia a ldquosituar-nos dentro do mundordquo Neste foco desenvolvemos um diaacutelogo partindo de uma ldquointerpretaccedilatildeordquo sobre o tema que aqui nos impele a reflexatildeo ldquoExiste um pensar hermenecircutico-teoloacutegico negrordquo367 O objetivo passa ser portanto esse ldquopensarrdquo como accedilatildeo situada e por isso o sentido de um ldquosituar-serdquo em determinado ldquolugarrdquo

A hermenecircutica se torna ldquocasardquo (oikos) de um embasamento reflexivo e vivencial do ldquoolhar-escutardquo do ldquoaprendizado-ensinamentordquo na perspectiva teoloacutegica afro-americana Sem duacutevida que nossa busca compreende os fundamentos do fazer teoloacutegico como missatildeo de concepccedilatildeo de um olhar para a teologia de modo diferente e assim uma busca pela epistemologia da proacutepria teologia ou do que seja ldquoesse tipo de fazer teologiardquo

Hermenecircutica eacute um termo carregado de significado e de histoacuteria Originalmente o uso linguumliacutestico do ldquotermo gregordquo situa-se num contexto religioso o sentido de ldquoproclamaccedilatildeordquo submetido a que estaacute impliacutecito no nome de Hermes o mensageiro dos deuses a quem se atribuiacutea a invenccedilatildeo da linguagem Assim sendo esta a origem do termo no grego desde o iniacutecio estaacute ligado com a divindade (ou os ldquodeuses do Olimpordquo)

O uso linguumliacutestico de mesmo fora do mundo claacutessico continua dentro do acircmbito da teologia cristatilde caracteriacutestica essa que igualmente se verificava na antiga arte da intimamente vinculada agrave esfera sacral Foi Gadamer quem elaborou uma teoria da compreensatildeo baseando-se nos trabalhos iniciados por Schleiermacher Dilthey e Heidegger368 tentando assim valorizar o preconceito (via de acesso aos conceitos) O

Mestrando em Teologia (PPG- FATEOPUCRS) Realiza pesquisa na aacuterea da Teologia Afroamericana sob orientaccedilatildeo do professor Dr Luiz Carlos Susin (Nuacutecleo de Pesquisa Teologia e Sociedade) Doutor em Teologia (IEPGEST) integra o Nuacutecleo de Pesquisa Teologia e Sociedade (PUCRS) coordenada de atividades da Secretaria Permanente do Foacuterum Mundial de Teologia e Libertaccedilatildeo (FMTL) 367 Remetendo aqui ao livro organizado por Antonio Aparecido da Silva ldquoExiste um pensar teoloacutegico negrordquo Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque) 368 Descrevendo acerca do conceito de hermenecircutica e em sua elaboraccedilatildeo interpretativa sobre este mesmo assunto que levou-o a chegar nas suas proacuteprias consideraccedilotildees sem poreacutem abandonar uma construccedilatildeo Gadamer escreve que ldquogostaria de discutir de maneira introdutoacuteria o termo hermenecircuticardquo para depois aprofundaacute-lo no seguinte ldquoEsse natildeo eacute nenhum termo usual no acircmbito da filosofia O jurista sabia o que esse termo significava mas natildeo o considerava ndash outrora ndash como efetivamente importante Com o teoacutelogo as coisas natildeo eram diferentes Mesmo em Schleiermacher o avocirc da hermenecircutica moderna a hermenecircutica ainda se mostra quase como uma disciplina auxiliar e em todo caso como subordinada agrave

preconceito significa em Gadamer uma preacute-compreensatildeo historicamente determinada que possibilita um primeiro acesso agrave compreensatildeo mais aprofundada na realidade do objeto ndash ldquoo sujeito ao ver um objeto jaacute conhecido natildeo precisar refletir sobre elerdquo O meacutetodo hermenecircutico avanccedila dessa preacute-compreensatildeo a uma curiosidade de conhecer as coisas desde sua gecircnese abordar a realidade para saber de sua biografia visitar suas raiacutezes e compartilhar de seu chatildeo A partir daiacute Gadamer iraacute falar da fusatildeo dos horizontes que seria o alargamento do nosso horizonte limitado mediante a compreensatildeo do outro por exemplo o que me interessaria por exemplo eacute o meu ponto de vista fazendo (realizando) uma fusatildeo de horizontes (o meu e o do outro) para compreender

A fusatildeo dos horizontes nos interessa enquanto nos possibilita a abordagem eacutetica como anaacutelise acerca desta proposta de leitura ldquofusatildeordquo remete a interaccedilatildeo entre sujeitos em niacuteveis intersubjetivos e intercomunicativos condicionando agrave hermenecircutica a uma accedilatildeo e situaccedilatildeo poliacutetica A hermenecircutica carrega consigo uma bagagem teoacuterica e de significaccedilatildeo estritamente absorvida desde uma cultura e tradiccedilatildeo Contudo nosso modo de pensar e interagir com as culturas e tudo o que refletimos no campo teoacuterico das letras e das ciecircncias pode tambeacutem demonstrar uma certa maneira de conceber um pensamento proacuteprio que mesmo nascente pode tornar-se algo estritamente latente (mesmo ideoloacutegico) para a reflexatildeo teoloacutegica Assim a noccedilatildeo de fusatildeo de horizontes se torna um princiacutepio criacutetico e ao mesmo tempo criativo sugerindo que a hermenecircutica irrompe de um envolvimento entre sujeitos

Disso tudo depende onde estamos ndash o lugar socioloacutegico e epistemoloacutegico ndash quando iniciamos a nossa reflexatildeo ou melhor a partir de onde construiacutemos nosso pensamento E natildeo apenas isso nossa proposta eacute agregar a essa pergunta outra que muitas vezes eacute relegada pela teologia natildeo apenas a partir de onde construiacutemos pensamento mas com o que o fazemos Que material e temas usamos Essa pergunta nos levaria a fazer uma criacutetica ideoloacutegica da cultura ldquoescritardquo em vista da ldquooralidaderdquo que determina o contexto que nos interessa aqui

Situamo-nos ldquodentrordquo de uma ldquoculturardquo realidade Latino-americana ou ldquoAmeriacutendiardquo Estamos refletindo uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo (realidade) de histoacuteria e por isso em uma ldquoconstruccedilatildeo local de saber e de apropriaccedilatildeo de linguagemrdquo bem como de referenciais teoacutericos Entatildeo propomos aqui uma reflexatildeo hermenecircutico-teoloacutegica Afro-Ameriacutendia com base numa epistemologia tambeacutem contextual

A proposta e o meacutetodo da etnografia metaacutefora do ldquoolhar-escutardquo como descortinamento

Pensando a proacutepria teologia concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teoacuterico de uma etnografia natildeo como mera produccedilatildeo de imagem e representaccedilatildeo desobre o outro mas na construccedilatildeo um olhar-narrativo uma forma de mediaccedilatildeo cognitiva e eacutetica relacionada situada e que se movimenta junto dessa alteridade Isso nos leva a uma consideraccedilatildeo poliacutetica importante ao nos situarmos nesse chatildeo comum da cultura afroamericana (alteridade) estamos querendo sim ldquodar vez e vozrdquo Mas eacute preciso ter o cuidado de natildeo fazecirc-lo de modo ldquocolonialistardquo Por isso o silecircncio e a discriccedilatildeo metodoloacutegica de uma etnografia E tambeacutem por isso ter em mente que esse situar-se traz implicaccedilotildees mutuamente estruturantes oxalaacute leve a algum tipo de deslocamento teoacuterico desvio e revoluccedilatildeo na cultura e no olhar desde o qual operamos na teologia

dialeacutetica Em seguida em Dilthey a hermenecircutica eacute enquadrada na psicologia Foi soacute a aplicaccedilatildeo dada por Heidegger agrave fenomenologia husserliana uma aplicaccedilatildeo que significou ao mesmo tempo a recepccedilatildeo da obra de Dilthey pela fenomenologia que forneceu agrave hermenecircutica pela primeira vez a sua significaccedilatildeo filosoacutefica fundamentalrdquo (In GADAMER Hans-Georg Hermenecircutica em retrospectiva traduccedilatildeo Marco Antocircnio Casanova ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2007 p 94)

Sabemos dos contextos histoacutericos sociais poliacuteticos que vivemos envolvidos no decorrer de seacuteculos desde um tal ldquodescobrimentordquo que seguiu a corrente da ldquoera colonialrdquo implicando vaacuterios processos de ldquoencortinamentordquo ao inveacutes de ldquodescobrimentordquo Esse desvelamento que natildeo ocorreu e poderiamos chamar de uma ldquoencurtaccedilatildeordquo pois encurtou-se a reflexatildeo colocou-se limites agrave compreensatildeo sobre o outro sobre o mundo o cosmos incutindo-lhe ateacute mesmo uma compreensatildeo acerca dos povos nativos como ldquosem culturardquo ndash ldquosem almardquo e ateacute chegar a um outro processo no qual se escreveu a nossa histoacuteria (de Escravidatildeo de marginalizaccedilatildeo de expropriaccedilatildeo de cultura de saber de linguagem etc) ainda destes povos nativos e transplantados

Seguindo o vieacutes desta nossa reflexatildeo e dos processos presentes na histoacuteria do pensamento teoloacutegico latino-americano precisamos nos perguntar Onde estatildeo estes povos que fizeram a histoacuteria do Brasil ser mais rica de sentidos significados (de cultura de linguagem e de sabedorias) estatildeo situados A partir de onde poderiacuteamos situar as raiacutezes desta teologia ou sabedoria latino-americana afro indiacutegena Ateacute onde esses povos estiveram envolvidos pelo ldquoocultamentordquo ou ldquoencobrimentordquo369 de suas ldquoculturasrdquo Atraveacutes daquilo que percebemos pelas vaacuterias formas de opressatildeo como construir-se em solo brasileiro uma legitimaccedilatildeo de outros saberes ditos natildeo-oficiais Como partir por uma metodologia que favoreccedila um olhar diferente para esses ldquoOutrosrdquo que se mantiveram ldquona marginalidaderdquo

Assim Leonardo Boff no livro organizado por Paulo Suess ldquoCulturas e Evangelizaccedilatildeordquo reflete sobre a cultura do opressor versus cultura do oprimido e exatamente nesta nossa anaacutelise situariacuteamos outra pergunta para a teologia Afinal qual eacute a teologia do opressor e qual a teologia do oprimido Em que referenciais teoacutericos hermenecircuticos podem estar situadas

No niacutevel poliacutetico se datildeo relaccedilotildees sociais de poder que se

apresentam como autoritaacuterias ditatoriais carismaacuteticas democraacuteticas

relaccedilotildees que podem ser de apropriaccedilatildeo expropriaccedilatildeo controle

consolidaccedilatildeo ou enfraquecimento de interesses imposiccedilatildeo de

princiacutepios reguladores de condutas de grupos sobre outros Eacute aqui que

apontam os conflitos nas culturas havendo culturas dominantes

culturas subalternas culturas do silecircncio culturas populares etc Natildeo

captar os conflitos dentro das culturas particularmente nas nossas

histoacutericas que satildeo culturas da desigualdade eacute mascarar um dado

fundamental que eacute decisivo para um processo de libertaccedilatildeo e uma

autecircntica evangelizaccedilatildeo370

Podemos citar alguns casos tristes e crueacuteis da histoacuteria onde se fundou ldquosistemasrdquo e ldquoloacutegicas de dominaccedilatildeordquo onde se prevalecia a ldquouniformidaderdquo a ldquoexclusatildeo como processo de seleccedilatildeo de seres-humanosrdquo a ldquoeugeniardquo pregando a superioridade de uns sobre outros bem como a xenofobia como medo aversatildeo e intoleracircncia em oposiccedilatildeo e rejeiccedilatildeo do ldquooutrordquo que eacute diferente na sua concepccedilatildeo de mundo cultura religiatildeo existecircncia (do ldquoser-aiacute-no-mundordquo chamado como dasein por Heidegger) Mas a corrente do pensamento formal elaborou postulados que tambeacutem corroboram para a nossa anaacutelise Por exemplo Gadamer iria considerar o seguinte

369 Somente para citar um pequeno comentaacuterio agrave conceptuaccedilatildeo que estamos buscando dentro do pensamento ocidental para traduzir o que queremos afirmar Heidegger tematizaria pela expressatildeo aletheia mais ou menos isso que dizemos sobre o desvelamento ou o ldquoencobrimentordquo 370 Ibid Culturas e evangelizaccedilatildeo p 129

Todavia apesar de toda a densidade da experiecircncia o que

significa propriamente ldquoserrdquo para aqueles que foram educados no

pensamento ocidental e em seu horizonte religioso eacute obscuro O que

significa a expressatildeo ldquoisso estaacute aiacuterdquo Trata-se do segredo do aiacute natildeo

daquilo que eacute aiacute mas do fato de o ldquoaiacuterdquo ser Isso natildeo visa a existecircncia

do homem tal como na expressatildeo sobre a ldquoluta da existecircnciardquo mas ao

fato de no homem o aiacute se descortinar e permanecer ao mesmo tempo

velado em toda abertura371

Aqui encontramos o caraacuteter eacutetico e esteacutetico do conhecimento em sua relaccedilatildeo fundamental esse descortinar e velar do lugar social ndash o ldquoaiacuterdquo da condiccedilatildeo humana que ganha corpo na cultura na linguagem no cotidiano das pessoas ndash torna-se o objeto de uma teologia orientada hermeneuticamente

Um recorte teoacuterico

Partindo de que o nosso objetivo seria ldquofazer o recorte teoacuterico do que seria um ensaio de linguagem teoloacutegica determinada pela racionalidade imageacutetica metafoacuterica e narrativa proacutepria agrave cultura afroamericanardquo como um situar-se dentro de uma forma ldquooutrardquo de mundo

Jaacute neste situar-se o movimento de resistecircncia pelo pensar teoloacutegico afro-americano afro-brasileiro afro-ameriacutendio buscou-se ter sua autonomia reconhecida divulgada (nem tanto) mas realmente respeitada e mais que isso valorizada por suas fortes manifestaccedilotildees que estatildeo impregnadas de cultura da religiosidade e por tudo isso da feacute Hoje esta busca continua e natildeo eacute diferente das deacutecadas e dos contextos (sociais poliacuteticos religiosos histoacutericos) ndash Apenas o que percebemos eacute uma construccedilatildeo conjunta pela ldquoidentidaderdquo da reflexatildeo

Trazendo de volta uma anaacutelise sobre o modo como pensamos o nosso pensamento hermenecircutico-teoloacutegico um reconhecido grupo de teoacutelogos e teoacutelogas Afro-brasileiros (as) na deacutecada de 90 produziu um ldquopensar teoloacutegico contextual aberto agraves provocaccedilotildees que fizemos neste pequeno relato sobre o percurso da nossa reflexatildeo atualrdquo372 E que aleacutem destes questionamentos trazem consigo outros tantos para refletirmos hoje Eacute por isso que preocupa-nos antes de tudo - Para onde caminhamos E ldquopor onde comeccedilamos a pensar sobre o pensamento teoloacutegico negrordquo E por que refletirmos a partir deste vieacutes

Talvez alguns se perguntem por que o negro o afro quer saber de pensar teologia Certamente seria oacutebvio que ldquodentrordquo do situar-se teoloacutegico contextual seria praxe pensar que este ou aquela pensasse sobre si mesmo(a) Mas ainda natildeo satisfeitos os acadecircmicos perguntariam Jaacute natildeo bastaria pensar a histoacuteria como memoacuteria ou correccedilatildeo ou pensar a partir das ciecircncias sociais como reivindicaccedilatildeo ou ldquoreparaccedilatildeordquo ou analisar atraveacutes das Ciecircncias Humanas ou as Ciecircncias Religiosas e ainda quem sabe em particular a Antropologia como pergunta sobre sua origem cultural ou como contribuiccedilatildeo agrave pesquisa cientiacutefica e a Psicologia como uma anaacutelise mais voltada agrave psique ou agrave alma como afirmaccedilatildeo de uma identidade afro373 Acreditamos que isso vem sendo feito apesar das resistecircncias

371 In GADAMER Hermenecircutica em retrospectiva ndash Vol I p 99 372 SILVA Antocircnio Aparecido (org) Existe um pensar teoloacutegico negro Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque) 373 Dizemos isso refletindo jaacute sobre os vaacuterios conteuacutedos e estudos elaborados e amplamente refletidos em todas as direccedilotildees sobre o aspecto da pensamento afro poreacutem como sentimos uma imensa defasagem de

Contudo ao querermos mexer num ldquodepartamentordquo quase que exclusivista do ponto de vista praacutetico ou formal como jaacute criticava outros autores ao negar o estatuto de ciecircncia para a Teologia cabe perguntar neste caso se as intencionalidades coiacutebem ainda o pensar livre374 Acreditamos tambeacutem que isso esteja superado pela ciecircncia tal como a concebamos No entanto ainda bastaria olhar para as academias que lecionam a Teologia e perguntar Onde se reflete teologia afro-indiacutegena Como se reflete O que se fala sobre teologia Afro E ainda Por quem Quem satildeo os sujeitos do saber teoloacutegico negro afro no mundo na histoacuteria da Teologia na histoacuteria das Religiotildees

Natildeo queremos dizer aqui que deva-se mudar a abordagem teoloacutegica por quem jaacute esteja refletindo nas academias mas acreditamos ser necessaacuterio uma avaliaccedilatildeo e uma retomada histoacuterica primordial resguardando a feacute e os sentidos para aleacutem de uma inculturaccedilatildeo teoloacutegica e hermenecircutica A questatildeo natildeo eacute disputar poder mas desenvolver coerentemente uma criacutetica a uma ideologia de poder Para tal talvez tenhamos que desviar de coibiccedilotildees ao pensar livremente para promover um ldquoestranhamentordquo desideologizante da epistemologia teoloacutegica

Sentimos que se devam valorizar e empoderar os povos e as culturas a partir do diaacutelogo e da abertura para eles se encontrarem como ldquoserrdquo para o mundo para os outros e para si mesmos na interaccedilatildeo livre e respeitosa de seus valores

Querendo com isso provocar ou recordar de um dos ldquogritosrdquo deste tipo na Ameacuterica Latina relatado no livro Teologiacutea Negra teologia de la liberacioacuten organizado por Paulo Freire Hugo Assman Eduardo I Bodipo-Malumba e James H Kone no iniacutecio da deacutecada de 70375 abrimos o campo da reflexatildeo para discutir a dimensatildeo de ldquoafricanidaderdquo ou ldquoafricanizaccedilatildeo da teologiardquo nos nossos momentos nas nossas academias nos nossos grupos socialmente constituiacutedos

Numa reflexatildeo intitulada por ldquoDiaacutelogo ndash Incomunicacioacutenrdquo Eduardo I Bodipo Malumba se apresenta com o seguinte discurso para uma plateacuteia acerca da teologia negra (ou africana) neste mesmo evento que ldquogestourdquo depois o livro supracitado Traduzindo o texto que se encontra no espanhol eis a fala de Bodipo

Estaacute comprovado que a diferenccedila baacutesica que existe entre nossos

padrotildees de pensamento eacute que vocecircs ndash e quando digo vocecircs refiro-me

ao auditoacuterio ocidental que se encontra aqui ndash seguem um caminho

estritamente determinista enquanto que nossa interpretaccedilatildeo da

uma abordagem hermenecircutica e teoloacutegica nesta mesma direccedilatildeo Nos perguntamos onde estariam as dificuldades para a ldquoTeologiardquo ou para os teoacutelogos refletirem a partir de um referencial que fosse discutido redefinido e constantemente reelaborado tambeacutem como quebra de paradigmas e reestruturaccedilatildeo de pensamentos Afinal errar querendo acertar nem sempre foi pecado ndash Ateacute mesmo para a teologia O que se diraacute entatildeo tentando acertar consigamos tambeacutem acertar o nosso caminho comeccedilando por isso

374 Enquanto constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo teoacuterico-praacutetica das disciplinas ensinadas natildeo somente para os (as) afrodescendentes como para todos(as) aqueles(as) que buscam e interessam-se pela temaacutetica Tendo presente a Lei Federal 106392003 que ateacute hoje nunca fora colocada em praacutetica nas academias puacuteblicas e particulares da Naccedilatildeo Brasileira devido a controversa discussatildeo ou falta de vontade poliacutetica dos governantes Coordenadores Pedagoacutegicos Diretores de Faculdades ndash para mudanccedila e implementaccedilatildeo das medidas determinadas por leis que natildeo se cumprem 375 FREIRE Paulo Teologia negra y teologiacutea de la liberacioacuten Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo argentina da obra de James H Cone ldquoA black theology of liberationrdquo Traduccedilatildeo de Manuel Mercador Buenos Aires Editorial Carlos Lolhe 1973 180 p Tambeacutem reproduzido Cuadernos Latinoamericanos Buenos Aires 129-11 1974 Fichas Latioamericanas Buenos Aires Tierra Nueva 1(4)55-6 dezembro de 1974 Prefaacutecio agraveediccedilatildeo argentina de A black theology of liberation In Paulo Freire Accedilatildeo cultural para a liberdade p 128-30 Este texto originou-se de um simpoacutesio realizado em Genebra e intitulado A Symposium on Black Theology and the Latin American Theology of Liberation promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas e com a colaboraccedilatildeo de Hugo Assman EI Bodipo-Malumba e James H Cone (Fonte wwwfreiredeservicebooksofpauhtml)

teologia e do papel que o homem desempenha na histoacuteria se encontra

enraizada em uma dialeacutetica que eacute puramente negra e sinceramente

africana Atualmente parece que o oeste pretende defender a liberdade

para si e tambeacutem para noacutes Considera-se protagonista da causa da

liberdade e interlocutor do resto do mundo O ocidente acredita que

herdou uma metafiacutesica do ser que natildeo pode construir coerentemente a

liberdade Esta eacute a diferenccedila baacutesica que existe entre noacutes Somente

fazendo um esforccedilo para a convergecircncia poderiacuteamos chegar a

entendermo-nos mutuamente Mas de momento somos dois mundos

separados376

Nota-se que Eduardo Bodipo abriu caminhos natildeo somente para se pensar um outro tipo de hermenecircutica teologia ou o que quer que venhamos perguntar como tambeacutem procura questionar uma outra ldquometafiacutesicardquo que natildeo seja determinista e ocidental mas africana negra E neste movimento poderiacuteamos nos perguntar se essa corrente tambeacutem natildeo nos levaria a uma outra ldquoloacutegicardquo que natildeo agrave que estamos habituados a ldquoverrdquo em nossos programas e ldquoconteuacutedos disciplinaresrdquo

Uma razatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidade

Em uma obra de construccedilatildeo mais recente Guumlnter Padilha resgata uma constataccedilatildeo de que ldquoa Teologia da Libertaccedilatildeo e a Teologia Negra e suas hermenecircuticas impulsionaram o surgimento de uma Teologia Afro-Americanardquo377 Assim jaacute podemos afirmar que a ldquosementerdquo jaacute cresceu e daacute seus frutos principalmente atraveacutes deste discurso que estamos analisando ndash o da Teologia Afro-brasileira

Embora aqui pareccedila jaacute estar bem clara e respondida a questatildeo queremos continuar nesta atitude provocadora de perguntarmos sobre e pela existecircncia ou natildeo da hermenecircutica e da teologia afro (americana brasileira etc) e se existente eacute tambeacutem pertinente

Agraves vezes nossas perguntas podem direcionar para caminhos inesperados principalmente quando refletidos sobre temaacuteticas como esta Vejamos por quecirc No mesmo livro que pergunta sobre a existecircncia da teologia negra o teoacutelogo ldquoMarcos Rodrigues da Silvardquo escreveu o seguinte ldquoEntendemos que hoje natildeo eacute mais novidade falar da existecircncia de um pensamento teoloacutegico afro-americanordquo378 E mais a frente define melhor como se apresenta este tipo de pensamento na teologia

O pensamento teoloacutegico afro-americano embora tenha um

ponto de partida comum determinado pelo racismo pela opressatildeo

marginalizaccedilatildeo e exclusatildeo da comunidade negra no continente estaacute

atento tambeacutem agraves particularidades geograacuteficas e agraves praacuteticas do

cotidiano A comunidade negra vive realidades que fazem dela um

376 MALUMBA Eduardo B In FREIRE Paulo (orgs) Teologiacutea negra y teologiacutea de la liberacioacuten p 99 377 MENA LOacutePES Maricel Abrindo Sulcos para uma teologia afro-americana e caribenha Organizaccedilatildeo de Maricel Mena Loacutepez e Peter Theodore Nash ndash Satildeo Leopoldo RS Sinodal 2003 p 110 378 Ibid SILVA Antocircnio A Existe um pensar teoloacutegico negro p 9

todo Entretanto ela constitui tambeacutem uma realidade plural presente

em todos os espaccedilos do continente Estes fatores fazem com que o

pensamento teoloacutegico defina uma oacutetica proacutepria priorizando

acontecimentos379

Acrescentando que aleacutem de acontecimentos tambeacutem nos situamos dentro de contextos jaacute mencionados e que satildeo importantiacutessimos continuamente se rediscutir na linguagem e na teologia como cultura(s) identidade(s) poliacutetica(s) economia(s) pluralidade(s) eacutetica etc

Percebendo que para muitos essas palavras natildeo convencem e que por isso questionam elencamos algumas perguntas que necessariamente precisamos perguntar na elaboraccedilatildeo do nosso conhecimento ou da construccedilatildeo do nosso pensamento - de que teologia partimos

Seria possiacutevel de se refletir teologicamente conceitos de povo e de cultura africana ateacute mesmo sobre a feacute e a experiecircncia religiosa de africanos e afro-descendentes mas com as categorias latinas (natildeo da Ameacuterica Latina) mas ldquoocidentalrdquo e natildeo africana ou natildeo de ldquomatrizes africanasrdquo Mesmo sendo possiacutevel qual seria o melhor caminho A inculturaccedilatildeo

Reduzir experiecircncias de feacute manifestaccedilotildees religiosas como ldquosincreacuteticasrdquo ou tentar entender a ldquosiacutenteserdquo que uma comunidade religiosa afro-descendente faz mediante um contexto e condicionamentos parece-nos uma maacute tentativa de inculturaccedilatildeo Neste aspecto o essencial natildeo seria o emprego de um outro tipo de hermenecircutica ndash natildeo ldquotradicional ocidental e ortodoxordquo mas ldquotradicional africano e afro-brasileirordquo

Essencialmente importante eacute a valorizaccedilatildeo de aspectos cotidianos natildeo tatildeo elaborados como eacute o dado da ldquoTradiccedilatildeo Oralrdquo Os frutos das compreensotildees re-significadas a partir das ldquoDiaacutesporasrdquo de um povo transplantado de um continente a outro satildeo importantiacutessimos elementos para se ler teologicamente a realidade da vida O imaginaacuterio constituiacutedo de metaacuteforas de faacutebulas mitos e tantos elementos proacuteprios desse povo e das culturas que permeiam mundo simboacutelico imaginaacuterio e ldquorealrdquo380 eacute uma manifestaccedilatildeo de crenccedilas Pensamos existir nesta concepccedilatildeo a visatildeo de uma ldquorazatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidaderdquo

Jaacute vimos que na Histoacuteria o ldquomundo orientalrdquo teve tanta importacircncia para fundamentar uma teologia da experiecircncia do ldquoinefaacutevelrdquo tanto quanto na explicitaccedilatildeo da mensagem E exatamente por isso a Teologia oriental eacute melhor entendida como ldquosabedoriardquo e mais voltada ao ldquomisteacuteriordquo do que sobre o pensamento sobre o misteacuterio

Pontuando quanto ao sentido da Aacutefrica e do simbolismo africano para a teologia afro-americana sentimos a necessidade de implicaccedilotildees voltadas para buscas por outras categorias nas culturas e nas religiotildees Africanas e Afro-brasileiras As vaacuterias manifestaccedilotildees e expressotildees de feacute ndash trazem consigo ldquoTradiccedilatildeo Oralrdquo ldquoRitualrdquo histoacuteria vivenciada e contada num ambiente enfim ldquomais Culturalrdquo do que propriamente acadecircmico Embora os ldquoambientes de produccedilatildeordquo e de pensamentos afros natildeo sejam ainda teoloacutegicos por essecircncia todas estas experiecircncias de crenccedilas satildeo ldquoteologizaacuteveisrdquo Assim como fazemos no estudo da filosofia quando filosofamos sobre ldquocoisasrdquo dizemos que tudo o que existe pode ser questionado e soacute natildeo questionamos o que natildeo existe Logo o pensar hermenecircutico-teoloacutegico negro existe O que natildeo existe eacute o que ainda natildeo se pensou sobre este pensamento ou porque natildeo se quer pensar ou porque natildeo se admite pensar diferente Mas o diferente existe

O desafio hoje estaria entre o que se faz com o pensamento hermenecircutico-teoloacutegico negro afro e seus fundamentos negar rejeitar condenar ou valorizar respeitar incluir

379 Ibid p 10 380 Natildeo deixando de considerar que tambeacutem o simboacutelico e o imaginaacuterio satildeo reais dentro de uma cultura africana Apenas mencionamos para designar ldquoos mundosrdquo como comumente ou ocidentalmente o separamos para entender melhor aquilo que geralmente numa visatildeo africana forma um mesmo ldquotodordquo da existecircncia real

construir e se afirmar Creio que a resposta para esta questatildeo depende de noacutes que hoje temos este desafio a nossa espreita Tudo isto eacute antes de tudo uma questatildeo de ldquoliberdaderdquo intelectual de vontade e de feacute Se a consciecircncia ainda natildeo se mostra a partir de uma construccedilatildeo tambeacutem teoacuterica podemos comeccedilar agora por auxiliar num desenvolvimento epistemoloacutegico atraveacutes de uma leitura hermenecircutica e de uma ou de tantas quantas forem possiacuteveis Teologia Afro-americana Afro-brasileira

E como afirma Eduardo I Bodipo-Malumba na ocasiatildeo da mesma conferecircncia antes mencionada na deacutecada de 70 ldquoA consciecircncia deve conduzir agrave atividade uma atividade que implica criatividade senatildeo como seremos conscientes do que somos Se somos conscientes do que somos neste contexto entatildeo vamos procurar a liberdade fazendo-ardquo381

REFERENCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

FREIRE Paulo CONE James H MALUMBA Eduardo I B ASSMAN Hugo (orgs) Teologia negra y teologiacutea de la liberacioacuten Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo argentina da obra de ldquoA black theology of liberationrdquo Traduccedilatildeo de Manuel Mercador Buenos Aires Editorial Carlos Lolhe 1973 GADAMER Hans-Georg Hermenecircutica em retrospectiva traduccedilatildeo Marco Antocircnio Casanova ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2007 MENA LOacutePES Maricel Abrindo Sulcos para uma teologia afro-americana e caribenha Organizaccedilatildeo de Maricel Mena Loacutepez e Peter Theodore Nash ndash Satildeo Leopoldo RS Sinodal 2003 SILVA Antocircnio Aparecido (org) Existe um pensar teoloacutegico negro Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque)

381 MALUMBA Eduardo I Bodipo Teologiacutea negra y teologiacutea de la liberacioacuten p 102

Venha o Teu Reino Ilustraccedilotildees indagaccedilotildees e ponderaccedilotildees sobre interculturalidade e religiatildeo a partir das HQrsquos

Iuri Andreacuteas Reblin

Consideraccedilotildees Preliminares

Em 1996 a DC Comics publicou

uma minisseacuterie de luxo em quatro ediccedilotildees

intitulada Kingdom Come Concebida e

ilustrada por Alex Ross e narrada por Mark

Waid a minisseacuterie apresentava uma visatildeo de

um futuro em que uma nova geraccedilatildeo de super-

heroacuteis defendia o mundo contra aqueles que

tentavam dominaacute-lo Essa nova geraccedilatildeo de

super-heroacuteis era desprovida dos antigos valores morais regentes da sociedade e de uma

responsabilidade calcada na proteccedilatildeo de inocentes e na defesa da vida As caracteriacutesticas

intriacutensecas do heroiacutesmo esmaeceram diante dos princiacutepios maniqueiacutestas beacutelicos da luta entre o

bem e o mal Em outras palavras o objetivo principal era combater o mal natildeo importando onde

essa batalha se desenvolvia nem as vidas que estariam sujeitas ao perigo que ela poderia

provocar naquele palco Esse panorama se insere numa narrativa que culmina num evento

catacliacutesmico decisivo e eacute testemunhado em detalhes por um pastor que perdera o sentido das

palavras que pronunciava em seus sermotildees Esse pastor eacute escolhido pelo Espectro ndash personagem

que cumpre parcialmente as funccedilotildees do anjo do Senhor intervindo na histoacuteria humana para

punir os culpados ndash para julgar o mal em seu momento derradeiro A histoacuteria ndash permeada por

citaccedilotildees biacuteblicas extraiacutedas do livro de Apocalipse ndash termina com o retorno dos antigos valores

por meio do autosacrifiacutecio do Capitatildeo Marvel a favor da vida humana

Imagem Divulgaccedilatildeo

Essa minisseacuterie de tiacutetulo alusivo diretamente a um trecho da oraccedilatildeo do Pai-Nosso recebeu em

portuguecircs o tiacutetulo O Reino do Amanhatilde e eacute apenas um dos exemplos possiacuteveis quando se discute

quadrinhos religiatildeo e cultura e as interconexotildees imaginaacuteveis Religiatildeo cultura e qualquer outro

elemento constituinte do mundo humano e de seu universo de significados podem ser

Este texto apresenta trechos de uma pesquisa do autor jaacute publicada no livro ldquoPara o Alto e Avante

uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteisrdquo Para ter acesso a ele entre em contato com o autor ou adquira atraveacutes da Livraria Cultura

Iuri Andreacuteas Reblin eacute bacharel mestre e doutorando em teologia pela Escola Superior de Teologia em Satildeo Leopoldo RS com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPq) Eacute autor de ldquoPara o Alto e Avante uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteisrdquo (Porto Alegre Asterisco 2008 128p) e de ldquoOutros cheiros Outros sabores o pensamento teoloacutegico de Rubem Alvesrdquo (Satildeo Leopoldo Oikos 2009 223p) Contato reblin_iaryahoocombr

encontrados nas histoacuterias em quadrinhos pois os quadrinhos satildeo a exemplo do cinema

representaccedilotildees da realidade humana Como tais os quadrinhos se nutrem da linguagem dos

siacutembolos e dos valores para compartilhar as histoacuterias que intentam contar382 Nesse sentido o

propoacutesito deste texto eacute apresentar a clamada nona arte em duas perspectivas complementares

Em primeiro lugar abordar como acontece o tracircnsito cultural do fenocircmeno dos quadrinhos em

particular o universo dos super-heroacuteis entre culturas distintas como por exemplo entre a

cultura estadunidense e a brasileira a japonesa e a indiana Em segundo lugar ilustrar como

acontece a representaccedilatildeo cultural e religiosa nos quadrinhos em especial no gecircnero da

superaventura

Interculturalidade

Os super-heroacuteis estadunidenses estavam dentro do pacote cultural que o Brasil

importou e tem importado dos Estados Unidos nas uacuteltimas cinco deacutecadas aproximadamente

Muitas pessoas cresceram lendo suas histoacuterias assistindo a seus filmes seriados e desenhos ndash

principalmente aqueles produzidos por Hanna-Barbera ndash consumindo uma infinidade de

produtos com suas marcas Aos poucos aquele siacutembolo ambiacuteguo de liberdade e de impeacuterio383

foi ganhando espaccedilo na imaginaccedilatildeo dos brasileiros e das brasileiras Afinal um super-heroacutei eacute

muito mais do que um personagem fantasiado uma mulher de maiocirc ou um homem com a cueca

sobre a calccedila Ele eacute constituiacutedo por uma amaacutelgama de valores ideais sonhos desejos que

refletem tudo aquilo que o ser humano moderno acredita espera e aspira No entanto o foco da

discussatildeo neste capiacutetulo natildeo eacute o conteuacutedo simboacutelico dos super-heroacuteis em si384 mas sim

perguntar como acontece o processo de assimilaccedilatildeo incorporaccedilatildeo transformaccedilatildeo de

determinados siacutembolos de uma cultura para outra

Nesse sentido o que a histoacuteria do comeacutercio da cultura industrializada tem afirmado

em relaccedilatildeo ao contexto brasileiro eacute que nos uacuteltimos anos o Brasil tem sido um mero receptor

desse tipo de cultura principalmente no que tange agrave importaccedilatildeo de filmes seacuteries quadrinhos e

certos estilos musicais Em relaccedilatildeo a tais produtos ou o Brasil natildeo tem o seu espaccedilo ou ele eacute

muito restrito Um fato claro eacute a recuperaccedilatildeo paulatina do cinema brasileiro apoacutes a sua quase

extinccedilatildeo ocorrida na deacutecada de 1980 Embora as produccedilotildees atuais tenham sido de boa qualidade

teacutecnica e artiacutestica ainda predomina um certo sentimento de rejeiccedilatildeo e aversatildeo aos filmes

382 Para mais informaccedilotildees a esse respeito consulte REBLIN Iuri Andreacuteas Para o Alto e Avante

uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteis Porto Alegre Asterisco 2008 128p 383 Refiro-me aqui ao caraacuteter ideoloacutegico e o caraacuteter inconsciente que faz parte da representaccedilatildeo dos

super-heroacuteis conforme Nildo Viana expocircs em sua publicaccedilatildeo (VIANA Nildo Heroacuteis e Super-heroacuteis no mundo dos quadrinhos Rio de Janeiro Achiameacute 2005 p 65-69)

384 Cf REBLIN 2008 cap 1 e tambeacutem VIANA 2005 p 37-74

nacionais por parte do puacuteblico brasileiro A preferecircncia continua sendo aos filmes

hollywoodianos especialmente os blockbusters os de grande bilheteria ndash essa preferecircncia se

manteacutem tambeacutem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees europeacuteias No caso especiacutefico dos quadrinhos de

super-heroacuteis o Brasil literalmente natildeo possui espaccedilo autocircnomo As revistas satildeo apenas

traduzidas do original O Brasil eacute um simples receptor do produto americano

Eacute necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo que o gecircnero da superaventura tem sua origem nos

Estados Unidos da Ameacuterica durante o periacuteodo de reestruturaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica do paiacutes

implantado pelo governo de Franklin Roosevelt devido agrave quebra da bolsa de Nova Iorque

(1929) Durante os anos turbulentos da Grande Depressatildeo o desemprego e a miseacuteria foram

combatidos pelo plano New Deal que incluiacutea uma seacuterie de reformas econocircmicas e sociais a

ecircnfase na assistecircncia e em obras puacuteblicas e o controle mais riacutegido das empresas por parte do

Estado Ao mesmo tempo tratava-se do periacuteodo preacute-guerra em que o medo da possibilidade da

necessidade de uma incursatildeo na Europa preocupava muitos jovens Eacute nesse contexto que surge

o gecircnero da superaventura a partir do advento do Super-Homem (1938) Segundo Roberto

Guedes

o escapismo oferecido pelos baratos comic books ndash com seus semideuses de colantes

e suas proezas fantaacutesticas ndash aliado a uma terriacutevel recessatildeo econocircmica e agrave falta de

opccedilotildees de divertimento para a grande massa de crianccedilas e jovens foram sem duacutevida

alguma determinantes no sucesso de Super-Homem e demais personagens em

quadrinhos que viriam em sua esteira385

No entanto mesmo que o gecircnero da superaventura seja em si algo estrangeiro ndash assim

como o Reagge o Funk e o Jazz ndash isso natildeo significa que ele tenha que ser imune agraves leituras que

os seus receptores efetuam que os significados de seus siacutembolos natildeo sofram nenhuma

influecircncia do inteacuterprete desses A primeira impressatildeo que se tem no caso do contexto brasileiro

eacute que a importaccedilatildeo da cultura industrial e a aparente complexidade desta ndash como a narrativa e a

teacutecnica ndash abafam qualquer iniciativa nacional Assim geraccedilotildees de brasileiros e de brasileiras

crescem vendo He-Man Smurfs Looney Toons Timatildeo e Pumba X-Men Evolution Super

Shock A Liga da Justiccedila entre outros enquanto que desenhos nacionais natildeo estatildeo nem agrave deriva

porque simplesmente ndash praticamente ndash satildeo inexistentes quer seja devido ao custo quer seja

devido agrave teacutecnica

A cultura industrial estadunidense faz parte portanto da infacircncia e da juventude do

povo brasileiro o qual tambeacutem sente o processo da influecircncia da cultura japonesa ndash com

personagens como Jaspion Jiraya Pokemon Cavaleiros do Zodiacuteaco entre outros ndash produtos 385 GUEDES Roberto Quando Surgem os Super-heroacuteis Satildeo Paulo Oacutepera Graacutefica 2004 p 16

que vecircm conquistando cada vez espaccedilo no paiacutes Todos esses produtos fantaacutesticos e imaginaacuterios

satildeo importados sem restriccedilotildees Em si o problema natildeo eacute a existecircncia da cultura estrangeira no

paiacutes mas sim a dinacircmica que acontece entre o produto estrangeiro e o produto nacional No

caso dos ritmos musicais eacute claro que o Reagge o Funk sofreram um processo de adaptaccedilatildeo agrave

brasilidade falando dos problemas e sonhos brasileiros Em outras palavras alguns siacutembolos

desses gecircneros sofreram transformaccedilotildees Isso natildeo acontece no caso do gecircnero literaacuterio da

superaventura

Lamentavelmente as poucas tentativas brasileiras frente ao mercado de quadrinhos de

super-heroacuteis natildeo conseguem se destacar Eacute impossiacutevel competir com os quadrinhos

estadunidenses Natildeo haacute infra-estrutura suficiente de criaccedilatildeo e de distribuiccedilatildeo e o custo eacute muito

elevado Aleacutem disso existem poucos adeptos e pouco interesse por parte do puacuteblico Assim

como no cinema natildeo se cria uma arte brasileira capaz de ter a eficaacutecia de alcanccedilar pessoas fatildes

e de ser levada adiante Ou melhor natildeo se cultivou o haacutebito de observar e de defender o que eacute

proacuteprio da naccedilatildeo parece que ainda se espera pelo que os navios portugueses (atualmente

estadunidenses) possam trazer de diferente ao ancorarem proacuteximos agraves terras tupiniquins Assim

super-heroacuteis brasileiros acabam sendo dependentes existencialmente de seus criadores

Nesse sentido as criaccedilotildees brasileiras estatildeo por um lado agrave margem da globalizaccedilatildeo

Trata-se de algo pequeno frente ao impeacuterio estadunidense de algo novo lutando pela

preferecircncia do puacuteblico brasileiro Entrementes existem muitos artistas brasileiros como Mike

Deodato Joe Bennett Ivan Reis que trabalham para as grandes empresas de quadrinhos

estadunidenses devido agrave ausecircncia de campo de trabalho que possibilite a sobrevivecircncia do

artista no Brasil Por outro lado cada super-heroacutei brasileiro reflete alguns elementos dos super-

heroacuteis americanos A maioria dos super-heroacuteis brasileiros nem brasileiros satildeo e talvez aiacute estaacute

sua dificuldade em se estabilizar no mercado de quadrinhos a ausecircncia de siacutembolos nacionais

Eacute como ter agrave escolha um produto importado com um preccedilo acessiacutevel e um produto lsquoimportadorsquo

com um preccedilo inacessiacutevel caso se queira manter a qualidade graacutefica deste uacuteltimo Enfim toda a

constituiccedilatildeo reflete as influecircncias que a arte brasileira teve preacutedios nova-iorquinos fantasias

que remetem a super-heroacuteis famosos o que possibilita perceber a influecircncia que o criador teve

como fatilde do produto americano e agraves vezes tambeacutem do produto japonecircs386

Cometa Cabala Cracircnio e Arcanum

satildeo alguns dos super-heroacuteis brasileiros que tecircm

conseguido se manter no mercado como

produccedilatildeo independente O primeiro possui uma

386 Cf GUEDES Roberto A Saga dos Super-Heroacuteis Brasileiros Vinhedo Editoractiva Produccedilotildees

Artiacutesticas 2005 passim (especialmente p 104)

Imagem Divulgaccedilatildeo

publicaccedilatildeo proacutepria quadrimestral O gibi possui uma narrativa simples que lembra muito as

primeiras histoacuterias em quadrinhos desse gecircnero Ele resgata a jovialidade e a fantasia atraveacutes de

uma leitura agradaacutevel Mesmo que os personagens tenham nomes brasileiros os traccedilos lembram

o estilo DC (i eacute da DC Comics) e as histoacuterias do Super-Homem e da Mulher-Maravilha Jaacute os

trecircs super-heroacuteis seguintes possuem suas histoacuterias publicadas num gibi nordestino independente

chamado ldquoBrado Retumbanterdquo de publicaccedilatildeo semestral

Todavia um super-heroacutei brasileiro que chama a atenccedilatildeo para o propoacutesito deste

capiacutetulo eacute o Gralha o ldquoVigilante das Araucaacuteriasrdquo O Gralha jaacute teve alguns aacutelbuns publicados

com a reuniatildeo de vaacuterias tiras de jornal e pequenas histoacuterias jaacute foi tema de peccedila de teatro

estrelou dois filmes curta-metragem sendo que um terceiro estaacute a caminho O super-heroacutei foi

cunhado a partir do siacutembolo criado com o propoacutesito de identificar o Estado do Paranaacute a Gralha

Azul

Mesmo que a associaccedilatildeo da Gralha Azul com o Estado do Paranaacute tenha sido criada

propositalmente para distinguir esse dos outros Estados ele acabou se tornando um siacutembolo

regional Esse fator daacute mais forccedila ao personagem possibilita sua independecircncia do criador

original e pode despertar o interesse do puacuteblico nacional Na verdade o proacuteprio super-heroacutei eacute

uma releitura do extinto Capitatildeo Gralha um personagem da deacutecada de 40 do seacuteculo passado

Ele [O Gralha] surgiu em outubro de 1997 numa ediccedilatildeo especial (comemorando os

15 anos da Gibiteca de Curitiba) da extinta revista Metal Pesado Para realizaacute-la

foram convocados vaacuterios quadrinhistas locais dos quais um grupo decidiu fazer de

um projeto comum uma homenagem a um iacutecone desconhecido dos quadrinhos

curitibanos o Capitatildeo Gralha Publicado no iniacutecio dos anos quarenta pelo tambeacutem

desconhecido (e quase lendaacuterio ateacute) Francisco Iwerten Fugitivo de um planeta de

homens-paacutessaros regido pelo terriacutevel Thagos o usurpador o Capitatildeo Gralha

encontrou refuacutegio na Terra onde utilizava seus poderes alieniacutegenas no combate ao

crime no Paranaacute Misto de Flash Gordon com Super-Homem ele teve vida breve

Foram publicados apenas dois nuacutemeros de suas aventuras mergulhando esse trabalho

pioneiro no mesmo abismo que tantos outros precursores das HQs nacionais

Infelizmente ningueacutem sabe se existe ainda algum exemplar de suas revistas

Foi unacircnime que um homem alado com um G no peito e bigodinho natildeo seria muito

bem visto hoje em dia Optou-se entatildeo por criar uma versatildeo atualizada do datado

Capitatildeo Alessandro Dutra criou o visual Gian Danton e Joseacute Aguiar criaram a

histoacuteria Antonio Eder Luciano Lagares Tako X Edson Kohatsu Augusto Freitas

Dutra e Aguiar se encarregaram da arte e Nilson Miller fez a capa da ediccedilatildeo E assim

o Gralha fez sua estreacuteia Um ano depois o personagem ganhava sua paacutegina semanal

no caderno Fun da Gazeta do Povo agora como um adolescente que descende do

Capitatildeo Gralha original Um heroacutei iniciante em uma metroacutepole um pouco diferente da

Curitiba de hoje Talvez a uacutenica cidade do paiacutes onde um super-heroacutei se enquadraria

sem parecer (muito) deslocado Afinal ela mesma faz questatildeo de provincianamente

vender sua imagem como cidade de primeiro mundo E nada mais isso que um

vigilante de colante387

A ausecircncia de siacutembolos nacionais nos super-heroacuteis brasileiros jaacute foi tema de um artigo

de Andreacute Diniz388 o qual defende a fuga dos clichecircs das principais editoras estadunidenses a

DC Comics e a Marvel Comics Diniz questiona por um lado a necessidade da luta contra um

supervilatildeo com superpoderes da ambientaccedilatildeo em grandes metroacutepoles do uso do uniforme da

complexidade nas narrativas da narraccedilatildeo em off do formato de novela (a continuaccedilatildeo da

histoacuteria em diversos capiacutetulos) enfatizado por outro lado a importacircncia da fuga dos

estereoacutetipos brasileiros a necessidade de referecircncias histoacutericas e o enriquecimento do cenaacuterio i

eacute a brasilidade

No entanto natildeo se pode abdicar de todas as estruturas que fornecem ao gecircnero da

superaventura sua razatildeo de ser Certos elementos precisam ser preservados como a identidade

secreta e a existecircncia dos superpoderes aleacutem do senso de heroiacutesmo A soluccedilatildeo para os super-

heroacuteis brasileiros estaacute realmente na incorporaccedilatildeo de siacutembolos nacionais em seu conteuacutedo e em

sua narrativa e esteacutetica Afinal natildeo adianta nada desenhar o Corcovado e o Patildeo de Accediluacutecar ao

lado de preacutedios nova-iorquinos Haacute portanto a necessidade de uma dosagem adequada entre as

estruturas estadunidenses (i eacute do gecircnero da superaventura) e os siacutembolos nacionais para que os

leitores identifiquem o gecircnero da superaventura e ao mesmo tempo sua proacutepria brasilidade

Nesse aspecto o Gralha eacute um bom exemplo No entanto o Brasil natildeo eacute o uacutenico que importa e lecirc

histoacuterias de super-heroacuteis

No Japatildeo o Homem-Aranha teve seu destaque numa antiga seacuterie de TV produzida

pela Companhia Toei em 1978 Ao contraacuterio do super-heroacutei estadunidense ndash que se manteacutem

iacutentegro ao ser traduzido para a maioria dos outros paiacuteses ndash a versatildeo japonesa soacute lembra o traje

do super-heroacutei original O protagonista eacute um japonecircs que recebe um bracelete poderoso de um

alieniacutegena proveniente do planeta aranha e que estaacute agrave beira da morte Esse bracelete concede ao

portador os poderes de uma aranha aleacutem de conter o traje ateacute que ele venha a ser utilizado

387 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwogralhacombrGralha20HQorigemhtmlgt Acesso em 08 abr

2006 388 Cf DINIZ Andreacute Como fazer um super-heroacutei brasileiro Universo HQ dia 09 abr 2004 Disponiacutevel

na Internet lthttpwwwuniversohqcomquadrinhos2004diniz06cfmgt Acesso em 08 abr 2006

Seus inimigos satildeo monstros que depois de mortos se tornam gigantes Entatildeo o Homem-

Aranha aciona um robocirc gigante do espaccedilo e utiliza-o para vencer as batalhas389

O Homem-Aranha japonecircs possui uma

narrativa e uma estrutura idecircnticas aos seriados

japoneses se comparados agraves seacuteries de National Kid

Spectroman Jaspion Changeman entre outros

Esses expressam tendencialmente o contraste e o

conflito entre o moderno e o antigo que a sociedade

japonesa vive com as tradiccedilotildees de um lado (no caso

os seres mitoloacutegicos monstros) e os avanccedilos

tecnoloacutegicos de outro (no caso os robocircs) Assim o

Homem-Aranha japonecircs se tornou uma espeacutecie de

super-heroacutei ninja bem distinto do original Em outras palavras o seriado reflete a cultura a

geografia e a identidade japonesas

Um outro exemplo rico artisticamente eacute o Homem-Aranha indiano Ao contraacuterio da

lsquoversatildeorsquo japonesa que apenas licenciou o nome e produziu um enredo totalmente comum aos

padrotildees japoneses sem as motivaccedilotildees e os conflitos caracteriacutesticos do personagem o Homem-

Aranha indiano eacute realmente inspirado na histoacuteria original criada por Stan Lee e Steve Dikto em

1962 e soacute foi possiacutevel mediante um acordo entre a Marvel (empresa estadunidense) e a Gotham

(empresa indiana) Inspirado na histoacuteria original o Homem-Aranha indiano eacute na verdade uma

transcriaccedilatildeo do super-heroacutei estadunidense Explicitamente o uacutenico elemento em comum eacute o

traje (na parte superior) No entanto ao ler a histoacuteria eacute possiacutevel perceber nela suas motivaccedilotildees

seus princiacutepios ndash sobretudo o jargatildeo ldquocom grandes poderes vecircm grandes responsabilidadesrdquo ndash a

morte do tio a ldquogarota da porta ao ladordquo a semelhanccedila foneacutetica entre os nomes das personagens

(Peter Parker = Pavitr Prabhakar Mary Jane =

Meera Jain) entre outros exemplos A

diferenccedila entre a versatildeo ocidental e a oriental

estaacute na inserccedilatildeo de elementos indianos na

histoacuteria criada no Oriente390

O Homem-Aranha eacute um adolescente

da Iacutendia que adquire seus poderes atraveacutes da

389 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwinternationalherocouksspideyjapanhtmgt Acesso em 10 abr

2006 390 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwinternationalherocouksspideyindiahtmgt Acesso em 10 abr

2006 Imagem Divulgaccedilatildeo

magia combate criminosos indianos balanccedila-se pelos preacutedios baixos de Mumbai Sua vida estaacute

ligada ao carma e presa ao destino Assim tambeacutem o super-heroacutei indiano eacute expressatildeo da cultura

da geografia da religiosidade da histoacuteria e da identidade indianas Em relaccedilatildeo agrave versatildeo

japonesa a diferenccedila reside na fusatildeo entre os elementos indianos e os elementos estadunidenses

que constituem o personagem oriental Haacute um interesse pelo produto mas tambeacutem haacute um

interesse em preservar o que eacute proacuteprio os siacutembolos as tradiccedilotildees enfim os aspectos culturais

que formam a identidade do povo indiano conforme afirma Sharad Devarajan o responsaacutevel

pela adaptaccedilatildeo do Homem-Aranha na Iacutendia

Uma coisa eacute traduzir os quadrinhos existentes nos Estados Unidos mas este projeto eacute

verdadeiramente o que noacutes chamamos de uma ldquotranscriaccedilatildeordquo onde noacutes realmente

reinventamos a origem de uma propriedade como o Homem-Aranha de modo que ele

seja um menino indiano que cresce em Mumbai (anteriormente Bombaim) e que trata

dos problemas e dos desafios locais Eu sempre acreditei que um super-heroacutei se

relaciona a uma ldquopsique universalrdquo jaacute estabelecida firmemente na Iacutendia atraveacutes de

seacuteculos de histoacuterias mitoloacutegicas que descreviam deuses e heroacuteis com habilidades

sobrenaturais

Embora noacutes permaneccedilamos fieacuteis aos mitos elementares do Homem-Aranha que estatildeo

compendiados na frase ldquoCom grande poder vem grande responsabilidaderdquo o

personagem seraacute reinventado assim seus poderes problemas traje seratildeo mais

integrados com a cultura indiana Ao contraacuterio da origem dos Estados Unidos que eacute

enraizada profundamente na ciecircncia a versatildeo indiana eacute mais enraizada na maacutegica e na

mitologia391

Religiatildeo

Longe de se realizar uma leitura exaustiva sobre o fenocircmeno religioso nas histoacuterias em

quadrinhos (para isso um outro espaccedilo seraacute reservado) importa destacar alguns paracircmetros e

suspeitas de como tal transposiccedilatildeo ou infusatildeo acontece a fim de que o leitor interessado possa

desbravar seus proacuteprios mares A religiatildeo pode estar presente nos quadrinhos e especialmente

na narrativa do gecircnero da superaventura por inuacutemeros vieses Um deles certamente estaacute na

histoacuteria que se intenta contar ie quando os autores incluem intencionalmente elementos de

391 DEVARAJAN apud ADESNIK David Marvel Comics and Manifest Destiny Weekly Standard dia

28jan2005 sect 8 e 9 Disponiacutevel na Internet httpwwwweeklystandardcomContentPublicArticles000000005181egxmvasppg=1 Acesso em 08 abr 2006 Traduccedilatildeo Proacutepria

tradiccedilotildees religiosas citaccedilotildees de textos sagrados etc e a maneira como eles aparecem no texto a

forma como participam da trama central Um outro vieacutes estaacute no enredo que constitui o

personagem em si como por exemplo a origem do Superman do Capitatildeo Marvel da DC da

Mulher Maravilha entre outros Um terceiro e mais importante que os anteriores satildeo os

elementos mitoloacutegicos e religiosos presente nas narrativas sobretudo aqueles ligados ao sentido

do heroiacutesmo como o sacrifiacutecio o altruiacutesmo os valores ie quando estes revelam as anguacutestias

as esperanccedilas os medos a busca por um sentido a formulaccedilatildeo de questotildees existenciais agrave vida

humana e quando o leitor estabelece uma relaccedilatildeo com esses elementos quando haacute na relaccedilatildeo

entre o emissaacuterio e o destinataacuterio um intercacircmbio e um envolvimento emocionalexistencial

com a narrativa Essa seria a ldquoverdadeirardquo narrativa religiosa

A partir desses vieses eacute possiacutevel perceber que haacute inuacutemeras possibilidades de se

perceber e de se vislumbrar o fenocircmeno religioso nas histoacuterias em quadrinhos Como jaacute foi

afirmado no iniacutecio do texto As histoacuterias em quadrinhos assim como o cinema satildeo janelas da

realidade e como tais natildeo apenas trazem os elementos pertencentes agrave vida humana mas a forma

com que o ser humano se relaciona com eles e a eles atribui um significado um sentido As

histoacuterias em quadrinhos satildeo espaccedilos riquiacutessimos para se estudar e se compreender a vida

humana e a sociedade que laacute estatildeo representadas Em muitas circunstacircncias tratar-se-atildeo dos

valores axioloacutegicos da classe dominante como apontou Nildo Viana392 No entanto ao mesmo

tempo em que a classe burguesa pode se ver nitidamente exposta os valores reprimidos e a

busca por liberdade podem igualmente se manifestar393 Enfim as histoacuterias em quadrinhos satildeo

janelas da realidade e como tais podem ser um espaccedilo para o ser humano sair de si mesmo e

com os oacuteculos adequados conhecer um pouco mais de si mesmo

Consideraccedilotildees Finais

A cultura eacute uma teia de siacutembolos que o ser humano tece e agrave qual ele estaacute

simultaneamente subordinado Ela eacute a condiccedilatildeo essencial para a existecircncia humana394 Trata-se

de um mecanismo de controle comportamental que supre as necessidades governamentais do ser

humano uma vez que ele natildeo nasce com as aptidotildees suficientes ndash as informaccedilotildees bioloacutegicas

necessaacuterias ndash para sua sobrevivecircncia395 Ela eacute o lsquoprogramarsquo que define o lsquoo quersquo o lsquocomorsquo o

lsquoporquersquo e o lsquopara quersquo o ser humano deve ou natildeo fazer determinadas coisas ter certos haacutebitos

392 VIANA 2005 393 VIANA 2005 394 Cf GEERTZ Clifford A Interpretaccedilatildeo das Culturas Rio de Janeiro Zahar Editores 1978 p 15ss 395 Cf GEERTZ 1978 p 57ss

acreditar em certos deuses preservar certos valores Sendo assim todo ldquoo comportamento

humano eacute visto como accedilatildeo simboacutelicardquo396

Desse modo o ser humano nasce cresce e morre inserido e dependente de um

universo simboacutelico Assim a cultura eacute pois o contexto dentro do qual os acontecimentos

sociais os comportamentos as instituiccedilotildees podem ser descritas de forma inteligiacutevel397 Como

contexto a cultura assume caracteriacutesticas peculiares de locais povos e eacutepocas especiacuteficas No

entanto mesmo que determinados siacutembolos atravessem uma geraccedilatildeo inteira eles acabam se

transformando sucumbindo e (re-)surgindo dentro da dinamicidade das accedilotildees simboacutelicas e do

desenvolvimento humano no passar do tempo398 A cultura eacute dinacircmica mutaacutevel puacuteblica

(porque os significados o satildeo399) e sempre carrega o especiacutefico de um povo e dentro dessa

especificidade algo que pode conduzir a uma definiccedilatildeo geneacuterica400 Isso significa que natildeo

existem pessoas que natildeo satildeo transformadas pelos costumes de lugares particulares401

As escolhas assumidas por um determinado povo diante da ldquoamplitude e a

indeterminaccedilatildeo de suas capacidades inerentesrdquo constituem sua identidade social Com a

globalizaccedilatildeo e suas estruturas funcionais ndash beneacuteficas e maleacuteficas ndash culturas se aproximam e a

tensatildeo entre identidade e alteridade torna-se uma constante Por um lado haacute o reforccedilo da

identidade diante da alteridade mas por outro haacute tambeacutem o diaacutelogo e ateacute a identificaccedilatildeo com a

alteridade Em outras palavras a globalizaccedilatildeo intensifica o traacutefico de siacutembolos Nesse transito

livre regulamentado por quem estaacute no poder poliacutetico-econocircmico mundial haacute (1) casos de

sobreposiccedilatildeo de siacutembolos estrangeiros sobre siacutembolos nacionais (2) a incorporaccedilatildeo de siacutembolos

estrangeiros (3) a adaptaccedilatildeo e a transformaccedilatildeo e ateacute mesmo a rejeiccedilatildeo (em qualquer escala) de

siacutembolos estrangeiros em defesa da preservaccedilatildeo de siacutembolos nacionais Dificilmente esses casos

acontecem isolados devido agrave infinidade de amarras que a rede simboacutelica de um povo possui De

qualquer forma haacute de se considerar que a globalizaccedilatildeo sempre atua com persuasatildeo

Eacute nessa dinacircmica entre as diversas culturas que surge a pergunta sobre a incorporaccedilatildeo

a adaptaccedilatildeo ou mesmo a rejeiccedilatildeo da linguagem simboacutelica do gecircnero narrativo da superaventura

A pergunta sobre o impacto que esse gecircnero ndash expressatildeo de liberdade e impeacuterio ndash tem sobre as

culturas eacute latente Este jaacute ultrapassou as fronteiras de seu lugar original a literatura alcanccedilando

o cinema e a televisatildeo Filmes de super-heroacuteis estatildeo lsquona modarsquo e atingem um puacuteblico cada vez

396 GEERTZ 1978 p 20 397 Cf GEERTZ 1978 p 24 398 Cf GEERTZ 1978 p 57s 399 Cf GEERTZ 1978 p 22 400 Cf GEERTZ 1978 p 55 ldquo[] pode ser que nas particularidades culturais dos povos ndash nas suas

esquisitices ndash seja encontradas algumas das revelaccedilotildees mais instrutivas sobre o que eacute ser genericamente humanordquo

401 Cf GEERTZ 1978 p 47

mais expressivo Isso comprova que os Estados Unidos possuem de fato uma rede de siacutembolos

de entretenimento fantaacutestica e que seu poder exercido sobre outros paiacuteses deve-se tambeacutem a

uma estrateacutegia semelhante agravequela utilizada pelo Impeacuterio Grego no passado o domiacutenio cultural

Por isso cabe perguntar em que medida esse domiacutenio eacute exercido pelos Estados Unidos sobre o

Brasil Ateacute que ponto essa rede de siacutembolos natildeo abafa a rede brasileira Ateacute que ponto essa

cultura se torna padratildeo Por que no Brasil natildeo haacute a atitude de colocar a identidade brasileira nos

super-heroacuteis Por que esse gecircnero tem que ser 100 estadunidense no Brasil

Haacute casos significativos como o Gralha no Brasil mas principalmente como o

Homem-Aranha indiano que natildeo soacute aceitou ou importou siacutembolos mas recriou e inventou

outros siacutembolos Trata-se de uma cultura que resistiu ao padronismo nesse tipo de arte A

argumentaccedilatildeo eacute que a Iacutendia possui uma cultura milenar mas natildeo eacute possiacutevel concordar com essa

afirmaccedilatildeo A muacutesica popular brasileira por exemplo consiste nessa resistecircncia a certos

lsquoamericanismosrsquo como a muacutesica ldquoBrasil Pandeirordquo e ateacute mesmo a Muacutesica Popular Brasileira

em geral Tambeacutem a Tropicaacutelia diante da Ditadura eacute expressatildeo de resistecircncia De qualquer

forma questotildees remanescentes satildeo Por que outros tipos de arte como os quadrinhos natildeo

manifestam essa resistecircncia Afinal os super-heroacuteis estadunidenses como siacutembolos

representantes de uma cultura especiacutefica possuem o mesmo significado no Brasil Tanto o

siacutembolo quanto seu significado permanecem inalterados no processo de importaccedilatildeo Eacute

procurando por essa resposta que se encontraraacute liberdade cultural e espaccedilo pleno para a

expressatildeo identitaacuteria

Referecircncias

DAMATTA Roberto O que faz o brasil Brasil 12 ed Rio de Janeiro Rocco 2001

DEVARAJAN apud ADESNIK D Marvel Comics and Manifest Destiny Weekly Standard 28012005 sect 8 e 9 In httpwwwweeklystandardcomContentPublicArticles000000005181egxmvasppg=1 Acesso 0842006

DINIZ Andreacute Como fazer um super-heroacutei brasileiro Universo HQ dia 09 abr 2004 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwuniversohqcomquadrinhos2004diniz06cfmgt Acesso em 08 abr 2006

GEERTZ Clifford A Interpretaccedilatildeo das Culturas Rio de Janeiro Zahar Editores 1978

GUEDES Roberto A Saga dos Super-Heroacuteis Brasileiros Vinhedo Editoractiva Produccedilotildees Artiacutesticas 2005

______ Quando Surgem os Super-heroacuteis Satildeo Paulo Oacutepera Graacutefica 2004

REBLIN Iuri A Para o Alto e Avante uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteis Porto Alegre Asterisco 2008

VIANA Nildo Heroacuteis e Super-heroacuteis no mundo dos quadrinhos Rio de Janeiro Achiameacute 2005

Interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica Uma abordagem latino-americana a partir do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade

Roberto E Zwetsch402

Introduccedilatildeo

A Ameacuterica Latina e o Caribe apresentam uma diversidade cultural ampla e pouco

considerada no acircmbito da educaccedilatildeo teoloacutegica Normalmente os cursos de teologia oferecidos

em seminaacuterios e faculdades de teologia tanto no acircmbito catoacutelico romano quanto protestante

seguem ainda hoje a heranccedila trazida dos paiacuteses do hemisfeacuterio norte e sua teologia

Esta situaccedilatildeo herdada do passado colonial tambeacutem se manifesta em outras aacutereas do

conhecimento mas sua influecircncia na educaccedilatildeo teoloacutegica teve repercussotildees muito grandes na

praacutetica pastoral das igrejas e por isto merece atenccedilatildeo por parte de quem trabalha com educaccedilatildeo

teoloacutegica seja na esfera acadecircmica seja na formaccedilatildeo das lideranccedilas comunitaacuterias que datildeo vida

ao testemunho evangeacutelico nas sociedades onde as igrejas e comunidades estatildeo inseridas

Reneacute Padilla teoacutelogo equatoriano afirmou que um dos maiores problemas da missatildeo

das igrejas no contexto latino-americano foi o fato de se valer em sua praacutetica missionaacuteria de

teologias descontextualizadas Reportando-se a uma conferecircncia internacional sobre a

comunicaccedilatildeo do evangelho na Ameacuterica Latina conta que algueacutem observou que sem teologia a

evangelizaccedilatildeo se torna proselitismo e a feacute ideologia Imediatamente um evangelista de renome

contestou esta afirmaccedilatildeo defendendo a evangelizaccedilatildeo contra a teologia Disse ele ldquoQue sentido

tem investir tempo e energia na teologia quando a demanda agora eacute pregar o evangelhordquo Ora

escreveu Padilla este fato exemplar soacute revela o que a histoacuteria da igreja cristatilde na Ameacuterica Latina

legou ao povo de Deus ldquoa igreja na Ameacuterica Latina eacute uma igreja sem teologiardquo403

Pode-se argumentar entretanto que houve sim teologia mas teologia colonial

importada imposta a uma realidade que se rebelava contra as afirmaccedilotildees doutrinaacuterias e que

com as exceccedilotildees de regra natildeo soube encarnar o evangelho biacuteblico na nova realidade de povos e

culturas estranhas agraves matrizes culturais e de pensamento norte-atlacircnticas

A partir dos anos de 1950 esta situaccedilatildeo da educaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina

comeccedila a mudar tanto por razotildees internas agraves igrejas quanto devido agraves novas conjunturas

poliacuteticas econocircmicas e culturais que passam a questionar o status quo na regiatildeo Os

movimentos de libertaccedilatildeo as novas teorias sociais a busca por uma nova inserccedilatildeo no contexto

internacional por parte das naccedilotildees latino-americanas estes e outros fatores fizeram com que

402 Doutor em Teologia professor de Teologia Praacutetica e Missiologia da Escola Superior de Teologia ndash Faculdades EST em Satildeo Leopoldo RS Secretaacuterio Executivo de CETELA ndash Comunidade de Educaccedilatildeo Teoloacutegica Ecumecircnica Latino-Americana e Caribenha Escreveu vaacuterios livros e artigos destacando-se sua tese de doutorado Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 403 PADILLA C Reneacute Missatildeo integral Ensaios sobre o reino e a igreja Trad EmilA Sobottka Satildeo Paulo FTL-B Temaacutetica 1992 p 104

surgisse na Ameacuterica Latina um ambiente favoraacutevel a repensar a educaccedilatildeo como um todo A

pedagogia de Paulo Freire e outras pedagogias de transformaccedilatildeo surgem no iniacutecio dos anos de

1960 como um elemento desse movimento de renovaccedilatildeo e mudanccedila

Ora este novo momento histoacuterico acaba por influenciar a teologia e a educaccedilatildeo

teoloacutegica No campo protestante o teoacutelogo presbiteriano Richard Shaull que lecionou no

Seminaacuterio de Campinas nos anos de 1950 arrisca uma teologia da revoluccedilatildeo acompanhando um

conjunto de intelectuais cristatildeos que assumiram as lutas por reformas de base como desafio para

a praacutetica da feacute evangeacutelica404 Natildeo por acaso em 1962 a Confederaccedilatildeo Evangeacutelica do Brasil

organiza a famosa Conferecircncia do Nordeste com o tema ldquoCristo e o Processo Revolucionaacuterio

no Brasilrdquo sob a coordenaccedilatildeo do ativo Departamento de Accedilatildeo Social da CEB O socioacutelogo

Waldo Ceacutesar escreveu em 1968 junto com outros colegas sobre ldquoProtestantismo e

imperialismo na Ameacuterica Latinardquo com uma anaacutelise francamente criacutetica agrave dominaccedilatildeo cultural e

religiosa dos EUA no continente o que inclui o tipo de formaccedilatildeo teoloacutegica que se praticava nos

seminaacuterios protestantes405 Em 1969 Rubem Alves publica nos EUA sua tese de doutorado em

que investiga a teologia como linguagem criacutetica e potencialmente subversiva do status quo Seu

livro deveria chamar-se Teologia da Libertaccedilatildeo mas acabou publicado por insistecircncia do

editor com o nome de Teologia da esperanccedila humana numa referecircncia criacutetica agrave obra do

teoacutelogo alematildeo Juumlrgen Moltmann que publicara em 1964 sua Teologia da esperanccedila406

Pode-se afirmar com seguranccedila que eacute a partir dessa eacutepoca que surgem na Ameacuterica

Latina os primeiros textos para a elaboraccedilatildeo de um pensamento teoloacutegico autoacutectone seja o que

se queira dizer com esta palavra Pela primeira vez na histoacuteria do cristianismo latino-americano

um corpo de teoacutelogos e logo mais tambeacutem teoacutelogas passou a interrogar-se de maneira nova

procurando inserir-se com sua reflexatildeo no movimento social que brotava das situaccedilotildees de

injusticcedila social e miseacuteria e que exigiam mudanccedilas substantivas nas estruturas coloniais e

neocoloniais responsaacuteveis por manter as sociedades divididas entre uma elite rica bem situada e

uma multidatildeo de pobres sem perspectivas de futuro Estas reflexotildees ganharam cada vez mais

consistecircncia sistemaacutetica e profundidade na investigaccedilatildeo A teologia da libertaccedilatildeo eacute o resultado

de um movimento teoloacutegico inovador criacutetico e comprometido com a mudanccedila social Nas

deacutecadas seguintes surgem em todo o Brasil e tambeacutem em diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina

cursos de poacutes-graduaccedilatildeo com o intuito de formar uma nova geraccedilatildeo de teoacutelogas e teoacutelogos

404 SHAULL Richard De dentro do furacatildeo Richard Shaull e os primoacuterdios da teologia da libertaccedilatildeo Satildeo Paulo Sagarana CEDI CLAI Programa Ecumecircnico de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo 1985 405 CESAR Waldo et alii Protestantismo e imperialismo na Ameacuterica Latina Petroacutepolis Vozes 1968 406 ALVES Rubem Religioacuten iquestopio o instrumento de liberacioacuten Trad Rosario Lorente Montevideo Tierra Nueva 1970 Chamo a atenccedilatildeo para estas datas pois elas confirmam que a teologia da libertaccedilatildeo que logo depois ganha sua expressatildeo claacutessica na obra do teoacutelogo catoacutelico peruano Gustavo Gutieacuterrez Teologiacutea de la liberacioacuten Perspectivas Lima CEP 1971 eacute na verdade uma reflexatildeo que nasce como resultado de um esforccedilo ecumecircnico de setores das igrejas mais abertas aos clamores dos pobres e que buscou dar respostas aos desafios que a vida de milhotildees de pessoas colocavam para as igrejas e suas praacuteticas pastorais ainda que natildeo tenha sido programada como tal Cf ainda REBLIN Iuri Andreas Outros cheiros outros sabores O pensamento teoloacutegico de Rubem Alves Satildeo Leopoldo EST Oikos 2009

Estes intelectuais cristatildeos desde entatildeo natildeo mais pararam de produzir inovar e provocar o

pensamento teoloacutegico a partir de suas novas intuiccedilotildees Tanto que nomes como os de Leonardo

Boff Gustavo Gutieacuterrez Jon Sobrino Ivone Gebara Elsa Tamez Luis Carlos Susin Diego

Irarraacutezaval Ernesto Cardenal Rubem Alves Milton Schwantes Carlos Mesters Joseacute Comblin

Joatildeo Batista Libacircnio Julio de Santa Ana Hugo Assmann Franz Hinkelammert e tantos outros

se tornaram referecircncias internacionais no campo teoloacutegico Chama a atenccedilatildeo que maior parte

desses teoacutelogos e teoacutelogas estudaram na Europa ou EUA mas definitivamente sua perspectiva

de anaacutelise tornou-se latino-americana e criacutetica agrave teologia norte-atlacircntica Como consequumlecircncia

desde entatildeo teologia e sociedade natildeo mais se separaram ainda que nem sempre as orientaccedilotildees

sejam similares

No que se refere agrave educaccedilatildeo teoloacutegica eacute interessante lembrar aqui que nos anos de 1970

houve experiecircncias ineacuteditas no Brasil No Nordeste com o apoio do padre Joseacute Comblin vai

nascer a teologia da enxada uma experiecircncia de inserccedilatildeo de seminaristas em zonas rurais de

Pernambuco com o objetivo de estudar teologia a partir das perguntas e do drama do povo do

sertatildeo Nas cidades comeccedilam a se organizar as diferentes pastorais grupos organizados nas

igrejas para atuarem em contextos especiacuteficos como por exemplo a pastoral operaacuteria a

pastoral da terra a pastoral universitaacuteria a pastoral da mulher a pastoral da crianccedila e assim

por diante Esta inserccedilatildeo em diferentes contextos sociais exigiu o exerciacutecio de uma nova

reflexatildeo teoloacutegica pois a teologia que vinha pronta dos seminaacuterios natildeo mais respondia agraves

demandas daquelas pessoas Foi necessaacuterio e urgente repensar o legado teoloacutegico recebido o

que obrigou a uma volta agraves fontes se assim se pode dizer Um exemplo a releitura biacuteblica que

o Movimento Biacuteblico comeccedila a praticar desde os anos de 1960 na Ameacuterica Latina eacute algo que

motivou novas descobertas na interpretaccedilatildeo biacuteblica aproximando o texto da realidade e a

realidade da vida das pessoas daqueles velhos textos A leitura da Biacuteblia e a leitura da vida em

muacutetuo questionamento passaram a ser um dos elementos mais fortes dessa nova visatildeo teoloacutegica

que nascia junto com as luta por transformaccedilotildees sociais Isto repercutiu nos curriacuteculos das

escolas de teologia mesmo naquelas que primavam por uma posiccedilatildeo mais conservadora e

doutrinaacuteria O mesmo se pode afirmar de outras aacutereas do estudo teoloacutegico como a nova

perspectiva de histoacuteria da igreja que encontrou em CEHILA ndash Comissatildeo Ecumecircnica de Histoacuteria

da Igreja na Ameacuterica Latina ndash uma expressatildeo organizada de um conjunto de pesquisadores que

transformou completamente a visatildeo que se tinha da histoacuteria eclesiaacutestica em nossa regiatildeo

CEHILA eacute responsaacutevel por um sem nuacutemero de publicaccedilotildees que hoje ajudam a rever o passado

colonial com novas chaves de leitura o que evidentemente repercutiu numa nova atitude diante

dos desafios presentes e futuros que se colocam para as igrejas

Eacute nessa eacutepoca que muitos estudantes de teologia saiacuteram dos seminaacuterios e faculdades de

teologia para se inserirem nas periferias das cidades em pequenos grupos de vida comunitaacuteria O

intuito foi encarnar-se na realidade daqueles contextos deixando-se questionar pela vida e o

drama concreto das pessoas para entatildeo formular uma reflexatildeo teoloacutegica que estivesse embebida

destas novas percepccedilotildees da vida cotidiana Tratava-se de evidenciar a praacutexis da feacute como

elemento primordial para a reflexatildeo teoloacutegica407

Trinta anos depois ao final do seacuteculo 20 e iniacutecio do seacuteculo 21 podemos sentir que nos

encontramos num novo momento Se antes a teologia ficava restrita aos ambientes eclesiaacutesticos

e era ensinada como curso livre depois de longas demandas junto ao Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e

ao Congresso brasileiro a partir de 1999 a teologia finalmente foi aceita como curso de ensino

superior e situada no campo das ciecircncias humanas paradoxalmente Desde entatildeo existe em

todo o paiacutes um movimento que se instaurou entre os seminaacuterios e faculdades de teologia para a

busca de autorizaccedilatildeo e reconhecimento dos antigos cursos livres Este fato trouxe consigo

ganhos para a educaccedilatildeo teoloacutegica tanto em termos de qualidade dos cursos como de

qualificaccedilatildeo do corpo docente e dos proacuteprios egressos mas tambeacutem acarreta implicaccedilotildees quanto

ao que se entende por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade ou que responda a certos padrotildees

baacutesicos vaacutelidos para as pessoas para as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas e para a proacutepria academia

O Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estaacute debatendo a questatildeo e comeccedila a elaborar

criteacuterios que no futuro poderatildeo valer para a avaliaccedilatildeo das instituiccedilotildees que oferecem educaccedilatildeo

teoloacutegica no Brasil ainda que o debate receacutem tenha comeccedilado e natildeo sem provocar apoio e

contestaccedilatildeo408 Nesse contexto um documento recente pode tornar-se uma referecircncia criacutetica e

uma plataforma de discussatildeo para fazer avanccedilar o debate sobre que educaccedilatildeo teoloacutegica melhor

responde aos desafios que as pessoas as igrejas e as sociedades colocam atualmente para a

reflexatildeo a partir da feacute na Ameacuterica Latina Trata-se do Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica

de qualidade documento que surgiu na Boliacutevia a partir do trabalho de uma ONG que presta

consultoria a instituiccedilotildees teoloacutegicas latino-americanas ndash Servicios Pedagoacutegicos y Teoloacutegicos ndash e

que recebeu a primeira formulaccedilatildeo de parte do Dr Matthiacuteas Preiswerk teoacutelogo reformado suiacuteccedilo

que vive naquele paiacutes haacute mais de 30 anos e que atua tambeacutem como professor no ISEAT ndash

Instituto Superior Ecumeacutenico Andino de Teologiacutea O documento foi apresentado numa reuniatildeo

do Foacuterum de Associaccedilotildees Teoloacutegicas da Ameacuterica Latina depois reformulado e soacute entatildeo

divulgado amplamente por meios eletrocircnicos como um texto para debate Mais de cem teoacutelogas

e teoacutelogos de renome na Ameacuterica Latina jaacute assinaram este Manifesto409 de tal forma que ele se

407 Harding Meyer professor de teologia alematildeo da Faculdade de Teologia da Igreja Evangeacutelica de Confissatildeo Luterana numa palestra a estudantes universitaacuterios em 1961 (sic) afirmou que para se desenvolver uma teologia autoacutectone ldquoprecisa-se de reflexatildeo teoloacutegica que acontece em confronto incondicional com as situaccedilotildees concretas e especiacuteficas e problemas raciais sociais poliacuteticos culturais e religiosos e que por isso natildeo pode ser intermediada a partir de fora [] mas precisa ser trabalhada e formulada in locordquo Outro teoacutelogo alematildeo na mesma eacutepoca escreveu ldquoSomente quando a cultura brasileira for examinada responsavelmente a partir do evangelho a Igreja evangeacutelica estaraacute em casa na realidade espiritual e cultural brasileira ndash mesmo com distacircncia criacuteticardquo Apud SCHUENEMANN Rolf Do gueto agrave participaccedilatildeo O surgimento da consciecircncia soacutecio-poliacutetica na IECLB entre 1960 e 1975 Satildeo Leopoldo Sinodal IEPGEST 1992 p 59s 408 Cf Parecer do Conselho Nacional de EducaccedilatildeoCacircmara de Educaccedilatildeo Superior n 1182009 ZABATIERO Julio O estatuto acadecircmico da teologia agrave luz do Parecer 1182009 do CNE 9 p (texto ineacutedito) 409 Cf versatildeo eletrocircnica em diversas liacutenguas in wwwserviciosptorg Para contato com o Dr Matthiacuteas Preiswerk escrever para serviciosptgmailcom Em Anexo segue a iacutentegra do Manifesto conforme a traduccedilatildeo brasileira O

torna pouco a pouco um marco para as discussotildees atuais em torno da educaccedilatildeo teoloacutegica na

Ameacuterica Latina

No texto que segue pretendo apresentar brevemente o modelo claacutessico de curriacuteculo

teoloacutegico que vigorou por mais de cem anos no Brasil e na Ameacuterica Latina e a consequumlente luta

por contextualizar a teologia para que ela possa responder agrave diversidade cultural que caracteriza

as sociedades latino-americanas Faz parte desse processo mais recente a busca de muitas

instituiccedilotildees teoloacutegicas por autorizaccedilatildeo e reconhecimento oficial de seus cursos de teologia que

entatildeo se inserem nos sistemas nacionais de ensino superior tanto no Brasil como em diversos

paiacuteses da Ameacuterica Latina (por exemplo Argentina Boliacutevia Costa Rica Nicaraacutegua)410 Em

seguida apresento o Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade tecendo algumas

consideraccedilotildees sobre o mesmo destacando desafios cruciais que a educaccedilatildeo teoloacutegica precisa

assumir num contexto em franca transformaccedilatildeo e com uma diversidade cultural e religiosa que

natildeo pode ser ignorada por quem exerce a funccedilatildeo de pensar a feacute com os peacutes no chatildeo da vida e da

histoacuteria Seguem algumas reflexotildees finais para a continuidade do debate e pesquisa sobre este

tema

1 ndash Os modelos claacutessicos de curriacuteculo teoloacutegico e a luta pela contextualizaccedilatildeo da Teologia

na Ameacuterica Latina

Desde muito cedo na histoacuteria da igreja cristatilde a educaccedilatildeo do povo de Deus se tornou um

requisito para sua missatildeo de divulgar o evangelho de Jesus Cristo no mundo A proacutepria

existecircncia dos evangelhos e das cartas apostoacutelicas como texto escrito no primeiro seacuteculo atestam

esta decisatildeo por parte das primeiras comunidades cristatildes Mais tarde desenvolveu-se um campo

de estudos que tinha por objetivo o aprofundamento da feacute e dos conselhos para a vida cristatilde no

mundo Os escritos dos Padres da Igreja (Tertuliano Irineu Oriacutegenes Clemente Agostinho) e

mais tarde a teologia elaborada por Bernardo Tomaacutes de Aquino Mestre Eckart e tantos outros

eminentes teoacutelogos contribuiacuteram para que a igreja cristatilde constituiacutesse um corpo doutrinaacuterio e

teoloacutegico que atravessa os seacuteculos e continua a ser revisitado ainda hoje

Na Idade Meacutedia a teologia passou a ser a rainha das disciplinas da Universidade

europeacuteia Somente no alvorecer da Idade Moderna com o avanccedilo das ciecircncias fiacutesicas

matemaacuteticas e bioloacutegicas eacute que a teologia pouco a pouco vai perdendo a sua posiccedilatildeo

texto original foi publicado em espanhol por SPT em La Paz Boliacutevia Por sua importacircncia para o atual debate internacional em torno da educaccedilatildeo teoloacutegica o texto jaacute estaacute traduzido para o inglecircs e o francecircs Cf wwwserviciosptorg 410 Para um breve retrospecto da histoacuteria da educaccedilatildeo teoloacutegica no Brasil e o reconhecimento oficial da Teologia como curso de ensino superior no Brasil cf ZWETSCH Roberto E Nova situaccedilatildeo do ensino de teologia no Brasil a experiecircncia da Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangeacutelica de Confissatildeo Luterana no Brasil in OSOWSKI Ceciacutelia (Org) Teologia e Humanismo social cristatildeo Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 p 273-286

dominante para se tornar um conhecimento entre outros Isto acontece com o avanccedilo do

processo de secularizaccedilatildeo da sociedade ocidental

Desde entatildeo a teologia passou a ser ensinada como um estudo acadecircmico que requeria

boa formaccedilatildeo linguumliacutestica filoloacutegica histoacuterica e retoacuterica No sentido claacutessico do estudo

teoloacutegico ele abarcava primeiramente dois grandes campos a Biacuteblia e a Histoacuteria Soacute mais tarde

foi se criando uma diferenciaccedilatildeo que por fim estabeleceu as seguintes trecircs aacutereas do ensino e do

estudo teoloacutegico Biacuteblia Histoacuteria e Teologia Teologia Aplicada ou Praacutetica

Cada uma dessas aacutereas tinha seus proacuteprios instrumentos de pesquisa por exemplo para os

estudos biacuteblicos a exegese e a homileacutetica se necessitava o conhecimento das liacutenguas antigas

hebraico grego e latim No caso da Histoacuteria e da Teologia se requeria o conhecimento da

histoacuteria da filosofia desde os gregos A Teologia Aplicada ou Praacutetica soacute veio a ganhar espaccedilo na

academia em meados do seacuteculo 19 principalmente pela insistecircncia de Friedrich Schleiermacher

para quem a teologia soacute faz sentido se ela serve agrave igreja e agrave praacutetica da feacute na comunidade411

Este esquema claacutessico das trecircs aacutereas permaneceu vigente por mais de 200 anos e

tambeacutem chegou ao Brasil quando da implantaccedilatildeo dos primeiros cursos de teologia Mais adiante

se abriu uma nova aacuterea de estudos que se chamou em alguns seminaacuterios de Correlaccedilatildeo

Incluiacuteram-se novas ciecircncias como auxiliares ou correlacionadas ao estudo teoloacutegico sociologia

antropologia psicologia dinacircmica de grupo pedagogia e outras Evidentemente eacute necessaacuterio

fazer uma diferenciaccedilatildeo entre o ensino da teologia nos seminaacuterios catoacutelicos romanos os

primeiros a se organizarem no Brasil desde o periacuteodo colonial e os seminaacuterios e faculdades de

teologia protestantes que somente satildeo criados no decorrer da primeira metade do seacuteculo 20 com

uma ou outra exceccedilatildeo

No caso dos seminaacuterios catoacutelicos sempre existiu a premissa do ensino da filosofia

aristoteacutelica e a Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino bem como as doutrinas dos Papas e dos

Conciacutelios Assim o componente doutrinal predominou nesses seminaacuterios Todavia eacute

surpreendente como ao longo da histoacuteria da igreja catoacutelica no Brasil se pode encontrar um veio

progressista que se mostra na atuaccedilatildeo de padres que muito contribuiacuteram para o desenvolvimento

do pensamento brasileiro e da inserccedilatildeo da feacute nas realidades profanas da sua histoacuteria O advento

do Conciacutelio Vaticano II (1962-1965) a orientaccedilatildeo para o aggiornamento do grande Papa Joatildeo

XXIII repercutiu positivamente nos seminaacuterios e proporcionou novos ares agrave educaccedilatildeo teoloacutegica

na igreja catoacutelica Surge uma nova teologia que procura reler a tradiccedilatildeo e dar novas respostas

numa clara tentativa de inserir-se nas realidades profanas do mundo e da histoacuteria Grandes

nomes desse novo momento satildeo Yves Congar Karl Rahner Edward Schillebeeckx mais tarde

os representantes da Teologia Poliacutetica alematilde como J B Metz e outros

411 Cf HOCH Lothar C O lugar da teologia praacutetica como disciplina teoloacutegica In SCHNEIDER-HARPPRECHT Christoph (Org) Teologia praacutetica no contexto da Ameacuterica Latina Satildeo Leopoldo Sinodal ASTE 1998 p 23-26

Os seminaacuterios protestantes de um modo geral surgem como resultado da atuaccedilatildeo

missionaacuteria com algumas exceccedilotildees como a Faculdade de Teologia da Igreja Evangeacutelica de

Confissatildeo Luterana no Brasil hoje Escola Superior de Teologia (EST) fundada em 1946 como

uma decisatildeo eclesial em vista da formaccedilatildeo de um clero nacional Desde os primeiros intentos

nessa luta por formaccedilatildeo teoloacutegica poreacutem se estabelece um debate que perpassa todo o seacuteculo

20 e ainda hoje natildeo estaacute de todo resolvido

Por um lado temos a ideacuteia de que a teologia e o ensino teoloacutegico estatildeo em funccedilatildeo das

igrejas da pregaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica o que exige uma preparaccedilatildeo seacuteria e responsaacutevel

academicamente fundamentada Mas desde logo se estabeleceu a pergunta sobre a incidecircncia

praacutetica desse ensino O teoacutelogo anglicano Jaci Maraschin escreveu no iniacutecio dos anos de 1970

A educaccedilatildeo teoloacutegica faz parte da funccedilatildeo preciacutepua da Igreja Natildeo me parece saudaacutevel

equacionaacute-la agrave academia A grande educadora eacute a Igreja (enquanto instrumento visiacutevel

do Cristo e sob o influxo do Espiacuterito Santo) enquanto povo de Deus disperso no

mundo participante e cooperante nos planos de Deus para a criaccedilatildeo412

Por outro lado Rubem Alves na mesma eacutepoca e com base na pedagogia da liberdade de

Paulo Freire adverte para o componente criacutetico da educaccedilatildeo inserindo aiacute tambeacutem a educaccedilatildeo

teoloacutegica Para Alves a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica soacute fazem sentido se preservarem seu

caraacuteter regenerador e criacutetico Soacute assim a educaccedilatildeo teoloacutegica teria uma contribuiccedilatildeo de valor

permanente para a ldquoedificaccedilatildeo expansatildeo e reforma da Igrejardquo Nessa perspectiva o mundo atual

jaacute natildeo aceita mais a tutela da Igreja que natildeo soacute eacute rejeitada devido ao avanccedilo das ideacuteias

democraacuteticas e de novos conceitos de cidadania e governo poliacutetico A teologia e a igreja

precisam responder agrave criacutetica da religiatildeo que as considerou como formas de escravidatildeo de

alienaccedilatildeo e opressatildeo agrave liberdade das pessoas413

Esta compreensatildeo de uma educaccedilatildeo teoloacutegica acadecircmica voltada exclusivamente para

as questotildees internas das igrejas em dado momento passou a ser severamente criticada e em seu

lugar surge a necessidade de contextualizar a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica Nesse sentido a

educaccedilatildeo teoloacutegica passou a ser entendida principalmente a partir dos anos de 1970 como um

espaccedilo de reflexatildeo sobre a natureza da feacute cristatilde e seu relacionamento com o mundo com a

sociedade Ela assume entatildeo um caraacuteter mais criacutetico e contundente quanto agraves estruturas que

prevalecem na sociedade e que causam pobreza miseacuteria e opressatildeo sobre as maiorias

Num texto de 1970 Rubem Alves antecipa uma visatildeo de educaccedilatildeo teoloacutegica que soacute

mais tarde foi assumida por alguns seminaacuterios e faculdades de teologia protestantes natildeo sem

causar dificuldades na sua relaccedilatildeo com as direccedilotildees das igrejas Ele escreveu

412 Apud LONGUINI NETO Luiz Educaccedilatildeo teoloacutegica contextualizada Satildeo Paulo ASTE IEPG em Ciecircncias da Religiatildeo 1991 p 64 413 LONGUINI NETO 1991 p 65

Diriacuteamos que o alvo da educaccedilatildeo teoloacutegica eacute a criaccedilatildeo de uma consciecircncia criacutetica

inserida no presente destinada a negar tudo o que for desumano em qualquer tipo de

sociedade seja ela conservadora ou revolucionaacuteria Partindo da negaccedilatildeo do presente ela

se dirigiria agrave exploraccedilatildeo do caraacuteter inacabado do mundo na busca das possibilidades

positivas que ateacute o momento permanecem agrilhoadas Deve portanto determinar-se

pela esperanccedila E vemos pelo exame da consciecircncia profeacutetica que essa consciecircncia soacute

pode ser criada no contexto de profundo envolvimento no mundo secular com suas

dores e esperanccedilas Nesse contexto a educaccedilatildeo teoloacutegica poderia vir a ser uma praacutetica

da liberdade414

Teologia profeacutetica como praacutetica da liberdade deve se tornar um discurso da esperanccedila

para o mundo secular esta a proposta que Rubem Alves defendeu naquela eacutepoca A teologia da

libertaccedilatildeo que surgiu por essa eacutepoca na Ameacuterica Latina foi precisamente um passo decisivo na

busca por uma reflexatildeo autoacutectone e calcada na realidade deste continente O teoacutelogo peruano

Gustavo Gutieacuterrez um de seus formuladores claacutessicos definiu esta teologia como uma reflexatildeo

criacutetica sobre e a partir da praacutexis histoacuterica de libertaccedilatildeo cujo fundamento estaacute na redescoberta do

amor como centro da vida cristatilde A partir da inserccedilatildeo de pessoas e lideranccedilas cristatildes nos

movimentos sociais de libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina se concretizou uma nova compreensatildeo e

vivecircncia da feacute cristatilde Escreveu ele em 1971

Isto levou a ver a feacute mais biblicamente como um ato de confianccedila de saiacuteda de si

mesmo como um compromisso com Deus e com o proacuteximo como uma relaccedilatildeo com os

demais Eacute nesse sentido que Satildeo Paulo nos diraacute que a feacute atua pela caridade [] Esse eacute o

fundamento da praacutexis do cristatildeo de sua presenccedila ativa na histoacuteria Para a Biacuteblia a feacute eacute a

resposta total do homem a Deus que salva por amor Nesta perspectiva a inteligecircncia da

feacute aparece como a inteligecircncia natildeo de uma simples afirmaccedilatildeo [] mas de um

compromisso de uma atitude global de uma postura diante da vida415

O compromisso de que fala Gutieacuterrez passou a ser assumido crescentemente na Ameacuterica

Latina pelos setores mais progressistas das igrejas Dessa forma a teologia e a educaccedilatildeo

teoloacutegica que a secundava cobraram uma nova incidecircncia nos contextos de opressatildeo e luta por

justiccedila Tratava-se de uma luta por recuperar e viver plenamente a dignidade da filiaccedilatildeo divina

E esta natildeo podia concordar com a pobreza a miseacuteria e a injusticcedila reinantes no cotidiano da vida

de milhotildees de pessoas Para natildeo deixar margem a equiacutevocos e ambiguumlidades Gutieacuterrez escreveu

sobre este processo o seguinte 414 Apud LONGUINI NETO 1991 p 66 Para mais informaccedilotildees do debate sobre a educaccedilatildeo teoloacutegica nos anos de 1980 cf MATEUS Odair Pedroso (Ed) Educaccedilatildeo teoloacutegica em debate Satildeo Paulo ASTE Satildeo Leopoldo Sinodal 1988 415 GUTIEacuteRREZ Gustavo Teologiacutea de la liberacioacuten Perspectivas Lima CEP 1971 p 21 Para um desdobramento dessa teologia em relaccedilatildeo agrave teologia da missatildeo na Ameacuterica Latina cf ZWETSCH Roberto E Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 p 335-362

uma opccedilatildeo clara pelo setor oprimido e por sua libertaccedilatildeo leva a reconsideraccedilotildees

profundas e a uma visatildeo da fecundidade e originalidade do cristianismo assim como do

papel que a comunidade cristatilde pode jogar nesse processo A esse respeito natildeo haacute soacute

uma vontade reafirmada mas experiecircncias concretas de como dar testemunho do

Evangelho no hoje da Ameacuterica Latina Poreacutem satildeo muitas as questotildees que ficam por

resolver a nova vitalidade que se pode pressagiar natildeo tem todavia diante dela um

horizonte claro416

O cuidado com que Gutieacuterrez emitiu seu prognoacutestico naquele momento foi plenamente

justificado posteriormente A proacutepria teologia da libertaccedilatildeo desdobrou-se em novas teologias

assumindo um rosto plural exigido pela vitalidade dos movimentos sociais das comunidades

eclesiais e das pessoas nelas envolvidas O advento de outras teologias como a teologia

feminista a teologia indiacutegena a teologia afroamericana a teologia da terra a teologia gay (mais

recentemente teologia queer) como aprofundamento e criacutetica das primeiras formulaccedilotildees da

teologia da libertaccedilatildeo satildeo expressatildeo da capacidade de a teologia cristatilde se renovar e de dialogar

com novas realidades histoacutericas para aleacutem do acircmbito estritamente eclesial

Sem duacutevida muito do que se debateu nas deacutecadas seguintes como sentido da educaccedilatildeo

teoloacutegica na Ameacuterica Latina e particularmente no Brasil foi desdobramento atualizaccedilatildeo

contestaccedilatildeo novas buscas daquele debate que mudou o tipo de teologia que por muito tempo se

ensinou nos seminaacuterios e faculdades de teologia

A partir da deacutecada de 1990 novos impulsos e questionamentos trazem consigo a

necessidade de se repensar a educaccedilatildeo teoloacutegica E nesse sentido um desafio premente foi a

relaccedilatildeo entre Teologia e Pedagogia sempre deficiente nos cursos de teologia Mas vale

mencionar ainda outros o avanccedilo dos novos movimentos religiosos a conquista de

significativos espaccedilos de afirmaccedilatildeo das identidades plurais que caracterizam a sociedade as

novas tecnologias da informaccedilatildeo e sua apropriaccedilatildeo por grupos religiosos principalmente as

igrejas pentecostais e neopentecostais as mudanccedilas na economia globalizada o processo

contraditoacuterio de redemocratizaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo ditatorial quebra de paradigmas cientiacuteficos e

assunccedilatildeo de novos valores e de sentido da vida Toda uma nova conjuntura sociocultural

econocircmica e poliacutetica se fez refletir no acircmbito da educaccedilatildeo teoloacutegica De certa forma sentimos

hoje certa perplexidade frente as novas circunstacircncias Tanto a teologia e a ciecircncia quanto a

educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo encontram respostas adequadas e ensaiam propostas para equacionar tatildeo

diversificados e contraditoacuterios desafios

Nesse contexto o Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade (2007) pode

se tornar um documento orientador para definir pelo menos os termos de como a educaccedilatildeo

416 GUTIEacuteRREZ 1971 p 132

teoloacutegica poderia tornar-se relevante seja para as igrejas e comunidades de feacute seja para as

sociedades das quais ela faz parte

2 ndash O desafio da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica ndash Um comentaacuterio ao Manifesto

por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade

Rauacutel Fornet-Betancourt filoacutesofo cubano que leciona em Aachen Alemanha eacute um dos

intelectuais latino-americanos que mais tem pesquisado o tema da interculturalidade na sua

relaccedilatildeo entre Filosofia e Teologia na Ameacuterica Latina Ele tem aprofundado este tema em vaacuterias

publicaccedilotildees e artigos nos uacuteltimos 20 anos Ao nos debruccedilarmos sobre as implicaccedilotildees da

interculturalidade para a educaccedilatildeo teoloacutegica faz bem dialogar com ele pois isto pode servir de

estiacutemulo para avanccedilarmos no debate atua sobre uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade

Fornet-Betancourt afirma que a interculturalidade eacute uma realidade na Ameacuterica Latina e

esta realidade desafia a filosofia que se formulou e se desenvolve ainda hoje nessa parte do

mundo Em sua anaacutelise ele parte de uma suspeita

Minha suspeita [] eacute que a filosofia latino-americana [] natildeo tem sabido responder []

ao desafio do tecido intercultural que caracteriza a realidade cultural da Ameacuterica Latina

Por isso vejo a interculturalidade como uma lsquodisciplina pendentersquo e chamo-a assim

porque entendo que [] a interculturalidade natildeo eacute um chamado de agora fruto da

difusatildeo de uma nova moda filosoacutefica senatildeo mais bem uma demanda de justiccedila cultural

que se vem formulando haacute seacuteculos na histoacuteria social e intelectual da Ameacuterica Latina e

que se houvesse sido escutada teria contribuiacutedo para mudar o curso da histoacuteria da

filosofia na Ameacuterica Latina417

Se este eacute o caso para a filosofia o mesmo se pode dizer e ainda com mais propriedade

para a teologia cristatilde na Ameacuterica Latina Justamente porque o cristianismo chegou com os

colonizadores ibeacutericos sua cegueira para a riqueza cultural que aqui foi encontrada ajudou a

destruir aquele mundo diverso de vivecircncias culturais religiosas eacutetnicas sociais que

predominaram e se desenvolveram por seacuteculos nesta parte do mundo Houve sim genociacutedio no

seacuteculo 16 e junto com esta hecatombe um etnociacutedio que marcou definitivamente a histoacuteria das

relaccedilotildees entre os povos da terra e os colonizadores ibeacutericos Felizmente a destruiccedilatildeo natildeo foi

absoluta e hoje vemos ressurgir povos e culturas que muitos julgavam extintas O movimento

indiacutegena em vaacuterios paiacuteses da Ameacuterica Latina e do Caribe protagoniza novas lutas e ganha

espaccedilo nas sociedades nacionais readquirindo seus direitos a uma cidadania diferenciada Estes

fatos novos tambeacutem incidem sobre as igrejas e as escolas de teologia Natildeo por acaso o

Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade que me proponho comentar aqui surgiu 417 FORNET-BETANCOURT Rauacutel Interculturalidade Criacuteticas diaacutelogo e perspectivas Satildeo Leopoldo Nova Harmonia 2004 p 13

em La Paz Boliacutevia em meio a um novo processo poliacutetico nacional no qual os povos indiacutegenas

readquirem espaccedilo na sociedade e mesmo no governo nacional o que certamente traraacute

consequumlecircncias saudaacuteveis para as tensas relaccedilotildees que desde sempre caracterizaram o contato

entre populaccedilatildeo nacional crioula e povos aboriacutegines

Antes poreacutem cabe aqui registrar o que entendo por interculturalidade Recorro

novamente a uma definiccedilatildeo de Fornet-Betancourt pois ela nos ajuda a colocar bem os termos

que devem orientar o debate da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica

Interculturalidade quer designar [] aquela postura ou disposiccedilatildeo pela qual o ser

humano se capacita para e se habitua a viver lsquosuasrsquo referecircncias identitaacuterias em relaccedilatildeo

com os chamados lsquooutrosrsquo quer dizer compartindo-as em convivecircncia com eles Daiacute

que se trata de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de

reaprendizagem e recolocaccedilatildeo cultural e contextual Eacute uma atitude que [] permite-nos

perceber o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpaacuteveis quando cremos que

basta uma cultura a lsquoproacutepriarsquo para ler e interpretar o mundo418

Como se pode notar o tema da interculturalidade eacute na verdade um desafio que estaacute

posto desde os tempos coloniais O problema eacute que muito raramente ele foi reconhecido e

assumido Temos grandes nomes do passado colonial que abriram seus coraccedilotildees e mentes para

este fato mas foram raros Menciono aqui apenas Bartolomeu de Las Casas no acircmbito da

colonizaccedilatildeo hispacircnica e Antonio Vieira na colonizaccedilatildeo portuguesa Mas mesmo nesses casos

em que os missionaacuterios assumiram corajosamente a defesa dos Direitos Indiacutegenas e de sua

liberdade natildeo se pode dizer que houve um diaacutelogo intercultural pleno e frutiacutefero

Desde que se deu iniacutecio agrave formaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina os modelos que

prevaleceram foram norte-atlacircnticos europeus e anglo-saxotildees Natildeo havia espaccedilo para a cultura

do outro Soacute na segunda metade do seacuteculo 20 eacute que o desafio da interculturalidade comeccedila a ser

assumido na teologia e na educaccedilatildeo teoloacutegica mesmo que timidamente No campo catoacutelico-

romano mencione-se o Documento de Puebla (1979) que pela primeira vez assumiu as culturas

dos povos indiacutegenas como desafio para a evangelizaccedilatildeo e como um fator de riqueza cultural e

humana que natildeo pode ser ignorado

Fornet-Betancourt nos ajuda a situar o desafio de modo ainda mais concreto Ele afirma

que a interculturalidade eacute uma experiecircncia uma vivecircncia do encontro com quem eacute diferente de

noacutes em novos termos E quando tal vivecircncia se daacute num clima de abertura positiva e solidaacuteria eacute

bem provaacutevel que nos demos conta do que o filoacutesofo cubano chama de ldquoimpropriedade dos

nomes proacuteprios com que nomeamos as coisas Ou [] eacute a experiecircncia de que nossas praacuteticas

culturais devem ser tambeacutem praacuteticas de traduccedilatildeordquo419

418 FORNET-BETANCOURT 2004 p 13 419 FORNET-BETANCOURT 2004 p 13

Ora quando se trata de repensar a teologia cristatilde e a educaccedilatildeo teoloacutegica em vista do

desafio intercultural e da convivecircncia com os diferentes mas proacuteximos nos encontramos

precisamente no campo da traduccedilatildeo da busca por nomes proacuteprios que identifiquem sujeitos e

que permitam a estes sujeitos dizerem sua palavra para recordar mais uma vez o saudoso Paulo

Freire

Isto significa que tratar da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica eacute um desafio difiacutecil

custoso e que natildeo teraacute uma resoluccedilatildeo pronta e acabada A meu ver estamos aqui diante de um

desafio permanente que diz respeito agrave realidade da diversidade cultural eacutetnica social que vigora

nas sociedades latino-americanas Temos de assumir definitivamente que somos uma realidade

heterogecircnea diversa multicultural plurirreligiosa na Ameacuterica Latina o que exige um miacutenimo

de justiccedila cultural se de fato desejamos ser sociedades democraacuteticas na qual professamos de

maneira aberta e dialoacutegica o evangelho da vida e do amor divinos420

Com este preacircmbulo passo a comentar o Manifesto em questatildeo chamando a atenccedilatildeo

para os pontos que me pareceram os mais pertinentes para este tema O documento se compotildee

de 13 paraacutegrafos sendo o primeiro uma introduccedilatildeo e o uacuteltimo um chamamento para que se

continue a trabalhar o tema nas instituiccedilotildees teoloacutegicas procurando envolver nesse debate a

docentes estudantes funcionaacuterios comunidades eclesiais enfim todas aquelas pessoas que de

uma ou de outra forma contribuem para levar adiante a educaccedilatildeo teoloacutegica em nosso contexto

O Manifesto entende educaccedilatildeo teoloacutegica como parte da missatildeo da igreja cristatilde no

mundo Eacute uma modalidade particular de educaccedilatildeo que se realiza por meio de uma

ldquoaprendizagem criativa organizada e criacutetica de quem reflete sobre sua feacute ndash isto eacute que fazem

teologia ndash desde a diversidade de seus dons e ministeacuteriosrdquo (sect 2)421 Educaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo

natildeo eacute catequese ou proclamaccedilatildeo do evangelho embora sirva a estas Eacute antes uma forma de se

interrogar sobre as razotildees da feacute que se articula em manifestaccedilotildees concretas de vivecircncias

religiosas diaconais e solidaacuterias Por isto mesmo uma educaccedilatildeo teoloacutegica atenta agraves pessoas

crentes e agraves comunidades de feacute estaraacute sempre aberta ao diaacutelogo com elas diaacutelogo fraterno e

criacutetico ao mesmo tempo Da mesma forma seraacute um serviccedilo agrave promoccedilatildeo e defesa da vida em

todas as suas dimensotildees O que caracteriza a educaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina eacute o fato de

ela se dar num contexto intercultural e interreligioso Por isto o Manifesto anuncia desde o

iniacutecio um propoacutesito grandioso e ao mesmo tempo exigente ldquoQueremos que a educaccedilatildeo

teoloacutegica aleacutem de estar a serviccedilo das Igrejas se deixe interpelar [] pelas teologias expliacutecitas

ou impliacutecitas das tradiccedilotildees religiosas e culturais ancestrais e contemporacircneas de Abya Yalardquo (sect

420 Rauacutel FORNET-BETANCOURT formula sua ideacuteia da praacutetica de um cristianismo intercultural que respeita as outras tradiccedilotildees religiosas na Ameacuterica Latina da seguinte maneira trata-se de chegar a ldquouma praacutetica e elaboraccedilatildeo teoloacutegica da feacute cristatilde que [] eacute confessada no diaacutelogo e com vontade de transformaccedilatildeo pela convivecircncia [] Na convivecircncia pluralista e intercultural as tradiccedilotildees se transformam mas sem se dissolver em uma siacutentese carente de perfis contextuais Um cristianismo intercultural por ser mais universal eacute ao mesmo tempo mais memoacuteria de sua memoacuteriardquo In Religiatildeo e inteculturalidade Satildeo Leopoldo Nova Harmonia Sinodal 2007 p 53 421 A partir desta citaccedilatildeo ao me referir ao Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade vou indicar apenas o paraacutegrafo que estou comentado O texto completo do Manifesto segue em anexo a este trabalho

2) Este pressuposto dialogal natildeo eacute aceito em muitos seminaacuterios e faculdades de teologia

protestantes sem cuidadosas discussotildees (sect 2) Ainda assim eacute importante que conste aqui como

expressatildeo da realidade latino-americana

O paraacutegrafo seguinte define o que no documento se entende por qualidade pois o

conceito natildeo eacute inequiacutevoco Ultimamente ele eacute utilizado com frequumlecircncia na linguagem

empresarial especialmente no contexto das ideacuteias neoliberais Nesse documento entretanto se

arrisca usaacute-lo com outro significado Partindo da praacutetica do ministeacuterio de Jesus como

apresentada no Novo Testamento qualidade na educaccedilatildeo teoloacutegica cristatilde significa

Integrar a Palavra inspiradora e transformadora (Pneuma) com o discurso normativo (Logos)

Assumir a tensatildeo criativa entre a feacute do Povo de Deus e a sofisticaccedilatildeo do discurso sobre a feacute Nutrir-se tanto da luta transformadora e do silecircncio quanto da miacutestica Transitar entre culturas com racionalidades emergentes e a heranccedila de uma cultura e uma

racionalidade dominante Saber que lsquoa verdade se fazrsquo e que ela corre sempre o risco de estar lsquoaprisionada na

injusticcedilarsquo

Em suma o que o documento entende por qualidade implica dialeticamente ldquocombinar

[] a relevacircncia da teologia no contexto da realidade [] de Abya Yalardquo com a ldquopertinecircncia de

uma disciplina que tem identidade e exigecircncias epistemoloacutegicas proacutepriasrdquo ((sect 3)

Mas esta combinaccedilatildeo dialeacutetica e sua importacircncia para as igrejas e as sociedades onde

acontece a educaccedilatildeo teoloacutegica eacute preciso reconhecer natildeo se daacute num contexto muito favoraacutevel

nos dias de hoje Haacute questionamentos que procedem das igrejas sobre o real serviccedilo que a

educaccedilatildeo teoloacutegica lhes presta ateacute aqueles que vem dos movimentos sociais das culturas

ancestrais das instacircncias educativas acadecircmicas ou populares e mais recentemente dos

proacuteprios Ministeacuterios de Educaccedilatildeo que impotildeem requisitos formais cada dia mais exigentes

Isto faz com que o documento mencione a vulnerabilidade que afeta a educaccedilatildeo

teoloacutegica na Ameacuterica Latina (sect 4) Esta situaccedilatildeo portanto cobra maior responsabilidade o que

significa relacionar qualidade com inserccedilatildeo contextual da educaccedilatildeo teoloacutegica assim como

qualidade no que se refere a praacuteticas disciplinas e paradigmas utilizados

Um ponto de partida para uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade eacute o que o documento

chama da ldquoqualidade de vidardquo (sect 5) Deus eacute o autor da vida e as comunidades humanas satildeo parte

da criaccedilatildeo divina que continua ateacute hoje e abraccedila todos os seres vivos dentro do cosmos Por isto

a qualidade de vida de que aqui se fala natildeo eacute um estado mas uma dinacircmica e uma meta

relacional Ela eacute integral material e espiritual corporal e intelectual moral e esteacutetica pessoal e

comunitaacuteria natural e cultural Nesse sentido abarca tanto necessidades como desejos

Como esta concepccedilatildeo de vida integral natildeo eacute garantida nem pelas sociedades nem pelas

igrejas na Ameacuterica Latina reconhecendo que haacute visotildees e praacuteticas diferentes e ateacute contraditoacuterias

em funccedilatildeo da origem social ou cultural de gecircnero ou eacutepoca eacute preciso admitir que tal

diversidade de visotildees utoacutepicas eacute causa de conflitos

Em meio a tais conflitos e as tensotildees proacuteprias entre formas diferenciadas de vida o

documento propugna por uma ldquoformaccedilatildeo teoloacutegica [] aberta agraves novas experiecircncias de feacute a um

futuro renovado ndash sem que fiquemos encerrados em sistemas ou esquemas predeterminados

nem nos deixemos ganhar pela ideologia do sistema uacutenicordquo (sect 5) o que por decorrecircncia leva a

profundas implicaccedilotildees antropoloacutegicas

O paraacutegrafo 6ordm define como o documento entende missatildeo no contexto da busca por

qualidade na educaccedilatildeo teoloacutegica Ela eacute vista a partir da accedilatildeo de Deus e deve ser entendida como

uma praacutetica criadora e transformadora Nesse sentido a qualidade da missatildeo cristatilde estaacute dada por

sua conformidade com a praacutetica e o ministeacuterio de Jesus

O paraacutegrafo seguinte explicita que tipo de educaccedilatildeo teoloacutegica orienta o documento

ldquoLutamos por uma educaccedilatildeo a serviccedilo da vida o que implica uma educaccedilatildeo de qualidade

contiacutenua e permanente para todas as pessoasrdquo (sect 6) Isto significa que de saiacuteda a compreensatildeo

de educaccedilatildeo teoloacutegica aqui defendida se estende ao longo da vida e natildeo se limita a formar

apenas profissionais mas inclui a formaccedilatildeo das pessoas de cada comunidade Ela visa

porgtanto formar para a cidadania responsaacutevel para diversidade o conhecimento criacutetico da

realidade o respeito agraves diferenccedilas optando por uma pedagogia que se baseia nos seguintes

axiomas aprender para aprender aprender a ser aprender a conviver e aprender a

empreender em direccedilatildeo a uma cultura de paz

Considerando os pontos acima o documento assume o paradigma intercultural como

referecircncia epistemoloacutegica em que confluem diversas vertentes e dimensotildees do pensamento e da

accedilatildeo humana (sect 8) Tal paradigma se caracteriza pelos seguintes aspectos

intertransdisciplinaridade e interculturalidade assume uma multiplicidade de formas de

conhecimento e a complexidade das relaccedilotildees interhumanas inclui muacuteltiplas racionalidades e a

variedade de potencialidades humanas (emocional cognitiva corporal espiritual moral

intuitiva criativa e outras) eacute contextual e estaacute inserido na histoacuteria eacute questionador e estaacute em

busca de transformaccedilatildeo da realidade com vistas a uma maior qualidade de vida Por isto mesmo

eacute processual em direccedilatildeo agrave superaccedilatildeo de preconceitos e limitaccedilotildees sempre presentes na vida

Quanto agrave teologia que orienta este novo paradigma o documento se define por uma

teologia que assume criticamente sua proacutepria identidade em interaccedilatildeo com outras teologias

espiritualidades culturas e ideologias Afirma ainda que a ldquomarca evangeacutelica desta teologia

proveacutem de uma revelaccedilatildeo dirigida mais a lsquotolos e pequenosrsquo que a lsquosaacutebios e ilustradosrsquo (sect 9)

Por isto mesmo tal teologia libertadora e liberta de esquemas intelectuais poliacuteticos ou

eclesiaacutesticos encontra nas comunidades de feacute natildeo apenas interlocutoras aptas como tambeacutem

protagonistas dessa teologia Por esta razatildeo ela deveraacute apresentar as seguintes dimensotildees

profeacutetica sapiencial e miacutestica aberta agrave dimensatildeo trinitaacuteria da feacute cristatilde hermeneuticamente

voltada para a releitura biacuteblica com vistas agrave praacutetica transformadora Tal teologia haveraacute de

considerar as tradiccedilotildees especiacuteficas de cada manifestaccedilatildeo eclesial sendo ao mesmo tempo

receptiva e aberta ao diaacutelogo com outras tradiccedilotildees natildeo cristatildes procurando articular uma

espiritualidade com incidecircncia poliacutetica e social

A pergunta pela pedagogia que embasa esta proposta de educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo poderia

faltar Nesse sentido o documento afirma que para se chegar a uma educaccedilatildeo teoloacutegica de

qualidade haacute que contar com o aporte das pedagogias da esperanccedila da transformaccedilatildeo do

diaacutelogo de saberes e da negociaccedilatildeo cultural pedagogias democraacuteticas e democratizadoras em

direccedilatildeo agrave equumlidade de gecircnero entre geraccedilotildees e eacutetnica para se alcanccedilar uma cultura de paz

Nesse sentido esta proposta assume se sabe em diacutevida com a Educaccedilatildeo Popular tatildeo importante

na pedagogia latino-americana das uacuteltimas deacutecadas (sect 10)

Trata-se portanto de pensar e de realizar uma educaccedilatildeo teoloacutegica que se entenda

integrada a um projeto de vida Por isto o documento explicita uma vez mais o argumento de

fundo ldquoQueremos abrir a educaccedilatildeo teoloacutegica agrave multiplicidade de atores que respondem a

carismas e ministeacuterios vinculados por sua vez a diferentes tipos de aprendizagens teoloacutegicas e

modalidades de ensinordquo (sect 11) Nesse sentido o documento aponta para a fecundaccedilatildeo reciacuteproca

entre teologia ou saber popular e exerciacutecio acadecircmico da teologia para a continuidade e

diversidade da educaccedilatildeo teoloacutegica ao longo da vida e em todos os acircmbitos desta para uma

possiacutevel resoluccedilatildeo positiva da tensatildeo entre vocaccedilatildeo reflexatildeo criacutetica e aquisiccedilatildeo de

conhecimento e ferramentas para o compromisso cristatildeo em geral e o trabalho pastoral

especiacutefico

O uacuteltimo paraacutegrafo de conteuacutedo relaciona esta concepccedilatildeo de educaccedilatildeo teoloacutegica de

qualidade com as instituiccedilotildees teoloacutegicas onde se realiza ou se oferece tal educaccedilatildeo (sect 12) Desse

ponto de vista uma gestatildeo institucional de qualidade ldquose mede em funccedilatildeo do niacutevel de

aprendizagem seguranccedila bem-estar confianccedila muacutetua iniciativa assim como de outros criteacuterios

gerais vinculados ao caraacuteter inclusivo agrave diversidade e agrave equumlidade de gecircnerordquo Isto significa

afirmar que o modelo administrativo natildeo pode estar dissociado da pedagogia e da teologia que a

instituiccedilatildeo ensina e da educaccedilatildeo que oferece Nesse sentido a qualidade da instituiccedilatildeo teoloacutegica

requer participaccedilatildeo poliacutetica democraacutetica relaccedilotildees de confianccedila muacutetua e compromisso

profissional transformador transparecircncia e flexibilidade eficiecircncia solidaacuteria empoderamento

dos diferentes atores (docentes estudantes funcionaacuterios comunidade maior) circulaccedilatildeo de

informaccedilotildees e sustentabilidade com autogestatildeo e em busca de menor dependecircncia possiacutevel

quanto a recursos externos

Reflexotildees finais

O Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade eacute um documento arrojado

ineacutedito ao menos em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees teoloacutegicas da Ameacuterica Latina Ele propotildee na

verdade um ideal pois dificilmente vamos encontrar uma soacute instituiccedilatildeo que preencha todas

estas especificaccedilotildees acima anunciadas Ainda assim ele serve como um paracircmetro para a

discussatildeo e a formulaccedilatildeo de projetos de educaccedilatildeo teoloacutegica que estejam em melhores condiccedilotildees

para nos dias de hoje colaborar na busca por respostas aos mais candentes problemas que as

igrejas e a humanidade estatildeo enfrentando Se a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo tecircm em vista

a vida mesma e os clamores que as pessoas lhes trazem desde o seu cotidiano podemos nos

perguntar para que serve a teologia

Em outro texto eu faccedilo referecircncia a uma tarefa importante que cabe agrave teologia na

Ameacuterica Latina atualmente eu a denominei de imaginaccedilatildeo criadora Esta tarefa ou dimensatildeo

intriacutenseca da teologia tambeacutem precisa ganhar espaccedilo na educaccedilatildeo teoloacutegica de nossos dias Pois

ela diz respeito ao futuro agrave esperanccedila Uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade portanto deve

abrir-se agrave imaginaccedilatildeo ao sonho ao ineacutedito possiacutevel como formulou certa vez Paulo Freire

Teologicamente o futuro jaacute estaacute presente ainda que apenas em germe pois a feacute jaacute nos

foi dada e jaacute vivemos em meio aos sinais do novo que Cristo nos ofertou Mas a tensatildeo

se deve ao fato de que ainda natildeo vivemos essa novidade plenamente Aliaacutes soacute a

experimentamos como promessa e cruz Por isso eacute necessaacuterio trabalhar com imagens de

esperanccedila que mobilizem as pessoas que as faccedilam desinstalar-se caminhar lutar

resistir sonhar com novas possibilidades de vida com uma nova sociedade ainda

quando parecemos estar aqueacutem desses sonhos ou diante das surpresas que a histoacuteria nos

reserva e que natildeo conseguimos entender bem422

Isto significa dizer tambeacutem que a imaginaccedilatildeo criadora faz parte da qualidade da

educaccedilatildeo teoloacutegica Se na formaccedilatildeo que propomos faltar esta dimensatildeo possivelmente se estaraacute

na melhor das hipoacuteteses oferecendo notaacutevel conhecimento teoloacutegico mas faltaraacute aquele sal

aquele tempero que faz da comida algo saboroso e inesqueciacutevel E junto com esta dimensatildeo haacute

que resgatar ainda outras caracteriacutesticas presentes desde o seu nascedouro na teologia latino-

americana de libertaccedilatildeo a dimensatildeo poliacutetica irrenunciaacutevel da feacute cristatilde sua presenccedila criadora e

revolucionaacuteria em meio aos pobres da terra com quem dialoga de modo uacutenico e transformador

a dimensatildeo espiritual que caracteriza este conhecimento como movido pelo Espiacuterito libertador

de Cristo e por fim a dimensatildeo missionaacuteria como constitutiva de sua inserccedilatildeo eclesial e de

continuidade com o que define a teologia cristatilde como intellectus amoris na feliz expressatildeo de

Jon Sobrino ldquouma inteligecircncia da realizaccedilatildeo do amor histoacuterico aos pobres deste mundo e do

amor que nos faz afins agrave realidade do Deus reveladordquo423

Referecircncias

422 ZWETSCH Roberto E Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 p 379 423 Apud MUumlLLER Ecircnio Um balanccedilo da Teologia da Libertaccedilatildeo como intellectus amoris in SUSIN Luiz Carlos (Org) Sarccedila ardente Teologia na Ameacuterica Latina Prospectivas Satildeo Paulo Paulinas Belo Horizonte SOTER 2000 p 41-47

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As culturas e a Biacuteblia uma aproximaccedilatildeo agraves diferenccedilas

Flaacutevio Schmitt424

Introduccedilatildeo

Existe consenso entre os entendidos que a Biacuteblia eacute um livro passiacutevel de duas percepccedilotildees

principais a saber ela eacute palavra de Deus e palavra de homens A primeira alternativa natildeo nos

interessa nesse momento Natildeo eacute propoacutesito deste escrito discutir ou argumentar sobre a Escritura

Sagrada cristatilde enquanto revelaccedilatildeo

A Biacuteblia como fruto de uma iniciativa humana reflete os condicionamentos culturais

das pessoas que lhe deram origem Isso tambeacutem jaacute eacute senso comum Afinal a Biacuteblia eacute

testemunha de tempos e lugares O ser humano familiarizado com a cultura biacuteblica toma

consciecircncia bem depressa da grande diversidade de culturas existentes neste livro

Nesse sentido o propoacutesito deste artigo eacute discutir a influecircncia cultural nas tradiccedilotildees que

se tornaram normativas para o texto sagrado judeu e cristatildeo A cultura eacute e representa toda a

produccedilatildeo de conhecimento humano nas aacutereas da arte ciecircncia literatura muacutesica filosofia

poliacutetica economia e religiatildeo A cultura resume todos os costumes ligados agrave famiacutelia agrave

nacionalidade ao trabalho e ao modo de ser humano e encarar a vida425 Por cultura entendemos

a segunda natureza 426 ou seja tudo aquilo que eacute acrescentado ao ser humano bioloacutegico natural

em determinado lugar e eacutepoca Por sua vez cultura religiosa diz respeito agrave segunda natureza do

ser humano relacionada com a religiatildeo

Os estudos na aacuterea da antropologia jaacute se preocupam haacute muito em verificar como as

religiotildees se parecem e se diferenciam A Histoacuteria Comparada das Religiotildees e a Histoacuteria das

Religiotildees trataram de verificar as caracteriacutesticas peculiares a cada religiatildeo bem como os

aspectos que lhe satildeo comuns Independente de sua natureza religiatildeo eacute sempre fruto de um

processo histoacuterico Eacute ao longo do tempo que as religiotildees satildeo forjadas A histoacuteria registra que de

tempos em tempos ocorrem novas siacutenteses que excluem e reuacutenem elementos numa nova

configuraccedilatildeo

Mais recentemente o estudo do contato entre culturas diferenciadas tornou-se um

campo de estudo bastante dinacircmico onde satildeo identificadas categorias essenciais de anaacutelise que

problematizam a recepccedilatildeo a reaccedilatildeo a alteraccedilatildeo e transformaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de referenciais

424 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo professor de Biacuteblia Novo Testamento ndash Faculdades EST em Satildeo Leopoldo RS

425 Michael Horton O Cristatildeo e a cultura p 12 426 Jung Mo Sung Conversando sobre Eacutetica e Sociedade p46

culturais que permitem sobrevivecircncia e continuidade de distintas comunidades ainda que natildeo

fossem mais as mesmas apoacutes essas interaccedilotildees resultando na pluralidade de representaccedilotildees427

Dessa maneira nasceu o cristianismo Dessa maneira nasceram todas as religiotildees O

mesmo fenocircmeno aconteceu com a religiatildeo de Israel Eacute na influecircncia de diferentes tradiccedilotildees

religiosas ou natildeo que devemos buscar a contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo das religiotildees na

atualidade

A Arqueologia Biacuteblica ramo da Arqueologia do Oriente Proacuteximo tambeacutem tem

procurado demonstrar como a cultura material estaacute ligada agrave constituiccedilatildeo de identidades

religiosas Os trabalhos iniciados com a primeira escavaccedilatildeo cientiacutefica propriamente dita na

Palestina em 1890 promovida pelo inglecircs William Matthew Flinders Petrie em Tell el-Hesi e

se multiplicados com a criaccedilatildeo de Fundaccedilotildees e Sociedades como o Fundo de Exploraccedilatildeo da

Palestina [Palestine Exploration Fund] na Inglaterra em 1865 a Associaccedilatildeo alematilde de pesquisa

na Palestina [Deutscher Verein zur Erforschung Palaumlstinas] de 1877 e a Sociedade Oriental

Alematilde [Deutsch Orientgesellschaft] de 1898 Os Estados Unidos fundaram a Sociedade

Americana de Arqueologia Biacuteblica [American Society of Biblical Archaeology] em 1870 que

em 1900 eacute substituiacuteda pela ASOR [American Schools of Oriental Research]428

O ano de 1948 marca o iniacutecio de uma nova fase para as pesquisas arqueoloacutegicas na

Palestina Os trabalhos arqueoloacutegicos passam a ser controlados pelos israelenses Aleacutem disso haacute

uma mudanccedila de enfoque na disciplina A ecircnfase tradicional no texto biacuteblico comeccedilou a ser

substituiacuteda por uma preocupaccedilatildeo de caraacuteter antropoloacutegico e histoacuterico mais geral

Todo esse trabalho traz agrave tona vestiacutegios e provas materiais da diversidade de culturas

pessoas praacuteticas ritos e locais habitados e cultivados pela sociedade e religiatildeo de Israel

No atual momento das pesquisas arqueoloacutegicas percebe-se que as pesquisas judaico-

cristatildes ainda satildeo as que predominam por outro lado as dirigidas por grupos muccedilulmanos

seguem a mesma premissa utilizada por judeus e cristatildeos preocupam-se apenas com os

periacuteodos relacionados agrave histoacuteria do Islatilde

A Sociologia tambeacutem elaborou conceitos que podem ajudar na compreensatildeo da

dinacircmica da sociedade Quando fala em Processos Sociais a Sociologia procura evidenciar

como ocorrem as diferentes formas de interaccedilatildeo entre indiviacuteduos grupos sociais e sociedades

Entre os processos estatildeo a acomodaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo como processos

associativos Como processos dissociativos estatildeo o conflito e a competiccedilatildeo

De alguma maneira este referencial teoacuterico tambeacutem serve de paradigma para verificar o

processo de formaccedilatildeo das religiotildees Satildeo muitos e variados os diferentes fenocircmenos e praacuteticas

427 Cf Marshall Sahlins Cultura e razatildeo praacutetica p37

428 Gabriella Barbosa RODRIGUES Arqueologia Biacuteblica e construccedilatildeo de identidades notas acerca da pesquisa arqueoloacutegica nas chamadas terras da Biacuteblia p276

ligados agraves religiotildees Crenccedilas ritos e orientaccedilotildees eacuteticas estatildeo sujeitos aos mais diferentes

processos sociais Por vezes ocorre a assimilaccedilatildeo outras vezes estas mesmos aspectos satildeo

causa de competiccedilatildeo e conflito

Os estudos na aacuterea da Antropologia Sociologia Arqueologia Histoacuteria e Geografia

permitem compreender e perscrutar com maior precisatildeo os caminhos e processos atraveacutes dos

quais as religiotildees de modo geral vatildeo se constituindo ao longo do tempo

Admitir que as religiotildees satildeo forjadas sob o impulso e impacto de muacuteltiplas influecircncias

bem como a constataccedilatildeo deste fato ainda natildeo nos diz tudo Lamentavelmente em muitas

religiotildees natildeo estamos em condiccedilotildees de precisar suas origens tampouco o grau de influecircncia que

cultura a sociedade de modo geral e a religiatildeo o em partiacutecula exerceu sobre elas

1 A Religiatildeo de Israel

A Biacuteblia reflete uma realidade consideravelmente plural e diversificada no que se refere

agraves culturas e fronteiras geograacuteficas O que hoje conhecemos como o Israel biacuteblico eacute resultado

de um processo relacional de povos naccedilotildees e territoacuterios Egipto Mesopotacircmia Siacuteria e Canaatilde

satildeo o caldeiratildeo cultural onde eacute forjado o povo da Biacuteblia

A religiatildeo que surge em Israel na eacutepoca em que diferentes grupos passam a povoar as

regiotildees desabitadas das montanhas de Canaatilde recebe influecircncia das diferentes culturas que se

encontram nesta regiatildeo A simples contextualizaccedilatildeo geograacutefica da Terra de Canaatilde no contexto

do crescente Feacutertil jaacute permite constatar como esta aacuterea geograacutefica constitui uma ponte entre o

continente africano ao sul e o Oriente Meacutedio ao norte Como corredor de ligaccedilatildeo entre Egito e

Mesopotacircmia a Terra de Canaatilde e os habitantes nela instalados sofrem a influecircncia cultural das

civilizaccedilotildees com as quais mantecircm contato

Ainda que seja difiacutecil precisar esta influecircncia nos seus detalhes os relatos biacuteblicos nos

fornecem indiacutecios preciosos Os proacuteprios patriarcas guardam na memoacuteria de sua identidade a

informaccedilatildeo de que satildeo semitas migrantes oriundos da regiatildeo Mesopotacircmica (Gn 121-4)

Fronteira e territoacuterio satildeo os paracircmetros para demarcar e distinguir a religiatildeo de Israel

Enquanto a fronteira marca o grupo e seus valores o territoacuterio marca as origens e influecircncias

A influecircncia egiacutepcia mesopotacircmica e cananeacuteia eacute cada vez mais destaca nos estudos da

religiatildeo dos judeus Fenocircmenos como o profetismo biacuteblico originalmente atribuiacutedo agrave natureza

proacutepria da religiatildeo dos israelitas apresenta traccedilos de tradiccedilotildees semelhantes presentes em outras

culturas como em Mari e no Egito429

429 Abrego de Lacy Os Livros Profeacuteticos p 25s

Tanto na mentalidade profeacutetica quanto na mentalidade sapiencial o povo de Israel eacute

devedor da cultura e praacutetica de seus vizinhos Os especialistas inclusive destacam a assimilaccedilatildeo

por parte de Israel de aspectos literaacuteria presentes em outras culturas430

O proacuteprio processo de formaccedilatildeo do povo de Israel431 reflete uma amaacutelgama de tradiccedilotildees

e expectativas que passam a ser canalizadas pelo vieacutes da religiatildeo Os diferentes grupos

portadores de tradiccedilotildees culturais e religiosas distintas encontram num mesmo espaccedilo geograacutefico

a oportunidade para reunir num soacute sentido as diferentes experiecircncias religiosas de que satildeo

portadores

As tribos satildeo constituiacutedas de membros que partilham de um senso comum de origem

reclamam uma comum e distintiva histoacuteria e destino possuem uma ou mais caracteriacutesticas

distintas e sentem um senso uacutenico de coletividade e solidariedade

As rupturas provocadas pelas tensotildees e conflitos poliacuteticos tecircm seus reflexos na cultura

religiosa Natildeo eacute por acaso que os samaritanos passam a vigorar entre o grupo de judeus com

reputaccedilatildeo duvidosa aos olhos de Jerusaleacutem Aleacutem disso as consequumlecircncias provocadas pelo

exiacutelio e a dispersatildeo dos judeus pelo mundo antigo trouxe novos desafios para a praacutetica da

religiatildeo de Israel

Praacuteticas maacutegicas visotildees apocaliacutepticas construccedilotildees imageacuteticas e

simboacutelicas que discutem e unem a relaccedilatildeo do sagrado com a

realidade vivida no cenaacuterio cotidiano nas estrateacutegias utilizadas

por diferentes grupos politeiacutestas e monoteiacutestas para ateacute superar

as condiccedilotildees estabelecidas pelas forccedilas dominantes e criar

referenciais proacuteprios que valorizam seus modos de vida e

pensamentos particulares caracterizando a cultura popular

ldquosignificando uma ruptura da legitimidade do sagradordquo

O esforccedilo de liacutederes populares e dos profetas visava justamente preservar o patrimocircnio

religioso de Israel contra quaisquer influecircncias estrangeiras e defendecirc-lo de toda contaminaccedilatildeo

oriunda principalmente do substrato cananeu432

Ao longo de toda sua histoacuteria no interior ou longe de sua paacutetria os judeus

experimentaram contatos permanentes e diretos com diferentes culturas e civilizaccedilotildees (egiacutepcia

mesopotacircmia persa e sobretudo a grega em seguida a romana) exigindo constante processo

de releitura e interpretaccedilatildeo de seus proacuteprios princiacutepios religiosos

430 Erich Zenge et alli Introduccedilatildeo ao Antigo Testamento p284ss 431 Milton Schwantes Histoacuteria de Israel p 31ss 432 Marcel Simon Andreacute Benoit Judaiacutesmo e cristianismo antigo de Antiacuteoco Epifacircnio a Constantino Satildeo Paulo EDUSP 1987 p 49

O judaiacutesmo monoteiacutesta se fundamenta na feacute em Deus e na obediecircncia agrave Lei Esta

relaccedilatildeo entre a Fidelidade e a Lei torna-se uma peculiaridade para os judeus por causa de seu

modo de vida ainda mais destacado ente os estrangeiros A Toraacute pode ser identificada com a lei

da natureza e da humanidade Os gentios politeiacutestas eram adoradores da criaccedilatildeo mais que do

Criador Adoravam as coisas mateacuterias do universo Os judeus respondiam agraves calunias

concernentes agraves suas origens recitando a histoacuteria da criaccedilatildeo e seu contexto na histoacuteria do povo

A proacutepria relaccedilatildeo entre religiatildeo e naccedilatildeo na constituiccedilatildeo do judaiacutesmo poacutes-exiacutelico eacute

muito visiacutevel e seu desenvolvimento passou a depender em muito das accedilotildees profeacuteticas

fortalecendo assim uma identidade voltada ao nacionalismo e agrave plena observacircncia dos preceitos

religiosos estabelecidos

Outro aspecto relevante neste processo de assimilaccedilatildeo de padrotildees culturais de outros

povos pode ser tipificado pelo proacuteprio surgimento da liacutengua hebraica O surgimento de uma

liacutengua semita com escrita alfabeacutetica se insere no horizonte das explicaccedilotildees do surgimento das

proacuteprias liacutenguas e de seus respectivos alfabetos (hebraico aramaico grego)

Ainda envolto em misteacuterios que intrigam pesquisadores o alfabeto surgiu por volta de

2000 aC entre os semitas em alguma parte do territoacuterio entre a Siacuteria Palestina e o Sinai

Acredita-se que povos desta regiatildeo entre o Egito e a Mesopotacircmia tenham simplificado

as escritas cuneiformes e hierogliacuteficas decompondo-as em pouco mais de vinte sons e sinais

elementares Cananeus e feniacutecios teriam sido pioneiros na criaccedilatildeo de alfabetos

Graccedilas aos comerciantes feniacutecios mdash povo que viveu onde hoje se acha o Liacutebanomdash esse

novo sistema se espalhou por todo o mundo antigo A partir deste alfabeto feniacutecio surge o

aramaico antigo hebreu antigo moabita e puacutenico

Aleacutem da liacutengua haacute relatos extra-biacuteblicos cuja semelhanccedila aponta apara aleacutem de uma

mera coincidecircncia Fragmentos de um tablete cuneiforme encontrados nas ruiacutenas da cidade

sumeacuteria de Nippur demonstram haver muitos viacutenculos entre mitos sumeacuterios e histoacuteria biacuteblica

O tablete fala de uma terra pura e numinosa sem malesTambeacutem eacute mencionado Enki

deus das aacuteguas que come uma planta preciosa e proibida e eacute condenado agrave morte De uma de

suas costelas nasce deusa Ninti ldquoa mulher que daacute vidardquo

uma Eva sumeacuteria matildee do gecircnero humano

Os trabalhos de comparaccedilatildeo e anaacutelise entre os textos biacuteblicos e os documentos

encontrados em Mari e Tell El Amarna no Egito revelam que a originalidade da feacute de Israel natildeo

consiste propriamente na criaccedilatildeo mas na interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo de princiacutepios e praacuteticas de

outras culturas

2 O Cristianismo

Assim como na religiatildeo de Israel tambeacutem na tradiccedilatildeo cristatilde ocorre o encontro e

desencontro entre diferentes sociedades e culturas Devemos pressupor ao menos trecircs matrizes

principais ndash judaiacutesmo helenismo e ambiente romano - para compor o cenaacuterio sobre o qual

haveria de transcorrer a histoacuteria do proto cristianismo

O cristianismo natildeo interage apenas com uma corrente de pensamentos e filosofias mas

com povos e culturas Nesta interaccedilatildeo a nova feacute assimila elementos da religiosidade de outras

culturas Procura se adaptar as condiccedilotildees proporcionadas pela diversidade de ambientes Em

ocasiotildees estabelece relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo com outras religiotildees especialmente com o judaiacutesmo

da diaacutespora mormente as sinagogas Natildeo faltam situaccedilotildees onde o cristianismo se vecirc envolvido

em conflitos Em meio a diversidade religiosa e cultural a feacute cristatilde tambeacutem cria situaccedilotildees onde

a competiccedilatildeo se faz notar

Como religiatildeo que sucede ao judaiacutesmo o cristianismo nasce no ambiente judeu Cresce

e se desenvolve no ambiente greco-romano Neste contexto passa a assimilar integrar e

interpretar os elementos soacutecio-culturais e as categorias de pensamento presentes neste meio

Especificamente no que diz respeito ao mundo religioso a tradiccedilatildeo cristatilde precisa fazer frente ao

judaiacutesmo agrave religiatildeo dos misteacuterios aos cultos locais ao gnosticismo e agraves praacuteticas legitimadores

dos poder poliacuteticos Diante de toda essa diversidade religiosa os cristatildeos desenvolvem um

modo peculiar de relaccedilatildeo

ldquoo cristianismo primitivo eacute uma religiatildeo sincreacutetica com vaacuterias raiacutezes O judaiacutesmo natildeo foi o uacutenico

berccedilo do cristianismo primitivo mas havia diversas outras correntes como o gnosticismo

religiotildees misteacutericas gregas e orientais magias astrologia politeiacutesmo pagatildeo histoacuterias de homens

divinos (theioi andres) e seus milagres filosofia helenista popular com a influecircncia do culto

pagatildeo e natildeo judeu e tambeacutem influecircncia da imaginaccedilatildeo e linguagem religiosa helenista na

diaacutesporardquo 433

A proacutepria origem do Evangelho jaacute denuncia a importacircncia e o papel da cultura judaica

Uma cultura marcada pela obstinaccedilatildeo em ser Nesse sentido eacute inquestionaacutevel a pertenccedila

cultural de Jesus As pessoas mencionadas nos evangelhos tambeacutem denunciam uma clara

pertenccedila cultural Os costumes e as tradiccedilotildees revelam elementos proacuteprios da cultura judaica do

mediterracircneo do primeiro seacuteculo da era cristatilde434

Os exemplos as imagens e recursos utilizados por Jesus em sua pregaccedilatildeo evidenciam

traccedilos de uma sociedade marcada pelos valores e normas da tradiccedilatildeo judaica sejam do ponto de

vista religioso ou social

Outra significativa contribuiccedilatildeo cultural para a configuraccedilatildeo do cristianismo vem do

mundo grego Tudo que possa ser agregado agrave compreensatildeo de helenismo encontra aqui o seu

433 Martin Hengel Judaism and Hellenism studies in their encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period p6ss 434 John Dominic Crossan O Jesus Histoacuterico p40

lugar435 A dinacircmica da vida impregnada na sociedade antiga pela presenccedila de haacutebitos e cultura

ligados ao povo da Heacutelade estaacute assentada na tradiccedilatildeo cristatilde

O palco para o surgimento do cristianismo tem como pano de fundo a piedade e o

sentido de vida proacuteprio da cosmovisatildeo grega Os gregos eram tremendamente religiosos

embora desconhecessem o termo religiatildeo para caracterizar suas crenccedilas divindades templos e

ritos

Para os gregos o mundo estaacute povoado de deuses e deusas As tarefas e atividades diaacuterias

estatildeo diretamente implicadas na vontade e destino reservados pelos deuses aos mortais Seus

mitos deuses e templos existem para confirmar o destino da vida determinado pelas divindades

Aleacutem de toda cultura material com suas cidades e templos os gregos legaram uma

contribuiccedilatildeo no niacutevel da compreensatildeo As primeiras tentativas racionais de explicar de onde

viemos quem somos e para onde vamos tem sua origem na especulaccedilatildeo grega A ideacuteia de

morte alma ser humano encontra uma primeira formataccedilatildeo no mundo grego Nesse sentido o

cristianismo natildeo esteve blindado agraves concepccedilotildees e filosofias difundidas ao longo do periacuteodo de

dominaccedilatildeo dos gregos Resquiacutecios do estoicismo e do proacuteprio cinismo podem ser deduzidos de

palavras e accedilotildees ligadas agrave pobreza e sentido da vida

A relaccedilatildeo entre grupos culturais diferentes nem sempre eacute tranquila Nem mesmo as

religiotildees oferecem as condiccedilotildees necessaacuterias para evitar os conflitos Pelo contraacuterio satildeo

justamente as religiotildees ou os motivos religiosos que desencadeiam os conflitos mais acirrados

Aqui basta considerar as razotildees que culminaram na guerra dos macabeus por exemplo Motivos

religiosos tambeacutem contribuiacuteram para a destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem em 70 dC

O cruzamento entre as fronteiras eacutetnicas e culturais entre judeus e natildeo judeus

(gentios) que poderiam ser gregos ou de formaccedilatildeo grega ampliava e dilatava os conceitos de

judaiacutesmo e helenismo Nestas situaccedilotildees histoacutericas vai sendo construiacuteda uma nova identidade

fruto da siacutentese entre elementos eacutetnicos ambientais religiosos e poliacutetico-sociais

Exemplo concreto eacute a pessoa de Paulo Natildeo obstante a forte carga judaica presente no

pensamento do apoacutestolo fatores como o emprego do nome romano o uso do Antigo

Testamento em liacutengua grega e a redaccedilatildeo das epistolas nessa mesma liacutengua revelam tratar-se de

um judeu da diaacutespora Por mais que afirme a sua origem judaica suas palavras e desenvoltura

com a sociedade de seu tempo revelam a siacutentese cultural que se opera em sua proacutepria pessoa

O papel desempenhado pela matriz romana no processo de constituiccedilatildeo do cristianismo

tem sido objeto de especial atenccedilatildeo de teoacutelogos e historiadores A heranccedila romana fornece as

diretrizes estruturais para a formaccedilatildeo do quadro do cristianismo primitivo

435 Compreende-se o helenismo como um meio cultural largamente grego dos periacuteodos heleniacutesticos romano e uma extensatildeo mais limitada do bizantino enquanto que por helenizaccedilatildeo se entende o processo de adoccedilatildeo e adaptaccedilatildeo desta cultura em niacutevel local CHEVITARESE Andreacute Leonardo CORNELLI Gabriele Judaiacutesmo cristianismo helenismo p 7

Por mais que os cristatildeos natildeo admitissem o imperador como um deus vivo se opunham

ao militarismo e ao escravismo a cultura romana exerceu notaacutevel influecircncia na criaccedilatildeo e

desenvolvimento de Igrejas ao longo do Impeacuterio Romano

A relaccedilatildeo entre os primeiros cristatildeos e o Impeacuterio Romano tem sido objeto de inuacutemeros

estudos436 De modo especial recebe destaque o papel desempenhado pelas condiccedilotildees de

mobilidade proporcionadas pelo Impeacuterio Romano A relaccedilatildeo entre cristatildeos e autoridades

cristatildeos e a lei romana tem contribuiacutedo para perceber a especificidade do testemunho cristatildeo

Augusto havia conseguido assegurar a paz em praticamente todo impeacuterio O senado

inclusive lhe prestou uma homenagem com o monumento ara pacis Eacute sabido no entanto que

paz de Augusto consistia nas armas Esta realidade contribuiu significativamente para distinguir

a proposta de paz testemunhada pelos cristatildeos

Outro papel importante na configuraccedilatildeo do cristianismo deve ser atribuiacutedo agraves vias de

comunicaccedilatildeo seja terrestre ou mariacutetima A grande rede de estradas romanas garantia o

deslocamento raacutepido e seguro seja por causa do comeacutercio trabalho ou mesmo para outras

finalidades O deslocamento de peregrinos militares filoacutesofos e missionaacuterios itinerantes satildeo

expressatildeo clara das condiccedilotildees de mobilidade criadas pelo Impeacuterio437 Trata-se de toda uma

infra-estrutura da eacutepoca subjacente ao texto biacuteblico Sem essas condiccedilotildees podemos nos

imaginar que a proacutepria expansatildeo do cristianismo natildeo teria acontecido da maneira como hoje estaacute

documentada

Aleacutem disso a sociedade estruturalmente dividida em honestiores e escravos lanccedilou

novos desafios para a concretizaccedilatildeo da ideacuteia de igualdade e liberdade testemunhada pelos

cristatildeos

Conclusatildeo

O propoacutesito desta breve reflexatildeo eacute evidenciar de alguma maneira que uma religiatildeo natildeo

nasce do acaso Pelo contraacuterio ela eacute resultado de inuacutemeras influecircncias e confluecircncias A Biacuteblia

como livro sagrado de duas religiotildees reflete esse processo Nela estatildeo presentes as tensotildees e

contradiccedilotildees decorrentes do processo de assimilaccedilatildeo adaptaccedilatildeo cooperaccedilatildeo competiccedilatildeo e

conflito desencadeados na interaccedilatildeo entre diferentes culturas

Mesmo que no decorrer do trabalho natildeo tenham sido fornecidos maiores detalhes da

influecircncia e do processo de constituiccedilatildeo da religiatildeo de Israel ou do proacuteprio cristianismo haacute

evidecircncias suficientes para caracterizar o processo de assimilaccedilatildeo de elementos culturais dos

mais diferentes povos no processo de configuraccedilatildeo destas religiotildees De certa maneira a proacutepria

abrangecircncia do tema proposto condiciona esta abordagem mais geral e geneacuterica

436 Ekkehard Stegemann Wolfgang Stegemann Histoacuteria Social do Protocristianismo p13ss 437 Giuseppe Barbaglio Satildeo Paulo o homem do evangelho p56

No entanto natildeo haacute duacutevida de que o diagnoacutestico bem como a compreensatildeo do processo

e dos elementos culturais envolvidos no surgimento do judaiacutesmo e cristianismo podem nos

ajudar a compreender a dinacircmica do ambiente religioso na atualidade Nenhuma religiatildeo eacute tatildeo

autocircnoma e auto-suficiente que natildeo apresente aspectos e caracteriacutesticas que jaacute natildeo estejam

presentes em outras formas de manifestaccedilatildeo A rigor nada eacute exclusivo e uacutenico

Ainda assim cada cultura contribui de uma maneira peculiar Da mesma forma cada

religiatildeo incorpora dados culturais na medida em que estes podem ser enquadrados na sua

cosmovisatildeo crenccedilas e expectativas Os mesmos elementos da cultura instrumentalizados e

absorvidos pelo cristianismo estiveram tambeacutem agrave disposiccedilatildeo de outras praacuteticas religiosas aliaacutes

abundantes no acircmbito do Impeacuterio Romano

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREGO DE LACY J M Os livros profeacuteticos Satildeo Paulo AM Ediccedilotildees 1998 295 p BARBAGLIO Giuseppe Satildeo Paulo o homem do evangelho Petroacutepolis Vozes 1993 525 p CHEVITARESE Andreacute Leonardo CORNELLI Gabriele Judaiacutesmo cristianismo helenismo ensaios sobre interaccedilotildees culturais no Mediterracircneo Antigo Itu Ottoni Editora 2003 138 p CROSSAN John Dominic O Jesus Histoacuterico a vida de um Camponecircs Judeu do Mediterracircneo Rio de Janeiro Imago 1994 543 p HENGEL Martin Judaism and Hellenism studies in their encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period Philadelphia Fortress Press 1974 HORTON Michael O Cristatildeo e a Cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 1998 IZIDORO Joseacute Luiz Interaccedilatildeo Conflitos e Desafios na Identidade do Cristianismo Em httpwwwdhiuembrgtreligiaopdf0720Jose20Luiz20Izidoropdf Acessado em 15062009 RODRIGUES Gabriella Barbosa Arqueologia Biacuteblica e construccedilatildeo de identidades notas acerca da pesquisa arqueoloacutegica nas chamadas terras da Biacuteblia Disponiacutevel em wwwfclarunespbrecBANCO DE DADOSXXIII SECTEXTOSARTIGOS PDFrodriguespdf Acessado 15062009 SAHLINS Marshall David Cultura e razatildeo praacutetica Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 230 p SCHWANTES Milton Histoacuteria de Israel v 1 local e origens 3 ed S Leopoldo Oikos 2008 141 p STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo Satildeo Leopoldo Sinodal Satildeo Paulo Paulus 2004 596 p SUNG J Mo SILVA Josueacute C da Conversando sobre eacutetica e sociedade 4 ed Petr Vozes 1998 117 p ZENGER Erich Introduccedilatildeo ao Antigo Testamento Satildeo Paulo Loyola 2003 557 p

Trabalho com mulheres negras no Quilombo do ValongosTijucas-SC

Rita de Caacutessia Maraschin da Silva438

ldquoNatildeo esperava que fosse tatildeo bom

Muitas coisas natildeo sabemos aproveitar

Era o leite o queijo e deu

Precisamos de ajuda para fazer uma

casa para poder produzir

Vender e fazer algum dinheiro para ajudar

Se a gente soacute fizer o Curso e ficar parado

Natildeo vamos tirar muito proveito

Por isso eacute importante ir adianterdquo

Ester Bertolina Caetano ndash

moradora do Valango

1 Origem de valongo

A falta de documentos eacute um obstaacuteculo difiacutecil de ser superado para informar a origem

dos primeiros povoadores negros do Sertatildeo dos Valongos Mas haacute informaccedilotildees coletadas por

pesquisadores439 junto a antigos moradores segundo as quais o lugar teria ldquoservido de ponto de

convergecircncia entre os ex-escravos de regiotildees vizinhasrdquo A terra era a base geograacutefica a partir da

qual os ex-escravos puderam tentar viver sem trabalhar para ex-senhores ou viver agrave miacutengua nas

cidades Haacute relatos de que as terras do sertatildeo foram sendo tomadas pouco a pouco pela

populaccedilatildeo de origem africana Quem chegava ia adquirindo os locais dos pontos mais afastados

onde a madeira o grande

atrativo para os

exploradores jaacute natildeo era mais

cobiccedilada A ocorrecircncia da

malaria pode ter sido outro

fator que afastou a

populaccedilatildeo branca Agrave

populaccedilatildeo negra com menos

438 Secretaria Executiva do CENTRO DE ELABORACcedilOtildeES ASSESSORIA E DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS ndash

CESAP (ORGANIZACcedilAtildeO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PUacuteBLICO)Bacharelada do Curso de Direito no Curso Superior da Faculdade de Ciecircncias Sociais de Florianoacutepolis SCCESUSC 439 Mestrado em Antropologia SocialUniversidade Federal de Santa Catarina UFSC Brasil Tiacutetulo DE NEGROS A ADVENTISTAS EM BUSCA DA SALVACAO ESTUDO DE UM GRUPO RURAL DE SANTA CATARINA Ano de Obtenccedilatildeo 1990

poder de mobilidade restou se fixar no sertatildeo O auxilio mutuo teria propiciado a superaccedilatildeo de

doenccedila Em 2004 Comunidade de

Igreja Adventista ndash comunidade dos Valongos ndash Maio2009

Valongo obteve a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento emitida pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

(Ministeacuterio da Cultura ndash Governo Federal) na qual eacute considerada como remanescente das

comunidades dos quilombos Entretanto o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria natildeo teve por

enquanto o consenso necessaacuterio para dar prosseguimento agraves etapas requeridas

Em contraste com a maioria de negros rurais brasileiros e da regiatildeo os valonguenses que eram

catoacutelicos ateacute os anos trinta do seacuteculo passado converteram se na sua maioria em membros da

Igreja Adventista do Seacutetimo Dia Hoje praticando a religiatildeo adventista lutam para manter a

terra e desenvolver atividades que garantam a continuidade da vida autocircnoma que os

antepassados conquistaram

A comunidade de Valongo eacute composta por trecircs famiacutelias-tronco originaacuterias praticamente

todos os membros satildeo parentes entre si O casamento endoacutegeno eacute o preferido pelo grupo que

convive com uma loacutegica tradicional onde a terra eacute pensada como terra de trabalho e de moradia

As terras familiares nestes termos seriam compartilhadas pela parentela dentro de uma

perspectiva comunal Entretanto a praacutetica de venda de terras tem sido comum passando a ser

parte das novas estrateacutegias econocircmicas dos valonguenses transgredindo a loacutegica anterior dos

mais velhos regida pelas regras da parentela e da heranccedila para a constituiccedilatildeo de novas famiacutelias

Os valonguenses apresentam trecircs atributos distintivos que os identificam sendo a

religiatildeo que professam um deles a doutrina e os ritos religiosos impregnam a rotina comunitaacuteria

no territoacuterio do sertatildeo e extrapolam suas fronteiras reforccedilando externamente laccedilos sociais com

outros integrantes da igreja Nessas redes externas de sociabilidade propiciadas pela vida

religiosa os outros dois atributos caracteriacutesticos ndash etnia e regras de parentesco ndash se diluem em

relaccedilatildeo agrave identidade grupal prevalecendo agrave identidade religiosa para os valonguenses

A nossa inserccedilatildeo nesta Comunidade tem duas atitudes que se destacam - busca de

aprender com as mulheres as praacuteticas de organizaccedilatildeo articulaccedilatildeo e proposiccedilatildeo junto agrave

comunidade do municiacutepio de suas culturas agriacutecolas e produtos artesanais que produzem na

forma coletiva - e buscar atraveacutes de instrumentos pedagoacutegicos criacuteticos novas teacutecnicas de

empreendedorismo que combinem a suas experiecircncias religiosas e os costumes das tradiccedilotildees

culturais afro

Deste modo realizamos

uma accedilatildeo de capacitaccedilatildeo e

formaccedilatildeo de novas

teacutecnicas empreendedoras

combinadas com a

realidade das praacuteticas

religiosas adventistas que

demarcam o dia-a-dia de

cada valonguense

Momento de

confraternizaccedilatildeo ndash

Comunidade dos Valongos

ndash Maio2009

Ressaltando que o papel das mulheres hoje satildeo as lideranccedilas que articula decide e empreende

as accedilotildees para fora da Comunidade A elas preferencialmente jaacute natildeo compete o trabalho no

campo este eacute um serviccedilo dos homens Mas podemos perceber que o poder matriarcal eacute

marcante no processo de construccedilatildeo da identidade familiar e coletiva da Comunidade

2 Capacitaccedilatildeo para fortalecimento das tecnologias valonguense

Este projeto junto a Comunidade do Valongo esta sendo desenvolvido para o

fortalecimento das lideranccedilas entre as mulheres com a compreensatildeo do como se fortalece as

organizaccedilotildees sociais a qualificaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas com vistas ao exerciacutecio qualificado

da cidadania com equidade de gecircnero etnia e geraccedilatildeo rumo a uma sociedade sem exclusatildeo

discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo Como mantendo a identidade negra e a auto-estima de ser mulher

fortalecer a solidariedade humana no respeito agraves diversidades e na sustentabilidade social

econocircmica e ambiental

Para este campo de trabalho na Comunidade do Valongo foi definida uma aacuterea

prioritaacuteria da Organizaccedilatildeo Soacutecio-econocircmica com Qualificaccedilatildeo Social e Profissional visando a

Geraccedilatildeo de Cidadania e Iniciativas de Trabalho e Renda com especial ecircnfase para as Mulheres

e Jovens

Combinar processo

educativo e formaccedilatildeo

profissional eacute uma meta

que busca valorizar as

iniciativas que tecircm sido

realizadas na

comunidade O problema

de boa parte delas estaacute no

ponto de partida Como

muitas vezes os

promotores

Reuniatildeo de Planejamento

ndash Comunidade dos Valongos ndash Maio2009

destas iniciativas natildeo tecircm vinculaccedilatildeo alguma com o puacuteblico que pretendem atingir a accedilatildeo

muitas vezes eacute praticamente nula Entatildeo a primeira medida eacute conhecer no sentido mais

profundo da palavra as pessoas para as quais a iniciativa estaacute sendo dirigida a segunda eacute natildeo

subestimar jamais capacidade de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo da realidade por estes grupos e

uma terceira eacute potencializar esta capacidade na forma de iniciativas concretas na busca de

soluccedilotildees para o fortalecimento da dignidade destas pessoas envolvidas

O projeto eacute desenvolvido com mulheres das diferentes faixas etaacuterias da comunidade

extremamente vulneraacuteveis no acircmbito soacutecio-econocircmico e organizativo natildeo soacute pela discriminaccedilatildeo

e opressatildeo proacutepria das relaccedilotildees desiguais de gecircnero numa sociedade machista como tambeacutem

no que se refere a sua inserccedilatildeo no mercado de trabalho e consequentemente a falta de acesso agrave

condiccedilotildees dignas de vida quanto ao aspecto econocircmico

A proposta eacute desenvolver trabalhos junto a mulheres respeitando seus valores e sonhos

do meio rural mas conjugando com as relaccedilotildees que satildeo estabelecidas com o puacuteblico urbano

onde aparecem as dificuldades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho na maioria das vezes em

funccedilatildeo da baixa escolaridade e pelas exigecircncias e responsabilidades familiares ndash filhos

Esta opccedilatildeo se daacute a partir de um preacute-diagnostico mostrando que as mulheres satildeo

oprimidas sofrem violecircncia (fiacutesica moral e psicoloacutegica) com baixa escolaridade e que a

maioria dos cursos e atividades oferecidas geralmente eacute incompatiacutevel com suas possibilidades

de participaccedilatildeo Estamos conjugando accedilotildees de capacitaccedilatildeo (qualificaccedilatildeo) com a organizaccedilatildeo

comunitaacuteria de base ampliando assim as possibilidades de geraccedilatildeo de trabalho e renda

juntamente com o exerciacutecio da cidadania Este trabalho tem por objetivo a re-inserccedilatildeo social

ldquointegralrdquo das mulheres numa perspectiva de apoio na reconstituiccedilatildeo da sua auto-estima

atraveacutes da revalorizaccedilatildeo de gecircnero pessoal comunitaacuteria profissional cultural e organizativa

agregada a accedilotildees voltadas para a geraccedilatildeo de trabalho e renda

3 Planejamento e execuccedilatildeo de Metas ndash produccedilatildeo e decisatildeo participativa

A construccedilatildeo de agenda de trabalho num coletivo de mulheres eacute sempre um exerciacutecio que

requer muita habilidade e atenccedilatildeo redobrada com o objetivo de contemplar todas as

intencionalidades e vontades Mas aqui estaacute o que foi aprovado e implementado neste 1ordm

semestre de 2009 na Comunidade do Valongo

COMUNIDADE DO VALONGO - PORTO BELOSC METASANO METASATIVIDADESPUBLICO RESULTADOS Fazer visitas agraves famiacutelias para diagnosticar com maior precisatildeo a situaccedilatildeo e as demandas de trabalho junto agraves mulheres e sensibilizaacute-las para as atividades nas comunidades

Realizaccedilatildeo de visitas agrave 100 famiacutelias para sensibilizar as mulheres a participar das atividades do projeto como tambeacutem diagnosticar melhor a situaccedilatildeo em que vivem estas mulheres

Sensibilizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo das mulheres para participarem nas atividades em suas comunidades e demais espaccedilos

Realizaccedilatildeo de dois cursos (24h cada) de capacitaccedilatildeo profissional de pintura em tecido

volvendo 40 participantes (em duas turmas) enRealizaccedilatildeo de um curso (24h) de ornamentaccedilatildeo e personalizaccedilatildeo de vidros e embalagens para doces e geleacuteias com 40 participantes (em duas turmas)

Capacitar 100 mulheres para desenvolver atividades com artesanato em pano palha vidro e confecccedilatildeo para venda dos produtos na feira e em outros locais Realizaccedilatildeo de curso (24h) de produccedilatildeo de

artesanato em palha e materiais reciclados com 20 participantes

100 mulheres capacitadas profissionalmente organizadas em grupos com desenvolvendo iniciativas de auto-gestatildeo eou inseridas em atividades geradoras de trabalho e renda a partir do exerciacutecio dos saberes adquiridos atraveacutes do processo de capacitaccedilatildeo

Realizaccedilatildeo de um curso (24h) de capacitaccedilatildeo profissional para a produccedilatildeo de doces e geleacuteias de maracujaacute e outras frutas envolvendo 40 mulheres (em duas turmas)

Capacitar 40 mulheres para atuar na transformaccedilatildeo do maracujaacute e de outras frutas locais em doces geleacuteias e sucos para o autoconsumo e comercializaccedilatildeo na feira e em estabelecimentos comerciais do municiacutepio

Realizaccedilatildeo de dois (02) intercacircmbios para troca de experiecircncias (16h cada) sobre a produccedilatildeo de doces e geleacuteias de frutas envolvendo 10 mulheres por atividade

Capacitaccedilatildeo de 40 mulheres para que possam de forma coletiva eou individual produzir doces e geleacuteias de qualidade para o autoconsumo e para comercializaccedilatildeo

Envolver 80 mulheres em oficinas de gestatildeo de empreendimentos solidaacuterios

Realizaccedilatildeo de 5 oficinas (8h cada) sobre gestatildeo de grupo e administraccedilatildeo do empreendimento com participaccedilatildeo de 15 mulheres em cada atividade

Mulheres capazes de gerir os seus empreendimentos de forma qualificada

Dar acompanhamento aos grupos comunitaacuterios e aos empreendimentos em processo de constituiccedilatildeo

Realizaccedilatildeo de 6 reuniotildees com as mulheres para assessorar o seu processo organizativo ao niacutevel das comunidades (8h cada) com participaccedilatildeo de 15 mulheres por atividade

Constituiccedilatildeo de grupos por comunidade para desenvolvimento de atividades coletivas

Envolver 40 mulheres em oficinas sobre

Realizaccedilatildeo de trecircs (03) oficinas sobre cooperaccedilatildeocooperativismo e associativismo (8h

Construccedilatildeo das bases para a organizaccedilatildeo de pequenas

cooperativismo e associativismo

cada) com 15 participantes por oficina cooperativas e associaccedilotildees

Realizar um encontro municipal das mulheres para discutir a sua organizaccedilatildeo e participaccedilatildeo nos diferentes espaccedilos da sociedade

Realizaccedilatildeo de um encontro municipal de mulheres (8h) com a participaccedilatildeo de 80 mulheres

Contribuir para a conscientizaccedilatildeo das mulheres quanto a importacircncia do seu papel na sociedade

Envolver 50 mulheres em encontros temaacuteticos para discussatildeo de temas de seu interesse (sauacutede sexualidade etc)

Realizaccedilatildeo de trecircs (02) encontros temaacuteticos (8h cada) com a participaccedilatildeo de 25 mulheres em cada encontro

Contribuir para ampliar o acesso das mulheres a informaccedilotildees sobre seus direitos com vistas ao exerciacutecio de cidadania

5 Resultados alcanccedilados

A Comunidade de Valongo como afirmamos eacute composta por trecircs famiacutelias-tronco

originaacuterias onde a relaccedilatildeo de parentesco eacute fundamental a continuidade dos sonhos e da certeza

de que a terra objeto de valor e de garantia de vida (produz alimentos de subsistecircncia e gera

economia de trocas) entre si A terra eacute pensada como terra de trabalho e de moradia Entretanto

como tambeacutem jaacute afirmamos estaacute sendo costumeira a praacutetica de venda de terras para uma ldquoclasse

meacutediardquo que aproxima da comunidade com profunda violecircncia os costumes e modos da vida

urbana (cercas eleacutetricas festas e bailes proibiccedilotildees de ir e vir etc) Parecem atitudes relevantes

considerando que estamos num mundo globalizado poreacutem aqui aparecem o confronto real e

criacutetico entre as novas tecnologias a concepccedilatildeo de hierarquia e o que seja valores E ainda

temos daqueles que ldquoacabam de chegarrdquo um total desrespeito a um povo quilombola que ali se

constituiu deste o seacuteculo XIX que tem sua religiosidade violada principalmente no silecircncio

atitude importante e significativa para o culto aos saacutebados e na alegria do coral da Comunidade

Mas poderiacuteamos relevar estas agressotildees secirc esta Comunidade tivesse direitos prioritaacuterios

sendo violados por exemplo de acesso a cidade transporte e poliacuteticas de sauacutede e educaccedilatildeo de

faacutecil acesso Tudo isso para ser alcanccedilado tem que ser superado depois de uma caminhada de

10 km iniciais para chegar agrave margem do periacutemetro urbano da cidade mais proacutexima Tijucas A

Porto Belo cidade sede do municiacutepio satildeo 40 km impossiacutevel de acessar sem a colaboraccedilatildeo de

ldquocaronardquo ocircnibus escolar ou de veiacuteculos de compadres e pessoas solidaacuterias Diante deste cenaacuterio

podemos concluir que apontar novas tecnologias para os valonguense deve antes considerar

como parte destas novas estrateacutegias natildeo transgredir a loacutegica anterior dos mais velhos regida

pelas regras da parentela e da heranccedila para a constituiccedilatildeo de novas famiacutelias Eis um desafio a ser

perseguido antes de acusar quaisquer obscurantismos preacute-cientiacuteficos

Um processo vivido nesta experiecircncia de capacitaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional vivido

junto as mulheres negras do Valongo concluiacutemos do como foi discutir ndash entre noacutes os

promotores da accedilatildeo - com as lideranccedilas das organizaccedilotildees do Municiacutepio e do Movimento

Sindical Estes tinham compreensotildees interpretaccedilotildees e definiccedilotildees que tivemos que refletir ndash

antesdurantedepois ndash do processo para ter certezas que os objetivos seriam alcanccedilados Muitas

destas leituras estatildeo marcadas por experiecircncias histoacutericas de preconceitos inseguranccedilas e

desconhecimento do que o ldquooutrordquo sonha deseja e possui como seus valores e garantias para se

garantir nesta realidade ndash a Comunidade do Valongo Aqui tivemos ao longo do processo que

alimentar conversar entre os monitores e com a lideranccedilas das mulheres com o objetivo de

atingir aos ldquodesejosrdquo e ldquoanseiosrdquo das mulheres e jovens ali ndash entusiasmadas e sonhadoras de

novas alternativas sendo apresentadas

Neste cenaacuterio tambeacutem esteve sempre presente como marco regulatoacuterio a experiecircncia

religiosa da tradiccedilatildeo Adventista do 7ordm Dia Tudo deve acontecer com a recomendaccedilatildeo e

aprovaccedilatildeo do Pastor e da Comunidade reunida Portanto um fato que demarcou ndash quando e

como deveria acontecer o Curso eacute o ldquodiardquo O saacutebado natildeo poderia ser por ser este um dia

consagrado ao dever religioso e as praacuteticas do culto e do louvor atraveacutes de um lindo coral de

vozes em toda a Comunidade participam de forma alegre e festiva

Ao concluir este Projeto podemos afirmar que tivemos uma liccedilatildeo de como devemos ter

ldquocuidados pedagoacutegicosrdquo entre aquilo que projetamos (estrateacutegias) e o que devemos ldquocombinar

no local e suas singularidadesrdquo

Pensar progresso de novas tecnologias como fonte de empreendedorismo junto a

Comunidades Negras Rurais e em particular com o recorte histoacuterico de serem de matriz

quilombola requer uma atenccedilatildeo a esta realidade de conviver com as demandas proacuteprias e

pontuais do seu cotidiano e com destaque para o valor da mulher ndash sistema matriarcal no

conjunto das decisotildees comunitaacuterias

Referecircncias Bibliograacuteficas UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAUFSC Brasil Tiacutetulo De Negros a Adventistas em busca da Salvaccedilatildeo estudo de um grupo de Santa Catarina Ano de Obtenccedilatildeo 1990 NUacuteCLEO DE ESTUDOS NEGROSNEN Revista Pedagogia da Vida ndash Educaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Profissional para Comunidades Negras em Santa Catarina FlorianoacutepolisSC 2002 CENTRO DE ELABORACcedilOtildeES ASSESSORIA E DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS ndash CESAP Projeto de Geraccedilatildeo de Cidadania Trabalho e Renda para Mulheres de Comunidades em Situaccedilatildeo de Vulnerabilidade Social nos Municiacutepios da Palhoccedila Tijucas e Itajaiacute atraveacutes da Organizaccedilatildeo e da Capacitaccedilatildeo Social e Profissional FlorianoacutepolisSC 2008 Fotos satildeo autorizadas pelo Grupo de Mulheres para divulgaccedilatildeo de suas Atividades Formativas

ANEXO

PROGRAMACcedilAtildeO DO 22ordm CONGRESSO ANUAL DA SOTER 2009

TEMA ldquoRELIGIAtildeO CIEcircNCIA E TECNOLOGIArdquo

67 ndash Segunda ndash Feira 77 terccedila ndash feira 87 quarta ndashfeiraMANHAtilde 7h30 ndash Cafeacute 8h30 ndash Palestra 10h ndash Cafeacute 10h30 ndash Palestra

Humanismo ciecircncia e tecnologia 8h30 Contribuiccedilatildeo cientiacutefica Luiacutes Pinguelli Rosa (UFRJ) 10h30 Abordagem teoloacutegica Maacutercio Fabri dos Anjos Fernando Altemeyer Jr

Mito religiatildeo e cide saberes 8h30 Contribuiccedilatildeo cientHilton Japiassu 10h30 Abordagem teoloacutegJoseph Comblin Ivone Gebara

TARDE 14h Reiniacutecio dos trabalhos 16h Cafeacute 16h30 Atividades 18h30 ndash Jantar

15 h reuniatildeo da Diretoria 16h Reuniatildeo com os Conselheiros Regionais

14h GTsComunicaccedilotildees 1 Filosofia da Religiatildeo (coord F Senra ndash PUC-Minas) 2 Religiatildeo e Educaccedilatildeo Ensino Religioso (coord Afonso ML Soares-PUCSP - Sergio Junqueira-PUCPR) 3 A Biacuteblia e suas leituras orante literaacute-ria popular e cientiacutefica (coord ABIB) 4 Teologia Universidade e Sociedade (coord J Decio Passos ndash PUCSP - PUC-Rio) 5 Literatura Arte e Religiatildeo (coord Waldecy Tenoacuterio-USP MC Bingemer-PUC-Rio) 6 Gecircnero e Religiatildeo (coord Maria Inecircs Milleacuten algueacutem EST) 7 Teologias Reformadas (R Cavalcante-Mackenzie Rudolph ndash EST) 16h30 - Reuniotildees das Regionais

14h GTsComun1 Religiotildees de asce indiacutegena (coordUnicap) 2 Cristianismo hicontemporaneidad3 Novos Movimen(coord Brenda Ca4 Religiatildeo ciecircnci(coord Eacuterico Hamalgueacutem Unisinos)5 Ciecircncia religiatildeo(coord Gilbraz A6 Religiatildeo Econo(coord Marcio TaPUCCamp) 7 Interculturalidad 18h ndash Assembleacuteia

NOITE Atividades

19h30min Abertura solene 20h Conferecircncia inaugural Religiatildeo ciecircncia e tecnologia Eduardo Rodrigues da Cruz PUCSP Confraternizaccedilatildeo

19h30h Panorama Teoloacutegico Contemporacircneo desafios NorteSul Peter Casarella ndash DePaul University EUA 21h Grande Final do Concurso de Teses Soter-Paulinas

20h ndash Espiritualidconfraternizaccedilatildeo

IacuteNDICE DO VOLUME 3 Seccedilatildeo de Grupos Temaacuteticos (GTs) 8 Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena Coord Adailton Maciel Augusto ndash ITESPISPES 9 Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade Coord Jaldemir Vitoacuterio ndash FAJE 10 Novos Movimentos Religiosos Coord Pedro A Ribeiro de Oliveira ndash PUC Minas 11 Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia Coord Eacuterico Hammes - PUCRS 12 Ciecircncia religiatildeo e pluralismo Coord Gilbraz Aragatildeo ndash Unicap 13 Religiatildeo Economia e Poliacutetica Coord Benedito Ferraro ndash PUCCamp 14 Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea Coord Ceci Baptista Mariani ndash PUCCamp 15 Interculturalidade e Religiatildeo Coord Selenir Kronbauer ndash EST e Roberto Zwetsch ndash Cetela

Seccedilatildeo de Anexo

GRUPOS TEMAacuteTICOS ndash

GTs

COMUNICACcedilOtildeES

CIENTIacuteFICAS

GT Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena

EMENTAS

Quando o sertatildeo vai ao mar rituais afro-sertanejos no litoral baiano Autor Acircngela Cristina Borges O sertatildeo norte-mineiro reproduz culturalmente sua localizaccedilatildeo geograacutefica a fronteira posiccedilatildeo hiacutebrida que sugere ideacuteias simultacircneas de fim iniacutecio e recomeccedilo algo que estaacute por se fazer ou devir Tal posiccedilatildeo se reflete na sua religiosidade especificamente na afro-sertaneja Seguindo tal hibridez o terreiro de Umbanda Recanto de Pai Joatildeo Velho ldquodesvia o sertatildeo para o marrdquo no propoacutesito de buscar o que no sertatildeo se perdeu a forccedila do mar Tal movimento expressa sua dinacircmica hiacutebrida e sincreacutetica em busca de elementos nordestinos componentes da identidade sertaneja Agraves margens do mar cumpre ritos evidenciando uma dialeacutetica que suplanta o sertatildeo como um simples espaccedilo fiacutesico Nesta perspectiva a presente comunicaccedilatildeo abordaraacute o rito sertanejo ldquoOgum Beira-Marrdquo recurso afro-sertanejo de enfrentamento da vida no sertatildeo pois viver neste como diz o personagem roseano Riobaldo eacute ldquonegoacutecio perigosordquo Maracatu rural uma heranccedila religiosa afro-indigena na capital pernambucana Joseacute Roberto Feitosa de Sena Referecircncia da cultura popular recifense e constantemente requisitados pelos veiacuteculos midiaacuteticos o Maracatu Rural que surge entre os seacuteculos XIX e XX na regiatildeo da Mata Norte eacute reinventado na Capital pernambucana e traz consigo elementos da vida rural Nesta bagagem a memoacuteria religiosa passa por seacuterios processos de ressignificaccedilatildeo e resistecircncia em que satildeo adquiridas novas formas de interpretaccedilatildeo e culto ao sagrado Como produto do hibridismo afro-indigena o Maracatu de Baque Solto como tambeacutem eacute conhecido tem suas raiacutezes religiosas atreladas aos rituais da Jurema da Umbanda e do catolicismo popular embora o processo de fragmentaccedilatildeo das identidades seja tatildeo intenso na contemporaneidade muitos grupos ainda resistem ao atribuir o sucesso da ldquobrincadeirardquo aos rituais lituacutergicos de preparaccedilatildeo para saiacuteda ao carnaval Experiecircncias religiosas como afirmaccedilatildeo de identidade religiosa e cultural afro-brasileira Reinaldo Joatildeo De Oliveira Com a liberdade de valorizar as culturas como uma realidade proacutepria a teologia pode tornar-se um caminhar a partir dos sujeitos de sua cultura Daiacute a necessidade do resgate pela ldquoalteridaderdquo Abordando temas relacionados aos nossos povos e nossa cultura esboccedilamos uma valorizaccedilatildeo das origens culturais e religiosas afro e indiacutegena Utilizando a expressatildeo plural ldquonossosrdquo acenamos para os ldquoanseiosrdquo de relacionar cultura evangelizaccedilatildeo educaccedilatildeo bem puacuteblico e a preocupaccedilatildeo com a unidade e fraternidade dos povos Visando a integraccedilatildeo dos indiacutegenas e afro-americanos o reconhecimento eacute importante para o diaacutelogo numa experiecircncia de feacute e de responsabilidade Assim o ldquoconhecimentordquo das religiotildees de matrizes africanas com suas experiecircncias raiacutezes pode trazer-nos um verdadeiro sentido de afirmaccedilatildeo de uma identidade e de encontro com o ldquooutrordquo e de experiecircncia com Deus

A influecircncia da religiosidade Africana na sociedade brasileira o olhar de um africano

Luis Tomaacutes Domingos Na Africa haacute uma relaccedilatildeo intima entre religiatildeo e vida social a religiatildeo africana se integra profundamente em toda a vida da comunidade Para o africano os vivos e os mortos o cosmos visivel e o mundo invisivel constituem apenas um universo Nas suas diversas manifestaccedilotildees religiosas creem quase todos em um Deus Supremo que eacute o soberano absoluto do Cosmos da humanidade inteira assim como da natureza (seres vivos animais homens etc) Poreacutem esta concepccedilatildeo do mundo implantado e perpetuado pelos afro-descendentes na sociedade brasileira criou certos questionamentos como determinar se as crenccedilas africanas tem o meacuterito de serem consideradas como religiatildeoO nosso trabalho eacute resultado de pesquisa efetuado em Moccedilambique ndash Africa realizada com intuito de comparar as religiotildees de matrizes africanas no Brasil atraveacutes da cosmogonia africana e da essecircncia das experiencias religiosas ou misticas Semelhanccedilas e diferenccedilas Uma anaacutelise das correntes Umbandistas a partir de uma cidade interiorana Laiacutes Moacutel Alves O presente trabalho pretende analisar a Umbanda religiatildeo de matriz africana na cidade de Caratinga leste de Minas Gerais na tentativa de demonstrar a presenccedila de pelo menos duas linhas dessa religiatildeo na cidade e analisar ainda a relaccedilatildeo econocircmica existente entre a prevalecircncia de uma ou outra doutrina religiosa dentro da corrente Umbandista Para esta anaacutelise foram escolhidos trecircs terreiros o ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e ldquoCasa da Mariquinhardquo locais que se pode observar maior influecircncia das religiotildees afro-brasileira E um outro terreiro (sem nome) que permanece a influecircncia do Kardecismo no culto

A importacircncia e utilizaccedilatildeo das folhas nas comunidades de candombleacute no Brasil

Paulo Roberto Noacutebrega de Arauacutejo Wallace Ferreira de Souza

Dentro dos cultos afro-brasileiros particularmente nos terreiros de Candombleacutes os Orixaacutes nome dado agraves divindades pelos povos iorubas estatildeo intimamente ligados agrave Natureza Para a comunidade de santo todas as divindades caracterizam-se por serem detentoras ou mobilizadoras de elementos naturais que conteacutem axeacute O objetivo desta comunicaccedilatildeo e refletir a respeito da importacircncia das folhas e sua utilizaccedilatildeo como elemento lituacutergico e ritualiacutestico nas cerimocircnias propiciatoacuterias entendidas aqui como ritos de passagem O trabalho foi desenvolvido a partir de uma pesquisa bibliograacutefica e de observaccedilotildees participantes em casas de Candombleacutes levando em consideraccedilatildeo a plasticidade dos cultos afro-brasileiros Um dos aspectos percebidos e a interaccedilatildeo entre um espaccedilo urbano caracterizado pelas construccedilotildees dos terreiros e o espaccedilo da natureza constituiacutedo pelo reino animal minerais e vegetal onde as folhas estatildeo inseridas

A destituiccedilatildeo do sagrado das religiotildees de matriz africana no confronto epistemoloacutegico com o campo simboacutelico-conceitual cristatildeo

Aurino Joseacute Goacuteis

As religiotildees de matriz africana mormente o Candombleacute foram circunscritas num campo simboacutelico-conceitual que as destituiacutea de toda pretensatildeo de legitimidade e universalidade Essa destituiccedilatildeo ocorria e era tecida argumentativamente na medida em que se afirmava e consolidava agravequele outro campo simboacutelico dominante eurocecircntrico e cristatildeo Esse fato histoacuterico eacute revisitado e retomado no texto para explicar as agressotildees aos Terreiros de Candombleacute verificadas em vaacuterios episoacutedios nas cidades brasileiras e em especial nos casos analisados pelo autor na regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte O texto afirma um continuum entre as agressotildees do passado e do presente ao inscrevecirc-las num mesmo horizonte conceitual-epistemoloacutegico motivacional Pretende-se assim fornecer pistas para compreensotildees e accedilotildees inovadoras no futuro no processo de afirmaccedilatildeo ldquopor direitordquo das comunidades de matriz africana O objetivo a ser alcanccedilado eacute o de dar visibilidade a essas agressotildees e promover o debate social em torno do lugar historicamente atribuiacutedo a essas comunidades no contexto urbano da sociedade brasileira

A (in)toleracircncia religiosa Dalmer Pacheco de Almeida Igor Pacheco Yuri Pacheco A marcha contra a intoleracircncia religiosa contra o Candombleacute e a Umbanda A participaccedilatildeo dos movimentos sociais e das Igrejas Cristatildes Os direitos constitucionais e a liberdade de credo religioso O agendamento na miacutedia e o processo de midiatizaccedilatildeo

GT Religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena TEXTOS

Quando o sertatildeo vai ao mar rituais afro-sertanejos no litoral baiano

Acircngela Cristina Borges1

Eacute sabido que o homem desenvolve haacutebitos modo de vida e visatildeo de mundo

conforme a histoacuteria o tempo e o espaccedilo geograacutefico em que estaacute inserido O homem norte-

mineiro tambeacutem desenvolveu costumes vitais relacionados ao seu contexto histoacuterico-geograacutefico

costumes que compotildeem seus universos culturais entre eles a Umbanda Sertaneja sistema

simboacutelico que reflete o ethos da regiatildeo ao se apresentar como fronteiriccedilo hiacutebrido e intersticial

No presente trabalho abordaremos um dos elementos cosmoloacutegicos pertencente a esta tradiccedilatildeo

religiosa o ritual ldquoOgum Beira-Marrdquo Relevante composiccedilatildeo metafiacutesica do terreiro afro-

sertanejo Recanto de Pai Joatildeo Velho este rito tem sido deslocado ndash pela comunidade do

terreiro - para o litoral baiano onde serve de instrumento para a renovaccedilatildeo e revitalizaccedilatildeo da

praacutetica de Umbanda No intuito de tecermos reflexotildees sobre este ritual bem como dos

desdobramentos que o envolve nos apoiaremos no conceito de hibridismo cultural Atual e

irreverente esta perspectiva teoacuterica permite na realidade poacutes-moderna o vislumbramento de

particularidades culturais veladas pelos discursos nacionais a exemplo do Norte de Minas

Gerais

Situado na fronteira com a Bahia e possuindo clima fauna e flora semelhantes agrave

aacuterea nordestina o sertatildeo norte-mineiro recebeu os primeiros colonizadores em meados do

seacuteculo XVI No entanto se manteve longe do aparelho colonizador durante mais de um seacuteculo

atraindo nesse periacuteodo aqueles que natildeo se subordinavam ao controle portuguecircs Terra inoacutespita o

sertatildeo abrigou bandos que saqueavam o litoral a presenccedila destes e a ausecircncia estatal o tornou

uma terra ldquosem leirdquo ou melhor uma terra com suas proacuteprias leis No seacuteculo XVII o retorno das

expediccedilotildees e o iniacutecio do povoamento natildeo evitaram que a violecircncia se tornasse um marco da

regiatildeo e consequentemente uma marca cultural

Natildeo eacute desconhecido da historiografia brasileira que economicamente a

colonizaccedilatildeo do nosso paiacutes iniciou-se pelo litoral onde a vigilacircncia da Coroa Portuguesa era

intensa devido aos seus interesses econocircmicos Regiotildees que aos olhos da Coroa natildeo ofereciam

lucro imediato eram ignoradas e em funccedilatildeo deste descaso a partir dos seus proacuteprios recursos

1 Professora e Coordenadora do curso de Ciecircncias da Religiatildeo da Universidade Estadual de Montes ClarosMG Mestre em Ciecircncias da Religiatildeo ndash PUC-SP

naturais procuraram se auto-sustentar Assim ocorreu com o Norte de Minas Gerais Mesmo

sem o incentivo estatal numerosos paulistas fundaram grandes fazendas de gado no Vale do Rio

Satildeo Francisco e enriqueceram-se beneficiados principalmente pela localizaccedilatildeo geograacutefica da

regiatildeo que se tornou um centro de intercacircmbio entre a aacuterea mineradora o nordeste e centro-

oeste brasileiro Para a sua sobrevivecircncia e manutenccedilatildeo dos potentados adquiridos durante a

ocupaccedilatildeo o norte-mineiro livre do esquema colonial portuguecircs desenvolveu uma moral

proacutepria baseada na violecircncia e no choque de valores contraditoacuterios ndash questatildeo axioloacutegica que

pode ser identificada nos seus universos culturais entre eles a Umbanda Talvez seja este o

principal aspecto ndash axioloacutegico - que o diferencia das outras regiotildees do Estado contribuindo

desta forma para a crescente certeza entre os estudiosos da regiatildeo de que o ethos mineiro natildeo

se identifica com o ethos norte-mineiro Este natildeo seria mineiro e nem baiano a sua identidade

transitaria entre um e outro reproduzindo culturalmente sua localizaccedilatildeo geograacutefica a fronteira

Considerando ser esta regiatildeo um espaccedilo fronteiriccedilo pensamos ser relevante

lanccedilarmos matildeo de uma perspectiva teoacuterica adequada a este tipo de espaccedilo As fronteiras

emergem como interstiacutecios culturais locais de tracircnsito cultural sendo dinacircmicas e sincreacuteticas

induzindo-nos a conceber neste estudo o sertatildeo como lugar dinacircmico que transcende o espaccedilo

fiacutesico e os modelos culturais dominantes Natildeo eacute possiacutevel obter sua dimensatildeo muacuteltipla ndash fiacutesica

soacutecio-cultural e existencial - pelo acesso da loacutegica racionalista Seu alcance estaacute na des-razatildeo

pois eacute o espaccedilo das contradiccedilotildees das ambivalecircncias e ambiguumlidades do provisoacuterio constante e

do imprevisiacutevel Eacute preciso portanto para alcanccedilaacute-lo se pocircr na fronteira posiccedilatildeo que o proacuteprio

ambiente sertanejo exige Sendo assim a religiosidade eacute um recurso capaz de focalizar o

dinamismo proacuteprio de regiotildees instersticiais como o sertatildeo suplantando desta forma sua

imagem como um simples espaccedilo fiacutesico

Assim fez Guimaratildees Rosa (1985) ao entrar em contato com a histoacuteria e a cultura

norte-mineira Entendemos o fasciacutenio causado pela sua obra que retrata a regiatildeo e o sertanejo

Para falar do sertatildeo este autor poeticamente se colocou no proacuteprio sertatildeo numa atitude quase

metafiacutesica pois a imagem deste espaccedilo cega os olhos de quem intenciona descrevecirc-lo mediante

uma linguagem simples e didaacutetica Descrevecirc-lo eacute mergulhar em si mesmo eacute buscar em si

impressotildees sobre uma realidade quase indecifraacutevel pela linguagem convencional Talvez por

isso Rosa se colocasse em Riobaldo2 que ao falar de si fala do sertatildeo e ao falar do sertatildeo fala

do sertanejo

Neste sentido acreditamos ser as noccedilotildees de hibridismo cultural a mais apropriada

para abordar regiotildees intersticiais como o sertatildeo norte-mineiro bem como uma de suas

expressotildees religiosas a Umbanda Sertaneja Religiatildeo sincreacutetica a Umbanda no Norte de Minas

2 Personagem sertanejo do Grande Sertatildeo Veredas obra de Guimaratildees Rosa

Gerais se coloca tambeacutem como interstiacutecio ao provocar na coexistecircncia com a Quimbanda e o

Candombleacute inovaccedilotildees ritualiacutesticas

Hibridismo cultural

A complexidade dialeacutetica da nossa realidade e dos nossos sistemas simboacutelicos

impede que suas interpretaccedilotildees principalmente no momento atual aconteccedilam utilizando-se de

modelos simples Tal complexidade parece ser mais evidente em funccedilatildeo da frequumlente gama de

informaccedilotildees proveniente dos diversos cantos do mundo viabilizada pelo encurtamento de

distacircncias produzindo desta forma um fluxo forte e constante A atualidade tem como um de

seus marcos os encontros culturais Cada vez mais frequumlentes e intensos tais encontros

impedem a existecircncia de uma fronteira cultural niacutetida e definida impossibilitando-nos de

identificar onde culturalmente algo comeccedila e termina Esse estado de continuum cultural

contrapotildee-se a qualquer noccedilatildeo de essencializaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave identidade

Falar entatildeo de universos culturais atualmente soacute eacute possiacutevel considerando situaccedilotildees

de misturas mesticcedilagens sincretismo diaacutesporas que alguns teoacutericos da cultura denominam de

traduccedilatildeo crioulizaccedilatildeo hibridismo hibridaccedilatildeo hibridizaccedilatildeo Desta forma eacute fato que o termo

ldquoculturardquo deve ser considerado como afirma Burke (2003 p6) ldquoem um sentido razoavelmente

amplo de forma a incluir atitudes mentalidades valores e suas expressotildees concretizaccedilotildees ou

simbolizaccedilotildees em artefatos praacuteticas e representaccedilotildeesrdquo Acrescentamos a esta ideacuteia a afirmaccedilatildeo

de que o termo cultura deve ser analisado em toda a sua complexidade admitindo a vastidatildeo

destes elementos originalmente multiplicados nos encontros entre tradiccedilotildees

Sendo assim justifica-se recorrer a teoacutericos que fundamentam investigaccedilotildees

interessadas em abordar especificidades culturais proacuteprias de uma tradiccedilatildeo local O estudo

sobre um local de cultura faz-se necessaacuterio na atualidade onde ingenuamente se postula a

transformaccedilatildeo - pela globalizaccedilatildeo - do planeta em uma aldeia global Nesta perspectiva o papel

da cultura eacute encoberto pela tentativa de definir de forma objetiva a naccedilatildeo como uma grande

comunidade existente num territoacuterio com limites definidos e sujeita a uma administraccedilatildeo

estatal Esta visatildeo naturalmente se preocupa com os aspectos econocircmicos e tecnoloacutegicos do

processo de modernizaccedilatildeo que na loacutegica capitalista precisam ser identificados nacionalmente

No entanto especificidades existem e a sua existecircncia comprova que o

nacionalismo abrange apenas o que haacute de comum e natildeo a diferenccedila Talvez por ser o diferente

de difiacutecil acesso que identifica e natildeo identifica que une e aparta que afirma e contraria Com a

finalidade de nos determos em um dos movimentos desenvolvidos pela Umbanda Sertaneja

explicitaremos a partir de autores como Homi Bhabha e Nestor Garcia Canclini a noccedilatildeo de

hibridismo cultural verificando o quatildeo feacutertil satildeo estes conceitos na interpretaccedilatildeo de identidades

culturais presentes nos lugares de fronteiras

Iniciaremos com o pensamento do criacutetico literaacuterio indo-britacircnico Homi Bhabha

(1998) que rompe com o tradicionalismo ao deslizar entre a poesia a literatura a antropologia e

filosofia no estudo sobre cultura identidade e modernidade Sua perspectiva ao tratar essas

categorias sob o prisma do hibridismo abre espaccedilo para o desenvolvimento de um discurso rico

e desmistificador Neste sentido apresenta a fronteira como o lugar ideal para se ler o mundo e

a realidade pois estes com o advento da modernidade se colocaram tambeacutem neste lugar ou

melhor no entre - lugar no espaccedilo intersticial no momento fronteiriccedilo Para acompanhar e

compreender o intenso e raacutepido movimento da realidade contemporacircnea rica em mudanccedilas e

transformaccedilotildees o olhar da fronteira diante do mundo consegue mirar o espaccedilo intersticial

espaccedilo cultural rico em elementos ambivalentes e antagocircnicos Segundo Bhabha (1998 p19)

nossa existecircncia hoje eacute marcada por uma tenebrosa sensaccedilatildeo de sobrevivecircncia de viver nas

fronteiras do ldquopresenterdquo para as quais natildeo parece haver nome proacuteprio aleacutem do atual e

controvertido deslizamento do prefixo ldquopoacutesrdquo poacutes-modernismo poacutes-colonialismo poacutes-

feminismo Assim o local da cultura natildeo deve ser visto como lugar exato estaacutetico Eacute a zona que

foge agraves definiccedilotildees conceituais tradicionais

O ldquopresenterdquo eacute o momento do tracircnsito em que se cruzam espaccedilo e tempo

produzindo figuras de identidade passado presente inclusatildeo e exclusatildeo Haacute no ar deste

momento histoacuterico uma sensaccedilatildeo de desorientaccedilatildeo onde nada parece estar no lugar onde o

movimento eacute dominante Tudo parece estar deslocado e descentrado As categorias de classe e

gecircnero parecem natildeo possuir a mesma aplicabilidade de antes Para falar do deslocado do

descentrado cada vez mais parece ser necessaacuterio fragmentar a linguagem multiplicando as

categorias e termos que mais se adequam a estas condiccedilotildees

Sendo assim o local da cultura se apresenta como o local da fronteira do limite e

natildeo o ponto onde algo termina mas sim como uma ponte aquela que conforme Bhabha (p24)

ldquoreuacutene enquanto passagem que atravessardquo e como afirma Heidegger (2002 p134) ldquoo limite natildeo

eacute onde uma coisa termina mas como os gregos reconheceram de onde alguma coisa daacute iniacutecio agrave

sua essecircnciardquo Sendo este o lugar da cultura teoricamente deve-se entatildeo focalizar momentos e

processos que satildeo produzidos na articulaccedilatildeo de diferenccedilas sociais em lugar de fatos construiacutedos

historicamente que abordam apenas a superficialidade dos acontecimentos sociais A

articulaccedilatildeo de diferenccedilas sociais natildeo se daacute em momentos estaacuteticos mas sim nos interstiacutecios no

espaccedilo-momento onde elementos culturais diferentes se sobrepotildeem e se deslocam dando iniacutecio

a novos e inovadores signos de identidade que ao mesmo tempo se colaboram e se contestam

dialeticamente definindo desta forma a ideacuteia de sociedade hoje

Portanto do encontro de elementos culturais diferentes emergem entre - lugares

interstiacutecios culturais onde a articulaccedilatildeo social da diferenccedila se daacute sob a forma de negociaccedilatildeo

complexa mescla de reencenaccedilatildeo do passado colaboraccedilatildeo e contestaccedilatildeo onde ambivalecircncias e

antagonismos estatildeo presentes Sob o prisma do hibridismo a cultura eacute vista como zona de

instabilidade ausente de efetividade Bhabha (1998 p21) sustenta que ldquoao reencenar o

passado este introduz temporalidades culturais incomensuraacuteveis na invenccedilatildeo da tradiccedilatildeordquo Esse

processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradiccedilatildeo recebida

Neste momento a presenccedila de elementos ambivalentes e antagocircnicos impede a

denominaccedilatildeo absoluta da cultura Eacute o momento no qual ela eacute hiacutebrida ou seja nem uma coisa

nem outra onde a existecircncia do novo natildeo pode definitivamente ser definida pois o novo estaacute

em construccedilatildeo e muito provavelmente natildeo chegaraacute a um estado imoacutevel e definitivo Nesta

perspectiva se contextualiza a formaccedilatildeo da cultura sertaneja pois sua histoacuteria eacute igualmente

uma histoacuteria do hiacutebrido onde as realidades consideradas ateacute certo ponto imutaacuteveis e estaacuteticas

foram deslocadas e descentradas

Nestor Garcia Canclini (2006) utiliza o termo hibridaccedilatildeo cultural para analisar a

cultura na poacutes-modernidade Categorias como identidade cultura diferenccedila desigualdade

multiculturalismo e relaccedilotildees binaacuterias como tradiccedilatildeo-modernidade norte-sul local-global sob a

perspectiva da hibridaccedilatildeo devem ser analisadas de forma diferente nas ciecircncias humanas em

relaccedilatildeo agraves abordagens consideradas tradicionais Mas este autor chama a atenccedilatildeo para o cuidado

no uso do termo pois como vimos eacute amplo e se aplica desta forma igualmente

Canclini (2006 pXIX) define hibridaccedilatildeo como ldquoprocessos socio-culturais nos quais

estruturas ou praacuteticas discretas que existiam de forma separada se combinam para gerar novas

estruturas objetos e praacuteticasrdquo Esclarece que tal combinaccedilatildeo natildeo descarta as contradiccedilotildees e que

estas estruturas discretas jaacute eram resultadas de hibridaccedilotildees natildeo podendo entatildeo ser

consideradas como puras O autor (2006 pXVIII) ressalta que este termo eacute capaz de dar conta

de abordar os conflitos gerados pela interculturalidade presente ldquoem meio agrave decadecircncia de

projetos nacionais de modernizaccedilatildeo da Ameacuterica Latinardquo Canclini nos diz que a modernidade se

constitui basicamente em quatro projetos o emancipador (secularizaccedilatildeo) o expansionista

(ampliaccedilatildeo do conhecimento e do domiacutenio da natureza) o renovador (a busca do novo) e o

democratizador (difusatildeo do saber especializado para a evoluccedilatildeo racional e moral) Ao se

desenvolverem estes projetos entraram em conflito e na atualidade assistimos a subordinaccedilatildeo

das forccedilas renovadoras pela modernizaccedilatildeo econocircmica poliacutetica e tecnoloacutegica

Os processos globalizadores acentuaram a interculturalidade moderna ao criar

mercados mundiais uma gama de informaccedilotildees e migrantes Este fluxo diminuiu as fronteiras e

a autonomia das tradiccedilotildees locais ao promover hibridaccedilotildees que geram o novo No momento

atual as forccedilas renovadoras satildeo empreendidas e direcionadas pela economia pela poliacutetica e pela

tecnologia Sendo assim hibridaccedilatildeo designa as misturas culturais propriamente modernas

aquelas geradas pelas integraccedilotildees dos Estados Nacionais populismos poliacuteticos e pelas induacutestrias

culturais O autor natildeo descarta o uso do termo quando este se aplica agrave mesticcedilagem sincretismo e

crioulizaccedilatildeo mas atenta para o momento atual para a modernizaccedilatildeo estimulada pelo processo

da globalizaccedilatildeo atraveacutes da internacionalizaccedilatildeo e da transnacionalizaccedilatildeo

Apesar do objetivo de se modernizar a Ameacuterica Latina natildeo abandonou a tradiccedilatildeo

Assim neste continente a coexistecircncia do velho e do novo gera novas formas culturais

Manteacutem-se o tradicional mas reelabora-se a sua utilizaccedilatildeo usando mecanismos tecnoloacutegicos da

atualidade O autor (2006 p 304) destaca que a hibridaccedilatildeo urbana na poacutes-modernidade natildeo eacute o

resultado do encontro direto entre etnias a exemplo da modernidade mas eacute uma hibridaccedilatildeo

causada pelos meios de comunicaccedilatildeo e pelo avanccedilo da tecnologia que natildeo pode ser ignorada no

processo de produccedilatildeo cultural Canclini ressalta que a hibridaccedilatildeo moderna estaacute diretamente

relacionada agrave modernizaccedilatildeo e agrave internacionalizaccedilatildeo o que nos leva a concluir que a hibridaccedilatildeo

cultural eacute uma realidade tatildeo concreta quanto o processo globalizante Esta questatildeo nos leva a

outra a hibridaccedilatildeo natildeo eacute uniforme eacute incapaz de gerar culturas iguais uma vez que acontece

tambeacutem em funccedilatildeo da competecircncia tecnoloacutegica de cada Estado Deve-se tambeacutem considerar a

resistecircncia aos seus efeitos como exemplo o fundamentalismo

De acordo com Canclini (2006 p326) ldquoa hibridez tem um longo trajeto nas

culturas latino-americanasrdquo Realmente natildeo se pode esquecer o sincretismo criado pelo

encontro entre espanhoacuteis e indiacutegenas portugueses e indiacutegenas posteriormente no Brasil entre os

luso-brasileiros e os africanos e mais adiante o reencontro com os colonos italianos espanhoacuteis

e japoneses Desta forma parece-nos quase impossiacutevel empreender uma anaacutelise da cultura neste

paiacutes desconsiderando a hibridez Nos nossos projetos revolucionaacuterios contra a colonizaccedilatildeo

portuguesa e contra o imperialismo inglecircs e norte-americano re-significamos a realidade ao

tentar compatibilizar o novo e o velho as ideacuteias de liberdade com accedilotildees escravocratas e

conservadoras Ainda eacute presente no Brasil a tentativa de conciliar a tradiccedilatildeo e a modernidade

Nestas tentativas eacute possiacutevel perceber o hiacutebrido nos nossos universos simboacutelicos e a formaccedilatildeo de

identidades locais que no devir estatildeo em processo de mutaccedilatildeo hiacutebrida

De posse das teorias aqui apresentadas concluiacutemos que na atualidade o termo

cultura se torna realmente complexo pois a existecircncia de culturas mesticcedilas e hiacutebridas evidencia

a incapacidade ocidental de dizer o natildeo dito e de identificar o natildeo-identificaacutevel Esta questatildeo

alerta para a necessidade das ciecircncias do homem re-avaliarem o uso de suas categorias pois elas

podem natildeo dizer tudo e natildeo se aplicarem devidamente agraves culturas mesticcedilas tatildeo comuns e

evidentes nos nossos dias Desta forma estes autores nos concedem a fundamentaccedilatildeo necessaacuteria

para que neste estudo possamos vislumbrar o sertatildeo norte-mineiro como entre - lugar como

espaccedilo intersticial onde se processa a articulaccedilatildeo social A noccedilatildeo de entre - lugar e de interstiacutecio

espacial num contexto globalizante como o atual - fornecida por estes autores - nos possibilita

sentir e perceber a existecircncia de diferenccedilas culturais teoricamente natildeo consideradas Estas

leituras nos impulsionam a imaginar o local da cultura de forma diversa Sob suas perspectivas

o local e espaccedilo cultural se transformam em lugares de fronteira A vida neste lugar eacute um fluxo

de forccedilas que natildeo eacute percebido pela razatildeo3 humana pois envolve aleacutem dos fatos que a razatildeo

descreve emoccedilotildees sentimentos sonhos duacutevidas procuras e encontros

Enfim a fronteira deixa de ser um espaccedilo cercado de limites para ser um espaccedilo de

forccedilas ou melhor de forccedilas diversas e adversas que na coexistecircncia produzem novas forccedilas e

estas em funccedilatildeo do contexto apresentam particularidades Assim se apresenta o Umbandismo

no sertatildeo norte-mineiro como um sistema simboacutelico constituiacutedo de elementos diversos e

adversos que num fluxo contiacutenuo impulsionado por necessidades existenciais promove novas

re-significaccedilotildees evidenciando marcas proacuteprias do sertatildeo

Umbanda Sertaneja

A denominaccedilatildeo Umbanda Sertaneja justifica-se natildeo apenas pela localizaccedilatildeo geograacutefica

do sertatildeo das Minas Gerais mas sobretudo pela existecircncia nesta Umbanda de elementos

sertanejos em suas praacuteticas ritualiacutesticas e cosmologia A religiatildeo como sistema simboacutelico

certamente influencia na formaccedilatildeo do ethos de uma comunidade Deve-se considerar tambeacutem

que o ethos morada do ser exibe os valores existentes num determinado sistema religioso

Portanto a relaccedilatildeo entre religiatildeo e ethos natildeo eacute unilateral Apesar da insistecircncia humana em

identificaacute-lo definitivamente a realidade nos demonstra que o ethos estaacute sempre em processo de

construccedilatildeo Isso nos leva a pensar que igualmente os sistemas religiosos estatildeo em mutaccedilatildeo Eacute

claro que nem sempre a mutabilidade presente num sistema religioso eacute clara e evidente a ponto

de ser facilmente identificaacutevel e demonstraacutevel A leitura de um sistema religioso entatildeo natildeo

pode desconsiderar o contexto no qual este sistema encontra-se inserido Devem-se levar em

conta as contradiccedilotildees ambivalecircncias e os antagonismos da sua realidade

Nesta perspectiva considera-se neste estudo o universo umbandista sertanejo como um

sistema onde a relaccedilatildeo entre signos sentidos e significados se daacute numa maneira que ao mesmo

tempo se coloca como conflituosa e harmocircnica isto eacute sincreacutetica na medida em que seu

contexto cultural e geograacutefico eacute fronteiriccedilo As transformaccedilotildees na Umbanda podem natildeo soar

como novidade uma vez que naturalmente esta religiatildeo eacute sincreacutetica No entanto o que se

verifica na Umbanda Sertaneja eacute que aleacutem da inserccedilatildeo de novos elementos provenientes de

outros sistemas de crenccedila facilitados pela globalizaccedilatildeo recentemente tem ocorrido o

desenvolvimento de novas produccedilotildees simboacutelicas a partir do retorno agraves fontes originaacuterias Isto eacute

a revitalizaccedilatildeo desta Umbanda se daacute mediante a re-significaccedilatildeo de signos e significados

estabelecidos na origem de sua histoacuteria

3 O termo razatildeo aqui deve ser considerado agrave luz de Reneacute Descartes (seacutec XVII) Antocircnio Damaacutesio (1994) ilustra bem as consequumlecircncias do pensamento cartesiano Com a frase Penso logo existo Descartes sugere que pensar e ter a certeza do pensar definem a humanidade do homem Como ele entendia o pensamento como uma atividade separada do corpo sua definiccedilatildeo acaba estabelecendo um abismo entre mente e corpo

Nos anos 40 quase simultaneamente agraves transformaccedilotildees ocasionadas pelo processo

de mundializaccedilatildeo a Umbanda se inicia no norte de Minas Gerais quando chegam agrave regiatildeo os

principais atores deste processo os sacerdotes Joseacute Fernandes Guimaratildees proveniente de uma

Umbanda vinda do Sudeste e Waldemar e Laurinda Pereira Porto e Eliezer Gomes de Arauacutejo

originaacuterios de uma Umbanda nordestina A partir de fontes orais registros em cartoacuterios artigos

de jornais e processos criminais resgatamos a histoacuteria e a contribuiccedilatildeo destes personagens na

formaccedilatildeo da Umbanda no sertatildeo Entretanto por ora nos interessa saber que no sertatildeo norte-

mineiro o encontro de duas vertentes umbandistas originou o que hoje denominamos como

Umbanda Sertaneja Este culto natildeo se restringiria mais a uma macumba4 - como eram

conhecidos os rituais afro-brasileiros - pois se tornaria a partir da deacutecada de 40 uma nova

alternativa religiosa na regiatildeo

Na deacutecada de 50 o Candombleacute chega ao sertatildeo sendo que no mesmo periacuteodo o

sertatildeo recebe outros sacerdotes da religiatildeo e da Magia Negra influenciando desta forma com

novos elementos a praacutetica umbandista Um fenocircmeno entatildeo se inicia na deacutecada de 60 a

inserccedilatildeo no Candombleacute pelos sacerdotes de Umbanda Este fenocircmeno alterou profundamente o

campo religioso afro-sertanejo uma vez que grande parte dos seus terreiros adotou o

Candombleacute de forma total (Feitura de Santo) ou parcial (Boris Assentamentos)

Agrave medida que a cultura norte-mineira se distancia da tradicional matutice

sertaneja provocada pela urbanizaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo no universo umbandista tambeacutem se

verificam transformaccedilotildees dinacircmicas em movimentos de adequaccedilatildeo agrave cultura local e de recepccedilatildeo

de novos elementos culturais Em seus rituais aspectos hiacutebridos evidenciam as influecircncias do

mundo globalizado ao mesmo tempo em que revelam elementos denunciadores do ethos

sertanejo como agrave tensatildeo entre o Bem e o Mal jaacute abordada anteriormente por Guimaratildees Rosa

Tal articulaccedilatildeo axioloacutegica sempre presente na histoacuterica da regiatildeo eacute vislumbrada na relaccedilatildeo entre

Umbanda e Quimbanda - relaccedilatildeo conjeturada por noacutes como irmanaccedilatildeo dos contraacuterios - e na

coexistecircncia destas com o Candombleacute

A triacuteade que se forma nos templos afro-sertanejos acena para a institucionalizaccedilatildeo

de uma nova loacutegica religiosa Foi detectado no imaginaacuterio religioso dos adeptos onde a triacuteade eacute

uma realidade um deslocamento metafiacutesico de caraacuteter espiritual ou seja uma nova visatildeo de

espiritualidade e de mundo espiritual que emergiu da coexistecircncia destas religiotildees que

passaram a ser vistas como ldquoenergiasrdquo Movimenta alimenta e manteacutem o continuum integrado

um ser tatildeo hiacutebrido e ambivalente quanto o sertatildeo a personalidade - Exu Presente nas trecircs

ldquoenergiasrdquo Exu exerce em cada uma delas uma funccedilatildeo proacutepria ao mesmo tempo em que se

desdobra como elo e conexatildeo Situado na fronteira dos valores contraditoacuterios esta entidade

manifesta e desvenda a personalidade do homem sertanejo Exu eacute recurso e esperanccedila diante das

4 Termo pejorativo usado para fazer referecircncia agraves religiotildees afro-brasileiras que lidam com a magia

insatisfaccedilotildees infelicidades perseguiccedilotildees e demandas pessoais Seu caraacuteter duvidoso leva

esperanccedila agravequeles que presos pelos grilhotildees das convenccedilotildees desejam romper com a tradiccedilatildeo

seja ela social poliacutetica ou moral

Na Quimbanda Exu se aproxima dos homens ao estabelecer via magia relaccedilotildees

diretas com eles ouvindo aconselhando orientando elogiando e diminuindo o peso das regras

deixando claro que podem ser rompidas ou transformadas Exu alimenta a auto-estima do

consulente No combate miacutestico eacute a resistecircncia humana a situaccedilotildees sociais indesejaacuteveis e na

busca pela felicidade eacute o desejo individual de liberdade ao transcender normas

comportamentais Sem duacutevida eacute a entidade mais procurada nos terreiros sertanejos ou atraveacutes

do jogo de buacutezios (Candombleacute) ou no atendimento puacuteblico e individual (Umbanda e

Quimbanda) Exu eacute representaccedilatildeo miacutestica do homem do sertatildeo ambivalente desliza na fronteira

entre o Bem e o Mal Eacute a imagem do sertanejo oscilante entre o amor e o oacutedio Deus e democircnio

feacute e descrenccedila religiatildeo e magia imprecisotildees impostas pela atmosfera sertaneja Em Exu o

sertatildeo supera-se enquanto espaccedilo fiacutesico ao expressar a alma humana Sua busca eacute a busca de si

mesmo da coragem apaacutetica que se torna audaciosa ao lanccedilar matildeo da magia como recurso para

resoluccedilatildeo dos problemas Por meio desta entidade o homem transcende apatias e medos pois

como princiacutepio dinacircmico Exu inverte situaccedilotildees concedendo e restaurando equiliacutebrio assim eacute

accedilatildeo vida liberdade e vigor

A triacuteade possui Exu como elo como conexatildeo entre estas ldquoenergiasrdquo Ele estaacute

sempre presente No Candombleacute eacute a natureza humana e na Quimbanda eacute o amigo e o confidente

que orienta sobre a vida profissional e familiar une e separa pessoas oferece ajuda e esclarece

enigmas pessoais Sua liberdade e movimento o tornam atraente pois natildeo existem limites para

essa entidade Agradaacute-lo tornaacute-lo amigo ganhar sua simpatia eacute garantia do bom combate e da

vitoacuteria

Esta personalidade eacute esfera viva no dia-a-dia do terreiro ao se manifestar como

ponte pela triacuteade No jogo de buacutezios concede intuiccedilatildeo ao Tatecircto5 intermediando homens e

divindades Detecta tambeacutem se o consulente estaacute sofrendo a accedilatildeo de um Exu obsessor ou seja

de Quimbanda e neste sentido Exu (Candombleacute) orienta agradar Exu (Quimbanda) que uma vez

satisfeito pode inclusive se transformar em capanga de Preto Velho (Umbanda) Em funccedilatildeo de

um encosto (Exu) causador das agruras humanas as pessoas procuram a Umbanda se

consultando com suas entidades que tambeacutem indicam Exu (Escora Pomba-Gira) para afastar o

mesmo Portanto tem presenccedila marcante no terreiro a partir das funccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias

em cada uma destas ldquoenergiasrdquo Sem Exu a Umbanda a Quimbanda e o Candombleacute natildeo

existem perdem a razatildeo de ser Enfim esta personalidade tatildeo hiacutebrida quanto agrave alma sertaneja

manteacutem o continuum integrado firme e cada vez mais forte na medida em que se coloca numa

5 Pai-de-santo do Candombleacute

posiccedilatildeo fronteiriccedila entre o bem e o mal na relaccedilatildeo entre o sagrado e a conduta sertaneja Exu

expressa a visatildeo de mundo no sertatildeo

Exu eacute elemento ativo na revitalizaccedilatildeo da Umbanda Sertaneja bem como o eacute na

reestruturaccedilatildeo dos seus terreiros A influecircncia do Candombleacute e o crescimento do

Neopentecostalismo na regiatildeo tem reforccedilado a feacute nesta personalidade o que nos leva a

compreender sua busca ou o seu fortalecimento como fundamental para a manutenccedilatildeo

metafiacutesica e fiacutesica dos terreiros Paira no imaginaacuterio afro-sertanejo a impossibilidade de viver

sem o apoio desta entidade O ritual Ogum Beira Mar realizado pelo terreiro afro-sertanejo

Recanto de Pai Joatildeo Velho no litoral baiano exemplifica esta entidade como recurso na busca

por forccedila espiritual equiliacutebrio pisico-emocional e material Vejamos pela histoacuteria deste terreiro

o quatildeo para os seus adeptos tal recurso se apresenta como essencial

O Recanto de Pai Joatildeo Velho foi fundado na deacutecada de 70 do seacuteculo passado pelo

um casal de catoacutelicos praticantes Nelson Dias e Nair Lopes Dias O casal se viu a partir de

acontecimentos que interpretaram como sobrenaturais lanccedilado na religiatildeo umbandista para o

cumprimento de uma missatildeo espiritual a caridade Crentes da necessidade de cumprirem tal

missatildeo iniciaram sozinhos a empreitada de constituiacuterem um terreiro e interpretarem atraveacutes da

associaccedilatildeo entre a literatura umbandista e intuiccedilotildees proacuteprias agrave cosmologia de Umbanda O fato

de permanecerem isolados em relaccedilatildeo a outros terreiros de manterem um centro Kardecista

como suporte da Umbanda e de natildeo se dedicarem integralmente agrave mesma levou-os a

estabelecer uma Umbanda considerada simples Isto eacute uma Umbanda que se desenvolveu com

poucas linhas Preto-Velho Escora e Pomba-Gira Meninos de Angola Caboclo e Sereias Dois

Orixaacutes regiam o terreiro Iemanjaacute e Xangocirc A primeira era cultuada uma vez por ano no mecircs de

Janeiro e o segundo em dias de festividades dos Pretos-Velho As poucas linhas para este casal

de sacerdotes supriam o que acreditavam ser o necessaacuterio sauacutede uniatildeo da famiacutelia proteccedilatildeo

contra inimigos encarnados e desencarnados e aquisiccedilatildeo de forccedila para o enfrentamento da vida

A escolha de poucas linhas pode ser entendida pela proximidade do casal com a doutrina

kardecista e seu distanciamento com o Candombleacute preacute-concebido pelos sacerdotes como

complexo e escravizante6

Durante quase trecircs deacutecadas a chefia do terreiro ficou nas matildeos de Seu Nelson e

Dona Nair Mas o falecimento do primeiro alterou o curso dos trabalhos bem como abriu

espaccedilo para a inserccedilatildeo de novos elementos A morte do sacerdote trouxe instabilidade e

desequiliacutebrio para o grupo que seguia suas intuiccedilotildees sem questionamentos A Umbanda se

iniciou no Brasil como uma religiatildeo fundamentada na oralidade e intuiccedilotildees dos sacerdotes Nos

uacuteltimos anos vem progressivamente se afastando da oralidade cada vez mais tem surgido

literaturas sobre sua teologia e teogonia A implantaccedilatildeo de uma faculdade umbandista na cidade

6 Em funccedilatildeo do grau de compromisso que esta religiatildeo exige dos seus adeptos

de Satildeo Paulo eacute um fato que chama a atenccedilatildeo porque demonstra a intenccedilatildeo nesta religiatildeo de uma

sistematizaccedilatildeo mais rigorosa No entanto no Norte de Minas Gerais a influecircncia do Candombleacute

inibe as raras tentativas de abandono da oralidade Esta assim como a intuiccedilatildeo do sacerdote

ainda eacute um dos motores que alimentam o terreiro Quando ocorre o seu desaparecimento os

adeptos se tornam oacuterfatildeos sem referecircncia e direccedilatildeo a exemplo dos integrantes do Recanto de Pai

Joatildeo Velho que sem seu liacuteder se viram num caos psico-espiritual que comprometia a identidade

do grupo A reestruturaccedilatildeo somente veio mediante um novo sacerdote Norivaldo Lopes Dias

filho do casal

Norivaldo conheceu a Umbanda atraveacutes dos pais e os rituais desta religiatildeo fizeram

parte da sua rotina de infacircncia e adolescecircncia Desenvolvido pelo pai este sacerdote adquiriu

experiecircncia e sabedoria sobre a espiritualidade umbandista o que lhe garante atualmente ser

um liacuteder De acordo com os adeptos do terreiro sua independecircncia espiritual jaacute era notada

mesmo quando ldquotrabalhavardquo sob a lideranccedila paterna Tal independecircncia lhe concedeu o direito e

a seguranccedila para inovar dando ao Recanto de Pai Joatildeo Velho uma nova formataccedilatildeo ritualiacutestica

Satildeo notaacuteveis as mudanccedilas que ocorrem sob seu comando Seus dons comparados aos do

primeiro sacerdote satildeo diferentes o que na Umbanda natildeo causa surpresa Para os umbandistas a

energia de cada sacerdote estaacute no Orixaacute e nas linhas que o guardam possuindo com estas

afinidades e estreitas ligaccedilotildees A forccedila espiritual do terreiro que dirige deve ser a forccedila das

linhas reveladas pela sua mediunidade Uma vez identificadas as linhas que comandam sua

ldquocabeccedilardquo satildeo trabalhadas a fim de garantir a seguranccedila a proteccedilatildeo e o poder do sacerdote

O sacerdote Norivaldo neste momento estaacute num processo de afirmaccedilatildeo e de

legitimaccedilatildeo da sua lideranccedila Progressivamente vai estabelecendo e impondo meacutetodos proacuteprios

para lidar com a espiritualidade Ser reconhecido pelo grupo como um indiviacuteduo dotado de uma

grande e legiacutetima forccedila espiritual ou seja como detentor do capital simboacutelico lhe garante o

comando do terreiro A lideranccedila no campo religioso eacute legitimada pelos leigos quando estes

reconhecem no sacerdote a concentraccedilatildeo do capital religioso Ao sacerdoteespecialista cabe o

monopoacutelio e a gestatildeo do capital simboacutelico Sua relaccedilatildeo com os leigos eacute determinada pela

existecircncia deste O grupo espera do liacuteder religioso a realizaccedilatildeo de accedilotildees maacutegicas que tenham

como finalidade seu bem-estar e ao especialista cabe corresponder a esta expectativa sendo

assim sua legitimidade como liacuteder eacute inquestionaacutevel Daiacute a necessidade do sacerdote Norivaldo

demonstrar sua forccedila espiritual como essencial para a existecircncia e permanecircncia do grupo Em

suas palavras eacute possiacutevel vislumbrar o capital simboacutelico que acumulou em anos como

umbandista

A determinaccedilatildeo de cada meacutedium que tem a coordenaccedilatildeo do centro ele tem que ter natildeo soacute a desenvoltura espiritual ele tem que ter o equiliacutebrio do mundo espiritual com o mundo material ()

() Aqueles que realmente trabalham da linhagem que natildeo cobram satildeo sofredores Natildeo sofredores em questatildeo de alegria alegria tem mas sofredores porque vocecirc vai chegando num ponto do seu tempo de espiritualidade que vocecirc vai tendo a videcircncia e essa videcircncia vai deixando vocecirc ter as leituras natildeo soacute do conhecimento espiritual como do conhecimento material sobre cada determinada pessoa Eacute quando vocecirc comeccedila a sofrer as emoccedilotildees de cada um e ler o coraccedilatildeo de cada um e sentir tudo o que a pessoa sente [] As emoccedilotildees que vem sobre o meacutedium eacute muito forte

Este sacerdote reconhece a necessidade do especialista em transitar com equiliacutebrio

entre o mundo sensiacutevel e o mundo invisiacutevel A videcircncia que acredita lhe conceder o

conhecimento sobre cada um dos seus possibilitando viver suas emoccedilotildees eacute exemplo claro do

capital simboacutelico Viver as emoccedilotildees do outro eacute partilhar da sua existecircncia Significa mais que

consenso Significa aproximaccedilatildeo metafiacutesica emocional e espiritual Na Umbanda o liacuteder

religioso precisa transmitir seguranccedila confianccedila e afetividade em relaccedilatildeo agravequeles que o seguem

Lidar com o maacutegico com o invisiacutevel com o que se desconhece soacute eacute possiacutevel nesta religiatildeo sob

o olhar seguro de um liacuteder carismaacutetico A histoacuteria espiritual do sacerdote tambeacutem eacute seu capital

Graccedilas agraves suas accedilotildees consideradas como maacutegicas conquistaram espaccedilo privilegiado no terreiro

pois destilavam confianccedila e competecircncia Entretanto sua lideranccedila inaugura neste terreiro um

novo tempo Seguindo a tendecircncia do campo afro-sertanejo insere novos elementos adquiridos

no Candombleacute o que concede ao Recanto de Pai Joatildeo Velho uma nova formataccedilatildeo com a

chegada de outras linhas Enquanto seu pai acreditava serem os orixaacutes Xangocirc e Iemanjaacute

suficientes para espiritualmente sustentar o terreiro este sacerdote inaugura novas linhas com

destaque para a Linha de Ogum A partir dos ritos a este Orixaacute acredita ser possiacutevel promover a

revitalizaccedilatildeo da sua Umbanda

O contexto caoacutetico em que se encontrava o Recanto de Pai Joatildeo Velho e as

qualidades do Orixaacute Xangocirc justifica-o como recurso para saiacuteda do caos Para o teoacutelogo

umbandista Rubens Saraceni (2005) Ogum foi gerado por Olorum (Deus) desta forma eacute em si

mesmo a ordenaccedilatildeo divina ldquoa qualidade ordenadora e a divindade aplicadora dos princiacutepios

da Lei Maiorrdquo ldquoSua qualidade ordena a evoluccedilatildeo e por isso ele eacute tido como o Senhor dos

Caminhos (das vias evolutivas)rdquo ldquoeacute a lei que rege a vida dos seresrdquo Isto eacute Ogum tem a

qualidade de propiciar ordem organizaccedilatildeo e estruturaccedilatildeo Aplicando a lei de Deus este orixaacute

tem o poder de findar o caos Ogum portanto para o sacerdote deste terreiro eacute o Orixaacute a quem

se deve recorrer em momentos de desordem

Podemos encontrar justificativas tambeacutem na mitologia afro Nesta Ogum eacute o

orixaacute-irmatildeo de Exu aleacutem de dirigir uma falange de elementos constituiacutedos desta natureza

Personalidade essencial dos templos afro-sertanejos Exu associado ao orixaacute ordenador eacute recurso

e instrumento de renovaccedilatildeo Atraveacutes de Exu eacute possiacutevel compreender os motivos que

possibilitaram a procura por esta divindade num momento criacutetico como o vivido pelo Recanto

de Pai Joatildeo Velho Trindade e Coelho (2006 p23) nos afirma que o princiacutepio dinacircmico da

existecircncia coacutesmica e humana eacute representado nas religiotildees ioruba e fon pela divindade Exu

Este ldquocomo princiacutepio diz respeito a todos os domiacutenios da experiecircncia coacutesmica e humanardquo

Nesta perspectiva satildeo muitas as narrativas miacuteticas7 sobre esta divindade e em todas haacute um ponto

em comum a liberdade o dinamismo e o movimento de Exu Se Ogum rege falanges de Exus -

princiacutepio dinacircmico movimento - e eacute o orixaacute ordenador entende-se portanto porque que para os

umbandistas ele significa abertura dos caminhos amparo contra os inimigos e vitoacuteria sobre

demandas espirituais e materiais Sua presenccedila num terreiro portanto significa forccedila

dinamismo e vitalidade

No Recanto de Pai Joatildeo Velho esta divindade chegou para reativar erguer e

reestruturar metafisicamente o terreiro conferir a este uma nova dinacircmica Para tanto provocou

a chegada de novas forccedilas Iansatilde e Oxum e o retorno do culto a Iemanjaacute no sertatildeo Vejamos a

contribuiccedilatildeo de cada divindade no contexto deste terreiro

Iansatilde para Saraceni (2005) eacute a divindade da lei pois expande o fogo de Xangocirc

orixaacute da justiccedila Quando um ser eacute purificado de seus viacutecios Iansatilde atua para redirecionaacute-lo

agindo no emocional e proporcionando um novo sentido da Vida Na mitologia afro eacute

representada como a deusa dos ventos e da tempestade amada por Ogum aprende com este a

arte da guerra No Recanto de Pai Joatildeo Velho Iansatilde atua como forccedila auxiliar de Ogum

aplicando a lei divina e direcionando seus adeptos na busca por um novo caminho

Oxum segundo o mesmo teoacutelogo eacute o poacutelo positivo da onda de Amor Divino Ao

irradiar amor agrega os seres e em ondas coronais liga agraves substacircncias os elementos as

essecircncias e os sentimentos Desta forma une entes afins entre si pelo elo do amor A mitologia

afro apresenta Oxum como agrave deusa da beleza e do amor que junta as pessoas doce e meiga sua

presenccedila da deusa da aacutegua doce emana serenidade e harmonia No Recanto de Pai Joatildeo velho

Oxum eacute recurso metafiacutesico para a reuniatildeo dos adeptos em torno do mesmo objetivo tornar o

terreiro mais coeso

Iemanjaacute natildeo eacute muito cultuada no sertatildeo norte mineiro Satildeo raros os terreiros que a

tomam como orixaacute principal Em geral divide com outros seres encantados as atenccedilotildees dos

adeptos Durante quase trecircs deacutecadas esta deusa junto com Xangocirc e Nanatilde reinou no Recanto de

Pai Joatildeo Velho um dos poucos templos a cultuaacute-la Sua festividade era muito esperada pois se

acreditava que o progresso e a prosperidade poderiam ser proporcionados por ela Apoacutes a morte

do sacerdote fundador do terreiro um grupo de adeptos liderados por uma das meacutediuns por sete

anos consecutivos cultuou a deusa dos oceanos em sua casa ou seja no mar O propoacutesito era a

partir desta divindade sustentar espiritualmente o grupo ateacute a chegada de um novo sacerdote

7 Ver Mitologia Dos Orixaacutes de Reginaldo Prandi

Entretanto para o sacerdote atual ao ser cultuada em sua proacutepria morada Iemanjaacute natildeo mais

retornou daiacute agrave necessidade de buscaacute-la conduzi-la novamente ao sertatildeo

A teologia umbandista estabelece Iemanjaacute como irradiaccedilatildeo divina da criatividade e

do amparo agrave vida Eacute fator gerador e magnetiza os seres fecircmeas estimulando a maternidade Na

mitologia a deusa dos oceanos tambeacutem eacute associada agrave criaccedilatildeo Reza a lenda que ao participar da

criaccedilatildeo do mundo Iemanjaacute torna-se matildee dos orixaacutes No Recanto de Pai Joatildeo Velho esta

divindade tem a funccedilatildeo de fortalecer os laccedilos familiares e eacute vaacutelido lembrar que a Umbanda eacute

uma religiatildeo feminina a presenccedila da mulher portanto eacute forte em todos os seus templos O

Recanto de Pai Joatildeo Velho natildeo foge a regra pois a maioria dos meacutediuns satildeo mulheres que

trazem em sua companhia maridos e filhos No restabelecimento deste terreiro a ecircnfase na

uniatildeo familiar via Iemanjaacute orixaacute feminino coloca a mulher como um ponto de forccedila

estruturador

Com os orixaacutes Ogum Iansatilde Oxum e Iemanjaacute o sertatildeo vai ao mar tendo como

objetivo principal a reintegraccedilatildeo metafiacutesica da uacuteltima ao terreiro Durante sete anos o grupo

liderado por Ogum lhe renderaacute culto atraveacutes de oraccedilotildees cacircnticos oferendas e o sacrifiacutecio do

deslocamento treze horas de viagem Acreditam que o retorno da deusa concluiraacute

definitivamente o processo de estruturaccedilatildeo do templo Esta eacute uma das finalidades talvez a

principal do rito ldquoOgum Beira-Marrdquo Neste mulheres incorporam guerreiras de Iansatilde Oxum e

Iemanjaacute Ao lado do orixaacute ordenador se coloca uma deidade que redireciona o que se encontra

desorientado Iansatilde uma deusa que agrega e reuacutene o que estava fragmentado Oxum e outra

que aleacutem de estimular a criatividade manteacutem ativo o fator gerador responsaacutevel pelo sentimento

maternal Iemanjaacute As divindades em questatildeo invocadas pelos adeptos do Recanto de Pai Joatildeo

Velho satildeo reunidas agrave beira do mar de forma a buscarem neste ponto-de-forccedila originaacuterio os

elementos sustentadores do grupo e re-significaccedilotildees cosmoloacutegicas estimuladoras da

religiosidade impactada pela morte Vejamos brevemente este ritual

O rito Ogum Beira Mar ocorreu no dia 20 de Abril de 2009 proacuteximo agrave data em que

se comemora o Dia de Satildeo Jorge santo sincretizado com Ogum Aleacutem deste orixaacute estavam

presentes no ritual os seus guerreiros e isso envolve Iansatilde Oxum e Iemanjaacute uma vez que neste

rito as forccedilas destes servem de apoio Para tanto oferendas foram preparadas para agradaacute-los

bem como a outras entidades integrantes do panteatildeo do templo a exemplo dos Meninos de

Angola o povo Cigano e as Pombas-Gira De modo a organizar os preparativos que antecedem

o rito o grupo saiu da cidade de Montes Claros no Norte de Minas Gerais no dia 17 de abril e

enfrentaram uma longa viagem Uma pousada foi alugada para esperar os trinta e cinco adeptos

do terreiro e mais alguns convidados

Agraves seis horas da tarde do Domingo dia 19 de abril iniciaram-se os preparativos A

cada participante foi conferida uma tarefa como pintar e bordar vestimentas convenientes ao

rito preparar comidas e outras oferendas treinar cacircnticos afinar os atabaques arrumar o barco

dedicado a Iemanjaacute e escolher a praia onde se realizaria o ldquotrabalhordquo Algumas pessoas

permaneceram acordadas durante toda a noite no propoacutesito de conferir cada detalhe Permeia

entre os adeptos uma grande preocupaccedilatildeo com as minuacutecias almeja-se que tudo ocorra de

maneira perfeita Ao amanhecer arrumadas em uma grande mesa estavam todas as oferendas

aleacutem das ferramentas do Orixaacute Ogum espada capacete escudo e colete

Agraves seis horas da manhatilde do dia 20 de abril mesmo com o dia nublado indicando

chuva o grupo sai em direccedilatildeo ao local escolhido uma praia deserta distante de olhares

curiosos Trinta minutos depois chegam agrave praia Agrave frente do grupo o sacerdote Norivaldo se

dirige ao mar para cumprimentaacute-lo Na Umbanda Sertaneja contempla-se vida na natureza

Apoacutes isso todos repetiram o gesto do liacuteder As oferendas foram arranjadas num longo tecido

vermelho entre a vegetaccedilatildeo beira-mar e em meio agraves oferendas foram acesas velas vermelhas

Dois atabaques enfeitados com fitas vermelhas foram alocados a uma distacircncia de cinquumlenta

metros do mar formando um ciacuterculo juntamente com os participantes do trabalho Ao centro

foi colocado o barco de Iemanjaacute com presentes e flores para esta deusa aleacutem de papeacuteis com

pedidos dos participantes e seus seguidores Ao lado do barco foi colocada uma imagem de Satildeo

Jorge simbolizando Ogum velas em forma de espada e as ferramentas do orixaacute Vestindo uma

capa que lembra a vestimenta de um soldado romano o sacerdote inicia a cerimocircnia que seraacute

aqui brevemente apresentada

Sacerdote ldquoMeus irmatildeos nesta obrigaccedilatildeo ao meu pai Ogum eu peccedilo a vocecircs aqueles que

vieram buscar a caridade e fazer seus pedidos para que possam ficar firmes para que possam

ser levadas as coisas boas para com noacutes para que noacutes pudemos assim trazer as coisas boas e as

energias positivas para todos noacutes Primeiramente agradeccedilo a todos vocecircs por terem vindo e

estar participando aqui hoje muitos estatildeo vindo pela primeira vez () Eu agradeccedilo de antematildeo

a todos vocecircs por terem vindo participar dessa obrigaccedilatildeo que noacutes fazemos aqui na beira do

mar E de todo coraccedilatildeo eu peccedilo a Deus para que noacutes pudeacutessemos assim vir e levar as coisas

boas para com noacutes E neste momento noacutes vamos fazer uma prece para iniciar a nossa reuniatildeo

na beira do mar a nossa gira abrindo ela pedindo muita forccedila muita proteccedilatildeo por todos noacutes

(Oraccedilatildeo do Pai Nosso e a Ave Maria)

O sacerdote pergunta se algueacutem quer falar alguma coisa ou mesmo agradecer A sacerdotisa

Nair Lopes Dias agradece a presenccedila de todos e a proteccedilatildeo espiritual que acredita estar

recebendo naquele momento Pede que todos se concentrem e orienta como fazer os pedidos

Outros repetem seu gesto lembrando a missatildeo do sacerdote fundador e de uma adepta falecida

recentemente

Sacerdote Louvado seja o nosso senhor Jesus Cristo

Todos Para sempre seja louvado

O atual sacerdote lembra a adepta morta agradecendo a presenccedila de alguns de seus familiares

Lembra tambeacutem o sacerdote fundador dizendo que todas as obrigaccedilotildees ligadas ao seu

falecimento foram cumpridas naquela praia Em seguida eacute feita uma prece dirigida ao antigo

sacerdote e agrave adepta do terreiro agradecendo suas contribuiccedilotildees ao mesmo enquanto estavam

vivos A prece tambeacutem foi estendida agravequeles que natildeo estavam presentes

Sacerdote Neste momento eu faccedilo essa prece que recebam de coraccedilatildeo essa firmeza toda essa

energia nossa do nosso coraccedilatildeo e do nosso pensamento Como se diz noacutes estamos aqui de

passagem noacutes estamos num ponto de referecircncia quando noacutes cumprimos a nossa missatildeo o que

resta soacute satildeo as lembranccedilas e o amo fraterno que noacutes levamos e deixamos pra todos aqueles que

amamos (Pai Nosso Ave Maria)

Sacerdote Peccedilo a vocecircs bastante firmeza concentraccedilatildeo faccedilam seus pedidos mentalmente

abram um pouco o coraccedilatildeo para que as coisas boas possam entrar em vocecirc e do seu

pensamento tambeacutem Peccedilo licenccedila saudando Iemanjaacute para que noacutes pudeacutessemos abrir o nosso

trabalho com a licenccedila permitida por ela na forccedila maior toma conta de noacutes Iemanjaacute Salve

Iemanjaacute

Os atabaques ressoam Apoacutes isso iniciam saudaccedilotildees a todas as linhas Baianos Xangocirc

Iansatilde Oxum Escoras Pomba-gira Preto Velho Meninos de Angola Caboclos e o povo cigano

Sauacutedam tambeacutem a Aruanda8 e a Quimbanda A saudaccedilatildeo a esta eacute expressa cantando-se para

Exu Apoacutes cumprimentarem todos os orixaacutes e as linhas que compotildeem o terreiro o sacerdote

finalmente invoca Ogum saudando-o

- Ogum Meu Pai Na forccedila maior Ogum iecirc

Todos repetem suas palavras e comeccedilam a cantar para o Orixaacute Em alguns minutos o

sacerdote daacute sinais de estado alterado de consciecircncia logo depois se apresenta com a

personalidade-Ogum Este natildeo fala eacute possiacutevel apenas ouvir o som de sua forte respiraccedilatildeo Eacute

formada uma gira com os meacutediuns em sua maioria mulheres Agrave medida que os cantos satildeo

intensificados seguidos dos atabaques o transe se espalha pela gira Iansatilde Oxum Iemanjaacute e seus

guerreiros se manifestam O rito durante mais de uma hora transcorre da seguinte maneira os

guerreiros realizam descarregos nas pessoas Ogum se coloca de frente para o mar ao seu lado

um a um os adeptos segurando uma garrafa de cerveja se posicionam de frente por mar Com a

espada Ogum abre a garrafa que estaacute na matildeo do adepto Uma vez aberta agrave cerveja a pessoa

acompanhada por um ajudante vai ateacute o mar onde esta eacute derramada sobre sua cabeccedila Todos

passam por este rito e a chuva forte natildeo desestimula os participantes

Terminado o banho com a cerveja Ogum se despede abraccedilando a todos Pega a imagem

de Satildeo Jorge e a levanta em direccedilatildeo ao mar e coloca-a na areia onde tambeacutem crava sua espada

Caminha para o mar seguido da sacerdotisa Nair Lopes Dias a irmatilde e a esposa do sacerdote

Diante do mar o sacerdote sai do transe Consciente retorna ao grupo e faz uma uacuteltima saudaccedilatildeo

ao orixaacute

8 Local metafiacutesico onde acreditam estarem dos deuses

- Salve Ogum

Apoacutes comeccedila a cantar o ponto do Exu Pilatildeo seu Escora9

- Aroeira aroeira jaacute chegou o Pilatildeo aroeira

Em alguns segundos estaacute novamente em transe possuiacutedo pela personalidade-Pilatildeo O

Escora demonstra alegria brinca com todos e faz observaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave chuva Abraccedila um a

um ouvindo seus pedidos e dando orientaccedilotildees Elogia o empenho de todos em estarem ali e os

agradece por estarem cumprindo aquele compromisso Enquanto conversa outra meacutedium recebe

sua Pomba-Gira que tambeacutem abraccedila os participantes ouvindo seus pedidos O momento com o

Escora e a Pomba-Gira eacute descontraiacutedo e muito espontacircneo Apoacutes conversar e abraccedilar a todos

Pilatildeo e a Pomba-Gira se despedem A meacutedium e o sacerdote saem do transe Sob uma chuva

torrencial duas horas depois do iniacutecio da cerimocircnia o rito Ogum Beira-Mar chega ao fim

Sacerdote Bem meus irmatildeos fizemos nossas obrigaccedilotildees taacute entregue

Sacerdote Ano que vem meus irmatildeos estamos aqui de novo com a ajuda da forccedila maior e dos

nossos irmatildeos espirituais Estaacute encerrado o trabalho de meu Pai Ogum

O sertatildeo vai ao mar atraveacutes do rito Ogum Beira-Mar Atitude metafiacutesica de um grupo

envolvido pela miacutestica sertaneja este rito daacute vida agraves palavras de Riobaldo ldquoO sertatildeo estaacute em

toda parterdquo Como mundo imbricado de elementos diversos e adversos e que transitam num

fluxo constante o sertatildeo habita a alma do sertanejo e a ela pertence No litoral eacute o momento

presente de tracircnsito em que se cruzam espaccedilo e tempo eacute ponte entre dois universos culturais

que acumula enquanto passagem que atravessa Pelo rito o sertatildeo estabelece diaacutelogos culturais

recuperando identidades que pareciam dissolvidas pela morte

A identidade sertaneja eacute garantida pelo seu ethos desvelado na personalidade-Exu

Hiacutebrido e ambivalente como o sertatildeo Exu comparece ao rito tornando mais forte a presenccedila

sertaneja no litoral consigo carrega o sertatildeo e a tensatildeo axioloacutegica nele presente demonstrando

que apesar da modernizaccedilatildeo esta regiatildeo natildeo abandonou as tradiccedilotildees O rito eacute espaccedilo-momento

onde elementos culturais de duas regiotildees se sobrepotildeem produzindo novos signos de identidade

pois a articulaccedilatildeo de diferenccedilas culturais natildeo ocorre em momentos estaacuteticos mas sim nos

interstiacutecios em espaccedilos-momentos quando elementos diferentes em movimentos dialeacuteticos

provocam re-significaccedilotildees

O sertatildeo portanto natildeo repousa no estaacutetico ele se movimenta vai ao mar - fonte

originaacuteria - para re-significar resgatar revitalizar e garantir sua religiosidade A Umbanda

Sertaneja ao conduzi-lo igualmente se apresenta como um espaccedilo de forccedilas hiacutebrido sincreacutetico e

intersticial aberto agrave integraccedilatildeo de novos elementos e assim se caracteriza detentora da

identidade norte-mineira

9 Na Umbanda Sertaneja denomina-se como Escora o Exu doutrinado

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Maracatu rural uma heranccedila religiosa afro-indigena na capital pernambucana

Joseacute Roberto Feitosa de Sena

Antecedentes Histoacuterico-antropoloacutegicos Maracatu Rural A partir de 1888 com a promulgaccedilatildeo da lei Aacuteurea a matildeo-de-obra escrava eacute substituiacuteda

pelo trabalho livre No entanto a aboliccedilatildeo do sistema escravista natildeo deu aos negros condiccedilotildees de ascensatildeo social continuando a viver agrave margem de uma sociedade aristocraacutetica Soacute que agora natildeo eacute mais o negro receacutem chegado da Aacutefrica e sim o afro-brasileiro processo de uma miscigenaccedilatildeo com brancos e iacutendios

Por volta do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX os trabalhadores canavieiros se reuniam nos periacuteodos de folga para brincar e festejar mais um final de semana apoacutes o aacuterduo trabalho na cana de accediluacutecar Segundo Katarina Real (apud VICENTE 2005) aos poucos esses homens foram improvisando ritmos com os instrumentos de trabalho e difundindo elementos dos vaacuterios folguedos da regiatildeo da Zona da Mata Norte de Pernambuco como o Cocircco o Cavalo Marinho Reisado Folia (ou rancho) de Reis Pastoril Bumba-Meu-Boi Caboclinho cheganccedila e etc Incorporando tambeacutem toadas dos Maracatus-naccedilatildeo e ldquoaruecircndasrdquo Assim surge o Maracatu de Baque Solto Em seu livro Folclore no carnaval do Recife a autora defende converge com a tese de outro pesquisador do tema Olimpio Bonald

ldquoO maracatu rural em resumo seria um produto do sincretismo afro-iacutendio gerado pela criatividade do povo rural canavieiro da Zona da Mata-Norte ao ser incorporado e reciclado no caldeiratildeo cultural do grande Reciferdquo (BONALD apud VICENTE 2005 p 31)

O pesquisador Roberto Benjamin (1998) atribui a origem do Maracatu de Baque Solto agraves Cambindas que eram ldquobrincantes masculinos vestidos de mulherrdquo A palavra vem de Cabinda regiatildeo ao norte da Angola acima do rio Congo (MEDEIROS 2005) Haacute ainda hoje grupos de Cambindas informa Benjamin na Paraiacuteba e em Pernambuco nos municiacutepios de Ribeiratildeo Pesqueira Satildeo Bento do Una Triunfo Bonito e Bezerros A hipoacutetese do pesquisador (VICENTE 2005) eacute que o Maracatu de Baque Solto tenha surgido de uma evoluccedilatildeo das Cambindas em contato com os demais folguedos da regiatildeo Inclusive os dois Maracatus deste baque mais antigos de Pernambuco satildeo Cambindinha do Araccediloiaba (1914) e Cambinda brasileira (1918) o mesmo autor salienta que o termo ldquoMaracaturdquo tenha sido uma imposiccedilatildeo dos folcloristas da eacutepoca jaacute que as Cambindas do interior eram ldquofeias e rudesrdquo ao contraacuterio dos Maracatus Naccedilatildeo que jaacute eram atraccedilotildees do carnaval recifense

Guerra-Peixe em sua obra Maracatus do Recife que estuda em especial os aspectos musicais afirma que os Maracatus-de-orquestra se originam da fusatildeo dos folguedos da Zona da Mata e de variaccedilotildees dos Maracatus tradicionais cita ainda Gonccedilalves Fernandes e Maacuterio de Andrade como pesquisadores do termo ldquoMaracaturdquo Segundo ele o primeiro atribui a palavra a uma variaccedilatildeo linguumliacutestica do norte de Angola maracatucaacute que significa ldquovamos debandarrdquo termo utilizado pelos escravos no momento que a manifestaccedilatildeo era reprimida pelas forccedilas oficiais e o segundo se refere a maracaacute (instrumento indiacutegena) e a palavra catu (bonito) (GUERRA-PEIXE 1980) Jaacute Mariana Mesquita Nascimento coloca ainda que o termo

PIBIC UNICAP Orientador Profordm Dr Seacutergio Sezino Douets Vasconcelos Graduando em Histoacuteria Universidade Catoacutelica de Pernambuco joseroberosenahotmailcom

Maracatu venha da Angola onde ainda hoje eacute danccedilada pela tribo dos Bombos ao norte de Luanda (NASCIMENTO 2005)

Conceitos e definiccedilotildees agrave parte esse termo acabou sendo aplicado a essa ldquoexoacuteticardquo danccedila camponesa por possuir semelhanccedilas evidentes ao Maracatu urbano Jaacute a denominaccedilatildeo ldquoMaracatu Ruralrdquo soacute foi dada na deacutecada de 60 pela antropoacuteloga norte-americana Katarina Real quando tentava distinguir os dois tipos de Maracatus principalmente pelos instrumentos de sopro (trompete trombone e clarinete) inexistentes no Maracatu de Baque Virado Segundo Real (1967) nessa mesma deacutecada o Maracatu estudado tambeacutem era conhecido como ldquoMaracatu-de-orquestrardquo ldquoMaracatu-de-trombonerdquo ldquoMaracatu ligeirordquo ldquoMaracatu de caboclordquo ldquoMaracatu de baque singelordquo e ldquosamba de matutordquo entre folgazotildees Neste periacuteodo os grupos sofriam forte preconceito por parte da imprensa que os denominavam pejorativamente de Maracatu descaracterizado ou distorcido O Maracatu Rural no Grande Recife Adaptaccedilotildees e Impactos Culturais

A partir da deacutecada de 30 a crise que antecede a II Guerra Mundial levam os trabalhadores rurais a deslocarem-se do campo para a Regiatildeo Metropolitana do Recife onde passam a adaptar-se a vida na grande cidade na sua grande maioria como vendedores informais operaacuterios pedreiros e biscateiros uma nova realidade social ocupada nos bairros da periferia (VICENTE 2005)

Casa Amarela Bongi Cidade Tabajara Timbi Aacuteguas Compridas Bomba do Hemeteacuterio Torrotildees Cordeiro e Bultrins satildeo alguns dos subuacuterbios que abrigaram o maior nuacutemero de Maracatus procedentes do interior do Estado A dor e o sofrimento de terem que abandonar sua terra para conseguir a sobrevivecircncia na capital esta intimamente ligada agraves intenccedilotildees de preservar as tradiccedilotildees da Zona da Mata

A memoacuteria desses grupos eacute importada para o centro urbano e traduz o sentimento individual e coletivo dos saberes e praacuteticas vivenciadas no mundo rural que agora tentaratildeo reinventar no meio urbano negociando interesses e buscando a manutenccedilatildeo de valores

ldquoA lembranccedila eacute em larga medida uma reconstruccedilatildeo do passado com ajuda de dados emprestados do presente e aleacutem disso preparada por outras construccedilotildees feitas em eacutepocas anteriores e de onde a imagem de outrora jaacute manifestou-se jaacute nem alteradardquo (HALBSWACHS 1930 p71)

O Maracatu de Orquestra ou Maracatu de Trombone como tambeacutem eacute chamado por

esses migrantes foi uma das maneiras utilizadas para matar a saudade e reafirmar os laccedilos daquela comunidade (VICENTE 2005) Desta maneira surgem os Maracatus Cruzeiro do Forte Leatildeo Formoso de Olinda e Piaba de Ouro principais objetos de pesquisa deste projeto Reinvenccedilotildees do rural no urbano A interferecircncia da Federaccedilatildeo Carnavalesca de Pernambuco

A Federaccedilatildeo Carnavalesca de Pernambuco foi criada em 1935 por intelectuais

folcloristas dentre eles o jornalista Maacuterio Melo durante o governo de Carlos de Lima Cavalcanti interventor nomeado por Getuacutelio Vargas no regime do Estado Novo passando a ser responsaacutevel pela organizaccedilatildeo do carnaval e dos desfiles das agremiaccedilotildees A Federaccedilatildeo meses antes da folia de momo recebia verbas da Prefeitura e do Governo do Estado poreacutem o real interesse desta elite intelectual era controlar e fiscalizar tal manifestaccedilatildeo folcloacuterica que ateacute entatildeo pouco se conhecia pois a palavra ldquoMaracaturdquo se referia apenas aos Maracatus Naccedilatildeo (NASCIMENTO 2005)

A fim de pocircr ordem na apresentaccedilatildeo das agremiaccedilotildees carnavalescas a FCP atuava em conjunto com a Secretaria de Seguranccedila Puacuteblica o Serviccedilo de Censura de Diversatildeo Puacuteblico Delegacia de Ordem Social e o COC (Comissatildeo de Organizaccedilatildeo do Carnaval) Esses oacutergatildeos agiam na intenccedilatildeo de adaptar os grupos de Maracatu Rural e outros folguedos provenientes do interior e das zonas suburbanas ao carnaval tradicional do Recife pressionando as lideranccedilas a adaptarem o seu grupo aos padrotildees carnavalescos da eacutepoca (MEDEIROS 2005)

Muitos foram os Maracatus que sob pressatildeo ou cooptaccedilatildeo mudaram de baque passando a se apresentar como Maracatu Naccedilatildeo enquanto outros que embora tenham mantido o baque assimilaram personagens do Baque Virado Eacute o caso da existecircncia da cocircrte real no Maracatu de Baque Solto pois a representaccedilatildeo do rei da rainha e das demais figuras ligadas ao cortejo real eacute originalmente dos Maracatus de Baque Virado Pressupostos teoacutericos para interpretaccedilatildeo religiosa do Maracatu Rural

Para compreensatildeo antropoloacutegica do Maracatu de Baque Solto nos utilizamos do conceito de cultura elaborado por Clifford Geertz que a interpreta a partir de uma rede simboacutelica

O conceito de cultura que eu defendo eacute essencialmente semioacutetico Acreditando como Marx Weber que o homem eacute um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu e a sua anaacutelise portanto natildeo como uma ciecircncia experimental em busca de leis mas como uma ciecircncia interpretativa em busca de significados (GEERTZ 1989 p 15)

Para Geertz a cultura deve ser compreendida como uma rede de siacutembolos e eacute tarefa da antropologia interpretaacute-la sem cometer generalizaccedilotildees e tentativas de totalizaccedilatildeo Deve-se fazer uma descriccedilatildeo densa atraveacutes do trabalho etnograacutefico e a partir dos dados levantados buscar a compreensatildeo hermenecircutica dos significados que formam as mais variadas manifestaccedilotildees culturais

Nos Maracatus objeto dessa pesquisa percebemos uma vasta rede de significados que expressam a polissemia da ldquobrincadeirardquo Seus sentidos sagrados e profanos satildeo levados agraves ruas como uma forma de pocircr em praacutetica a visatildeo de mundo e as experiecircncias vivenciadas por aquele grupo cultural

O autor avalia que os siacutembolos sagrados satildeo o ethos de um povo onde os homens tecircm uma grande dependecircncia em relaccedilatildeo aos siacutembolos sendo eles decisivos nas suas criaccedilotildees O sistema simboacutelico natildeo apenas interpreta como tambeacutem cria um modelo de sociedade

A religiosidade presente nas agremiaccedilotildees culturais eacute um conjunto de siacutembolos que daacute sentido e permite aos indiviacuteduos uma leitura da sociedade bem como de sua ordem

O ethos de um povo eacute o tom o caraacuteter e a qualidade de sua vida seu estilo moral e esteacutetico e sua disposiccedilatildeo eacute a atitude subjacente em relaccedilatildeo a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete A visatildeo de mundo que este povo tem eacute o quadro que ele elabora das coisas como elas satildeo na simples realidade seu conceito da natureza de si mesmo da sociedade (GEERTZ 1989 p 93)

Portanto o conceito de cultura de Geertz e sua relaccedilatildeo com o ethos dos grupos culturais satildeo as bases fundamentais dessa pesquisa tendo em vista que partimos do pressuposto de que no interior do Maracatu eacute vivenciada uma experiecircncia religiosa que aglutina os sentidos sagrados e sincreacuteticos da cultura afro-brasileira e indiacutegena

Como fundamentaccedilatildeo teoacuterica pertinente para a compreensatildeo de sentido sagrado do Maracatu Rural utilizamos outros autores como do socioacutelogo da religiatildeo Peter Berger que analisa a construccedilatildeo da realidade a partir das concepccedilotildees e sentimentos dos indiviacuteduos e que se torna real com o processo de reproduccedilatildeo e transmissatildeo de sentidos que configuram a identidade social

O sentido se projeta na consciecircncia na construccedilatildeo do individuo que individualizou num corpo e se tornou pessoa atraveacutes de processos sociais [] O sentido nada mais eacute do que uma forma complexa de consciecircncia natildeo existe em si mas sempre possui um objetivo de referecircncia sentido eacute a consciecircncia de que existe uma relaccedilatildeo entre as experiecircncias []Nessas diferentes dimensotildees de sentido eacute que se constroacutei a significacircncia complexa de agir social e das relaccedilotildees sociais a vida cotidiana estaacute repleta de muacuteltiplas sucessotildees de agir social e eacute somente neste agir que se forma a identidade pessoal do individuordquo (BERGER 2004 p 14-17)

Berger considera ainda o sistema sagrado como algo que vai aleacutem das rotinas normais do cotidiano como algo extraordinaacuterio e potencialmente perigoso que eacute domesticado e utilizado como forccedila para as necessidades do dia-a-dia (BERGER 1985) ldquoAchar-se numa relaccedilatildeo correta com o cosmos sagrado eacute ser protegido contra o pesadelo das ameaccedilas do caosrdquo (BERGER 1985 p 39-40)

Nos dias que antecedem ao carnaval observamos que existe uma seacuterie de preparos lituacutergicos para sua saiacuteda que se realizam por meio de cerimocircnias afro-indigenas e que pretendem a partir do diaacutelogo com o divino proteger fiacutesica e espiritualmente os membros integrantes do Maracatu Rural Conforme as consideraccedilotildees de Berger eacute um fator caracteriacutestico do sistema religioso o contato com o mundo miacutetico objetivando as realizaccedilotildees humanas

Peter Berger afirma ainda que o homem eacute um produto da sociedade bem como a sociedade eacute o resultado de suas accedilotildees (BERGER 1985 p15) uma dialeacutetica que consiste em trecircs momentos da construccedilatildeo social humana satildeo elas exteriorizaccedilatildeo objetivaccedilatildeo e a interiorizaccedilatildeo Soacute podemos compreender a sociedade segundo ele se analisarmos empiricamente essas trecircs etapas A exteriorizaccedilatildeo eacute o momento em que o individuo se encontra no mundo e interage com ele eacute o contiacutenuo contato do ser com o meio quer na atividade fiacutesica quer na atividade mental ldquoeacute a contiacutenua efusatildeo do ser sobre o mundordquo (BERGER 1985 p16) Ou seja eacute a partir da interaccedilatildeo homem e mundo eacute que o primeiro vai assimilando os elementos fornecidos pelo segundo e que formaraacute sua personalidade direcionando concepccedilotildees sentimentos e maneiras de ver o mundo A exteriorizaccedilatildeo eacute uma necessidade bioloacutegica (BERGER 1985 p17) particular dos seres humanos que lhe conferem as condiccedilotildees uacuteteis a sua sobrevivecircncia o segundo momento eacute a objetivaccedilatildeo ldquoeacute a conquista por parte dos produtos dessa atividaderdquo (BERGER 1985 p16) eacute a concretizaccedilatildeo dos siacutembolos criados pelo homem onde ele corporifica e interpreta os seus sentidos estabelecidos na sociedade Esse processo acarretaraacute em discordacircncias entre o individuo e o fato interpretado que ele encontrou no ambiente social gerando crises e questionamentos sobre si e o meio O individuo portanto passa a buscar novos sentidos que lhes sejam subjetivamente plausiacuteveis (BERGER 1985 p29)

A objetivaccedilatildeo da atividade humana significa que o homem eacute capaz de objetivar parte de si mesmo no processo de sua proacutepria consciecircncia defrontado-se consigo mesmo em figuras que satildeo geralmente como elementos objetivos do mundo social (BERGER 1985 p27)

O uacuteltimo momento proposto por Berger eacute a interiorizaccedilatildeo Este segundo o autor permite ao homem viver em sociedade A interiorizaccedilatildeo eacute o momento no qual o indiviacuteduo apreende tais exteriorizaccedilotildees tomando-as para si como algo uacutenico e intransponiacutevel podendo posteriormente realizaacute-las (objetivaccedilatildeo) eacute resultado do diaacutelogo questionamentos e crises gerados durante as fases de interaccedilatildeo conclui-se como o momento de integraccedilatildeo entre os dois elementos dialeacuteticos (homem e sociedade) que no entanto natildeo cessa tendo em vista que este processo eacute algo continuo onde os indiviacuteduos cotidianamente dialogam nos grupos sociais em que vivem novas

estruturas de plausibilidade social que lhes decirc sentido Eacute o que o autor denomina de Nomia em oposiccedilatildeo a Anomia A Anomia eacute o viver sem um sentido de existecircncia podendo chegar ao extremo que seria a sua extinccedilatildeo a ser concretizada pela sua exclusatildeo da sociedade sua marginalizaccedilatildeo

Toda sociedade que continua no tempo enfrenta o problema de transmitir os seus sentidos objetivados de uma geraccedilatildeo para a seguinte Esse problema eacute atacado por meio dos processos pelos quais se ensina uma geraccedilatildeo a viver de acordo com os problemas institucionais da sociedade ( BERGER1985 p 28)

Assim nosso objetivo ao incluir neste trabalho a teoria de Peter Berger foi o de

demonstrar como os indiviacuteduos dialogam com a urbanidade no processo de diaacutespora (ecircxodo rural) em que encontram novas estruturas de sentidos num novo ambiente social Refleir sobre quais os mecanismos utilizados para manter os valores dos grupos migrantes e posteriormente refletir como os Maracatus Rurais que surgiram na Regiatildeo do Grande Recife interagem com o processo de globalizaccedilatildeo onde uns satildeo reduzidos e transformados em folclore comercializaacutevel e outros buscam meios alternativos e simboacutelicos de manterem a nomia dos grupos culturais onde o elemento religioso miacutetico- simboacutelico desenvolve um papel importante

Bentto Lima observa o miacutetico enquanto um veiacuteculo da tradiccedilatildeo que expressa um conhecimento emocional um sistema complexo herdado de haacutebitos crenccedilas e valores

Quando o mito eacute coletivamente vivido chama-se ritual uma forma da expressatildeo da emoccedilatildeo grupal com relaccedilatildeo agraves indagaccedilotildees primeiras aos temas ontoloacutegicos pelo ritual o ser toa consciecircncia de sua existecircncia muacuteltipla dentro de um tempo ciacuteclico (LIMA 1979 p 24)

Segundo Lima eacute necessaacuterio examinar nas religiotildees afro-brasileiras a cosmovisatildeo sua praacutexis ritual sua eficaacutecia simboacutelica cuja relaccedilatildeo natildeo visiacutevel no plano da experiecircncia imediata e que camufla e exerce muacuteltiplos significados do simbolismo maacutegico-religioso (LIMA 1979)

A partir desses elementos teoacutericos analisaremos o processo de comercializaccedilatildeo dos Maracatus e o de resistecircncia simboacutelica das tradiccedilotildees religiosas afro-brasileiras uma necessidade constante de reinvenccedilatildeo dos valores e memoacuteria do grupo como afirma Maurice Halbswachs

ldquoUm grupo religioso mas que qualquer outro tem a necessidade de se apoiar sobre um objeto sobre uma realidade que dure por que ele proacuteprio pretende natildeo mudar ainda que em torno dele as instituiccedilotildees e os costumes se transformem e que as ideacuteias e experiecircncias se renovemrdquo (HALBSWACHS 1930 p 156)

Dimensatildeo religiosa do Maracatu Rural

No Maracatu Rural assim como no Maracatu Naccedilatildeo existe uma forte ligaccedilatildeo com a religiatildeo sendo ela entre outras coisas o seu ldquomeio de proteccedilatildeordquo que os livrara de qualquer perigo durante o periacuteodo em que estatildeo nas ruas no periacuteodo do carnaval A religiosidade que o Maracatu de Baque Solto tem forte relaccedilatildeo eacute com o culto da Umbanda que tiveram maior contato e abertura para com os grupos que tiveram que fazer um ecircxodo para cidade grande O culto aacute Jurema que os migrantes trouxeram na sua experiecircncia cultural e memoacuteria para os grandes centros urbanos foi integrada na maioria das vezes pelos adeptos da Umbanda religiatildeo

que na sua formaccedilatildeo eacute profundamente aberta a inovaccedilotildees sincreacuteticas (NASCIMENTO 2005 101)

Sobre tal ligaccedilatildeo religiosa dos Maracatus assinala Guerra-Peixe

ldquoEacute oportuno realccedilar o que nos esclareceram os informantes de vaacuterios grupos a gente do Maracatu tradicional ndash lsquonagocircrsquo como dizem no sentido de africano ndash eacute constituiacuteda maioria por iniciados nos Xangocircs a que prefere o Maracatu-de-orquestra tende para o Catimboacute culto popular de caracteriacutesticas eminentemente nacionais Ao que parece haacute procedecircncia nas informaccedilotildees pois nos cacircnticos do Maracatu-de-orquestra eacute constante o aparecimento de vocaacutebulos como rsquoaldeiarsquo lsquocaboclorsquo lsquojuremarsquo e outros ndash todos refletindo identificaccedilotildees que acusam a preferecircncia religiosa dos participantesrdquo (GUERRA-PEIXE 1980 p 23)

Dentro do Maracatu Rural existem os participantes que o ldquosustentardquo espiritualmente durante sua apresentaccedilatildeo Antes das suas apresentaccedilotildees puacuteblicas eacute vivenciada internamente uma experiecircncia religiosa um contato de alguns integrantes com o mundo sagrado em que as entidades protetoras satildeo invocadas em rituais de proteccedilatildeo contra os ldquoespiacuteritos malfeitoresrdquo para que propiciem aos folgazotildees sucesso e tranquumlilidade em suas andanccedilas e apresentaccedilotildees Estes personagens que necessitam de proteccedilatildeo satildeo o Caboclo de Lanccedila a Dama-do-Paccedilo com a Calunga e o Arreimaacute tambeacutem chamado de Tuxaacuteua ou Caboclo de Pena Cada membro a partir do momento em que desfila pela primeira vez tem que repetir a sua apresentaccedilatildeo obrigatoriamente por no miacutenimo sete anos Inclusive os objetos quase sempre satildeo em nuacutemeros impares segundo informaccedilotildees para natildeo daacute azar

Sobre a religiosidade dos Maracatus de Baque Solto Katarina Real argumenta

Tudo sobre os Maracatus Rurais me daacute a impressatildeo de se tratar de uma sociedade secreta masculina Que haacute muita influecircncia do lsquocatimboacutersquo lsquoXangocirc de Caboclorsquo e lsquodos mestres do aleacutemrsquo entre os associados natildeo haacute duacutevida e eacute assunto que vale estudo mais detalhado Tambeacutem haacute indicaccedilotildees duma influecircncia do Toreacute danccedila guerreira indiacutegena (e culto secreto) que existe nos subuacuterbios do Recife e pelo interior de Pernambuco e Alagoas Eis outro fator que dificultou minha pesquisa ndash a grande desconfianccedila dos homens em responder a qualquer pergunta com referecircncia a religiatildeo (REAL 1967 81)

Personagens Sagrados do Maracatu Rural

O Caboclo de Lanccedila

O Caboclo de Lanccedila filho de uma relaccedilatildeo afro-ameriacutendia eacute o guerreiro de Satildeo Jorge pois sua figura esta ligada ao orixaacute Ogum10 Ele nasce das palhas das canas-de-accediluacutecar dos engenhos da Zona da Mata Norte pernambucana e trazendo consigo a missatildeo de proteger sua cultura e o seu Maracatu Camuflado e vestindo sua ldquoarmadurardquo espiritual e material ele estaacute de prontidatildeo para qualquer tipo de embate O caboclo eacute composto pela sua ldquoarmadurardquo espiritual que eacute a sua entidade da Umbanda que a maioria eacute a cabocla Jurema e a material eacute

10 Na Mitologia Yoruba Ogun eacute o Orixaacute ferreiro senhor dos metais Ele mesmo forjava suas ferramentas tanto para a caccedila como para a agricultura e para a guerra Na Aacutefrica seu culto eacute restrito aos homens ldquoAtrai sobre si o valor da decisatildeo corajosa de enfrentar o mundo-sombra de subjugar os monstros psicoloacutegicos da alma humana fato de significar o dinamismo contraditoacuterio faz com que lhe seja associado grande poder para vencer demandas sendo proacuteprio conflito eacute onde reside o poder da vitoacuteriardquo (LIMA 1979 p 235)

seu chapeacuteu ou cabeleira de papel celofane seu surratildeo sua gola sua calccedila seus meiotildees coloridos seus sapatos(tecircnis) e sua guiada ou lanccedila

Sua lanccedila mede em torno de 2m eacute feita de madeira Imbiriba ou Quiri 11 eacute assada e enterrada na lama por 4 ou 5 dias sua ponta perfurante chega a medir 30cm eacute toda colorida conforme as cores estabelecidas por sua entidade protetora depois de pronta ela eacute ldquoCalccediladardquo em ritual acompanhado banhos de descarrego e limpezas com base em 7 tipos de ervas diferentes e de outros preparos ldquoassentadosrdquo previamente no ldquoPejirdquo12 com o objetivo de servir como instrumento de defesa e de batalha dos folgazotildees(NASCIMENTO2005 95)

Os banhos de limpeza que muitos integrantes tomam nos dias precedentes ao carnaval sobretudo as mulheres que conduzem a Calunga e os caboclos de lanccedila satildeo feitos a base de ervas e plantas consideradas com poder divino tambeacutem utilizadas para fabricaccedilatildeo de remeacutedio fitoteraacutepicos para chaacutes e para o ritual catoacutelico-popular das benzedeiras que trabalham na cura de diversas doenccedilas ferimentos e ldquomal-olhadosrdquo

O caraacuteter sagrado das plantas permite dentro de rituais maacutegicos ou religiosos a funccedilatildeo que Gennep denomina de ldquotransferecircnciardquo nos ritos de passagem Atraveacutes desses rituais puacuteblicos ou secretos as impurezas satildeo transferidas para as plantas [] O liquido obtido eacute utilizado em banhos rituais e outras cerimocircnias pois contem Axeacute isto eacute a forccedila dinacircmica das divindades []rdquo (BACCARELLI 1983 59-60)

A camuflagem dos caboclos eacute feita com tinta urucu13 ou poacute de carvatildeo tendo seu rosto completamente pintado sendo complementado pelos oacuteculos escuro estilo Ray-ban eacute para esconder que estaacute ldquoatuadordquo e o cravo branco na boca eacute a proteccedilatildeo dos caboclos O Caboclo de Lanccedila eacute uma figura emblemaacutetica e misteriosa porque cada folgazatildeo tem seus segredos particulares um sistema de crenccedilas que mistura elementos provenientes do culto africano e dos rituais maacutegico-xamacircnico Procuram ainda o anonimato e muitos satildeo azougados ou seja tomam uma mistura de azeite aguardente limatildeo e poacutelvora chamada de azougue e para resistecircncia fiacutesica e espiritual nos dias de carnaval estando pronto para qualquer batalha fazendo assim uma alusatildeo aos guerreiros do passado danccedilado sempre em forma de gira no sentido anti-horaacuterio sem passar pelo meio do cortejo

O significado da danccedila ritual estaacute na definiccedilatildeo de uma circunferecircncia siacutembolo de totalidade O arqueacutetipo que se manifesta na coreografia desses movimentos eacute o arqueacutetipo da unidade global Essa forma transmite a plenitude e a homogeneidade do grupo ela daacute seguranccedila e forccedila [] As danccedilas rotativas mostram uma busca anciosa pelo eixo central que permite a comunicaccedilatildeo entre a terra e o ceacuteu entre o humano e o divinordquo(LIMA 1979 p 86)

11 Nome popular da aacutervore Paulownia madeira leve apresentando excelentes propriedades mecacircnicas natildeo se deforma facilmente natildeo se empena resiste ao fogo natildeo apodrece e repele a aacutegua 12 Peji em nagocirc eacute espaccedilo reservado nos terreiros de Candombleacute onde satildeo colocados os assentamentos dos Orixaacutes no Ilecirc Orixaacute (casa do Orixaacute) quando individual ou quarto de santo quando coletivo restrito aos filhos da casa natildeo eacute permitida a entrada de estranhos Na Umbanda eacute dado o nome de Peji ou congaacute para o altar onde satildeo colocadas as imagens de santos catoacutelicos e fica na sala principal onde satildeo realizadas as cerimocircnias puacuteblicas 13Tambeacutem conhecida por Urucu e Accedilafroa eacute o nome popular do Fruto do urucumzeiro substacircncia corante extraiacuteda de sua polpa Utilizada pelos iacutendios brasileiros para proteger a pele dos raios solares e como repelente de insetos o urucum tem sua origem na Ameacuterica Tropical seu nome cientifico eacute Bixa orellana

O surratildeo eacute uma estrutura de madeira coberta de latilde leva consigo chocalhos sempre em numero impar pra natildeo dar azar pesa em meacutedia 25 quilos ao final do carnaval eacute comum os brincantes estarem com os ombros e as costas feridas pelo peso da ldquomaquinadardquo Natildeo pode ter relaccedilotildees sexuais entre os 07 a 15 dias que antecedem o carnaval aleacutem de natildeo poder tomar banho durante os quatro dias de momo ldquopara natildeo abrir o corpordquo (NASCIMENTO 200595) como nos informa Dona Neta

lsquoO caboclo de lanccedila ele tem que sair com um cravo na boca tem que tomar seus banho tambeacutem nem tem nada a ver com mulher por que isso eacute um lado muito religioso tambeacutem por isso que vocecirc vecirc que eles satildeo tudo azougadoos caboclo de lanccedila quando sai num sai de boca aberta natildeo satildeo tudo azougado quando bota o Maracatu na rua jaacute viueacute azougado mermo porque cada caacute faz seus perparo taacute entendendo Eles satildeo uns caboclo agitado tem muitos que tomam azouguerdquo

A Dama do Paccedilo e a Calunga

A Dama do Paccedilo eacute muitas vezes uma mulher ldquopurardquo14 e iniciada na umbanda eacute responsaacutevel pelos cuidados da Calunga e soacute ela tem acesso a boneca ateacute os periacuteodos de apresentaccedilatildeo Tambeacutem conhecida como dama de boneca ela eacute responsaacutevel por carregar a defesa do Maracatu por livraacute-lo das malquerenccedilas e maus olhos Nos meses preacutevios inicia-se um trabalho de preparaccedilatildeo onde satildeo oferecidos trabalhos aos espiacuteritos e a calunga recebe todas as energias passando a ser o elemento central da simbologia ritualiacutestica do Maracatu

Suas roupas e chapeacuteus assim como a das baianas que acompanham o coro das loas satildeo vestidos longos armados com arames e colorido geralmente trazem as cores das entidades espirituais que regula cada uma delas e representa o equiliacutebrio miacutetico-espiritual do folguedo Ainda existem as damas de buquecirc que carregam buquecircs de flores para abrilhantar o cortejo

ldquoPra gente que somos eu que sou rainha e as meninas dama do paccedilo que sai com a boneca tem que tomar um banho de limpeza Taacute entendendo Natildeo ter relaccedilatildeo com os homens durante os trecircs dias do carnaval As bonecas tem que ser tudo defumada Antes do Maracatu sair tem que despejar o que Cerveja pras moccedila pituacute pro homem da rua Tem que dexar uma farofa com bastante pimenta que eacute pro homem da rua que eacute pra gente sair e durante os trecircs dias de carnaval nada de mal acontecer porque meu perparo eacute feito todo ano pra esse Maracatu sair Ceccedila tambeacutem se perpara que ela tambeacutem natildeo vai de boca aberta Eu agora esse mecircs de agosto tambeacutem tenho que fazer minha limpeza por que vai chegar o carnaval neacute Eu tenho que ir pra minha Matildee de Santo fazer minhas obrigaccedilotildees com esse negoacutecio de galinha pinto e cada caacute faccedila sua limpeza pra quando agente chegar o carnaval jaacute taacute com o corpo limpo e sair bem bonita linda e maravilhosa e vou brincar o carnaval e nada de mal vai acontecer com agente Durante esses anos que eu saio nesse Cruzeiro do Forte nunca aconteceu nada derna de oito anos que saio nesse Maracatu e sete anos que sou rainhardquo[]

Neste depoimento da Dona Neta percebemos as negociaccedilotildees com o sagrado uma tentativa de comunicaccedilatildeo transcendente entre o mundo fiacutesico e o metafiacutesico uma relaccedilatildeo de ldquotrocardquo entre os homens e seus deuses (orixaacutes e entidades) a fim de obter ganhos terrenos Sobre a boneca calunga o totem dos Maracatus ela descreve

A dama de paccedilo sai com as boneca duas dama de paccedilo uma eacute minha irmatilde outra eacute uma amigaas bonecas tambeacutem antes de sair tem que fazer as limpeza pra botar as boneca na rua por que quem comanda o Maracatu eacute as duas bonecas muitas pessoas natildeo sabe dissomais a coisa

14 ldquoPurardquo termo utilizado por membros do Maracatu em sinocircnimo de virgindade pois no ano em que ela eacute escolhida para ser Dama-do-Paccedilo a mesma deve ser uma jovem que nunca tenha mantido relaccedilotildees sexuais

forte eacute as duas boneca do Maracatu eacute porque eacute e entidade que toma conta do Maracatu eacute as duas bonecas de frente pode ver as dama tatildeo tudo de frente porque as duas boneca carrega as forccedilas de dentro do Maracatu

Maacuterio de Andrade revela que o termo calunga tem muacuteltiplas origens e sentidos muitos de caraacuteter profano no entanto deixa claro que a calunga dos Maracatus (em referecircncia aos Maracatus-Naccedilatildeo) eacute fundamentalmente um elemento sagrado das manifestaccedilotildees que as utiliza exercendo um papel que como nos informou D Neta de talvez maior importacircncia simboacutelica dentro do Maracatu Rural

A meu ver a Calunga eacute tudo isso e mais alguma coisa Iacutedolo feiticcedilo e apenas objeto de excitaccedilatildeo mystica e ainda symbolo poliacutetico-religioso de reis-deuses como a sua nomenclatura o seu conceito natildeo estaacute nem talvez nunca esteve perfeitamente delimitado dentro da mentalidade negra (ANDRADE 1930 p 46)

A Calunga dos Maracatus Rurais eacute um empreacutestimo cultural dos Maracatus-Naccedilatildeo no momento em que o primeiro deveria adaptar sua manifestaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas da segunda como jaacute foi abordado a questatildeo das interferecircncias para sua aceitaccedilatildeo no carnaval do Recife logo a ldquocatitardquo (como se refere o Sr Nazareacute) eacute apropriada e imbuiacuteda de elementos simboacutelicos do Maracatu de Baque Virado e das experiecircncias religiosas do Maracatu de procedecircncia rural A fertilidade do imaginaacuterio popular ressiginifica e daacute agrave Calunga um sentido poderoso e totecircmico dentro do Maracatu de Baque Solto que reforccedila a identidade desse grupo de acordo com Lima (1979) O totem das religiotildees afro-brasileiras eacute um fator de aglutinaccedilatildeo ldquoelemento de confraternizaccedilatildeo ressaltando sua importacircncia como mecanismo de formaccedilatildeo do grupordquo em torno de um ldquoelemento denominador comum de um fator de comunhatildeordquo

As obrigaccedilotildees ldquoassentadasrdquo no Peji correspondem a um legado muito comum em vaacuterias culturas e buscam agradar aos deuses para que afastem todo o mal ou a realizaccedilatildeo de objetivos particulares ou coletivos Satildeo feitas geralmente no terreiro nas encruzilhadas e matas (as duas ultimas principalmente nos trabalhos de ldquodespachordquo) As oferendas contribuem para o fortalecimento dos laccedilos soacutecio-religiosos e eacuteticos que os unem reforccedila os elos maacutegicos entre os adeptos e os deuses A culinaacuteria afro-brasileira amplia as concepccedilotildees mitoloacutegicas sendo reinterpretadas subjetiva e regionalmente (LODY 1979)

O Arreiamaacute

O Arreiamaacute tambeacutem chamado de Tuxaacuteua eacute um personagem do Maracatu Rural que muito lembra o caboclinho15 pois traz consigo arco e flecha e simula uma batalha indiacutegena satildeo folgazotildees com camisa bordada calccedila colorida da cintura aos joelhos com fitas e penas de pavatildeo e de outras aves no chapeacuteu nos braccedilos e nas pernas Eacute dentre os personagens o que mais evidecircncia a influecircncia ameriacutendia sua ldquomissatildeordquo eacute proteger o cortejo de todo mal que venha ameaccedilaacute-lo pedindo proteccedilatildeo aos espiacuteritos do ldquomatordquo A religiatildeo estaacute presente nestes personagens por meio dos cultos de predominacircncia indiacutegena a pajelanccedila religiatildeo dos antepassados eacute em boa parte na Jurema ou no Catimboacute como eacute popularmente conhecida onde atua muitos Caboclos de Pena expressando forte sincretismo com cultos afro-brasileiros

15 Manifestaccedilatildeo popular originaacuteria da mescla indiacutegena os caboclinhos tambeacutem chamados de tribo de caboclinho expressa um forte sentimento de que foram eles os primeiros habitantes do Brasil Satildeo homens mulheres e crianccedilas que apresentam vigorosas coreografias em ritmo marcado pelo estalido das preacas ( espeacutecie de arco e flecha de madeira)

Nas matildeos carrega um machado (ou arco e flecha) que simboliza o guerreiro que luta na resistecircncia as opressotildees dos invasores Para sua preparaccedilatildeo tambeacutem recebe defumaccedilotildees em rituais da Jurema16 O defumador eacute fundamental para abertura dos trabalhos juntamente com os pontos riscados marcados com a Marafa17 (conforme observamos no Maracatu Leatildeo Formoso de Olinda) a fim de afastar as maacutes entidades e atrair as boas As baforadas possuem um poder maacutegico e durante os passes realizam-se gestos encantatoacuterios que espantam os maus fluiacutedos e garantem forccedila e beleza aos bravos Tuxuaacuteuas ldquoO cachimbo eacute preferido pelo preto velhos e na Umbanda no Nordeste pelos mestres Babalaocircs do Catimboacute os quais o acompanham tomando poccedilatildeo de Juremardquo (LIMA 1979)

Sobre o Arreiamaacute Severino Vicente cita o mestre Zeacute Duda do Maracatu Estrela de Ouro que afirma que rdquoSem o Arreiamaacute no Maracatu ele estaacute perdido natildeo tem a visatildeordquo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ANDRADE Maacuterio de Danccedilas dramaacuteticas do Brasil 2 ed Belo Horizonte INL 1982 ASSIS Maria Elizabete Arruda De SCOTT Russel Parry Cruzeiro do Forte A brincadeira e jogo de identidade em um Maracatu Rural 1996 Dissertaccedilatildeo ( Mestrado) ndash Universidade Federal de Pernambuco Centro de Filosofia e Ciecircncias Humanas Curso de Mestrado em Antropologia BIRMAN Patricia O que eacute UmbandaSatildeo Paulo Brasiliense 1985 BERGER Peter L O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo Satildeo Paulo Paulinas 1985 _________ L LUCKMANN Thomas Modernidade pluralismo e crise de sentido a orientaccedilatildeo do homem moderno Petroacutepolis Vozes 2004 BEJAMIMRobertoAMORIM Maria AliceCarnaval cortejos e improvisos Recife Fundaccedilatildeo de Cultura do Recife 2002 Coleccedilatildeo Malungo CASCUDO Luiacutes da Cacircmara Made in Africa Satildeo Paulo 2002 CONNOR Steven Cultura poacutes-moderna introduccedilatildeo agraves teorias do contemporacircneo 4 ed Satildeo Paulo Loyola 2000 DARCE Maria Luiza Camelo Folclore da zona canavieira 1973 Recife Monografia ( Graduaccedilatildeo) Universidade Catoacutelica de Pernambuco Curso de Sociologia FONTE FILHO Carlos da Espetaacuteculos populares de Pernambuco Recife Bagaccedilo 1999 GEERTZ Clifford A interpretaccedilatildeo das culturas 1 ed Rio de janeiro Guanabara Koogan c1989

GUERRA-PEIXE Cesar Maracatus do Recife Satildeo Paulo Irmatildeos vitale Recife Fundaccedilatildeo de Cultura Cidade do Recife 1980 HALL Stuart Da diaacutespora identidades e mediaccedilotildees culturais Belo Horizonte UFMG Brasiacutelia UNESCO 2003

16 Jurema eacute uma expressatildeo religiosa do nordeste brasileiro proveniente dos cultos maacutegico-xamacircnico e rituais cabaliacutesticos indiacutegenas com muita influecircncia do Toreacute celebram a natureza e seus deuses conteacutem um forte sincretismo com as religiosidades Afro-brasileiras ao qual cultuam os Mestres e Orixaacutes do panteatildeo Africano por isso eacute considerada uma religiatildeo Afro-indigena recebem ainda uma grande influecircncia do catolicismo popular Seus adeptos estatildeo em maior numero nos estados de Pernambuco e Paraiacuteba 17 Marafa eacute o nome dado na Umbanda a ldquoaacutegua de fogordquo ou aguardente tem grende forccedila maacutegica como siacutembolo sagrado de ligaccedilatildeo entre fogo e aacutegua elementos essecircncias da natureza (LIMA 1979 p 97)

Experiecircncias religiosas como afirmaccedilatildeo de identidade religiosa e cultural afro-

brasileira

Reinaldo Joatildeo De Oliveira

Introduccedilatildeo

O fato da procura por valorizaccedilatildeo da cultura afro-brasileira e da cultura Indiacutegena cabe

bem como afirmaccedilatildeo das suas reflexotildees com enfoque teoloacutegico Isto acontece devido a

importacircncia de entender o processo pelo qual estamos envolvidos hoje num mundo cada vez

mais plural mas tambeacutem carente de lsquosentidosrsquo para a ldquosituaccedilatildeordquo destes povos

Parece que para este estudo ser mais bem situado deveria antes de tudo servir-se de

uma base soacutelida para fundamentar o que gostariacuteamos de tratar no assunto que nos propomos No

entanto logo que iniciamos esta pesquisa jaacute sentimos a carecircncia visiacutevel de materiais produzidos

sobre a questatildeo da ascendecircncia africana no campo da teologia sobretudo da teologia cristatilde ndash ao

menos esta carecircncia refere-se ao que sentimos no decorrer da pesquisa Preferimos assim partir

do acadecircmico e de outras abordagens sobre o fenocircmeno da Religiatildeo e das Culturas esboccedilando

alguns apontamentos para o ldquofazer teoloacutegicordquo em perspectivas ainda natildeo tatildeo fundadas pelo

ldquoterrenordquo das construccedilotildees ocidentais no ambiente acadecircmico esforccedilando-nos no diaacutelogo entre

os mundos (oficialidade e natildeo-oficialidade)

Assim achamos melhor comentar alguns elementos importantes da religiosidade

popular do povo afrodescendente citando fontes dos comentaacuterios ndash baseado em relatos em

conversas informais e em pesquisa mais concentrada no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da

PUCRS e do Grupo de Pesquisas lsquoTeologia e Sociedadersquo no mesmo universo acadecircmico

Os relatos neste ensaio servem para uma anaacutelise dentro do campo de pesquisa ainda natildeo

finalizada em seu todo Por isso esperamos acima de tudo aprofundar o que refletimos

perpassando pelo respeito e valorizaccedilatildeo dos povos e culturas afro e indiacutegenas muitas vezes

esquecidos dos processos de inclusatildeo em nosso continente latino-americano

Alguns autores do contexto latino-americano e caribenho nos auxiliam nesta

caminhada tomando estas reflexotildees como tarefa teoloacutegica como forma de dialogar com as

culturas autoacutectones e as que foram trazidas desde o continente Africano

Com acreacutescimos e grifos finais consideramos alguns pontos que nos ajudam propor

accedilotildees mais concretas nas perspectivas teoloacutegica e pastoral para afirmaccedilatildeo de identidade

religiosa e cultural afro-brasileira integrada agrave realidade no que acontece no campo da feacute

Religiatildeo experiecircncias religiosas e culturas algumas anaacutelises

Mestrando em Teologia ndash Grupo de Pesquisa Teologia e Sociedade ndash FATEO-PUCRS

Aleacutem do aspecto cultural a religiatildeo tambeacutem exerce papel importante para a formaccedilatildeo

moral Isso parece ser o que Durkheim procura demonstrar quando reflete sobre o papel em que

a religiatildeo ocupa no desenvolvimento de todas as sociedades Para melhor exemplificar isso

basta considerar que em todas elas as crenccedilas e os valores mais importantes para o ldquobem

comumrdquo no conviacutevio social e na reproduccedilatildeo das sociedades foram tambeacutem considerados

sagrados adquirindo ateacute um caraacuteter de obrigatoriedade para todos os seus membros Logo a

religiatildeo passa ter uma funccedilatildeo central na orientaccedilatildeo da conduta moral dos indiviacuteduos E por isso

Durkheim vincula a ordem social a uma caracteriacutestica religiosa da coletividade onde antes de

qualquer outro aspecto a religiatildeo seria ldquocoisa socialrdquo e as representaccedilotildees religiosas exprimiria

realidades coletivas

Mircea Eliade na introduccedilatildeo de sua obra ldquoO Sagrado e o Profanordquo faz uma alusatildeo ao

livro de Rudolf Otto Das Heilige (1917) pois percebe que este autor teve a perspicaacutecia de

desenvolver sua pesquisa sobre anaacutelise das modalidades da experiecircncia religiosa para aleacutem da

que Durkheim chega via anaacutelise socioloacutegica simplesmente Porque Durkheim aleacutem de

apresentar que a religiatildeo manteacutem coesatildeo social afirma que uma crenccedila religiosa natildeo pressupotildee

necessariamente a associaccedilatildeo ao sobrenatural como podemos notar

Assim haacute ritos sem deuses e haacute ateacute ritos dos quais derivam deuses Todas as virtudes religiosas natildeo emanam de personalidades divinas e haacute relaccedilotildees cultuais que tecircm objetivos diferentes do de unir o homem e uma divindade A religiatildeo ultrapassa portanto a ideacuteia de deuses ou de espiacuteritos e por conseguinte natildeo pode definir-se exclusivamente em funccedilatildeo dessa uacuteltima18

Eliade parece entender que Rudolf Otto aprofunda onde Durkheim natildeo chegou

Fortalecido por uma dupla preparaccedilatildeo de teoacutelogo e de historiador das religiotildees Otto esclarece o

conteuacutedo e os caracteres especiacuteficos da experiecircncia religiosa como fundamentais para

ultrapassar uma anaacutelise simplesmente filosoacutefica ou socioloacutegica do fenocircmeno

Negligenciando o lado racional e especulativo da religiatildeo Otto encontrou-se sobretudo no seu lado irracional Porque Otto tinha lido Lutero e compreendera o que quer dizer para um crente o ldquoDeus vivordquo Natildeo era o Deus dos filoacutesofos o Deus de Erasmo por exemplo natildeo era uma ideacuteia uma noccedilatildeo abstrata uma simples alegoria moral Era pelo contraacuterio um poder terriacutevel manifestada na ldquocoacutelerardquo divina19

No que se refere a experiecircncia do sagrado Mircea fala em reatualizaccedilatildeo dos mitos ou

seja na experiecircncia religiosa faz-se necessaacuterio reatualizar os mitos De que forma

18 DURKHEIM Eacutemile As formas elementares de vida religiosa Satildeo Paulo Paulinas 1989 p 67 19 ELIADE Mircea O Sagrado e o Profano ndash a essecircncia das Religiotildees Colecccedilatildeo Vida e Cultura Traduccedilatildeo de Rogeacuterio Fernandes Livros do BrasilLisboa sd p 23

natildeo eacute sem interesse notar que o homem religioso assume uma humanidade que tem um modelo trans-humano transcendente Ele soacute se reconhece verdadeiramente homem na medida em que imita os Deuses os Heroacuteis civilizadores ou os antepassados miacuteticos Isto eacute o mesmo que dizer que o homem religioso se quer diferente do que ele acha que eacute no plano da sua existecircncia profana O homem religioso natildeo eacute dado faz-se a si proacuteprio ao aproximar-se dos modelos divinos Estes modelos como dissemos satildeo conservados pelos mitos pela histoacuteria das gesta divinas Por conseguinte o homem religioso tambeacutem se considera feito pela Histoacuteria tal qual o homem profano mas a uacutenica Histoacuteria que o interessa eacute a Histoacuteria sagrada revelada pelos mitos quer dizer a histoacuteria dos deuses () O que eacute preciso sublinhar eacute que desde o iniacutecio o homem religioso situa o seu proacuteprio modelo a atingir no plano trans-humano o revelado pelos mitos O homem soacute se torna em verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos quer dizer imitando os deuses20

Outros tambeacutem refletiram sobre as experiecircncias religiosas de acordo com as aacutereas que

se limitam desenvolver alguns entendimentos Como Johnson que considera tratar-se de ldquoum

ordenamento social construiacutedo para oferecer uma maneira participativa coletiva de lidar com

aspectos desconhecidos e incognosciacuteveis da vida humanardquo21 Jaacute Peter Berger sobre a religiatildeo

define como ldquoo empreendimento humano pelo qual se estabelece um universo sagradordquo22

Uma compreensatildeo antropoloacutegica analisa que ldquoa dimensatildeo simboacutelica da religiatildeo fornece

os padrotildees culturais da sociedade considerando o siacutembolordquo23 como uma metaacutefora uma imagem

que representa um conceito Na mesma direccedilatildeo e ao mesmo tempo ultrapassando estas anaacutelises

podemos perceber a necessidade de completarmos nossa pesquisa valendo-se de outras

abordagens considerando que cada ciecircncia chega num determinado limite ao cercar-se das

experiecircncias humanas e mesmo as que transcendem ao humano como eacute o exemplo do

ldquosacrifiacuteciordquo considerado por Evans-Pritchard24 uma ldquorepresentaccedilatildeo dramaacutetica de uma

experiecircncia espiritualrdquo refletindo a religiatildeo Nuer e juntamente a isso a importacircncia da

interdisciplinariedade

ldquoO que eacute essa experiecircncia o antropoacutelogo natildeo pode saber com certeza Experiecircncias desse tipo natildeo satildeo comunicadas com facilidade mesmo quando as pessoas estatildeo dispostas a fazecirc-lo e dispotildeem para isso de um vocabulaacuterio sofisticado Ainda que a prece e o sacrifiacutecio sejam accedilotildees exteriores a religiatildeo nuer eacute em uacuteltima instacircncia um estado interior Esse estado eacute externalizado atraveacutes de ritos que podemos

20 Ibid ELIADE Mircea p 112 21 JOHNSON Allan G Dicionaacuterio de sociologia guia praacutetico da linguagem socioloacutegica Rio de Janeiro Zahar 1997 p 196 22 BERGER Peter L O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo 2 ed Satildeo Paulo Paulus 1985 p 38 23 Um conjunto de siacutembolos sagrados tecido numa espeacutecie de todo ordenado eacute o que forma um sistema religioso Para aqueles comprometidos com ele tal sistema religioso parece mediar um conhecimento genuiacuteno o conhecimento das condiccedilotildees essenciais nos termos das quais a vida tem que ser necessariamente vivida (GEERTZ Clifford A religiatildeo como sistema cultural ndash in A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro LTC Ed 1989 p 146) 24 Orientador de Godfrey Lienhardt que partiu de pesquisas antropoloacutegicas sobre a Divindade e Experiecircncia baseada em A Religiatildeo dos Dinka (1978)

observar mas seu significado depende finalmente de uma tomada de consciecircncia em relaccedilatildeo a Deus e ao fato dos homens serem dele dependentes e deverem se resignar agrave sua vontade Nesse ponto o teoacutelogo toma o lugar do antropoacutelogordquo (Evans-Pritchard 1956 322)25

Sem querer limitar demais a questatildeo religiosa mas ao contraacuterio ampliar o debate que

tecemos no aprofundamento da Teologia e das Ciecircncias da Religiatildeo faz-se necessaacuterio mais do

que representaccedilotildees conceituais sobre as expressotildees da feacute individual e coletiva

As vivecircncias ligadas agraves culturas dos povos e agraves experiecircncias feitas como praacutetica de

ldquoreligiosidaderdquo deixam lacunas que natildeo satildeo bem solucionadas pelas ciecircncias pois advogam a

causalidade mas nelas habita a ldquobusca pelo sentidordquo

As definiccedilotildees sobre o fenocircmeno da religiatildeo e do Sagrado mergulham em lugares onde o

insondaacutevel ocupa para os religiosos nisso os socioacutelogos podem ateacute admitir que os conceitos natildeo

satildeo capazes de abarcar mas perscrutam a(s) experiecircncia(s) vivenciadas pelos crentes

A definiccedilatildeo substantiva da religiatildeo desencorajou alguns estudiosos de formularem questotildees acerca do sentido da religiatildeo eles ficavam satisfeitos com uma explicaccedilatildeo sumamente fatual Esta abordagem facilmente fazia com que a religiatildeo todas as religiotildees aparecessem como domiacutenio do incriacutevel do primitivo do obscuro do mundo irreal fundamentalmente em conflito com a racionalidade moderna Acontece tambeacutem evidentemente que os funcionalistas concentrando-se no papel social da religiatildeo descuram o sentido que a religiatildeo tem para os que a praticam Weber jamais esqueceu que a compreensatildeo da religiatildeo permanece incompleta enquanto natildeo se atenta ao sentido que ela tem para os crentes O proacuteprio Parsons que desenvolveu a abordagem funcionalista observa que esta abordagem facilmente leva a esquecer que a religiatildeo natildeo se esgota na dimensatildeo social que ela tem de fato referecircncia ao mundo invisiacutevel26

O sentido que trazemos sobre a compreensatildeo das teologias cristatildes africanas mostram o

quatildeo significativo se torna afirmar uma experiecircncia de feacute herdada no interior de uma

comunidade que une com a praacutetica os aspectos da vida do ldquoser africanordquo ldquoafro-ascendenterdquo

A religiatildeo penetrou cada aspecto da vida de tal maneira que eacute impossiacutevel extraiacute-la como simplesmente um elemento da heranccedila tradicional Ser africano na sociedade tradicional significa ser uma pessoa religiosa ter uma interpretaccedilatildeo religiosa da vida27

Interpretaccedilatildeo essa que une todos os outros aspectos ao inveacutes de dividir ou separar

Aliaacutes essa eacute a visatildeo religiosa do africano conceber toda realidade que o cerca natildeo vista

25 In GOLDMAN Marcio Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 19 (2) 09-30 1998 ndash A Experiecircncia de Lienhardt Uma Teoria Etnograacutefica da Religiatildeo p 12 26 BAUM Gregory Definiccedilotildees de Religiatildeo na Sociologia In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 40[744]-41[745] 27 McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo p 77[781]

separadamente uma da outra mas unida ao todo holisticamente Eis o que McVeight articula ao

que se passa na busca pelo pensamento teoloacutegico em referecircncia ao debate sobre a pertinecircncia da

reflexatildeo teoloacutegica africana no mundo O texto segue uma anaacutelise desenvolvida sobre o

documento conclusivo da Conferecircncia Pan-Africana de Teoacutelogos do Terceiro Mundo reunida

em Accra Ghana28 e a reflexatildeo coloca como desafio para Teologia Africana com relaccedilatildeo agrave

realidade

ldquoAfirmamos que nossa histoacuteria eacute ao mesmo tempo sagrada e secularrdquo () ldquoNa estrutura tradicional natildeo havia dicotomia entre o sagrado e o secular Ao contraacuterio o sagrado era experimentado no contexto do secular () Os teoacutelogos africanos tecircm plena consciecircncia daquilo que ocorreu devido ao impacto da cultura ocidental sobre sua vida ordinaacuteria Eles natildeo rejeitam o cristianismo mas estatildeo convencidos de que a interpretaccedilatildeo ocidental do mesmo produziu distorccedilotildees () Num sentido pode-se descrever a presente fermentaccedilatildeo na teologia africana dentro do contexto do tema da libertaccedilatildeo a saber salvaccedilatildeo como libertaccedilatildeo () Jesus preocupava-se com o perdatildeo dos pecados mas tambeacutem com a cura da doenccedila e a libertaccedilatildeo dos pobres e oprimidos29

Ascendecircncia afro e os lsquosujeitosrsquo como autores

Sob uma provocaccedilatildeo da quinta Conferecircncia Geral do Episcopado Latino-americano e do

Caribe reunido em Aparecida tratamos da importacircncia de se valorizar os mesmos povos pelo

significado deles como lsquosujeitosrsquo e autores no contexto de suas comunidades30

Foram vaacuterios discursos que propuseram certa forma de lsquoresgatersquo ou lsquolibertaccedilatildeorsquo dos

povos afro-ameriacutendios mesmo anterior agrave aboliccedilatildeo da Escravatura no Brasil Particularmente um

desses discursos trazemos para uma reflexatildeo em torno da teologia Afro-latino-americana atual

Eacute o que Paulo Suess como criacutetico deste estudo apresenta-nos sobre o assunto

Na antiguidade Greco-romana os egiacutepcios alcunharam seus vizinhos da regiatildeo ao sul de Siene atualmente Assuatilde (Ez 2910) de etiacuteopes o que significa ldquocaras queimadasrdquo Os autores da Biacuteblia hebraica conhecem esta regiatildeo como cuch Ao falar de cuch Isaiacuteas anunciou que dali viria um povo de ldquopele bronzeadardquo para trazer dons a Javeacute e adorar o seu nome no monte Siatildeo (Is 187) O batismo do etiacuteope por Filipe narrado nos Atos dos Apoacutestolos (826ss) tem este fundo literaacuterio e teoloacutegico O etiacuteope dos Atos pede explicaccedilotildees de um texto de Isaiacuteas que fala do Servo de Javeacute No tempo messiacircnico o povo dos confins do mundo encontra o

28 Esta conferecircncia se deu em 17 a 23 de dezembro de 1977 29 In McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 75[779]-80[784] 30 Que ningueacutem fique de braccedilos cruzados () Velamos pelo respeito ao direito que tecircm os povos de defender e promover ldquoos valores subjacentes em todos os estratos sociais especialmente nos povos indiacutegenasrdquo (Bento XVI Discurso em Guarulhos No 4) Assim entre outras ldquoEsperamos Valorizar e respeitar nossos povos indiacutegenas e afro-descendentesrdquo () ndash CELAM ndash Mensagem aos povos da Ameacuterica Latina e do Caribe (In wwwcelaminfo ndash pesquisado em 30 de Abril de 2009)

significado do Servo de Javeacute natildeo na servidatildeo mas no batismo que lhe permite ldquocheio de alegria continuar seu caminhordquo (At 839) 31

Na continuidade da criacutetica lsquoSuessrsquo expotildee alguns aspectos que hoje nos faz deter o olhar

sobre essa realidade com uma leitura conjuntural de perspectivas histoacuterico-teoloacutegica voltada

para na traduccedilatildeo Biacuteblica enquanto linguagem e hermenecircutica

Na traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica pelos Setenta (LXX) ao grego falado em Alexandria no terceiro seacuteculo AC [] e na Vulgata [] cuch geralmente eacute traduzido por Aethiopia () Na eacutepoca grego-romana a alcunha etiacuteope (ldquocara queimadardquo) se tornou designaccedilatildeo geneacuterica dos habitantes desde o sul do Egito passando por toda Aacutefrica ateacute aos paiacuteses em torno do oceano Iacutendico e agrave Iacutendia Mais tarde etiacuteope tornou-se nome geneacuterico do negro () Etiacuteope portanto significava na histoacuteria colonial das Ameacutericas negro africano E negro africano nas Ameacutericas por mais de trecircs seacuteculos era sinocircnimo de escravo E neste paradigma juriacutedico de resgate se articula analogicamente a lsquosalvaccedilatildeo pela comprarsquo de africanos que supostamente foram por inimigos tribais condenados agrave morte com a salvaccedilatildeo de pagatildeos pelo cristianismo sem estes condenados agrave morte eterna Nesta leitura ideoloacutegica a escravidatildeo representa uma dupla reduccedilatildeo de pena reduccedilatildeo de pena de morte ao trabalho forccedilado e reduccedilatildeo da pena fatal do inferno prevista na doutrina cristatilde da eacutepoca para os pagatildeos agraves chances escatoloacutegicas de um cristatildeo32

A partir desta criacutetica percebemos o que depois Paulo Suess reforccedila em sua

compreensatildeo sobre a realidade em torno do que buscamos afirmar neste estudo a identidade

afro-americana

ldquoos afro-americanos constituem uma das raiacutezes da identidade latino-americana e caribenha que foi arrancada da Aacutefrica e trazida para caacute como gente escravizada Sua histoacuteria tem sido atravessada por uma exclusatildeo social econocircmica poliacutetica e sobretudo racial onde a identidade eacutetnica eacute fator de subordinaccedilatildeo socialrdquo33

Cientes de que a ldquojustificaccedilatildeo teoloacutegicardquo da realidade de escravidatildeo teve como autores-

viacutetimados os indiacutegenas e Afro-ascendentes necessariamente passamos pela abordagem sobre a

atual realidade destes povos neste ponto da reflexatildeo

No caso especiacutefico da valorizaccedilatildeo religiosa e cultural aproximamos das experiecircncias

religiosas de ascendecircncia africana-indiacutegena para ldquosentir e fazerrdquo a experiecircncia de resistecircncia e

de libertaccedilatildeo Soacutecio-histoacuterico-teoloacutegico destes povos Torna-se portanto fundamental e

emergente o desenvolvimento da Teologia Iacutendia e da Teologia Afro na Ameacuterica Latina como

31 ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado Empenhado Sustentado Corrigido Instruiacutedo e Libertado ndash Discurso teoloacutegico-juriacutedico sobre a libertaccedilatildeo dos escravos no Brasil de 1758 Introduccedilatildeo criacutetica de Paulo Suess Vozes Petroacutepolis co-ediccedilatildeo com CEHILA Satildeo Paulo 1992 pp IX-X 32 In ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado p X 33 SUESS Paulo Dicionaacuterio de Aparecida 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do documento de Aparecida Satildeo Paulo Paulus 2007 p13

forma de apontamentos correccedilotildees e reparaccedilotildees de questotildees ainda candentes em nosso contexto

principalmente quando mal afirmadas explicitadas anteriormente34

O conflito da afirmaccedilatildeo identitaacuteria e a ascendecircncia africana

O pesquisador Stuart Hall35 em sua obra ldquoA identidade cultural na poacutes-

modernidaderdquo36 distingue trecircs concepccedilotildees de identidade a saber a concepccedilatildeo do sujeito do

Iluminismo a concepccedilatildeo do sujeito socioloacutegico e a concepccedilatildeo do sujeito poacutes-moderno Nesta

uacuteltima concepccedilatildeo Stuart critica o modo de pensar uma identidade plenamente unificada

completa segura e coerente pois este natildeo tem uma identidade fixa e por isso seria uma

fantasia pensar assim pois

dentro de noacutes haacute identidades contraditoacuterias empurrando em diferentes direccedilotildees de tal modo que nossas identificaccedilotildees estatildeo sendo continuamente deslocadas Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento ateacute a morte eacute apenas porque construiacutemos uma cocircmoda estoacuteria sobre noacutes mesmos ou uma confortadora ldquonarrativa do eurdquo () Ao inveacutes disso na medida em que os sistemas de significaccedilatildeo e representaccedilatildeo cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possiacuteveis com cada uma das quais poderiacuteamos nos identificar ndash ao menos temporariamente37

Pode parecer que seja necessariamente igual afirmar que as muacuteltiplas identidades

servem para uma contestaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo e a sociedade Se assumirmos a postura de

admitir uma sociedade fragmentada deveriacuteamos tambeacutem concordar que os sujeitos satildeo

fragmentados no que tange o seu ser identitaacuterio

Parece ser evidente que natildeo podemos acreditar haver apenas uma unificaccedilatildeo cocircmoda de

uma identidade percebendo existir tantos conflitos que desestrutura o ser pessoal do sujeito

Importante saber quais os problemas confrontados ou identificados na histoacuteria individual

durante toda uma vida e neste aspecto podemos nos perguntar - onde e como ldquoeste sujeitordquo

(que se pergunta) encontra resposta para si mesmo quando busca afirmar-se frente a relaccedilatildeo

ldquointerativardquo com outras identidades e culturas sendo ldquoele mesmo enquanto tal originaacuterio de uma

determinada cultura38

34 Referindo-se agraves abordagens que justificaram as vaacuterias formas de subordinaccedilatildeo dos povos afro-ameriacutendios e suas experiecircncias religiosas onde pelo ldquovieacutes teoloacutegicordquo cometeu-se equiacutevocos que ainda natildeo se avanccedilou suficientemente na reflexatildeo teoloacutegica e no aprofundamento do diaacutelogo inter-religioso por exemplo 35 Professor da Open University Inglaterra Foi um dos fundadores do importante Centre for Contemporany Cultural Studies da Universidade de Birmingham Inglaterra 36 HALL Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade traduccedilatildeo de Tomaz Tadeu da Silva Guaracira Lopes Louro ndash 10 ed ndash Rio de Janeiro DPampA 2005 37 Ibid HALL Stuart p 13 38 Ou seja ldquoeste indiviacuteduordquo que se pergunta sobre sua identidade enquanto a desconhece como ldquoraizrdquo histoacuterica originaacuteria familiar ascendente (onde se baseiam os antropoacutelogos que afirmam existir a raiz identitaacuteria cultural jaacute presente neste indiviacuteduo mesmo que ele a desconheccedila cabendo-lhe apenas

Quando um ldquoindiviacuteduo afro-ascendenterdquo se confronta com sua histoacuteria e sua realidade

interior (psicoloacutegica espiritual-religiosa racional afetiva) e exterior (social poliacutetica material

econocircmica) como se vecirc para aleacutem dos sentidos sobre a narrativa do seu ldquoeurdquo O que ele poderaacute

admitir ser ou pertencer quando natildeo consegue encontrar-se em meio ao seu mundo fragmentado

e de muacuteltiplas escolhas Qual seraacute o seu caminho Ou permaneceraacute natildeo identificaacutevel quando

tantos outros na interaccedilatildeo a sua volta ateacute mesmo o fazem por ele superficialmente39

Num constante processo de estranhamento de si mesmo o indiviacuteduo sente-se

entranhado agrave sua proacutepria existecircncia neste mundo que lhe possibilita uma falsa noccedilatildeo de si40

Trazendo mais proacuteximo ao nosso contexto brasileiro este problema relacionado agrave

identidade trouxe-nos desde o periacuteodo poacutes-escravista uma questatildeo ainda natildeo resolvida nem

teoricamente e nem na praacutetica como o antropoacutelogo Kabenguele Munanga menciona

O fim do sistema escravista em 1888 coloca aos pensadores brasileiros uma questatildeo ateacute entatildeo natildeo crucial a construccedilatildeo de uma naccedilatildeo e de uma identidade nacional Ora esta se configura problemaacutetica tendo em vista a nova categoria de cidadatildeos os ex-escravizados negros Como transformaacute-los em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado que os considerava apenas como coisas e forccedila animal de trabalho ainda natildeo mudou Toda a preocupaccedilatildeo da elite apoiada nas teorias racistas da eacutepoca diz respeito agrave influecircncia negativa que poderia resultar da heranccedila inferior do negro nesse processo de formaccedilatildeo da identidade eacutetnica brasileira41

Exatamente na relaccedilatildeo entre a identidade nacional como tentativa de especular uma

sociedade que durante seacuteculos representou um povo reconhecido como inferior quanto a sua

origem cultural eacutetnica econocircmica etc Transcorre daiacute uma necessidade de estabelecer o que

entendemos por ldquocultura superiorrdquo e ldquooutras culturasrdquo que desencadeiam um processo de

legitimaccedilatildeo de direitos por cidadania dignidade e igualdade social histoacuterica enfim

Por sua vez Kwame Anthony Appiah42 problematizaria mais a questatildeo lanccedilando uma

duacutevida para a compreensatildeo sobre os valores da comunhatildeo social e histoacuterica Ele critica outro

encontraacute-la descobri-la neste processo de procura pessoal ou coletiva) quando este o faz em determinados grupos sociais e religiosos que se preocupam com esta busca (movimentos organizaccedilotildees comunidades etc) 39 Questionamos isso frente ao que se daacute no cotidiano de muitos que natildeo se ldquoafirmamrdquo ou dizem natildeo encontrarem-se frente a realidades que ele mesmo natildeo consegue situar-se Por exemplo O proacuteprio conceito de ldquomesticcedilagemrdquo que trataremos mais adiante 40 Eacute o que reflete o professor Dr Ricardo Timm de Souza (do PPG da Faculdade de Filosofia PUCRS) num encontro denominado ldquofeacute e culturardquo promovida pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul em debate no dia 12 de maio de 2009 com o professor Dr Luiz Carlos Susin (do PPG da Faculdade de Teologia da PUCRS) das 1815 agraves 1930 no auditoacuterio da Arquitetura preacutedio 8 do Campus Univeristaacuterio 41 MUNANGA Kabengele Rediscutindo a mesticcedilagem no Brasil ndash Identidade Nacional versus Identidade negra 3 ed - Belo Horizonte Autecircntica 2008 p 48 42 Nascido em Gana em 1954 Kwame Anthony Akroma-Ampim Kusi Appiah doutorou-se em filosofia pela Universidade de Cambridge em 1982 realizou vaacuterios estudos afro-americanos e de filosofia na Universidade de Harvard Publicou centenas de artigos em revistas especializadas e vaacuterios livros dentre

autor que entra num entendimento de ldquoraccedilardquo como sendo importante para se constituir a

identidade de ldquouma vasta famiacutelia de seres humanos sempre de histoacuteria [e] tradiccedilotildees comunsrdquo e

tece partindo disso sua criacutetica

Eacute bem possiacutevel que a histoacuteria nos tenha feito o que somos mas a escolha de uma fatia do passado num periacuteodo anterior ao nosso nascimento como sendo nossa proacutepria histoacuteria eacute sempre exatamente isso uma escolha Embora a expressatildeo ldquoinvenccedilatildeo da tradiccedilatildeordquo tenha um ar contraditoacuterio todas as tradiccedilotildees satildeo inventadas43

Estes entendimentos buscam refletir mais sobre aspectos da ideologia implantada nos

modos de como se concebe o conceito de raccedila vemos que um dos caminhos para uma melhor

fundamentaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de identidades natildeo seja partindo deste conceito Parece talvez que

o auto-conhecimento no interior dos processos pedagoacutegicos histoacutericos sociais religiosos e

tambeacutem teoloacutegicos seja uma das respostas para isso Neste sentido nos perguntamos se seria

possiacutevel afirmar-se ou rejeitar-se pessoalmente (individualmente) afirmando ou negando a uma

histoacuteria ldquoraiacutezesrdquo ldquoorigens soacutecio-culturais e religiosasrdquo Logo nos colocamos num processo de

auto-conhecimento enquanto escolha e construccedilatildeo partindo ldquodo querdquo fomos feitos

historicamente culturalmente como algo necessaacuterio para a afirmaccedilatildeo de uma identidade

cultural ndash individual e coletiva tal como nos apresenta Erikson

Recapitular o conceito de identidade significa esboccedilar a sua histoacuteria (e toda a histoacuteria) e que para estudar a sua construccedilatildeo seraacute preciso estabelecer algumas dimensotildees deste problema universal devendo tambeacutem ser visto como processo do indiviacuteduo na cultura pois eacute esse processo que estabelece de fato a identidade individual e coletiva44

Autoconhecimento e a afirmaccedilatildeo da identidade cultural

Conhece-te a ti mesmo45

O conhecimento eacute fator de afirmaccedilatildeo de identidade e assim o conhecimento soacute pode

vir antes do re-conhecimento pois soacute podemos reconhecer aquilo que antes jaacute fora conhecido

os quais este que tratamos agrave parte alguns conceitos para melhor fundamentar o debate sobre a questatildeo das culturas e da formaccedilatildeo das identidades contrapondo a uma concepccedilatildeo de ldquoraccedilardquo 43 APPIAH Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura traduccedilatildeo Vera Ribeiro revisatildeo de traduccedilatildeo Fernando Rosa Ribeiro - Rio de Janeiro Contraponto 1997 p 59 44 ERIKSON E E Identidade Juventude e Crise Traduccedilatildeo de Aacutelvaro Cabral Guanabara Rio de Janeiro 1987 p 13 45 Gnothi Seauton (do grego antigo γνῶθι σεαυτόν conhece-te a ti mesmo) aforismo que tradicionalmente estava inscrito nas paredes do Templo de Apolo em Delfos na Antiga Greacutecia e que eacute muito citado pelo filoacutesofo Soacutecrates nos relatos de seu pupilo Platatildeo O oraacuteculo do templo teria proclamado Soacutecrates o homem mais saacutebio na Greacutecia ao que Soacutecrates respondeu com a ceacutelebre frase Soacute sei que nada sei [in httpwikipediaorg]

Neste sentido eacute importante auto-conhecer-se antes para auto-afirmar-se quando se quer e decide-

se percorrer este caminho da busca pela identidade pessoal

Em linhas gerais este ou aquele ser humano natildeo se liberta soacute mas em comunhatildeo e por

isso necessita ser reconhecido e antes disso ldquoconhecidordquo por si mesmo e pelo outro Neste

sentido somente nos realizamos juntos ldquocomrdquo o(s) outro(s)

O auto-conhecimento pode ser comparado como a um motor que move o sujeito a partir

de dentro de si mesmo para uma ldquolibertaccedilatildeo interiorrdquo e posteriormente uma ldquolibertaccedilatildeo

exteriorrdquo que depende natildeo apenas dele mas tambeacutem da relaccedilatildeo com o meio (o outro o mundo

que o circunda) Vale aqui fazer menccedilatildeo da necessidade pelo reconhecimento que se torna um

segundo passo necessaacuterio neste processo de afirmaccedilatildeo

O documento da quinta conferecircncia episcopal latino-americana no Capiacutetulo deacutecimo

com o tema ldquoNossos povos e nossa culturardquo parece esboccedilar um processo de afirmaccedilatildeo das

origens culturais e religiosas dos povos latino-americanos

Pedagogicamente entendida como uma ldquoassunccedilatildeordquo46 destes povos e destas culturas o

documento de Aparecida acena mas natildeo aprofunda para os anseios da Igreja na Ameacuterica

Latina Os desafios comprometem relacionar a cultura com a evangelizaccedilatildeo a educaccedilatildeo como

bem puacuteblico a pastoral urbana a preocupaccedilatildeo no sentido da unidade e fraternidade dos povos a

integraccedilatildeo dos indiacutegenas e afro-americanos e apontamentos como Caminhos de reconciliaccedilatildeo e

solidariedade47

O documento mencionado tambeacutem fala de ldquoreconhecimentordquo48 mas podemos

questionaacute-lo - como reconhecer se natildeo tivermos interesse antes por ldquoconhecerrdquo Ou mais a

fundo que isso uma maneira de investir-se por Deus atraveacutes do diaacutelogo O diaacutelogo com as

culturas pode vir a ser uma experiecircncia de feacute e de responsabilidade

O conhecimento das religiotildees de matrizes africanas com suas experiecircncias pode trazer

um verdadeiro sentido de afirmaccedilatildeo de uma identidade identificaccedilatildeo e de ldquoencontrordquo como

uma experiecircncia com Deus - isso eacute um forte exemplo do que estamos querendo dizer

Haacute muitas inseguranccedilas de iniciar um diaacutelogo com o ldquooutrordquo ldquopara o outrordquo assumi-lo

com a responsabilidade devida que ele merece de unidade e reciprocidade na diversidade

como eacute a relaccedilatildeo entre pessoas distintas que fazem uma experiecircncia divinizada de assumir um

ao outro bem descrita alegoricamente por Leacutevinas

46 Paulo Freire define bem o sentido desta concepccedilatildeo de assunccedilatildeo que no seu modo de entender passa pela significacircncia e importacircncia deste verbete ldquoO verbo assumir eacute um verbo transitivo e que pode ter como objeto o proacuteprio sujeito que assim se assumerdquo [In ibid FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia p 41] 47 Texto conclusivo da V Conferecircncia Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe 2007 pp 215-241 48 ldquoO seguimento de Jesus () passa tambeacutem pelo reconhecimento dos afro-americanos como desafio que nos interpela para viver o verdadeiro amor a Deus e ao proacuteximordquo (cf n 532)

Estar sob o olhar sem descanso de Deus eacute precisamente em sua unidade ser portador de um outro algueacutem ndash carregador e apoiador ndash ser responsaacutevel por esse outro como se a face entretanto invisiacutevel do outro prolongasse a minha e me mantivesse alerta em nome de sua proacutepria invisibilidade em nome do imprevisiacutevel do que nos ameaccedila () Maneira essencial para o ser humano de estar exposto ateacute o ponto de perder a pele que o protege pele tornada totalmente face como se nucleando em torno de si um ser sofresse uma desnucleaccedilatildeo e desnucleando-se fosse ldquopara o outrordquo antes de tudo diaacutelogo49

Se procuramos pela ldquoafirmaccedilatildeo identitaacuteriardquo necessariamente deveremos dar certa

ecircnfase ao que queremos afirmar principalmente quando se refere agrave culturas religiosidades ou

experiecircncias que durante muito tempo foram negadas rejeitadas e discriminadas Neste sentido

Suess resgata em ldquoEvangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outrosrdquo50 e em ldquoTravessia

com Esperanccedila memoacuterias diagnoacutesticos horizontes51rdquo os desafios para a teologia que se

concretiza enquanto projeto de alteridade

Em ldquoO Homem Messiacircnicordquo52 Luiz Carlos Susin interpreta o sentido do resgate a partir

desta perspectiva de alteridade nesta compreensatildeo que carrega consigo portanto um

imperativo eacutetico de responsabilidade direcionada como uma palavra eacutetica expressa de diversas

maneiras nos ensinamentos desse ldquooutrordquo em suas vivecircncias em sua cultura que revela quem

ele eacute para mim no seu devido contexto Por isso jaacute natildeo eacute palavra que me conduz a Deus mas

palavra de Deus que conduz o outro a mim

A palavra que Deus profere natildeo eacute sobre si mas sobre o homem como palavra eacutetica ndash seu dom e sua imagem ndash e eacute mandamento e Lei O outro eacute enviado a mim para uma histoacuteria e um drama de responsabilidade eacutetica A conclusatildeo de nosso autor hebreu eacute que a religiatildeo natildeo necessita entatildeo de outro fundamento aleacutem da eacutetica ou melhor a eacutetica eacute religiatildeo53

Religiotildees de ascendecircncia afro-ameriacutendia a etnicidade

Natildeo eacute tatildeo simples e nem muito adequado abusar da abertura e liberdade para tratar

sobre as religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena sem levar em conta aleacutem do que jaacute se

pesquisou sobre este tema o que osas religiososas dizem sobre si mesmos Seria no miacutenimo

uma desconsideraccedilatildeo natildeo tomar o discurso desses ldquoatoresrdquo e fieacuteis do processo de luta e de

resistecircncia no sentido de valorizaccedilatildeo e respeito pelas experiecircncias religiosas diversas do povo

deste nosso chatildeo paacutetria comunidade-terreiro - o Brasil

49 LEVINAS Emmanuel Do sagrado ao santo cinco novas interpretaccedilotildees talmuacutedicas [trad Marcos de Castro] Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 p 144 50 SUESS Paulo Evangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outros ndash Ensaio de missiologia Satildeo Paulo Paulus 1995 51 SUESS Paulo Travessia com esperanccedila memoacuterias diagnoacutesticos horizontes Petroacutepolis RJ Vozes 2001 52 SUSIN Luiz Carlos Homem Messiacircnico ndash uma introduccedilatildeo ao pensamento de Emmanuel Levinas Porto Alegre Escola Superior de Teologia Satildeo Lourenccedilo de Brindes 1984 53 Ibid SUSIN Luiz Carlos O homem messiacircnico p 254

As experiecircncias dos praticantes das religiotildees de ascendecircncia africana nos ajudam tanto

no sentido de entendimento sobre o dinamismo da feacute e numa atitude pela busca e construccedilatildeo de

uma afirmaccedilatildeo de identidade cultural que fortalece a autonomia destes povos Por isso

desenvolvemos a maior parte deste assunto sobre as consideraccedilotildees que fieacuteis e religiosos das

religiotildees de ascendecircncia africana e indiacutegena disseram de suas experiecircncias

De modo geral podemos salientar que o desenvolvimento do Candombleacute e da Umbanda

coube principalmente aos afro-ascendentes e aos indiacutegenas que no decorrer do tempo assumiram

estas como autecircnticas expressotildees religiosas Contudo estas religiotildees foram mais caracterizadas

e identificadas no ambiente eacutetnico afro embora hoje essa realidade seja muito mais difusa e

diversa entre as etnias Essa mistura eacutetnica estaacute permeada de questionamentos no entanto

permanecem como religiotildees elementares para coesatildeo moral e formadora de identidade religiosa

e cultural afro-indiacutegena

Experiecircncias religiosas sempre estiveram presentes em meio a cultura indiacutegena que jaacute

habitava o solo ainda natildeo desbravado pelos colonizadores imperialistas Contudo a religiatildeo

conhecida como o Candombleacute de heranccedila africana e misturada aos cultos indiacutegenas somente

muito tempo depois foi reconhecida como uma religiatildeo pela ldquosociedade civil

institucionalizadardquo

Grande parte do povo afro-brasileiro incorporou dentro de sua expressatildeo de feacute a religiatildeo

oficial do Estado Brasileiro e dos que ldquoimperializavamrdquo o que era verdadeiro e falso neste

territoacuterio O religioso afro-descendente passa entatildeo ldquoter o seu peacute na Igreja Catoacutelicardquo54 de

acordo com sua necessidade religiosa e expressatildeo de feacute do seu ldquosenhor-dono de escravosrdquo

O Candombleacute dentro da cultura afro-brasileira foi uma das maiores e mais originais

manifestaccedilotildees da religiosidade do povo afro em solo brasileiro

Um dos propoacutesitos mais dignos e importantes do Candombleacute permanece sendo o fato de

ldquoresistir e natildeo deixar com que a cultura religiosa afro-descendente se acaberdquo55 Outro

propoacutesito eacute de servir a comunidade dos filhos e filhas de Deus na promoccedilatildeo da vida e quando

possiacutevel e necessaacuterio

() servir-se para outras utilidades como uma oficina um asilo para idosos ou uma creche para crianccedilas () e pra qualquer outro evento que venha falar da nossa cultura negra ndash a nossa matriz africana () A nossa forccedila tambeacutem eacute com relaccedilatildeo a isso aiacute ajudar as pessoas da periferia natildeo iludindo e sim ajudando numa forma divina em que Deus venha e os Orixaacutes tambeacutem venham iluminar para que as pessoas possam resolver os seus problemas pessoais56

54 Conforme relato oral de um ldquoPai de Santordquo - Tata ti Inkice Arolegi - vulgo Pai Leco do Terreiro Abassaacute de Odegrave em Florianoacutepolis para estudo sobre o ldquouniverso simboacutelico da religiosidade popular na periferia do morro da Cruz na cidade de Florianoacutepolis-SCrdquo [OLIVEIRA RJ Monografia - ITESC 2006] 55 Parte do mesmo relato feito por Pai Leco no exerciacutecio da oralidade para estudo supracitado 56 Parte do relato do mesmo autor ldquoPai Lecordquo

Outro ponto importante para ser considerado neste aspecto eacute a resistecircncia eacutetnica da

cultura afro-brasileira na experiecircncia religiosa do candombleacute como algo caracteriacutestico dessa

religiatildeo apesar de pensamentos contraacuterios neste aspecto alguns temas relacionados agraves religiotildees

brasileiras de matrizes africanas como ldquoO candombleacute sem etnicidaderdquo 57 seguindo outra

ideacuteia58 definida como ldquouma afro-brasilidade sem etnicidaderdquo59 e depois ldquouma desobstruccedilatildeo

eacutetnicardquo60

Uma causa que o autor parece esboccedilar para esse estudo seria a de uma ruptura com a

originalidade de um fenocircmeno religioso igualando-se aos demais dentro do lsquomercadorsquo ou de

ldquoreligiotildees sem reserva de mercado de natureza eacutetnicardquo61 Ele identifica agraves demais religiotildees

eacutetnicas num processo de universalizaccedilatildeo62 segundo comparaccedilatildeo agrave PRANDI63 com os grifos

proacuteprios de que esse fenocircmeno pareccedila traduzir-se em uma ideologia de salvaccedilatildeo e de

recrutamento com o lsquoprejuiacutezorsquo da ldquoperca de identidade eacutetnica religiosardquo64 Contudo parece-nos

arriscado essa leitura definida a partir desse movimento como causa uma perca eacutetnica pois esse

fenocircmeno pode ser explicado tambeacutem como caracteriacutestica de um processo de abertura das

comunidades e terreiros de acordo com a realidade de cada espaccedilo geograacutefico65 Logo natildeo

deveria ser generalizado um fenocircmeno (em causa-efeito) vitimado por um ldquoobjetivordquo das

religiotildees de ascendecircncia africana de atingir a massa com propostas salviacutefico-universalistas e de

recrutamento Ao contraacuterio o que percebemos atraveacutes de uma leitura caminhada em espaccedilos

religiosos deste campo eacute que prevalece a intenccedilatildeo de preservar a cultura e a etnicidade da

religiatildeo

Entendo que o que se refere por resistecircncia eacute natildeo deixar embranquecer aquilo que eacute nosso nossa cultura negra natildeo deixar morrer essa cultura Tanto faz estar nas matildeos do iacutendio nas matildeos dos brancos ou nas matildeos dos negros desde que entatildeo seja a

57 PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura (InTEIXEIRA FaustinoMENEZES Renata ndash orgs As religiotildees do Brasil continuidades e rupturas Petroacutepolis RJ Vozes 2006) pp 22-24 58 SANSONE Liacutevio Negritude sem etnicidade ndash O local e o global nas relaccedilotildees raciais e na produccedilatildeo cultural negra do Brasil Salvador Rio de Janeiro Edufba Pallas 2004 59 Ibid PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura p 22 60 Ibid PIERUCCI p 24 61 Ibid PIERUCCI p 22 62 Parece esboccedilar a intenccedilatildeo de defender que haacute uma ruptura com o esquema inicial proposto ao inveacutes de uma continuaccedilatildeo inicial original tal como se propuseram outras religiotildees como o luteranismo e outras mencionadas por ele como as ldquonovas religiotildees ligadas agrave colocircnia japonesa e seus descendentesrdquo 63 In PRANDI Reginaldo Os candombleacutes de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Hucitec 1991 ndash Raccedila e Religiatildeo In Herdeiras do axeacute ndash sociologia das religiotildees afro-brasileiras Satildeo Paulo Hucitec 1996 e ndash O Brasil com axeacute candombleacute e umbanda no mercado religioso Estudos Avanccedilados vol 18 n 52 set-dez pp 223-238 Satildeo Paulo USP 2004 64 Ibid PIERUCCI p 24 65 Bastaria simplesmente ldquopisarrdquo um pouco o ldquochatildeo desta realidaderdquo para sentir e ver como se daacute a experiecircncia de cada local de cada espaccedilo sagrado individualizada contextualmente O mesmo serve para se afirmar a identidade religiosa e cultural de um povo ou comunidade

resistecircncia sobre a nossa cultura mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave religiatildeo agrave mulher negra ao estudo agrave educaccedilatildeo da crianccedila negra com relaccedilatildeo agrave Capoeira enfim a essa cultura toda () Natildeo eacute proibido do branco cultuar a religiatildeo negra mas ele tem que vir a uma cultura negra e natildeo querer transformar essa religiatildeo ou cultura com meios brancos porque natildeo tem nada a ver Noacutes natildeo temos dificuldade de atender quem quer que seja na periferia porque todos satildeo pobres e haacute tambeacutem o fato de que tanto o negro como o branco tambeacutem fazem coisas erradas 66

Uma religiatildeo eacutetnica que se abre para acolher a quem precisa ensina que a comunhatildeo

acolhe ao inveacutes de dividir aos que vivem em condiccedilatildeo social desfavorecida de etnia diferente

ou por criteacuterios morais Uma das finalidades pode ser dialogar experiecircncias comunitaacuterias

coletivas e lsquosituarrsquo as pessoas no mundo religioso como um processo de reconhecimento e

legitimaccedilatildeo para a Teologia e as Ciecircncias da Religiatildeo

Teologia afro-ameriacutendia e afirmaccedilatildeo de identidade

As leituras sobre os elementos de uma teologia Afro-brasileira busca em comum com

as expressotildees religiosas de ascendecircncia africana a ancestralidade africana traduzida em

Religiatildeo e Experiecircncias de feacute no sentido de ldquosituarrdquo o religioso e o teoloacutegico

Pela necessidade que sentimos de abordar alguns aspectos da ldquoteologia do candombleacute e

da Umbandardquo consideramos ser fundamental essa afirmaccedilatildeo da identidade religiosa e cultural

nas experiecircncias religiosas afro-brasileiras Evidente notar que cada expressatildeo religiosa procura

corresponder culturalmente religiosamente agravequilo que eacute especiacutefico com a expressatildeo de uma

crenccedila na relaccedilatildeo com outro tipo de mentalidade Por isso no acircmbito religioso afro eacute difiacutecil

tratar como ldquocerto ou erradordquo em nossa mentalidade ocidental Antes uma relativizaccedilatildeo da

verdade e do papel da racionalidade eacute necessaacuteria por exemplo

O povo do Candombleacute natildeo raciocina em termos de loacutegica propriamente de racionalidade mas em siacutembolos O instrumento de pensar eacute o instrumento simboacutelico que aliaacutes eacute de uma riqueza maior do que o conceito friamente racional Eacute por isso que para eles natildeo haacute nenhuma incongruecircncia em ser catoacutelico ndash muitos ateacute comungam aparecem aqui na minha missa ndash e ao mesmo tempo praticam os ritos ancestrais Porque na sua mente natildeo haacute incompatibilidade67

Como mencionamos o Candombleacute podemos tambeacutem referir a Umbanda traccedilando

algumas questotildees essenciais para melhor caracteriza-la para o crente-religioso tal como

fizemos no Candombleacute explicitando elementos de suas experiecircncias que configuram-se

primordiais para afirmaccedilatildeo identitaacuteria e fenocircmeno para se ldquofazer teologiardquo

66 Na mesma pesquisa supracitada a fala eacute de Pai Leco (do Candombleacute de Angola) 67 In SANCHIS Pierre Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999 - Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros p 68

Entrariacuteamos portanto no cenaacuterio Umbandista que tecircm um modo peculiar para

expressar os cultos aos Santos e Orixaacutes Por exemplo no terreiro cultua-se Ogum como a Satildeo

Jorge Oxoacutessi como a Satildeo Sebastiatildeo conhece-se como Oxalaacute ou Oxaguiatilde a Jesus Existem

grupos que hoje assumem o culto aos Orixaacutes independentemente dos Santos e outros casos que

mesmo reconhecendo-se como cristatildeos autecircnticos vivenciam suas pertenccedilas nos cultos afro sem

sentir problema de continuarem como catoacutelicos e candomblecistas ou umbandistas Fato eacute que

em meio ao povo afro-religioso esta ldquodupla pertenccedilardquo constitui-se como uma siacutentese das suas

experiecircncias pessoais e comunitaacuterias no campo da feacute Neste aspecto os iacutendios natildeo estavam

separados mesmo lsquoreduzidosrsquo em aldeias-comunidades continuaram lsquosintetizandorsquo a feacute

naturalmente sem renunciarem as experiecircncias no cristianismo nos rituais de pajelanccedila e nas

crenccedilas em divindades indiacutegenas

Muitos negros ao receberem o batismo compulsoriamente mantiveram a feacute cristatilde e a praacutetica catoacutelica por forccedila da imposiccedilatildeo e do condicionamento Outros no entanto embora o tenham recebido em igual situaccedilatildeo entenderam que natildeo havia oposiccedilatildeo entre as suas tradiccedilotildees religiosas de origem e os elementos fundamentais da feacute cristatilde68

Essa anaacutelise vem de encontro com o caso dos Agentes de Pastoral Negros (APNacutes)

como menciona Padre Toninho situando essa discussatildeo dentro do ldquoestatuto soterioloacutegicordquo

Sem abandonar perspectivas teoloacutegicas cristatildes interessante o resgate de Pierre Sanchis

ao mencionar Franccedilois de lacuteEspinay um padre catoacutelico que segundo relatado diz ter vivido seus

uacuteltimos anos numa dupla pertenccedila conscientemente escolhida e o fato de denominar-se como

ldquoministro de Xangocircrdquo Eis sua confissatildeo em tom de testamento

Vocecirc entende Jesus Cristo histoacuterico ainda eacute muito branco para os negros Desde haacute milecircnios Deus lhes falou de modo diferente nos seus corpos e na natureza pelos espiacuteritos dos seus ancestrais Como foi possiacutevel que noacutes a Igreja tenhamos conseguido riscar tudo isso durante 400 anos com a boa consciecircncia de possuir a verdade Temos que ser prudentes quando falamos dessas coisas na Igreja Mas na minha alma e consciecircncia adquiri agora a certeza de que Deus eacute maior do que noacutes imaginamos Utiliza-se para se revelar a seu povo mediaccedilotildees outras que aquelas que conhecemosrdquo69

Sob este depoimento cremos natildeo ser exagerado afirmar que numa relaccedilatildeo de diaacutelogo

as religiotildees de ascendecircncia africana contribui no entendimento do pluralismo eacutetico-religioso na

experiecircncia de feacute como afirma o presidente da UNIAFRO70 Apolocircnio Antocircnio da Silva71

68 SILVA Antocircnio A APNacutes presenccedila negra na Igreja In ATABAQUE-ASETT p 12 69 SANCHIS Pierre Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros (In Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999) p 68 70 Uniatildeo de Cultura Negra em Santa Catarina uma entidade civil sem fins lucrativos apartidaacuteria de caraacuteter de estudo e pesquisa social educacional e cultural que teraacute entre as sua finalidades a elaboraccedilatildeo e a busca de apoio agraves poliacuteticas puacuteblicas e accedilotildees afirmativas que visem principalmente agrave populaccedilatildeo afro-descendente no Estado de Santa Catarina Objetivaraacute tambeacutem resgatar e promover a memoacuteria a histoacuteria

A Umbanda possui vaacuterias caracteriacutesticas haacute quem diga ateacute mesmo que satildeo vaacuterias as umbandas () A umbanda eacute uma uniatildeo de vaacuterias teorias e de vaacuterias religiotildees Nela vocecirc encontra aspectos do espiritismo kardecista do budismo do catolicismo e por isso a umbanda pode contribuir muito para as outras religiotildees () Ela permite que aspectos de outras religiotildees e de outras culturas cheguem a determinadas comunidades passadas de uma forma mais adequada a essa realidade local sem aquela coisa de teorias muito complicadas mas de uma maneira mais simples 72

A partir da compreensatildeo teoloacutegica sobre Deus na religiatildeo da Umbanda em nosso

estudo salientamos uma consideraccedilatildeo importante para tentar entender como se expressa a

religiosidade de quem pratica esta religiatildeo

Tudo o que se faz hoje na religiatildeo da umbanda eacute pensando em Deus como o cuidado com a natureza a evoluccedilatildeo do ser humano E a experiecircncia de feacute que eacute dado estaacute naquilo que a gente vecirc ndash a luta que os umbandistas tem travado o tempo todo para manter essa religiatildeo essa cultura essa maneira de ver a divindade ser respeitada principalmente pelas outras religiotildees Este ao meu ver eacute o maior depoimento de feacute que tem a religiatildeo da Umbanda e a maneira que as pessoas que a praticam com feacute em Deus73

Embora as teologias (afro-americana e iacutendia) tenham suas temaacuteticas especiacuteficas por

razotildees oacutebvias eacute fundamental que haja uma interaccedilatildeo uma implicaccedilatildeo com a teologia

convencional utilizada pelo magisteacuterio das igrejas elaborada pelos teoacutelogos e ensinada nos

institutos de teologia Bem entendida esta relaccedilatildeo poderaacute ser reciprocamente proveitosa

Na oacutetica de uma interaccedilatildeo entre as teologias a experiecircncia emergente nas comunidades

negras questionam a formalidade e o alcance das aacutereas teoloacutegicas desde a reflexatildeo biacuteblica ateacute a

pastoral E ainda o modo como biblistas latino-americanos aprofundam suas reflexotildees eacute de

grande proveito para a comunidade afro Sobretudo quando se pode reconhecer na Biacuteblia a

existecircncia participaccedilatildeo ativa e testemunhal do povo afro na histoacuteria da salvaccedilatildeo Uma

hermenecircutica biacuteblica que assume mitos proacuteprios dos povos afro-americanos ensinamentos

proveacuterbios histoacuterias orais percebe desde aiacute uma original manifestaccedilatildeo de Deus desde as

propostas humanitaacuterias os sofrimentos resistecircncias diaacutesporas e cativeiros

Acreditarmos que seja ldquopor-aiacuterdquo onde podemos comeccedilar desenvolver pela teologia um

intenso processo de afirmaccedilatildeo da identidade afro-ameriacutendia Embora nos esforcemos devemos

reconhecer os limites deste estudo que busca apontar para realidades emergentes na vida

concreta da existecircncia humana e da vivecircncia da feacute em todos os contextos aqui refletidos

a preservaccedilatildeo a integraccedilatildeo a defesa e a valorizaccedilatildeo da cultura afro-brasileira A Uniafro eacute uma entidade combativa e autocircnoma e atuaraacute sem distinccedilatildeo de raccedila gecircnero e credo (In wwwuniafrocombr) 71 que identifica sua funccedilatildeo na Umbanda como ldquoKatetordquo ou Babalorixaacute Iorubaacute na liacutengua Bantuacute ldquoFora do santordquo - diz ele na sociedade - sou funcionaacuterio puacuteblico formado em Letras ndash inglecircs-portuguecircs tenho uma poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Administraccedilatildeo de Universidades 72 Relato de Apolocircnio para estudo de caso no desenvolvimento da pesquisa para o Mestrado em Teologia Sistemaacutetica na PUCRS (em conversa a 04 de maio de 2009 agraves 1315 minutos) 73 Ibid relato de Apolocircnio

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAFICAS APPIAH Kwame Anthony Na casa de meu pai a Aacutefrica na filosofia da cultura traduccedilatildeo Vera Ribeiro revisatildeo de traduccedilatildeo Fernando Rosa Ribeiro - RJ Contraponto 1997 BAUM Gregory Definiccedilotildees de Religiatildeo na Sociologia In Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 40[744]-41[745] BERGER PL O dossel sagrado Elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo 2 ed SP Paulus 1985 DURKHEIM Eacutemile As formas elementares de vida religiosa Satildeo Paulo Paulinas 1989 ELIADE Mircea O Sagrado e o Profano ndash a essecircncia das Religiotildees Colecccedilatildeo Vida e Cultura Traduccedilatildeo de Rogeacuterio Fernandes Livros do BrasilLisboa sd ERIKSON E Identidade Juventude e Crise Trad de Aacutelvaro Cabral Guanabara RJ 1987 FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia saberes necessaacuterios agrave praacutetica educativa SP Paz e Terra 1996 GEERTZ C A religiatildeo como sistema cultural ndash A interpretaccedilatildeo das culturas Rio de Janeiro LTC Ed 1989 GOLDMAN Marcio Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 19 (2) 09-30 1998 ndash A Experiecircncia de Lienhardt Uma Teoria Etnograacutefica da Religiatildeo HALL Stuart A identidade cultural na poacutes-modernidade traduccedilatildeo de Tomaz Tadeu da Silva Guaracira Lopes Louro ndash 10 ed ndash Rio de Janeiro DPampA 2005 JOHNSON Allan G Dicionaacuterio de sociologia guia praacutetico da linguagem socioloacutegica RJ Zahar 1997 LEVINAS E Do sagrado ao santo cinco novas interpretaccedilotildees talmuacutedicas RJ Civilizaccedilatildeo Brasileira 2001 McVEIGHT Malcolm A Compreensatildeo da Religiatildeo nas Teologias Cristatildes Africanas Concilium156 ndash 19806 Projeto ldquoXrdquo ndash O que eacute Religiatildeo pp 75[779]-80[784] MUNANGA Kabengele Rediscutindo a mesticcedilagem no Brasil ndash Identidade Nacional versus Identidade negra 3 ed - Belo Horizonte Autecircntica 2008 OLIVEIRA Reinaldo J O universo simboacutelico da religiosidade popular na periferia do morro da Cruz na cidade de Florianoacutepolis-SCrdquo [ Monografia - ITESC 2006] ineacutedita PIERUCCI A F Ciecircncias sociais e religiatildeo A religiatildeo como ruptura (In TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata ndash orgs As religiotildees do Brasil continuidades e rupturas Petroacutepolis RJ Vozes 2006) ROCHA Manoel Ribeiro Etiacuteope Resgatado Empenhado Sustentado Corrigido Instruiacutedo e Libertado ndash Discurso teoloacutegico-juriacutedico sobre a libertaccedilatildeo dos escravos no Brasil de 1758 Introduccedilatildeo criacutetica de Paulo Suess Vozes Petroacutepolis co-ediccedilatildeo com CEHILA Satildeo Paulo 1992 pp IX-X SANCHIS Pierre Inculturaccedilatildeo Da cultura agrave Identidade um Itineraacuterio Poliacutetico no Campo Religioso o caso dos Agentes de Pastoral Negros (In Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 20(2) 55-72 1999) SILVA Antocircnio A APNacutes presenccedila negra na Igreja In ATABAQUE-ASETT p 12 SUESS Paulo Dicionaacuterio de Aparecida 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do documento de Aparecida Satildeo Paulo Paulus 2007 SUESS P Evangelizar a partir dos projetos histoacutericos dos outros ndash Ensaio de missiologia SP Paulus 1995 SUSIN Luiz Carlos O Homem Messiacircnico ndash uma introduccedilatildeo ao pensamento de Emmanuel Levinas Porto Alegre Escola Superior de Teologia Satildeo Lourenccedilo de Brindes 1984 Internet - Conferecircncia Episcopal Latino Americana - CELAM wwwcelaminfo ndash pesquisa 3004 09 - Enciclopeacutedia livre httpwikipediaorg ndash Pesquisado em 100509 - Uniatildeo de Cultura Negra em SC ndash UNIAFRO - wwwuniafrocombr - pesquisa 250509

A influecircncia da religiosidade africana na sociedade brasileira o olhar de um africano

Luis Tomaacutes Domingos74

INTRODUCcedilAtildeO

Na Aacutefrica haacute uma relaccedilatildeo intima existente entre a religiatildeo e a vida social A religiatildeo africana

se integra profundamente em toda vida da comunidade Para o Africano os vivos e os mortos o

cosmo visiacutevel e o mundo invisiacutevel constituem apenas um soacute e mesmo universo A religiatildeo

africana dentro das suas diversas manifestaccedilotildees crecirc em um Deus Supremo um Ser Supremo

que eacute o soberano absoluto no que concerne ao Cosmo agrave humanidade inteira e agrave natureza As

antinomias do bem e do mal da morte e da vida que tecircm a fonte nos antagonismos inerentes aos

seres existentes natildeo potildeem em causa a unidade desta visatildeo do mundo

O nosso trabalho eacute resultado de pesquisa efetuado na Aacutefrica Moccedilambique Nel pretendemos

apresentar esta visatildeo do mundo a cosmogonia africana avanccedilando ateacute a essecircncia das

experiecircncias religiosas ou miacutesticas com intuito de comparar as religiotildees de matrizes africanas

no Brasil a religiosidade africana na diaacutespora

O encontro dos elementos culturais africanos com aqueles vindos da Europa Ocidental e

Oriente Meacutedio criou certos questionamentos em especial aquele de definir se as crenccedilas

africanas tem o meacuterito de serem consideradas como religiatildeo A resposta de Joseph KI-ZERBO

(1964) a este propoacutesito eacute sem ambiguumlidade

ldquose a religiatildeo como a crenccedila a um ser transcendente no qual eacute ligado pelos deveres e por direitos ao qual as pessoas tem contas a prestar ao qual se fazem sacrifiacutecios se imploram por alguma coisa e se agradece entatildeo haacute efetivamente religiotildees na Aacutefrica tradicional( ) Estas religiotildees crecircem quase todas em um Deus Supremo um Ser Supremo que eacute o soberano absoluto no que concerne ao Cosmos agrave humanidade inteira agrave natureza com todos os seres vivos os animais homens etcrdquo

Ainda muito restritivo esse esquema descrito pode ser estendido a todos os povos do

continente africano tanto para as populaccedilotildees da savana como para aquelas das florestas do

mundo Neoliacutetico e do mundo banto em particular A religiatildeo africana concebida como

monoteiacutesta apresenta uma concepccedilatildeo geral de Universo da vida e do homem numa totalidade

coerente que continua a moldar a alma e o comportamento dos povos africanos e de seus

descendentes Analisando esta visatildeo do mundo e a sua cosmogonia e avanccedilando ateacute a essecircncia

74 Doutor em Antropologia pela Universidade Paris VIII Franccedila (2002) Professor da Universidade Estadual da Paraiacuteba ndash Centro de Humanidades Membro do Baobah ndash Grupo de Pesquisa em Educaccedilatildeo e Religiatildeo ndash CNPq E-mail ltdomingoshotmailcom

das experiecircncias religiosas ou miacutesticas eacute possiacutevel recolher as informaccedilotildees que os grandes

iniciados africanos desejam transmitir aos que eles julgam dignos da confianccedila

A RELIGIAtildeO AFRICANA

Antropoacutelogos modernos foram obrigados a repensar o que eacute a religiatildeo Pois hoje eacute evidente

que a religiatildeo era ou eacute ainda mais complexa e profunda do que um simples ldquoreconforto socialrdquo

ela natildeo se contenta em desempenhar o papel de utilidade nas estruturas tradicionais fundadas

sobre as regras ancestrais condicionadas pelos imperativos da vida quotidiana e reforccediladas pala

ordem moral correspondente A ldquoreligiatildeordquo eacute uma apreensatildeo da realidade global da vida eacute a

possibilidade de explicar toda a realidade que faz sua forccedila e seu poder A ldquoreligiatildeordquo une a

sociedade sustenta valores manteacutem a moral impotildee ordem ao comportamento publico mistifica

o poder racionaliza as desigualdades justifica injusticcedilas e assim por diante

Pode-se hesitar empregar a palavra ldquociecircnciardquo no contexto das sociedades ditas tradicionais

Elas eram consideradas ldquo preacute-cientiacuteficasrdquo ldquopreacute-logicasrdquo no sentido de que majoritariamente

ldquoelas natildeo eram conscientes de uma alternativa possiacutevel no seus [corpus] de doutrinasrdquo

(HORTON 1967) Poreacutem encontrava-se nessas sociedades ditas primitivas uma consciecircncia

desenvolvida que era previsiacutevel graccedilas agrave observaccedilatildeo o que Levi-Strauss chamou ldquociecircncia do

concretordquo Eacute nesta loacutegica de ideacuteias que na filosofia africana natildeo existe fato social sem uma

causa dissimulada sob a razatildeo imediata Nesta ldquociecircncia concretardquo esta explicaccedilatildeo contiacutenua das

causas e das motivaccedilotildees se obstina na sua feacute agrave loacutegica interna de todas as coisas e de cada

comportamento nenhuma pessoa eacute vitima do acaso Em todas as situaccedilotildees accedilotildees e razotildees tem

sentido sob a condiccedilatildeo de seguirem o ponto de vista de algueacutem competente e de escolherem a

linha de accedilatildeo correta diante das alternativas oferecidas Na verdade o pensamento africano eacute

realmente empiacuterico face aos fenocircmenos naturais A intenccedilatildeo principal de grande parte do

ldquognosesrdquo africano parece ser o de estruturar as ligaccedilotildees profundas entre os fenocircmenos no espaccedilo

e tempo o que o pensamento cristatildeo estima ser aleacutem do seu domiacutenio Assim a aspiraccedilatildeo

autecircntica que se esconde em grande parte do pensamento religioso africano eacute evidente trata-se

de uma tentativa de explicar e influenciar os mecanismos do mundo quotidiano descobrindo os

princiacutepios constantes que satildeo subjacentes ao caos desordem aparente e ao fluxo de experiecircncia

sensorial Na tradiccedilatildeo africana a dicotomia natildeo existe a apreensatildeo eacute total O pensamento natildeo se

interessa apenas no que era mas tambeacutem no que seria por aquelas razotildees Ele eacute imperativo e ao

mesmo tempo explicativo

Assim dizia Radcliffe-Brown

ldquoA funccedilatildeo social da religiatildeo eacute independente de sua verdade ou do seu erro e as religiotildees que achamos falsas ou mesmo absurdas e repugnantes como aquelas das tribos selvagens podem desempenhar um papel importante e eficaz no mecanismo social sem essas religiotildees [ditas] ldquofalsasrdquo a

evoluccedilatildeo social e o desenvolvimento da civilizaccedilatildeo moderna seria impossiacutevelrdquo ( RADCLIFFE- BROWN 1968 231)

Segundo os africanos Bantos eacute o munthu (ser humano) que deve nos dizer o que significa

para ele o termo religiatildeo Para os Bantos a religiatildeo eacute uma relaccedilatildeo profunda de uniatildeo entre os

homens e os espiacuteritos Ela eacute parte integrante de uma cultura vivida como um todo ligados pelos

elementos indissociaacuteveis e cujas normas regem todas as expressotildees de vida coletiva e

individual

ldquo Para compreendermos o lugar que ocupa a religiatildeo tradicional para os Bantos e o papel que ela desempenha na cultura Banta e negrondashafricana em geral deveriacuteamos acompanhar o homem africano desde seu nascimento ateacute sua morte e constatar assim que a sua vida individual e coletiva se banha numa atmosfera religiosardquo (LALANDE 1962)

Encontramos esta filosofia nas meditaccedilotildees e na manipulaccedilatildeo das coisas e dos homens pelos

iniciados africanos nos ritos da fecundidade nas danccedilas onde a vontade e a beleza se rivalizam

nos ritos de nascimento de passagem agrave vida adulta de casamento como nos ritos funeraacuterios

Para os Bantos a religiatildeo natildeo eacute uma evasatildeo nem eacute o meio de consolaccedilatildeo nem eacute sequer um

degrau ou escala em direccedilatildeo ao divino A religiatildeo antes de tudo eacute uma maneira de ver estar e

de ser no mundo Ou seja a aplicaccedilatildeo na rotina quotidiana dos princiacutepios filosoacuteficos admitidos

por toda sociedade negro-africana O homem eacute o uacutenico ser vivo que pode construir o caminho

para a fonte energeacutetica situada no Aleacutem que lhe permite dar a essecircncia e seguranccedila e de

perpetuar a sua existecircncia material Neste sentido a relaccedilatildeo entre o setor fiacutesico e o espiritual eacute

estreita Um natildeo se concebe sem outro Os homens praticando o culto aos seus ancestrais

reforccedilam a sua potecircncia miacutestica Pois os ancestrais satisfazem e garantem o bem estar dos vivos

O elemento apropriado e comum agraves religiotildees africanas eacute entatildeo o culto dos antepassados

VISAtildeO DO MUNDO

Segundo a visatildeo africana o universo tem o significado profundamente religioso e a vida do

homem eacute uma experiecircncia religiosa deste Universo O Universo eacute atemporal e natildeo-espacial

espaccedilo e tempo se confundem numa apreciaccedilatildeo comum O Cosmos eacute a propriedade do Criador

de todas as coisas aquele onde tudo encontra a sua origem no ceacuteu e na terra

Confrontado ao enigma do seu destino e ao misteacuterio do universo que o rodeia o homem

africano se organiza e se adapta a uma ordem objetiva de representaccedilatildeo e de significaccedilatildeo

cosmoloacutegicas que o asseguram psicologicamente e o integram com equiliacutebrio no corpus social

Eacute portanto a serviccedilo do ser humano munthu que se engaja na historia que as sociedades

africanas elaboram um sentido religioso do mundo Assim a vida do Universo se organiza numa

hierarquia na qual o munthu ocupa o centro Este valor que eacute a vida humana na sociedade

Banto serve de criteacuterio para o julgamento em relaccedilatildeo a todos os outros valores Constata-se que

quase todas as preces e invocaccedilotildees agrave Deus se concebem e pedem para restaurar a ordem

harmoniosa o equiliacutebrio da vida humana maat Como diz o proveacuterbio Sena-Banto ldquoDeus

lsquoordenoursquo o mundo Ele criou as coisas de uma maneira ordenada um mundo harmonioso na

qual cada um pode desempenhar a sua funccedilatildeordquo Natureza e espiacuterito satildeo inseparaacuteveis Tudo eacute

integral e integrado numa totalidade global o homem vivo eacute ligado ao mundo dos antepassados

que o unem agraves forccedilas e mateacuterias do Cosmos

Assim vaacuterios mitos cosmogonicos existem para explicar o iniacutecio da organizaccedilatildeo universal

para descrever a atividade criadora com metaacuteforas como a do construtor de celeiro de obras de

ceracircmicas etc Atos de criaccedilotildees humanas simbolizam o ato de organizaccedilatildeo do Criador Ou seja

o pensamento cosmoloacutegico africano eacute essencialmente antropocecircntrico Vaacuterios relatos afirmam

que desde a origem o homem foi ldquoconfeccionadordquo a partir dos elementos naturais ldquoo

semelhante produz o semelhanterdquo Nesta dinacircmica o pensamento africano se preocupa em

estabelecer relaccedilotildees de equiliacutebrio de solidariedade de harmonia e participaccedilatildeo com o

Universo

De uma maneira geral a relaccedilatildeo antropocecircntrica tem um impacto real sobre a existecircncia

concreta do negro-africano sua organizaccedilatildeo da sociedade na medida em que a estrutura de

universo reproduz aquela da sociedade na sua forma de conceber o significado profundo das

coisas na sua filosofia da vida e no destino de homem

O universo visiacutevel eacute concebido e sentido como o sinal ou a concretizaccedilatildeo do universo

invisiacutevel e vivo constituiacutedo de forccedilas dinacircmicas equilibradas harmoniosas em movimento

perpeacutetuo Eacute importante insistir na ideacuteia de que na Aacutefrica o lado visiacutevel e aparente das coisas

corresponde sempre a um aspecto invisiacutevel e escondido que eacute como a fonte ou o principio

Assim como do dia sai a noite toda coisa conteacutem o aspecto noturno e o aspecto diurno uma

face aparente e uma face escondida A cada ciecircncia aparente corresponde quase sempre uma

ciecircncia mais profunda especulativa e pode-se dizer ldquoesoteacutericardquo baseada na concepccedilatildeo

fundamental da unidade da vida e de inter-relaccedilatildeo no seio dessa unidade em todos os diferentes

niacuteveis da existecircncia

Nesta unidade coacutesmica onde tudo estaacute inteiramente ligado o comportamento do homem

face a ele mesmo diante do mundo que o rodeia eacute objeto de uma organizaccedilatildeo ritual especiacutefica

podendo variar conforme cada povo e regiatildeo da Aacutefrica O conhecimento para o negro-africano

eacute integral global e vivo Eacute nesta perspectiva que as pessoas idosas na Aacutefrica satildeo consideradas

depositaacuterias do conhecimento e comparadas a uma vasta biblioteca com muacuteltiplas prateleiras

ligadas entre elas por invisiacuteveis conexotildees que constituem precisamente esta ldquociecircncia do

invisiacutevelrdquo autenticada por canais de transmissatildeo iniciaacutetica de tradiccedilatildeo negro-africana Esta eacute a

funccedilatildeo social que era destinada agrave filosofia dentro do quadro das sociedades iniciaacuteticas aquela

de ser portador e conservador do sentido humano global de praacuteticas que se apresentam na vida

todos os dias sob as suas formas diferenciadas Ao querer estabelecer uma concordacircncia mais

precisa com as categorias proacuteprias ocidentais europeacuteias arrisca-se a deixar de fora o que eacute

precisamente o essencial em relaccedilatildeo ao pensamento africano Como dizia Cheik Anta DIOP

(1967 p 214)rdquopara penetrar profundamente a complexidade da realidade africana um

contacto (sic) direto com o meio eacute necessaacuterio um conhecimento das liacutenguas africanasrdquo

A harmonia das concepccedilotildees proacuteprias ao pensamento de Aacutefrica natildeo eacute uma simples coerecircncia

da feacute com o efeito da razatildeo com a tradiccedilatildeo ou do pensamento essencial com a realidade

contingente Eacute uma coerecircncia uma compatibilidade global de todas as disciplinas do

conhecimento O conhecimento global e universal exige uma interaccedilatildeo de pontos comuns dos

benefiacutecios muacutetuos exige o desenvolvimento de comunicaccedilatildeo e trocas com os pensamentos de

outras culturas

TEMPO E ESPACcedilO NA VISAtildeO AFRICANA

O fundamento e o substantivo no sistema de natureza e da ordem das coisas eacute o homem ele

estabelece as relaccedilotildees de comunidade e de comunhatildeo com cada plano da Criaccedilatildeo Um dos

fundamentos da arte de viver africana eacute a ldquoparticipaccedilatildeordquo ou a comunhatildeo profunda com a

natureza Eacute neste elemento que podemos buscar situar as diferenccedilas entre o modo de viver dos

ocidentais e dos africanos Para o Ocidente um projeto maior eacute aquele de controle de

dominaccedilatildeo e de transformaccedilatildeo da natureza mesmo se natildeo possui ainda os meios teacutecnicos Para

os africanos o projeto maior eacute aquele de vida em harmonia com a natureza mesmo se engajado

em um projeto moderno de transformaccedilatildeo Para eles o primeiro mal eacute a desintegraccedilatildeo O bem eacute

a integraccedilatildeo ou a participaccedilatildeo Mais do que em outros lugares o negro-africano pressente esta

participaccedilatildeo total na vida humana no tempo eacute a grande famiacutelia que compreende os ancestrais

os mortos e aqueles que viratildeo Eacute a noccedilatildeo de um ldquotempo oscilante lsquo(MAURIER 1976 p 129)rsquo

que se adiciona sempre agravequele que eacute um pouco mais um tempo relacional em forma de espiral

que avanccedila atraveacutes de ciacuterculos e ritos sem constituir um ciacuterculordquo Um tempo ativo dinacircmico

integrando nos gestos novos as novas relaccedilotildees um tempo diversificado e cumulativo na

atividade dramaacutetica da vida da comunidade Toda ideacuteia de separaccedilatildeo eacute eliminada O homem eacute o

verdadeiro fundamento de tudo Ele eacute um ldquodeusrdquo ele natildeo pode separar-se de si proacuteprio como

tambeacutem natildeo pode separar-se dos outros elementos da natureza O tempo do homem e a

atividade humana se confundem intimamente unidos Natildeo haacute escatologia para concluir o fim

dos tempos na Aacutefrica negra tradicional O tempo jaacute eacute pesado carregado cheio No entanto

passado e futuro interessam ao homem somente na medida em que influem sobre seu presente

Na concepccedilatildeo global do mundo entre os africanos o tempo eacute o lugar onde o homem pode

lutar sem cessar contra a desintegraccedilatildeo ou pela integraccedilatildeo de sua energia vital Cada coisa tem

seu lugar e seu tempo Quando este princiacutepio eacute respeitado fortifica-se o ser pode-se afrontar o

tempo descontiacutenuo e viver plenamente na total diversidade

Comentava Bouah

ldquoTodo este tempo (tempo da circuncisatildeo tempo da excisatildeo tempo da organizaccedilatildeo das classes de idade tempo das iniciaccedilotildees etc tem uma ligaccedilatildeo estreita com as divindades do paiacutes As datas de culto dos deuses escrevem-se tambeacutem em periacuteodos em cerimocircnias religiosas de interesse geralrdquo (BOUAH 1964 p 153)

Assim se encontra consagrado o tempo do homem aquele da conquista de si proacuteprio de sua

essecircncia de seu direito agrave existecircncia Este tempo eacute importante Ele constitui o referencial

privilegiado da inteligecircncia da doutrina sobre Deus o homem a humanidade e a natureza

Humanizar a dialeacutetica da vida e assumir a continuidade da sua existecircncia (perpetuidade da

famiacutelia) satildeo o fundamento da vocaccedilatildeo e da aventura do homem

Eacute essencial compreender essa noccedilatildeo de tempo na Aacutefrica pois ela estaacute ligada agrave noccedilatildeo de

personalidade coletiva tal qual se manifesta no continente No contexto do pensamento negro-

africano a vida humana tem um outro ritmo diferente daquele da natureza ritmo que nada pode

destruir Para os indiviacuteduos observa-se um ritmo que inclui o nascimento a puberdade a

iniciaccedilatildeo o casamento a procriaccedilatildeo a entrada na comunidade e a morte

O ESPACcedilO

O universo no qual vive e morre o homem africano se compotildee de dois espaccedilos ou mundos

distintos Um escondido e invisiacutevel eacute o mundo de todos os seres espirituais o outro visiacutevel e

observaacutevel o mundo dos homens dos animais dos vegetais e de todo reino mineral O homem

se encontra em harmonia com aqueles que estatildeo vivos e com aqueles que partiram A religiatildeo

tradicional dos africanos eacute normalmente destinada a manter as relaccedilotildees com os ancestrais

As ldquocategorias essenciais dos seresrdquo no Universo Negro-Africano-Banto satildeo assim

representadas

I Espaccedilo Invisiacutevel 1 Deus 2 Os espiacuteritos II Espaccedilo Visiacutevel A Mundo Animado 3 Os homens 4 Os animais B Mundo agrave margem da vida 5 Os vegetais C Mundo Inanimado 6 Os minerais

DEUS MULUNGU NZAMBI

Antes de tudo Deus eacute incompreensiacutevel aquele que a inteligecircncia humana natildeo pode

compreender aquele cuja ldquoatituderdquo derrota a razatildeo humana O homem se submete agrave lei do seu

destino porque consente ldquo Ė Deus que o fezrdquo

Na realidade a presenccedila de Deus penetra a vida tradicional africana como a presenccedila de um

Ser superior pessoal e misterioso As pessoas recorrem a Ele nos momentos solenes da vida e

nas horas criacuteticas Todas as vezes que se precisa desafiar o medo Deus eacute invocado como Baba

o Pai As preces que lhe destinam seja individualmente seja coletivamente satildeo espontacircneas e

agraves vezes comoventes Enquanto as formas de sacrifiacutecios se distinguem pela sinceridade de

significados

Mulungu ou Nzambi Deus eacute a explicaccedilatildeo uacuteltima da origem e da substacircncia do homem e de

todas as coisas Os princiacutepios que datildeo vida ao homem vem de Deus Esta eacute a resposta mais

precisa que se pode recolher da boca dos saacutebios africanos Ningueacutem sabe como as origens os

princiacutepios vitais foram unidos ao corpo e o fenocircmeno da reproduccedilatildeo continua a ser para o

homem para o animal para os vegetais no estudo da psicologia de todos os povos do mundo

um misteacuterio Para tentar explicar esse misteacuterio os homens inventam os mitos Escreveu

Tempels sobre o Ser Supremo Deus do africano

ldquo[Ele] eacute grande o Munthu [ser humano grande] a pessoa

grande quer dizer a grande forccedila viva () o Saacutebio que domina todas as coisas e conhece a essecircncia de todo ser que sonda a mateacuteria e a natureza de toda as forccedilas no sua profundeza Ele eacute a forccedila que possui para ele mesmo a energia criadora e que faz surgir todas as outras forccedilasrdquo (TEMPELS 1965 2839)

Todas as divindades foram criadas pelo Ser Supremo Este estatuto lhe eacute atribuiacutedo

reconhecido sobretudo nos mitos da vida quotidiana nos atos religiosos como nos maacutegicos E

por conseguinte esses mitos contam de forma dramaacutetica a histoacuteria do inicio do mundo Os

espiacuteritos aparecem agraves vezes em circunstacircncias onde cometem pequenos enganos na criaccedilatildeo

enganos dos quais o ser Supremo o ldquoGrande Deusrdquonatildeo estaacute excluiacutedo

A explicaccedilatildeo uacuteltima de origem da substacircncia que compotildee o homem e todas as coisas eacute de

que os princiacutepios que animam o homem vecircem de Deus Mas se o Ser Supremo eacute criador de

todas as coisas e se a sua vontade condiciona a realizaccedilatildeo de toda outra vontade incluindo

aquela das divindades inferiores ele natildeo deu a cada uma dessas criaturas um poder que lhe eacute

proacuteprio Assim o futuro das coisas e dos seres desejado pelo Criador eacute um dom total Esta

atitude natildeo se resume a uma resignaccedilatildeo individual ou coletiva ou mesmo agrave omissatildeo diante dos

eventos suscetiacuteveis de se produzirem A convicccedilatildeo de que nada se reproduz se situa fora dos

planos iniciais do Criador o que natildeo significa que os homens possam saber com antecedecircncia

como deveriam ou como poderiam fazer O criador sua forccedila seu nome verdadeiro aparece

tanto nas proclamaccedilotildees verbais como nos comportamentos habituais ou tradicionais e acidentais

ou extraordinaacuterios Este poder ou forccedila natildeo fiacutesica nthu ou espiacuterito pode agir para o bem ou para

o mal Esta forccedila pode tomar em possessatildeo os seres vivos mas circula livremente no universo e

natildeo estaacute fixada a um objeto particular Num Universo concebido como um verdadeiro campo de

virtude de forccedilas ou de poderes soacute as forccedilas inferiores agraves do Ser Supremo podem se associar ou

dissociar-se mais ou menos com eficaacutecia Nenhuma dessas forccedilas inferiores pode entrar em

conflito com a forccedila Suprema

BAZIMU OS ESPIRITOS

Denominam-se Bazimu os espiacuteritos compostos de seres sobre-humanos e de homens mortos

haacute longo tempo Os mortos portam o nome de ldquoWazimurdquo ou ldquoBazimurdquo sendo que este ldquoUrdquo final

indica que eles tiveram a vida mas natildeo tem mais Se os africanos tem o haacutebito de dizer que os

ancestrais ou mortos ldquosatildeordquoe exercem certas atividades natildeo se deve entender por essa afirmaccedilatildeo

que eles vivem mas simplesmente que eles existem e que mesmo morrendo natildeo deixaram de

existir A vida eacute portanto o privileacutegio dos habitantes da terra

O sentimento religioso nos Banto e nos africanos em geral estaacute fixado sobre os espiacuteritos dos

antepassados e natildeo diretamente sobre um Deus Ser-Supremo como eacute comum no judaiacutesmo e

cristianismo Para os Bantos o antepassado fundador natildeo aparece como um ldquodeus preguiccedilosordquo

que depois de realizar as suas obras retirou-se para longe dos homens A sua intervenccedilatildeo eacute dar

vida agrave mateacuteria preacute-existente e disforme A propoacutesito falando dos povos Bantos Francisco de

Sousa escrevia em 1710 ldquoEles natildeo adoram os iacutedolos toda sua supersticcedilatildeo lhes levam a

venerar um muzimus Os muzimus satildeo os seus santos e os seus santos satildeo os mortosrdquo

(SOUSA 1710 p 843) Em contrapartida Kar MAUCH (1971) se aproximou de uma das

verdadeiras caracteriacutesticas de muzimu quando ele escreveu ldquoO mutsimo [sic] eacute sempre o

espiacuterito do membro defunto da famiacuteliardquo

Na realidade o conceito de Muzimu natildeo eacute simples pois ele pode designar natildeo somente o

antepassado de cada um mas tambeacutem a uniatildeo de todos os antepassados da linhagem Os

espiacuteritos (orixaacutes) satildeo feitos dos seres sobre-humanos e dos espiacuteritos dos homens mortos haacute

longo tempo Eacute importante relembrar que a religiatildeo africana sob suas formas atuais dirige-se de

preferecircncia agraves personalidades secundaacuterias espiacuteritos ancestrais gecircnios que vivem na florestas

nos rios mares fontes etc

Os espiacuteritos tem uma dupla explicaccedilatildeo portanto satildeo de dois tipos uns satildeo a personificaccedilatildeo

da forccedila da natureza outros satildeo simplesmente os ancestrais heroacuteis ou condutores mediadores

dos povos idealizados depois da sua morte e que tornaram-se referencias espirituais presentes

nos seus descendentes Eles fortificam a coesatildeo do seu povo Este eacute o caraacuteter eminentemente

social das religiotildees africanas como jaacute temos mencionado desde o principio deste trabalho A

presenccedila dos espiacuteritos eacute fortemente sentida pelos africanos que vivem a sua religiosidade e

mesmo por aqueles que adotam ou se convertem a uma outra religiatildeo Agraves vezes os espiacuteritos

estatildeo ligados a uma famiacutelia ou a um clatilde ateacute a uma pessoa Eles satildeo os gecircnios protetores das

pessoas da aldeia do territoacuterio etc Uns satildeo beneacuteficos e outros satildeo maleacuteficos Uns e outros

contribuem para uma ordem do mundo e constituem um verdadeiro mundo dos espiacuteritos sob a

autoridade do Grande Espiacuterito Mulungu Nzambi Deus

Os bantos de uma forma geral distinguem todo ser que eacute perceptiacutevel aos oacutergatildeos dos sentidos

e ldquoagrave coisa em sirdquo chi-nthu Este uacuteltimo termo nthu significa a modalidade interna a natureza

da essecircncia ou da forccedila Numa linguagem imaginaacuteria os Bantos exprimem isso dizendo ldquoem

todo ser se encontra escondido um outro ser no homem haacute o invisiacutevel o outro pequeno

homemrdquo (TEMPELS 1965 p 27) Este pequeno homem natildeo morre e fica sempre escondido

atraacutes de forma exterior visiacutevel e continua a existir depois da morte Assim o termo Munthu

Banthu natildeo pode ser traduzido em termo ocidental de ldquohomemrdquo Porque o munthu tem

naturalmente um corpo visiacutevel mas este natildeo eacute o proacuteprio Munthu

Assim os mortos transformam-se em ldquoWazimurdquo Para os Bantos os espiacuteritos satildeo

essencialmente criadores do Ser Supremo mas tambeacutem satildeo a obra do saber e da palavra dos

homens Como constatou Henri Junod

ldquoPara eles [os Bantos] os psikwembu [Wazimu] satildeo os mestres de todas as coisas da terra dos campos das arvores da chuva dos adultos das crianccedilas e mesmo os pais dos santos Eles satildeo todo-poderosos sobre os objetos e todas as pessoas Os espiacuteritos podem abenccediloar se as colheitas satildeo abundantes eacute porque eles fizeram os esforccedilos para multiplicar os cereais e se engajaram para evitar a sua destruiccedilatildeo Se vocecircs encontrarem a atmosfera do vinho de palma eacute porque os espiacuteritos vos enviaram essa abundanciaMas os espiacuteritos tambeacutem podem amaldiccediloar e lanccedilar sobre a sua descendecircncia certas maldiccedilotildees sem fim Se haacute falta da chuva a sua fuacuteria eacute a causa () Na verdade toda doenccedila toda calamidade podem vir delesrdquo (JUNOD 1936 ndeg 143 pp341-342)

Assim os defuntos natildeo vivem mas eles existem Os mortos penetram o domiacutenio do

conhecimento profundo das forccedilas naturais e vitais que natildeo podem geralmente ser idecircnticos aos

dos vivos A multiplicidade de formas que pode tomar o culto prestado aos espiacuteritos dos

antepassados chamado de culto dos antepassados acaba por esconder o culto ao Ser Supremo

Deus Os espiacuteritos dos antepassados satildeo tambeacutem sujeitos agraves paixotildees humanas inveja oacutedio e

vinganccedila amor generosidade Por isso existem sacrifiacutecios ritos cerimocircnias para apaziguar a

fuacuteria dos antepassados pedir-lhes as suas becircnccedilatildeos proteccedilatildeo auxiacutelio e sua intercessatildeo juntos ao

Grande Espiacuterito Deus

MUNTHU O HOMEM

Munthu o homem compreende os seres humanos que estatildeo ainda vivos e aqueles que estatildeo

para nascer Todos os seres vivos se reconhecem pelo fato que agem e reagem geralmente de

uma maneira consciente se desenvolvem e exercem certas atividades internas e externas graccedilas

aos princiacutepios vitais que lhes animam Os homens e os animais possuem a caracteriacutestica mais

distintiva do ser vivo ou seja a vida fiacutesica graccedilas agrave qual podem agir sobre o mundo exterior

com vista ao seu proacuteprio desenvolvimentoMas eacute o conhecimento e a aplicaccedilatildeo deste

conhecimento na vida praacutetica que faz com que o homem seja um ser ldquoSuperiorrdquo na escala dos

seres vivos E eacute somente neste contexto que o homem se torna Munthu isto eacute o homem no seu

estado integral e integrante

O homem na realidade eacute a siacutentese de tudo que existe o recipiente por excelecircncia da forccedila

suprema e ao mesmo tempo o local para onde convergem as forccedilas existentes Ele eacute o ponto de

encontro de todas as forccedilas do universo investidas pelo Ser-Supremo Deus portanto

participando dele mesmo Nesta percepccedilatildeo de munthu o espaccedilo e o tempo natildeo satildeo entidades

separadas mas sim um conjunto uacutenico e complexo espaco-tempo no qual um e outro se

relacionam profundamente na sua essecircncia O homem eacute um ser complexo habitado pela

multiplicidade de entidades-forccedilas em movimento permanente Assim o munthu natildeo eacute um ser

estaacutetico concluiacutedo O seu potencial especifico humano se desenvolve e vai se desenvolvendo ao

longo da sua fase ascendente da vida em funccedilatildeo do terreno e das circunstacircncias encontradas As

forccedilas desenvolvidas por esta potencialidade estatildeo em perpeacutetuo movimento assim como no

proacuteprio Cosmos Mas o homem eacute igualmente constituiacutedo por elementos mais pesados cuja a

vocaccedilatildeo essencial eacute de ser ldquointerlocutorrdquo de Mulungu Deus Ele recebeu como heranccedila uma

parcela da potecircncia criadora divina

Poreacutem o drama do Munthu se revela nos conflitos originados pela dualidade de forccedilas que

vivem nele a ruptura de harmonia das forccedilas coacutesmicas ruptura do equiliacutebrio de si mesmo

causando o oacutedio a vinganccedila o desespero etc

Certos componentes do homem satildeo heranccedila outros satildeo dom e outros ainda existem porque o

indiviacuteduo decidiu integraacute-los reforccedilaacute-los e consentiacute-los atraveacutes de diversos sacrifiacutecios e rituais

que exigem esta integraccedilatildeo Todos esses componentes satildeo vivos moacuteveis e se transformam O

munthu deve exercer a sua vigilacircncia permanente para conservaacute-los e fazer convergir todas as

energias que ele sente e das quais eacute resultante E eacute neste sentido que o Negro-Africano considera

que o homem estaacute vivo em um equiliacutebrio fraacutegil Mas o homem estaacute consciente da auto-

transformaccedilatildeo constante porque ele estaacute constantemente agrave procura de equiliacutebrio em funccedilatildeo dos

componentes ricos e em movimento

Viver eacute fazer a gestatildeo da pluralidade dos componentes pessoais explorando os recursos da

natureza Este meio ambiente eacute fato da vida de forccedila ou energia e enfim de virtude Esta vida

eacute certamente a vida de todos os seres vivos homens animais vegetais minerais etc Mas eacute

igualmente a vida dos antepassados das entidades divinas diversas e do Ser Supremo O meio

ambiente em que vive o homem eacute tambeacutem constituiacutedo de forccedilas ou energias da natureza de

diversas formas como o caso de fogo terra aacutegua vento etc que se enquadram no processo de

desenvolvimento integral do homem O individuo deve se comportar de maneira a estar de

acordo com as outras forccedilas superiores e inferiores agraves suas afim de conciliar os seus efeitos

positivos A sauacutede aparece entatildeo como consequumlecircncia ideal desta harmonia Se o fio de vida se

desliga isso causa a solidatildeo uma ruptura que conduz agrave doenccedila e ateacute agrave morte social ou fiacutesica do

individuo E eacute por isso se praticam dois tipos de rituais o que se pratica para a prevenccedilatildeo e o

que se desenvolve com um caraacuteter curativo

O homem recorre aos siacutembolos para estar situado no Universo no decorrer da vida e estaacute

ligado psicologicamente fisicamente agrave fonte primeira-primordial Sendo siacutentese do universo e

da diversidades de forccedilas de vida o homem eacute designado como ponto de equiliacutebrio onde se

encontram atraveacutes dele diversas dimensotildees das quais ele eacute portador E eacute neste sentido que o

homem tem o meacuterito de receber o nome de Maat interlocutor de maa-nala e garantia do

equiliacutebrio da criaccedilatildeo Em virtude das regras estabelecidas pela ldquocrenccedila tradicionalrdquo natildeo se pode

invadir a natureza cortar indiscriminadamente os vegetais matar os animais poluir a aacutegua etc

Existem leis precisas que determinam o comportamento de maat nesses domiacutenios leis que natildeo

podem ser violadas e sem que possam afetar o equiliacutebrio da natureza e das forccedilas e podem

voltar-se contra a proacutepria pessoa criando-lhe perturbaccedilotildees consideraacuteveis O homem aparece no

mundo sobretudo neste caso como um ser chamado a preservar a multiplicidade de seres da

natureza para natildeo cair no caos Assim do comportamento conforme a lei sagrada dos

antepassados dependeraacute a prosperidade da terra o equiliacutebrio das forccedilas da natureza etc A

tradiccedilatildeo Negro-africana se preocupa com o ser humano tanto com a variedade dos seres

inferiores ou complementares chamado agrave ordenar e unificar assim como a encontrar o seu justo

lugar no meio mais vasto que eacute a comunidade humana e o mundo dos seres vivos

PINHAMA NA MITHI OS ANIMAIS E PLANTAS E A VIDA BIOLOGICA

Esta escala dos seres no Universo na Cosmologia do Negro Africano toma forma de vida e

torna-se real por causa do homem que lhe daacute um tipo de ldquoselo de objetividaderdquo atraveacutes da sua

razatildeo O homem africano traz de si proacuteprio esta filosofia que assume um valor por si mesmo O

homem imagina a criaccedilatildeo e atraveacutes dessa imagem aceita-a Definitivamente esta visatildeo de

mundo eacute espiritualista porque coloca o homem face a face com a transcendecircncia A simples

contemplaccedilatildeo do universo celeste o silecircncio da floresta o apego agrave terra podem ser algumas das

atitudes hieraacuteticas que provocam uma experiecircncia religiosa As organizaccedilotildees social poliacutetica e

econocircmica estatildeo em relaccedilatildeo com o sistema de crenccedilas e de representaccedilotildees religiosas As

proacuteprias teacutecnicas como aquelas dos ferreiros ou dos tecelotildees satildeo ligadas agraves crenccedilas e praacuteticas

religiosas

O homem por consequumlecircncia natildeo estaacute exilado no mundo em termos antropoloacutegicos Deus eacute

criador e alimenta o homem os espiacuteritos explicam o destino de homem Portanto o homem estaacute

no centro os animais as plantas os fenocircmenos naturais e os objetos constituem o meio onde ele

vive e lhe proporcionam os meios da sua existecircncia em caso de necessidade o homem

estabelece uma relaccedilatildeo miacutestica com elesO homem agrave luz do seu destino eacute algo natildeo acabado e

assim o sentido total da sua existecircncia lhe escapa A sua verdade eacute aquela de um horizonte

indefinido infinito em constante mudanccedila um abismo sem fundo que se caracteriza no tempo

circular Enfim eacute o homem que procura a sim mesmo

O homem negro-Africano se revela na conquista do seu destino e aparece como um desejo

de viver plenamente num percurso em vista da sua realizaccedilatildeo integral O espiacuterito e a natureza

satildeo inseparaacuteveis Um todo integral e integrado uma totalidade global Ė uma concepccedilatildeo unitaacuteria

da vida uma totalidade global Esta observaccedilatildeo eacute essencial para a compreensatildeo da realidade

africana Aliaacutes Alexis Kagame compreende da mesma forma a concepccedilatildeo banto de mundo

ldquoO Preexistente fez surgir [os antepassados] comeccedilando a

existir eles foram criados E estes por seu turno fizeram surgir os membros de tal sociedade e fictivamente ou realmente os elementos culturais na qual vivem os seus descendentes E nesse surgimento e criaccedilatildeo foi atribuiacuteda agrave potecircncia da Divindade ela eacute analogamente atribuiacuteda aos antepassados pelo fato que eles satildeo criaturas na ordem diferente da sua escalardquo ( KAGAME 1976 p 155)

Deus os antepassados a tradiccedilatildeo os mortos os gecircnios os seres vivos os fenocircmenos

naturais ( a chuva vento animais) e astronocircmicos (sol lua estrelas) a palavra humana a danccedila

a muacutesica os saberes as teacutecnicas(meacutedicas farmacecircuticas) a invocaccedilatildeo legendaacuteria ou histoacuterica

do passado as artes as ideacuteias as sabedorias revelados nos proveacuterbios as iniciaccedilotildees e a magias

os trabalhos enfim toda a vida em todas suas manifestaccedilotildees reais ou imaginarias constituem

uma mecacircnica que une o Universo inteiro Portanto eacute uma relaccedilatildeo ontoloacutegica

Na visatildeo do mundo negro Africano natildeo haacute um olhar que circula apenas agrave volta de um soacute

homem mas sim de toda a comunidade O ser humano possui ldquoforccedila vitalrdquo um Espiacuterito que se

integra no universo dos gecircnios na temporalidade Este principio imaterial natildeo eacute um ser

imaginaacuterio Ele existe Ele cria a imaginaccedilatildeo (faculdade misteriosa e real que natildeo pode ser

confundida com fantasmas do imaginaacuterio) Quando esta imaginaccedilatildeo atinge um certo degrau o

homem torna-se capaz de visatildeo E ele entra em relaccedilatildeo com os espiacuteritos que vivem fora dele os

tais gecircnios as almas dos mortos etc Assim ele ldquoconcretiza e abstrairdquo e lhes daacute imagem e

forma conhecendo desta feita a imortalidade

A RELIGIAtildeO AFRO-BRASILEIRA A RELIGIOSIDADE AFRICANA NA

DIASPORA

O conceito da religiatildeo que adotamos se integra na perspectiva da antropologia interpretativa

de Clifford Geertz

ldquoUm sistema de siacutembolos que atua para estabelecer poderosas penetrantes e duradouras disposiccedilotildees e motivaccedilotildees nos homens atraveacutes da formulaccedilatildeo de conceitos de uma ordem de existecircncia geral e vestindo esses concepccedilotildees com tal aura de fatualidade que as disposiccedilotildees e motivaccedilotildees parecem singularmente realistasrdquo( GEERTZ 1978105)

A religiosidade Africana na diaacutespora estaacute representada no Brasil como batuque em Porto

Alegre candombleacute angola e umbanda em Satildeo Paulo e Rio de Janeiro candombleacute keto em

Salvador xangocirc em Recife e tambor de mina em Satildeo Luis de Maranhatildeo No candombleacute os

grupos satildeo repartidos em ldquonaccedilotildeesrdquo que podem ser agrupados em duas grandes matrizes yoruba

Dahomeacute (Jejeacute ndashNagocirc) e Banto (Angola ndashMoccedilambique) etc E a presenccedila da cultura Afro-

brasileira vai muito aleacutem da que se vecirc nos grupos com os quais ela manteacutem relaccedilotildees de

afinidade Esta cultura de matrizes Africana possui inuacutemeras reinterpretaccedilotildees de diversas

maneiras e com as diferentes finalidades religiosos culturais comerciais turiacutesticas financeiras

etc A religiosidade africana na diaacutespora tem pela sua dinacircmica de trocas simboacutelicas e de

muacuteltiplos diaacutelogos o seu conceito semioacutetico correspondecircncias expressivas ao longo da

historia E eacute deste modo que a religiatildeo Afro-brasileira em seus vaacuterios aspectos diacrocircnicos e

sincrocircnicos local nacional e internacional particular e geral enfim nos vaacuterios significados que

seus elementos simboacutelicos se identificam no discurso social

Natildeo temos informaccedilotildees exatas sobre o inicio das praacuteticas de tradiccedilotildees religiosas africanas no

Brasil O que se sabe eacute que os escravos continuaram suas culturas de origem africana no Brasil

sobretudo as suas praacuteticas religiosas Comparando com outros componentes da cultura africana

que sobreviveram no Brasil constata-se que os elementos religiosos foram os que melhor

sobreviveram( RODRIGUES 1945) Um dos testemunhos mais antigos de praacuteticas religiosas

africanas no Brasil eacute o texto de uma denuacutencia que Sebastiatildeo Barreto fez em 1618 agrave inquisiccedilatildeo

quando da sua visitaccedilatildeo na Bahia Segundo esta noticia os negros haviam matado animais

quando de um enterro e lavado o morto com sangue pois teriam afirmado que ldquo nesse caso a

alma deixa o corpo para subir ao ceacuteurdquo (BASTIDE 1989186) Em outras descriccedilotildees de ritos

fuacutenebres chamou a atenccedilatildeo para o fato de que os negros entoavam cantos acompanhados de

tambores e chegavam agraves vezes ateacute a danccedilar Estas descriccedilotildees dentre outras nos mostram a

presenccedila de diferentes praacuteicas religiosas por ocasiatildeo de rituais fuacutenebres de africanos no Brasil

Muitos documentos da eacutepoca da escravatura descrevem a presenccedila de praacuteticas religiosas de

origem africana eacute a questatildeo de magia O tema aparece muitas vezes tanto nos relatos de

viajantes como nos boletins policiais e nos documentos da Inquisiccedilatildeo Muitos portugueses

supersticiosos natildeo apenas ficavam assustados com as praacuteticas religiosas africanas mas tambeacutem

ficavam fascinados Por outro lado esses ritos eram observados com muita desconfianccedila e

muitas vezes eram classificadas como feiticcedilaria Isto levava agrave perseguiccedilatildeo policial pois a

praacutetica de feiticcedilaria era proibida pela lei portuguesa

Na realidade algumas famiacutelias brancas pobres vivendo com as famiacutelias negras dormindo

em esteiras no chatildeo comendo com as matildeos danccedilando as muacutesicas dos negros e frequumlentando o

candombleacute davam sinais de que a religiatildeo e os habitus natildeo eram exclusivamente de negros mas

de brasileiros (ABREU 1988) Neste contexto o que havia sido designado ateacute entatildeo como

ldquoafricanordquo passa a ser compreendido como ldquoafro-brasileirordquo ou brasileiro Em vez do termo

ldquoseitas africanas passa-se a falar em ldquoreligiotildees afro-brasileirasrdquo e os estudos centrados nestas

religiotildees adquirem nova direccedilatildeo Artur Ramos (1940) e posteriormente Edson Carneiro (1978

1981) e Roger Bastide (1978 1985) abandonaram definitivamente a associaccedilatildeo entre a

inferioridade racial e religiosidade dos negros a visatildeo evolucionista (magia politeiacutesta etc) em

prol de uma reinterpretaccedilatildeo histoacuterica e cultural desta

Na Aacutefrica a utilizaccedilatildeo das praacuteticas curativas eacute vista como integrante da praacutetica religiosa A

cura do corpo eacute acompanhada pela sauacutede do espiacuterito e as duas coisas satildeo englobadas pela

religiatildeo E no Brasil muitas pessoas procuram a religiatildeo Afro-brasileira como resposta agraves

dificuldades encontradas nos vaacuterios domiacutenios de vida desequiliacutebrios de sauacutede sejam eles

afetivos familiares financeiros etc Outras a procuram ainda como forma de afirmaccedilatildeo de sua

identidade cultural Identidade que se tem apoiado nos valores culturais de ancestralidade

africana

Essa identidade poreacutem soacute pode ser definida a partir de dentro isso eacute a partir da pessoa que

eacute adepta desta religiatildeo Como jaacute insistimos a identidade religiosa afro-brasileira eacute geralmente

contextual cultural social sobretudo histoacuterica Uma possibilidade de acesso a esta identidade

eacute oferecida pela histoacuteria da visatildeo do mundo do negro africano Sem esta natildeo se pode entender a

religiosidade Afro-brasileira Essa cosmogonia africana tem a dimensatildeo universal Como

constata Stefania Capone

ldquoNa verdade mesmo nos terreiros mais tradicionais de Bahia encontramos iniciados brancos ou ateacute nisseis [sic] Identidade lsquoafricanarsquo estaacute portanto completamente dissociada de toda origem eacutetnica real eacute possiacutevel ser branco louro de olhos azuis e dizer-se lsquoafricanorsquo por ter sido iniciado em um terreiro tido como tradicional O termo ldquoafro-brasileirordquo estaacute evidentemente associado agrave ideacuteia de uma Aacutefrica legitimadora berccedilo ideal e uacutenico de uma religiatildeo que nos nossos de hoje vem se tornando um siacutembolo de resistecircncia Mas seria o termo adequadordquo(CAPONE 2004 48)

O sistema de escravidatildeo significou para muitos africanos trazidos da Aacutefrica para o Brasil

uma perda em todos aspectos da vida A organizaccedilatildeo social em famiacutelias clatildes naccedilotildees foi

totalmente destruiacuteda A economia passou a ser regida de uma forma totalmente diferente que

em seus lugares de origem

Se o traacutefico de escravos foi um fator de desintegraccedilatildeo eacutetnica ele foi tambeacutem

paradoxalmente um componente da construccedilatildeo no Novo Mundo de novas identidades de

ldquonaccedilotildeesrdquo em maior escala do que na Aacutefrica Nesse aspecto o caso da Bahia eacute ilustrativo do

fenocircmeno O termo ldquonagocircrdquopor exemplo foi usado para identificar todos os grupos iorubanos

tambeacutem incorporou elementos natildeo iorubanos os quais no entanto natildeo perderam sua identidade

original de subgrupo ou de ldquonaccedilatildeordquoO termo ldquonagocircrdquo adquiriu um uso suficientemente amplo

para integrar numa espeacutecie de alianccedila muitos grupos que apesar disso natildeo esqueceram nem

abandonaram os nomes originais de seus subgrupos ou ldquonaccedilotildeesrdquo E a histoacuteria da formaccedilatildeo da

religiatildeo afro-brasileira se desenvolveu de forma diversa nas diferentes regiotildees do Brasil Esta

diversidade se deve a muitos fatores a presenccedila de diversas tradiccedilotildees religiosas africanas as

condiccedilotildees sob as quais estas tradiccedilotildees foram preservadas natildeo foram as mesmas As formas

religiosas do cristianismo espiritismo etc com as quais se ldquomisturaram (sincretismo

religioso)rdquo se encontraram e portaram-se de forma diversificada Como dizia Rita Amaral

ldquoAo panteatildeo africano traduzido parao catolicismo (Iansatilde eacute Santa Barbara Oxum eacute Nossa Senhora Aparecida) a umbanda acrescentou os pretosndashvelhos iacutendios (caboclos) boiadeiros [pomba giras] ciganos baianos marinheiros divinizando e valorizando os brasileiros representantes dos grupos marginalizadosrdquo (AMARAL 2001 7)

As tradiccedilotildees de origem africana foram construiacutedas reconstruiacutedas inventadas reinventadas e

agraves vezes abandonadas ou recuperadas conforme as necessidades e as circunstacircncias do

momento Todos estes fatores tiveram consequumlecircncias diretas ou indiretamente na formaccedilatildeo de

diversos tipos de rituais segundo as naccedilotildees oriundas dos escravos Nagocirc o Keto Jeje (Efon)

Angola Moccedilambique etc Estes nuacutecleos da religiatildeo afro-brasileira satildeo profundamente

influenciados pelas tradiccedilotildees africanas de origem Yoruba Daome Banto e outras

A escravidatildeo era quem dava a medida para toda a organizaccedilatildeo na vida destas pessoas Os

escravos tiveram que se adaptar aos novos rituais e cultos religiosos diante deste contexto de

perversidade humana A religiatildeo o culto a ancestralidade para o africano escravizado foi um

dos uacutenicos pilares que significou certa continuidade entre a situaccedilatildeo de antes durante e depois

da escravidatildeo Estes cultos estavam dificilmente sistematizados dada a conjuntura da eacutepoca Agrave

procura de identidade neste contexto a religiosidade de matriz africana teve o papel

preponderante fornecer criteacuterios para interpretar o mundo a vida a morte o sentido da

existecircncia etc A religiatildeo constituiu o ponto de referecircncia para reunir novamente aqueles

africanos que o sistema escravocrata dispersara Os lideres espirituais e suas comunidades eram

pontos de refuacutegio e apoio de solidariedade A antiga identidade eacute ali de certa forma preservada

O espaccedilo onde esta identidade se exerce natildeo eacute mais a Aacutefrica A antiga situaccedilatildeo natildeo pode ser

mais testemunhada vagas lembranccedilas apenas ficaram Surge uma certa necessidade de

restauraccedilatildeo do espaccedilo africano o terreiro com uma organizaccedilatildeo e situaccedilatildeo Africana onde o

transe possibilita uma volta agrave Aacutefrica poreacutem atraveacutes de simbolismo

ldquo O candombleacute eacute mais que uma seita miacutestica eacute um verdadeiro pedaccedilo da Aacutefrica transplantado Em meio agraves bananeiras agraves buganviacutelias agraves arvores frutiacuteferas agraves figueiras gigantes que trazem em seus ramos os veacuteus esvoaccedilantes dos orixaacutes ou agrave beira das praias de coqueiros entre a areia dourada com suas cabanas de deuses suas habitaccedilotildees o lugar coberto onde agrave noite os atabaques com seus toques chamam as divindades ancestrais com sua confusatildeo de mulheres de

moccedilas de homens que trabalham que cozinham que oferecem agraves matildeos saacutebias dos velhos suas cabeleiras encarapinhadas para cortar com galopadas de crianccedilas seminuas sob o olhar atento das matildees enfeitadas com seus colares lituacutergicos o candombleacute evoca bem essa Aacutefrica reproduzida no solo brasileiro de novo florescendo Comportamentos sexual econocircmico e religioso formam aqui uma uacutenica unidade harmoniosa ( BASTIDE 1960 312-3)

Uma determinada identidade religiosa de ancestralidade africana eacute preservada mesmo com

certas limitaccedilotildees e lacunas Pois como considera Gary Urton uma tradiccedilatildeo possui um

passado uma continuidade histoacuterica que o metamorfoseia em sujeitos de sua proacutepria historia

afirmar sua tradicionalidade equivale a se distinguir dos outros aqueles que natildeo tecircm mais

identidade definida Construir sua proacutepria representaccedilatildeo do passado ndash a tradiccedilatildeo- passa a ser

assim um inicio de negociar a posiccedilatildeo ocupada na comunidade em questatildeo (URTON

1993110)

A religiatildeo Afro-basileira eacute aparentemente em muitos casos contraditoacuteria A sua histoacuteria eacute

cheia de conflitos e contradiccedilotildees E a fidelidade simultacircnea agrave Aacutefrica e ao Brasil ( agrave antiga e agrave

nova respectivamente) eacute talvez uma contradiccedilatildeo em si Mas eacute ao mesmo tempo uma

fidelidade agrave proacutepria histoacuteria da qual ambas fazem parte Contudo tanto a preservaccedilatildeo da

tradiccedilatildeo dos elementos antigos como a acolhida de novos componentes convergem para uma

uacutenica identidade da religiatildeo Afro-brasileira a religiosidade Africana na diaacutespora

Roger Bastide afirma ldquo a transplantaccedilatildeo dos africanos no Novo Mundo de fato coloca um

problema similar ao das lesotildees cerebrais e eacute claro jaacute que amneacutesia pode ser apenas temporaacuteria

da formaccedilatildeo subsequumlente de novos centros mnemocircnicos no ceacuterebrordquo (BASTIDE 1970 b 85)

Se tudo eacute conservado na memoacuteria coletiva a reconstituiccedilatildeo do passado eacute possiacutevel recriando-se

os laccedilos rompidos com a cultura de origem Trata-se pois de preencher as lacunas os vazios

deixados pelo desenraizamento que foi a escravidatildeo e pela ldquoestrutura do segredordquo na base da

hierarquia da religiatildeo Africana causas do desaparecimento progressivo da memoacuteria Isso natildeo

impede a penetraccedilatildeo do presente no passado pois todas imagens da tradiccedilatildeo natildeo satildeo reativadas

somente aquelas satildeo coerentes com o presente (HALBWACHS1925)

A religiosidade africana consiste nos cultos aos espiacuteritos dos ancestrais do mundo invisiacutevel e

a religiatildeo dos Afro-brasileiro designa esses mesmos espiacuteritos dos ancestrais como orixaacutes

inquices egunguns

CONCLUSAtildeO

Esta eacute a descriccedilatildeo de uma religiatildeo vigorosa que seus adeptos misturam a todas as atividades

O que conta em efeito eacute a intenccedilatildeo diante da qual nada resta profano Cada um

intencionalmente deve fazer com que ateacute seus passos e sua respiraccedilatildeo tudo se transforme em

atividade religiosa que coloca o ser em contato constante com seu Deus Se esta eacute a realidade

indefinida de Deus qual eacute a natureza da concepccedilatildeo que os povos lhe datildeo Qual eacute a natureza da

ideacuteia de Deus diante da tradiccedilatildeo

Atraveacutes do exposto pudemos constatar que a ideacuteia de Deus para o africano natildeo eacute uma ideacuteia

um conceito ou um conjunto de conceitos sobre Deus Natildeo existe uma teologia conceitual Mas

no princiacutepio no centro de tudo haacute o homem vivendo seus sentimentos suas crenccedilas as

representaccedilotildees que tem o inexplicado o incompreendido por ele projetando-o inteiro do

mundo visiacutevel do tangiacutevel em direccedilatildeo ao invisiacutevel A ideacuteia de invisiacutevel se existe estaacute contida

inteiramente no corpo atraveacutes da imaginaccedilatildeo Haacute neste sentido a experiecircncia direta vivenciada

de divindade a visatildeo carnal do invisiacutevel Natildeo haacute no homem tradicional um sentido destacado

do resto do universo Eacute com o seu corpo alma e espiacuterito que o homem compreende-se Eacute assim

tambeacutem que compreende os outros homens a natureza e Deus Na realidade laquoas coisas e os

seres natildeo satildeo um obstaacuteculo ao conhecimento de Deus constituem ao contraacuterio significados

indiacutecios reveladores do divino raquo (ZAHAN 1970 p 30) Evidencia-se entatildeo que este

conhecimento miacutestico do invisiacutevel natildeo eacute puramente contemplativo uma fuga da vida concreta

ele [o conhecimento miacutestico] retorna ao proacuteprio conhecimento conduzindo ao crescimento e ao

reforccedilo do princiacutepio

Logo o homem que se faz pela conquista da unidade do seu ser do equiliacutebrio eficiente

algumas vezes dinacircmico e instaacutevel dos seus constituintes e relaccedilotildees aparece como uma

conjunccedilatildeo harmoniosa das energias coacutesmicas e sociais O munthu o homem tornado possiacutevel

pela confluecircncia dos seres natildeo somente pela sua palavra que pode ser proferida pela escuta por

seu nome e pela conduta da danccedila a arte mas tambeacutem por sua constituiccedilatildeo como ser eacute

realizado como ponto de encontro de todas as forccedilas como a siacutentese de todas as coisas

Por esta razatildeo quando se quer estabelecer este conhecimento de Deus como uma realidade

isolaacutevel chegamos a teologias ditas primitivas muitas vezes contraditoacuterias seguidamente

contestaacuteveis ldquoNenhum tema de antropologia social eacute tatildeo contestado quando a teologia dos

primitivosrdquo (EVANS-PRITCHARD 1962 p 162) O conhecimento de Deus como o

conhecimento do que eacute vivo estaacute em comunicaccedilatildeo potencial com tudo o que eacute visiacutevel ou

invisiacutevel tendo como aacutepice a imaginaccedilatildeo que cria o mito e o culto e que atualiza o mito

Este conhecimento muitas vezes misturado com a visatildeo miacutestica que eacute o comeccedilo e o fim da

existecircncia ldquoprimitivardquo e que tem o homem como centro eacute a mesma em todos os lugares quer

seja conhecimento de Deus ou do invisiacutevel ou conhecimento do visiacutevel Ele compreende em si

todos os outros conhecimentos e atividades positivas da vida que se referem ao conhecimento

ao mesmo tempo como iniacutecio e fim

Para compreender esta cosmogonia africana devemos concebecirc-la do ponto de vista do

homem A concepccedilatildeo africana de mundo eacute unitaacuteria e esta unidade eacute fundamental tal como

aparece para o homem como uma evidecircncia que se explica a si proacutepria Na verdade a unidade

do mundo eacute vivida como experiecircncia primeira e evidente a noccedilatildeo de um Deus fora do mundo

acima do mundo e separada do mundo eacute inconcebiacutevel Porque natildeo haacute revelaccedilatildeo possiacutevel da

existecircncia de um Deus fora do mundo dos homens Deus entatildeo eacute o fim no duplo sentido do

termo limite e objetivo Por essa razatildeo natildeo haacute oposiccedilatildeo a este tipo de conhecimento nada pode

afastaacute-lo em suma da essecircncia do humanismo africano

BIBLIOGRAFIA

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Antoinette ed Meacutemoire de la Tradition P 107-44 Recherches theacutematiques 5) ZAHAN Dominique Religion spiritualiteacute et penseacutee africaines Paris Payot 1970

Semelhanccedilas e diferenccedilas Uma anaacutelise das correntes Umbandistas a partir de uma

cidade interiorana

Laiacutes Moacutel Alves75

Simone Rodrigues Barbara76

O presente trabalho pretende analisar a Umbanda religiatildeo de matriz africana na cidade

de Caratinga leste de Minas Gerais na tentativa de demonstrar a presenccedila de pelo menos duas

linhas dessa religiatildeo na cidade e analisar ainda a relaccedilatildeo econocircmica existente entre a

prevalecircncia de uma ou outra doutrina religiosa dentro da corrente Umbandista Para esta anaacutelise

foram escolhidos trecircs terreiros o ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom

fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e ldquoCasa da Mariquinhardquo locais que se pode observar maior

influecircncia das religiotildees afro-brasileira E um outro terreiro (sem nome) que permanece a

influecircncia do Kardecismo no culto

Formaccedilatildeo da Umbanda

O negro inseriu-se na sociedade brasileira como escravo a partir do seacuteculo XV apesar

de marginalizado e sem nenhuma representatividade soacutecio- poliacutetica manteve-se como ponto

chave de todos os sistemas econocircmicos desse periacuteodo A lei Aacuteurea assinada no dia 13 de maio

de 1888 aboliu a escravidatildeo no Brasil e por consequecircncia desintegrou a organizaccedilatildeo social em

que o negro estava inserido Essa lei despejou um grande nuacutemero de ex- escravos sem nenhum

aparato para a sua integraccedilatildeo na sociedade

BASTIDE (1960406) afirma que a industrializaccedilatildeo teve dois efeitos sobre o negro no

primeiro momento desintegrou-o da sociedade pois natildeo fora incluiacutedo nem social nem

economicamente no processo e num segundo momento ocorreu sua reintegraccedilatildeo jaacute como

parte da sociedade de classes

A macumba77 foi o culto que esteve ligado ao negro no periacuteodo de desintegraccedilatildeo

social Devido a sua natildeo inserccedilatildeo na sociedade de classes esse culto ficou estigmatizado na

sociedade caracterizando seus seguidores como feiticeiros Os negros que conseguiram

ascensatildeo social na sociedade industrial procuraram desvincular-se da macumba Para

75 Graduando em Histoacuteria pelo Centro Universitaacuterio de Caratinga 76 Graduando em Histoacuteria pelo Centro Universitaacuterio de Caratinga 77 Segundo Bastide (1960407) a macumba eacute a principio a introduccedilatildeo de certos orixaacutes e de certos ritos ioruba na cabula de origem banto com o sincretismo de cultos africanos ameriacutendios catoacutelicos e espiacuteritas

amenizar as caracteriacutesticas ligadas aos cultos africanos aproximaram-se de outros sincretismos

principalmente da doutrina Kardescista que era melhor aceita na sociedade

A passagem da macumba aacute umbanda estaria ligada ao desejo de ascensatildeo social das classes menos favorecidas Elas buscaram depurar qualquer vinculaccedilatildeo com um grupo ou uma cultura tradicionalmente estigmatizados ao mesmo tempo em que se aproximaram e assumiratildeo valores cristatildeos principalmente atraveacutes do espiritismo o que foi fundamental para a formaccedilatildeo da Umbanda ( MALANDRINO200694)

A umbanda eacute marcada pelo sincretismo de vaacuterias correntes religiosas com intenccedilatildeo de

desmistificar a macumba para propiciar melhor aceitaccedilatildeo do negro na sociedade de classes

Notaremos que sua formaccedilatildeo seraacute o resultado de mudanccedilas econocircmicas e sociais que

atingiram em grande parte o negro ocasionando a re-significaccedilatildeo de sua religiosidade

Constataremos que o nascimento da religiatildeo umbandista coincide justamente com a consolidaccedilatildeo de uma sociedade urbano-industrial e de classes A um movimento de transformaccedilatildeo social corresponde um movimento de mudanccedila cultural isto eacute as crenccedilas e praacuteticas afro-brasileiras se modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da sociedade global brasileira

Umbanda na cidade de Caratinga

O municiacutepio de Caratinga localiza-se a 19ordm 37 30 de latitude sul e a 42ordm 09 00 de

longitude oeste estaacute inserida na regiatildeo VIII denominada Rio Doce e na microrregiatildeo

homogecircnea da Mata de Caratinga na porccedilatildeo leste mineira78 Sua economia eacute voltada para a

agricultura comeacutercio e serviccedilos SENA(200581) ldquoClassifica caratinga como centro de serviccedilos

o que facilita sua caracterizaccedilatildeo como cidade meacutedia propriamente dita e tem em seu destaque

a funccedilatildeo de centro escolarrdquo possui estabelecimentos de ensino de niacutevel superior que atrai

alunos de vaacuterios locais

A cidade tem traccedilos marcadamente interioranos e conservadores o grande nuacutemero de

Centros Espiacuteritas Umbandistas espalhados por toda a cidade assustou no iniacutecio da pesquisa

pois a maioria das pessoas natildeo sabem que existem tais locais de culto mesmo sendo estes

registrados pela Associaccedilatildeo dos Umbandistas de Caratinga Os Centro espiacuteritas Umbandistas

com a exceccedilatildeo do ldquosem nomerdquo localizam-se em bairros de classe meacutedia baixa O

conhecimento desses se daacute na maioria das vezes somente entre os membros

Caracterizaccedilatildeo dos terreiros

Para caracterizaccedilatildeo dos terreiros utilizaremos a proposta de CONCONE(198787) em

quadro fornecido pelo Dr Bandeira O ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do

78 Localizaccedilatildeo e vias de acesso Caratinga Disponiacutevel em httpwwwcaratingamggovbrmat_visaspxcd=67326 Acessado em 10 maio de 2009

Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo e o ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecidardquo

enquadraram em ldquoUmbanda ritmadardquo ldquode terreirosrdquo a caracteriacutestica marcante desse tipo de

Umbanda eacute o uso do toque do atabaque para marcar o ritmo e andamento da cerimocircnia

O Centro Espiacuterita ldquoSem nomerdquo enquadra-se em ldquoUmbanda espiritistardquo ldquode mesardquo

Constitui-se numa fase intermediaacuteria entre as Umbandas e o espiritismo de A Kardec O

ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom Fim Caboclo das Matas Virgensrdquo

funciona nos fundos da residecircncia do pai-de-santo conhecido pelos fieis por ldquoPai Sebastiatildeordquo ou

somente ldquopadrinhordquo natildeo possui nenhuma identificaccedilatildeo no portatildeo somente na porta de entrada

do terreiro nos fundos da residecircncia O Centro Espiacuterita eacute um cocircmodo retangular todo

azulejado composto por quatro altares que se dispotildeem da seguinte forma o do meio conta com

uma mistura de todos os santos agrave direita fica o altar de Oxoacutessi que eacute o santo protetor do ldquoPairdquo

da casa agrave esquerda fica o altar dos pretos-velhos e do lado deste encontra-se o altar de Nossa

Senhora e Iemanjaacute Do lado de fora do Centro ficam as ldquocasinhasrdquo dos Exus e o quarto da

Cigana79

As giras80 abertas acontecem de quinze em quinze dias agraves segundas-feiras a ldquorezardquo eacute

marcada pelo toque do atabaque durante todo o tempo Satildeo invocadas todas as sete correntes de

Umbanda81 em pontos82 puxados ora pelo pai do Centro ora por filhos-de-santo sem nenhuma

restriccedilatildeo As mulheres se mantecircm aacute direita do altar e os homens agrave esquerda Todos os filhos-de-

santo trocam de roupa antes do iniacutecio da gira os homens sempre de branco e a maioria das

mulheres tambeacutem poreacutem algumas se vestem com roupas de cores diversas

Nesse Centro trabalha-se com Umbanda e Quimbanda natildeo se tem uma ordem para a

ocorrecircncia dos dias da Quimbanda mas sempre eacute anunciada no fim do culto pela entidade do

Pai-de-santo que pede que todos que no dia marcado utilizem roupas pretas O sincretismo

religioso marcado pelo Catolicismo daacute-se nas oraccedilotildees do ldquo Pai ndash Nossordquo ldquo Ave- Mariardquo ldquoSalve

Rainhardquo pelas vaacuterias imagens de santos presente O Sincretismo com o Candombleacute daacute-se nos

quartinhos dos Exus e no uso do atabaque

O ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecida 83rdquo localiza-se no bairro Esplanada Os

cultos ocorrem numa residecircncia em cima da casa da matildee- de ndashsanto composta por cocircmodos

pequenos e apertados Observamos uma sala com um altar onde ficam todas as imagens de

79 O quarto da cigana foi feito a pedido da entidade Nele conteacutem televisatildeo cama geladeira Ela atende as terccedilas-feiras e a consulta custa 5000 reais 80 A palavra gira eacute de origem portuguesa do verbo girar rodar Adaptada pelos negros teria tornado engira designando a reuniatildeo dos Camanaacutes culto negro do fim do seacuteculo passado ocorrido no estado do Espiacuterito Santordquo MALANDRINO2006109 81 Nessa casa as 7 linhas da Umbanda satildeo pretos-velhos boiadeiros baianos ciganos erecircs marinheiros e exus na pesquisa de Bastide as linhas seriam Oxalaacute Iemanjaacute Oriente Oxocecirc Shangocirc Ogum e Africana Ver Bastide 1960 444-445 82 Pontos satildeo cantos que se referem as sete linhas de Umbanda e aos Exus 83 O Centro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecida eacute o mesmo que Casa da Mariquinha como eacute normalmente chamado

santos e orixaacutes As casinhas do Exu ficam do lado de fora da residecircncia em baixo de uma

aacutervore As cerimocircnias abertas ocorrem todas as quartas-feiras durante a semana ocorrem

cerimocircnias reuniotildees para os filhos- de- santo que estatildeo sendo iniciados Trabalha-se com

Umbanda e Quimbanda sendo que na maioria dos cultos ocorre a ldquovirada da linhardquo natildeo sendo

esporaacutedica como no Pai Sebastiatildeo As mulheres se mantecircm aacute direita do altar e os homens agrave

esquerda O Sincretismo religioso daacute-se da mesma forma que no ldquoCentro Espiacuterita Cabana de

Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo

O culto do Centro Espiacuterita ldquoSem Nomerdquo localiza-se na aacuterea central na cidade (H L

Matos) grande parte dos seus membros tem formaccedilatildeo acadecircmica a maioria de seus adeptos satildeo

brancos incluindo o Meacutedium e seus principais sacerdotes84 Os cultos abertos ao puacuteblico

ocorrem todas as segundas-feiras existem reuniotildees fechadas para trabalhar a espiritualidade dos

meacutediuns e cirurgias espiacuteritas O Centro espiacuterita se localiza nos fundos da casa do liacuteder

espiritual formado por cadeiras um altar com a imagem de vaacuterios santos Nas paredes

encontram-se fotos de pretos-velhos e de caboclos Os homens sentam-se obrigatoriamente do

lado direito do altar e as mulheres do lado esquerdo A maioria dos seguidores do culto ao

chegar trocam suas roupas por roupas brancas O meacutedium se manteacutem sempre ao centro do

altar e eacute rodeado por sacerdotes que seguem a mesma ordem dos fieacuteis homens agrave direita e

mulheres agrave esquerda

O sincretismo religioso marcado pelo Catolicismo se daacute pelas oraccedilotildees do ldquoPai-Nossordquo

ldquo Ave-Mariardquo ldquoSalve Rainhardquo imagens de santos O sincretismo com o Kardescimo eacute marcado

por toda a liturgia usada ( livro dos Espiacuteritos dos meacutediuns evangelho segundo Alan Kardec)

distribuiccedilatildeo de aacutegua fluidificada de passe Eacute importe salientar que todos os meacutediuns

incorporam preto-velho e caboclo

Levantamento da composiccedilatildeo eacutetnica e educacional dos fieis dos Centros Espiacuteritas

estudados

No Centro Espiacuterita ldquoCabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas

Virgensrdquo e no ldquoCentro Espiacuterita Nossa Senhora Aparecidardquo todos os fieis residem nos bairros

do Centro Espiacuterita que consequentemente corresponde a um bairro suburbano e quase natildeo

haveraacute diferenccedilas nas buscas dos fieis na religiatildeo No primeiro centro de todos os doze

entrevistados dez se consideram negros ou mulatos e dois brancos sendo que os uacuteltimos

procuram elevaccedilatildeo do espiacuterito por meio da religiatildeo e possuem niacutevel educacional superior

todos os outros procuram bens materiais sendo que os mais listados satildeo empregos moradia

proacutepria e dinheiro No segundo centro dos seis entrevistados apenas um se considera branco

84 Sacerdotes eacute uma terminologia usada pelos membros do culto para os meacutediuns que formam a mesa

todos estatildeo em busca de bens materiais sendo os mais citados empregos namorado (a)

dinheiro todos solteiros com idade meacutedia de 25 anos

Dos centros espiacuteritas estudados o ldquoSem Nomerdquo diverge dos acima caracterizados Todos

os cinco entrevistados tecircm curso superior completo se consideram brancos residem no centro

da cidade e buscam na religiatildeo elevaccedilatildeo espiritual Em todas entrevistas por vaacuterias vezes foram

citados os livros de Alan Kardec como leitura baacutesica

Relaccedilatildeo de Negros e Brancos nos centros espiacuteritas Umbandistas estudadas

0

2

4

6

8

10

12

Centro I Centro II Centro III

Brancos

Negros

Centro I - ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo Centro II - Centro Espiacuterita ldquo Nossa Senhora Aparecidardquo CentroIII- ldquoSem Nomerdquo

Escolaridade dos fieis participantes dos Centros espiacuteritas Umbandistas estudados

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

Ens Funda Teacutecnico Ens Superior

Centro I

Centro II

Centro III

Buscas na Religiatildeo

0

2

4

6

8

10

12

Centro I Centro II Centro III

Elevaccedilatildeo deEspirito

Buscas Materiais

A partir das leituras dos dados colhidos em pesquisa de campo observamos que as

diferenccedilas e semelhanccedilas dos fieis dos Centros Espiacuteritas Umbandistas da cidade de Caratinga

estaratildeo intrinsecamente ligadas agraves condiccedilotildees socioeconocircmica e intelectual dos fieis Nos Centro

Espiacuterita ldquoNossa Senhora Aparecidardquo e ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano Senhor do

Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo os fieis estatildeo em busca de bens materiais soluccedilatildeo de

problemas cotidianos curas de doenccedilas BASTIDE (1960434)85 expotildee que nesse tipo de centro

o espiritismo apareceraacute ldquocomo um caraacuteter meacutedico do espiritismo tanto mais que a tradiccedilatildeo de

curador da magia curativa de definiccedilatildeo da doenccedila pela accedilatildeo miacutestica dos feiticeiros ou da

vinganccedila dos mortos permanece agrave base da mentalidade primitivardquo

No Centro Espiacuterita ldquoSem nomerdquo encontraremos uma diferenccedila de culto e de fieis em

relaccedilatildeo aos outros centros estudados Tem-se como princiacutepios baacutesicos das reuniotildees a busca da

elevaccedilatildeo espiritual como forma de ter uma vida melhor quando se desencarnar Os fieis dos

centros Espiacuteritas ldquoNossa Senhora Aparecidardquo e ldquoCentro Espiacuterita Cabana de Manoel Baiano

Senhor do Bom fim Caboclo das Matas Virgensrdquo como exposto no graacutefico seratildeo em grande

parte negros com pouca escolaridade contraacuterio do Centro Espiacuterita ldquo Sem NomerdquoAcreditamos

que essa diferenccedila possa ser explicada pela piracircmide de Maslow

A piracircmide das necessidades de Maslow pontua cinco tipos de necessidades que satildeo

qualitativamente diferentes entre si fisioloacutegicas seguranccedila participaccedilatildeo auto-estima auto-

realizaccedilatildeo Defende ainda a premissa de que o comportamento eacute determinado pela categoria de

necessidades As de mais baixa ordem tem que se permanecer satisfeita para que possa

satisfazer as outras (GAVIOLI VERARDI )

Fazemos entatildeo a relaccedilatildeo da teoria de Maslow com as caracteriacutesticas soacutecio-religiosas

encontradas em Caratinga como no terreiro ldquoSem Nomerdquo a maioria dos fieis tem uma boa

85 Bastide divide o espiritismo em trecircs sendo que segundo esse autor essas divisotildees tem caracteriacutesticas peculiares devido aacute diferenccedila de formaccedilatildeo intelectual e social dos fieis

condiccedilatildeo financeira procuram na religiatildeo uma busca interior elevaccedilatildeo do espiacuterito jaacute que suas

necessidades primaacuterias estatildeo satisfeitas Os fieis dos outros dois centros espiacuteritas como possuem

uma menor condiccedilatildeo financeira e menor escolaridade (devido agrave condiccedilatildeo financeira) buscaratildeo

na religiatildeo uma forma de realizaccedilatildeo das suas necessidades primaacuterias

MALANDRINO (200762) defende que as pessoas de classe menos favorecidas

economicamente encontram nas religiotildees afro- brasileiras um local de maior afetividade ldquonuma

relaccedilatildeo direta espontacircnea e iacutentima com as divindadesrdquo Ainda encontram respostas para os

seus problemas cotidianos por isso grande parte das pessoas que frequumlentam esses cultos estatildeo

em busca de curas de doenccedilas pobreza desemprego desacertos amorosos pois para eles estes

estatildeo no plano religioso e natildeo social no indiviacuteduo ou na sociedade

Conclui-se que a na Cidade de Caratinga exista duas correntes Umbandistas diferentes

uma que vai de encontro com os princiacutepios doutrinaacuterios do Espiritismo Kardescistas ( mas que

tem incorporaccedilatildeo de preto-velhos e caboclos) e outra com caracteriacutesticas voltadas agraves religiotildees

de matrizes africanas Notaremos que as diferenccedilas natildeo seratildeo apenas doutrinaacuterias encontrar-se-

aacute um puacuteblico especiacutefico para cada corrente A corrente onde predomina o Espiritismo

Kardescista (Centro espiacuterita ldquoSem Nomerdquo) contaraacute com a grande maioria de fieis brancos e que

buscam elevaccedilatildeo espiritual atraveacutes da religiosidade A corrente onde o predomiacutenio religioso eacute

das Religiotildees de matriz africana encontraremos a maioria dos fieis negros e com pouca

escolaridade que buscam a resoluccedilatildeo de problemas cotidianos

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GT Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade

EMENTAS

O verdadeiro sentido do plano salviacutefico de Deus uma proposta libertadora de salvaccedilatildeo

Carlos Renato de Araujo Coutinho

Pensar sobre a salvaccedilatildeo da humanidade como fato anterior a sua criaccedilatildeo pode parecer para muitos aleacutem de intrigante tambeacutem errocircneo visto que uma visatildeo limitada foi construiacuteda ao longo dos anos e continua existindo baseada em antigos paradigmas que permeiam o entendimento do ser humano Em tempos onde estes antigos paradigmas ainda escravizam e oprimem a vida da humanidade no que se refere ao tema Salvaccedilatildeo surge agrave necessidade de imersatildeo ao verdadeiro sentido do plano salviacutefico de Deus Esse trabalho visa apresentar o tema Salvaccedilatildeo a partir de uma anaacutelise com proposta libertadora onde uma nova perspectiva salviacutefica e com liberdade liberta a humanidade para um pleno entendimento para a superaccedilatildeo de antigos paradigmas e para a possibilidade de adesatildeo ao verdadeiro plano salviacutefico de Deus que consiste em um projeto para a vida da humanidade antes mesmo que ela fosse criada

O Fenocircmeno soacutecio-religioso de um ldquoPeregrinar contemporacircneordquo visatildeo socioloacutegica

Maria das Graccedilas Ferreira de Arauacutejo

Tendo em vista a grande expressatildeo que o fenocircmeno religioso das peregrinaccedilotildees apresenta agrave sociedade e pela sua importacircncia na atualidade busco abordar um outro tipo de peregrinaccedilatildeo muito mais singela uma espeacutecie de micro-romaria quase individual Trata-se de pequenas romarias que ocorrem todos os anos por ocasiatildeo da visita aos cemiteacuterios em dia de finados Esse caminhar de esperanccedila cuja chegada conserva algo santo e memoraacutevel os tuacutemulos e a lembranccedila dos mortos abrem-nos perspectivas para pensar o resgate histoacuterico-cultural das expressotildees religiosas dos ritos como viaacutevel resposta agrave integraccedilatildeo da morte e da vida na contemporaneidade Desse modo a proposta da comunicaccedilatildeo consiste em apresentar uma anaacutelise socioloacutegica do ritual de finados buscando demonstraacute-lo como uma forma contemporacircnea de peregrinaccedilatildeo

GT Cristianismo histoacuteria e contemporaneidade

TEXTO

O fenocircmeno soacutecio-religioso de um ldquoperegrinar contemporacircneordquo

Maria das Graccedilas Ferreira de Arauacutejo

O fenocircmeno soacutecio-religioso das peregrinaccedilotildees leva fieacuteis a deslocar-se e pocircr-se a

caminho em demanda a lugares sagrados O ato de peregrinar eacute uma experiecircncia antropoloacutegica

concreta de sair de casa do seu cotidiano para caminhar ao lado de outras pessoas em busca

desse lugar sagrado para um encontro simboacutelico com o seu santo Eacute uma praacutetica religiosa

bastante antiga mas nem por isso ultrapassada Sua realizaccedilatildeo e propagaccedilatildeo se datildeo de maneira

corrente e impressionante a cada ano Atualmente devido agraves mudanccedilas culturais sociais

tecnoloacutegicas e poliacuteticas essa atividade encontra-se em meio a novos paradigmas

Antigamente o termo usado para se dizer peregrinar era ldquocaminharrdquo Hoje na grande

maioria das peregrinaccedilotildees e romarias se usa o mesmo termo mesmo quando se viaja noutros

meios de locomoccedilatildeo Como por exemplo carros de boi cavalos caminhotildees ocircnibus barcos e

ateacute aviotildees A tecnologia e o aperfeiccediloamento nos meios de transportes favorecem a agilidade e

diminui a duraccedilatildeo das viagens No mundo atual as peregrinaccedilotildees movimentam ainda milhotildees

de pessoas a cada ano E essa significativa expressatildeo natildeo se restringe apenas ao mundo cristatildeo

As peregrinaccedilotildees partem de toda a parte por diferentes crenccedilas e caminhos a variados destinos

Como praacutetica religiosa tem sido uma das mais antigas formas de devoccedilatildeo da religiatildeo

popular86 Adotada por muitos povos chega a se confundir com a proacutepria histoacuteria das religiotildees

Valle87 afirma inclusive que as romarias satildeo uma realidade entranhada no coraccedilatildeo de todas as

religiotildees Existem vaacuterias formas de peregrinaccedilotildees judaicas cristatildes muccedilulmanas hindus

budistas etc Cada uma delas com suas proacuteprias caracteriacutesticas e relacionadas agrave suas diferentes

religiotildees Por exemplo a visita agrave Terra Santa agrave Meca Satildeo Tiago de Compostela ao Ciacuterio de

Nazareacute e tantas outras peregrinaccedilotildees que tambeacutem podem se apresentar sob o aspecto de turismo

religioso No cristianismo essa constante religiosa se concentra em locais conhecidos como em

Mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas GeraisPUC-Minas 86 SANCHIS P Arraial festa de um povo As romarias portuguesas Lisboa Dom Quixote 1983p 39 87 VALLE Edecircnio Santuaacuterios romarias e discipulado cristatildeo Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo Belo Horizonte v4 n8p38jun2006

Roma Lourdes Aparecida e em centro de devoccedilatildeo mais populares como os santuaacuterios do

Padre Ciacutecero Romatildeo em Joaseiro e Bom Jesus na Lapa Bahia

Em vaacuterias partes do mundo os devotos fazem viagens e peregrinaccedilotildees por santuaacuterios e

templos sagrados Em sua maioria as peregrinaccedilotildees satildeo caracterizadas por longas e penosas

viagens quase sempre em grupo acompanhadas de cantos oraccedilotildees e meditaccedilotildees Quando o

romeiro ou o peregrino deixa seu lar sai de seus haacutebitos do seu cotidiano impondo a si mesmo

a penitecircncia de uma caminhada relativamente cansativa ele entra em contato e em comunhatildeo

com outros caminhantes com todos que com ele seguem objetivo comum o encontro com o

sagrado A chegada ao lugar sagrado eacute marcada por um gesto puacuteblico de feacute (ritual banho tocar

uma reliacutequia jejum procissatildeo solene) Haacute sempre um momento em que o peregrino presta

uma homenagem ao santo como quando se chega agrave casa de uma pessoa mais importante

Aquele que peregrina leva consigo a convicccedilatildeo de se ter conseguido um enriquecimento

espiritual uma cura moral ou ateacute fiacutesica

Peregrinar eacute portanto uma marcha ritual que parte de um lugar mais ou menos distante

e se ingressa temporariamente em um outro onde se encontra o sagrado para logo retornar ao

mesmo ponto de partida com a experiecircncia de se ter participado em virtude do sagrado da

presenccedila especial de um santo Nessa devoccedilatildeo se reuacutene em convivecircncia intensa durante o

periacuteodo da mesma milhares de pessoas originaacuterias dos mais diversos locais A peregrinaccedilatildeo eacute

tambeacutem importante na consolidaccedilatildeo da feacute coletiva pois fortalece laccedilos entre as comunidades e

as faz sentirem-se unidas numa caminhada comum As redes de sociabilidades que ali se

formam favorecem o processo dinamizador nas relaccedilotildees sociais

Nesse sentido caminhar peregrinar fazer romarias satildeo experiecircncias que cultivadas

levam os seus agentes ndash os peregrinos- a se abrirem a uma vivecircncia ldquopessoal coletivardquo

Oferecendo-os ocasiatildeo para situarem-se como pessoas na grande caminhada de convivecircncia do

povo de Deus da sociedade e de toda a humanidade Tendo em vista a grande expressatildeo que o

fenocircmeno das peregrinaccedilotildees apresenta agrave sociedade e pela sua importacircncia na atualidade a

pesquisa busca abordar um tipo de peregrinaccedilatildeo contemporacircnea muito mais singela uma

espeacutecie de micro-romaria quase individual Trata-se de pequenas romarias que ocorrem todos

os anos por ocasiatildeo da visita aos cemiteacuterios em dia de finados

Essa atitude aparentemente corriqueira da visita ao cemiteacuterio em dois de novembro

atinge a realidade soacutecio-religiosa da cidade E se apresenta sob a forma de uma romaria Uma

pequena e contemporacircnea romaria Que envolve um grande nuacutemero de pessoas que se dirigem

aos cemiteacuterios em um uacutenico dia com o intuito de visitarem os seus entes falecidos Esse

caminhar de esperanccedila cuja chegada conserva algo santo e memoraacutevel os tuacutemulos e a

lembranccedila dos mortos abrem perspectivas para pensar o resgate histoacuterico-cultural das

expressotildees religiosas da devoccedilatildeo popular dos rituais e cultos fuacutenebres como viaacutevel resposta agrave

integraccedilatildeo da morte e da vida na contemporaneidade

Desse modo a partir de um enfoque socioloacutegico a presente comunicaccedilatildeo consiste em

apresentar a anaacutelise dos dados da pesquisa88 feita com o objetivo de demonstrar o Ritual de

Finados como uma forma contemporacircnea de peregrinaccedilatildeo Os sujeitos participantes da pesquisa

responderam um questionaacuterio89 sobre questotildees relacionadas ao dia de finados Os dados

coletados foram quantitativamente apurados e retratam o rosto de todo o grupo de visitantes do

Cemiteacuterio da Paz em 2 de novembro A coleta das respostas e anaacutelise dos seus indicadores

quantitativos permitiu a interpretaccedilatildeo e interferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de

produccedilatildeo e recepccedilatildeo da mensagem no que se refere a celebraccedilatildeo do rito mortuaacuterio de finados

O produto da apuraccedilatildeo dos dados percentuais objetivos do questionaacuterio segue abaixo

num pequeno esboccedilo da anaacutelise quantitativa da pesquisa Em primeiro lugar os sujeitos da

pesquisa aqueles que se encaminham aos cemiteacuterios a fim de visitarem os tuacutemulos dos seus

falecidos (familiares santos eou famosos) satildeo visitantes anocircnimos que se dirigem a estes

centros religiosos para praticarem seus ritos fuacutenebres Pela pesquisa sua expressiva maioria satildeo

mulheres 67 Um dado interessante pois mostra natildeo soacute a desproporccedilatildeo entre os sexos

apresentando a realidade social vigente da cidade como ainda traduz de forma relevante o papel

da mulher na participaccedilatildeo desse ritual Apontando que o cuidado com os mortos pode ser

interpretado como extensatildeo da tarefa feminina de proteger e cuidar do lar (casa restrita e

ampliada)90

Tabela nordm1 Sexo Frequumlecircncia Percentual

Feminino 131 67

88 Pesquisa realizada em 02112008 no Cemiteacuterio Municipal da Paz na cidade de Belo Horizonte capital do Estado de Minas Gerais Brasil Onde foram aplicados 210 questionaacuterios aos visitantes com perguntas relativas ao ritual de finados A pesquisa contou com a participaccedilatildeo de uma equipe de 07 entrevistadores devidamente treinados e preparados a pesquisadora 01 aluno do Mestrado em Ciecircncias da Religiatildeo 02 membros da Pastoral das Exeacutequias do Cemiteacuterio da Paz (Arquidiocese de Belo HorizonteRegiatildeo Esperanccedila) e 03 alunos do Projeto Teologia Viva (Curso Baacutesico de formaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica da Arquidiocese de Belo Horizonte) A pesquisa em andamento eacute autorizada e acompanhada sob o nuacutemero 02420213000-8 no CEP (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa) da Proacute-Reitoria de Pesquisa e de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais (PUCMG) 89 O questionaacuterio de 16 questotildees (10 fechadas e 06 abertas) foi aplicado a 210 pessoas ndash homens e mulheres ndash acima de 18 anos no dia 02112008 no Cemiteacuterio da Paz em Belo Horizonte MG Para sua aplicaccedilatildeo a pesquisadora e sua equipe estiveram de plantatildeo no Cemiteacuterio das 0700 agraves 2000h entrevistando as pessoas que laacute visitavam os tuacutemulos de seus entes Elencando observaccedilotildees a fim de colher dos sujeitos entrevistados suas percepccedilotildees sobre o ritual de finados 90 Essa interpretaccedilatildeo se baseia na semelhante explicaccedilatildeo de Maria Acircngela VILHENA em Aflitos e enforcados o culto agraves almas no centro de Satildeo Paulo In Religiatildeo amp Cultura Departamento de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo ndash PUCSP vol V n9 p99-124 JanJun de 2006 De acordo com Vilhena as mulheres satildeo vistas como as grandes-matildees a se preocupar e velar pelo bem-estar dos seus e dos outros Em anaacutelise sobre os dados da sua pesquisa ela comenta que a tarefa feminina de proteger e cuidar da casa restrita (filhos pais idosos parentes necessitados) se estende tambeacutem agrave casa ampliada (casa-rua casa-bairro casa-movimento populares casa - polis)

Masculino 64 33

Total 195 100

Quanto agrave faixa etaacuteria os jovens satildeo minoria No geral os que visitam o cemiteacuterio em

dia de finados satildeo pessoas maduras acima de 30 anos de idade O grande percentual tem entre

46 a 60 anos Normalmente eacute nessa fase onde as responsabilidades e consciecircncia com questotildees

de vida e morte ganham mais acento Pode-se observar pelas falas de alguns entrevistados nas

quais aparecem expressotildees como ldquoo dia de finados eacute dia de reflexatildeordquo ldquosinto que o final do

meu corpo eacute aquirdquo ldquoeacute um dia mais humanordquo e ldquofinados significa para mim o dia de aceitaccedilatildeo

da morterdquo Trata-se pois de um culto praticado com mais frequumlecircncia na maturidade quando as

pessoas se vecircem mais sensiacuteveis agraves proacuteprias finitudes humanas e tambeacutem jaacute se encontram

fortemente ligadas agrave tradiccedilatildeo ritualreligiosa herdada dos seus pais

Tabela nordm2 Faixa Etaacuteria Frequumlecircncia Percentual

Ate 30 anos 24 12

De 31 a 45 anos 40 20

De 46 a 60anos 70 35

Mais de 60 anos 68 33

Total 202 100

90 satildeo moradores da capital e regiatildeo metropolitana Comprovando assim a ideacuteia de se

tratar de uma ldquopequena romariardquo Jaacute que na maior parte das declaraccedilotildees dos entrevistados o

tempo gasto de suas casas ateacute o cemiteacuterio eacute de menos de 30 minutos Diferente do longo

percurso geograacutefico comum na maioria das peregrinaccedilotildees

Tabela nordm3

Residecircncia Frequumlecircncia Percentual

Belo Horizonte e

Regiatildeo 187 90

Interior de Minas 18 9

Outros Estados 2 1

Total 207 100

Tabela nordm3b

Quanto tempo levou de sua casa ateacute aqui

Menos de 30 minutos

De 31 a 60 minutos

De 1 a 2 horas

De 2 a 5 horas

Total

Como veio ateacute o Cemiteacuterio A peacute 17 2 1 0 20 Automoacutevel 54 16 0 0 70

taxi

Ocircnibus coletivo

29 51 32 4 116

Caravana 1 0 1 0 2

A peacute e de ocircnibus

0 1 1 0 2

Total 101 70 35 4 210

Pela escolaridade podemos observar que o grau de instruccedilatildeo dos que visitam o

cemiteacuterio em finados se predominam naqueles que tem ensino fundamental incompleto 35

Esse resultado provavelmente esteja relacionado com a questatildeo da faixa etaacuteria Contudo a

pesquisa veio demonstrar tambeacutem que essa predominacircncia natildeo equivale agrave exclusividade Afinal

a percentagem dos que tem ensino meacutedio completo eacute bastante consideraacutevel 21 Foram

entrevistadas inclusive pessoas com formaccedilatildeo universitaacuteria 10 Tal constataccedilatildeo vem indicar a

extensividade do culto aos mortos por diversas camadas da populaccedilatildeo em Belo Horizonte

Tabela nordm4 Escolaridade Frequumlecircncia Percentual

Fund Incompleto 73 35

Fund Completo 36 17

Meacutedio Incompleto 29 14

Meacutedio Completo 45 21

Superior Incompleto 3 1

Superior Completo 21 10

Analfabeto 3 1

Total 210 100

Os cemiteacuterios em dia de finados tornam-se como os santuaacuterios nas peregrinaccedilotildees

lugares de encontros de pessoas de muitos povos liacutenguas e regiotildees Satildeo centros de trocas

culturais religiosas e tambeacutem comerciais No ritual de finados os cemiteacuterios satildeo visitados os

tuacutemulos decorados com flores e milhares de velas satildeo acesas Nessa celebraccedilatildeo quanto agrave

pertenccedila religiosa uma significativa maioria dos visitantes estaacute ligada agrave religiatildeo catoacutelica o que

confere ao rito um caraacuteter devocional proacuteprio da forte tradiccedilatildeo catoacutelico-romana no paiacutes A

pesquisa demonstra que 81 dos visitantes se declaram catoacutelicos (tabela 5) Uma pequenina

parte insere-se nos grupos evangeacutelicos 7 espiacuteritas 3 e outras denominaccedilotildees 7 Esse dado

pode levar a compreender que as pessoas ainda fazem uma ideacuteia de que o espaccedilo fiacutesico do

cemiteacuterio representa um espaccedilo religioso tipicamente catoacutelico onde nesse dia ateacute se celebra

missa

Por outro lado para os visitantes no que tange ao plano espiritual no cemiteacuterio eacute onde

estatildeo presentes as almas dos falecidos E estas independem da pertenccedila religiosa Eacute por isso que

neste dia podemos observar nos cemiteacuterios catoacutelicos espiacuteritas evangeacutelicos umbandistas

candomblecistas e outros todos livres expressando sua feacute juntos em um mesmo espaccedilo Por

isso o dia 02 de novembro possui esta caracteriacutestica desperta e reuacutene multidatildeo de crentes e

natildeo-praticantes habituais para um mesmo objetivo religioso ldquovisitar os tuacutemulos dos seus

mortosrdquo

Tabela nordm5 Religiatildeo Frequumlecircncia Percentual

Catoacutelica 171 81

Evangeacutelica 14 7

Espiacuterita 7 3

Outra 15 7

Natildeo tem 3 1

Total 210 100

Por todo o mundo no Ocidente e no Oriente o dia de finados eacute esperado por muitos

como o momento especiacutefico para manifestar saudade piedade e memoacuteria aos seus antepassados

A praacutetica popular da visita aos cemiteacuterios neste dia faz-se pela saudade dos parentes ou

conhecidos falecidos Procede da seguinte maneira enfeitam-se os tuacutemulos rezam pelos

mortos acendem velas em favor das almas dos que partiram

Dessa forma os brasileiros cultivam esse haacutebito de visitar os cemiteacuterios anualmente em

finados na expectativa de rezar interceder ou pedir intercessatildeo aos seus entes falecidos Esse

dado se confirma na grande maioria das respostas da pesquisa Onde se tem que 73 dos

entrevistados afirmam visitar regularmente o cemiteacuterio todos os anos em dia de finados (tabela

6) Questionados se tambeacutem faziam agrave visita em outros dias durante o ano 54 disseram que

natildeo apenas 46 afirmaram visitar noutros dias poreacutem sempre por ocasiatildeo das datas

comemorativas dia das matildees dos pais aniversaacuterios nataliacutecio ou de falecimento (tabela 7)

Tabela nordm6 Visita o Cemiteacuterio Frequumlecircncia Percentual

Todos os Anos 153 73

Irregular 34 16

1 ou 2 Vez que Visita 22 11

Total 209 100

Tabela nordm7 Visita o Cemiteacuterio noutros dias Frequumlecircncia Percentual

Natildeo 110 54

Sim em datas com 95 46

Total 205 100

Outro dado interessante na pesquisa diz respeito ao caraacuteter familiar da visitaccedilatildeo neste

dia Abordados sobre quais os tuacutemulos visitam no cemiteacuterio em finados 76 das pessoas

responderam que satildeo os tuacutemulos dos parentes (quase sempre os dos pais mas tambeacutem avoacutes

irmatildeos esposos tios primos etc)

Haacute tambeacutem agravequeles que visitam a cada 02 de novembro outros tuacutemulos como os dos

santos ou de pessoas famosas Na pesquisa os tuacutemulos de santos e famosos mais visitados

foram os do Beato Padre Eustaacutequio da Irmatilde Benigna e da menina Marlene91 que se encontram

no cemiteacuterio do Bonfim92

Tabela nordm8 Quais tuacutemulos visita Frequumlecircncia Percentual

De parentes 159 76

De parentes famosos santos e

outros 41 20

Outros 8 4

Total 208 100

A visita ao cemiteacuterio trata-se pois de um rito privado onde por ocasiatildeo de finados os

mortos satildeo obrigatoacuteria e religiosamente visitados por seus familiares Mas eacute interessante

perceber que a visita aos mortos no cemiteacuterio ainda que seja prestada de maneira privada

familiar ou individual ocorre em culto puacuteblico e coletivo 91 O Padre Eustaacutequio nasceu na Holanda em 03111890 e faleceu no Brasil na cidade de Belo Horizonte em 30081943 Em 1956 inicia-se o processo de sua canonizaccedilatildeo No ano de 2003 lhe foi conferido o tiacutetulo de veneraacutevel e em maio de 2006 elevado a beato pelo Papa Bento XVI A cerimocircnia de sua beatificaccedilatildeo ocorreu no dia 15062006 no Estaacutedio de futebol Magalhatildees Pinto (Mineiratildeo) em Belo Horizonte Minas Gerais na festa de Corpus Christi durante a 12ordf Torcida de Deus evento religioso que acontece a cada trecircs anos na capital mineira A aceitaccedilatildeo de sua beatificaccedilatildeo estaacute atribuiacuteda agrave cura de um cacircncer de garganta no Padre Gonccedilalo Beleacutem de Belo Horizonte como milagre comprovado cientificamente Sob o lema ldquoSauacutede e Pazrdquo o beato Padre Eustaacutequio tem a histoacuteria marcada pela dedicaccedilatildeo aos doentes e sofredores dos males fiacutesicos e da alma Cf dados in Jornal O Tempo de 15de Junho de 2006 p A12 e A13 A Irmatilde Benigna nasceu em DiamantinaMG no dia 16081907 com o nome de Maria da Conceiccedilatildeo Santos mas em 19031936 em sua 1ordf profissatildeo de feacute na Congregaccedilatildeo mineira das Irmatildes Auxiliares de N Sra da Piedade passa a chamar-se Irmatilde Benigna Victima de Jesus Formada em enfermagem dedicou-se toda sua vida religiosa aos doentes e necessitados desenvolvendo trabalhos em hospitais creches e asilos de Minas Gerais Eacute conhecida como a ldquoSanta da Farturardquo Apoacutes uma vida de total entrega faleceu em 16101981 em Belo horizonte deixando para todos sua marca de feacute e oraccedilatildeo atraveacutes da doaccedilatildeo caridade forccedila humildade e simplicidade Cf Resumo biograacutefico Irmatilde Benigna In Irmatilde Benigna Notiacutecias Informativo da AMAIBEN (Associaccedilatildeo dos Amigos de Irmatilde Benigna Ano 1 nordm5 Belo Horizonte Maio2009 p 3 E a menina Marlene uma crianccedila que para muitas pessoas tem a capacidade de fazer milagres Os trecircs se encontram na classe de santos populares e seus tuacutemulos no Cemiteacuterio do Bonfim satildeo os mais visitados em finados 92 Importa ressaltar que os peregrinos em finados agraves vezes visitam mais de um cemiteacuterio Neste caso por exemplo os visitantes afirmavam visitar o cemiteacuterio da Paz (por causa dos parentes) e o do Bonfim (pelos santos de devoccedilatildeo)

Culto privado pois mas tambeacutem desde a origem culto puacuteblico O culto da recordaccedilatildeo estendeu-se imediatamente do indiviacuteduo agrave sociedade na sequumlecircncia de um mesmo movimento da sensibilidade93

Dessa forma o culto aos mortos em dia de finados tradicionalmente concebido como

um culto privado eacute tambeacutem um dia de culto puacuteblico e coletivo que tem lugar no cemiteacuterio Eacute um

dia anualmente propiacutecio para o encontro e reconhecimento reciacuteproco94 em que se celebram

antes de tudo os mortos privados da e pela famiacutelia

O Dia de Finados traz um significado de inversatildeo da realidade cotidiana ao celebrar a

lembranccedila dos irmatildeos falecidos Seu ritual consiste na forma de recordaccedilatildeo da qual apresenta a

manifestaccedilatildeo de piedade dos vivos pelos mortos atraveacutes da visita agrave sepultura dos seus falecidos

Eacute um momento de lembrar e homenagear agravequeles que se foram ofertando-lhes flores

acendendo velas e fazendo oraccedilotildees

Aliaacutes eacute bastante comum a praacutetica de ofertas oraccedilotildees ou preces nos tuacutemulos Pode-se

dizer que representa o momento mais individual e iacutentimo entre os familiares e seu morto A

visita ao tuacutemulo tem esse aspecto simboacutelico de remeter a presenccedila do falecido Presenccedila esta

que para muitos eacute vista como reproduccedilatildeo da personalidade que o morto tinha em vida Por

exemplo muitos visitantes apoacutes fazerem suas oraccedilotildees depositam no tuacutemulo natildeo apenas flores

ou velas como tambeacutem outros objetos95 que em vida ou na hora da morte lhe faltou aacutegua patildeo e

no caso de crianccedilas brinquedos e chocolates Alguns visitantes inclusive conversam com os

seus entes diante da sua sepultura Eacute importante esse tempo para a oraccedilatildeo que poderaacute ser de

agradecimento suacuteplica pedido ou ateacute mesmo de promessa dos vivos para os mortos A visita

em finados tem essa caracteriacutestica tornar-se um momento iacutentimo entre vivos e mortos

De fato sobre isso a pesquisa mostra com quase unanimidade que 99 dos visitantes

tecircm o costume de fazer alguma oraccedilatildeo ou prece no tuacutemulo Nas respostas aparece liderando a

oraccedilatildeo do pai-nosso e ave-maria 54 Depois em proporccedilotildees aproximadas estatildeo oraccedilotildees

espontacircneas 12 junto com a oraccedilatildeo do terccedilo 13 e somando as demais oraccedilotildees (para almas

santo anjo salve rainha mensagem dia de finados etc) temos 20 das respostas

Tabela nordm9 Vocecirc faz oraccedilatildeo ou prece nos tuacutemulos Frequumlecircncia Percentual

Sim Pai-nosso 43 21

Sim Pai-nosso e Ave-maria 70 33

93 ARIEgraveS Philippe Histoacuteria da Morte no Ocidente desde a Idade Meacutedia Lisboa Teorema 1975 p 50 94 Na relaccedilatildeo devoto e santo haacute uma reciprocidade ldquoFazem parte da biografia e dos atributos de qualquer mediador sobrenatural obrigaccedilotildees de socorro aos humanos assim com fazem parte do compromisso de qualquer devoto atos rotineiros de confirmaccedilatildeo da fidelidade ao padroeirordquo Cf Brandatildeo (1986-192) 95 Esse tipo de oferta se observa mais comumente em tuacutemulos de mortos com caracteriacutesticas de santo popular que sofreram algum tipo de privaccedilatildeo no momento da morte Inclusive pode mesmo ser de um morto bandido que posteriormente se torna santo Como no caso de Baracho (bandido perseguido pela poliacutecia que em fuga antes de morrer pede aacutegua mas morre com sede E hoje considerado santo seus devotos ofertam garrafas de aacutegua em sua sepultura como gesto de gratidatildeo pelas graccedilas alcanccediladas)

Sim Terccedilo 27 13

Sim Oraccedilotildees espontacircneas 26 12

Sim Outras 42 20

Natildeo 2 1

Total 210 100

A caminhada ao tuacutemulo em dia de finados eacute um acontecimento socio-religioso e

apresenta caracteriacutesticas comuns agraves peregrinaccedilotildees Pois haacute um deslocar-se a um lugar santo o

qual estaacute de certo modo fora do mundo habitual em que tradiccedilotildees religiosas do povo estatildeo

reunidas e estatildeo sendo vividas com a maior intensidade

Para os visitantes em finados as almas dos mortos estatildeo presentes no cemiteacuterio e visitaacute-las em seu tuacutemulo lhes eacute agradaacutevel e traz para os vivos o sentido de missatildeo cumprida Em alguns entrevistados por exemplo observam-se falas nas quais aparecem expressotildees do tipo ldquoo dia de finados eacute dia de cumprir nosso dever para com os que jaacute se foramrdquo ou ldquovir ao cemiteacuterio no dia de finados eacute cumprir uma obrigaccedilatildeordquo ldquoos mortos gostam de receber a nossa visitardquo e ldquoeles ficam esperando se a gente natildeo vem ficam tristesrdquo

Dessa forma entende-se que o culto aos mortos no cemiteacuterio em dia de finados tem como rito principal a visita ao tuacutemulo com o seu caraacuteter familiar e privado Donde prevalece a praacutetica da oraccedilatildeo ou prece diante da sepultura indicando que pela consciecircncia do povo tudo que diz respeito aos mortos eacute coisa espiritual revestida de sacralidade daiacute a necessidade da ritualizaccedilatildeo Pela pesquisa o culto mais difundido no cemiteacuterio nesse dia eacute a celebraccedilatildeo da missa para os defuntos De acordo com o resultado do questionaacuterio 47 dos visitantes participam dessa celebraccedilatildeo Reforccedilando assim a ideacuteia de se tratar de um ritual tipicamente catoacutelico

Tabela nordm10 Vai Participar de Celebraccedilatildeo ou Ritual para os defuntos Frequumlecircncia Percentual

Sim Missa 98 47

Sim Missa ou culto 68 32

Sim Outras 25 12

Natildeo 19 9

Total 210 1000

Assim como no fenocircmeno da peregrinaccedilatildeo a visita aos cemiteacuterios em dia de finados

apresenta tambeacutem esse caminhar Mas haacute um diferencial no ritual de finados que eacute o seu caraacuteter

individual e (ou) familiar nem sempre com objetivo religioso expliacutecito mas que tambeacutem

representa um forte momento de manifestaccedilatildeo socio-religiosa um caminhar de esperanccedila ao

encontro dos entes queridos que se foram

O que chamamos de ldquopequenas romariasrdquo se refere a esse lsquocaminharrsquo aos cemiteacuterios

para a visita aos tuacutemulos dos mortos os quais se tornam santificados pelos seus e que satildeo

capazes de levar aos cemiteacuterios no segundo dia de novembro milhotildees de ldquoperegrinosrdquo para

fazer suas oraccedilotildees agradecimentos demonstrar sua lembranccedila ou simplesmente manifestar

saudades Ou seja a visita ao cemiteacuterio em finados se assemelha a uma romaria pelo fato do seu

lsquodeslocar-sersquo e pocircr-se a caminho em demanda ao campo santoo cemiteacuterio Para o encontro

simboacutelico com agravequele que pode ser lembrado e homenageado com oferendas e de modo

especial com agradecimentos

De acordo com a pesquisa assim como nas peregrinaccedilotildees religiosas muitos visitante-

peregrinos dos cemiteacuterios em finados pedem ou esperam receber neste dia com a visita alguma

graccedila (tabela 11)

Tabela nordm11 Vocecirc pede ou espera receber graccedilas ou meacuteritos com a visita Frequumlecircncia Percentual

Sim 117 56

Natildeo 92 44

Total 209 1000

Para o devoto peregrino a dinacircmica de sair do seu lugar cotidiano e retornar ao lugar de

origem tem um caraacuteter de missatildeo cumprida Esse retornar marca a forccedila da realizaccedilatildeo do

simboacutelico encontro com o seu santo numa relaccedilatildeo direta e sem intermediaacuterios

A romaria eacute essa jornada esse estaacute a caminho que leva um romeiro a sair de sua casa

sua realidade concreta para ir sozinho ou em caravana fazer romaria a um santuaacuterio de sua

devoccedilatildeo A fim de cumprir promessas ou agradecer becircnccedilatildeos recebidas

Por isso as romarias representam um forte momento de intensa praacutetica religiosa onde se

daacute o encontro do santo com o fiel De maneira mais singela eacute justamente isso o que acontece no

caso das pequenas romarias em finados

A celebraccedilatildeo de finados produz impacto na realidade contemporacircnea

O culto nos cemiteacuterios de visita aos tuacutemulos dos parentes ganhou grande impacto e

proporccedilatildeo nas sociedades ocidentais Principalmente devido agrave adoccedilatildeo de um dia especiacutefico para

a sua visitaccedilatildeo96 O costume funeraacuterio de visita ao tuacutemulo em dia de finados eacute uma praacutetica

96 A igreja cristatilde sempre rezou pelos mortos Os cristatildeos do primeiro seacuteculo visitavam os tuacutemulos dos maacutertires da feacute nas catacumbas para homenageaacute-los Mas a origem do Omnium Fidelium Defunctorum (dia dos fieacuteis defuntos) tambeacutem chamado Dia de Finados ou dia dos mortos surge no Ocidente no seacuteculo X com o abade beneditino Odilon do Mosteiro de Cluny na Franccedila O monge Odilon introduz aos demais monges essa praacutetica de rezar por todos os mortos sejam eles conhecidos ou desconhecidos leigos ou religiosos e de todos os lugares De acordo com O Padre Antocircnio Gonccedilalves o abade Odilon mandou que fosse celebrado o ofiacutecio pelos defuntos na tarde do dia primeiro de Novembro Soacute mais tarde somente quatro seacuteculos depois a Igreja Catoacutelica adotou no mundo inteiro essa praacutetica passando o dia 02 de Novembro a ser considerado um dia de oraccedilotildees pelos irmatildeos jaacute falecidos Este dia portanto consiste na visita aos cemiteacuterios e estaacute ligado agrave

contemporacircnea que proporciona a manifestaccedilatildeo da incriacutevel peregrinaccedilatildeo de novembro que leva

em um uacutenico dia milhotildees de peregrinos aos cemiteacuterios

Nesse sentido o presente comportamento humano na expressatildeo religiosa da celebraccedilatildeo do rito de finados produz impacto na realidade contemporacircnea Jaacute que a complexa situaccedilatildeo contraditoacuteria existente entre a crisenegaccedilatildeo da morte na atualidade e a atitude humana de visita ao cemiteacuterio e ao tuacutemulo da famiacutelia atinge a proacutepria realidade da estrutura social proporcionando agrave difusatildeo do religioso numa sociedade secularizada pouco favoraacutevel as manifestaccedilotildees religiosas

Com as respostas da questatildeo nordm 15 do questionaacuterio aplicado aos visitantes do Cemiteacuterio Municipal da Paz em Belo Horizonte o resultado apresenta o objetivo a que se propocircs demonstrar o fenocircmeno religioso do Dia de Finados como um tipo de peregrinaccedilatildeo contemporacircnea Contribuindo assim para maior compreensatildeo sobre a vida e a morte Re-significando a morte como parte integrante da proacutepria vida humana

Tabela nordm12 Vocecirc considera a visita ao cemiteacuterio uma forma de peregrinaccedilatildeo ou romaria Frequumlecircncia Percentual

Sim 159 77

Natildeo 48 23

Total 207 100

Tabela nordm12b Visita o Cemiteacuterio

Vocecirc considera

Todos os anos

Irregular 1ordf ou 2ordf vez que visita

Natildeo respondeu

Total

a visita ao cemiteacuterio Sim

113 30 15 1 159

uma forma de Natildeo

37 4 7 0 48

Romaria Total 150 34 22 1 207

Portanto o termo pequenas romarias em dia de finados possui a marcante caracteriacutestica de um ldquoperegrinar contemporacircneordquo Pelo fato de que a visita aos cemiteacuterios que leva os familiares a fazerem suas manifestaccedilotildees puacuteblicas de devoccedilatildeo aos seus falecidos pessoas simples que representam para eles algo sagrado remete ao mesmo objetivo que levam peregrinos ao final de sua peregrinaccedilatildeo chegar ao santuaacuterio e encontrar o seu sagrado seu santo

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GT Novos Movimentos Religiosos

EMENTAS Um movimento religioso em torno agrave reza do terccedilo uma devoccedilatildeo masculina em Itauacutena-MG Elizabeth Carvalho Vou descrever e analisar o movimento religioso da cidade de Itauacutena (MG) onde em 1955 teria aparecido Nossa Senhora fato que se repetiu algumas vezes ateacute 1966 dando lugar a uma grande devoccedilatildeo mariana na cidade Apoacutes o teacutermino das apariccedilotildees o local passou a abrigar celebraccedilotildees oficiais mas principalmente devoccedilotildees isoladas ateacute que em agosto de 2006 um padre receacutem-chegado convidou dezessete homens para rezarem o terccedilo e hoje esse grupo chega a dois mil homens (sem presenccedila feminina) que se reuacutenem toda quarta-feira Durante uma hora rezam cantam e participam do sorteio que define quem levaraacute para casa um oratoacuterio com a imagem da santa e reuniraacute pessoas da vizinhanccedila para rezarem o terccedilo Eacute um movimento religioso recente que combina devoccedilotildees tradicionais e algumas inovaccedilotildees

Neopentecostalizaccedilatildeo de igrejas histoacutericas protestantes

Nina Gabriela Moreira Braga Rosas

Desde o iniacutecio e no desenrolar do seacuteculo XX destacaram-se no Brasil ondas de pentecostalismo que levaram ao surgimento de novas igrejas como a IURD Renascer em Cristo e outras e tambeacutem influenciaram dissensotildees transformaccedilotildees e desdobramentos de alguns segmentos protestantes histoacutericos (como batistas e presbiterianos) O pentecostalismo alterou grandemente tanto algumas concepccedilotildees teoloacutegicas quanto certos haacutebitos lituacutergicos Jaacute o neopentecostalismo movimento mais recente no cenaacuterio protestante brasileiro tambeacutem tem afetado as igrejas ldquoaindardquo ditas protestantes Essa reflexatildeo pretende traccedilar alguns pontos do cenaacuterio evangeacutelico no Brasil revistando as categorias de compreensatildeo dessas diferenccedilas e apontando para a aparente tendecircncia de neopentecostalizaccedilatildeo das igrejas protestantes histoacutericas A figura do conselheiro no catolicismo sertanejo catolicismo popular Joatildeo Everton da Cruz A expressatildeo ldquocatolicismo popularrdquo sempre esteve distante de uma definiccedilatildeo uniacutevoca O termo catolicismo levanta uma ldquopoeirardquo antiga no acircmbito dos cientistas sociais e teoacutelogos sendo que a expressatildeo utilizada como fenocircmeno religioso direciona-nos para uma pura abstraccedilatildeo Podemos definir o catolicismo popular como uma variaccedilatildeo de crenccedilas e praacuteticas que ao longo da tradiccedilatildeo do cristianismo foram socialmente incorporados como ldquocatoacutelicasrdquo Jaacute com relaccedilatildeo a expressatildeo popular o problema eacute mais complicado e natildeo estaacute imune de uma ambiguumlidade Natildeo vamos tornaacute-la aqui no sentido pejorativo vulgar pois acabariacuteamos identificando-o como uma produccedilatildeo cultural de qualidade subalterna O fenocircmeno religioso do conselheiro no catolicismo popular da cultura nordestina tem suas raiacutezes mais profundas na cultural africana e indiacutegena daiacute o nascedouro onde o conselho eacute de extrema importacircncia na vida das pessoas mesmo com as dependecircncias que ele pode causar mesmo assim o conselho eacute considerado um grande valor que impulsiona as pessoas para o ajustamento da conduta moral e espiritual

GT Novos Movimentos Religiosos

TEXTOS

Um movimento religioso em torno agrave reza do terccedilo uma devoccedilatildeo masculina

em Itauacutena ndash MG

Elizabeth Carvalho97

Itauacutena eacute uma cidade que fica na regiatildeo centro-oeste de Minas e foi fundada em

1901 Jaacute nos anos 50 deacutecada em que para a sociedade brasileira em geral representou

um periacuteodo de grandes mudanccedilas para Itauacutena em particular foi a eacutepoca em que se

popularizou como a cidade onde teriam ocorrido apariccedilotildees de Nossa Senhora O local

das apariccedilotildees era um terreno particular coberto por uma densa mata nativa rodeado por

algumas casas distante aproximadamente a 15 km do centro da cidade Neste local que

hoje segundo o padre Adilson pertence agrave Mitra Diocesana de Divinoacutepolis foi

construiacuteda uma gruta Mais tarde foi entalhada uma imagem de acordo com a descriccedilatildeo

dos videntes que recebeu o nome de Nossa Senhora de Itauacutena O local sempre foi

frequumlentado pela comunidade e por devotos de cidades da regiatildeo Abriga celebraccedilotildees

oficiais e eacute considerado um ponto de oraccedilotildees e peregrinaccedilotildees incrementando muito a

devoccedilatildeo Mariana

Esta comunicaccedilatildeo visa descrever o movimento religioso que vem acontecendo

semanalmente agraves quartas-feiras no local A semente do movimento foi o convite feito

por um padre a alguns homens que rezavam na Gruta mas cada um agrave sua maneira

Padre Adilson Neres atualmente eacute o Vigaacuterio da Paroacutequia de Santanense (bairro de

Itauacutena) mas na eacutepoca atuava na da Paroacutequia de SantrsquoAna agrave qual pertence a Gruta Eacute um

padre ainda jovem muito dinacircmico que gosta de compor e cantar muacutesicas e tambeacutem

toca alguns instrumentos O primeiro terccedilo em grupo foi rezado em uma quarta-feira

agosto de 2006 com apenas alguns homens e atualmente jaacute houve dias em que se

reuniram 2500 Filhos de Maria (como se denominam os homens que participam da reza

do terccedilo) O motivo de ser um movimento apenas masculino eacute segundo relato do Padre

Psicoacuteloga mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo pela PUC Minas

Adilson um pedido dos homens para que possam ldquorezar do seu jeito com mais

liberdaderdquo O grupo continua se reunindo todas as quartas-feiras e a reza do terccedilo dura

uma hora

O presente relato eacute da reza do terccedilo no dia 100609 Fazia frio em Itauacutena o

horaacuterio do terccedilo seria agraves 2000 a noventa minutos de um jogo da seleccedilatildeo brasileira A

movimentaccedilatildeo comeccedilou laacute pelas 1830 quando alguns Filhos de Maria comeccedilaram a

chegar Uns chegam cedo para escolher um local melhor outros para rezar ou pegar

aacutegua benta O local possui 400 assentos entre bancos de alvenaria e cadeiras de plaacutestico

e muitos participantes jaacute levam de casa bancos ou cadeiras dobraacuteveis A maioria usa

uma camisa branca com alguma referecircncia agrave oraccedilatildeo e agrave Nossa Senhora de Itauacutena O

local eacute muito bem iluminado e acolhedor e como fica cercado por aacutervores eacute tambeacutem

muito silencioso

A chegada eacute quase que festiva com um cumprimento oficial de ldquoSalve Mariardquo

Dois voluntaacuterios aguardam no portatildeo de entrada e entregam folhetos com as muacutesicas as

oraccedilotildees e a contemplaccedilatildeo dos misteacuterios No cabeccedilalho uma numeraccedilatildeo que foi

idealizada para a participaccedilatildeo em sorteios e acabou servindo tambeacutem para se estabelecer

a contagem dos participantes Agraves 1915 o folheto entregue jaacute eacute o de nuacutemero 203 Os

participantes vatildeo se acomodando nos assentos e a conversa de alguns natildeo chega a

incomodar aqueles que querem rezar Um dos voluntaacuterios tem a tarefa de vender

camisas e o DVD sobre o terccedilo A renda vai para a receacutem criada Associaccedilatildeo Particular

dos Fieacuteis Agrave medida que se aproxima das 2000 os passos dos que chegam tornam-se

mais raacutepidos Os instrumentos que estavam sendo afinados ou testados jaacute se encontram

dispostos em seus lugares Satildeo vaacuterios dentre eles violatildeo craviola cavaquinho

saxofone gaita pandeiro atabaque etc O padre chega ocupa seu lugar pega seu

violatildeo e com a saudaccedilatildeo de ldquoSalve Mariardquo inicia a oraccedilatildeo O local jaacute se encontra

lotado com aproximadamente 1500 Filhos de Maria

Primeiro vem os avisos (feitos pelo Padre Adilson) das datas em que iratildeo a outras

cidades (Satildeo Joatildeo Del Rey Itapecerica e Juiz de Fora) para participarem da reza do

terccedilo e da entrevista a um programa de TV em Belo Horizonte Informa que os

interessados devem se inscrever mas caso haja mais interessados do que vagas

haveratildeo sorteios Orienta que todos deveratildeo estar com a camisa do movimento e caso

sejam entrevistados que se comportem com naturalidade diante do microfone Fala

tambeacutem sobre as visitas que receberatildeo da gravaccedilatildeo do CD e da ida agrave Aparecida do

Norte (SP) para o Encontro Nacional dos homens que rezam o Terccedilo e tambeacutem do

lanccedilamento do CD na Canccedilatildeo Nova em Cachoeira Paulista Aiacute o padre pergunta se estatildeo

todos armados e eles mostram o terccedilo Anuncia as intenccedilotildees e pede que cada um pense

em sua intenccedilatildeo particular Surge no fundo uma faixa agradecendo por estar a um ano

sem o viacutecio do aacutelcool Um dos organizadores anuncia o sorteio de dois oratoacuterios Um

deles de presente e o outro que deveraacute permanecer sob a guarda do contemplado mas

que deveraacute ser devolvido na proacutexima semana Durante a permanecircncia com o oratoacuterio o

guardiatildeo estaraacute encarregado de rezar o terccedilo em casa E assim todos de peacute com a

expressatildeo serena e o terccedilo na matildeo inicia-se a reza com uma muacutesica composta pelo

Padre Adilson O sinal da cruz tambeacutem eacute cantado assim como as trecircs Ave-Marias O

Pai Nosso e o Gloacuteria satildeo rezados de forma convencional Existe uma muacutesica especiacutefica

para cada um dos misteacuterios e a de hoje dos misteacuterios gozozos eacute ldquoTaacute caindo fulocirc Taacute

caindo fulocirc (2x) Laacute do ceacuteu caacute na terra taacute caindo fulocirc Das matildeos de Nossa Senhora taacute

caindo fulocircrdquo

Todos cantam muitos levantam os braccedilos em gestos contidos mas firmes Forma-

se entre duas fileiras de bancos uma fila de bandeirinhas brancas Satildeo os onze homens

que vatildeo rezar o Pai Nosso e as dez Ave Marias Satildeo crianccedilas ou adultos que se oferecem

para rezar As bandeirinhas coladas em um bastatildeo de um metro mais ou menos satildeo

distribuiacutedas de forma setorizada para facilitar a movimentaccedilatildeo dos participantes Cada

um dos participantes que vai rezando vai devolvendo a bandeirinha para um dos

voluntaacuterios e retorna a seu lugar E assim cada misteacuterio eacute rezado de modo bem

democraacutetico e organizado Cada misteacuterio com bandeirinhas de uma cor e em um local

para dar oportunidade a todos Transcorre assim a reza do terccedilo com muita feacute e

participaccedilatildeo Apoacutes o quinto misteacuterio um manto branco (com mais ou menos 30 msup2

como aquelas bandeiras enormes usadas em campo de futebol) e com a imagem de

Nossa Senhora de Itauacutena eacute desenrolado laacute na frente e vai passando para traacutes e todos os

participantes fazem questatildeo de tocaacute-lo sem palavras apenas o feito de tocar o objeto

sagrado O agradecimento e a Salve Rainha satildeo declamados e em seguida mais trecircs

muacutesicas pequenas e bem conhecidas satildeo cantadas Com um ldquoreforccedilordquo aos avisos

encerra-se o encontro deste dia Apoacutes a despedida os Filhos de Maria vatildeo saindo com

passos firmes mas discretos e com calma Sozinhos ou em pequenos grupos vatildeo

percorrendo o caminho de volta para casa onde a famiacutelia como um tronco firme apoacuteia

a sua devoccedilatildeo

Percebe-se que o movimento religioso em Itauacutena vem crescendo rapidamente Eacute

uma manifestaccedilatildeo popular atraveacutes de uma oraccedilatildeo (Reza do Terccedilo) sempre praticada

mas que foi revigorada apoacutes o Conciacutelio Vaticano II e floresceu mais ainda com a

Renovaccedilatildeo Carismaacutetica Catoacutelica atraveacutes da grande ecircnfase dada agrave Nossa Senhora

Segundo o proacuteprio Padre Adilson o grande cultivador do movimento existem muitos

grupos masculinos que se reuacutenem para rezar mas nenhum com nuacutemero tatildeo avantajado

como o grupo de Itauacutena O grupo jaacute possui uma identidade na cidade e sementes estatildeo

sendo lanccediladas devido agrave significativa participaccedilatildeo de crianccedilas Os frutos satildeo a

ldquoexportaccedilatildeordquo do formato do terccedilo para outras localidades a criaccedilatildeo de uma Associaccedilatildeo

Beneficente a contiacutenua divulgaccedilatildeo pelos fieacuteis e o sentimento de pertenccedila que como

uma irrigaccedilatildeo promove a motivaccedilatildeo semanal do grupo Se o movimento sugere uma

forma de institucionalizar a devoccedilatildeo Mariana ou a religiosidade oferece tambeacutem aos

Filhos de Maria uma oportunidade para excursotildees a outras cidades oportunidade para

participar de programas de raacutedio e televisatildeo e ateacute da gravaccedilatildeo de um DVD e de um CD

Hoje os Filhos de Maria se ramificam e buscam uma estruturaccedilatildeo para que possam

crescer de forma mais ordenada e com objetivos mais especiacuteficos Se o movimento se

esvair deixaraacute marcas por onde passou como o movimento carismaacutetico que influenciou

vaacuterios destes novos movimentos religiosos talvez o proacuteprio Terccedilo dos Homens de

Itauacutena

Neopentecostalizaccedilatildeo de igrejas histoacutericas protestantes

Nina Gabriela Moreira Braga Rosas

Protestantismo histoacuterico pentecostalismo e neopentecostalismo uma introduccedilatildeo

Chama atenccedilatildeo nos dias de hoje a ampla gama de possibilidades evangeacutelicas O nuacutemero

desse grupo de religiosos brasileiros tem crescido constantemente Sob a categoria de

evangeacutelicos o IBGE (2000) agrega protestantes de tipo histoacuterico pentecostais e

neopentecostais Compreendem-se por evangeacutelicos fieacuteis pertencentes agraves igrejas tais como

Luterana Presbiteriana Congregacional Anglicana Metodista Batista Congregaccedilatildeo Cristatilde do

Brasil Assembleacuteia de Deus Igreja do Evangelho Quadrangular Brasil para Cristo Deus eacute

Amor Casa da Benccedilatildeo Igreja Universal do Reino de Deus Nova Vida etc que perfazem cerca

de 26184942 de pessoas Poreacutem essa conspiacutecua expansatildeo dos evangeacutelicos natildeo se deve ao

aumento de igrejas protestantes histoacutericas caracterizadas principalmente pelas denominaccedilotildees

batistas e presbiterianas mas sim ao grupo que tem assumido grande visibilidade e destaque a

saber os antigos e novos pentecostais98 Essa diferenccedila fica muito evidente em termos

numeacutericos quando se percebe que de 1991 a 2000 os pentecostais passaram de cerca de 8

milhotildees para quase 18 milhotildees de adeptos enquanto o aumento dos protestantes histoacutericos

elevou a taxa de cerca de 4 milhotildees para menos de 7 milhotildees Apesar de aparentemente irrisoacuteria

se comparada agrave taxa de crescimento dos pentecostais os protestantes histoacutericos tambeacutem

ampliaram o alcance de fieacuteis visto que na deacutecada anterior tiveram taxa de crescimento negativo

de -04 Natildeo obstante o fato de jaacute poder ser percebido a presenccedila de profissionais liberais

empresaacuterios atletas e artistas nas igrejas pentecostais dados desse mesmo Censo salientam o

fato de que a maior parte dos pentecostais tem renda e escolaridade inferior agrave meacutedia da

populaccedilatildeo brasileira grande parte deles possuindo empregos domeacutesticos e recebendo ateacute trecircs

salaacuterios miacutenimos Jaacute protestantes histoacutericos apresentam renda e escolaridade bem mais elevadas

satildeo indiviacuteduos ligados a setores urbanos meacutedios conservadores com ecircnfase na educaccedilatildeo de

ensino meacutedio por vezes graduaccedilatildeo e poacutes- graduaccedilatildeo e renda entre seis e vinte salaacuterios miacutenimos

Instituiccedilatildeo de origem UFMG bull Atividade Estudante de poacutes-graduaccedilatildeo bull Instituiccedilatildeo financiadora CNPq 98 Esse trabalho leva em conta o aacuterduo esforccedilo da literatura socioloacutegica no sentido de percorrer as ceacuteleres modificaccedilotildees da conjectura protestante brasileira Apresenta-se desde jaacute a expectativa de que ao longo desse trabalho esses esforccedilos apareccedilam naturalmente no sentido de clarificar as terminologias aqui empregadas tanto no sentido de natildeo desconhecer o esforccedilo classificatoacuterio quanto no sentido de levar em conta determinadas irredutibilidades de certas formas de expressotildees religiosas

99 O crescimento numeacuterico e a apariccedilatildeo na miacutedia de pentecostais e neopentecostais aumentou

consequumlentemente a produccedilatildeo acadecircmica sobre esse fenocircmeno Observa-se que pobres e

marginalizados optam voluntariamente por religiotildees de tipo pentecostais onde encontraram

apoio conforto ajuda emocional espiritual e muitas vezes ateacute material Mas essas natildeo satildeo as

uacutenicas fontes de crescimento do pentecostalismo e de suas vertentes A consolidaccedilatildeo e a

institucionalizaccedilatildeo dessas religiotildees emotivas certa ldquopentecostalizaccedilatildeordquo do protestantismo

histoacuterico (ou renovaccedilatildeo) e a raacutepida expansatildeo da Renovaccedilatildeo Carismaacutetica100 tornaram o cenaacuterio

brasileiro eminentemente pentecostal

Haacute uma grande dificuldade de classificar e tipologizar igrejas pelos criteacuterios de

tamanho raio de accedilatildeo estrutura burocraacutetica e financeira fidelidade do pagamento de diacutezimos

assiduidade dos fieacuteis nos cultos rigidez no coacutedigo doutrinaacuterio grau de acesso aos sacramentos

do batismo e da ceia haacutebitos asceacuteticos de santidade movimento cronoloacutegico do surgimento

dessas igrejas surgimento por missionaacuterios fusotildees cisotildees ou ateacute mesmo pelos criteacuterios de

definiccedilatildeo de movimentos paraeclesiaacutesticos independentes Atualmente esses fatores se

combinam esboccedilando diferentes possibilidades Brandatildeo (citado em Mariano 1999) oferece

uma divisatildeo classificatoacuteria colocando de um lado eruditos dominantes representados pelo

protestantismo histoacuterico e de outro populares caracterizados por pequenas seitas e pelo

movimento de cura divina No meio desses dois grandes grupos estariam igrejas de mediaccedilatildeo

como os pentecostais tradicionais sendo um exemplo a Assembleacuteia de Deus

Para os fins dessa discussatildeo entender-se-aacute por pentecostais os protestantes que se

pautam na crenccedila da contemporaneidade dos dons do Espiacuterito de que os grandes feitos

operados por Jesus continuam ainda hoje atraveacutes da cura divina da realizaccedilatildeo de milagres

ldquoprofeciasrdquo da manifestaccedilatildeo dos dom de liacutenguas e discernimento de espiacuteritos (baseado na

descida do Espiacuterito Santo em Pentecostes) que se manifestam sobretudo no emocionalismo

religioso que pode levar agrave catarse Seguindo a caracterizaccedilatildeo de Paul Freston (1993) as

classificaccedilotildees do CEDI (Centro Ecumecircnico de Documentaccedilatildeo e Informaccedilatildeo) as anaacutelises de

Mendonccedila de 1989 e as de Brandatildeo de 1980 para aleacutem das peculiaridades de suas

categorizaccedilotildees as primeiras igrejas pentecostais a chegarem ao Brasil dataram entrada em 1910

- 1911 sendo elas a Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil fundada pelo missionaacuterio italiano Louis

Francesco em Satildeo Paulo e no Paranaacute e a Assembleacuteia de Deus fundada por Gunnar Vingren e

Daniel Berg suecos que se instalaram em Beleacutem do Paraacute sendo os trecircs disciacutepulos de William

H Durham de Chicago A maior parte da membresia dessas igrejas eram pessoas pobres e de

99 Tais informaccedilotildees foram retiradas dos trabalhos ldquoExpansatildeo pentecostal no Brasil o caso da Igreja Universalrdquo (Mariano 2000) ldquoNeopentecostaisrdquo (Mariano 2005) ldquoO mal exorcizado cura divina entre os neopentecostais da Igreja Internacional da Graccedila de Deusrdquo (Pinezi e Romanelli 2003) e ldquoA construccedilatildeo da diferenccedila no protestantismo brasileirordquo (Tiago Watanabe 2007) 100 Movimento leigo da linha pentecostal oriundo dos EUA que afetou o catolicismo brasileiro no iniacutecio dos anos 70 (Mariano 1999)

baixa escolaridade Tambeacutem apresentava um anticatolicismo exacerbado acompanhado da

grande ecircnfase no dom de liacutenguas (glossolalia) e na crenccedila na volta imediata de Cristo

(paroussia) o que se contrapunha agrave espera resignada de protestantes histoacutericos (batistas

presbiterianos luteranos) Fieacuteis oriundos de igrejas da primeira onda do pentecostalismo criam

na salvaccedilatildeo e na existecircncia do paraiacuteso se comportavam de modo sectaacuterio e asceacutetico rejeitando

o mundo e suas seduccedilotildees Eacute visiacutevel a postura de apego aos usos e costumes asceacuteticos de

santidade por parte dos pentecostais claacutessicos 101 como exemplificado nas palavras de Ricardo

Gondin teoacutelogo e pastor da Assembleacuteia de Deus quando questionado sobre o abandono dos

usos e costumes

ldquoO que nos faz parecer com o mundo natildeo eacute o jeito como a gente se veste ou a maneira como a gente fala ou que tipo de lugares que frequumlentamos Estamos sim mais mundanos mas natildeo porque a gente deixou de ser legalista O que faz a gente ser parecido com o mundo satildeo os conteuacutedos do nosso caraacuteter as opccedilotildees que fazemos ndash se dizemos ldquosimrdquo ou ldquonatildeordquo a determinadas oportunidades que surgemrdquo (Entrevista agrave Revista Ecleacutetica dezembro de 2004)

Jaacute a segunda onda eacute marcada pela implantaccedilatildeo de outras igrejas no territoacuterio brasileiro

na deacutecada de 50 Contraacuterio a algumas classificaccedilotildees Marino mostra que essas igrejas de

segunda fase do pentecostalismo foram denominaccedilotildees novas surgidas como fruto da Cruzada

Nacional de Evangelizaccedilatildeo coordenada pelos missionaacuterios americanos Harold Williams e

Raymond Boatright ex-atores de filmes faroestes e vinculados agrave International Church of

Foursquare Gospel que trazida para o Brasil foi chamada de Igreja do Evangelho Quadrangular

Essa campanha da Cruzada enfatizava a cura divina centrada no evangelismo de massa e atingia

a camadas mais pobres da populaccedilatildeo No sucesso desse proselitismo surgiram a igreja Brasil

para Cristo em Satildeo Paulo no ano de 1955 a igreja Deus eacute Amor tambeacutem em Satildeo Paulo em

1962 a Casa da Benccedilatildeo em Belo Horizonte em 1964 e vaacuterias outras igrejas de expressotildees

menores De acordo com Beatriz Muniz de Souza (citada em Mariano 2005) o nuacutecleo

teoloacutegico-doutrinaacuterio dessas igrejas quase natildeo apresentou mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves igrejas da

primeira onda salvo na ecircnfase nos dons do Espiacuterito que enquanto a Assembleacuteia de Deus e a

Congregaccedilatildeo Cristatilde enfatizavam a glossolalia as igrejas que surgiram em torno da deacutecada de 50

enfatizavam o dom de cura divina Com exceccedilatildeo da crenccedila na predestinaccedilatildeo que era mantida

pela Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil a proximidade teoloacutegica entre essas igrejas pode ser

atribuiacuteda pelo fato da igreja Quadrangular vinda dos EUA (que deu origem agrave segunda onda)

compartilhar das mesmas doutrinas dos missionaacuterios estrangeiros que fundaram as igrejas de

101 Ricardo Mariano adota o termo claacutessico ao se referir agraves igrejas pentecostais pioneiras Assembleacuteia de Deus e Congregaccedilatildeo Cristatilde do Brasil Ele chama a atenccedilatildeo para o processo de rotinizaccedilatildeo do carisma a que essas igrejas tecircm passado institucionalizando-se enquanto religiatildeo ascendendo-se social e economicamente criando um corpo burocraacutetico para administrar a igreja e dificultando a ascensatildeo eclesiaacutestica por estimular a formaccedilatildeo teoloacutegica de seu clero (Mariano 2005 p 24)

primeira onda Outra caracteriacutestica distintiva que aparece nos anos 60 eacute o uso de meios de

comunicaccedilatildeo de massa como o raacutedio jornais e folhetos que eram considerados (devido agraves

praacuteticas sectaristas das igrejas das deacutecadas de 20 e 30) como instrumentos satacircnicos O

evangelismo dessas novas igrejas tambeacutem se valeu de teatros praccedilas puacuteblicas ginaacutesios e outros

espaccedilos informais para propagaccedilatildeo da mensagem do evangelho

O neopentecostalismo eacute o chamado ldquonovo pentecostalismo no Brasilrdquo por diferir em

muito enquanto movimento das caracteriacutesticas que marcaram as igrejas de primeira e segunda

onda De fato o que ocorre eacute certo hibridismo no que tange aos trecircs momentos do fenocircmeno

pentecostal mostrado nas peculiaridades doutrinaacuterias e lituacutergicas de cada igreja que impede a

classificaccedilatildeo generalista de tais comunidades enquanto unicamente pertencentes a apenas uma

das trecircs ondas102 Ricardo Mariano por exemplo natildeo se aborrece em usar o termo

neopentecostais Essa expressatildeo jaacute tem sido consolidada ao tratar desse assunto na sociologia da

religiatildeo 103 Tratada como a terceira onda do movimento pentecostal aparece em meados dos

anos 70 e 80 com o surgimento da igreja Universal do Reino de Deus sua principal expressatildeo e

com a fundaccedilatildeo posteriormente das igrejas Internacional da Graccedila de Deus Renascer em Cristo

e Comunidade Evangeacutelica Sara Nossa Terra Os neopentecostais contrariamente aos

pentecostais das primeiras ondas promoveram grande liberdade quanto agraves representaccedilotildees em

torno do corpo exacerbaram a guerra contra o diabo em seu maacuteximo aderiram e acentuaram a

pregaccedilatildeo da Teologia da Prosperidade _ de que eacute devido aos filhos de Deus o usufruir dos bens

que Ele reservou aos seus ainda na terra Como exemplo na paacutegina online da Igreja Universal

(retirado em 26112007) constava os seguintes dizeres ldquoMedo Eacute exatamente o que impede

muita gente de sair da caverna Diz a Biacuteblia que Gideatildeo se revoltou partiu para o tudo ou

nada arriscando a proacutepria vida Essa era a chamada de uma das Novenas que acontecia aos

domingos E ainda continuava ldquoDeus se sente indignado revoltado porque as pessoas que natildeo

tecircm absolutamente nada a ver com Ele estatildeo aiacute vivendo bem comendo do bom e do melhor e o

Seu povo comendo das migalhas vivendo na mais completa miseacuteriardquo ressaltava o bispo

orientando a todos que estavam nessa condiccedilatildeo a natildeo aceitarem mais o fracasso tendo em vista

102 Nas discussotildees do Seminaacuterio Pentecostalismo em debate realizado em 1996 e formatado como livro publicado em 1998 Ceciacutelia Mariz retoma a discussatildeo sobre os criteacuterios de classificaccedilatildeo apontando para a possibilidade de existirem muacuteltiplas terminologias e distinccedilotildees no sentido de serem as categorizaccedilotildees construccedilatildeo e exploraccedilatildeo de um dado objeto em uma realidade especiacutefica Esse trabalho concorda aleacutem disso que a imensa riqueza da pluralidade pentecostal pode se perder nessas tentativas de tipologizar determinado fenocircmeno mas que em outra medida a resistecircncia agrave realizaccedilatildeo de um esforccedilo classificatoacuterio implica necessariamente em assumir a natildeo correspondecircncia a natildeo aproximaccedilatildeo ou a natildeo evidecircncia de um conjunto de fatores comuns representando pobreza na qualidade de descriccedilatildeo e compreensatildeo do fenocircmeno estudado de seus alcances de suas implicaccedilotildees e de suas possiacuteveis direccedilotildees 103 Segundo Emerson Giumbelli (2000) na deacutecada de 60 o termo neopentecostais serviu para designar o movimento carismaacutetico que atingiu igrejas protestantes histoacutericas e a Igreja Catoacutelica Posteriormente tal termo foi utilizado em outros contextos e passou a ganhar novos sentidos tais como nos trabalhos de Mendonccedila (1994) Sanchis (1994) Mariano (199519961998) Monteiro (1995) e muitos outros aleacutem de ter sido tiacutetulo de um dossiecirc organizado pela Revista Novos Estudos CEPRAP de 1996

a grandeza do Deus que serviam As pessoas eram convidadas a participarem da Fogueira Santa

de Israel fazendo sacrifiacutecios (especialmente de ordem financeira) para a ldquomaterializaccedilatildeo da feacute

para a conquista do impossiacutevelrdquo Apesar da igreja mais conhecida desse novo modo de ser

pentecostal ser a Igreja Universal do Reino de Deus em outras comunidades evangeacutelicas eacute

possiacutevel notar tambeacutem o uso crescente de objetos sagrados a ampla liberdade das emoccedilotildees e

expressotildees e a acentuada catarse individual e coletiva Paralela agrave triacuteade_ cura exorcismo

prosperidade _ as igrejas tem ser estruturado empresarialmente incrementando sua participaccedilatildeo

na poliacutetica partidaacuteria nos postos de poder nos setores puacuteblico e privado e usado religiosamente

a TV e o raacutedio como nunca antes Diferentemente dos pentecostais claacutessicos haacute um rompimento

com a relaccedilatildeo de dependecircncia entre estado de santidade (estar cheio do Espiacuterito) e as distinccedilotildees

asceacuteticas de aparecircncia De fato jaacute natildeo se distingue mais alguns evangeacutelicos por haacutebitos como

deixar de usar maquiagem saias longas recusa a ouvir muacutesicas ldquodo mundordquo ou a participar de

um churrasco de faculdade De acordo com Mariano haacute um crescente processo de

ldquomundanizaccedilatildeordquo em que as fronteiras do mundo e da igreja encontram-se cada vez menos

acentuadas Ao inveacutes de rejeitar o mundo esse novo pentecostalismo passa a afirmaacute-lo uma vez

que o principal sacrifiacutecio exigido por Deus satildeo os diacutezimos e ofertas polpudas em funccedilatildeo de

benefiacutecios materiais sejam eles financeiros sejam de sauacutede uma vez que a maior parte dos fieacuteis

tem dificuldade no acesso a esse tipo de serviccedilo

Joseacute Bittencourt Filho tambeacutem aponta para esse efervescente jeito de ser pentecostal

Utilizando da expressatildeo pentecostalismo autocircnomo ele percebe uma religiosidade muito

original de ldquouma forccedila proselitista extraordinaacuteriardquo que eacute livre a propor novas formas de se

organizar enquanto igreja Assim faz uso pouco comprometido da Biacuteblia (se comparado com o

que defende pastores eou teoacutelogos de outro tipo de protestantismo) se preocupa pouco com a

formaccedilatildeo teoloacutegica de seus liacutederes (e muita das vezes desestimula essa formaccedilatildeo catequeacutetica

pastoral) orienta os cultos como programas de auditoacuterio ou torcidas organizadas aleacutem de

substituir o sacerdoacutecio de todos os santos (desempenho das funccedilotildees espirituais por todos os

crentes sem intermeacutedio) por autoritarismo verticalismo e concentraccedilatildeo de poder Giumbelli

mostra que para Bittencourt tais igrejas descomprometidas com qualquer ldquosenso eclesialrdquo se

tornaram ldquoagecircncias de prestaccedilatildeo de serviccedilo para uma clientela flutuanterdquo Os neopentecostais104

tem um baixo ldquosentimento de adesatildeordquo e muitas das vezes isso implica em baixa

responsabilidade social e moral Para Jesuacutes Hortal os grupos religiosos mais bem sucedidos satildeo

precisamente os que aparentemente apresentam menos exigecircncias e que se comportam como

ldquoagecircncias de prestaccedilatildeo de serviccedilos religiososrdquo de acordo com a sociedade de consumo (citado

104 Para os fins desse trabalho vislumbramos a possibilidade de entender pentecostalismo autocircnomo e neopentecostalismo como a mesma coisa sem entrar nas querelas que o uso distinto de tais categorias possa implicar uma vez elas satildeo utilizadas aqui com o intuito de desenhar o cenaacuterio do diferente pentecostalismo dos dias atuais para assim apontar posteriormente como eacute possiacutevel vislumbrar tais caracteriacutesticas em igrejas protestantes histoacutericas

em Giumbelli) Wania Mesquita tambeacutem ressalta que essa nova forma de religiosidade essa

distinta configuraccedilatildeo pentecostal eacute um ajustamento ao mundo moderno uma acomodaccedilatildeo agrave

cultura de consumo

Nesse iacutenterim as proacuteprias igrejas pentecostais mais antigas como a Assembleacuteia de

Deus tambeacutem sentiram o fogo das outras ondas pentecostais As igrejas do protestantismo

histoacuterico tambeacutem tem se deixado afetar pelo movimento do Espiacuterito Santo trazido pelas ondas

pentecostais mais novas Segundo Francisco Cartaxo Rolim (1985 p 59) a ldquopentecostalizaccedilatildeordquo

das igrejas protestantes histoacutericas105 deu origem ao movimento de renovaccedilatildeo e de restauraccedilatildeo

As igrejas renovadas satildeo para o autor grupos batistas e metodistas wesleyanos adotam um

estilo pentecostal embora conservem a organizaccedilatildeo de suas igrejas de origem Igrejas de

restauraccedilatildeo por outro lado tal qual presbiterianos e metodistas adotam o estilo de culto

pentecostal cacircnticos populares e oraccedilotildees espontacircneas mas sob estrita vigilacircncia para que o

excesso de liberdade natildeo solape o legalismo religioso Em 1996 a pesquisa ldquoNovo Nascimentordquo

do ISER criou a categoria ldquohistoacutericas renovadasrdquo para se referir a outras denominaccedilotildees que

acreditavam na contemporaneidade dos dons do Espiacuterito denominaccedilotildees essas oriundas de

cisotildees de igrejas protestantes histoacutericas a partir da deacutecada de 60 Segundo Mariano

ldquoRenovadas portanto satildeo igrejas dissidentes de denominaccedilotildees protestantes tradicionais que adotam teologia pentecostal incluindo conforme as idiossincrasias do pastor local vaacuterias das inovaccedilotildees teoloacutegicas identificadas com o neopentecostalismordquo (Mariano 2005 p 48)

Eacute possiacutevel apontar ademais que natildeo haacute homogeneidade teoloacutegica ou social quando se

fala de igrejas protestantes As referecircncias de composiccedilatildeo social como escolaridade e renda que

serviam para separar histoacutericos renovados de pentecostais jaacute natildeo serve mais uma vez que jaacute natildeo

satildeo tatildeo distintas Segundo Mariano as pesquisas em torno dessas anaacutelises e classificaccedilotildees natildeo

vatildeo aleacutem disso Natildeo eacute por conseguinte encontrada grande literatura sobre o assunto Segundo o

Censo de 1991 os protestantes renovados eram 194 mil fieacuteis apenas A influecircncia maciccedila das

caracteriacutesticas do pentecostalismo nas igrejas histoacutericas pode levar inclusive a uma futura

dissoluccedilatildeo eou reordenaccedilatildeo dessas classificaccedilotildees que salvo a diferenccedila cronoloacutegico-

institucional natildeo vatildeo aleacutem disso Nesse iacutenterim eacute quanto a influecircncia propriamente do

neopentecostalismo nas igrejas protestantes histoacutericas nesse ensaio se restringindo a algumas

experiecircncias vivenciadas na Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte que a proacutexima

sessatildeo desse trabalho se destina

105 Por igrejas protestantes histoacutericas compreendem-se as igrejas que surgiram na Europa a partir do seacuteculo XVI com a Reforma Protestante tais como as presbiterianas batistas metodistas congregacional e chegaram ao Brasil quer por imigraccedilatildeo ou por missatildeo no final do seacuteculo XIX em diante

A Igreja Batista da Lagoinha protestante histoacuterica protestante renovada

pentecostal neopentecostal

ldquo() quanto mais proacutexima destas caracteriacutesticas estiver tanto mais adequado seraacute classificaacute-la como neopentecostal Isto eacute quanto menos sectaacuteria e asceacutetica e quanto mais liberal e tendente a investir em atividades extra-igreja (empresariais poliacuteticas culturais assistenciais) sobretudo naquelas tradicionalmente rejeitadas ou reprovadas pelo pentecostalismo claacutessico mais proacuteximo tal hipoteacutetica igreja estaraacute do espiacuterito do ethos do modo de ser das componentes da vertente neopentecostalrdquo (Mariano 1999 p37)

As fronteiras jaacute pouco perceptiacuteveis entre ldquomundordquo e ldquoigrejardquo vistas pelo viacuteeis do

crescente abandono do comportamento asceacutetico e sectarista que os pentecostais claacutessicos

mantinham tecircm sido percebidas tambeacutem na pentecostalizaccedilatildeo neopentecostalizaccedilatildeo das

igrejas protestantes histoacutericas Para esse trabalho vou me ater no caso da Igreja Batista da

Lagoinha em Belo Horizonte como exemplo da significativa influecircncia neopentecostal Eacute

devido ressaltar antes de mais nada o acanhamento desse trabalho sua pequeniacutessima pretensatildeo

seu grande aspecto inicialmente especulativo descritivo que pretende recolher-se ao caraacuteter de

uma exploraccedilatildeo em parte socioloacutegica em parte nativa 106 uma investigaccedilatildeo para futuras

pesquisas e desenvolvimentos Natildeo tem de modo algum a perspicaacutecia de uma pesquisa de

longo prazo o focirclego de um trabalho intenso de campo a complexa polifonia do cenaacuterio

evangeacutelico brasileiro Ainda assim a anotaccedilatildeo de alguns incocircmodos pode apontar para mais

uma minuacutecia do pentecostalismo no Brasil uma de suas direccedilotildees um de seus matizes

As igrejas protestantes histoacutericas ao passarem por um processo de pentecostalizaccedilatildeo e

se autodenominarem ldquoigrejas renovadasrdquo adotam os dons do Espiacuterito Santo em especial a

glossolalia e a cura divina Ricardo Mariano em um artigo publicado em 1999 com o tiacutetulo de

ldquoO futuro natildeo seraacute protestanterdquo demonstra o decliacutenio derradeiro do protestantismo tradicional ou

histoacuterico e o crescimento alarmante do pentecostalismo Infelizmente omito a citaccedilatildeo pontual

do livro ldquoFogo sobre a terra brasileira o impacto do pentecostalismo no protestantismo histoacuterico

brasileiro de Magalhatildees Jr por falta de acesso Segundo ele esse processo pelo qual algumas

igrejas protestantes passaram foi de fundamental importacircncia para romper com a diferenccedila

abissal que existia entre protestantismo histoacuterico e pentecostalismo (aparentemente

irreconciliaacuteveis) aparecendo como mediador entre poacutelos opostos (citado em Siepierski 2001)

Esse processo foi certamente desgastante pois muitas igrejas foram expulsas das convenccedilotildees a

que pertenciam Um caso digno de nota eacute o da Igreja Batista

106 Essa posiccedilatildeo tratada por Pedro Ribeiro de Oliveira em ldquoEstudos da religiatildeo no Brasil um dilema entre academia e instituiccedilotildees religiosasrdquo demonstra a ambivalecircncia da posiccedilatildeo de por um lado pesquisador suspeito no mundo acadecircmico por seu comprometimento com a religiatildeo e por outro leigo um tanto quanto intrometido e assim desqualificado em alguma medida no ambiente eclesiaacutestico Esse desconforto parece contudo uma vantagem de natildeo se passar de um lado para outro sem uma devida consciecircncia

A igreja Batista surgiu107 na Europa em 1609 na Holanda fundada por John Smyth e

Thomas Helwys que criam na necessidade de realizarem um batismo com consciecircncia Apoacutes a

morte de Jonh Smyth Thomas Helwys organizou a Igreja Batista em Spitalfields nos arredores

de Londres em 1612 A praacutetica comum de batizar por imersatildeo soacute ocorreu em 1642 e em 1644

foi elaborada a primeira Confissatildeo dos particulares No Brasil a crenccedila batista chegou apenas

em 1867 com os refugiados da Guerra Civil Americana na regiatildeo de Santa Baacuterbara do Oeste

onde hoje se localiza a cidade de Americana Os batistas de entatildeo em Santa Baacuterbara do Oeste

se uniram para solicitar a Junta de Richmond dos Estados Unidos o envio de missionaacuterios ao

Brasil Em razatildeo do trabalho de evangelizaccedilatildeo intenso que jaacute realizavam percebem a abertura

dos brasileiros para receberem o evangelho Em 1881 chegam os missionaacuterios William Buck

Bagby Ana Luther Bagby Zacarias Taylor e Katarin Taylor que logo se filiam agrave Igreja Batista

existente e comeccedilam o estudo da liacutengua portuguesa tendo Antonio Teixeira de Albuquerque

um ex-padre catoacutelico como professor

As igrejas Batistas no Brasil se organizam atraveacutes de Convenccedilatildeo (organizaccedilotildees

religiosas federativas sem fins lucrativos) A maior delas Convenccedilatildeo Batista Brasileira

segundo seu proacuteprio estatuto se considera ldquoo oacutergatildeo maacuteximo da denominaccedilatildeo batista no Brasil

Representa cerca de 7000 igrejas 4000 missotildees e 1350000 fieacuteis Como instituiccedilatildeo existe

desde 1907 funciona definindo o padratildeo doutrinaacuterio e unificando o esforccedilo cooperativo dos

batistas do Brasilrdquo (texto adaptado) Suas caracteriacutesticas mais importantes satildeo a liberdade

religiosa o governo democraacutetico a estrutura congregacional a accedilatildeo cooperativa a visatildeo

missionaacuteria o padratildeo de doutrinas e a responsabilidade social Existe ainda outra grande

Convenccedilatildeo que foi criada em 1967 cisatildeo da primeira denominada Convenccedilatildeo Batista

Nacional fundada por iniciativa das igrejas batistas por tempo indeterminando que tem como

base a crenccedila em Jesus Cristo como Senhor e Salvador e a doutrina do batismo no Espiacuterito

Santo bem como o exerciacutecio dos dons espirituais buscando sempre o avivamento Essa

Convenccedilatildeo foi criada pelo pastou Eneacuteas Tognini a partir da experiecircncia do batismo pentecostal

por fieacuteis em Belo Horizonte Reunindo cerca de 1500 igrejas atinge em torno de 390000

adeptos desse tipo de batista Sua ecircnfase estaacute em cooperar com as igrejas para ldquoque cumpram

seus objetivos de modo a transformar a sociedade pelo cumprimento da missatildeo integral da

igreja pelo poder do Espiacuterito Santordquo com accedilotildees seculares e teoloacutegicas discipulado e

107 O advento da Igreja Batista enquanto denominaccedilatildeo seu surgimento e expansatildeo no Brasil a divisatildeo dos batistas em suas principais Convenccedilotildees bem como a histoacuteria da Igreja Batista da Lagoinha _ aleacutem das experiecircncias particulares e conhecimento evangeacutelico pessoal _ foram retiradas predominantemente dos seguintes endereccedilos eletrocircnicos httpptwikipediaorgwikiIgreja_Batista httpwwwlagoinhacomenginephp httpwwwbatistasorgbrindexphpoption=com_contentampview=articleampid=19ampItemid=12 httpwwwcbnorgbrindexphpoption=com_contentampview=articleampid=49ampItemid=140

responsabilidade social para promover o reino de Deus (texto adaptado) No histoacuterico dessas

Convenccedilotildees eacute interessante notar suas narrativas sobre a dissidecircncia

ldquoMas neste momento (renovaccedilatildeo espiritual) o inimigo furioso quis destruir Conseguiu dividir a unidade batista e o mesmo aconteceu com outras denominaccedilotildees histoacutericas Apoacutes muitos acontecimentos oficialmente em janeiro de 1965 na cidade de Niteroacutei a Convenccedilatildeo Batista Brasileira excluiu cerca de 32 igrejas de seu rol No ano seguinte o nuacutemero de igrejas desarroladas chegou a 52rdquo (Excerto retirado da histoacuteria da Convenccedilatildeo Batista Nacional) ldquoNem tudo satildeo flores na caminhada da obra batista do Brasil e da Convenccedilatildeo Ela tem atravessado problemas administrativos seacuterios ameaccedilas de divisatildeo e questotildees doutrinaacuterias Poreacutem tornou-se centro de vida batista brasileira e da motivaccedilatildeo do trabalho realizado em todo o territoacuteriordquo (Uacutenica menccedilatildeo encontrada sobre a divisatildeo na histoacuteria da Convenccedilatildeo Batista Brasileira)

Muitas igrejas batistas se organizam de modo independente sem estarem ligadas a nenhuma das

duas Convenccedilotildees Algumas delas se ligaram agrave Comunhatildeo Batista Biacuteblica Nacional e agrave

Comunhatildeo Reformada Batista no Brasil A maior parte dessas comunidades satildeo de orientaccedilatildeo

pentecostal Outro exemplo que pode ser evocado eacute a Primeira Igreja Batista do Brasil em

Salvador com cerca de 4 mil membros que se pentecostalizou no final da deacutecada de 80 e jaacute

tentou se desligar muitas vezes da Convenccedilatildeo Brasileira (a mais tradicional) Permanece a ela

ligada e nunca foi questionada por suas praacuteticas inovadoras (Magalhatildees Jr citado por Siepierski

2001)

A igreja batista de maior expressatildeo em Belo Horizonte108 eacute a Igreja Batista da Lagoinha

(IBL) Circula-se a informaccedilatildeo entre seus membros de que ela atinge a cifra de 40 mil fieacuteis A

IBL foi fundada em dezembro de 1957 com ata assinada por trecircs irmatildeos de outras

denominaccedilotildees batistas sendo ela considerada a 6ordf igreja batista em Belo Horizonte O primeiro

pastor a assumir a frente desse ministeacuterio foi o paraibano Joseacute Rego do Nascimento que havia

sido batizado pelo Espiacuterito Santo em seu escritoacuterio e em casa Criticado por muitos dos

membros e acusado de herege por uma minoria o pastor e outros fieacuteis se mudaram do endereccedilo

onde estavam e deram iniacutecio a outra igreja Com essa iniciativa ldquoLagoinha abriu uma nova

geraccedilatildeo na histoacuteria do protestantismo brasileiro no meio dos evangeacutelicos histoacutericos (os

tradicionais) havia agora os ldquorenovadosrdquo (batizados com o Espiacuterito Santo)rdquo (retirado do site da

IBL) Com a doenccedila do liacuteder Joseacute Rego a igreja passou por vaacuterios pastores ateacute ser liderada por

Maacutercio Roberto Viera Valadatildeo em 1972 pastor que a lidera ateacute os dias de hoje apoiado por sua

108 Registro um agradecimento especial ao teoacutelogo Claacuteudio de Castro Correcirca pelas discussotildees e grande contribuiccedilatildeo no fornecimento de informaccedilotildees que foram preciosas para esse trabalho por ele experimentadas durante o periacuteodo de sua formaccedilatildeo acadecircmica que em parte foi vinculada a IBL

famiacutelia que encabeccedila alguns ministeacuterios na igreja como a liacuteder de louvor do ldquoDiante do Tronordquo 109 Ana Paula Valadatildeo Bessa e os irmatildeos a cantora Mariana Valadatildeo e o pastor Andreacute Valadatildeo

A Igreja Batista da Lagoinha eacute em parte uma protestante claacutessica visto que pertence a

uma Convenccedilatildeo de Igrejas protestantes histoacutericas_ Convenccedilatildeo essa que apesar de ter se

desligado da mais antiga por crer na contemporaneidade dos dons do Espiacuterito conserva em seus

estatutos dogmas e preceitos exatamente o mesmo conteuacutedo da Convenccedilatildeo da qual saiu Mas

pelo mesmo motivo satildeo pentecostais pois se surgiram na renovaccedilatildeo da crenccedila e na aceitaccedilatildeo

das manifestaccedilotildees do Espiacuterito Santo como jaacute apresentado Tambeacutem satildeo neopentecostais uma

vez que acompanham todas as inovaccedilotildees que as igrejas que surgiram na deacutecada de 80 em diante

criaram Ao longo do restante desse trabalho procurar-se-aacute mostrar em que medida a IBL se

apresenta pentecostal e tambeacutem neopentecostal uma vez que eacute notoacuterio o seu sentido renovado

em sua proacutepria constituiccedilatildeo enquanto igreja Antes contudo se abri um parecircntese para pensar

como de modo geral as religiotildees tendem a atender as exigecircncias das massas que natildeo cultivam a

religiosidade em seu sentido intelectual

Certa condescendecircncia

Condescender significa ceder agrave vontade alheia pelo desejo de agradar Para Weber ldquo()

essa situaccedilatildeo eacute comum a todo tipo de sacerdoacutecio Para manter sua posiccedilatildeo de poder

frequumlentemente tem de condescender em alto grau agraves necessidades dos leigosrdquo (Economia e

Sociedade 1991) As igrejas que expressam uma forma outra110 de religiosidade bem como as

que dela ldquobebemrdquo parecem se dotar de atributos extremamente atrativos para seus fieacuteis Pinezi e

Romanelli atribuem a grande adesatildeo agraves denominaccedilotildees neopentecostais ao fato dessas

apresentarem soluccedilotildees praacuteticas e imediatas para problemas cotidianos e por terem um tipo de

culto caracterizado pelo forte teor de emoccedilatildeo em que os fieacuteis quase tocam a divindade (opcit

paacuteg 67) Prandi a exemplo disso afirma que

ldquoo que haacute de mais caracteriacutestico na multiplicaccedilatildeo mais recente de religiotildees e na expansatildeo da conversatildeo ou reconversatildeo a essa novas ou renovadas formas de crenccedilas eacute a falta de compromisso com qualquer postura que revele o caraacuteter racional cientiacutefico e historicista fundante da sociedade na sua presumida

109 O Ministeacuterio de Louvor Diante do Trono eacute hoje amplamente conhecido natildeo apenas no meio batista mas no evangeacutelico de modo geral Comeccedilou em 1997 quando Ana Paula Valadatildeo e o maestro Seacutergio que estudavam nos EUA no seminaacuterio RHEMA regressaram ao Brasil e sentiram grande desejo de formar um grupo musical Com a lucratividade do CD manteriam o Projeto Ashastan ndash Iacutendia com a finalidade de retirar meninas da prostituiccedilatildeo 110 A utilizaccedilatildeo dessa expressatildeo tem como intuito apontar a contribuiccedilatildeo da perspectiva de retorno agrave religiatildeo presente por exemplo em Gianni Vattimo e que propotildee revolver as concepccedilotildees sobre o assunto no sentido de pensar natildeo novas mas outras possibilidades de compreensatildeo do religioso aqui no caso do pentecostalismo mais recente Vaacuterios pesquisadores tem guiado seus trabalhos nessa perspectiva como o que Leacutea Freitas Perez chamou de ldquooxigenar as perspectivas correntesrdquo Essa ideacuteia de retorno poacutes-moderno tambeacutem aparece pontuada em ldquoNovas perspectivas globalizaccedilatildeo Otaacutevio Velho 1995 p 222

modernidade desencantadardquo (Prandi citado em Siepierski 2001)

Pelo que parece a promessa da salvaccedilatildeo instantacircnea a atribuiccedilatildeo aos males da vida ao

diabo e agraves forccedilas espirituais a crescente toleracircncia em relaccedilatildeo aos costumes ldquomundanosrdquo

hedonistas a valoraccedilatildeo dos bens dessa vida a possibilidade cataacutertica pessoal e coletiva bem

como a oferta raacutepida e imediata de produtos que atendam agraves necessidades dos fieacuteis enfim ldquoo

pronto-socorro espiritualrdquo que tem se constituiacutedo a partir dessas praacuteticas tecircm sido responsaacuteveis

pelo aumento absurdo que se observa na aderecircncia ao neopentecostalismo

Trago Weber para ilustrar que segundo ele frente agrave forccedila da profecia do

tradicionalismo leigo e do racionalismo leigo haacute o pleito do exerciacutecio sacerdotal Quanto mais

uma congregaccedilatildeo e seus sacerdotes se tornam portadores de uma religiatildeo maiores satildeo as

distinccedilotildees dogmaacuteticas de natureza tanto praacutetica quanto teoacuterica que apresentam

consequumlentemente O autor frisa sobre a postulaccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo que decida sobre a

ortodoxia de uma doutrina com vistas a preservar a unidade congregacional que pode ser

ameaccedilada pela concorrecircncia entre o trabalho intelectual do sacerdote e o racionalismo leigo

despertado pela educaccedilatildeo Entretanto Weber acrescenta que eacute a ldquocura das almasrdquo (assistecircncia

religiosa aos indiviacuteduos) o grande poder que os sacerdotes detecircm Poreacutem outro poder que os

sacerdotes tecircm de enfrentar eacute o tradicionalismo leigo um retorno no sentido de recuperar

alguns traccedilos maacutegicos certa condescendecircncia a despeito das praacuteticas e das ideacuteias dos leigos

O ldquovale do salrdquo (na IURD eacute um caminho de sal colocado no altar da igreja para

proporcionar a manifestaccedilatildeo de democircnios nos que passam por ele) a conversa com os diabos

os copos de aacutegua que satildeo consagrados em cima da televisatildeo e proporcionam cura e mudanccedila de

vida as expressotildees de catarse ocasionadas pelo sopro agrave distacircncia de um liacuteder entre outros natildeo

seriam exemplos dessa condescendecircncia E o que dizer da invasatildeo de praacuteticas performaacuteticas

proacuteprias do neopentecostalismo nas demais igrejas de hoje Natildeo seriam mostras de

condescendecircncia Talvez natildeo alcance exatamente o que Weber queria inferir com essas

colocaccedilotildees mas posso ousar dizer que os exemplos dados sobre essas igrejas no Brasil parecem

ilustrar perfeitamente a frase que trata de um ldquoprocesso de incorporaccedilatildeo de elementos

populares e ao mesmo tempo maacutegicos pela religiosidade sistematizada pelos sacerdotesrdquo

(Weber 1991 paacuteg 320) Deixando Weber falar por si sobre a inevitabilidade da

condescendecircncia vecirc-se

ldquoPor isso quanto mais um sacerdoacutecio pretende regulamentar de acordo com a vontade divina a praacutetica da vida tambeacutem dos leigos e sobretudo apoiar nisso seu poder e suas receitas tanto mais tem de adaptar sua doutrina e suas accedilotildees ao mundo de ideacuteias tradicional dos leigos () Quanto mais a grande massa se torna entatildeo objeto da influecircncia e apoio do poder dos sacerdotes tanto mais o trabalho sistematizador destes tem de

se concentrar nas formas mais tradicionais isto eacute nas formas maacutegicas das ideacuteias e das praacuteticas religiosasrdquo (Opcit paacuteg 319)

E ainda

ldquo() regularmente muda (a profecia) seu caraacuteter no momento em que se estende aos ciacuterculos leigos que natildeo cultivam especiacutefica e profissionalmente o intelectualismo como tal e mais ainda () o produto da adaptaccedilatildeo inevitaacutevel agraves necessidades das massasrdquo (Opcit paacuteg 322)

Segundo o autor o termo maacutegico (accedilatildeo religiosa magicamente motivada) parece se

referir ao oposto do que se entende por racionalismo e intelectualismo sendo o recurso utilitaacuterio

ao sobrenatural uma accedilatildeo racional (mesmo que natildeo orientada por meios e fins) que se guia

pelas regras da experiecircncia (Weber Opcit p 279) norteada para esse mundo e que natildeo se

pode separar do ciacuterculo das accedilotildees cotidianas Weber parece conceber as massas como

responsaacuteveis sempre por ldquopuxarem pra traacutesrdquo as religiotildees fazendo com que essas retornem em

alguma medida agrave magia que foi abandonada com a ruptura profeacutetica Ele aponta que todas as

religiotildees todas as religiotildees e eacuteticas religiosas com exceccedilatildeo apenas do judaiacutesmo e do

protestantismo tiveram de admitir ao se adaptarem agraves necessidades das massas o culto aos

santos a deuses ou a heroacuteis os quais recebem a verdadeira e cotidiana devoccedilatildeo das massas Mas

ao sobrepor o cenaacuterio neopentecostal ao esboccedilo weberiano exposto alguma coisa parece estar

errada Estariacuteamos de fato falando do protestantismo ao qual Weber se referiu Grande maioria

dos pesquisadores pensa que natildeo Rubem Alves111 chega a considerar que esse protestantismo

weberiano (erudito secularizado racionalizado promotor da modernidade e da ciecircncia) nunca

existiu no Brasil Mesmo assim eacute possiacutevel pensar ateacute que ponto essa inserccedilatildeo de valores e

praacuteticas trazidas pelo neopentecostalismo natildeo concentraria a verdadeira devoccedilatildeo cotidiana das

massas Rotomando os excertos do site da Convenccedilatildeo Batista Nacional um ponto eacute digno de

nota na descriccedilatildeo de sua histoacuteria

ldquoRenovaccedilatildeo Espiritual como a palavra bem o expressa eacute aproveitar o que existe Joseacute Rego do Nascimento gritou muitas vezes Renovaccedilatildeo Espiritual eacute uma mensagem biacuteblica no poder do Espiacuterito para sacudir as igrejas que existem mas que dormem embaladas pelo comodismo e pela inatividade Quando esta mensagem comeccedilou a entrar nas igrejas histoacutericas correspondia exatamente ao anseio do nosso povo Era resposta divina de oraccedilotildees que os servos do Senhor fizeram de joelhos ou com o rosto em terra e com laacutegrimas Igrejas se despertaram e comeccedilaram a viver no poder do Espiacuterito e a experimentarem vitoacuterias retumbantes no Senhorrdquo (grifo acrescentado descuidos gramaticais acertados)

111 Alves citado em Mariano 1999

Ao lado dessa ideacuteia de magia Giumbelli pontua que ldquoreligiotildeesrdquo (opostas agraves praacuteticas

maacutegicas) seriam os movimentos distinguiacuteveis por um culto agrave divindade e pela busca da salvaccedilatildeo

por um conjunto de adeptos coesamente articulados pela adesatildeo a uma doutrina e a uma eacutetica

que respondem a um chamado e natildeo que tem livre escolha diante do mercado de bens

espirituais A religiosidade maacutegica segundo ele natildeo serve a Deus mas procura Dele se servir

ou se servir de algo colocado no lugar Dele para atingir fins desejados Haacute assim uma

fragilidade na dimensatildeo eacutetica fragilidade esta vista (atualmente) pela ecircnfase na accedilatildeo demoniacuteaca

descristalizaccedilatildeo das noccedilotildees de responsabilidade moral livre-arbiacutetrio e culpa na valorizaccedilatildeo da

posse de bens e no abandono das praacuteticas asceacuteticas que separavam os indiviacuteduos do mundo O

sentido de retorno ao comportamento maacutegico tambeacutem pode ser visto a partir das consideraccedilotildees

do neopentecostalismo a la Ricardo Mariano se for imputada a interpretaccedilatildeo de Giumbelli

quanto agrave noccedilatildeo de magia no autor Citando-o

Quanto agrave ldquomagiardquo ela ficaria expliacutecita na forma de relaccedilatildeo do fiel ldquoneopentecostalrdquo com Deus que se efetiva atraveacutes dos diacutezimos e especialmente atraveacutes das ofertas jaacute que estas expressariam um compromisso em funccedilatildeo do qual por iniciativa do fiel Deus estaria coagido a cumprir seus desejos Mas tambeacutem como explicita outro texto (Mariano 1996a) na incorporaccedilatildeo sincreacutetica de elementos de religiotildees maacutegicas e na atribuiccedilatildeo de poderes sobrenaturais a uma miriacuteade de objetos distribuiacutedos nos cultos (Gimbelli 2000 p 106)

Leonildo Silveira Campos (1997) mostra que o exorcismo a cura e a prosperidade

passaram a integrar o pentecostalismo com vistas a atingir as necessidades dos fieacuteis Igrejas

organizadas por meio de praacuteticas de marketing e administraccedilatildeo e que tem uma lideranccedila forte

apresentam tambeacutem uma magia organizada ou sindicalizada ou seja a institucionalizaccedilatildeo de

praacuteticas e crenccedilas maacutegico-religiosas (Mariano 2005) que uma vez que eacute a igreja a mediadora

dos poderes divinos e no intuito de atender eficientemente agraves necessidades da clientela a

rotinizaccedilatildeo desses serviccedilos religiosos se daacute pela apresentaccedilatildeo de um calendaacuterio de cultos com

objetivos e propoacutesitos especiacuteficos Na IURD por exemplo domingo eacute reuniatildeo de louvor e

adoraccedilatildeo segunda a reuniatildeo eacute empresarial da Naccedilatildeo dos 318 e saacutebado eacute a Terapia do Amor

Demais reuniotildees satildeo destinadas a correntes campanhas e rituais de libertaccedilatildeo Na IBL do

mesmo modo segunda culto das grandezas de Deus dos empresaacuterios e dos desempregados

terccedila culto com o pastor Andreacute Valadatildeo (de cura e manifestaccedilotildees espirituais) quarta culto de

milagres saacutebado culto de jovens e domingo culto com o pastor Maacutercio Valadatildeo que eacute culto de

adoraccedilatildeo

A influecircncia que o neopentecostalismo tem exercido dentro das igrejas eacute notoacuteria

Entende-se dentro dessa tipologia neopentecostalismo principalmente a presenccedila da triacuteade

exorcismo cura e prosperidade o abandono aos usos e costumes que estigmatizavam os crentes

a organizaccedilatildeo das igrejas empresarialmente o uso pouco sistemaacutetico da biacuteblia o verticalismo de

sua lideranccedila a magia institucionalizada Vejamos alguns exemplos Em um excerto de uma

muacutesica cantada na IBL e em seus shows aparece a guerra espiritual contra o diabo

COMO UM LEAtildeO QUE RUGE O DIABO QUER NOS DEVORAR ESTAacute BUSCANDO BRECHAS PARA DESTRUIRROUBAR E MATAR

NAtildeO Eacute NA NOSSA FORCcedilA QUE PODEMOS VENCER MAIOR Eacute JESUS EM NOacuteS VEM NOS DEFENDER ()

() JESUS CRUCIFICADO E O INFERNO EM FESTA SE ALEGROU PENSAVAM TER VENCIDO E DERROTADO O SALVADOR

() BEM NO MEIO DA FESTA O DIABO COMECcedilOU A OUVIR PASSOS FORTES QUE TREMIAM TODA A TERRA E FOI CONFERIR

QUANDO AS PORTAS SE ABRIRAM AO CORDEIRO VIU E COMO UM LEAtildeO JESUS RUGIU

CAIU COMO SERPENTE E TODO PRINCIPADO SE PROSTROU O LEAtildeO DE JUDAacute PISOU BEM FORTE E OS ESMAGOU

TOMOU A CHAVES DAS MAtildeOS DO DIABO ABRIU MINHAS CADEIAS E ME RESGATOU

() HOJE EU SOU LIVRE PARA AMAR A DEUS

VIVER VITORIOSO COMO UM FILHO SEU HOJE EU SOU LIVRE PARA CELEBRAR

O PECADO NAtildeO PODE MAIS ME DOMINAR A Vitoacuteria da Cruz- CD Aacuteguas Purificadoras ndashLagoinha

(negrito acrescentado)

Apesar de a muacutesica tratar da ressurreiccedilatildeo de Cristo no final e da vitoria do Salvador o

diabo precisa ser exorcizado da vida dos crentes A Igreja da Lagoinha tinha ateacute 2008 um culto

agraves quartas-feiras denominado ldquoBatalha Espiritualrdquo com a Pastora Laeacutelcia Neles acontecem

curas das enfermidades expulsatildeo maciccedila de democircnios e manifestaccedilotildees espirituais das mais

diversas Os liacutederes que tem a funccedilatildeo de ldquobatalha espiritualrdquo ou ldquodom de maravilhasrdquo (espeacutecie

de crente que tem o dom de expulsar democircnios e de curar respectivamente) recebem e satildeo

instruiacutedos com uma ficha com as mais distintas classificaccedilotildees para preencher junto aos fieacuteis

anotando os tipos de diabos existentes nomes que retomam reafirmando o universo afro tais

como ldquotranca ruardquo ldquoexuacute-caveirardquo ldquopomba-girardquo ldquomaria-mulambordquo ldquopreto-velhordquo ldquomenino de

angolardquo aleacutem de suas classificaccedilotildees regionais comarcas de influecircncias entre outras

caracteriacutesticas

O pastor Andreacute Valadatildeo filho do atual liacuteder Maacutercio Valadatildeo titular da igreja tem uma

grife de roupas modernas (Ameacutem) com mensagens discretamente evangeacutelicas trajes que podem

ser comprados em algumas lojas de shopping como a Ponto M ( M) Tambeacutem sobre o

abandono dos usos e costumes evidenciado pela crescente indistinccedilatildeo que se vecirc entre um crente

e um natildeo crente no site da Lagoinha haacute uma mateacuteria intitulada ldquoO que tem de errado com

minha roupardquo em que se destaca a seguinte passagem

ldquoA beleza principal vem de dentro para fora e natildeo eacute de fora para dentro que vocecirc vai conseguir isso Natildeo eacute por acaso que vemos vaacuterios casais que podemos dizer satildeo um tanto

incompatiacuteveis aos nossos olhos mas se completam perfeitamente graccedilas ao amor de Deus e ao Espiacuterito Santo do Senhor que estaacute entre eles Seja ungido ou ungida santo ou santa e principalmente mostre em seu exterior o que o mundo mais precisa ver ultimamente JESUS (negrito acrescentado)

O usufruir da vida que Deus daacute a seus filhos ainda na terra eacute evidenciado pelo caraacuteter das

pregaccedilotildees e exemplo de sucesso financeiro emocional e social do Pr Maacutercio Valadatildeo e famiacutelia

Os muitos cultos semanais (49 ao todo) as diversas iniciativas de congressos (Cura da Alma

Nacional para a conquista dos Sete Montes da sociedade Casados para Sempre Reuniatildeo de

Marketing e Venda Encontro de Avivamento) e os ldquoEncontrosrdquo 112 para a libertaccedilatildeo cura

preparaccedilatildeo espiritual e batismo satildeo espaccedilos onde satildeo enfatizadas as ldquobatalhas espirituaisrdquo ldquoatos

profeacuteticosrdquo ldquocobertura espiritualrdquo e ldquoquebra de maldiccedilotildees

Ainda eacute perceptiacutevel a grande importacircncia que a Igreja da Lagoinha atribui agrave televisatildeo

uma vez que eacute proprietaacuteria do Canal Rede Super Inuacutemeros programas satildeo destinados a

propagar a feacute e a doutrina por eles defendida Aleacutem disso essa igreja tem voltado suas

preocupaccedilotildees a realizar diversos programas sociais como o ldquoDia da Super Accedilatildeordquo em que

promovem um assistencialismo proselitista Para completar ainda pode ser acrescentada a

participaccedilatildeo cada vez maior de membros da IBL na poliacutetica partidaacuteria Um exemplo eacute o

deputado e pastor Wanderley Miranda um dos mais votados em Minas Gerais A complexidade

e funcionalidade da IBL eacute difiacutecil de ser compreendida engloba inuacutemeras aacutereas de atuaccedilatildeo

seminaacuterios escolas ministeacuterios iniciativas sociais aleacutem de grande variedade de culto

ampliando cada vez mais o alcance a fieacuteis

Algumas consideraccedilotildees a fim de pensar uma neopentecostalizaccedilatildeo das igrejas

protestantes histoacutericas

Pensar as terminologias utilizadas para a compreensatildeo do fenocircmeno pentecostal faz

sentido na medida em que a realidade se torna mais plural e mais complexa e carece de novas

categorizaccedilotildees Segundo Ricardo Mariano as alteraccedilotildees trazidas pelo neopentecostalismo

acabam por colocar as religiotildees evangeacutelicas muito proacuteximas do mundo Esse novo

pentecostalismo promove ajustamentos sociais e transforma a religiatildeo protestante em um

fenocircmeno cada vez menos sectaacuterio e asceacutetico e quase indistinguiacutevel do mundo Antocircnio Gouvecirca

Mendonccedila113 afirma que o protestante histoacuterico de hoje eacute fundamentalista conservador

112 ldquoEncontrosrdquo satildeo retiros espirituais oriundos da teologia do Movimento G12 criado por Castellantildeos que pensava a igreja dividida em pequenos grupos chamados ceacutelulas Os ldquoEncontrosrdquo duram normalmente 03 dias e satildeo realizados por membros das ceacutelulas O batismo dos fieacuteis atualmente eacute orientado para que seja realizado apenas apoacutes a participaccedilatildeo do fiel nessa espeacutecie de acampamento pois eacute atraveacutes das praacuteticas laacute vivenciadas que o indiviacuteduo ldquotoma consciecircncia espiritualrdquo e se arrepende de seus pecados e dos delitos de seus antepassados 113 Mendonccedila e Velasques citado em Mariano 1999

autoritaacuterio passivo e anticultural Ele pontua que sua mensagem teoloacutegica encontra-se em crise

e agrave beira da indigecircncia E ainda conclui que natildeo haacute outra saiacuteda ao protestantismo tradicional se

natildeo voltar agrave Reforma iniciada por Lutero Apesar de esse escrito datar da deacutecada de 90 parece

que os protestantes encontraram outro caminho_ o caminho da neopentecostalizaccedilatildeo A

classificaccedilatildeo114 sugerida por Freston para o campo protestante apresenta as categorias

ldquoprotestantismo de migraccedilatildeordquo ldquoprotestantismo de missatildeordquo ldquopentecostalismordquo ldquocarismaacuteticosrdquo

Essa tipologia natildeo se distingue em quase nada da proposta de Mendonccedila e Bittencourt

respeitando a divisatildeo entre ldquohistoacutericosrdquo e ldquopentecostaisrdquo e adotando para os primeiros o ldquocriteacuterio

histoacuterico-institucionalrdquo Siepierski sugere uma alternativa para a categoria neopentecostalismo

a expressatildeo ldquopoacutes-pentecostalismordquo Pois para ele os elementos protestantes que haviam no

pentecostalismo tais como a centralidade da figura de Cristo o uso diligente da Biacuteblia e a

uniatildeo da feacute com a eacutetica estatildeo praticamente ausentes rompendo com os princiacutepios centrais da

Reforma ldquoA Reforma significou um processo de ldquodesmagicizaccedilatildeordquo do catolicismo e a produccedilatildeo

de um ethos em que a riqueza sinal de salvaccedilatildeo tornasse o corolaacuterio de uma disciplinardquo

(Giumbelli 2000) A menor presenccedila de uma proposta eacutetica e moral em funccedilatildeo da maior

adesatildeo a elementos maacutegicos e suas soluccedilotildees imediatas leva a pensar na neopentecostalizaccedilatildeo

das igrejas de hoje ao inveacutes de apenas renovaccedilatildeo e restauraccedilatildeo A organizaccedilatildeo empresarial e

mercadoloacutegica das igrejas os cultos cataacuterticos preparados para as grandes massas que cada vez

mais atingem membros de pouca escolaridade e baixo acesso a bens de sauacutede a composiccedilatildeo de

uma lideranccedila forte e bem-sucedida que concentra grande poder em suas matildeos a presenccedila de

empresaacuterios esportistas cantores celebridades e poliacuteticos nas igrejas a eminente guerra contra

o diabo e a afirmaccedilatildeo de deuses afros na busca de cura e libertaccedilatildeo dos democircnios bem como a

ecircnfase na prosperidade satildeo marcas evidentes de que as igrejas ora protestantes ora

pentecostais estatildeo se neopentecostalizando Os crentes satildeo livres para viverem uma vida normal

e tranquumlila fazerem faculdade irem a estaacutedios de futebol cinema festas bares Ao mesmo

tempo que satildeo bem sucedidos no mundo satildeo liacutederes de ceacutelulas participam de ldquodanccedilas

profeacuteticasrdquo se engajam em uma infinidade de projetos ministeacuterios movimentos

Rubem Alves faz o diagnoacutestico de que o cenaacuterio percebido nos dias de hoje natildeo se trata

de uma ldquoexplosatildeordquo de pentecostalismo mas sim de uma ldquoimplosatildeordquo do protestantismo

Gimbelli ao inveacutes de procurar pelas formas de ldquoadaptaccedilatildeordquo ao ldquomundordquo propotildee que busquemos

enxergar os mundos que essas igrejas em suas relaccedilotildees com outros agentes sociais constroem

Ateacute que ponto vai tal condescendecircncia Ela pode levar os evangeacutelicos como estes mesmo

dizem a ldquovenderem suas almas pro diabordquo

114 Essas propostas de classificaccedilotildees daqui pra frente citadas foram retiradas do artigo ldquoA vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro publicado na Revista Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro 21 (1) 87-119 2000 por Emerson Giumbelli

Referecircncias bibliograacuteficas

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A figura do conselheiro no catolicismo sertanejo catolicismo popular

Joatildeo Everton da Cruz

INTRODUCcedilAtildeO

Este trabalho compotildee a pesquisa de mestrado do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Ciecircncias

da Religiatildeo da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais ndash PUCMINAS - intitulado

ldquoFrei Damiatildeo uma anaacutelise socioloacutegica sobre o fenocircmeno religioso no Catolicismo Popular

no Nordeste brasileirordquo sob a orientaccedilatildeo do Dr Pedro Assis Ribeiro de Oliveira No mundo

contemporacircneo assistimos ldquoa religiatildeo em movimento constatando o fim das entidades

religiosas antigas e o aparecimento de novas crenccedilas com outras motivaccedilotildees para crer e com a

independecircncia em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees religiosas histoacutericasrdquo causando uma crise nas

instituiccedilotildees religiosas tradicionais O que tem determinado a sociedade contemporacircnea natildeo eacute o

desinteresse face agraves crenccedilas religiosas mas o desaparecimento de sua ldquoregulamentaccedilatildeordquo por

parte das instituiccedilotildees tradicionais que sempre foram portadoras de valores morais e geradoras de

orientaccedilatildeo e esperanccedila

O estudo do Conselheiro no Catolicismo Popular Sertanejo do Nordeste brasileiro vem se

intensificando e abrindo novos horizontes para a Sociologia da Religiatildeo Cada vez mais somos

convencidos de que conhecer eacute sempre um ato de poetar E poetar segundo a etimologia eacute

ldquofazerrdquo eacute ldquocriarrdquo ou ldquoinventarrdquo Por isso a pesquisa natildeo pretende ser mais do que um possiacutevel

diaacutelogo com as outras Eacute uma tese com intenccedilatildeo dialeacutetica natildeo de ensinar mais muito mais de

aprender Contudo maior seraacute a procura sincera das simples afirmaccedilotildees de verdades Pretendo

tecer um texto que seja significativo que ajude a entender melhor a figura do conselheiro na

cultura nordestina Desenvolver uma pesquisa numa oacutetica socioloacutegica acerca da figura do

conselheiro presente na cultura nordestina eacute como fazer uma peregrinaccedilatildeo pelos caminhos das

origens da alma sertaneja do Nordeste brasileiro observando os seus traccedilos e penetrando na sua

intimidade Eacute revelar o misteacuterio eacute perseguir caminhos desvendar os rastros mais profundo da

vida e da morte do presente e do passado do real e do imaginaacuterio

Frei Damiatildeo de Bozzano caminhou pelo Nordeste do Brasil que trata-se de uma regiatildeo

conhecida pelos seguintes Estados do Maranhatildeo Piauiacute Cearaacute Rio Grande do Norte Paraiacuteba

Pernambuco Alagoas Sergipe e Bahia Sendo que a regiatildeo pode ser dividida em trecircs sub-

regiotildees bem distintas com diversas condiccedilotildees climaacuteticas O sertatildeo (semi-aacuterido) o agreste

(chuvas normais) e regiatildeo da cana-de-accediluacutecar (chuvas abundantes) O fenocircmeno religioso que

Mestrando pela PUCMinas (2008-2010)

se formou em torno de Frei Damiatildeo se deu praticamente na regiatildeo do sertatildeo nordestino (no

semi-aacuterido)115 o que natildeo exclui que muitos devotos tenham saiacutedos tambeacutem do agreste116

Para tratar da expressatildeo catolicismo popular numa visatildeo socioloacutegica necessitamos

evidenciar o que se compreende por cada um dos termos e depois a proacutepria expressatildeo

catolicismo popular Por catolicismo entendemos que eacute ldquouma grandeza teoloacutegica como

concretizaccedilatildeo do Evangelho no tempo Eacute tambeacutem uma realidade histoacuterica poliacutetica socioloacutegica

e religiosardquo(BOFF 1976 p 19) Jaacute o termo popular pode exprimir uma conotaccedilatildeo que demarca

uma triacuteade de oposiccedilotildees como o ldquoeruditordquo ldquooficialrdquo e de ldquoeliterdquo (RIBEIRO DE OLIVEIRA

1988 p 139) O termo popular natildeo estaacute isento de uma ambiguidade Natildeo seraacute a nossa intensatildeo

tornaacute-la aqui no sentido pejorativo vulgar depreciativa pois acabariacuteamos identificando-o como

uma produccedilatildeo religiosa de maacute qualidade ou ateacute mesmo subalterna

Para compreendermos o catolicismo popular partimos da expressatildeo de RIBEIRO DE

OLIVEIRA 1985 p 239-240

ldquoO catolicismo popular representa a dominaccedilatildeo pessoal como uma reproduccedilatildeo terrena das relaccedilotildees que ligam o homem a seus protetores celestiaisdesempenham uma funccedilatildeo social importante para a dominaccedilatildeo senhorial uma vez que ele a identifica como a ordem do mundo desejada por Deusrdquo

Na esfera do catolicismo popular existe a figura do conselheiro que passa a reproduzir a

dominaccedilatildeo pessoal como um protetor O catolicismo popular sertanejo eacute uma das formas do

catolicismo popular e tem a sua funcionalidade a partir da figura nuclear que satildeo as devoccedilotildees

aos santos Dito de outra maneira esse catolicismo pode ser definido usando a expressatildeo

popular de existe ldquomuita reza pouca missa muito santo pouco padrerdquo

Pierre Bourdieu (1974 p 27-98) em seu artigo ldquoGecircnese e Estrutura do Campo Religiosordquo

diz que esse esquema de representaccedilotildees e praacuteticas religiosas por meio das quais um valor

religioso eacute dado ao mundo e agrave vida humana resultando numa possiacutevel polarizaccedilatildeo entre a

atividade anocircnima e a atividade coletiva Com a atividade anocircnima todos os componentes do

grupo dominam de forma satisfatoacuteria os esquemas das representaccedilotildees religiosas que satildeo

adquiridas por familiaridade Eacute um serviccedilo religioso de autoconsumo pois os produtores satildeo os

mesmos consumidores possibilitando o estreitamento com os sistemas miacutetico-rituais de

sociedades simples e das ldquoreligiotildees popularesrdquo Com a atividade coletiva acontece que os

agentes religiosos satildeo socialmente oficializados e somente eles podem manejar o conjunto de

conhecimentos normas e rituais enquanto os outros membros do grupo estatildeo limitados a

consumir esse trabalho religioso sofisticando e separando os agentes religiosos dos ldquoleigosrdquo

115 ldquoA identificaccedilatildeordquo do Nordeste e mesmo do SemiAacuterido Nordestino como uma regiatildeo problema eacute simplista diante da heterogeneidade da economia da regiatildeo (LIMA Joseacute Fernandes (Org) Uma proposta de desenvolvimento sustentaacutevel para a regiatildeo de Xingoacute Canindeacute de Satildeo Francisco Instituto de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico de Xingoacute 2003 p 19) 116 Agreste (do latim relativo ao campo campestre) designa uma aacuterea na Regiatildeo Nordeste do Brasil de transiccedilatildeo entre a Zona da Mata e o Sertatildeo Estendendo-se numa vasta aacuterea dos Estados da Bahia Sergipe Alagoas Pernambuco Paraiacuteba e Rio Grande do Norte A aacuterea ocupada pelo Ageste situa-se numa estreita faixa paralela agrave costa Poreacutem eacute uma aacuterea sujeitas a SECAS (Cf httpptwikipediaorgwikiAgreste)

O catolicismo popular sertanejo tem costumes proacuteprios e vive a sua maneira com o miacutenimo

de sacramentos e teorizaccedilotildees e com o maacuteximo de devoccedilotildees rezas procissotildees romarias e santos

intermediadores da salvaccedilatildeo As devoccedilotildees aos santos na cultura popular sertaneja se apresentam

como resposta para dar sentido a sua vida Surge daiacute a importacircncia do conselheiro na vida dos

sertanejos do Nordeste brasileiro Haacute uma fragmentaccedilatildeo deste tipo de catolicismo popular

sertanejo quando recebe uma accedilatildeo repressiva e utilizante face ao catolicismo oficial Essa

repressatildeo por parte da cultura oficial ocorre sobretudo em natildeo pretender compreender os

diversos elementos significativos que compotildeem esse catolicismo estabelecendo uma dicotomia

cultural que se exprime na existecircncia de uma cultura oficial dominante e outra meramente

popular e muitas vezes considerada como algo perifeacuterico e supersticioso Para tanto ambas as

culturas relacionam-se numa contiacutenua tensatildeo sendo que a cultura oficial acaba provocando

continuamente dois posicionamentos agrave cultura natildeo-oficial a repressatildeo e a utilizaccedilatildeo

As devoccedilotildees aos antigos conselheiros como o padre Ibiapina o beato Antocircnio Conselheiro

o padre Ciacutecero e frei Damiatildeo ocorreram a partir do esquema da tipologia do catolicismo

sertanejo Esse fenocircmeno religioso do conselheiro no catolicismo popular da cultura Nordestina

tem as suas raiacutezes mais profundas na cultural africana e indiacutegena daiacute o nascedouro onde o

conselho eacute de extrema importacircncia na vida das pessoas mesmo com as dependecircncias que ele

pode causar mesmo assim o conselho eacute considerado um grande valor que impulsiona as pessoas

para o ajustamento da conduta moral e espiritual

Do Padre Ibiapina (1806-1883) o povo recorda pouco mas as instituiccedilotildees que ele deixou

testemunham o seu papel de conselheiro e pai espiritual do seu povo Do beato Antocircnio Vicente

Mendes Maciel (1830-1897) todos os devotos e peregrinos eram atraiacutedos pelo poder dos seus

conselhos pelo lenitivo que lhes podia proporcionar E todos os chamavam de Santo

Conselheiro ldquoque vai desempenhar o papel de liacuteder carismaacuteticordquo desembocando no movimento

de Canudos Jaacute com o padre Ciacutecero Romatildeo Batista (1844-1934) sendo ele impedido de exercer

a sua atividade pastoral sobretudo na administraccedilatildeo dos Sacramentos estando suspenso de

ordem teve que realizar um trabalho que identificou com a accedilatildeo do padre Ibiapina exercendo a

funccedilatildeo de conselheiro Com Frei Damiatildeo acontece que ele natildeo eacute tatildeo lembrado na cultura

nordestina como pregador quanto como conselheiro e confessor O povo natildeo recorda os temas

das pregaccedilotildees do Frei Damiatildeo mas sim os conselhos Atraveacutes da figura do conselheiro na

cultura nordestina frei Damiatildeo soube alimentar muito bem o cotidiano e organizar a vida do

povo sertanejo no seu agir Somente para exemplificar a importacircncia dos conselhos de Frei

Damiatildeo vejamos a fala de Maria Garcia Vieira com 60 anos idade solteira tida pela

comunidade local como conselheira e professora aposentada da cidade de Nossa Senhora das

Dores Sergipe Cidade em que Frei Damiatildeo pregou santa missatildeo na deacutecada de 80

A entrevistada declarou que Frei Damiatildeo ldquosuavizava a vida das pessoas mais sofridas com seus

conselhos orientaccedilotildees e mostrando ao peregrino que ele tinha condiccedilotildees superar as dificuldades da

vida Era uma pessoa serena e muito paciente com os peregrinos Embora existiam momentos que ele

tinha uma catequese forte digo sendo interpretado por algumas pessoas como um conservador ou

mesmo missionaacuterio rigoroso Jaacute confessei com ele e recebi orientaccedilotildees seguras Mas eu acolhia como

verdade e que ia de encontro ao meu ponto de vista Esse acolhimento acontecia pelo desejo que eu tinha

de mudanccedila e ele teve a coragem de ser autecircntico e fiel aos princiacutepios da Doutrina Cristatilde Eu acredito

que ele era um disciacutepulo do padre Ciacutecero Noacutes acreditamos nisso O sertanejo crer porque vive mais

proacuteximo da natureza Devido ao seu espiacuterito em sintonia com Deus e automaticamente acolhendo a

palavra dos profetas Eu creio nele como um profeta humano e inspirado em Deusrdquo

Conforme constataccedilatildeo da entrevista a tese aponta de que o povo natildeo guarda lembranccedila

sobre os assuntos das suas pregaccedilotildees nas santas missotildees mas sim dos seus conselhos que o frade

dava aos romeiros e devotos Eacute interessante notar que o sucesso de Frei Damiatildeo como

conselheiro se encontra na forma como abordava as pessoas A sua fala era mansinha e ao peacute do

ouvido do confessado Chegando o povo a dizer que ele era um ldquohomem santordquo O fato eacute que

depois de 20 anos de sua chegada ao Nordeste brasileiro em 1931 jaacute na deacutecada de 50 Frei

Damiatildeo de Bozzano eacute tido pelos sertanejos como um conselheiro respeitado e consagrado

passando a orientar o povo em problemas da vida

Atraveacutes da devoccedilatildeo dos sertanejos do Nordeste brasileiro Frei Damiatildeo foi transformado de

missionaacuterio da ordem dos capuchinhos para engajar-se na linha dos conselheiros existentes na

cultura nordestina pois soube alimentar muito bem o cotidiano e organizar a vida do povo

sertanejo no seu cotidiano Surge portanto daiacute a necessidade do conselheiro dentro do

imaginaacuterio religioso e cultural do povo sertanejo valorizando e resgatando as suas histoacuterias as

suas devoccedilotildees aos santos os seus benditos e as suas rezas e cantos Os conselhos dados pelo

frade aos sertanejos tinham uma contingecircncia humana que eram passiacuteveis de sofrimento e tendo

como orientaccedilatildeo central ajustar aos sertanejos para o caminho da bondade e da mansidatildeo

alcanccedilando a salvaccedilatildeo da alma A sua funccedilatildeo era o de exercer esse papel de aconselhador que

impulsionasse as pessoas a encontrar o caminho que levava ao ceacuteu

Para tanto os conselhos de Frei Damiatildeo natildeo tinham nada de anormal da matriz dos antigos

conselheiros Os seus conselhos eram guiados pelo bom senso comum que todo confessor saacutebio

tem contudo pelo fato de serem pronunciados pela boca do frade lhes dava um valor maior

uma enorme relevacircncia O catolicismo popular sertanejo existe e se desenvolve num contexto

humano determinado numa inter-relaccedilatildeo com o espaccedilo geograacutefico seu momento histoacuterico e

tambeacutem com o meio ambiente social concreto Isso demarca que o catolicismo popular eacute

dependente do seu contexto e executa sobre ele alguma espeacutecie de influecircncia Eacute assim que o

sertanejo do Nordeste brasileiro ao longo dos anos apropriou-se dessa figura do Conselheiro via

substrato religioso que foi sendo transmitido de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo particularmente nas

classes populares atraveacutes da presenccedila marcante dos antigos missionaacuterios e beatos

A demonstraccedilatildeo deste catolicismo popular sertanejo face ao desempenho do conselheiro

Frei Damiatildeo no Nordeste brasileiro deve ser analisado como uma praacutetica religiosa ldquodistintardquo do

catolicismo oficial O catolicismo popular sertanejo seria o uacuteltimo e uacutenico suspiro que dar

sustentaccedilatildeo a sua vida e consequentemente a uacutenica expressatildeo da proacutepria auto-afirmaccedilatildeo que

restou aos sertanejos Nesse contexto Frei Damiatildeo eacute um conselheiro forte do catolicismo

popular sertanejo que corporiza a heranccedila cultural do povo

Eacute evidente que tudo isso vai acontecer num determinado contexto histoacuterico A segunda

metade do seacuteculo XIX foi uma eacutepoca de crise que asola mais duramente o Nordeste devido a

economia escravista da cana-de-accedilucar com a extinccedilatildeo do traacutefico negreiro A lavoura do cafeacute no

sul torna-se o principal equiliacutebrio das exportaccedilotildees do paiacutes Visto que a cana-de-accedilucar e o

algodatildeo entram em decadecircncia no Nordeste devido agrave concorrecircncia norte-americana e das

Antilhas Daiacute que para sanar as diacutevidas os senhores do Nordeste vendiam seus escravos para os

fazendeiros do cafeacute passando a intensificar a exploraccedilatildeo dos camponeses que viviam em suas

terras (RIBEIRO DE OLIVEIRA 1985 p 241) Daiacute o entendimento de que o sertanejo busca

na figura do conselheiro uma maneira de amenizar os seus problemas que na maioria das vezes

dificilmente conseguiria resolver sem o auxiacutelio da devoccedilatildeo aos santos

Isso demonstra que o catolicismo popular eacute um rico espaccedilo de liberrdade e de autonomia

em que o sertanejo sente poder mover-se na comunidade Entatildeo seja uma febre uma dor de

cabeccedila uma mordida de cobra e se natildeo haacute meacutedicos na comunidade ele acaba recorrendo agrave

benzedura e a feiticcedilaria Fica claro que o catolicismo popular sertanejo existe para uma ampla

camada da populaccedilatildeo nordestina localizada numa regiatildeo do semiaacuterido e que a sua

manifestaccedilatildeo religiosa estaacute em comum acordo com os anseios de liberdade buscando com isso

escapar ao menos momentaneamente ao pesado fardo do cotidiano bem como agrave pressatildeo riacutegida

da estrutura poliacutetico-social dominante

O ambiente faz o homem Embora o homem natildeo seja somente produto do seu meio este

vem a influenciar e a forjar sua personalidade Tal eacute o caso dos sertanejos que satildeo filhos do

sertatildeo Eacute triste e surpreendente a paisagem comburida do Nordeste Secularmente a sua

vegetaccedilatildeo eacute castigada pelas queimadas A terra fica exposta a voracidade do fogo durante as

queimadas causando a infertilidde do solo O clima eacute instaacutevel com as perioacutedicas secas

perdendo a sua primitiva flora e fauna A cultura do Nordeste tem a sua origem atraveacutes de duras

lutas do homem do campo ora em defesa da propriedade ora pelo domiacutenio poliacutetico Na

verdade todo Nordeste eacute uma soacute comunidade cimentada em passado de sofrimentos heroacuteicos e

tradiccedilotildees comuns Satildeo os rincotildees sertanejos com a profissatildeo do vaqueiro que vai passando de

pai para filho durante muitas geraccedilotildees A vida de vaqueiro eacute uma vida de risco e surpresas

talvez por isso cheia de encanto para a civilizaccedilatildeo sertaneja Sertatildeo em si mesmo eacute monoacutetono

Toda a natureza eacute uma lentidatildeo O ser humano o cavalo o boi a cabra todos andam sem

pressa Lento satildeo os gestos lentas satildeo as rezas as ladainhas os cantos os passos Lentas satildeo as

conversas das histoacuterias que parecem natildeo ter fim Natildeo haacute pressa nessa natureza ardente e hostil

que aprendeu a esperar a morosidade com que as sombras da noite e da morte caem sem cessar

sobre a realidade e as pessoas As linhas que se seguem tem a intenccedilatildeo de realccedilar como os

sertanejos reagem diante da natureza da salvaccedilatildeo da morte do pecado do sobrenatural pois

certamente satildeo o resultado do realismo da observaccedilatildeo da cultura popular do Nordeste

Numa cultura marcada pela seca eacute comum que as pessoas rezem para chover Aliaacutes pedir

chuva eacute um ato eminentemente humano e milenar conhecido As mortificaccedilotildees ocorrem entre os

penitentes que ficam agrave noite rezando nas encruzilhadas em torno das cruzes se agrupam numa

agitaccedilatildeo macabra de flaglantes impondo-se o ciliacutecio dos espinhos das urtigas e outros duros

tratos de penitecircncia (CUNHA 1967 p 110) Satildeo os penitentes com as suas recomendaccedilotildees das

almas que ocorrem na eacutepoca da quaresma e semana santa As praacuteticas do catolicismo popular

sertanejo das curas atraveacutes da benzeccedilatildeo eacute um fenocircmeno corriqueiro nas comunidades do

Nordeste Pode rezar para curar uma bicheira de animal na mairia das vezes nem precisa ver o

animal doente curando simplesmente pelo rastro Geralmente o benzedor ou a benzedera diz

natildeo vir dele ou dela o poder de curar mas vem de Deus ou ateacute um santo que eacute invocado na hora

da benzeccedilatildeo

A praacutetica da benzeccedilatildeo estaacute ligada ao catolicismo popular e tambeacutem pela medicina caseira

Ou mesmo ligada agraves simpatias que se datildeo no niacutevel material Talvez que o nuacutemero de mulher

benzedeira seja maior do que o de homem Essa praacutetica pode ser explicada devido ser a mulher

mais atenta aos ritos O segredo das palavras sagradas Eacute evidente que no ato de benzer aleacutem

do poder sagrado das palavras necessariamente estatildeo presentes elementos da Natureza a aacutegua

o fogo o ar a terra e a vegetaccedilatildeo Estes elementos segundo a tradiccedilatildeo tecircm a propriedade de

domiacutenio do mal Podemos afirmar que ascendecircncia do conselheiro sobre a cultura sertaneja do

Nordeste brasileiro se baseia em primeiro lugar na habilidade pessoal de cada conselheiro em

aproveitar as tradiccedilotildees populares oriundas da corrente indiacutegena e africana

Ateacute os dias atuais os sertanejos gostam de tomar conselhos principalmente daqueles que

eles consideram ser bom conselheiro Pode ser um sacerdote um pai de santo uma benzedeira

uma parteira uma catequista um curandeiro enfim algueacutem que inspira uma certa

confiabilidade e habilidade na arte de aconselhar

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CERTEAU M de Cultura popular e religiosidade popular Cad do CEAS 40 novdez 1975

BOZZANO Frei Damiatildeo de Em Defesa da Feacute Recife Paulinas 1955 MOURA Abdalaziz Frei Damiatildeo e os impasses da religiatildeo popular Petroacutepolis Vozes 1978

OLIVEIRA Pedro Ribeiro Religiatildeo e dominaccedilatildeo de classe gecircnese estrutura e funccedilatildeo do

catolicismo romanizado no Brasil Petroacutepolis Vozes 1985 347 p

____ Religiosidade Popular na Ameacuterica Latina REB Petroacutepolis Vozes 32126 junho de 1972

GT Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia EMENTAS A perspectiva espiacuterita diante da globalizaccedilatildeo tecno-cientiacutefica Andreacute Andrade Pereira Neste trabalho buscamos avaliar qual a postura do Espiritismo diante da Globalizaccedilatildeo em especial com relaccedilatildeo ao totalitarismo da tecno-ciecircncia O objetivo deste trabalho eacute mostrar que se haacute um otimismo com relaccedilatildeo ao progresso das teacutecnicas e das ciecircncias o espiritismo estaacute permanentemente preocupado com as questotildees de finalidade Na diferenciaccedilatildeo proposta por Garaudy entre ciecircncia e sabedoria o espiritismo estaria buscando constituir-se como uma sabedoria espiritual Uma ciecircncia holista e espiritualista campo de um feacutertil diaacutelogo ocidente-oriente mantendo a conexatildeo entre a produccedilatildeo teacutecnica de conhecimento e as exigecircncias eacuteticas da humanidade o espiritismo traz a pretensatildeo de ser natildeo soacute uma ciecircncia mas uma sabedoria que entende a ciecircncia e a teacutecnica como meios e o pleno desenvolvimento humano como fim Religiatildeo ciecircncia e tecnologia dos distanciamentos agraves aproximaccedilotildees no pensamento social brasileiro contemporacircneo Silas do Carmo Delfino Este trabalho pretende somar esforccedilos as pesquisas sobre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo O primeiro momento consiste na tentativa de encontrar definiccedilotildees razoaacuteveis sobre o que representam os conceitos de ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo Desde as designaccedilotildees etimoloacutegicas dos termos ateacute as alteraccedilotildees e variaccedilotildees do sentido original resultantes das transformaccedilotildees sociais e apropriaccedilotildees indevidas destes termos O segundo momento consiste na tentativa de encontrar os distanciamentos e as aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no pensamento social brasileiro contemporacircneo Aspectos tiacutepicos da feacute e da eacutetica da religiatildeo satildeo capazes de proporcionar dois tipos de reaccedilotildees aceitaccedilatildeo ou a rejeiccedilatildeo E no terceiro momento conclui-se que a consonacircncia entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no Brasil possibilita a existecircncia de um mundo concreto mais solidaacuterio Deus na era digital miacutedia e linguagem religiosa Leomar Brustolin A pesquisa visa estudar aspectos teoloacutegicos e comunicativos da linguagem para analisar o impacto da miacutedia sobre a religiosidade catoacutelica brasileira dos uacuteltimos anos especialmente atraveacutes dos programas televisivos Busca identificar as mudanccedilas de atitudes e de conceitos que a comunicaccedilatildeo virtual do sagrado estabelece e apresentar limites e possibilidades dessa nova forma de viver a feacute catoacutelica no paiacutes Ciborgue e imortalidade da carne tecnologia e ressurreiccedilatildeo da carne Oscar R Chemello A pesquisa tem como tema a ressurreiccedilatildeo da carne como dom salvaccedilatildeo e sanaccedilatildeo de Deus para o corpo humano fraacutegil e mortalReflete-se sobre a possibilidade do poacutes-humano em que com a intervenccedilatildeo da biotecnologia espera-se tambeacutem superar a fragilidade da natureza O

humano exercendo sua vocaccedilatildeo de co-criador aprimorando a natureza e buscando superar toda fragilidade e mortalidade humana Poreacutem esta busca possui seu aspecto de condenaccedilatildeo do corpo e negaccedilatildeo da proacutepria fragilidade Com a salvaccedilatildeo vinda de Deus aceita-se a fragilidade aleacutem de receber a sanaccedilatildeo da carne natildeo na impessoalidade teacutecnica mas na relaccedilatildeo de Deus Principais autores Juumlrgen Moltmann e Ruiz de la Pentildea Do real ao virtual a corporeidade humana na poacutes-modernidade Juliana Hermont de Melo O fenocircmeno poacutes-moderno da ldquoespetacularizaccedilatildeo do corpordquo e sua interface com a vulnerabilizaccedilatildeo do humano representam um dos desafios postos agrave religiatildeo pela biotecnologia Neste sentido objetiva-se analisar o processo pelo qual a corporeidade assume o papel de mercadoria na poacutes-modernidade e depreender as consequumlecircncias deste cenaacuterio para a compreensatildeo da identidade humana como imagem e semelhanccedila de Deus A globalizaccedilatildeo da tecnologia e as novas configuraccedilotildees do espaccedilo religioso Omar Lucas Perrout Fortes de Sales O processo de globalizaccedilatildeo atual difunde a tecnologia sendo por ela globalizado Apresenta aos povos uma multiplicidade de recursos tecnoloacutegicos veios portadores dos ditos ldquobens da globalizaccedilatildeordquo Por tratar-se de realidade excludente a globalizaccedilatildeo possibilita o desfrute de tais benefiacutecios a poucos atores sociais As inovaccedilotildees tecnoloacutegicas tecem nova realidade por meio do espaccedilo da circulaccedilatildeo de ideias cultura desencontros e pertenccedila (espaccedilo usado) Transfiguram-se as relaccedilotildees do ser humano sob vaacuterios aspectos O espaccedilo religioso compotildee este cenaacuterio Interessa-nos abordar os impactos da unicidade da teacutecnica sobre o espaccedilo religioso bem como suas reaccedilotildees positivas e negativas Traccedilar o perfil da realidade atual permite apontarmos caminhos de reflexatildeo para posicionamento criacutetico e coerente Bioeletrografia em participantes de reuniotildees mediuacutenicas Marileuza Fernandes Correia de Lima Maria do Socorro Sousa Wallace Ferreira de Souza A Bioeletrografia compreende o registro fotograacutefico do halo luminoso que existe ao redor dos corpos dos seres vivos e eacute utilizada na anaacutelise de estados alterados de consciecircncia As reuniotildees mediuacutenicas se caracterizam por estabelecer esses estados como forma de acesso ao denominado mundo espiritual Elas satildeo compostas por meacutediuns que exercem papeacuteis de incorporador passista dialogador e um coordenador Essa investigaccedilatildeo apresenta um estudo experimental tomando como padratildeo kirliangraacutefico o modelo desenvolvido por Newton Milhomens Foi aplicada em vinte participantes de reuniotildees de desenvolvimento mediuacutenico que se submeteram a essa tecnologia antes do iniacutecio da reuniatildeo e apoacutes o encerramento Os resultados apontam alteraccedilotildees significativas no halo luminoso em termos grupais e individuais

GT Religiatildeo Ciecircncia e Tecnologia TEXTOS A perspectiva espiacuterita diante da globalizaccedilatildeo tecnoloacutegica

Andreacute Andrade Pereira

Introduccedilatildeo

O seacuteculo XXI abre o terceiro milecircnio com uma imensa esperanccedila de entendimento e

paz entre os povos de despertar de coraccedilotildees e mentes para a promoccedilatildeo da vida e da dignidade

do ser humano podendo se tornar o seacuteculo em que veremos o fim da fome das guerras dos

preconceitos e da destruiccedilatildeo inconsequumlente da natureza Estudiosos apontam que esse seraacute o

seacuteculo da sensibilidade e da arte o que possibilitaraacute o desenvolvimento do sentimento humano

da intuiccedilatildeo abrindo a possibilidade de se alcanccedilar um novo patamar de hominizaccedilatildeo

Nunca antes na histoacuteria o homem dispocircs de condiccedilotildees teacutecnicas que lhe permitissem o

intenso fluxo de comunicaccedilotildees trocas materiais e espirituais entre todos os lugares do globo de

tal forma a dar a impressatildeo de estarmos todos vivendo em um soacute tempo em um soacute espaccedilo e

numa mesma loacutegica de sobrevivecircncia e interdependecircncia O homem cada vez mais percebe a

Terra como a casa comum a todos e jaacute comeccedila a despertar para a necessidade de preservar as

fontes de vida e as fontes de riquezas culturais e espirituais desenvolvidas ao longo dos

seacuteculos pelos diferentes povos

Estatildeo sendo dados os primeiros passos do projeto de humanidade vista agora como

uma soacute famiacutelia sobre a Terra e satildeo infinitas as possibilidades de configuraccedilatildeo social poliacutetica

econocircmica cultural e espiritual desta verdadeira oikoumene A consciecircncia de que todos

partilhamos um destino comum nesse pequeno planeta azul em viagem pelo espaccedilo abre novos

horizontes e novas exigecircncias eacuteticas para a vida social O desafio que se apresenta eacute o da paz da

compreensatildeo da preservaccedilatildeo da vida da justiccedila e da realizaccedilatildeo dos projetos de vida de todos e

de cada um

A construccedilatildeo de uma convivecircncia paciacutefica da aceitaccedilatildeo e respeito universal aos

direitos humanos e da preservaccedilatildeo da vida do planeta no entanto dependeraacute de algo mais do

que das possibilidades abertas pela tecnologia e pelas conquistas do conhecimento cientiacutefico

PPCIR - UFJF

Para alcanccedilar o horizonte de realizaccedilotildees acalentados nos sonhos de tantos lutadores e

missionaacuterios dos seacuteculos anteriores seraacute preciso o aprendizado da arte de dialogar de

compreender e sobretudo de amar

Verdade seja dita ao mesmo tempo em que os homens experimentam uma abertura de

possibilidades de amorizaccedilatildeo e compaixatildeo universais nosso tempo tem sido marcado pelos

fundamentalismos por uma completa ausecircncia de diaacutelogo pela imposiccedilatildeo de dogmatismos

econocircmicos poliacuteticos e religiosos Testemunhamos uma ausecircncia de muacutetuo entendimento um

empobrecimento da sensibilidade uma ausecircncia de compaixatildeo uma aceitaccedilatildeo da atitude de

desprezo pelo outro e por toda parte falta o desenvolvimento maduro da capacidade humana de

amar

O quadro atual se torna mais grave na medida em que as energias humanas que

poderiam ser utilizadas no desenvolvimento de qualidades espirituais tais como a compaixatildeo a

toleracircncia a reverecircncia pela vida o amor estatildeo embotadas graccedilas agrave imposiccedilatildeo de um

pensamento uacutenico que seduz e conquista coraccedilotildees e mentes para valores anti-humanistas tais

como o egoiacutesmo a competitividade o materialismo a cobiccedila o consumismo o inchaccedilo do

racionalismo em detrimento da sensibilidade o narcisismo dentre outros

O fasciacutenio pela tecno-ciecircncia a crenccedila idolaacutetrica nos mecanismos do sistema de

mercado a aceitaccedilatildeo da vida acelerada das grandes metroacutepoles satildeo o substrato ideoloacutegico

idolaacutetrico mesmo que legitimam socialmente a expansatildeo mundial do sistema capitalista

levando consigo as naturais externalidades do sistema geraccedilatildeo de pobreza desigualdade

fragmentaccedilatildeo solidatildeo corrupccedilatildeo e violecircncia

Um diagnoacutestico atual de nossa condiccedilatildeo mundial foi dada por Thich Nhat Hanh um

monge budista indicado por Martin Luther King Jr ao precircmio Nobel da Paz Fundador do

budismo engajado por descobrir a possibilidade de se praticar a contemplaccedilatildeo e a meditaccedilatildeo

enquanto socorriam as viacutetimas da Guerra do Vietnatilde e pela atitude amorosa de meditar em

benefiacutecio de americanos e vietnamitas ele disse que a humanidade hoje se assemelha a um

homem montado num cavalo em disparada e que ao ser perguntado Para onde vocecirc estaacute

indo ele responde Natildeo sei pergunte ao cavalo

Essa seria a imagem da humanidade diante da inevitaacutevel expansatildeo da estrutura social

capitalista cujo destino eacute determinado impessoalmente pelas engrenagens de funcionamento da

proacutepria estrutura e assim ao que tudo indica ningueacutem parece se responsabilizar pelo

crescimento da produccedilatildeo mundial de armamentos pelas viacutetimas da violecircncia nas grandes

cidades pela expansatildeo do traacutefico de drogas pelos acidentes que matam rios e incendeiam as

florestas e pelo silencioso e crescente desemprego estrutural Satildeo os impessoais caacutelculos

maximizadores das curvas de oferta e demanda diratildeo os crentes do sistema de mercado satildeo os

resultados da neutra eficiecircncia tecnoloacutegica diratildeo os crentes da tecno-ciecircncia E tudo parece

caminhar bem segundo a loacutegica do discurso hegemocircnico

A Globalizaccedilatildeo como Totalitarismo

Uma das caracteriacutesticas da globalizaccedilatildeo atual eacute a expansatildeo impositiva de uma

racionalidade especiacutefica absolutizada como a uacutenica contra a qual natildeo se teriam alternativas

Nesse periacuteodo o mercado e a teacutecnica ditam as regras mais que a reflexatildeo humana que natildeo sabe

mais ateacute onde vai a responsabilidade de seus atos O ator econocircmico natildeo se sente responsaacutevel

pelo que ocorre no restante da cadeia produtiva em que se insere O usuaacuterio da tecnologia vecirc sua

criatividade balizada pelas possibilidades preacute-programadas da maacutequina e jaacute natildeo sabe mais se eacute

produtor ou produto E a subsunccedilatildeo da criatividade teacutecnica aos interesses das grandes

corporaccedilotildees limita ainda mais as possibilidades ateacute mesmo dos criadores e pesquisadores de

novas tecnologias

Milton Santos denomina esse periacuteodo de Globalitarismo por se tratar do totalitarismo

da racionalidade tecno-cientiacutefica Qualquer racionalidade que fuja a essas premissas consensuais

satildeo apresentados como irracionais irresponsaacuteveis Eacute o pensamento uacutenico da globalizaccedilatildeo que

penetra todas as localidades e domina na razatildeo pela qual eacute desconhecida mas admirada

Frutos da civilizaccedilatildeo e da elaboraccedilatildeo racional mais avanccedilada do homem o mercado

global e a tecnologia parecem fugir ao controle e tomar as reacutedeas da conduccedilatildeo das accedilotildees A

interconexatildeo global e os processos automotivos obrigam a totalidade dos participantes desta

ordem global preacute-programada a aderirem sem questionar sob o risco de estagnarem e natildeo

sobreviverem e entatildeo ningueacutem sabe quem estaacute no controle geral Segundo a ideologia da

globalizaccedilatildeo natildeo se pode viver fora da ordem natildeo se pode recusar a entrada na modernidade E

uma vez inseridos o que implica abdicar da soberania (no caso de paiacuteses) da poliacutetica da

cultura da identidade natildeo se eacute mais dono do proacuteprio destino e a uacutenica accedilatildeo autocircnoma eacute a

ilusoacuteria tentativa de se defender da volatilidade das financcedilas internacionais e da loacutegica

impessoal das maacutequinas

O resultado imediato eacute a diminuiccedilatildeo do livre-arbiacutetrio eacute a perda da sensaccedilatildeo de

responsabilidade pelos resultados agregados do sistema Se haacute fome desemprego violecircncia e

morte desmatamento aquecimento global natildeo se consegue punir os responsaacuteveis pelo

sofrimento gerado Natildeo eacute por acaso que se vive mundialmente uma crise de impunidade seja

na poliacutetica seja no mundo empresarial ou mesmo na conduta cotidiana As regras mais

importantes os coacutedigos de eacutetica que contam natildeo estatildeo mais na esfera da decisatildeo humana satildeo

os criteacuterios neutros e impessoais da eficiecircncia econocircmica e teacutecnica

Nesse paradigma uma vez cortado o mecanismo de responsabilizaccedilatildeo pelos atos a

sociedade tende a regredir a voltar agrave infacircncia E como aparentemente ningueacutem eacute diretamente

responsaacutevel natildeo se sabe como corrigir os rumos O mundo teacutecnico e econocircmico tende a nos

levar a uma cataacutestrofe anunciada e como as accedilotildees satildeo apresentadas como difusas e impessoais

espera-se a trageacutedia qual se fora uma cataacutestrofe natural

Se a sociedade se infantiliza o humano se atrofia embota-se a sensibilidade e o

entendimento e sente-se impotente em dirigir as accedilotildees com vistas a um fim Em pleno periacuteodo

das maiores conquistas da humanidade no campo da ciecircncia e da tecnologia vive-se a

generalizaccedilatildeo do analfabetismo emotivo a insensibilidade o descaso a alienaccedilatildeo O homem

atraveacutes das tecnologias de informaccedilatildeo accedilambarca o mundo mas sente-se soacute desconhece seus

vizinhos mais proacuteximos perde a capacidade de comunicar-se com seus familiares e natildeo conhece

o significado das palavras amigo e confianccedila

O Globalitarismo gera a fragmentaccedilatildeo uma vez que a loacutegica global vecircm de cima

perdendo-se a horizontalidade das relaccedilotildees e os homens tornam-se ilhas A crise do sentido de

vida eacute tambeacutem a crise do sentido de sociedade de agrupamento de coletividade eacute a era da

solidatildeo No tempo do discurso tecno-cientiacutefico da realidade prioriza-se a fala dos especialistas

Povo natildeo tem voz natildeo sabe natildeo tem o que dizer Fecha-se os ouvidos e os olhos uns para os

outros e espera-se o anuacutencio da verdade racional pelos meios globais de comunicaccedilatildeo

Onde a Esperanccedila

O otimismo se pergunta pelas saiacutedas Retirar o homem atual da indiferenccedila ainda que

no contexto de grandes cidades e complexa divisatildeo do trabalho eacute tarefa que possivelmente soacute

seraacute levada a frente se houver um questionamento radical da cultura ocidental que se expande

por todo o mundo globalizado para romper a mutilaccedilatildeo do homem de si mesmo e redescobrir

sua inexauriacutevel riqueza interior

A noccedilatildeo de compaixatildeo exige que se decirc menos ecircnfase ao criteacuterio de racionalidade que

impera no ocidente e nos mecanismos econocircmicos globais em favor do sentimento e das

emoccedilotildees A anaacutelise que Georg Simmel faz sobre a filosofia do dinheiro mostra como as

relaccedilotildees mercantis exigem que os homens se alienem de seus sentimentos e do ldquoeu profundordquo

para dar conta das operaccedilotildees quantitativas com as quais se defronta O mesmo alerta Garaudy

para quem a racionalidade exclui a interioridade do homem e esta eacute a principal caracteriacutestica

do mundo ocidental que precisamos romper ao nos abrir para outras formas de espiritualidade

o erro baacutesico () estaacute em crer que podemos reencontrar o homem em sua plenitude e

transcendecircncia sem romper com nossa cultura ocidental117

Com relaccedilatildeo a isso vale a pena narrar uma experiecircncia muito interessante O psicoacutelogo

Ouspensky foi da Ruacutessia a Paris passar um tempo de aprendizado com o grande saacutebio Gurdjeff

O mestre o recebeu em seu apartamento jaacute dizendo que precisavam imediatamente comeccedilar a

trabalhar Sendo uma sexta-feira disse-lhe que passaria o fim de semana na casa de uns amigos

e que Ouspensky deveria ficar em seu apartamento ateacute que ele voltasse na segunda-feira e que

deveria seguir estritamente as seguintes recomendaccedilotildees natildeo poderia abrir as janelas nem ligar

o raacutedio deveria guardar o silecircncio diante de si mesmo e olhar profundamente para sua proacutepria

vida

Na segunda-feira como combinado Gurdjeff buscou Ouspensky em seu apartamento

e o convidou para um passeio pelas ruas da cidade luz Caminharam silenciosamente por um

tempo e Ouspenspky olhava espantado para os transeuntes ateacute que segurando o saacutebio pelo

braccedilo exclamou

Mestre parece que estatildeo todos dormindo andando como sonacircmbulos pelas ruas Tenho niacutetida impressatildeo de que soacute noacutes estamos despertos noacutes dois E Gurdjeff respondeu Que bom disciacutepulo vocecirc eacute Esta eacute a primeira liccedilatildeo que precisamos aprender a maior parte da humanidade estaacute sonacircmbula no mundo precisamos encontrar modos de despertaacute-la para a vida118

Esta redescoberta da interioridade como mecanismo de potencializar um outro modo

de vida compartilha a intuiccedilatildeo miacutestica de que a parte mais iacutenfima da alma eacute mais nobre que a

parte mais alta do ceacuteu119

Se a evoluccedilatildeo eacute um fato ainda que as estruturas sociais aprisionem o impulso criativo

e evolutivo das capacidades humanas em algum momento a forccedila de vida e de liberdade daraacute

seu grito de rebeldia

Quais seratildeo os mecanismos pelos quais a humanidade voltaraacute a ser dona de seu

destino Como o homem cuidaraacute dos fins das suas accedilotildees utilizando a tecnologia como um

meio Que tipo de controle social seraacute estabelecido sobre as movimentaccedilotildees econocircmicas de

forma a se estabelecer maiores niacuteveis de equumlidade social

117 Roger GARAUDY Apelo aos vivos p71 118 Regis MORAIS Evoluccedilatildeo humana e fatos histoacutericos p 145 119 Mestre Eckhart

Quando a tecnologia poderaacute cumprir finalmente o objetivo sonhado pelo homem

ampliar o tempo de lazer de dedicaccedilatildeo ao cultivo das faculdades do espiacuterito humano a fruiccedilatildeo

dos relacionamentos

O que o Espiritismo interpelado por essas questotildees urgentes pode fornecer como

pistas a uma saiacuteda civilizatoacuteria Ou seraacute que sua postura modernizante alia-se ao atual domiacutenio

da ideologia tecno-cientiacutefica

O Espiritismo e a tecno-ciecircncia

Eacute bem verdade que o Espiritismo pareceria aprovar o atual mundo tecno-cientiacutefico

especialmente por seu otimismo cientiacutefico e sua busca pelo progresso material e espiritual De

acordo com a perspectiva espiacuterita o mundo tecnoloacutegico trazendo facilidades e bem estar ao

homem moderno seria visto como um gesto da misericoacuterdia do criador que permite ao homem

usufruir e participar da sua atividade criativa O homem auxilia o criador no seu gesto de

modelar o mundo tornando-o mais doacutecil e habitaacutevel mais civilizado e de molde a permitir o

desenvolvimento das faculdades intelectuais e espirituais dos seres humanos

Herdeiro do iluminismo o Espiritismo propotildee a alianccedila da feacute com a razatildeo da ciecircncia

com a religiatildeo e manteacutem aberta a porta de sua proacutepria revisatildeo agrave medida que novas descobertas

cientiacuteficas forem trazendo novas luzes agrave Humanidade Considerando as leis de Deus impressas

no livro da natureza o Espiritismo crecirc na capacidade do esforccedilo humano em desvendar

continuamente os segredos da criaccedilatildeo atraveacutes da ciecircncia e aposta nesse esforccedilo como uma

forma de aproximar o homem do Criador O sucessivo progresso das teacutecnicas uma vez que

permite o sucessivo progresso das culturas e civilizaccedilotildees aproxima continuamente a

Humanidade do Belo do Verdadeiro do Bem Eacute assim que o evolucionismo espiacuterita vecirc o

movimento sucessivo de aproximaccedilatildeo do homem ao Criador nas criaccedilotildees artiacutesticas cada vez

mais belas e harmocircnicas no desvendar das leis naturais no aprimoramento das leis sociais cada

vez mais justas e assim haacute de ser na tecnologia ou seja na forma de se tornar um agente co-

criador do Universo

Arrancando o homem do estado permanente de medo e ansiedade diante das

intempeacuteries naturais tiacutepicas do estado de barbaacuterie e suprindo as necessidades baacutesicas da

civilizaccedilatildeo material o mundo tecnoloacutegico permitiria ao homem viver em seguranccedila e ocupar-se

com as conquistas espirituais Na civilizaccedilatildeo espiritual conceituaccedilatildeo de Kardec de inspiraccedilatildeo

pestalozziana o homem eacute todo um ser moral jaacute que a tecnologia pode resolver o problema da

materialidade da vida e os conflitos selvagens jaacute natildeo possuem mais lugar Certamente na visatildeo

espiacuterita a teacutecnica eacute a ferramenta necessaacuteria na conquista de novos estaacutegios evolutivos na

sucessatildeo das sociedades humanas ao longo da histoacuteria

No entanto se esse otimismo tecnoloacutegico parece coerente com a Doutrina Espiacuterita

essa eacute ainda uma concepccedilatildeo parcial uma vez que a tecnologia natildeo eacute vista como um fim em si

mesma e o Espiritismo estaacute permanentemente preocupado com as questotildees de finalidade Na

diferenciaccedilatildeo proposta por Garaudy entre ciecircncia e sabedoria120 o Espiritismo estaria buscando

constituir-se como uma sabedoria espiritual Diante do uso de uma inovaccedilatildeo teacutecnica o espiacuterita

se perguntaraacute qual a finalidade

O questionamento pela finalidade pelo destino soacute o homem poderia fazer E nesse

caso a criacutetica a idolatria da teacutecnica se faz necessaacuteria antes de tudo Conforme apontou

Garaudy em Deus eacute Necessaacuterio a absolutizaccedilatildeo das novas tecnologias eacute caracteriacutestica do

nosso tempo a despeito do homem A santa alianccedila entre economia de mercado e essa teacutecnica

de informaccedilatildeo realizou-se naturalmente quanto mais uma e outra se fundavam na mesma

concepccedilatildeo redutora e quantitativa do homem e de seu futuro121 E ironiza sobre a capacidade

do computador em dar respostas humanas espirituais que fugissem aos criteacuterios dominantes do

status quo Ele me aconselharaacute a abnegaccedilatildeo de Jesus ou o sacrifiacutecio de Gandhi ou qualquer

outra accedilatildeo que natildeo vise somente a eficaacutecia na dominaccedilatildeo da natureza ou dos homens122

A capacidade humana de inventar e progredir eacute admiraacutevel e isso estaacute mais do que

provado no que diz respeito ao progresso intelectual mas natildeo se negligencia a importacircncia da

eacutetica dos fins humanos do uso da inteligecircncia para o bem de todos Eacute aiacute que mais que aplaudir

a tecnologia o Espiritismo volta os olhos para aquele que a utiliza e indaga como para que

fim para atender a necessidade de todos O Espiritismo mais que uma ciecircncia seria a proposta

de uma revoluccedilatildeo de paradigma evitando a especializaccedilatildeo disciplinar mantendo unidos ceacuterebro

e coraccedilatildeo tecnologia e sensibilidade ciecircncia e sabedoria

Uma revoluccedilatildeo de paradigma cientiacutefico

Na verdade a proacutepria concepccedilatildeo de ciecircncia espiacuterita eacute de uma ciecircncia sem os

reducionismos das ciecircncias positivistas do seacuteculo XIX Nascida da anaacutelise de fenocircmenos

espirituais a ciecircncia espiacuterita jaacute daacute mostras de ser natildeo soacute uma outra ciecircncia mas uma outra

forma de fazer ciecircncia uma ruptura de paradigma A proposta de Kardec eacute a de uma nova forma 120 A sabedoria estaria ligada agraves questotildees de finalidade enquanto a ciecircncia seria um meio 121 Roger GARAUDY Deus eacute necessaacuterio p18 122 ibid p18

de ciecircncia porque leva em conta a um soacute tempo a observaccedilatildeo empiacuterica dos fenocircmenos a

racionalidade e a revelaccedilatildeo espiritual A ciecircncia espiacuterita procura conhecer a realidade atraveacutes da

observaccedilatildeo da razatildeo e da revelaccedilatildeo em que cada uma controla a outra num campo aberto sem

dogmatismo e sem sistematizaccedilatildeo fechada

A interferecircncia do mundo espiritual eacute assumida explicitamente na construccedilatildeo do

pensamento humano sob o controle da racionalidade e isso por si soacute eacute uma inovaccedilatildeo sem

precedentes no acircmbito das ciecircncias e das religiotildees O Espiritismo eacute na definiccedilatildeo de Dora

Incontri ldquoum grande debate de ideacuteias em que os espiacuteritos encarnados e desencarnados

participamrdquo123 Trata-se sem duacutevida de uma revoluccedilatildeo no paradigma cientiacutefico

Este eacute inclusive um contraponto central do Espiritismo ao mundo moderno Apesar

de nascer das entranhas do Iluminismo a Doutrina Espiacuterita sempre se recusou a um lugar de

mera disciplina cientiacutefica ou mais uma filosofia que natildeo ousa extrapolar meros limites

determinados ou mais um conjunto de interpretaccedilatildeo religiosa fechado em si mesmo Pelo

contraacuterio ao se apresentar como simultaneamente ciecircncia filosofia e religiatildeo e persistir neste

aspecto triacuteplice ao longo dos anos a Doutrina Espiacuterita conservaria um caraacuteter abrangente e

totalizante em sua visatildeo da realidade verdadeiramente uma cosmovisatildeo contrariando a

tendecircncia agrave especializaccedilatildeo nas disciplinas cientiacuteficas Segundo Dora Incontri essa abertura foi

mantida graccedilas a formaccedilatildeo ampla que se exige dos pedagogos e Kardec como tal cultivava em

si mesmo esse caraacuteter inter-disciplinar ldquose o codificador tivesse sido um cientista apenas

poderia ter restringido sua abordagem do Espiritismo ao aspecto fenomecircnico Se tivesse sido um

filoacutesofo especializado poderia ter se embrenhado em especulaccedilotildees remotas com linguagem de

difiacutecil acesso E se tivesse sido um religioso profissional poderia ter fundado uma nova

igrejardquo124

E ateacute hoje a doutrina conserva majoritariamente a abrangecircncia de se ligar a todas as

questotildees do conhecimento Tudo que eacute da alccedilada de qualquer ciecircncia de qualquer filosofia de

qualquer fenocircmeno religioso o Espiritismo tem algo a dizer Uma siacutentese do conhecimento

mas uma siacutentese aberta na medida em que o processo de aquisiccedilatildeo do conhecimento natildeo se

completa

A influecircncia de Mesmer para a visatildeo holista do Espiritismo

Para compreendermos melhor como surgiu esse caraacuteter abrangente da doutrina

espiacuterita natildeo se resumindo ao conjunto de leis que explicam os fenocircmenos das mesas girantes e

das comunicaccedilotildees com os Espiacuteritos eacute preciso conhecer um pouco do seu precursor direto o

magnetismo animal de Franz Anton Mesmer (1734-1815) Nas palavras do proacuteprio codificador

123 Dora INCONTRI Para entender Allan Kardec p 73 124 Dora INCONTRI Para entender Allan Kardec p 30

da doutrina espiacuterita que estudou o magnetismo por 35 anos o magnetismo preparou o caminho

do Espiritismo e os raacutepidos progressos dessa uacuteltima doutrina satildeo incontestavelmente devidos agrave

vulgarizaccedilatildeo das ideacuteias sobre a primeira Dos fenocircmenos magneacuteticos do sonambulismo e do

ecircxtase agraves manifestaccedilotildees espiacuteritas haacute apenas um passo sua conexatildeo eacute tal que eacute por assim dizer

impossiacutevel falar de um sem falar de outro125

O magnetismo foi a primeira proposta terapecircutica cientiacutefica da era moderna antes

mesmo das pesquisas laboratoriais iniciados por Claude Bernard e da Homeopatia descoberta

por Hahnemann Trata-se de um meacutetodo de cura inspirado na corrente vitalista da medicina em

que o magnetizador uma vez identificando o desequiliacutebrio no organismo do doente exerce uma

accedilatildeo dinacircmica pelo magnetismo animal atraveacutes de imposiccedilatildeo de matildeos massagens insuflaccedilatildeo

no corpo do paciente etc Com a regularidade das sessotildees do tratamento o ciclo da doenccedila se

completa rapidamente invertendo a accedilatildeo desagregadora provocada pelo desequiliacutebrio

instaurado Atingindo o estado criacutetico o estado doentio estaacute superado o equiliacutebrio orgacircnico se

restabelece e o paciente volta ao seu estado saudaacutevel126

Satildeo inuacutemeros os casos de cura relatados por Mesmer e seus seguidores e por mais

pareccedilam estranhas ao homem de hoje acostumado aos meacutetodos da medicina alopaacutetica as

descobertas do magnetismo animal segundo Mesmer ldquonatildeo satildeo produtos do acaso mas sim o

resultado do estudo e da observaccedilatildeo das leis da naturezardquo127

De formaccedilatildeo ecleacutetica e interesse pela ciecircncias nascentes Mesmer defendeu sua tese

de doutorado em medicina com o tiacutetulo ldquoDa influecircncia dos planetas sobre o corpo humanordquo

Sua proposta de ciecircncia era inspirada num modelo filosoacutefico holiacutestico espiritualista e deiacutesta

Segundo seu bioacutegrafo Paulo Henrique Figueiredo foi no monasteacuterio que Mesmer teve contato

com a muacutesica sua verdadeira paixatildeo128 o que lhe inspiraria uma correlaccedilatildeo entre as harmonias

musicais o equiliacutebrio do corpo humano e o universo inteiro Mais tarde concluiraacute que ldquoas leis

pelas quais o universo eacute regulado satildeo as mesmas que regem a harmonia do corpo animal A vida

do mundo eacute uma soacute e a do homem individual eacute apenas parte delardquo129

Esse insight natildeo lhe surgiu por acaso A vida de Mesmer era uma incessante busca por

desvendar os segredos da natureza Seu objetivo era observaacute-la escutando seu iacutentimo e natildeo

reduzi-la com pressupostos teoacutericos formulados a priori Buscava a verdade no contato com a

natureza Em sua obra ldquoResumo histoacuterico dos fatos relativos ao magnetismo animalrdquo publicado

em 1781 relata uma incursatildeo solitaacuteria no interior da floresta em que descreve sua inquietude em

125 RE vol 1 p 95 126 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 20 127 ibid p 17 128 Mesmer tocava clavicoacuterdio violoncelo e a harmocircnica de vidro Patrocinava agradaacuteveis saraus nos jardins de sua casa em Viena e revezava nas apresentaccedilotildees com Haydn Gluck e o pequeno Mozart Wolgang homenagearaacute seu patrono e amigo com o papel do meacutedico (lsquodoutor magneacuteticorsquo) que salva os protagonistas da poccedilatildeo envenenada com uso de um iacutematilde em sua ceacutelebre oacutepera bufa Cosi fan tutte 129 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 530

indagar da natureza os seus misteacuterios Teria sido uma experiecircncia miacutestica de Mesmer Com

certeza trata-se de uma experiecircncia de insight Assim relata sua experiecircncia

E entatildeo um ardor vivo se apoderou de meus sentidos Eu natildeo procurava mais a verdade com amor Eu a procurava com inquietude O campo as florestas as solidotildees as mais retiradas eram os uacutenicos atrativos para mim Eu me sentia perto da natureza Violentamente agitado parecia-me algumas vezes que ao coraccedilatildeo cansado dos inuacuteteis convites da natureza parecia que iria recusaacute-la com furor Oacute natureza eu gritava nesses acessos que pretende de mim Em outros momentos ao contraacuterio eu me imaginava estreitando-a em meus braccedilos com ternura ou apertando-a com impaciecircncia e sapateando fortemente desejando-a render-se aos meus desejos Felizmente meus gritos perdiam-se no silecircncio dos bosques havia somente aacutervores para testemunhar sua veemecircncia Eu tinha certamente o aspecto de um freneacutetico130

Jaacute em outro momento Mesmer em seu autodidatismo esforccedilando-se por desprender-

se da forma em proveito do conteuacutedo criou um mecanismo proacuteprio para transcender o comum e

buscar o novo Percebendo que todas as vezes que se tem uma ideacuteia a tendecircncia eacute traduzi-la em

palavras tomou o ldquodesiacutegnio bizarrordquo de libertar-se ldquodessa escravidatildeordquo e ficou trecircs meses

pensando sem nenhum idioma Apoacutes essa experiecircncia de concentraccedilatildeo sentia que os objetos

tomavam nova forma as combinaccedilotildees comuns se mostravam sujeitas agrave revisatildeo e olhando os

homens achava raro encontrar uma opiniatildeo acertada Soacute entatildeo ldquoa calma voltou ao meu espiacuteritordquo

diz ele e ldquosenti que a verdade que havia perseguido tatildeo ardorosamente natildeo mais deixava

duacutevidas quanto agrave sua existecircncia131

Uma visatildeo holista da realidade

As experiecircncias de imersatildeo na natureza e de observaccedilatildeo das coisas rejeitando ao

maacuteximo as ideacuteias preconcebidas permitiram a Mesmer a criaccedilatildeo de uma nova ciecircncia De

origem claramente intuitiva sua busca pela natureza operou a ruptura com a ciecircncia de seu

tempo mas acima de tudo influenciou-o na construccedilatildeo de um pensamento holiacutestico que

mantivesse a explicaccedilatildeo de tudo ou seja sua busca era de uma lei oniabrangente que desse

conta de todos os fenocircmenos Parece-nos que o que moveu sua atividade era a anguacutestia da

separaccedilatildeo O fervor de sua uniatildeo freneacutetica no interior das florestas eacute testemunha da rejeiccedilatildeo de

toda ciecircncia que abra matildeo do contato direto com a natureza e seus fenocircmenos em busca de um

racionalismo a prioriacutestico

O grande desafio que obrigou Mesmer assim como mais tarde Kardec a romper com

a ciecircncia de seu tempo foram os fenocircmenos extra sensoriais na eacutepoca chamados de

sonambulismo Atraveacutes da magnetizaccedilatildeo ou no caso de sonambulismo natural um homem

demonstrava uma sabedoria que iria muito aleacutem de conhecimento adquirido Ambos

130 ibid 131 ibid p114-5

pesquisaram esses fatos e soacute conseguiram explicaacute-los recorrendo a uma nova visatildeo do homem e

do universo

Na obra intitulada ldquoMemoacuteria de F A Mesmer doutor em medicina sobre suas

descobertasrdquo publicada em Paris em 1828 apresenta os elementos centrais de sua cosmovisatildeo e

que lhe permitem responder a uma agenda de questotildees relacionadas ao fenocircmeno sonambuacutelico

tais como Como algueacutem pode julgar e prevenir suas moleacutestias e mesmo a dos outros

dormindo Como sem nenhuma instruccedilatildeo eacute capaz de indicar os meios mais adequados agrave cura

Como pode ver os objetos afastados e pressentir os acontecimentos Como o homem pode

receber as impressotildees de uma outra vontade que natildeo a sua Por que o homem natildeo eacute sempre

dotado dessas faculdades Por que este estado eacute mais frequumlente e parece ser mais perfeito apoacutes o

emprego do processo do magnetismo animal132

Ao buscar responder estas questotildees tiacutepicas de quem observa os fenocircmenos

observados em pessoas em transe sonambuacutelico Mesmer descreve sua teoria que mais tarde

inspiraraacute a cosmovisatildeo espiacuterita Segundo Mesmer a fonte primaacuteria de tudo o que existe na

natureza eacute o fluido universal Eacute a partir das transformaccedilotildees do fluido universal que se daacute origem

a todos os fluidos e toda a mateacuteria As partiacuteculas elementares de mateacuteria ou as formas mais

simples de energia seriam na verdade transformaccedilotildees do fluido universal que permeia todo o

universo no qual todos estatildeo mergulhados

Segundo esta teoria o universo eacute o conjunto de todas as partes co-existentes da

mateacuteria em estado soacutelido ou fluiacutedico que preenche o espaccedilo e ateacute mesmo os soacutelidos

conteacutem interstiacutecios preenchidos por mateacuteria menos soacutelida ou mais sutil que por sua vez consiste de pequenas massas com forma determinada estando presentes ainda interstiacutecios com uma mateacuteria mais fluida Estas divisotildees entre os interstiacutecios e os fluidos como foi dito sucedem-se por uma espeacutecie de gradaccedilatildeo ateacute a uacuteltima das subdivisotildees da mateacuteria que chamo de elementar ou primordial que eacute apenas de fluidez absoluta e os interstiacutecios natildeo satildeo mais ocupados pois que natildeo existe mateacuteria mais sutil

O fluidos satildeo invisiacuteveis mas preenchem todo o espaccedilo e sua existecircncia pode ser

comprovada pelo efeito de sua transformaccedilatildeo no corpo do ser humano bem como na alteraccedilatildeo

quiacutemica de uma substacircncia qualquer como a aacutegua por exemplo

Eacute a partir dessa perspectiva que a teoria do magnetismo fornece um senso de uniatildeo de

tudo com tudo um holismo uma espeacutecie de impossibilidade de existir algo em separado de todo

o restante do universo O que hoje a fiacutesica tem debatido em questotildees como a influecircncia no

Brasil do bater de asas de uma borboleta na China era tema do magnetismo de Mesmer Ainda

que o fluido universal seja invisiacutevel ele estaria em toda a parte e tudo estaria ligado por ele e eacute

refletindo sobre isso que ldquose pode conceber que natildeo chegue nenhum movimento ou

132 ibid p 548

deslocamento nas suas menores partes que natildeo responda a um certo grau a toda extensatildeo do

universo133

A capacidade de curar pela imposiccedilatildeo de matildeos estaria ligada ao fato de que o fluido

universal poderia ser conduzido e manipulado pelo pensamento e a pela forccedila de vontade do

meacutedico Diz Deleuze um disciacutepulo do doutor Mesmer que ldquoa vontade eacute a primeira condiccedilatildeo

para magnetizar A segunda condiccedilatildeo eacute a feacute do magnetizador na sua capacidade A terceira eacute o

desejo de fazer o bem134 O mesmerismo enfatiza dessa forma a importacircncia dos sentimentos

elevados do magnetizador da sua conduta moral e sua pureza de propoacutesitos para realizar a cura

Natildeo basta o domiacutenio de uma teacutecnica fiacutesica para curar eacute preciso desejar o aliacutevio e o bem dos

pacientes

O mesmo passa a valer para o paciente A cura depende da vontade do paciente e a

conscientizaccedilatildeo de que a cura fiacutesica depende da cura da alma O magnetismo animal natildeo curaraacute

certamente aquele que sentiraacute o retorno de suas forccedilas apenas para se voltar para novos

excessos Antes de todas as coisas eacute indispensaacutevel que o doente deseje ser curadordquo135 Nasce

no ocidente a concepccedilatildeo que conjuga mente e corpo A cura do corpo comeccedila com a cura da

alma Daiacute se estabelece a conexatildeo entre a harmonia do universo e a harmonia do indiviacuteduo seu

estado mental seus pensamentos equilibrados e sentimentos voltados para o bem A pulsaccedilatildeo do

universo ganha jaacute em Mesmer uma conotaccedilatildeo moral e o sofrimento manifestado na doenccedila

tem origem no rompimento dessa harmonia

A sabedoria superior da pessoa em transe sonambuacutelico revelava a existecircncia do que

Mesmer e mais tarde Kardec denominava senso iacutentimo E eacute ele a base explicativa para os

variados fenocircmenos observados pelos pesquisadores tais como a telepatia a capacidade de

prever o futuro a vista agrave distacircncia e a comunicaccedilatildeo com os Espiacuteritos 136

A lucidez sonambuacutelica eacute a faculdade que o homem possui de ver e sentir sem os

oacutergatildeos materiais atraveacutes do seu senso iacutentimo Enquanto ligada ao corpo a alma vecirc

confusamente pelos oacutergatildeos materiais mas desprendida da mateacuteria em transe sonambuacutelico ela

ganha liberdade e consegue perceber o que lhe era invisiacutevel O magnetismo evidencia que o

133 ibid p 552 134 DELEUZE apud Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos 135 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos 136 No Espiritismo soma-se a explicaccedilatildeo baseada nos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores

parcialmente esquecidos com a encarnaccedilatildeo Em cada uma de suas existecircncias corporais o Espiacuterito

adquire um acreacutescimo de conhecimento e de experiecircncia Esquece-os parcialmente quando encarnado em

mateacuteria por demais grosseira poreacutem deles se recorda como Espiacuterito Assim eacute que certos sonacircmbulos

revelam conhecimentos acima do grau da instruccedilatildeo que possuem e mesmo superiores agraves suas aparentes

capacidades intelectuais Portanto da inferioridade intelectual e cientiacutefica do sonacircmbulo quando

desperto nada se pode inferir com relaccedilatildeo aos conhecimentos que porventura revele no estado de

lucidez (LE 455)

homem natildeo tem apenas cinco sentidos acrescentando-lhe um sexto o sentido espiritual Essa

percepccedilatildeo aleacutem dos sentidos eacute decorrente de uma espeacutecie de extensatildeo do senso iacutentimo tambeacutem

chamado instinto Diz Mesmer que eacute por essa extensatildeo que ldquoo homem adormecido pode ter a

intuiccedilatildeo das doenccedilas e distinguir entre todas as substacircncias as que convecircm agrave sua conservaccedilatildeo e

cura137

A percepccedilatildeo aprimorada se daacute uma vez que estando pelo senso iacutentimo em contato

com toda a natureza encontra-se sempre colocado de modo a sentir o encadeamento das causas

e dos efeitos E eacute dessa forma que antevecirc acontecimentos futuros A metaacutefora utilizada por

Mesmer se tornou comum nos ciacuterculos de magnetizadores e natildeo eacute outra que Kardec se utiliza

para explicar a origem dos fenocircmenos da presciecircncia dos acontecimentos

[imaginemos] que um homem [] colocado sobre uma montanha perceba ao longe no caminho uma tropa inimiga se dirigindo para uma aldeia que quer incendiar ser-lhe-aacute faacutecil calculando o espaccedilo e a velocidade prever o momento da chegada da tropa Se descendo agrave aldeia diz simplesmente a tal hora a aldeia seraacute incendiada o acontecimento vindo a se cumprir ele passaraacute aos olhos da multidatildeo ignorante por um adivinho um feiticeiro ao passo que muito simplesmente viu o que os outros natildeo podiam ver e disso deduziu as consequumlecircncias138

E assim o magnetismo de Mesmer antecipou diversos elementos da Doutrina espiacuterita e

certamente inspirou sua concepccedilatildeo holista que liga o microcosmo ao macrocosmo as leis fiacutesicas

agraves leis morais numa perspectiva espiritualista cuja unidade do todo e a inter-conexatildeo de tudo

com tudo transcende o dualismo corpoalma

Respeito pelas crenccedilas populares

Aleacutem disso um outro elemento herdado do magnetismo eacute o respeito pelas crenccedilas

populares Tanto o magnetismo quanto o Espiritismo buscavam nas crenccedilas populares

elementos de pesquisa para desvendar nelas o resquiacutecio de uma verdade primitivamente

reconhecida Para Mesmer entre as opiniotildees vulgares de todos os tempos () algumas

absurdas e extravagantes () natildeo existem as que natildeo possam ser consideradas como os

resquiacutecios de uma verdade primitivamente reconhecida139 Algumas das conclusotildees que

Mesmer tira do desenvolvimento da teoria que explica os fenocircmenos sonambuacutelicos satildeo

que as antigas opiniotildees natildeo devem ser desdenhadas soacute porque estatildeo associadas a alguns erros Que os fenocircmenos do sonambulismo foram percebidos em todos os tempos e desnaturados segundo os preconceitos do seacuteculo ao qual pertenceram Que o homem foi sempre imperfeitamente conhecido sobretudo no seu estado de doenccedila E que as faculdades extraordinaacuterias que nele se manifestam devem ser vistas apenas como a extensatildeo de suas sensaccedilotildees e do seu instinto140

137 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 553 138 OP p104 139 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 517 140 ibid p 561-62

E isso se deu particularmente com relaccedilatildeo aos fenocircmenos sonambuacutelicos que por mais

fossem perseguidos ao longo da histoacuteria () quaisquer um desses fatos satildeo conhecidos de

todos os tempos sob diversas denominaccedilotildees () Algumas outras foram completamente

negligenciadas Outras foram cuidadosamente ocultadasrdquo e para ele esse fenocircmenos tatildeo

antigos quanto as enfermidades dos homens ldquosempre espantaram e muitas vezes alucinaram o

espiacuterito humanordquo141

Essa mesma vontade de desencavar o conhecimento espalhado no meio do povo

movia Kardec para quem

a coincidecircncia entre o que hoje nos dizem [os espiacuteritos] e as crenccedilas das mais remotas eras eacute um fato significativo do mais elevado alcance Quase por toda a parte a ignoracircncia e os preconceitos desfiguraram esta doutrina cujos princiacutepios fundamentais se misturam agraves praacuteticas supersticiosas de todos os tempos exploradas com o fim de abafar a razatildeo Entretanto sob esse amontoado de absurdos germinam as mais sublimes ideacuteias com sementes preciosas ocultas sob as sarccedilas142

Imerso num contexto dogmaacutetico e fechado ao diaacutelogo e de certa forma prevendo seu

destino Mesmer aponta para o novo fanatismo que emergia junto ao materialismo das ciecircncias

modernas Ao que tudo indica os sonacircmbulos continuariam sendo perseguidos natildeo mais a

perseguiccedilatildeo da Igreja mas a difamaccedilatildeo puacuteblica dos increacutedulos143 e natildeo haveria muitas

diferenccedilas entre o autoritarismo da feacute e o do materialismo Temos ainda presentes as

perseguiccedilotildees que o fanatismo muito creacutedulo exerceu nos seacuteculos da ignoracircncia sobre as

pessoas que tiveram a infelicidade de serem os personagens desses prodiacutegios ou que foram os

seus ministros Eacute de se acreditar que sejam hoje viacutetimas do fanatismo da incredulidade natildeo

seratildeo punidos como idoacutelatras ou sacriacutelegos mas seratildeo tratados talvez como impostores e

perturbadores da ordem puacuteblica144

Contraacuterio a esse espiacuterito dogmaacutetico marcante nos sistemas filosoacuteficos do seacuteculo XIX

Kardec buscou um espiacuterito criacutetico de abertura e acolhida a novas descobertas Temos assim que

o Espiritismo por heranccedila do magnetismo de Mesmer manteacutem uma abertura agraves descobertas

cientiacuteficas tanto do passado quanto do futuro Na perspectiva de quem busca a totalidade do

conhecimento natildeo soacute no sentido enciclopeacutedico como na descoberta da lei universal que

explicasse todos os fenocircmenos por meio da qual Deus se manifesta Kardec fez questatildeo de

deixar a porta aberta agraves descobertas cientiacuteficas se alguma comprovaccedilatildeo cientiacutefica viesse a

141 ibid 142 RE 1858 abril p95 143 Com relaccedilatildeo a essa questatildeo o meacutedico Paulo Figueiredo eacute ainda mais duro em sua sugestiva criacutetica ao silenciamento das teses mesmeristas() o despotismo acadecircmico de inspiraccedilatildeo feudal manobrado pelas instacircncias de poder poliacutetico econocircmico e ideoloacutegico da eacutepoca de Mesmer iria ganhar forccedilas desenvolver sutilezas e se aperfeiccediloar ateacute se transformar na atual e cruel ditadura capitalista da pesquisa acadecircmica (p 80-1) 144 Paulo FIGUEIREDO Mesmer a ciecircncia negada e os textos escondidos p 547

contrariar alguma verdade da doutrina espiacuterita deveria-se optar pela verdade cientiacutefica Haacute aiacute a

recusa a todo dogmatismo a todo argumento natildeo fundado na razatildeo e no empiricismo bem

como uma abertura ao novo aos misteacuterios que a humanidade ainda estaria por desvendar

Consideraccedilotildees finais

Vivemos um momento de transiccedilatildeo civilizatoacuteria em que as sementes de uma

humanidade nova mais amorosa mais fraterna germinam no interior de movimentos de grande

perversidade configurados pelas desigualdades econocircmico-sociais pela imposiccedilatildeo do mundo

tecno-cientiacutefico pelo desprezo e insensibilidade diante da pobreza e da miseacuteria da grande

maioria da populaccedilatildeo mundial O resultado desse processo dependeraacute da capacidade ou natildeo de

se construir consensos eacuteticos universais em favor da compaixatildeo e da fraternidade capazes de

frear os impulsos das forccedilas competitivas e auto-centradas (mas vazias de interioridade) do

homem tecnoloacutegico

As soluccedilotildees portanto hatildeo de passar por um processo de diaacutelogo As soluccedilotildees que se

apresentam como prontas satildeo justamente as maiores fontes de fundamentalismo religioso e de

violecircncia estrutural como infelizmente vivemos com o neoliberalismo e com o imperativo de

se adequar a nova ordem mundial

Ao se recusar a participar do movimento geral de especializaccedilatildeo cientiacutefica o Espiritismo

pode se manter como uma fonte de inspiraccedilatildeo no atual periacuteodo de globalizaccedilatildeo na medida em

que torna-se imperioso apontar caminhos eacuteticos e com respeito ao sentido uacuteltimo da existecircncia

humana sem se abandonar as conquistas inquestionaacuteveis da ciecircncia e da tecnologia Na tarefa

de equacionar a um soacute tempo os impulsos criativos da tecno-ciecircncia e a responsabilidade em

cuidar do bem estar de todos os seres vivos eacute preciso criar um campo aberto ao diaacutelogo entre as

ciecircncias entre as filosofias e entre as religiotildees Na era da comunicaccedilatildeo e da informaccedilatildeo em que

a ampliaccedilatildeo da capacidade de diaacutelogo planetaacuterio surge como o grande fruto civilizatoacuterio o

Espiritismo pode ser ao menos uma fonte de inspiraccedilatildeo e ateacute mesmo o campo de passagem a

partir de onde as novas ideacuteias poderatildeo brotar

Sugerimos aqui que se intensifiquem as pesquisas em torno das filosofias e religiotildees que

se apresentem como capazes de dialogar e de ser palco de diaacutelogos como conseguimos iniciar

com o Espiritismo Muito ainda haacute de ser feito nesse campo

Religiatildeo ciecircncia e tecnologia dos distanciamentos agraves aproximaccedilotildees no pensamento

social brasileiro contemporacircneo

Silas do Carmo Delfino145

INTRODUCAtildeO

Este trabalho pretende somar esforccedilos agrave iniciativa de vital importacircncia que consiste o

estabelecimento de diaacutelogo interdisciplinar entre aacutereas do saber orientadas na perspectiva da

investigaccedilatildeo dos distanciamentos e aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no

pensamento social brasileiro contemporacircneo Tema cuja complexidade possibilita o

aprofundamento da anaacutelise de uma mateacuteria rica em possibilidades para a construccedilatildeo de uma

consciecircncia compromissada com a aceitaccedilatildeo dos desafios que o mesmo propotildee O que eacute mais

importante o desenvolvimento tecnoloacutegico e o progresso cientiacutefico ou o aspecto humano e a

preservaccedilatildeo ambiental Qualquer pesquisador atento agrave questatildeo proposta de imediato perceberaacute

que as linhas de orientaccedilatildeo de tal pensamento devem ser guiadas na proposiccedilatildeo de questotildees

mais consistentes Incontestavelmente o questionamento que deveraacute ser feito eacute em que medida

o desenvolvimento e o progresso podem criar accedilotildees afirmativas de promoccedilatildeo de bem estar

social humano e de preservaccedilatildeo ambiental

O entendimento atual eacute que a contemporaneidade eacute o cenaacuterio de inuacutemeras descobertas e

avanccedilos em todas as aacutereas do saber entretanto a existecircncia do fasciacutenio por dar respostas agraves

impossibilidades ou seja as incoacutegnitas procedentes da dinacircmica deste processo de acumulaccedilatildeo

de conhecimento dos modos de ser e de saber tiacutepicos do processo histoacuterico-social da

humanidade A investigaccedilatildeo sobre as definiccedilotildees dos termos ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo

bem como a ocupaccedilatildeo em encontrar as aproximaccedilotildees e os distanciamentos entre estes no

pensamento social brasileiro contemporacircneo possibilita uma leitura mais aprimorada da

importacircncia deste tema para a sociedade brasileira

1 Religiatildeo ciecircncia e tecnologia definiccedilotildees importantes ao estudo do tema

Neste capiacutetulo minha argumentaccedilatildeo consiste na reflexatildeo teoacuterica sobre a definiccedilatildeo

equivalente a alguns dos termos de fundamental importacircncia na busca de uma argumentaccedilatildeo

consistente sobre a temaacutetica pretendida

ldquoReligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo quais as implicaccedilotildees na formulaccedilatildeo do pensamento

cientiacutefico sobre a relaccedilatildeo entre estes temas na medida em que a definiccedilatildeo sobre aquilo que cada

um deles representa natildeo eacute coerente No miacutenimo tendenciosa em meu ponto de ver constitui

qualquer pesquisa corrente que natildeo se aproprie em todas as instacircncias de uma definiccedilatildeo

145 Teoacutelogo especialista em Ciecircncias da Religiatildeo pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Minas Gerais

positiva e livre de preconceitos de qualquer matiz a respeito dos conceitos dos termos referidos

acima Natildeo apenas em ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo mas em qualquer aacuterea de conhecimento

existem desafios aspectos negativos aleacutem dos positivos que satildeo proacuteprios e que contribuem para

o aperfeiccediloamento cientiacutefico A religiatildeo pode ser compreendida como uma ciecircncia E o que

dizer agravequeles que a ela atribuem o caraacuteter apenas de senso comum E quanto agrave teacutecnica e o saber

cientiacutefico o que argumentar quando algueacutem atribui a eles a culpa pelo desespero proveniente do

estabelecimento de novos paradigmas Na tentativa humilde poreacutem gloriosa eacute que

empreenderemos o aprofundamento destas questotildees

O termo religiatildeo pode ser utilizado para designar outro estado de consciecircncia diferente

do verdadeiro sentido que o termo possui e em alguns casos de maneira equivocada expressar

algum descontentamento tiacutepico dos ceacuteticos idealistas Os quase sempre descontentes com a

verdadeira definiccedilatildeo e significado que a religiatildeo possui na impossibilidade de fazecirc-la extinguir

utilizam o termo como metaacutefora em seus discursos o que acaba por fortalecer ainda mais a

definiccedilatildeo da religiatildeo que eacute positiva e reforccedilar o seu caraacuteter de importacircncia central nas relaccedilotildees

soacutecio-culturais Trabalhei arduamente na tentativa de expressar o significado do termo religiatildeo

em ldquoO impacto da religiatildeo na contemporaneidade sobre a identidade e a instabilidade inter-

religiosardquo146 Entretanto a questatildeo que nos eacute pertinente neste momento consiste no mesmo

questionamento que deu origem aos trabalhos de Emiacutele Durkheim Satildeo dois questionamentos

claacutessicos em mateacuteria de religiatildeo O primeiro sobre a natureza ou seja ldquoo que eacute religiatildeordquo O

segundo sobre a finalidade e importacircncia ou seja ldquoqual o papel que a religiatildeo desempenha na

sociedade humanardquo Evidentemente o mesmo questionamento deve ser feito a respeito da

ciecircncia e da tecnologia o que elas satildeo e qual a finalidade das mesmas na sociedade humana

Emiacutele Durkheim atraveacutes de suas pesquisas chegou agrave conclusatildeo que a religiatildeo eacute uma ldquocoisa

socialrdquo no seu modo excelente O que possibilita a sociologia observar a religiatildeo atraveacutes dos

fatos sociais

A religiatildeo eacute ldquouma fonte poderosa de identidade que estaacute diretamente vinculada ao

ethos de um povordquo Como em grande parte dos trabalhos sobre a religiatildeo na atualidade as

definiccedilotildees do antropoacutelogo contemporacircneo Clifford Geertz estatildeo presentes nas pesquisas

brasileiras deste modo acredito ser de vital importacircncia agrave definiccedilatildeo deste celebre pensador que

experimentou os infortuacutenios da II Guerra Mundial e dedicou a maior parte de sua vida aos

estudos da antropologia da religiatildeo e etnologia

ldquoA religiatildeo eacute um sistema de siacutembolos que atua para estabelecer poderosas penetrantes e duradouras disposiccedilotildees e motivaccedilotildees nos homens atraveacutes da formulaccedilatildeo de conceitos de uma ordem de existecircncia geral e vestindo essas concepccedilotildees com tal aura de fatualidade que as disposiccedilotildees e motivaccedilotildees parecem singularmente realistasrdquo (GEERTZ 1989)

146 DELFINO Silas do Carmo Monografia de especializaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo PUC Minas 2007

Uma tentativa mais simples poreacutem bastante segura de definiccedilatildeo de religiatildeo eacute a

utilizaccedilatildeo da etimologia do termo que esclarece ldquoreligiatildeordquo do vocaacutebulo portuguecircs eacute a traduccedilatildeo

do termo ldquoreligiordquo herdado do latim Uma forma de relaccedilatildeo entre o homem e a divindade O

homem vive em determinado tempo histoacuterico e segundo Gruen (1995 p 75) ldquosua religiosidade

eacute exteriorizada dentro dos sistemas formais proacuteprios do seu espaccedilo existencial constitui-se

religiatildeordquo

Desde a antiguidade os homens na busca pelo conhecimento e pela verdade recorreram

agraves fontes de tradiccedilatildeo e autoridade reconhecidas em determinado momento histoacuterico das mais

antigas destacam-se as fontes de autoridade teoloacutegica e filosoacutefica A aquisiccedilatildeo do conhecimento

atraveacutes da intuiccedilatildeo induccedilatildeo e deduccedilatildeo ou do senso comum fruto da experiecircncia cotidiana

tambeacutem satildeo reconhecidas formas de aquisiccedilatildeo do conhecimento pelo homem Na antiguidade

claacutessica os gregos jaacute possuiacuteam a preocupaccedilatildeo central em estabelecer criteacuterios especiacuteficos sobre a

linguagem teacutecnica e sobre a forma de argumentaccedilatildeo loacutegica Na Greacutecia antiga os gregos

desenvolveram a geometria a fiacutesica matemaacutetica a astronomia e a filosofia Entretanto a

definiccedilatildeo de ciecircncia como eacute conhecida somente se desenvolve no seacuteculo XVI

Expressotildees significativas do pensamento cientiacutefico europeu do seacuteculo XVI preocupados

com os fundamentos da investigaccedilatildeo cientiacutefica e sobre a verificaccedilatildeo de seus resultados realizam

uma revoluccedilatildeo no pensamento da eacutepoca Reneacute Descartes com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo dedutivo

na Franccedila Francis Bacon com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de induccedilatildeo experimental na Inglaterra e

Galileu Galilei com a utilizaccedilatildeo do meacutetodo de experimentaccedilatildeo na Itaacutelia O tratamento dado agrave

ciecircncia por esses pensadores possibilitou posteriores avanccedilos durante o seacuteculo XVII entretanto

o maior destaque somente acontece no seacuteculo XVIII com a Revoluccedilatildeo Industrial em que

acontece o viacutenculo entre o conhecimento e a produccedilatildeo A recapitulaccedilatildeo dos antecedentes que

contribuiacuteram para o entendimento do que consiste a ciecircncia atual eacute importante mas a pretensatildeo

natildeo eacute a revisatildeo histoacuterica e sim a definiccedilatildeo do que eacute a ciecircncia e qual a sua finalidade Gressler

(2003 p 35) mediante suas pesquisas destaca uma definiccedilatildeo de ciecircncia de faacutecil compreensatildeo

ldquoA ciecircncia eacute uma das maneiras de ler e interpretar o mundo fiacutesico e social Usa para tanto vocabulaacuterio particular muito especifico essencial agrave precisatildeo agrave clareza e agrave objetividade Eacute ainda um conjunto de regras quanto agrave maneira correta de colher organizar quantificar e trabalhar as informaccedilotildees e compartilhar de uma comunidade cientiacutefica internacional um processo de inferecircncia loacutegica que guia a tomada de decisotildeesrdquo (GRESSLER 2003 p 35 )

Uma tentativa mais simples poreacutem bastante segura de definiccedilatildeo de ciecircncia eacute a

utilizaccedilatildeo da etimologia do termo que esclarece ldquociecircnciardquo do vocaacutebulo portuguecircs eacute a traduccedilatildeo

do termo ldquoScirerdquo ou ldquoScientiardquo herdado do latim A forma como o homem conhece e explica a

realidade fiacutesica e social A ciecircncia eacute entatildeo utilizada no controle praacutetico da natureza na descriccedilatildeo

e compreensatildeo do mundo e na previsatildeo de fenocircmenos e acontecimentos

A definiccedilatildeo da UNESCO sobre a ciecircncia compreende a mesma como uma dimensatildeo na

qual a humanidade desempenha um tipo de atividade distinta e sistemaacutetica objetivando a

soluccedilatildeo e a resposta agraves questotildees apresentadas como desafios a dinacircmica da vida

ldquoA palavra lsquociecircnciarsquo significa o empreendimento pelo qual a humanidade agindo individualmente ou em pequenos ou grandes grupos faz uma tentativa organizada por meio do estudo objetivo de fenocircmenos observados para descobrir e dominar a cadeia de causalidades reuacutene em forma coordenada os subsistemas resultantes do conhecimento por meio de reflexatildeo sistemaacutetica e conceptualizaccedilatildeo frequentemente expressa nos siacutembolos de matemaacutetica por esse meio provecirc a si proacutepria a oportunidade de usar para sua proacutepria vantagem a compreensatildeo dos processos e fenocircmenos que ocorrem na natureza e na sociedaderdquo (O STATUS do pesquisador 1978 p 1439)

Deste modo percebemos a importacircncia que a ciecircncia possui pois vai aleacutem da dimensatildeo

empiacuterica no momento em que busca a explicaccedilatildeo do por que dos fatos Segundo Gressler (2003

p 29) ldquoA ciecircncia realmente se destaca quando consegue unir o saber e o fazer dando origem agrave

tecnologia ou seja agrave ciecircncia aplicada agraves teacutecnicasrdquo

Segundo Aacutelvaro Vieira (2005 p 175) a teacutecnica eacute considerada como ldquoa mediaccedilatildeo na

obtenccedilatildeo de uma finalidade humana conscienterdquo Desde antiguidade o conceito de teacutecnica vem

sendo desenvolvido um dos primeiros termos que auxiliam no estabelecimento da compreensatildeo

atual utilizado por Aristoacuteteles eacute ldquotechnerdquo do grego o mesmo que ldquoArsrdquo do latim Aristoacuteteles se

referia a um modo de trabalho sem a mateacuteria Para uma compreensatildeo mais simples o que

Aristoacuteteles formulou eacute que a teacutecnica eacute fruto do esforccedilo humano ou seja como principio

somente eacute realizada no outro um logos que precede a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo Na natureza as

realizaccedilotildees satildeo espontacircneas o seu movimento existe no proacuteprio produto Kant aprofundou o

pensamento a respeito da teacutecnica dividindo a em intencional e natildeo intencional A intencional eacute a

capacidade produtiva da natureza e a natildeo intencional eacute a idecircntica ao mecanismo da natureza A

teacutecnica pode ser considerada sob o ponto de vista de muitos pensadores na contemporaneidade

tendo por observaccedilatildeo o fato que na definiccedilatildeo central do que a mesma eacute natildeo ocorrem muitas

diferenciaccedilotildees

A questatildeo principal referente agrave teacutecnica na contemporaneidade cuja origem pode ser

observada principalmente na II Guerra Mundial eacute o fator ldquomaterialidaderdquo Mas assim como na

definiccedilatildeo de ldquoreligiatildeordquo e ldquociecircnciardquo a ldquoteacutecnicardquo tambeacutem deve ter como fundamento central o

sujeito que realiza cada uma destas nesse caso o homem Na tentativa de apurar a definiccedilatildeo de

tecnologia uma questatildeo presente no pensamento corrente e que a elucidaccedilatildeo eacute necessaacuteria

consiste no fato da confusatildeo entre o que eacute tecnologia e teacutecnica Com o objetivo de alcanccedilar uma

definiccedilatildeo razoaacutevel do termo foi que nas colocaccedilotildees anteriores a definiccedilatildeo de teacutecnica foi

considerada

Em alguns estudos eacute comum a observaccedilatildeo da apropriaccedilatildeo do termo tecnologia para

designar algum tipo de teacutecnica Em alguns casos provenientes da traduccedilatildeo de alguns textos em

outros idiomas e nesse caso mais especificamente a liacutengua inglesa possivelmente pela

utilizaccedilatildeo do termo ldquoknow howrsquo Neste caso acontece a utilizaccedilatildeo do terno tecnologia para

referir a qualquer tipo de teacutecnica utilizada Outra possibilidade tambeacutem encontrada sobre a

definiccedilatildeo de tecnologia consiste na utilizaccedilatildeo do termo como o conjunto de todas as teacutecnicas

disponiacuteveis por uma sociedade em determinado tempo Outras formas encontradas satildeo as

apropriaccedilotildees do termo para fazer referecircncia a conhecimento que pode ser comprado e

transferido como se esse conhecimento fosse independente de outras consideraccedilotildees sociais E

em alguns casos verifica-se a utilizaccedilatildeo do termo como sendo um objeto um produto uma

maacutequina instrumentos ou aquilo que estaacute sendo comercializado Uma confusatildeo comum

tambeacutem em consideraccedilatildeo ao termo ciecircncia que eacute utilizado erroneamente para fazer referecircncia a

biologia ou ao ambiente de estudo e trabalho como um laboratoacuterio

A definiccedilatildeo da UNESCO (1978 p 1439) sobre tecnologia compreende a tecnologia

como conhecimento capaz de proporcionar a melhoria do bem estar da sociedade em que este

conhecimento eacute aplicado ldquoA palavra lsquotecnologiarsquo significa conhecimento que se relaciona

diretamente com a produccedilatildeo ou melhoria de bens e serviccedilosrdquo

ldquoDe acordo com o primeiro significado etimoloacutegico a lsquotecnologiarsquo tem de ser a teoria a ciecircncia o estudo a discussatildeo da teacutecnica abrangidas nesta uacuteltima noccedilatildeo as artes as habilidades do fazer as profissotildees e generalizadamente os modos de produzir alguma coisa () A lsquotecnologiarsquo aparece aqui como valor fundamental exato de lsquologos da teacutecnicarsquo (PINTO 2005 p 219)

Feitas as consideraccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo sobre o que eacute ldquoreligiatildeo ciecircncia e

tecnologiardquo na contemporaneidade a reflexatildeo sobre os distanciamentos e aproximaccedilotildees entre

estes no pensamento social brasileiro seraacute objeto de analise

2 Distanciamentos e aproximaccedilotildees entre religiatildeo ciecircncia e tecnologia

O pensamento social brasileiro eacute muito amplo qualquer pesquisador dedicado ao tema

e que possua verdadeiro afinco e dedicaccedilatildeo perceberaacute que para a compreensatildeo do mesmo

necessaacuterio eacute percorrer a trilha interdisciplinar A histoacuteria da formaccedilatildeo do continente e em

especial da naccedilatildeo brasileira a maneira como as potecircncias imperiais e os povos aqui existentes se

relacionaram desde a implantaccedilatildeo das colocircnias ateacute a consumaccedilatildeo da independecircncia destas

uacuteltimas O modo distinto da relaccedilatildeo entre o indiacutegena os negros e os colonizadores europeus As

implicaccedilotildees soacutecio-culturais de natureza histoacuterica a configuraccedilatildeo do ambiente geograacutefico o

clima e o meio ambiente o desenvolvimento das manifestaccedilotildees culturais e religiosas o modo de

produccedilatildeo econocircmica e as relaccedilotildees com o exterior todas estas satildeo aspectos que possibilitam a

compreensatildeo do pensamento social brasileiro

A sociedade brasileira possui sua linguagem e estruturas de pensamento distintas de

todas as demais sociedades no mundo e com um aspecto definidor da mesma que eacute o de uma

sociedade de ldquomuacuteltiplas identidadesrdquo147 ldquoRegionalismosrdquo e ldquolocalismosrdquo existentes devido a

grande extensatildeo do territoacuterio atribuem agrave sociedade caracteriacutesticas muacuteltiplas ndash interconectadas -

formando uma totalidade Um paiacutes continental com diversos climas e configuraccedilotildees

geograacuteficas mas tambeacutem com muitas realidades sociais e econocircmicas O Brasil paiacutes em

desenvolvimento poderia ser considerado o mundo se observado apenas atraveacutes de suas

desigualdades uma vez que o mundo atual eacute desigual dividido entre naccedilotildees ricas e pobres

O fator de maior contribuiccedilatildeo na relaccedilatildeo cordial dos brasileiros com os demais povos

estaacute no fator diversidade desta naccedilatildeo Ser brasileiro eacute relacionar-se com o ldquodiversordquo por

excelecircncia uma diversidade de formas de expressatildeo e de compreensatildeo A existecircncia de muitos

matizes culturais proporciona visotildees de mundo muacuteltiplas expressotildees e manifestaccedilotildees diversas

em constante aglutinaccedilatildeo Essa diversidade ndash diversificaccedilatildeo - eacute fruto da construccedilatildeo social

poliacutetica e econocircmica

ldquoO conceito baacutesico subjacente agraves teorias de evoluccedilatildeo soacutecio-cultural eacute o de que as sociedades humanas no curso de longos periacuteodos experimentam dois processos simultacircneos e mutuamente complementares de auto transformaccedilatildeo um deles

147 Para uma compreensatildeo ampliada a respeito desta ldquomuacuteltipla identidaderdquo a leitura da vida e obra de algum destes autores de - nobre missatildeo acadecircmica e literaacuteria - possibilitaraacute a visatildeo deste universo concreto em seus sentidos formas e expressotildees denominado Brasil no mercado literaacuterio existem versotildees de obras destes autores comentadas o que permite uma compreensatildeo referenciada do contexto de vida de cada um deles Segue o nome do autor e uma sugestatildeo de meio eletrocircnico para acessar informaccedilotildees sobre os mesmos vida e contribuiccedilotildees Ver (1) Adeacutelia Prado em httpwwwreleiturascomaprado_bioasp (2) Affonso Romano de SantrsquoAnna em httpwwwreleiturascomarsant_bioasp (3) Ariano Suassuna em httpwwwarianosuassunacombr (4) Carlos Drummond de Andrade em httpwwwmemoriavivacombrdrummondindexhtm (5) Ceciacutelia Meireles em httpwwwreleiturascomcmeireles_bioasp (6) Clarice Lispector em httpwwwclarice-lispectorcjbnet (7) Cristoacutevatildeo Tereza em httpwwwcristovaotezzacombrp_biografiahtm (8) Fabriacutecio Carpinejar em httpwwwcarpinejarcombrhomehtm (9) Erico Veriacutessimo em httpwwwreleiturascomeverissimo_bioasp (10) Euclides da Cunha em httpwwwreleiturascomedacunha_bioasp (11) Fernando Sabino em httpwwwreleiturascomfsabino_bioasp (12) Ferreira Gullar em httpliteralterracombrferreira_gullar (13) Graciliano Ramos em httpwwwgracilianocombr (14) Gregoacuterio de Matos em httpwww2ufbabr~gmgwelcomehtml (15) Joatildeo Cabral de Melo Neto em httpwwwtvculturacombraloescolaliteraturajoaocabral (16) Joatildeo Guimaratildees Rosa em httpwwwtvculturacombraloescolaliteraturaguimaraesrosaindexhtm (17) Joatildeo Ubaldo Ribeiro em httpwwwreleiturascomjoaoubaldo_bioasp (18) Jorge Amado em httpwwwreleiturascomjorgeamado_bioasp (19) Luiz Fernando Veriacutessimo em httpwwwreleiturascomlfverissimo_bioasp (20) Lygia Fagundes Telles em httpwwwreleiturascomlftelles_bioasp (21) Machado de Assis em httpwwwmachadodeassisorgbr (22) Manoel de Barros em httpwwwfmborgbr (23) Manuel Bandeira em httpwwwreleiturascommbandeira_bioasp (24) Maacuterio de Andrade em httpwwwreleiturascommarioandrade_bioasp (25) Maacuterio Quintana em httpwwwccmqcombr (26) Monteiro Lobato em httpwwwmuseumonteirolobatocombr (27) Murilo Rubiatildeo em httpwwwmurilorubiaocombr (28) Raduan Nassar em httpwwwreleiturascomrnassar_bioasp (29) Vinicius de Moraes em httpwwwviniciusdemoraescombr

responsaacutevel pela diversificaccedilatildeo o outro pela homogeneizaccedilatildeo das culturasrdquo (RIBEIRO 1987 p 35)

Segundo Ribeiro (1987 p 38) ldquoAs sociedades satildeo constituiacutedas e mantidas por

sociedades que natildeo existem isoladamente mas em permanente interaccedilatildeo umas com as outrasrdquo

Uma forma de relacionamento que acontece de dois modos ldquodiretardquo e ldquoindiretamenterdquo no caso

brasileiro a experimentaccedilatildeo desta relaccedilatildeo acontece na contemporaneidade por meio de uma

posiccedilatildeo consciente do processo de homogeneizaccedilatildeo desta sociedade amplamente diversa O que

eacute diferente em algumas sociedades contemporacircneas agraves quais experimentam ldquoinstabilidadesrdquo e

ldquotensotildeesrdquo provindas de algum dos aspectos contidos no processo de ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-

culturalrdquo148

As etapas desta ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo consistem segundo o autor em trecircs sistemas

distintos o primeiro ldquoadaptativordquo - o segundo ldquo associativordquo - o terceiro ldquoideoloacutegicordquo Em cada

uma destas etapas sistecircmicas existem diversos aspectos internos referente a cada uma delas O

que possibilita a formaccedilatildeo cultural e consequentemente o pensamento social em determinado

tempo

ldquoO sistema adaptativo compreende o conjunto integrado de modos culturais de accedilatildeo sobre a natureza necessaacuterios agrave produccedilatildeo e agrave reproduccedilatildeo das condiccedilotildees materiais de existecircncia de uma sociedade O sistema associativo compreende fundamentalmente os modos estandardizados de regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees entre as pessoas para o efeito de atuarem conjugadamente no esforccedilo produtivo e na reproduccedilatildeo bioloacutegica do grupo Como decorrecircncia () surgem () instituiccedilotildees reguladoras de caraacuteter poliacutetico religioso educacional etc A terceira ordem () corresponde ao seu sistema ideoloacutegico Compreende aleacutem das teacutecnicas produtivas e normas sociais em seu caraacuteter de saber abstrato todas as formas de comunicaccedilatildeo simboacutelica com a linguagem as formulaccedilotildees explicitas de conhecimento com respeito a natureza e a sociedade os corpos de crenccedilas e as ordens de valores bem como as explanaccedilotildees ideoloacutegicas em cujos termos os povos explicam e justificam seu modo de vida e de condutardquo (RIBEIRO 1987 p 43)

O Brasil contemporacircneo tem diversidades como antes referido mas eacute um Estado de

Direito Democraacutetico independente com Constituiccedilatildeo proacutepria e divisatildeo entre os poderes possui

instituiccedilotildees leis mecanismos de controle social organizaccedilotildees da sociedade civil que

possibilitam a participaccedilatildeo da sociedade em aacutereas onde o Estado articula accedilotildees eficientes

atraveacutes da presenccedila destas organizaccedilotildees Um Estado em desenvolvimento mas em um estaacutegio

de maturaccedilatildeo positiva ou seja as etapas (adaptativa associativa e ideoloacutegica) satildeo

148 Darcy Ribeiro destaca a base conceitual utilizada em suas pesquisas para estabelecer a analise sobre o processo de formaccedilatildeo eacutetnica e sobre os problemas de desenvolvimento com que se defrontam os povos americanos O autor o traduz como ldquoo movimento histoacuterico de mudanccedila dos modos de ser e de viver dos grupos humanos desencadeado pelo impacto de sucessivas revoluccedilotildees tecnoloacutegicas (agriacutecolas industriais etc) sobre sociedades concretas tendentes a conduzi-las agrave transiccedilatildeo de uma etapa evolutiva a outra ou de uma a outra formaccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo RIBEIRO Darcy O processo civilizatoacuterio estudos de antropologia da civilizaccedilatildeo 9ordf Ed Petroacutepolis Vozes 1987 Ver paacuteginas 40-46

compreensiacuteveis e estatildeo articuladas num processo evolutivo Um exemplo satildeo as relaccedilotildees149 com

os Estados potecircncias e com os Estados pobres o Brasil possui 74 Embaixadas no Exterior e 31

Consulados e Vice-Consulados bem como 7 Delegaccedilotildees Missotildees e Escritoacuterios Brasileiros no

Exterior Aleacutem de algumas empresas totalmente brasileiras produzindo bens e serviccedilos em

outros paiacuteses Outro exemplo eacute a multiplicidade de interlocutores representantes de movimentos

sociais ou culturais no cenaacuterio nacional atuando diretamente por meio da representaccedilatildeo poliacutetica

em sindicatos ou organizaccedilotildees do terceiro setor

O Brasil contemporacircneo possui um modelo de produccedilatildeo agriacutecola desenvolvido que

fornece ao mercado interno e externo uma variedade de gecircneros alimentiacutecios O termo

agricultura tem sido substituiacutedo por outro a cultura brasileira consagrou o novo termo

ldquoagronegoacuteciordquo150 termo mais atual para um tema de importacircncia nas relaccedilotildees externas

contemporacircneas do Brasil ainda que agricultura continue possuindo seu sentido original

Atraveacutes de uma poliacutetica de desburocratizaccedilatildeo dos aspectos protocolares agrave abertura de novos

negoacutecios e a oferta de capital atraveacutes dos bancos estatais e privados nacionais e internacionais

juntamente com a vasta opccedilatildeo de negoacutecios que podem ser empreendidos a induacutestria o comeacutercio

e o setor de serviccedilo tecircm obtido desempenho crescente e encorajador na uacuteltima deacutecada151 Nos

uacuteltimos cinco anos as montadoras brasileiras exportaram aproximadamente 40 milhotildees de

unidades de automoacuteveis Outro setor em expansatildeo eacute o de extraccedilatildeo mineral o Brasil na ultima

deacutecada alcanccedilou a autonomia em relaccedilatildeo ao petroacuteleo e tem se tornado um dos grandes

exportadores mundiais assim como eacute em relaccedilatildeo ao mineacuterio de ferro Observa-se uma retraccedilatildeo

neste ano de 2009 provenientes da desaceleraccedilatildeo da economia mundial resultando em alguns

reajustes pontuais uma pequena queda na oferta de creacutedito e consequumlentemente de empregos

entretanto o Brasil tem demonstrado bom acircnimo para lidar com as incertezas

O pensamento social brasileiro contemporacircneo eacute desde a compreensatildeo da existecircncia do

neocolonialismo perverso do qual o processo de exploraccedilatildeo das neocolonias por uma burguesia

internacional estatal e privada natildeo possibilitaria a acensatildeo dos Estados em desenvolvimento

subjulgando-os a eterna dependecircncia externa Ateacute a compreensatildeo de um desenvolvimento

149 O Brasil possui um notoacuterio histoacuterico de relaccedilotildees pacificas com as naccedilotildees amigas e desde a formaccedilatildeo de suas primeiras escolas e profissionais de diplomacia a cultura que orientou as decisotildees em mateacuteria de Poliacutetica Externa sempre foi a da cordialidade do respeito e da preocupaccedilatildeo pela luta por uma ordem mundial mais justa As contribuiccedilotildees do Baratildeo do Rio Branco permanecem como um exemplo a ser seguido e compotildeem ldquoo pensamento social brasileiro contemporacircneordquo em mateacuteria de Poliacutetica Externa Para uma descriccedilatildeo detalhada das contribuiccedilotildees do Baratildeo do Rio Branco ver CERVO Amado Luiz amp BUENO Clodoaldo Historia da Poliacutetica Exterior do Brasil 3ordf Ed Brasiacutelia UNB 2008 Ver ainda httpwwwmregovbr 150 O Brasil que de colocircnia de exploraccedilatildeo de monocultura na contemporaneidade compotildeem o Grupo dos 20 paiacuteses mais desenvolvidos do mundo defende a quebra das barreiras comerciais e dos subsiacutedios sobre os produtos agriacutecolas dos paises europeus na OMC Para mais informaccedilotildees sobre o agronegoacutecio no Brasil ver httpwwwagriculturagovbr 151 As projeccedilotildees comparaccedilatildeo com os demais paiacuteses da Ameacuterica Latina ldquoAnuaacuterio Estatiacutesticordquo ver em httpwwwmdicgovbrsitiointernainternaphparea=2ampmenu=1479 para o ldquoRelatoacuteriordquo indicadores econocircmicos e sociais ver em httpwwwmdicgovbrarquivosdwnl_1234969449pdf

glorioso capaz de romper com as delimitaccedilotildees de uma ordem econocircmica preacute-configurada

atraveacutes da ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-culturalrdquo das naccedilotildees mundiais ou da historia humana como um

todo152 Mas a prudecircncia eacute amiga da vida e neste sentido facilmente chega-se a compreensatildeo

que embora a histoacuteria do Brasil seja marcada pelas consequumlecircncias que a colonizaccedilatildeo lhe impocircs

eacute liacutecito caminhar com feacute e esperanccedila no desespero ou na convicccedilatildeo de que se pode ser um paiacutes

desenvolvido

Na medida em que se refere agrave feacute aspecto marcante do ldquoser brasileirordquo153 ndash configuraccedilatildeo

pautada nas bases da originalidade distinta e das circunstacircncias exigecircncias de soluccedilotildees - a

questatildeo da religiosidade deste povo se torna visiacutevel e embora a quem julgue que religiatildeo seja

assunto de difiacutecil trato no Brasil devido agraves muitas existentes natildeo existem conflitos entre as

religiotildees no Brasil O brasileiro vive imerso numa pluralidade cultural que carrega na sua

representaccedilatildeo maacutexima a ambiecircncia da religiatildeo marcada pela cultura costumes ritos e mitos

destes brasileiros (iacutendios negros provenientes da Aacutefrica e brancos vindos da Europa)

As questotildees sobre os distanciamentos e as aproximaccedilotildees entre ldquoreligiatildeo ciecircncia e

tecnologiardquo possuem um elemento comum estatildeo ligadas a aspectos que envolvem a feacute e a eacutetica

da religiatildeo No campo da biologia e da medicina natildeo existem uma concordacircncia a respeito de

alguns temas de significativa importacircncia para a sociedade brasileira principalmente os de

bioeacutetica A eutanaacutesia o aborto a inseminaccedilatildeo artificial a clonagem e as ceacutelulas tronco satildeo

dilemas eacuteticos a serem tratados e superados A religiatildeo no processo de ldquoevoluccedilatildeo soacutecio-

culturalrdquo das sociedades possui por natureza um caraacuteter de componente do sistema ldquoassociativordquo

que eacute muito marcante A ciecircncia e a tecnologia a seu modo tambeacutem possuem este caraacuteter de

componente do sistema ldquoassociativordquo entretanto foi a partir do ldquoiluminismordquo que a ciecircncia e a

tecnologia ganharam o status de autoridade capaz de intervir sobre o mundo e a natureza

No Brasil a criaccedilatildeo de mecanismos institucionalizados que possibilitam a referecircncia

sobre o pensamento social brasileiro em mateacuteria de ciecircncia e tecnologia somente acontece a

partir da deacutecada de 20 quando surgem as primeiras ldquouniversidadesrdquo Na deacutecada de 50 eacute

instituiacutedo o Conselho Nacional de Pesquisa hoje Conselho Nacional de Ciecircncia e Tecnologia e

a Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior A partir da deacutecada de 60

152 Para uma maior compreensatildeo e neste caso a compreensatildeo correta ver os teoacutericos da corrente denominada ldquoTeoria da Dependecircnciardquo Natildeo confundir ingenuamente o termo ldquodependecircnciardquo como fizeram outros teoacutericos sobre esta leitura pois a utilizaccedilatildeo do termo e sua validade na anaacutelise da dinacircmica de relaccedilotildees soacutecio-economicas de poder derivadas do capital necessita de um esforccedilo quanto ao meacutetodo Ver o ldquocaso chilenordquo Cap V Parte 3 B ldquoDependecircncia e Desenvolvimentordquo Cap VI Parte 3 In CARDOSO Fernado Henrique amp FALLETO Enzo Dependecircncia e Desenvolvimento na Ameacuterica Latina Ensaios de Interpretaccedilatildeo Socioloacutegica 8ordf Ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2004 153 QUEIROZ Maria Isaura Identidade nacional religiatildeo expressotildees culturais a criaccedilatildeo religiosa no Brasil In SACHS Viola Brasil amp EUA religiatildeo e identidade nacional Rio de Janeiro Graal 1988 pp 59-83 A autora sugere leitura de outros autores para uma maior compreensatildeo do ldquoser brasileirordquo ROMERO 1871 TORRES 1914 OLIVEIRA VIANNA 1923 PRADO 1928 BUARQUE DE HOLLANDA 1936 MELLO FRANCO 1936 FREYRE 1947 MOREIRA LEITE 1968 AZEVEDO 1981

surgem os primeiros programas de poacutes-graduaccedilatildeo O Ministeacuterio da Ciecircncia e Tecnologia154 foi

criado em 1958 um dos aspectos de sua missatildeo consiste em definir a ldquoPoliacutetica Nacional de

Ciecircncia e Tecnologia e Inovaccedilatildeordquo existem na atualidade algumas instituiccedilotildees cujo objetivo

consiste em fomentar a pesquisa cientiacutefico tecnoloacutegica no paiacutes atraveacutes de accedilotildees ligadas a este

Ministeacuterio ou em parceria direta com as instituiccedilotildees de ensino e pesquisa

Outro fator importante eacute que a religiatildeo entende que a mentalidade cientiacutefica e

tecnoloacutegica na ausecircncia de paracircmetros adequados conduz a uma eacutetica utilitarista capaz de

conduzir a sociedade a uma descontrolada degradaccedilatildeo ambiental e ao consumismo E tambeacutem a

substituiccedilatildeo crescente do culto ao divino e da alteridade nas relaccedilotildees interpessoais pela relaccedilatildeo

entre o homem e o ldquoobjeto funcionalrdquo natildeo criacutetico criado atraveacutes da tecnologia

A religiatildeo tambeacutem se utiliza da tecnologia para expansatildeo e manutenccedilatildeo de seus ideais e

crenccedilas A tecnologia possibilitou a globalizaccedilatildeo das religiotildees atraveacutes dos meios de

comunicaccedilatildeo A evangelizaccedilatildeo cristatilde e o proselitismo das demais tradiccedilotildees ganharam um

alcance significativo na contemporaneidade o modelo de organizaccedilatildeo institucional das

tradiccedilotildees bem como a relaccedilatildeo entre os fieis participantes natildeo resistiu agrave adesatildeo de algumas das

inovaccedilotildees tecnoloacutegicas Deste modo a forma de compreensatildeo sobre os aspectos lituacutergicos e dos

espaccedilos sagrados ganhou um novo sentido Na contemporaneidade um fiel pode prestar um

reverente culto agrave divindade em quem acredita sem necessitar ir a um templo atraveacutes da internet

ou da televisatildeo onde quer que uma pessoa esteja facilmente pode prestar um culto A religiatildeo

pode deslocar-se para aleacutem dos limites geograacuteficos locais de uma maneira antes nunca

experimentada na histoacuteria humana O cristianismo protestante cresceu significativamente na

sociedade brasileira contemporacircneo o deslocamento do centro do cristianismo das naccedilotildees do

norte para as do sul considera-se um dos fatores outro pode ser visto na facilidade deste modo

de cristianismo lidar com o capital e consequentemente as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas adaptando-as

rapidamente agrave sua maneira de praacutexis religiosa

Uma leitura na contemporaneidade bastante congruente as reflexotildees atuais sobre a que

caminhos o desenvolvimento tecnoloacutegico pode conduzir a histoacuteria da humanidade estatildeo entorno

de questotildees ligadas agrave engenharia ciberneacutetica O criador desta ciecircncia o matemaacutetico norte-

americano Norbert Wiener (1964) intelectual que experimentou a II Guerra Mundial projetando

sistemas de defesa para os EUA na tentativa de contribuir para o tema escreveu ldquoGod amp

Golem Inc A Comment on Certain points Where Cybernets Impinges on Religionrdquo onde

destaca trecircs aspectos fundamentais em seu entendimento da relaccedilatildeo entre a ciecircncia ciberneacutetica e

a religiatildeo O primeiro eacute sobre as maacutequinas capazes de aprender autonomamente o segundo

sobre maacutequinas dotadas de sistemas com capacidade criativa para produzir outras maacutequinas e o

terceiro sobre o problema eacutetico de relaccedilatildeo entre maacutequinas e humanos

154 Ver em wwwmctgovbr

A utilizaccedilatildeo reflexionada do texto biacuteblico de Joacute para demonstrar que assim como Deus

possui comando indistinto sobre a vida de Joacute e sobre o democircnio pois eacute criador de todas as

coisas e estes uacuteltimos satildeo criaccedilotildees sua permitiu-lhe estabelecer o criteacuterio eacutetico em que o homem

possui o domiacutenio irrevogaacutevel sobre a maacutequina pois eacute um ser vivo e tambeacutem aquele quem criou

a maacutequina A questatildeo certamente encontra-se no ldquoconhecimento na maquinardquo e no

ldquoconhecimento da maacutequinardquo e no caso das ciberneacuteticas com capacidade de retroaccedilatildeo em

segundo grau natildeo tatildeo complexas como o ceacuterebro humano mas com capacidades superiores a de

instrumentos de trabalho os quais o funcionamento exclusivamente depende do homem

O termo ldquociberneacuteticardquo estaacute cada vez mais presente na cultura brasileira e aos poucos

torna-se parte do imaginaacuterio que compotildee o pensamento sobre a sociedade anteriormente restrito

apenas a ambientes acadecircmicos e aos ciacuterculos da produccedilatildeo tecnoloacutegica presente agora nos

modos de relaccedilatildeo e de produccedilatildeo das sociedades contemporacircneas

CONCLUSAtildeO

Na relaccedilatildeo entre a ldquoreligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo no Brasil observam-se um diaacutelogo o

qual as questotildees ligadas agrave feacute e a eacutetica proporcionam um debate capaz de impulsionaacute-las no

sentido de um intercacircmbio em que a promoccedilatildeo do desenvolvimento humano social e

ambiental eacute entendida como missatildeo a ser desempenhada por todas as instituiccedilotildees da sociedade

Um compromisso comum - ldquosolidariedaderdquo - que possibilita a aceitaccedilatildeo dos desafios do

empreendimento de desvendar o mundo a natureza e o espaccedilo de forma segura e responsaacutevel

ldquoReligiatildeo ciecircncia e tecnologiardquo compromissadas com a promoccedilatildeo da esperanccedila de um mundo

mais justo do desenvolvimento das regiotildees brasileiras marcadas pela pobreza do acolhimento

dos povos empobrecidos do avanccedilo do conhecimento e da educaccedilatildeo e da transformaccedilatildeo eacutetica

dos tomadores de decisatildeo satildeo temas que possiacuteveis agrave criaccedilatildeo de uma agenda comum

BIBLIOGRAFIA

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Deus na era digital miacutedia e linguagem religiosa155

Leomar Antocircnio Brustolin156

Este artigo eacute resultado da reflexatildeo teoloacutegica sobre o fenocircmeno religioso marcado pela

linguagem religiosa na miacutedia digitalizada no Brasil Essa realidade causa forte impacto sobre a

vivecircncia comunitaacuteria da feacute a noccedilatildeo de religiosidade e as praacuteticas religiosas nas diferentes

confissotildees A religiatildeo tradicional sofre profundas mutaccedilotildees que precisam ser analisadas sob o

ponto de vista da Comunicaccedilatildeo e da Teologia Termos convencionais como comunidade

participaccedilatildeo espaccedilo e presenccedila adquirem novos significados jamais pensados O fenocircmeno que

iniciou com as chamadas igrejas eletrocircnicas expandiu suas potencialidades sobre diferentes

meios e em diferentes tradiccedilotildees religiosas As mudanccedilas raacutepidas e profundas interpelam novos

caminhos para o anuacutencio e a vivecircncia da feacute O desafio consiste em investigar a relaccedilatildeo do

sagrado experimentado tradicionalmente no espaccedilo presencial com o sagrado reconstruiacutedo pela

miacutedia moderna

Alguns denominam o nosso tempo de ldquopoacutes-modernidaderdquo caracterizado pela

desconfianccedila da razatildeo e desencantado com as ofertas e os ideais da modernidade O mundo

racionalizado a sociedade com sua ciecircncia e teacutecnica liquidam as alteridades reduzindo-as ao

proacuteprio indiviacuteduo - ldquoo outro sou eurdquo Essa eacute a loacutegica na avalanche do sagrado selvagem No

hiperconsumo e hiperindividualismo as pessoas procuram a religiatildeo individualmente natildeo eacute

mais atraveacutes da famiacutelia da comunidade eacute uma demanda fragmentada Essa procura natildeo se daacute

por sua pertenccedila religiosa confessional mas por vaacuterias modalidades de sincretismo Nos dias

atuais eacute cada vez mais possiacutevel crer sem pertencer a nenhuma religiatildeo

A procura da religiatildeo no indiviacuteduo poacutes-moderno se daacute por cura conquista no amor

negoacutecios busca de riqueza seguranccedila sentimento de utilidade gosto de viver sem anguacutestia

realizaccedilatildeo do seu ser profundo e do fim uacuteltimo Nessa demanda fragmentada a religiatildeo natildeo eacute a

uacutenica opccedilatildeo ela concorre com especialistas das ciecircncias humanas Ocorre assim um amplo

espaccedilo de atuaccedilatildeo dos movimentos religiosos casando o narcisismo agrave necessidade de ter uma

tribo

No campo religioso evidencia-se o desaparecimento das verdades de feacute e o crescimento

da emergecircncia da subjetividade para normatizar a experiecircncia religiosa que passa a ser

privatizada Haacute uma espeacutecie de religiatildeo ala carte de acordo com as preferecircncias de cada fiel

Decorrem dessa perspectiva individualista a pluralidade de verdades a dissoluccedilatildeo dos sentidos

155 O artigo eacute resultado parcial da pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre miacutedia mercado e religiatildeo realizada para a conferecircncia Deus como mercadoria na era digital a ser apresentada no Mutiratildeo da Comunicaccedilatildeo da Ameacuterica Latina e Caribe em fevereiro de 2010 156 Doutor em Teologia e professor na PUCRS

e a fragmentaccedilatildeo da realidade Nesse contexto evidencia-se o retorno do sagrado como

alternativa para reencantar um mundo dessacralizado pela ciecircncia A novidade estaacute no fato do

acircmbito religioso ter se cruzado com o acircmbito midaacutetico nessa tarefa de dar ldquosaborrdquo agrave insipidez

produzida pelo estilo de vida no ocidente atual

Diante da influecircncia dos meios de comunicaccedilatildeo entre eles a televisatildeo e o acesso agraves

redes virtuais cabe questionar as perspectivas da religiatildeo numa sociedade individualista pautada

pela miacutedia

1 A era da miacutedia digital

A atual sociedade vive pautada pela miacutedia eletrocircnica A era da informaccedilatildeo consolida-se

como um novo paradigma sustentado pelos sistemas midiaacuteticos Encontramos cada vez mais

meios de comunicaccedilatildeo diversificados para atender agraves diferentes demandas do consumidor

Pretende-se falar diretamente com ele buscando maior interaccedilatildeo para entretecirc-lo informaacute-lo e

tornaacute-lo mais comprador Isso propicia um acelerado desenvolvimento dos meios de

comunicaccedilatildeo do cinema agrave televisatildeo da raacutedio agrave internet A miacutedia natildeo eacute mais apenas um monitor

para ser visto ou um aparelho de raacutedio que chama atenccedilatildeo do ouvido Eacute um clima um ambiente

no qual estamos inseridos e nos envolve e penetra de todos os lados Vivemos num mundo de

sons imagens cores impulsos e vibraccedilotildees como o homem primitivo que vivia no meio das

florestas marcado por muitos sinais comunicativos Essa nova situaccedilatildeo configura um novo

ambiente e os meios de comunicaccedilatildeo constituem um novo modo de ser e de viver

Essa influecircncia marcou de tal forma o nosso tempo que afetou a proacutepria relaccedilatildeo do ser

humano com o mundo As novas tecnologias alteraram a relaccedilatildeo do ser humano com o espaccedilo e

geraram uma sociedade em rede caracterizada pelo espaccedilo de fluxos Este segundo Castells eacute

ldquoa organizaccedilatildeo material das praacuteticas sociais de tempo compartilhado que funcionam por meio de

fluxos 157rdquo Trata-se de um novo espaccedilo virtual de comunicaccedilatildeo navegaacutevel e focado no fluxo da

informaccedilatildeo um novo domiacutenio um novo espaccedilo e duma nova possibilidade de relaccedilotildees geradas

pela interconexatildeo da rede mundial de computadores Esta possibilita a tele-presenccedila na qual as

pessoas podem estar presentes em lugares distantes daqueles nos quais se encontram

fisicamente Ultrapassam fronteiras poliacuteticas e limites geograacuteficos sem sair do lugar

Natildeo eacute possiacutevel deixar de entrar em contato direto com essas novas formas de

comunicaccedilatildeo num mundo em acelerado processo de mudanccedilas especialmente na era da

informaacutetica e das telecomunicaccedilotildees digitais Ainda haacute outros avanccedilos que estatildeo sendo

projetados A popularizaccedilatildeo da televisatildeo digital por exemplo possibilitaraacute maior interatividade

e transformaraacute os telespectadores em atores mais ativos do processo comunicativo Contudo 157 CASTELLS Manuel A Sociedade em Rede Satildeo Paulo Paz e Terra 2000 p436

natildeo se pode esquecer o risco de alimentarmos uma experiecircncia religiosa individualista

privatizada com raros momentos de convivecircncia e participaccedilatildeo presencial

A miacutedia afeta o coraccedilatildeo humano com suas informaccedilotildees iacutecones mensagens e linguagem

singular Ela informa entreteacutem educa forma e paradoxalmente distorce manipula controla e

destroacutei o senso criacutetico das pessoas A novidade maior contudo eacute a sua interatividade Com a

popularizaccedilatildeo da televisatildeo esta comeccedilou a influenciar e determinar o comportamento de seus

telespectadores Nos uacuteltimos tempos atraveacutes da interatividade multimidial esse processo

cresceu quantitativa e qualitativamente As muacuteltiplas ofertas os horaacuterios alternativos e as

pesquisas da audiecircncia permitem ao espectador escolher aquilo que pretende assistir quando lhe

conveacutem e na modalidade que lhe agrada

As novas tecnologias causam novos haacutebitos de percepccedilatildeo da realidade desde a refraccedilatildeo

ao discurso abstrato e meramente racional ateacute a emergecircncia de uma abertura e nova

sensibilidade para a linguagem simboacutelica e o comportamento eacutetico

No momento surgem relaccedilotildees virtuais que enchem o tempo e o espaccedilo interior das pessoas unicamente por meio da telemaacutetica Algo fantaacutestico estaacute acontecendo Pessoas passam semanas interagindo pela Internet em que se datildeo desde conversas de alto niacutevel teoacuterico ateacute vulgaridades e estabelecem as mais diversas relaccedilotildees afetivas entrando ateacute na aacuterea do cibersexo158

A ldquosociedade do espetaacuteculordquo assim denominada por Guy Debord produz a

invasatildeo da miacutedia atraveacutes da deploraacutevel ldquoespetacularizaccedilatildeordquo das informaccedilotildees sobre eventos

traacutegicos como guerras e cataacutestrofes Segundo Guy Debord ldquoNesse mundo o espectador natildeo se

sente em casa em lugar algum No espetaacuteculo bem como na religiatildeo cada momento da vida

cada ideacuteia e cada gesto soacute encontram seu sentido fora de si mesmosrdquo 159

O espetaacuteculo natildeo eacute soacute uma propaganda difundida pelos meios de comunicaccedilatildeo toda

atividade social eacute captada pelo espetaacuteculo visando seus proacuteprios fins Os problemas satildeo as

imagens e representaccedilotildees que veiculam uma independecircncia banindo da vida qualquer diaacutelogo

As representaccedilotildees nascem da praacutetica social coletiva mas se comportam como seres

independentes A era da informaacutetica e a popularizaccedilatildeo do computador permitem novas

caracteriacutesticas

Hoje o computador estaacute organizando as comunicaccedilotildees de um modo revolucionaacuterio o que o torna ferramenta ideal para gerenciar uma economia onde todos buscam ter experiecircncias emocionantes e divertidas interagem em mundos paralelos ao mesmo tempo para se

158 STORCHL COZACJ Relaccedilotildees Virtuais- O lado humano da comunicaccedilatildeo eletrocircnica in LIBANIO JB Eu creio noacutes cremos Satildeo Paulo Loyola 2000 p111 159 JAPPE Anselm Guy Debord Rio de Janeiro Vozes 1999 22

adaptar a qualquer realidade Neste processo o computador estaacute mudando lentamente a proacutepria consciecircncia humana160

Tudo isso poreacutem natildeo significa maior conhecimento sobre a verdade ou sobre a

realidade Por estarmos acostumados a um conhecimento midiatizado a distacircncia da realidade

pode atingir o niacutevel da falsificaccedilatildeo A seduccedilatildeo das palavras pode tomar posse da nossa vontade

e nos encantar com uma verdade produzida pelos meios manipulando a proacutepria realidade Os

meios de comunicaccedilatildeo transmitem junto com suas mensagens alguns modelos e modos de

pensar que influenciam e condicionam A comunicaccedilatildeo midiaacutetica e a tecnologia que lhe daacute

suporte nunca satildeo neutras mesmo que assim sejam consideradas A mentalidade e as escolhas

das pessoas dependem das notiacutecias que recebem e como as coisas lhes satildeo comunicadas e da

tecnologia utilizada

A miacutedia pode dirigir a opiniatildeo puacuteblica convencer sobre verdades inexistentes e fazer

passar como um bem comum o que na realidade eacute interesse pessoal ou de um grupo de poder

Pelo seu caraacuteter universal e sua rapidez a miacutedia condiciona as realidades do mundo A verdade

fica sempre mais dependente do consenso ou do grau de visibilidade que os meios de

comunicaccedilatildeo imprimem

Eacute preciso considerar a influecircncia da tecnologia para forjar uma nova cultura

() os meios realmente natildeo satildeo simples instrumentos neutros eles satildeo ao mesmo tempo meio e mensagem portadores de uma nova cultura que nasce antes mesmo dos conteuacutedos do proacuteprio fato de existir novos modos de comunicar com novas linguagens novas teacutecnicas novas atitudes psicoloacutegicas161

A miacutedia difunde novas liacutenguas novos coacutedigos novas formas comunicativas novos

conteuacutedos e novos modos de aproximaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo da realidade Assim ela educa e forma

uma nova mentalidade que se insere no cotidiano das pessoas e daacute vida agrave sociedade de massa e

agrave consequumlente cultura de massa Esta eacute condicionada pelas imagens e pelos coacutedigos

comunicativos induzidos pela miacutedia Os sinais envolvem permeiam estruturam e natildeo raras

vezes dominam

2 Miacutedia e religiatildeo

Durante muito tempo antes da invenccedilatildeo da imprensa a forma mais comum de

comunicaccedilatildeo era a linguagem oral e a imagem A feacute cristatilde encontrou no recurso visual uma

160 RIFKIN Jeremy A era do acesso Satildeo Paulo Makron Books 2001 p 169 161 CONFERENZA EPISCOPALE ITALIANA Comunicazione e Missione Direttorio sulle Comunicazioni Sociali nella Missione della Chiesa Cittagrave Del Vaticano Libreria Editrice Vaticana 2004 n 4

excelente forma de comunicar o misteacuterio da salvaccedilatildeo Para isso valeu-se da escultura da

pintura dos vitrais e de tantas outras manifestaccedilotildees culturais Desde os desenhos das

catacumbas agraves obras de arte das catedrais medievais a arte ocupou lugar privilegiado pra

comunicar simbolicamente uma verdade transcendente

Foi com o advento da imprensa que a letra impressa tornou-se meio privilegiado

de comunicaccedilatildeo O livro se impocircs como o melhor meio para a transmissatildeo da cultura Essa

mudanccedila da imagem para a letra impressa serviu muito para a comunicaccedilatildeo da feacute mas hoje

associada agrave impressatildeo outras formas de comunicaccedilatildeo interpelam o ser humano e por isso

tambeacutem as religiotildees procuram responder aos novos apelos

Atualmente percebe-se a interferecircncia do sagrado na era digital pela publicidade e pela

visibilidade midiaacutetica de diferentes manifestaccedilotildees religiosas As igrejas eletrocircnicas as ofertas de

ocultistas adivinhos taroacutelogos as transmissotildees de piedade popular e a missa diaacuteria televisiva

podem ser citados como exemplos desse fenocircmeno A feacute passou a ser transmitida e

experimentada atraveacutes das multimiacutedias No Brasil eacute possiacutevel acessar diferentes canais de

televisatildeo com tais ofertas Catoacutelicos protestantes pentecostais kardecistas umbandistas e ateacute

grupos orientais apresentam-se na ldquotelinhardquo nos diferentes horaacuterios da programaccedilatildeo Se

conectarmos a internet entatildeo nos depararemos com um oceano de possibilidades para acessar

experiecircncias com o sagrado Natildeo daacute para subestimar e nem supervalorizar tais experiecircncias O

certo eacute que estamos diante de uma nova forma de vivecircncia religiosa Haacute poucos anos atraacutes se

dizia que as Igrejas eletrocircnicas eram especialmente pentecostais que difundiam sua mensagem

atraveacutes de hinos pregaccedilotildees e relatos de testemunhos de feacute162 Hoje proliferam-se essas praacuteticas

entre os meios catoacutelicos163

162 No Brasil a experiecircncia americana de pregaccedilotildees religiosas pela televisatildeo chegou especialmente com Pat Robertson Rex Humbard Billy Grahan e Oral Roberts Especialmente nas manhatildes de saacutebado nos anos 70 era possiacutevel ouvir as pregaccedilotildees dubladas desses telepastores Suas reflexotildees eram intercaladas por hinos biacuteblicos entoados em inglecircs por grandes corais Posteriormente eles foram substituiacutedos por pastores brasileiros que comeccedilaram a usar o raacutedio e a TV para difundir suas mensagens Davi Miranda fundador da Igreja Deus eacute Amor comeccedilou o seu trabalho de pregaccedilatildeo atraveacutes de emissoras de raacutedio Contudo foi Edir Macedo quem mais usou as miacutedias para a difusatildeo da Igreja Universal do Reino de Deus Aleacutem do raacutedio valeu-se de um sistema de televisatildeo que acabou adquirindo a Rede Record As iniciativas de Miranda e Macedo ultrapassaram as fronteiras nacionais A mesma estrada foi trilhada pelo pregador R R Soares o fundador da Igreja Internacional da Graccedila que comprou um espaccedilo em horaacuterio nobre na Rede Bandeirantes e o manteacutem diariamente 163 A Igreja Catoacutelica Romana entrou na expansatildeo da comunicaccedilatildeo midiaacutetica depois de experiecircncias mais locais (Difusora de Porto Alegre e Pato Branco no Paranaacute) com a Rede Vida de Televisatildeo Atualmente os catoacutelicos contam com seis redes de televisatildeo Rede Vida (Satildeo Joseacute do Rio Preto-SP) TV Aparecida (Aparecida-SP ) TV Horizonte ( Belo Horizonte ndash MG) TV Nazareacute ( Beleacutem ndashParaacute) Seacuteculo XXI ( Campinas) e Canccedilatildeo Nova ( Cachoeira Paulista ndash SP)

A nova ambiecircncia forjada pela miacutedia descarta objetividades e caminhos absolutos

Prefere-se a experiecircncia pessoal a vivecircncia o contado direto com o misteacuterio feito por

sensaccedilotildees impressotildees e impactos sobre a subjetividade Eacute muito difiacutecil portanto anunciar algo

absoluto numa cultura formada por verdades subjetivas Vivemos num contexto de pluralidade

que natildeo aceita mais uma soacute verdade As pessoas preferem fazer muitas escolhas ter muitas

possibilidades evitam ter a existecircncia marcada por uma soacute direccedilatildeo A maioria das pessoas

declara-se crente mas tambeacutem natildeo hesita em seguir os apelos de uma religiatildeo reduzida ao

caraacuteter provisoacuterio e ocasional Considere-se a mobilidade existente entre os evangeacutelicos no

Brasil Com facilidade migram de uma igreja para outra determinados a encontrar uma

experiecircncia que satisfaccedila suas buscas mais imediatas

A problemaacutetica se intensifica com o advento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo

Elas propotildeem novos modelos comunicativos e natildeo se limitam agrave informaccedilatildeo ou agrave argumentaccedilatildeo

pois permitem uma performance quase ritual A miacutedia moderna tem uma poliacutetica de expansatildeo

fundada na ideacuteia de que ldquonada em nenhuma parte deve permanecer secreto164rdquo Basta recordar

a accedilatildeo tempestuosa dos ldquopaparazzirdquo famintos em revelar aspectos da privacidade das

celebridades Tal comunicaccedilatildeo sem resiacuteduos e nem segredos totalmente transparente acaba

eliminando as diversificaccedilotildees homologando tudo sob um criteacuterio uacutenico Eacute justamente esse

criteacuterio uacutenico da transparecircncia que natildeo tem consistecircncia na comunicaccedilatildeo religiosa O rito

religioso tem um valor testemunhal que jamais eacute totalmente captado no processo comunicativo

Haacute uma irredutibilidade que reflete o caraacuteter inalienaacutevel do misteacuterio que fundamenta o rito

A comunicaccedilatildeo ritual testemunha o que permanece escondido quando se discursa sobre

o misteacuterio A revelaccedilatildeo do transcendente co-implica tirar o veacuteu e ocultar-se novamente O Deus

revelado tambeacutem eacute o Deus absconditus O que entra em debate nesse ponto eacute a questatildeo da

interioridade explicitada e nesse movimento esvaziada pois se trata de uma dimensatildeo iacutentima

que ao se tornar totalmente puacuteblica perde sua forccedila integradora

Na comunicaccedilatildeo ritual haacute certa prioridade do sistema simboacutelico em relaccedilatildeo agrave

experiecircncia do seu significado porque pretendem mediar a participaccedilatildeo dos seres humanos em

Deus Ele enquanto espiacuterito habita todos os seres humanos numa presenccedila imanente agrave

personalidade e agrave subjetividade de cada indiviacuteduo Na consciecircncia humana poreacutem essa

presenccedila natildeo eacute objeto claro e expliacutecito Ela pode ser manifestada como uma experiecircncia do

desejo de liberdade sem tematizar o transcendente ou o sagrado Pelos ritos explicita-se a

presenccedila a priori de Deus ao ser humano Desta forma as pessoas participam conscientemente

de Deus mediante uma consciecircncia reflexiva

164 Cf BRETON Ph Lrsquoutopia della comunicazzione il mito del villaggio planetario Torino UTET 1995 p52-53

3 A linguagem do Misteacuterio

A comunicaccedilatildeo primordial estaacute em Deus eacute o proacuteprio Deus Sua comunicaccedilatildeo eacute criadora

de vida ldquoNo princiacutepio a Palavra estava em Deus e a Palavra era Deusrdquo (Jo 11) Deus pela

sua comunicaccedilatildeo cria para aleacutem dele mesmo O ser humano eacute comunicaccedilatildeo de Deus mas natildeo eacute

Deus Assim afirma o teoacutelogo alematildeo Karl Rahner o ser humano eacute a gramaacutetica de Deus

expressatildeo que surge da comunicaccedilatildeo de Deus Ele cria algueacutem que natildeo seja Deus O ser humano

surge quando Deus quer ser natildeo-Deus isto eacute aquele pronunciar-se como Palavra no vazio do

diverso de si 165

Ele se comunica com o ser humano adotando a liacutengua de cada povo ao qual se

dirige Essas liacutenguas tornam-se sagradas porque satildeo instrumentos de anuacutencio da parte de Deus

e dos seus enviados Isso natildeo significa apenas um fato linguumliacutestico Conhecer e falar a liacutengua do

outro natildeo eacute necessariamente comunicar-se com ele A comunicaccedilatildeo depende da sintonia com o

outro capaz de captar suas exigecircncias interpretar suas expectativas e despertar um desejo

profundo Falar ao outro portanto quer dizer encontraacute-lo na verdade do seu ser uacutenico e na

singularidade da sua situaccedilatildeo concreta Natildeo basta ter algo a dizer para ser compreendido Eacute

necessaacuterio provocar o interesse

Natildeo desprezar as diversas formas de comunicaccedilatildeo que a humanidade conhece eacute uma

condiccedilatildeo inerente agrave feacute cristatilde pois a comunicaccedilatildeo natildeo eacute simples movimento psicoloacutegico proacuteprio

da natureza humana Trata-se na verdade de uma categoria fundamental da revelaccedilatildeo cristatilde

Deus eacute comunicaccedilatildeo e revela sua proacutepria essecircncia seu amor Na encarnaccedilatildeo do Verbo podemos

dizer que Deus se faz audiovisual Atraveacutes desse meio Ele se comunica agrave humanidade Na

vinda de Jesus Cristo ocorre o maravilhoso encontro entre ceacuteu e terra numa comunicaccedilatildeo que

ultrapassa os limites do tempo e do espaccedilo Eacute assim que Deus adapta-se agrave linguagem que os

seres humanos satildeo capazes de entender e aos meios com os quais se comunicam

O encontro com o sagrado contudo sempre eacute percebido pela mediaccedilatildeo O divino se

revelao infinito se deixa perceber no limite da experiecircncia humana Nesse sentido vale-se de

um elemento material uma pessoa um lugar ou um fato histoacuterico De certa forma sacraliza-se e

diviniza-se a mediaccedilatildeo para que ela seja capaz de comunicar o encontro como misteacuterio Ela visa

a relaccedilatildeo simboacutelica

A linguagem religiosa se realiza basicamente atraveacutes do siacutembolo Ele funda toda as

outras formas de comunicaccedilatildeo da religiatildeo Ele eacute a representaccedilatildeo de uma ausecircncia e diz mais do

que aparenta Eacute expressatildeo do profundo da intuiccedilatildeo e da utopia O objeto simboacutelico traduz uma

hierofania experimentada e traduzida para que outros tenham possibilidade de fazer a mesma

165 Cf RAHNER Karl Curso Fundamental da feacute Introduccedilatildeo ao conceito de cristianismo Satildeo Paulo Paulus 1989 p 293

experiecircncia do numinoso A comunicaccedilatildeo simboacutelica pretende portanto iniciar o outro no

encontro com o misteacuterio A necessidade hermenecircutica dos siacutembolos remete ao seu caraacuteter

relacional O ser humano vale-se do siacutembolo para se relacionar e comunicar

O siacutembolo contudo natildeo eacute um texto ou um relato claro e expliacutecito Sua representaccedilatildeo

natildeo eacute linguumliacutestica mas visual e figurativa porque eacute um signo aberto e sugestivo cuja significaccedilatildeo

depende do seu produtor Tal significaccedilatildeo eacute captada por uma interpretaccedilatildeo realizada num ato

segundo O siacutembolo eacute evocativo e orientador insinua e sugere Eacute por isso que ele supotildee

interpretaccedilatildeo ldquoO siacutembolo nos transmite o sentido da transparecircncia opaca do enigma e natildeo pela

vida da traduccedilatildeordquo166

Batista Mondin afirma que a linguagem religiosa possui trecircs caracteriacutesticas auto-

implicaccedilatildeo doxologia e missionariedade167 Ora a linguagem da feacute natildeo eacute descompromissada e

abstrata pois remete ao sujeito em sua relaccedilatildeo com o sagrado e ao seu envolvimento numa auto-

implicaccedilatildeo Igualmente eacute uma confissatildeo de louvor a Deus reconhecido como misteacuterio tremendo

e fascinante nas palavras de Rudolf Otto por isso se expressa em oraccedilotildees e ritos como

doxologia Enfim toda linguagem religiosa remete ao anuacutencio Precisa essencialmente ser

comunicada Ora com todo esse pressuposto de engajamento a relaccedilatildeo entre miacutedia e religiatildeo

supotildee uma reflexatildeo que deixa muitas perguntas sem respostas Contudo alguns aspectos satildeo

imprescindiacuteveis

4 Questotildees abertas

Diante das novas possibilidades de comunicaccedilatildeo e dos novos tipos de relacionamentos

que a miacutedia possibilita a religiatildeo tambeacutem interage de forma diferenciada com seus fieacuteis Haacute

muitas perspectivas e preocupaccedilotildees O ser humano atual eacute informado e conectado acessa dados

e ldquoviverdquo entre os espaccedilos virtuais A ausecircncia religiosa nesses meios eacute quase inconcebiacutevel

Contudo os questionamentos que se impotildeem especialmente no cristianismo catoacutelico referem-

se ao novo estilo de praticar a feacute resultante da miacutedia O choque aparece quando se estuda os

poderes da miacutedia Ela aleacutem de persuadir tem a capacidade de seduzir e na maioria das vezes

estaacute instrumentalizada pelo consumismo O espetaacuteculo eacute transformado em produto

Os meios de comunicaccedilatildeo tecircm a capacidade de influir natildeo soacute nas maneiras de pensar mas tambeacutem nos conteuacutedos do pensamento Para muitas pessoas a realidade corresponde ao que os meios de

166 RICOEUR Paul La simboacutelica del mal Madrid Taurus 1982 p 180 167 Cf MONDIN Battista A linguagem teoloacutegica como falar de Deus hoje Satildeo Paulo Paulinas 1979 p 72ss

comunicaccedilatildeo definem como tal o que eles explicitamente natildeo reconhecem parece insignificante 168

Especialmente para a feacute cristatilde o desafio acentua-se quando se refere ao encontro com

os outros Isto natildeo pode ser apenas midiatizado pois deveria ser um compromisso de

comensalidade de comunhatildeo de mesa como se faz na celebraccedilatildeo eucariacutestica169 A feacute vivida

atraveacutes da miacutedia natildeo pode trair o princiacutepio da Encarnaccedilatildeo do Verbo pois a vinda de Jesus

Cristo revelou uma inaudita relaccedilatildeo de proximidade entre o ceacuteu e a terra atraveacutes de uma

vizinhanccedila de Deus com as pessoas a qual interpela a comunhatildeo de vida entre as pessoas A

miacutedia pode transformar desejos em necessidades manipular expectativas e transformaacute-las em

sonho de consumo Nessa loacutegica o poder fascinante da miacutedia se levanta de forma majestosa

Tudo pode ser manipulado um rito uma pregaccedilatildeo um pop star religioso O problema eacute que o

Evangelho natildeo se deixa manipular Como manter a identidade nesse areoacutepago novo Na

perspectiva do Evangelho o sagrado natildeo se deixa domesticar pela miacutedia embora muitas

transmissotildees religiosas tendam a essa subordinaccedilatildeo das loacutegicas religiosas ao sistema midiaacutetico

A era digital supotildee uma comunicaccedilatildeo diferenciada uma linguagem religiosa capaz de

devolver o sentido agrave vida e produzir produtos culturais que atendam agraves perguntas

concretamente Seraacute preciso vencer dois desafios que se impotildeem a insuficiecircncia do significante

e a dissociaccedilatildeo entre significante e significado No significante o ser humano natildeo encontra a

realidade concreta soacutelida e consistente para apoiar sua contemplaccedilatildeo e dirigir-se ao invisiacutevel A

percepccedilatildeo muitas vezes fica reduzida a um mecanismo racional que vincula necessariamente

um objeto e um conceito Atualmente as pessoas estatildeo habituadas aos sinais e gostariam de ver

na liturgia um sinal evidente um significante que fosse acolhido por todos num modo uniacutevoco e

uniforme Este sinal contudo natildeo existe mas a sua leitura na traz nenhum conteuacutedo

informativo trata-se de uma situaccedilatildeo que natildeo favorece uma atitude de feacute antes a complexifica

Quando a religiatildeo eacute mediatizada e manipulada pelo marketing haacute uma construccedilatildeo

extraordinaacuteria de maacutequinas simboacutelicas sobre objetos vazios Procura-se identidades dispersas

pois siacutembolos e valores satildeo substituiacutedos a cada dia conforme a moda e o impulso de novidades

Hoje somos interpelados a narrar Deus a uma sociedade marcada pela era digital plural

e altamente informada Somos chamados a dar uma referecircncia sobre Deus tornaacute-lo mais

acessiacutevel e atual Muitas vezes poreacutem respondemos a esses apelos mediante abstraccedilotildees e

foacutermulas preacute-constituiacutedas sem comunicar experiecircncias de feacute do sujeito crente Presos aos nossos

168 Aetatis Novae 4 169 A missa transmitida pela televisatildeo comporta diversas questotildees complexas quando se pretende analisar a relaccedilatildeo entre o rito lituacutergico da eucaristia e as loacutegicas da miacutedia televisiva Trata-se de perceber como a teologia catoacutelica confronta-se com as novas expressotildees religiosas da miacutedia Deste encontro com seus diaacutelogos e conflitos possiacuteveis resultam as noccedilotildees de revelaccedilatildeo graccedila e sacramento

estudos e sondas conceituais muitas vezes natildeo somos capazes de estabelecer relaccedilotildees entre os

crentes e nem com o misteacuterio Acabamos criticando demais e nos tornamos mudos para

comunicar Deus numa sociedade que sofre constantes mutaccedilotildees comunicativas

A grande questatildeo que se impotildee hoje natildeo eacute como dizer as coisas mas o que dizer Para o

apoacutestolo Paulo a dificuldade era como chegar agraves pessoas e aos povos porque ele sabia o que

dizer Atualmente o problema natildeo eacute mais como chegar agraves pessoas mas o que dizer para elas

porque se multiplicam os canais de comunicaccedilatildeo e fragmentam-se os conteuacutedos Num mundo

sempre mais raacutepido e sedento de imediatismo o conteuacutedo da comunicaccedilatildeo tambeacutem fica afetado

Onde a mensagem eacute visiacutevel verdadeira e convincente nada deveraacute condicionaacute-la

Muitas expressotildees religiosas se constroem pela miacutedia e transformam a feacute em produto do

mercado gerando adeptos indiviacuteduos consumidores do sagrado Atraveacutes dos meios de

comunicaccedilatildeo de massa dilui-se a experiecircncia comunitaacuteria da religiatildeo e esvazia-se o caraacuteter

inter-relacional que a feacute exige Por conseguinte aumenta a religiosidade da emoccedilatildeo do

sentimento e da euforia em detrimento da feacute pautada por uma revelaccedilatildeo que exige uma praacutexis e

formulaccedilatildeo racional

Diante das melodias e dos ruiacutedos que os novos processos de comunicaccedilatildeo permitem agraves

Igrejas seraacute preciso discernir o que se pretende com a comunicaccedilatildeo religiosa Os criteacuterios natildeo

poderatildeo esquecer os princiacutepios da verdade da bondade e da beleza Uma transmissatildeo religiosa

natildeo pode deixar de conciliar esteacutetica com eacutetica O belo deve ser bom

Cada novo instrumento de comunicaccedilatildeo torna-se ocasiatildeo de relaccedilatildeo mas eacute preciso ter

conteuacutedos pessoas com vontade de inovar produccedilotildees capazes de ousar e vontade de colocar

tudo isso em praacutetica A passagem do globo para a aldeia nos interpela como pessoas de feacute seja

na comunicaccedilatildeo com os outros seja na vivecircncia pessoal dessa modalidade nova de comunicar

Natildeo interessa mais tanto a massa mas a individualidade

Enfim a experiecircncia do encontro com o sagrado com o numinoso implica numa

relaccedilatildeo afetiva e participativa Esse interesse e engajamento natildeo eacute vivido no isolamento mas na

partilha porque comunicar a experiecircncia eacute uma necessidade de quem a testemunhou A religiatildeo

reconhece o valor da comunicaccedilatildeo e lhe atribui um significado especiacutefico interesse e

engajamento Na vida humana haacute informaccedilotildees e dados que nem sempre supotildeem envolvimento

e interesse O conhecimento da ciecircncia da histoacuteria e do cotidiano natildeo dependem de forte

engajamento existencial Diferente eacute o niacutevel de interesse da linguagem religiosa pois se trata de

um conhecimento que demanda um engajamento subjetivo existencial e experiencial Ao dom

oferecido impotildee-se uma tarefa correspondente A comunicaccedilatildeo sagrada natildeo se realiza por mero

significado externo e objetivo pois supotildee conexatildeo com a vida interior dos destinataacuterios Os

siacutembolos ritos e sinais religiosos medeiam algo diferente da inteligibilidade da experiecircncia

cotidiana pois estatildeo vinculados a uma experiecircncia de transcendecircncia Isso supotildee uma

experiecircncia existencial participativa e engajada

A comunicaccedilatildeo do misteacuterio pode ser estudada e entendida facilmente como processo

psicoloacutegico antropoloacutegico e socioloacutegico Haacute contudo uma essecircncia mais complexa tal

comunicaccedilatildeo possibilita uma nova presenccedila do sagrado Ela remete agrave experiecircncia do passado

para acessar uma nova vivecircncia do numinoso no presente Usando diversas linguagens atraveacutes

do mito do rito e do siacutembolo busca-se recriar a experiecircncia religiosa fundante para atualizaacute-la

Nesse sentido natildeo se pretende alcanccedilar o inefaacutevel ou explicaacute-lo Deseja-se apenas tornaacute-lo

presente como outrora se vivenciou Toda linguagem supostamente religiosa que natildeo possibilite

tal mistagogia eacute diaboacutelica pois se rebela contra a natureza proacutepria da comunicaccedilatildeo com o

divino para manipulaacute-la em benefiacutecio de algum outro interesse infinitamente menor no seu

significado

Referecircncias

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Ciborgue e imortalidade da carne tecnologia e ressurreiccedilatildeo da carne

Oscar R Chemello O presente trabalho aborda a temaacutetica do desenvolvimento da biotecnologia e a reflexatildeo

eacutetica e teoloacutegica realizada para confrontar o progresso cientiacutefico que avanccedila para o

relacionamento com o corpo humano Graccedilas ao desenvolvimento da biotecnologia um novo

conceito de humanismo comeccedila a ser elaborado Para refletir sobre este tempo de possiacutevel

superaccedilatildeo das dependecircncias corpoacutereas poacutes-humano a teologia entra no debate eacutetico sobre o

corpo A teologia trazendo agrave luz da ressurreiccedilatildeo corpoacuterea de Jesus contribui para o pensamento

eacutetico questionar a atuaccedilatildeo tecnoloacutegica na vida humana De onde vem a salvaccedilatildeo completa para o

corpo Trazer salvaccedilatildeo significa trazer sauacutede para o corpo danificado e fraacutegil Para o debate

inicia-se apresentando o pano de fundo da pesquisa o contexto do poacutes-humano A biotecnologia

avaliada nos seus aspectos positivos para a medicina mas analisada criticamente nos atos de

desumanizaccedilatildeo Apoacutes a resposta da ressurreiccedilatildeo da carne como alternativa antropoloacutegica para

um novo relacionamento do ser humano com seu corpo e com sua dualidade sauacutede-doenccedila

vida-morte Por fim a antropologia biacuteblica sobre a criaccedilatildeo do ser humano e a salvaccedilatildeo pela accedilatildeo

de Deus que glorifica pelo Espiacuterito Santo a nossa corporalidade

1) TEMPOS DE POacuteS-HUMANO

A mudanccedila na ciecircncia moderna resultou numa nova relaccedilatildeo do ser humano com a

natureza A nova mentalidade moderna possibilitou um novo paradigma e nova forma de

interaccedilatildeo com o proacuteprio corpo com a natureza e com seu futuro A dessacralizaccedilatildeo do corpo e

do cosmos legitimaram a intervenccedilatildeo no corpo a descoberta das leis da natureza com o intuito

de dominaacute-las As tendecircncias fixistas do mundo sacralidade do corpo entendido com proibiccedilatildeo

da manipulaccedilatildeo satildeo substituiacutedas pelo antropocentrismo que domina manipula e interveacutem com a

sua mente subjugando a natureza

O domiacutenio da ciecircncia moderna chegou ao tempo atual num estaacutegio de intervenccedilatildeo na

natureza humana como nunca se tinha presenciado A tecnologia transformada em biotecnologia

possibilita a intervenccedilatildeo nos segredos do corpo humano Ateacute entatildeo a tecnologia modificava o

exterior mesmo o corpo era investigado mas sem a modificaccedilatildeo da natureza aquilo que eacute

constitutivo do humano A biotecnologia possibilita ao ser humano um poder impensaacutevel de

modificar a essecircncia do humano A engenharia geneacutetica exemplo desse poder biotecnoloacutegico

pode modificar escolher aperfeiccediloar os genes que compotildee a base para a vida humana A

natureza humana natildeo estaacute suspensa sobre o acaso o destino de recebermos as caracteriacutesticas dos

progenitores Agora os genes podem ser alterados e formar uma nova vida aprimorada pode-se

dominar a formaccedilatildeo de suas caracteriacutesticas A natureza natildeo tem mais o poder sobre o humano e

sim o humano domina a natureza

Essa nova situaccedilatildeo gerou uma discussatildeo que estaacute apenas no inicio O poder do ser

humano se tornou mateacuteria de reflexatildeo e debate eacutetico A intervenccedilatildeo dentro do corpo humano

gera uma discussatildeo eacutetica sobre os limites do humano Nos eacute permitido intervir na vida humana

nestas condiccedilotildees Estamos brincando de deus Devem existir limites para o progresso humano

As questotildees apresentadas questionam toda a Antropologia Ocidental Faz-se uma

interrogaccedilatildeo sobre o humano sobre o valor da natureza a inter-relaccedilatildeo do humano e o natural e

o sobre o futuro do humano com o surgimento do poacutes-humano ou a era poacutes-bioloacutegica O que

estaacute em jogo neste debate Hoje tratar do corpo humano eacute sem duacutevida uma das questotildees mais

complexas e difiacuteceis A antropologia ainda natildeo definiu o termo poacutes-humano ainda ele natildeo estaacute

conceitualmente definido mas a mentalidade estaacute presente no pensamento cientifico e mesmo

cultural da eacutepoca

Poacutes-humano eacute um conceito recente que pode ser entendido de vaacuterios modos Entre as teorias do poacutes-humano algumas propotildee uma visatildeo eufoacuterica e hiperotimista de um futuro caracterizado pela libertaccedilatildeo do orgacircnico e dos seus limites (transumanismo cibercultura etc) Aqui se descortina a total transcendecircncia do corpo e da natureza a completa ultrapassagem pelo homem do processo evolutivo em nome de um desprezo do vivente e de tudo o que conta (emoccedilotildees corpo finitude morte) reduzido ao inuacutetil e residual fardo a puro lsquopeso mortorsquo() (PULCINI 2006 pg 11)

Depara-se com um dualismo sobre o poacutes-humano A afirmaccedilatildeo de um processo

evolutivo da humanidade que se encaminha para a superaccedilatildeo de toda fragilidade humana de

limites impostos pela natureza O poacutes-humano representa a libertaccedilatildeo e o domiacutenio humano

sobre o poder do acaso natural O ser humano a mercecirc das forccedilas naturais que determinam as

caracteriacutesticas pessoais recuperaccedilatildeo de doenccedilas geneacuteticas e mesmo recuperaccedilatildeo de partes do

corpo danificadas por proacuteteses O corpo humano salvo dos riscos da natureza das limitaccedilotildees

bioloacutegicas e podendo enfrentar a mortalidade e fragilidade do ser humano Afasta-se da natureza

para subjugaacute-la e impor sua mentalidade

O sonho de uma total emancipaccedilatildeo do ser humano em relaccedilatildeo aos seus limites a

vocaccedilatildeo destinada ao ilimitado guiou os esforccedilos humanos para melhores condiccedilotildees de vida na

Terra Para se tornar humano ocorreu constantemente na histoacuteria uma superaccedilatildeo do humano A

alegaccedilatildeo dos defensores mais entusiasmados do poacutes-humano lembram que o ser humano

somente consegue se humanizar ultrapassando seus limites humanos A humanizaccedilatildeo requer a

superaccedilatildeo da natureza Os desejos de imortalidade sauacutede perfeita para o corpo evitar o

sofrimento e transcendecircncia satildeo caracteriacutesticas do ser humano que busca superar o proacuteprio

humano Defensores como Dominique Lecourt (LECOURT 2005) procuram tirar o impacto

negativo que a biotecnologia pode causar pela opiniatildeo mais critica ao poacutes-humano

A filosofia do poacutes-humano tambeacutem reivindica uma nova postura em frente ao

humanismo Ocidental Elena Pulcini aponta para o fim de um antropocentrismo ontoloacutegico

ocorrido no Ocidente entendido como um ser isolado no universo O humanismo ateacute entatildeo foi

considerado como algueacutem isolado ontoloacutegico e fechado em si mesmo O poacutes-humano pretende

ser uma humano integrado com o natildeo-humano O humanismo ateacute agora foi fechado em si

mesmo o poacutes-humano abre o humano para a integraccedilatildeo com o natildeo-orgacircnico (maacutequinas

proacuteteses nanotecnologia) formando um novo ser hiacutebrido Uma integraccedilatildeo harmoniosa entre o

humano e o natildeo-humano ou seja harmonia entre o orgacircnico e o ciliacutecio formando o ciborgue

um ser uacutemido da junccedilatildeo do molhado do orgacircnico e do seco do ciliacutecio

Outro pensador italiano Roberto Marchesini defende a nova posiccedilatildeo humana diante do

humano Rejeita o ser humano como uacutenico protagonista da criaccedilatildeo e retoma o ser humano

como ser relacional O humano natildeo estaacute pronto como ser ontoloacutegico fechado em si mesmo O

poacutes-humano vive a integraccedilatildeo com a teacutecnica formando um ser hiacutebrido com a teacutecnica

(MARCHESINI 2006 pg 19)

O poacutes-humano vem em encontro da tendecircncia humana de superar seus limites Uma

nova sociedade estaacute surgindo baseada na primazia do espiacuterito livre sem o peso do corpo e de

suas fraquezas O desejo de sempre transcender os limites humanos impulsiona o ser humano a

livrar-se da naturalidade Para o processo de humanizaccedilatildeo para o ser humano ser mais humano

a natureza precisa ser vencida Ser o ser humano permanece no seu estado natural natildeo

humaniza-se assim lanccedila-se para superar a sua proacutepria naturalidade

Neste processo a fala e a escrita satildeo exemplos citados de superaccedilatildeo da naturalidade Os

oacutergatildeos respiratoacuterios natildeo possuem em si a capacidade natural para a fala nem mesmo braccedilos e

matildeos satildeo naturalmente destinados para a escrita O ser humano ao falar e escrever estaacute

superando a naturalidade esta usando a teacutecnica para sua humanizaccedilatildeo A teacutecnica estaacute a serviccedilo

da humanizaccedilatildeo O desenvolvimento do coacutertex cerebral extrapola a caixa craniana e se

desenvolve fora corpo na forma de cultura artes pinturas Mais uma vez usa-se o principio da

utilizaccedilatildeo da teacutecnica para a humanizaccedilatildeo o ser humano natildeo se humaniza apenas na

naturalidade

A essecircncia do homem natildeo estaria na sua parte animal mas na sua inteligecircncia Por infortuacutenio essa inteligecircncia acha-se petrificada na confusatildeo de emoccedilotildees com as quais o corpo a agride e alem disso ela eacute terrivelmente limitada por uma duraccedilatildeo de vida () Vamos libertaacute-la (LECOURT 2005 pg 56-57)

A sutiliza do pensamento da defesa do poacutes-humano baseia-se na noccedilatildeo de que o ser

humano precisa a todo custo superar a sua naturalidade para se tornar mais humano A teacutecnica eacute

uma aliada para superar a mortalidade humana a natureza criada por Deus se mostra deficiente

e fraacutegil dependendo do ser humano aperfeiccediloar pela teacutecnica e alcanccedilar um estaacutegio superior

Busca-se o rompimento com os limites naturais

A promessa da teacutecnica pode-se falar de biotecnologia de resoluccedilatildeo dos problemas

humanos referidos a doenccedilas geneacuteticas a partes do corpo humano defeituosas sendo

substituiacutedas por proacuteteses a cura para todos os males causados por um corpo mortal e defeituoso

gera na sociedade um entusiasmo pelas novas descobertas A promessa de um corpo perfeito

livre de todos os males causados pela natureza finita parece ser meta deste novo movimento

Na sequumlecircncia dessa evoluccedilatildeo o poacutes-humano significaria a superaccedilatildeo das fragilidades e vulnerabilidade de nossa condiccedilatildeo humana sobretudo do nosso destino para o envelhecimento e a morte Tal superaccedilatildeo seria atingida pela substituiccedilatildeo de nossa natureza bioloacutegica por uma outra natureza artificialmente produzida que natildeo sofreria as limitaccedilotildees e constrangimentos de nosso ser orgacircnico hoje obsoleto (SANTAELLA 2007 pg 45)

Mas o pensamento poacutes-humano merece uma reflexatildeo aprofundada Se os defensores da

utilizaccedilatildeo da tecnologia para superar as limitaccedilotildees humanas evitam a ldquodemonizaccedilatildeordquo da ciecircncia

tambeacutem deve-se evitar o otimismo exagerado dessas novas tecnologias A atuaccedilatildeo

biotecnologica estaacute inserida num contexto de criacuteticas sobre a manipulaccedilatildeo indiscriminada sobre

o corpo de rejeiccedilatildeo da mortalidade e fragilidade humana A natureza humana pode ser alterada

indiscriminadamente pelo ser humano

O poacutes-humano estaacute inserido por outro lado na dificuldade humana de enfrentar a proacutepria

finitude e mortalidade A busca pelo corpo perfeito pela negaccedilatildeo da fragilidade e dos limites

humanos gera um estado doentio de rejeiccedilatildeo de uma caracteriacutestica humana nossa mortalidade e

fragilidade A negaccedilatildeo de nosso estado natural causa uma enorme discussatildeo eacutetica sobre o valor

do humano e da natureza Em busca de uma vida prolongada livre da doenccedila e das limitaccedilotildees o

ser humano coloca em discussatildeo o proacuteprio futuro da humanidade e a artificializaccedilatildeo do corpo

Os mais recentes desenvolvimentos do progresso (bio)tecnoloacutegico reavivam e atualizam a reflexatildeo sobre o futuro da natureza humana diversos autores partilham a convicccedilatildeo de que as biotecnologias representam um dos maiores desafios da humanidade Envolvem questotildees do acircmbito das ciecircncias naturais da antropologia da filosofia e da teologia do direito e da poliacutetica da eacutetica (COUTINHO 2007 pg 151)

Vive-se o tempo da negaccedilatildeo da doenccedila e mortalidade e afirmaccedilatildeo da sauacutede perfeita

Poreacutem com esta busca o ser humano nega-se a si mesmo criando uma atitude doentia frente a

doenccedila e a dor A humanidade criou uma utopia de um sociedade sem dor sem sofrimento e

uma felicidade ilimitada e sauacutede perfeita Moltmann critica o conceito de sauacutede elaborado pela

OMS170 como sendo apenas a vida sem nenhum sofrimento ou doenccedila A pessoa humana

apenas tem seu valor enquanto tem sauacutede perfeita porque pode assim ser sujeito de sua vida

trabalhar e produzir Com a doenccedila se torna menos pessoa natildeo podendo consumir produzir e

ter independecircncia em relaccedilatildeo aos outros O culto moderno pela sauacutede perfeita produz uma

situaccedilatildeo de enfermidade da vida em relaccedilatildeo a doenccedila e a nossa mortalidade O culto de sauacutede

perfeita tornou-se uma ilusatildeo produzida pela biotecnologia o sonho da vida sem dor mas esta

justamente eacute a grande dor perceber que ainda o ser humano eacute fraacutegil (cf MOLTMANN 2007

pg 81-83)

O culto moderno da sauacutede produz precisamente aquilo que se quer ultrapassar nomeadamente o medo da doenccedila o receio perante o morrer e perante a morte Em vez de ultrapassar as doenccedilas e as enfermidades produz uma utopia de um bem-estar universal da qual satildeo excluiacutedas as doenccedilas incuraacuteveis os deficientes e os moribundos Sempre que o morrer e a morte natildeo satildeo considerados qualquer definiccedilatildeo de sauacutede torna-se ilusoacuteria (MOLTMANN 2007 pg 83)

O corpo humano tornou-se problemaacutetico um campo de atuaccedilatildeo da bioacutetica que precisa

responder agraves novas tendecircncias tecnoloacutegicas que problematizaram o humano e seus limites

Ocorre uma interaccedilatildeo do humano com a maacutequina formando um novo ser humano hiacutebrido numa

harmonia entre o orgacircnico e o ciliacutecio que chama-se ser uacutemido o ciborg A tecnologia que

atuava fora do corpo passou a intervir dentro do corpo humano alargando suas fronteiras Numa

fase embrionaacuteria a relaccedilatildeo do humano com a teacutecnica era sobreposta

Um exemplo satildeo as proacuteteses onde uma parte do corpo eacute substituiacuteda por uma parte

mecacircnica De uma forma rudimentar a proacutetese permanecia separada do corpo como um

170 Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

apecircndice Agora a proacutetese faz parte do proacuteprio corpo interagindo com o sistema nervoso

ligado aos nervos do corpo e respondendo aos comandos do ceacuterebro A proacutetese natildeo apenas

preenche um local mas se torna o proacuteprio corpo

A naturalidade humana estaacute sendo posta a prova O que pensar da lei natural O que

seraacute do humano A biotecnologia promoveu uma revoluccedilatildeo do pensamento sobre o futuro do

humano Sem fechar a questatildeo que receacutem estaacute sendo debatida busca-se uma visatildeo eacutetica que

possa assegurar a vocaccedilatildeo humana de busca de melhores condiccedilotildees de vida superar a

naturalidade que nos prende a um estado menos humano com os limites e o respeito intriacutenseco

desta mesma natureza A tecnologia humaniza e desumaniza natildeo existem mais fronteiras claras

do certo e do errado mas cabe encontrar um equiliacutebrio que possa legitimar a intervenccedilatildeo no

corpo humano

A biotecnologia proporcionou o aumento do potencial humano de preservaccedilatildeo da vida

imortalidade e sanaccedilatildeo das doenccedilas do ser humano Poreacutem coloca-se em risco o futuro da

humanidade juntamente com a perseguiccedilatildeo do corpo perfeito cria-se novas doenccedilas e uma luta

contra o proacuteprio corpo A natureza tornou-se inimiga a ser vencida pela teacutecnica humana Em

resumo a biotecnologia traz sanaccedilatildeo e condenaccedilatildeo ao corpo A questatildeo norteadora da pesquisa

eacute a salvaccedilatildeo para o corpo humano Quem pode salvar o corpo fraacutegil e mortal

A salvaccedilatildeo do corpo fraacutegil natildeo pode passar pela accedilatildeo humana Como percebe-se a accedilatildeo

tecnoloacutegica do ser humano sobre o corpo trouxe benefiacutecios mas uma serie de dificuldades

eacuteticas a rejeiccedilatildeo do fraacutegil e do imperfeito a eugecircnia e uma aniquilaccedilatildeo das mediaccediloes corporais

que satildeo substituiacutedas pela teacutecnica e pela maacutequina

2) A RESSURREICcedilAtildeO DA CARNE ALTERNATIVA PARA TEMPOS DE POacuteS-HUMANO

O poacutes-humano mesmo sem ser um conceito elaborado oferece o questionamento sobre

a superaccedilatildeo dos limites do humano e a salvaccedilatildeo para a natureza fraacutegil criada por Deus O ser

humano busca mais humanidade superando com sua proacutepria potencia seus limites mas gerando

malefiacutecios para sua proacutepria sauacutede A ressurreiccedilatildeo da carne eacute a resposta de Deus para a sanaccedilatildeo

do corpo fraacutegil sem contudo tornar-se uma obsessatildeo pela sauacutede sem correr os riscos do

eugenismo e fazer da sauacutede uma mercadoria que nem todos possuem capacidade de conseguir

Com a influecircncia da ressurreiccedilatildeo da carne propotildee-se uma nova leitura para a tratar dos

avanccedilos da biotecnologia A intervenccedilatildeo na natureza humana que pode considerar o corpo

descartaacutevel reduzir a vida humana apenas ao desespero pela sauacutede pode ser transformada numa

relaccedilatildeo harmoniosa entre sauacutede do corpo e aceitaccedilatildeo da mortalidade Uma nova mentalidade

deve surgir a partir da graccedila de Deus que salva sua primeira criaccedilatildeo A salvaccedilatildeo de Deus para o

ser humano deve reconciliar as relaccedilotildees de inimizade que o projeto moderno fez entre humano e

natural

O Espiacuterito de Deus recria a criaccedilatildeo afetada pelo pecado salva sem rejeita a mortalidade

Oferece ao ser humano a cura para suas doenccedilas e para toda a limitaccedilatildeo humana ldquoA natureza

natildeo eacute nenhum mecanismo hiacutebrido de cuja absurdez somente a inteligecircncia humana pode salvar

Como criaccedilatildeo possui dignidaderdquo (BRAKEMEIER 2005 pg 156)

A interferecircncia do pensamento teoloacutegico pode produzir uma reflexatildeo eacutetica sobre os

limites do desenvolvimento humano e sobre princiacutepios fundamentais que devem ser respeitados

Em nome da busca de sauacutede deve-se rejeitar a manipulaccedilatildeo indiscriminada que gera exclusotildees

na sociedade A Teologia propotildee dar sentido para o agir tecnoloacutegico sobre a vida humana A

intervenccedilatildeo cientiacutefica pode prolongar a vida ocasionar uma melhora significativa mas o sentido

para a vida e para o morrer lhe foge da sua capacidade A ressurreiccedilatildeo oferecida por Deus para o

ser humano retira a fadiga de perfeiccedilatildeo humana que se torna ilusoacuteria

A esperanccedila para o corpo fraacutegil natildeo vem apenas do progresso cientiacutefico Juntamente

com a vocaccedilatildeo humana de superar a pura naturalidade de natildeo estar entregue ao acaso a accedilatildeo de

Deus traz a vida nova para o corpo humano mortal Ocorre um salto qualitativo de vida para o

ser humano que por si natildeo consegue conquistar a vida eterna As fantasias de onipotecircncia satildeo

desfeitas e o ser humano confronta-se com sua necessidade de salvaccedilatildeo fora de si por graccedila

divina

Neste sentido Deus natildeo eacute compreendido como um opositor do progresso humano Sua

criaccedilatildeo natildeo se reduz a uma realidade que precisa ser manipulada constantemente Busca-se uma

accedilatildeo responsabilizada para a biotecnologia Evita-se com isso os extremos a compreensatildeo do

ser humano dominador de seu corpo e de sua natureza que tudo pode modificar sem se

preocupar com as consequumlecircncias para o futuro da humanidade outro extremo eacute considerar a

natureza intocaacutevel fixista onde qualquer manipulaccedilatildeo eacute violaccedilatildeo da lei de Deus

A perspectiva cristatilde engloba uma vida antes da morte e a esperanccedila de uma vida apoacutes a morte Um simples prolongamento bioloacutegico da vida natildeo trataria por si nenhuma vida qualitativamente melhor nem a resposta aos anseios mais profundos do ser humano Talvez seja mesmo

a consciecircncia de um limite no tempo que torne mais valioso o tempo da vida (COUTINHO 2007 pg 176)

21) O CORPO CRIADO

As perspectivas do poacutes-humano fizeram um questionamento de todo o humanismo

Ocidental Portanto autores como Moltmann se debruccedilam numa revisatildeo histoacuterica dos caminhos

seguidos pela antropologia Claramente tem-se dois pensamentos antropoloacutegicos basilares para

o formaccedilatildeo dos conceitos do humanismo A visatildeo biacuteblica e grega de ser humano Percebe-se

que existe um predomiacutenio grego na formaccedilatildeo da antropologia Ocidental que pode-se dizer

possibilita o poacutes-humano de dominaccedilatildeo da alma sobre o corpo Iniciando por Platatildeo haacute uma

tendecircncia de espiritualizaccedilatildeo da pessoa A separaccedilatildeo do corpo e da alma onde a alma

assemelha-se a divindade eacute imortal mas fica aprisionada num corpo mortal e transitoacuterio A vida

eacute uma luta pela alma liberta-se da fraqueza do corpo a enfim viver no mundo ideal (cf

MOLTMANN 1993 pg 253-254)

A perspectiva continua no contexto moderno com Descartes Manteacutem-se o mesmo

esquema de diferenciaccedilatildeo do corpo e da alma entendida como substacircncia superior O eu

pensante domina o seu corpo eacute seu mandataacuterio que o transforma numa extensatildeo do eu A

dicotomia e a subordinaccedilatildeo do corpo pela alma continua com nova roupagem ao inveacutes do alma

e corpo eacute sujeito-objeto (cf MOLTMANN 1993 pg 357-360)

A antropologia dualista legitima o atual pensamento moderno de dominaccedilatildeo da mente

sobre o corpo A biotecnologia continua o ideal moderno de uma imortalidade humana da alma

ou do sujeito pensante tratando o corpo como empecilho mortal para essa realizaccedilatildeo A primazia

da mente da teacutecnica condena o corpo a ser mera coisificaccedilatildeo e instrumentalizaccedilatildeo O corpo

tratado como maacutequina defeituosa que precisa de reparos e todo instante e mesmo trocas de

peccedilas por proacuteteses O corpo perde sua dignidade criatural seu valor intriacutenseco e torna-se objeto

de manipulaccedilatildeo humana

Essa antropologia natildeo corresponde a visatildeo biacuteblica da criaccedilatildeo do ser humano Na

doutrina da criaccedilatildeo natildeo existe uma dicotomia entre alma e corpo mas uma relaccedilatildeo integrada

entre as duas dimensotildees Muito menos uma dominaccedilatildeo ou primazia de um em detrimento de

outro A corporalidade possui um valor igualitaacuterio com a alma O corpo eacute o fim de toda a

criaccedilatildeo eacute nele que a pessoa se relaciona com o mundo eacute o destino do amor de Deus

Se lsquocorporalidadersquo eacute o fim de todas as obra de Deus entatildeo o corpo humano natildeo pode ser compreendido nem como uma forma inferior de vida nem como meio para alcanccedilar o objetivo e muito menos como

algo que deva ser superado lsquoCorporalidadersquo tambeacutem eacute correspondendo agraves obras de Deus o objetivo mais nobre da pessoa e o fim de todas as suas obras (MOLTMANN 1993 pg 351)

A antropologia biacuteblica afirma a unidade do corpo e da alma Na criaccedilatildeo a

corporalidade eacute a finalidade da obra de Deus que natildeo rejeita sua mortalidade mas daacute

significado e sentido A dignidade da carne criada eacute exaltada na encarnaccedilatildeo do Filho de Deus

A Palavra que se fez carne como afirma o Evangelho de Satildeo Joatildeo eacute a carne assumida por Deus

para que a partir dela possa redimir toda a criaccedilatildeo Deus natildeo rejeita a mortalidade corpoacuterea sua

fragilidade mas a partir dela faz acontecer a redenccedilatildeo da carne

A proacutepria encarnaccedilatildeo jaacute antecipa a salvaccedilatildeo para o corpo humano e para toda a

criaccedilatildeo No corpo assumido por Deus Ele jaacute antecipa a reconciliaccedilatildeo e a sauacutede para o corpo

doente A salvaccedilatildeo para o corpo vai aleacutem de toda obra biotecnoloacutegica A encarnaccedilatildeo eacute um sinal

de esperanccedila para o corpo que sofre a sua mortalidade

Tornando-se carne o Deus conciliador aceita a carne pecadora doente e mortal da pessoa e a cura na sua comunhatildeo A palavra eterna de Deus se torna corpo humano uma crianccedila na manjedoura um salvador das pessoas doentes um corpo humano torturado no Goacutelgota Nesta forma corporal de Cristo eacute trazida a reconciliaccedilatildeo do mundo atraveacutes de Deus (Rm 83) Em sua encarnaccedilatildeo os corpos explorados doentes e destruiacutedos experienciam sua salvaccedilatildeo e sua dignidade indestrutiacutevel (MOLTMANN 1993 pg 352)

A criaccedilatildeo de Deus natildeo isola o corpo da alma mas implanta seu proacuteprio Espiacuterito

vivificador na carne criada A forccedila redentora do corpo jaacute comeccedila quando a naturalidade

corpoacuterea natildeo eacute ameaccedilada O corpo natildeo eacute mais tratado como um inimigo que precisa ser domado

pela alma ou simplesmente um maacutequina imperfeita que precisa de reparos O corpo e sua

mortalidade satildeo constituintes fundamentais para a pessoa A vida humana nestes moldes natildeo

consiste em rejeitar a carne e elevar a alma para um mundo espiritualizado mas justamente

assumir sua corporalidade O ser humano humaniza-se na medida que aceita sua carne sua

corporalidade bem como a mortalidade e finitude Assumi-se como corpo

Outro ponto para a reflexatildeo eacute sobre a vida eterna Na dicotomia alma-corpo a

imortalidade humana eacute garantida pela imortalidade da alma Ela teria uma qualidade intriacutenseca

de ser imortal semelhante a divindade Por si o ser humano eacute imortal Esta visatildeo eacute diferente

para a antropologia biacuteblica A imortalidade humana natildeo eacute intriacutenseca mas estaacute fundamentada na

relaccedilatildeo com o Criador A relaccedilatildeo de amor do Criador com a criatura garante a vida apoacutes a

morte Eacute um dom recebido uma graccedila de Deus e natildeo algo imanente no ser humano O Espiacuterito

criador de Deus permanece na sua criaccedilatildeo A pessoa natildeo estaacute entregue a si proacutepria com a missatildeo

de garantir a vida para si Ela eacute acompanhada pelo Espiacuterito que santifica cura sana as miseacuterias

humanas A nossa mortalidade natildeo causa desespero mas ganha sentido salvaccedilatildeo pela obra de

Deus

22) O CORPO GLORIFICADO

Chega-se ao aacutepice da salvaccedilatildeo oferecida por Deus para o corpo humano Jaacute na

encarnaccedilatildeo percebe-se a insuficiecircncia da teacutecnica humana para a sanaccedilatildeo da precariedade

corpoacuterea O ser humano natildeo eacute apenas conquista de seus meacuteritos de sua tecnologia o ser

humano eacute muito mais recebimento que produccedilatildeo de si O corpo eacute salvo por gratuidade divina A

accedilatildeo de Deus cura a carne desumanizada fraca e mortal Com a ressurreiccedilatildeo da carne o corpo

criado eacute salvo e liberto da mortalidade

Por isso a ressurreiccedilatildeo da carne natildeo se trata de uma esperanccedila para um mundo futuro e

espiritualizado A ressurreiccedilatildeo eacute uma esperanccedila corpoacuterea uma esperanccedila para a carne humana

A salvaccedilatildeo oferecida pela graccedila de Deus jaacute comeccedila a acontecer no tempo presente O corpo foi

criado natildeo para o fim na morte mas para transformar-se atraveacutes dela num corpo glorificado por

Deus O corpo natildeo eacute destruiacutedo natildeo eacute rejeitado mas salvo e transformado

O corpo ressuscitado de Jesus leva esperanccedila para toda a criaccedilatildeo Sua ressurreiccedilatildeo foi

corpoacuterea integra no seu corpo mortal transfigurado num corpo imortal donde leva para junto do

reino de Deus toda a natureza criada No seu Espiacuterito eacute salvo todo corpo humilhado pelo

pecado torturado doente e desprezado Todas as injusticcedilas contra o corpo satildeo saradas pelo

ressuscitamento de Jesus Sua carne glorificada natildeo conhece mais a corrupccedilatildeo a morte as

limitaccedilotildees naturais bem como natildeo eacute rejeitada a sua fraqueza Eacute uma salvaccedilatildeo total e corpoacuterea a

partir do corpo mortal

O fundamento para a ressurreiccedilatildeo da carne se encontra na ressurreiccedilatildeo da carne de

Cristo A sua ressurreiccedilatildeo abre a criaccedilatildeo para a nova criaccedilatildeo de Deus que natildeo destroacutei mas

transfigura a criaccedilatildeo mortal numa nova criaccedilatildeo sem sofrimento sem dor e sem o impeacuterio da

morte O corpo perfeito desejado pelo ser humano natildeo eacute uma conquista biotecnoloacutegica mas

uma accedilatildeo salviacutefica de Deus A vida perfeita sem dor e morte eacute recebida na forccedila do Espiacuterito

vivificador de Deus

Nas disputas entre filosofia grega e a feacute biacuteblica afastam-se no tocante a vida apoacutes a

morte A visatildeo grega-dualista- percebe a alma imortal que vive independente do corpo Para a

visatildeo biacuteblica a imortalidade natildeo eacute algo proacuteprio da alma humana mas accedilatildeo salvadora de Deus

que faz a pessoa na sua integralidade ressuscite num corpo glorioso A concepccedilatildeo biacuteblica de

imortalidade natildeo eacute fruto de um poder inerente agrave pessoa A imortalidade eacute um dom da relaccedilatildeo

com o criador que ressuscita o ser humano por completo A ressurreiccedilatildeo dos mortos eacute a

ressurreiccedilatildeo do ser humano total

A ressurreiccedilatildeo da carne como dom para a salvaccedilatildeo da corporalidade O corpo seraacute salvo

pela accedilatildeo de Deus com seu espiacuterito transfigura a nova criaccedilatildeo A corporalidade seraacute sanada

pela accedilatildeo de Deus e natildeo pela obsessatildeo biotecnoloacutegica que no afatilde de superar toda fraqueza acaba

desumanizando o corpo

A alternativa antropoloacutegica da ressurreiccedilatildeo da carne promove uma atitude saudaacutevel em

relaccedilatildeo a doenccedila aceitaccedilatildeo da fragilidade e contribuiccedilatildeo para o pensamento bioeacutetico O

Espiacuterito que ressuscita os mortos eacute o espiacuterito que transfigura a nova corporalidade dos

ressuscitados A nova criaccedilatildeo inclui o cosmos e o ser humano pois nenhum dos dois pode ser

visto isoladamente O ser humano estaacute relacionado com este mundo eacute este mundo que Cristo eacute

o redentor A humanidade gloriosa pela forccedila do Espiacuterito que ressuscitou Jesus dentre os

mortos inclui a mateacuteria a biologia e toda a relaccedilatildeo com este mundo que seraacute transfigurado num

mundo sem o domiacutenio da morte

O Espiacuterito Santo que ressuscitou o corpo de Jesus ressuscitaraacute a carne humana ldquoA

ressurreiccedilatildeo transformaraacute o corpo e vai lhe sanar as deficiecircnciasrdquo (BRAKEMEIER 2005 pg

139) Se a busca de perfeiccedilatildeo corpoacuterea da biotecnologia acaba como consequumlecircncia a degradaccedilatildeo

do corpo processos de eugenismo riscos para sobrevivecircncia do humano a ressurreiccedilatildeo como

dom de Deus para o corpo possibilita uma atitude sadia diante da fragilidade do corpo A carne

glorificada de Cristo eacute salvaccedilatildeo para a carne do gecircnero humano natildeo excluindo selecionando ou

desprezando o corpo

A teologia da ressurreiccedilatildeo da carne questiona a pretensatildeo tecnoloacutegica de oferecer

salvaccedilatildeo ao humano A verdadeira salvaccedilatildeo e o sentido para a fragilidade natildeo se encontram na

teacutecnica mas na accedilatildeo salvadora de Deus que aceita nossa fragilidade e a leva a perfeiccedilatildeo pela sua

graccedila A salvaccedilatildeo pela accedilatildeo de Deus inclui toda a humanidade e toda fragilidade O que pela

intenccedilatildeo da tecnologia acaba excluindo e eliminado o fraacutegil

No entanto a recriaccedilatildeo escatoloacutegica desta criaccedilatildeo deve pressupor toda essa criaccedilatildeo Pois no fim o velho natildeo eacute substituiacutedo por algo novo mas este velho seraacute criado novo A transformaccedilatildeo para a gloacuteria ocorre no dia do Senhor diacronicamente com toda criaccedilatildeo real desde o primeiro dia ateacute o uacuteltimo dia Ela natildeo eacute algo que acontece depois deste mundo mas algo que acontece com este mundo (MOLTMANN 1993 pg 351)

Com o tempo da ressurreiccedilatildeo da carne pretende-se elaborar uma antropologia

alternativa para o corpo mecanizado e manipulado pela intervenccedilatildeo humana Uma antropologia

cristatilde natildeo admite dualismos de alma e corpo onde segundo Moltmann o Ocidente se

caracterizou pela dominaccedilatildeo e desprezo do corpo pela alma A antropologia cristatilde proporciona

uma integraccedilatildeo do humano com a sua natureza e com todo o gecircnero humano e com o cosmos A

natureza natildeo eacute inimiga a ser superada corpo danificado mas destinataacuterio da ressurreiccedilatildeo de

Jesus

O tema eacute importante pela urgecircncia de resposta frente ao avanccedilo da tecnologia da

manipulaccedilatildeo do corpo e suas implicaccedilotildees eacuteticas e religiosas Pode-se superar o limite humano e

a dependecircncia de Deus Que implicaccedilotildees isso traz para a Teologia O desenvolvimento da

biotecnologia provoca um dos grandes debates eacuteticos para a humanidade Ela estaria diante de

uma evoluccedilatildeo que resultaria na extinccedilatildeo do humano A busca de sauacutede perfeita a todo custo os

limites do humano estatildeo no debate dos pensadores eacuteticos poliacuteticos filosoacuteficos cientiacuteficos e

religiosos O tema propotildee um auxiacutelio para atitudes saudaacuteveis diante da mortalidade do corpo

CONCLUSAtildeO

O tema do poacutes-humano ainda estaacute apenas no comeccedilo da reflexatildeo A pergunta crucial

sobre o futuro do humano e se a tecnologia humaniza ou desumaniza natildeo possui uma conclusatildeo

O que se percebe eacute que a questatildeo da biotecnologia estaacute em aberto com suas vantagens e uma

seacuterie de desafios eacuteticos poliacuteticos que precisam ser resolvidos O certo eacute que a teologia possui

um papel importante neste processo Mesmo com a recusa de uma eacutetica com base metafiacutesica a

proacutepria bioeacutetica busca a interdisciplinariedade na sua reflexatildeo A tecnologia precisa avaliar natildeo

somente o humano bioloacutegico mas o humano em todas as suas dimensotildees Busca-se com a luz

da teologia uma biotecnologia responsaacutevel pela real humanizaccedilatildeo preocupada com o futuro das

geraccedilotildees que correm o risco de receber um planeta em condiccedilotildees inabitaacuteveis

A ressurreiccedilatildeo da carne propotildee uma forma de vida para o ser humano Auxilia na

relaccedilatildeo do com o corpo fraacutegil criado por Deus A obsessatildeo pelo corpo perfeito seja nas

academias mesas ciruacutergicas pela manutenccedilatildeo da vida a todo custo revelam uma dificuldade de

conviver com a mortalidade humana O corpo deixando de ser inimigo a ser superado pode

fazer com que o ser humano tenha uma atitude mais saudaacutevel diante de suas limitaccedilotildees

A proposta natildeo significa abandonar as pesquisas biotecnoloacutegicas mas de colocar limites

e orientaccedilotildees para esse desenvolvimento Atualmente parece que existe um discurso cientifico

onipotente que natildeo aceita dialogar com outras ciecircncias O progresso cientifico jaacute produziu armas

nucleares e estaacute colocando em risco a sobrevivecircncia do planeta satildeo motivos para um repensar

na relaccedilatildeo humano e ciecircncia

Pela ressurreiccedilatildeo oferecida por Deus para o gecircnero humano alcanccedila-se esperanccedila para o

corpo humano A medicina oferece tratamento e qualidade de vida mas a graccedila de Deus eacute que

daraacute salvaccedilatildeo completa ao ser humano Ciecircncia e teologia buscam a sauacutede do corpo humano

mas somente na glorificaccedilatildeo do corpo alcanccedila-se a salvaccedilatildeo da vida eterna

REFEREcircNCIA BRAKEMEIER Gottfried O ser humano em busca de identidade contribuiccedilotildees para uma antropologia teoloacutegica 2 ed Satildeo Lepoldo Sinodal Satildeo Paulo Paulus 2005 COUTINHO Vitor Artificializaccedilatildeo da natureza humana Biotecnologias agrave busca de sentido Humanitas e teologia Porto tomo XXVIII fasciacuteculo 1 dez 2007 p 151- 176 LECOURT Dominique Humano poacutes-humano a teacutecnica e a vida Satildeo Paulo Loyola 2005 MARCHESINI Roberto O poacutes-humanismo como ato de amor e hospitalidade In Revista Humanitas Unisinos nordm 200 dez 2006 MOLTMANN Juumlrgen O que eacute a vida humana Antropologia e desenvolvimento biomeacutedico Humaniacutestica e teologia Porto tomo XXVIII fasciacuteculo 1 dez 2007 p66- 87 ______ O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas 2 ed Petroacutepolis Vozes 1993 ______ Deus na criaccedilatildeo doutrina ecoloacutegica da criaccedilatildeo Petroacutepolis Vozes 1993 PULCINI Elena Um poder sem controles In Revista Humanitas Unisinos nordm 200 Dez2006 SANTAELLA Lucia Culturas e artes do poacutes-humano da cultura das miacutedias aacute cibercultura 3 ed SP Paulus 2008 ______ Linguagens liquidas na era da mobilidade Satildeo Paulo Paulus 2007

Do real ao virtual a corporeidade humana na poacutes-modernidade

Juliana Hermont de Melo

Na atualidade o corpo eacute o filtro de todas as realidades Tudo passa pelo crivo da

corporeidade171 Assim esta se mostra o caminho para o encontro do humano consigo mesmo e

chave de leitura de para criacutetica e superaccedilatildeo da cultura espetacularizada O futuro da

humanizaccedilatildeo da humanidade no contexto da cultura somaacutetica espetacular depende do resgate da

corporeidade integral defendida pela teologia

Na poacutes-modernidade a corporeidade configura-se lugar obrigatoacuterio para o pensar

teoloacutegico o labor cultural e a moral O espaccedilo para o fazer histoacuterico e racional assim como da

experiecircncia de Deus e da Igreja eacute o humano em especial na concretude de sua humanidade que

eacute ser no corpo Eacute em funccedilatildeo desse espaccedilo privilegiado ocupado pelo humano e daiacute

consequumlentemente da sua forma histoacuterica concreta que eacute o corpo que se compreende o

fenocircmeno denominado cultura somaacutetica a qual elege somente a dimensatildeo bioloacutegica do humano

(o corpo) como centro como expressatildeo da autonomia do sujeito e sua presenccedila como a forma

mais elevada de realizaccedilatildeo humana

A cultura somaacutetica caracteriza-se como movimentaccedilatildeo soacutecio-cultural calcada nos

cuidados com o corpo e na valorizaccedilatildeo de caracteriacutesticas fiacutesicas172 com fundamentaccedilatildeo esteacutetica

em detrimento da eacutetica para a definiccedilatildeo e formaccedilatildeo da identidade humana173 Trata-se de algo

semelhante agrave bioascese174 pois o bem-estar fiacutesico passou a representar papel tatildeo importante na

realizaccedilatildeo pessoal quanto o sucesso intelectual ou o desenvolvimento espiritual A diferenccedila da

cultura somaacutetica para as demais formas culturais e sociais humanas jaacute experimentadas estaacute no

pressuposto de uma relaccedilatildeo iacutentima e indissociaacutevel entre a vida psicoloacutegica-moral e a vida fiacutesica-

somaacutetica175

A eacutetica cristatilde pauta-se pelo respeito e cuidado para com todo e cada ser humano

pois todos e cada um satildeo criaccedilatildeo de Deus investidos de dignidade enquanto criaturas humanas

Docente mestre em teologia pela FAJE trabalho financiado pela CAPES 171 Neste trabalho tomar-se-aacute os termos corpo corporalidade e corporeidade como sinocircnimos entre si jaacute que para a abordagem feita nesta pesquisa a diferenccedila entre eles apresentada pela literatura mostra-se insignificante 172 O substantivo fiacutesico refere-se a totalidade somaacutetica do ser ou seja tanto aos aspectos orgacircnicos quanto psicoloacutegicos e mentais 173 Cf Conceitos desenvolvidos por COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo Rio de Janeiro Garamond 2004 p 203-206 e MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo Petroacutepolis Vozes 2004 p 18-22 174 Cf COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 190 175 Cf COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 204

como imagem e semelhanccedila de Deus acolhidos no seio da Trindade no misteacuterio da encarnaccedilatildeo

e ressurreiccedilatildeo de Jesus Cristo Na compreensatildeo cristatilde o ser humano eacute constituiacutedo como unidade

psicossomaacutetica espiritual que vivencia a experiecircncia de divinizaccedilatildeo Jesus assumiu a

corporeidade ao tempo em que a santificou vez que a feacute cristatilde professa e confessa que Jesus eacute o

Cristo Ou seja o homem de Nazareacute eacute o Filho primogecircnito de Deus

O olhar cristatildeo sobre o humano desvela que a compreensatildeo e a percepccedilatildeo do

mundo do ser humano da vida e por consequumlecircncia o posicionamento eacutetico mediatiza-se pelo e

no corpo176 Cristo ao assumir a corporalidade humana atraveacutes da encarnaccedilatildeo revela o humano

para o humano e proclama a verdadeira vocaccedilatildeo da humanidade o relacionamento e comunhatildeo

com o Criador haja vista a criatura ser convidada a viver a relacionalidade e a comunhatildeo com

o Criador e em Cristo com toda a criaccedilatildeo Jesus segundo o disposto na Gaudim et Spes (GS)

configura-se como o humano perfeito pois nele a criatura humana encontra sua plenitude177

Segundo Ladaria a perfeiccedilatildeo atribuiacuteda a Jesus pela GS reside na completude perfeita e

paradigmaacutetica da humanidade revelada no Cristo ldquopois o crescimento em Cristo significa

crescimento em humanidade Ser cristatildeos natildeo nos separa de ser homens mas ajuda-nos a secirc-lo

com maior plenituderdquo178 Assim a dignidade portada pelo ser humano encontra sua suprema

justificativa no Cristo vez que ele Filho Unigecircnito do Pai desvela por amor a dignidade do

corpo O ser humano eacute imagem e semelhanccedila de Deus

O fenocircmeno da cultura somaacutetica malgrado as possibilidades e expectativas

positivas desenvolveu facetas outras como da sociedade do espetaacuteculo no que neste trabalho

se cunhou de cultura somaacutetica espetacularizada O adjetivo espetacularizada faz referecircncia aos

neologismos desenvolvidos a partir da expressatildeo ldquoespetacularizaccedilatildeordquo e ldquosociedade do

espetaacuteculordquo por Guy Debord na sua obra fundamental para a compreensatildeo da sociedade

contemporacircnea A Sociedade do Espetaacuteculo179 Nesse ldquodesviordquo espetacularizado da cultura

somaacutetica depara-se com a face cruel da desumanizaccedilatildeo que reclama a praacutexis cristatilde da

promoccedilatildeo da vida e da libertaccedilatildeo promovendo abertura para a humanizaccedilatildeo seja pela denuacutencia

profeacutetica seja pela sabedoria da eacutetica cristatilde

A questatildeo trazida agrave baila pela cultura somaacutetica positivamente aloca-se no cuidado

com o corpo pois tal eacute legiacutetimo e humanizador Com tal enfoque alinha-se a eacutetica e a praacutexis

cristatilde Os textos biacuteblicos datildeo testemunho da integralidade humana e a tradiccedilatildeo apostoacutelica

176 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 6 177 Cf LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 26-27 e GROSSI Vittorino et al O homem e sua salvaccedilatildeo (seacuteculos V-XVII) antropologia cristatilde criaccedilatildeo pecado original justificaccedilatildeo e graccedila fins uacuteltimos A eacutetica cristatilde das ldquoautoridadesrdquo ao magisteacute p 130 - 131 178 LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 28 179 DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo Rio de Janeiro Contraponto 1997

ensina-o como direito e justiccedila sinal da presenccedila divina Entretanto constata-se que eacute

justamente o aspecto mais negativo e corrosivo da cultura somaacutetica que cresce

exponencialmente na atualidade talvez por encontrar nas promessas natildeo cumpridas da

modernidade terreno feacutertil para sua forma alienante Ainda mais quando se associa a outro

fenocircmeno social tambeacutem recente a sociedade do espetaacuteculo

Segundo Guy Debord a sociedade do espetaacuteculo caracteriza-se por ser ldquouma

organizaccedilatildeo social onde seus membros satildeo obrigados a contemplar e a consumir passivamente

as imagens de tudo o que lhes eacute projetado pelo capital como elemento faltante em sua existecircncia

realrdquo180 O espetaacuteculo retrata a dramaacutetica substituiccedilatildeo do real pelo ideal181 possibilitada pela

hegemonia midiaacutetica diante da qual ao ser humano resiste e persiste ainda que o faccedila

reduzindo-se a um ser mutante pulverizaacutevel cintilante e efecircmero para fazer frente agraves exigecircncias

do espetaacuteculo social182

A sociedade do espetaacuteculo funda-se e alimenta-se da inversatildeo de valores provocada

pela exarcebaccedilatildeo do valor da corporeidade elevada a culto idolaacutetrico ao corpo E pela

insustentabidade e inconsistecircncia da corporeidade como tal fundamentaccedilatildeo daacute-se a substituiccedilatildeo

do concreto por uma versatildeo maquiada representada do corpo real183 pelo ideal em que o real

se transverte em projeccedilatildeo imagem apenas

Nos moldes do deslocamento ocorrido na modernidade do ser para o ter na cultura

somaacutetica espetacular haacute o deslocamento do ter para o parecer ou melhor para o aparecer Por

cultura somaacutetica espetacular entende-se a faceta corrosiva dilacerante e desumanizante do culto

ao corpo184 No vocabulaacuterio da induacutestria do entretenimento a preocupaccedilatildeo do sujeito social natildeo

reside mais no ter como na Modernidade mas sim no show off185 valoriza-se a aparecircncia e a

atenccedilatildeo midiaacutetica e natildeo necessariamente o que seja bom ou justo ou digno Os quinze minutos

de fama de Andy Wharol tecircm conotaccedilatildeo de direito inalienaacutevel

Por um vieacutes soacutecio-criacutetico a maquiagem do real pelo imaginaacuterio representa a

tentativa de sobrevivecircncia do capitalismo econocircmico frente agraves promessas fracassadas de

igualdade e progresso criadas pela humanidade na modernidade Pode ser vista como a

180 Cf DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo p 13-19 181 Aqui no sentido de imagem perfeita projetada pela miacutedia a utopia espetacular y182 Cf SUSIN Luiz Carlos Isto eacute meu corpo dado por voacutes In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 234 183 Por corpo real entende-se aquele natildeo ajustado agraves exigecircncias esteacuteticas da sociedade somaacutetica espetacular 184 Essa nomenclatura eacute desenvolvida e utilizada neste trabalho a partir das leituras de DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo 1997 e COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo 2004 185 Expressatildeo inglesa que significa atrair a atenccedilatildeo por meio da auto-exibiccedilatildeo

reinvenccedilatildeo do capitalismo na era da aparecircncia186 em que o humano e os valores humanos se

reduzem a mercadorias as quais por sua vez reduzem-se a imagens Como numa reaccedilatildeo em

cadeia ldquoa sociedade e as relaccedilotildees que mediam os sujeitos se reduzem agrave aparecircncia e agrave quantidade

de mercadorias consumidas A imagem eacute um valor em sirdquo187

Os sujeitos sociais da cultura somaacutetica espetacular satildeo forjados em uma visatildeo de

mundo calcada na percepccedilatildeo da vida como entretenimento e no ideal de felicidade na satisfaccedilatildeo

plena de suas sensaccedilotildees Na maioria das vezes percebe-se que a satisfaccedilatildeo das sensaccedilotildees

resume-se em satisfaccedilatildeo das sensaccedilotildees fiacutesicas Satildeo homens e mulheres de uma geraccedilatildeo que natildeo

vive mas ldquocurterdquo sorvendo a vida ateacute a uacuteltima gota numa perspectiva hedonista sem limites na

busca pela satisfaccedilatildeo Tal geraccedilatildeo compreende que a satisfaccedilatildeo pessoal eacute ldquoa coincidecircncia

perfeita entre a intenccedilatildeo e seus proacuteprios fins Trata-se de uma categoria valorativa que engloba

fatos empiacutericos como realizaccedilatildeo de intenccedilotildees cognitivas volitivas afetiva ou fiacutesicasrdquo188 Essa

satisfaccedilatildeo guarda estreita relaccedilatildeo na gecircnese de seu conceito com a negaccedilatildeo da possibilidade de

tristeza dor e frustraccedilatildeo Ora a coincidecircncia perfeita entre a intenccedilatildeo (o desejo) e sua realizaccedilatildeo

plena (o real) na praacutetica eacute histoacuterica e humanamente impossiacutevel

Como natildeo haacute limites para o desejo humano constata-se que no momento que o

humano possui o objeto desejado o desejo se esvai e o frustra por natildeo poder conter em si todo

o conteuacutedo desejado Assim o ser humano contemporacircneo vive simultacircnea e paradoxalmente o

prazer e dor felicidade e tristeza satisfaccedilatildeo e frustraccedilatildeo prazer e gozo poreacutem sem qualquer

sentido finalidade ou esperanccedila esvaindo-se todo esforccedilo em anguacutestia e debilidade O

espetaacuteculo dentro da cultura somaacutetica mostra-se onipotente atraente grandioso e positivo mas

inalcanccedilaacutevel A busca pelo corpo perfeito transforma-se em perversa maratona em jogo

destrutivo entre o humano e seu corpo Haja vista a ideacuteia de positivo de belo e de bom no

espetaacuteculo vincular-se ao proacuteprio espetaacuteculo o qual incute a ideacuteia no indiviacuteduo de sua

necessidade visceral para continuar vivo Assim somente o bom aparece pois somente o bom

torna-se digno de ser convertido em imagem

Na cultura somaacutetica espetacularizada o julgamento do valor da pessoa humana se

daacute em primeira instacircncia na imagem refletida no espelho do corpo Eacute ele o veiacuteculo e o criteacuterio

do valor moral das pessoas189 A compleiccedilatildeo fiacutesica esculpida e tonificada eacute sinal de sucesso e

186 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 81 187 KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 80 188 Conceito elaborado e adotado por COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo p 213 189 Cf MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo p 37

prestiacutegio social190 Por sua vez o corpo flaacutecido e com formas consideradas natildeo atraentes

caracteriza natildeo soacute falta de cuidado pessoal como tambeacutem frouxidatildeo de caraacuteter e personalidade

Natildeo haacute como se esconder o ldquoeurdquo eacute exibido e examinado o tempo todo pelo corpo e a exposiccedilatildeo

do ldquoeurdquo perante o ldquoturdquo eacute constante e ininterrupta191 A uacutenica possibilidade de preservaccedilatildeo do

ldquoeurdquo ante ao escrutiacutenio contiacutenuo do outro se encontra na homogeneizaccedilatildeo192 da imagem pessoal

na sociedade espetacular Parafraseando Hebdige somente debaixo da luz eacute possiacutevel esconder-

se193 Entretanto tal estrateacutegia de autopreservaccedilatildeo revela-se uma armadilha pois se misturar ao

ambiente ou seja eacute negar a individualidade a diferenccedila e se submeter agrave banalizaccedilatildeo da

imagem corporal Para eliminar o corpo que desnuda (expotildee) deve-se submetecirc-lo a dietas

alimentares rigorosas a horas de modelagem muscular em academias de ginaacutestica agrave ingestatildeo de

suplementos alimentares a cirurgias plaacutesticas e a altas doses de antidepressivos e ansioliacuteticos

tudo para enquadrar esse corpo ao padratildeo ou seja tornaacute-lo o mais invisiacutevel possiacutevel194 e

preservar o ser do julgamento diuturno do outro195

Aleacutem da evidente escravizaccedilatildeo ao inveacutes da liberdade social e comportamental

apregoada e possibilitada na cultura somaacutetica paradoxalmente o que apavora o sujeito da

cultura somaacutetica espetacular o julgamento do outro eacute justamente o que lhe daacute consistecircncia e o

faz existir o olhar do outro para que se possa existir Eacute nesse paradoxo que a insanidade da

cultura somaacutetica espetacular instala-se o outro eacute juiz implacaacutevel e legitimador da existecircncia

Precisa-se visceralmente desse olhar que eacute justamente o que consome e destroacutei Ante tal

conflito a cultura somaacutetica espetacular eacute incompatiacutevel com a integridade e plenitude do ser

humano negando-lhe a vocaccedilatildeo para a transcendecircncia pois as preocupaccedilotildees humanas limitam-

se em construir o corpo perfeito mostrado na miacutedia

O ser humano somaacutetico espetacularizado reduz-se a se encapsular em si mesmo

como princiacutepio e fim de sua existecircncia em que o outro existe apenas para legitimar sua imagem

ou seja para sua satisfaccedilatildeo Mostra-se cada vez mais isolado e absorto em suas questotildees

pessoais e as necessidades sociais alocam-se em planos inferiores196 e segundo Ortega

190 O inimigo satildeo as gorduras o colesterol o sedentarismo personificados na giacuteria estadunidense couch potatoes (ORTEGA Francisco Praacuteticas de ascese corporal e constituiccedilatildeo de bioidentidades 2003) 191 Cf ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia Satildeo Leopoldo [sd] (Entrevista) Disponiacutevel em lthttpwwwunisinosbrihuindexphpoption=com_entrevistasampItemid=29amp task=entrevistaampid=2188gt Acesso em 02 jan 2007 192 Trata-se da anulaccedilatildeo das particularidades individuais 193 HEBDIGE Dick Hidding in the light - on images and things London Comedia 1989 194 Cf MOSER Antonio Corpo e sexualidade do bioloacutegico ao virtual In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia p 142-144 em diaacutelogo com LE BRETON David Adeus ao corpo antropologia e sociedade 2003 195 Cf ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia [sd] 196 Cf KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre p 78

ldquoperdemos o mundo e ganhamos o corpordquo197

Diante da pluralidade de discursos presentes na poacutes-modernidade a cultura

somaacutetica espetacularizada apesar de pretendecirc-lo natildeo tem a palavra final sobre o significado

humano do corpo e da pessoa A compreensatildeo biacuteblico-teoloacutegica do humano e de seu corpo

interpelam a moral do espetaacuteculo ao apresentar proposta alternativa de existecircncia para a

humanidade

A antropologia biacuteblica e teoloacutegica configura-se como forma de compreensatildeo

integral da pessoa198 Dentro da concepccedilatildeo cristatilde a criatura humana natildeo eacute apenas uma unidade

um dado bioloacutegico199 Do fato de ser criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus redimida e

santificada no Cristo faz com que a humanidade possua dignidade iacutempar e irredutiacutevel Como

ensina De la Pentildea a dignidade da corporalidade humana encontra-se assegurada A doutrina

cristatilde valoriza ldquopositivamente tanto a dimensatildeo espiritual quanto a corporeidade articuladas

fecundamente numa relaccedilatildeo de integraccedilatildeo-inclusatildeordquo200 A antropologia teoloacutegica

contemporacircnea201 resguarda cabalmente a dignidade do ser humano integral pois o corpo

participa da redenccedilatildeo pela ressurreiccedilatildeo e deve ser considerado uma realidade redimida porque

o Verbo assumiu a carne humanardquo202

Nesse sentido o pensamento antropoloacutegico cristatildeo a respeito da humanidade se

opotildee ao da loacutegica da cultura espetacular Porque a antropologia teoloacutegica na fundamentaccedilatildeo

biacuteblica e na Magisterial pensa o ser humano como unidade integral um todo Natildeo haacute para a

antropologia cristatilde qualquer possibilidade de pensar o humano a partir do conceito de imagem-

fetiche visto que a humanidade eacute concebida como corpo-palavra corpo-ouvido corpo-vivente

enfim corpopessoa A dignidade do humano (em sua integralidade) encontra justificativa no

Cristo porque ele Filho Unigecircnito do Pai revela por amor a toda a humanidade a verdade

uacuteltima do ser humano ser a imagem e semelhanccedila de Deus Pai Criador203 Em Cristo se

esclarece verdadeiramente o misteacuterio acerca da realidade humana204 realizada histoacuterica e

concretamente no corpo e na vida na sua carne e na carne de todos os homens e mulheres

criados agrave sua imagem e semelhanccedila e que satildeo conduzidos por Deus o Espiacuterito agrave plenificaccedilatildeo

dessa imagem e semelhanccedila

197 ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia [sd] 198 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 355 199 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 345 200 Cf RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade p 358-359 201 Cf LADARIA Luis F Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica p 28 202 JUNGES Joseacute Roque Bioeacutetica Hermenecircutica e casuiacutestica p 128 Grifo nosso 203 Cf BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador p 132-133 204 Cf CONSTITUICcedilAtildeO pastoral gaudium et spes sobre a igreja no mundo de hoje In CONCILIO DO VATICANO 2 1962-1965 Documentos do Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II (1962-1965) item 22 p 563

Como proposta de libertaccedilatildeo para a corporeidade encapsulada pela cultura

somaacutetica a teologia cristatilde oferece a partir do ethos da humanidade em Cristo uma palavra

sobre o corpo pensado em funccedilatildeo de sua criaturalidade ou seja de sua finitude Se o Filho de

Deus assumiu a condiccedilatildeo humana sem renunciar a essa finitude isto significa do ponto de vista

eacutetico que a humanizaccedilatildeo da humanidade passa necessariamente pela convivecircncia e assunccedilatildeo

dos limites do corpo abdicando-se do esforccedilo de tornar o corpo desencarnado pelas teacutecnicas que

modificam ou negam mesmo seus limites

Na visatildeo cristatilde eacute o outro que interpela para que natildeo se negue a finitude da

condiccedilatildeo humana e se pretenda um corpo absolutamente sem fim e sem dores mas tambeacutem sem

histoacuteria e sem responsabilidade Nesse sentido graccedilas agrave finitude a humanidade encontra no

mundo e no outro a condiccedilatildeo de possibilidade para assumir a carecircncia o limite a

vulnerabilidade como lugar de construccedilatildeo da identidade como corpo de Cristo

Uma via se apresenta que eacute a compreensatildeo da dignidade da criatura humana e da

corporeidade como condiccedilatildeo de possibilidade do encontro com o outro com o mundo e com

Deus Mas na estrutura da sociedade do espetaacuteculo o espaccedilo para tal proclamaccedilatildeo precisa ser

conquistado nos mais diversos foacuteruns em um esforccedilo puacuteblico e poliacutetico da teologia cristatilde para o

diaacutelogo e para a palavra profeacutetica e criacutetica que interpela e anuncia a presenccedila de Deus na

corporeidade humana e na criaccedilatildeo

No misteacuterio da salvaccedilatildeo cristatilde a encarnaccedilatildeo do Filho revela o corpo como lugar da

salvaccedilatildeo e santificaccedilatildeo da humanidade205 Desta feita como afirma Le Breton se a

corporeidade no contexto da cultura da tecnologia do corpo foi capaz de isolar o humano e

encapsulaacute-lo egoisticamente em si mesmo por outro lado a mesma corporeidade do ponto de

vista da antropologia e eacutetica cristatilde porta em si as prerrogativas de reconciliaacute-lo consigo e abri-lo

ao mundo vez que a plenitude humana fim uacuteltimo da criaccedilatildeo humanal alcanccedila-se somente com

a doaccedilatildeo sincera de si206 no dom de Cristo

Diante disso a assunccedilatildeo do princiacutepio da responsabilidade da eacutetica do cuidado

impotildee-se como elemento determinante para que o corpo seja ressignificado tendo como

referecircncia os misteacuterios da vida do Cristo Tal equivale a promover o cuidado do proacuteprio corpo e

do corpo do outro ao reconhecer e louvar a obra de Deus existente em cada um Por

consequumlecircncia humanizar essa obra atraveacutes do cuidado significa tambeacutem glorificar a Deus207

O valor que a eacutetica cristatilde do corpo atribui agrave humanizaccedilatildeo em Cristo engloba aceitar

205 BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador p 132-133 206 Cf JOAtildeO PAULO II Salvifici doloris 3 ed Satildeo Paulo Paulinas 1988 p 61 207 Cf AUDOLLENT Philippe Sexualidade e vida cristatilde Satildeo Paulo Paulinas 1983 p 50-51

a criaturalidade a finitude e a vulnerabilidade bem como assumir a experiecircncia e a

compreensatildeo redentora do sofrimento e do padecimento vivido pelo Filho Jesus ao assumir a

condiccedilatildeo humana em tudo menos no pecado experimenta igualmente a dor e o sofrimento

humanos traduzidos de maneira radical na sua paixatildeo e morte na cruz A expressatildeo do amor de

Deus se revela tanto na criaccedilatildeo como na entrega de ldquosirdquo ateacute agrave morte do Filho No padecimento

do Filho na cruz se daacute a redenccedilatildeo da humanidade de maneira definitiva Desse modo a morte eacute

tambeacutem salviacutefica e graciosa em Jesus e nele eacute oferecido ao ser humano a possibilidade de

ressignificar seu padecimento como obra co-redentora da humanidade em Cristo Em Cristo

cada ser humano com seu corpo eacute chamado a carregar o corpo do outro sobretudo quando esse

outro padece dores desgastes enfermidades e morte Pela redenccedilatildeo Deus cumula de dignidade

a humanidade padecente Nela Deus revela e ao mesmo tempo desmascara a violecircncia e a

injusticcedila que satildeo experimentadas na carne e no corpo especialmente no corpo das viacutetimas da

cultura somaacutetica espetacularizada

Na contramatildeo dessa loacutegica no misteacuterio da criaccedilatildeo encarnaccedilatildeo e redenccedilatildeo os

humanos sobretudo os que se encontram mais identificados com o Filho desfigurado na cruz -

feito viacutetima pela maldade - podem interpelar o que haacute de mais des-humano na denominada

ldquosociedade do espetaacuteculordquo O misteacuterio da redenccedilatildeo se opotildee agrave loacutegica da forccedila do sistema no qual

tem valor aquele que tem potencial para concorrer consumir e competir no mercado em que o

descartaacutevel eacute axiomaacutetico

A eacutetica cristatilde assume o significado da morte de Cristo como recriaccedilatildeo da

humanidade De tal maneira que o corpo-pessoa exprime-se simultaneamente como obra da

salvaccedilatildeo de Cristo e como sinal de contradiccedilatildeo diante dessa maneira de conceber a pessoa Na

cultura somaacutetica espetacularizada em que a dor eacute absolutamente inconcebiacutevel e sua assunccedilatildeo

banida de um corpo idealizado pelo mercado a eacutetica do fazer cristatildeo se propugna como

exerciacutecio da compaixatildeo e do engajamento na proteccedilatildeo do corpo da viacutetima qual sacramento da

morte redentora de Cristo Tal exigecircncia eacutetica comporta a proclamaccedilatildeo e a assunccedilatildeo da proposta

evangeacutelica ldquoAmaraacutes o proacuteximo como a ti mesmordquo208

Bibliografia

A BIacuteBLIA Traduccedilatildeo ecumecircnica Satildeo Paulo Loyola Satildeo Paulo Paulinas 2002 AUDOLLENT Philippe Sexualidade e vida cristatilde Satildeo Paulo Paulinas 1983 BOFF Leonardo Jesus Cristo libertador 18 ed Petroacutepolis Vozes 1986COSTA Jurandir Freire O vestiacutegio e a aura corpo consumido na moral do espetaacuteculo Rio de Janeiro Garamond 2004 CONSTITUICcedilAtildeO pastoral gaudium et spes sobre a igreja no mundo de hoje In CONCILIO DO VATICANO 2 1962-1965 Doc do Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II (1962-1965) item 22 p 563

208 Mt 5 43 Mr 1231 Jo 1314 Como amar o proacuteximo se natildeo se ama a si mesmo Nesse contexto pode-se refletir a exigecircncia eacutetica ldquoNatildeo mataraacutesrdquo O cuidado para com o corpo supotildee a valorizaccedilatildeo e a garantia da manutenccedilatildeo e propagaccedilatildeo da vida

DEBORD Guy A sociedade do espetaacuteculo Rio de Janeiro Contraponto 1997

GROSSI Vittorino et al O homem e sua salvaccedilatildeo (seacuteculos V-XVII) antropologia cristatilde criaccedilatildeo pecado original justificaccedilatildeo e graccedila fins uacuteltimos A eacutetica cristatilde das ldquoautoridadesrdquo ao magisteacute Satildeo Paulo Loyola 2003 t 2 Histoacuteria dos dogmas

HEBDIGE Dick Hidding in the light - on images and things London Comedia 1989 JOAtildeO PAULO II Salvifici doloris 3 ed Satildeo Paulo Paulinas 1988 p 61 JUNGES Joseacute Roque Bioeacutetica Hermenecircutica e casuiacutestica Satildeo Paulo Loyola 2006

KEMP Kecircnia Corpo modificado corpo livre Satildeo Paulo Paulus 2005

LADARIA Luis F Antropologia teoloacutegica Roma Editrice Pontifiacutecia Universitaacute Gregoriana 1995 LE BRETON David Adeus ao corpo antropologia e sociedade 2003 ______ Introduccedilatildeo agrave antropologia teoloacutegica 2ed Satildeo Paulo Loyola 2002 MARZANO-PARISOLI Maria Michela Pensar o corpo Petroacutepolis Vozes 2004 MOSER Antonio Corpo e sexualidade do bioloacutegico ao virtual In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia p 142-144 ORTEGA Francisco O corpo como uacuteltima utopia Satildeo Leopoldo [sd] (Entrevista) Disponiacutevel em lthttpwwwunisinosbrihuindexphpoption=com_entrevistasampItemid=29amp task=entrevistaampid=2188gt Acesso em 14 junho 2009 ______ Praacuteticas de ascese corporal e constituiccedilatildeo de bioidentidades Cadernos de Sauacutede Coletiva Rio de Janeiro p 59-77 2003 Disponiacutevel em lthttpwwwnescufrjbr cadernos2003_12003_120FOrtega pdfgt Acesso em 14 junho 2009 RUBIO Alfonso Garciacutea Unidade na pluralidade 3 ed Satildeo Paulo Paulus 2001 SUSIN Luis Carlos Isto eacute meu corpo dado por voacutes In SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIEcircNCIAS DA RELIGIAtildeO Corporeidade e teologia Satildeo Paulo Paulinas 2004 p 231-262

GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo EMENTAS Religiatildeo Ciecircncia e Modernidade Magnoacutelia Gibson Cabral da Silva A ciecircncia e a religiatildeo representam dois grandes sistemas do pensamento humano Existe uma ligaccedilatildeo muito estreita entre essas duas perspectivas de conhecimento Ambas pretendem desvendar o universo e no iniacutecio foi o pensamento miacutestico que inspirou o pensamento cientiacutefico Poreacutem ao longo do tempo a ciecircncia foi assumindo postura e metas bem diversas daquelas da religiatildeo Diriacuteamos que eacute um caso tiacutepico em que a criatura se rebela contra o criador Com efeito a religiatildeo ensina que os seres humanos devem ser subservientes agrave divindade enquanto que a ciecircncia recomenda ignoraacute-la A presente discussatildeo se propotildee a sublinhar alguns dos aspectos fundamentais desta disputa simboacutelica pela hegemonia no campo do conhecimento suas possiacuteveis causas e consequecircncias Biodiversidade e modernidade problemas e desafios Paulo Agostinho N Baptista A modernidade representou uma mudanccedila profunda na histoacuteria trazendo implicaccedilotildees em todos os acircmbitos Surge como um novo paradigma Na esteira dessa mudanccedila se estrutura nova compreensatildeo da razatildeo o desenvolvimento das ciecircncias e uma nova visatildeo cosmoloacutegica a terra natildeo eacute mais o centro O universo se apresenta diverso A ciecircncia comeccedila a se desenvolver na perspectiva das descobertas de outras diversidades Dentre essas recentemente emerge a ideacuteia de biodiversidade e suas implicaccedilotildees Natildeo foi possiacutevel o surgimento desse conceito sem o ambiente criado pela modernidade especialmente de suas contradiccedilotildees Mas o locus mais imediato do aparecimento dessa categoria eacute a consciecircncia de que a diversidade da vida estaacute ameaccedilada acontece no contexto do surgimento do paradigma ecoloacutegico O objetivo desta comunicaccedilatildeo eacute refletir sobre as aproximaccedilotildees os questionamentos os problemas e os desafios da relaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade Ciberespaccedilos para o encontro do sagrado inteligecircncia artificial e religiatildeo Claudia Maria de Assis Rocha Lima Pretende-se uma reflexatildeo sobre a assistecircncia psicorreligiosa na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos processos subjetivos do ser humano no acircmbito da cibercultura O objeto do estudo satildeo profissionais em situaccedilatildeo de estresse que tende a refletir subjetivamente no ritmo do seu organismo tais tensotildees O estudo sugere um ambiente propiacutecio no qual possam descobrir em sua subjetividade essecircncias inerentes para promover o bem-estar tendo como instrumento perspectivas simboacutelicas religiosas na interface da vulnerabilidade das situaccedilotildees-limite eminentes do cotidiano Tendo a consciecircncia do papel desse encontro virtual como terapia mediadora natildeo substituindo os espaccedilos religiosos convencionais e nem tatildeo pouco os atendimentos psicoloacutegicos tradicionais

Transdisciplinar e transreligioso em busca de uma visatildeo integral Gilbraz Aragatildeo O ldquocomordquo da ciecircncia e o ldquoporquerdquo da teologia satildeo intimamente ligados O teoacutelogo de qualquer religiatildeo precisa sempre reinterpretar os seus mitos mas partindo da e visando agrave realidade soacutecio-natural ndash que eacute interpretada pela ciecircncia Acontece que as ciecircncias e as religiotildees se descobrem hoje muacuteltiplas confusas e contraditoacuterias resvalando em fundamentalismos eou relativismos desumanizantes Queremos entatildeo perguntar pela possibilidade de uma Abordagem Integral que associe tanto as crenccedilas mais tradicionais das grandes religiotildees quanto os princiacutepios culturais e cientiacuteficos modernos e poacutes-modernos propondo um papel radicalmente novo para a religiatildeo no mundo uma espiritualidade transreligiosa em diaacutelogo com uma ciecircncia transdisciplinar Feacute cristatilde ciecircncia e modernidade Antonio Carlos Ribeiro O debate entre feacute cristatilde ciecircncia e modernidade resultou em movimentos como o Humanismo a Renascenccedila e a Reforma Protestante implicando a limitaccedilatildeo do direito pontifiacutecio A ciecircncia proporcionou a dessacralizaccedilatildeo e desconstruccedilatildeo do mundo gerando o rompimento do antigo equiliacutebrio Esses fatos fizeram abandonar a cosmologia preacute-moderna devolvendo agrave razatildeo sua dignidade e direitos sacudindo o jugo da autoridade A reaccedilatildeo preacute-moderna criticou o Humanismo por desrespeitar os direitos de Deus o Renascimento por desprezar a civilizaccedilatildeo ocidental cristatilde a Reforma Protestante por romper a unidade religiosa e administrativa o Iluminismo por insistir na razatildeo e a Revoluccedilatildeo Francesa por romper a relaccedilatildeo Igreja-Estado

GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo TEXTOS Religiatildeo Ciecircncia e Modernidade

Magnoacutelia Gibson Cabral da Silva

Introduccedilatildeo

Ciecircncia e religiatildeo representam dois grandes sistemas do pensamento humano O objetivo da

ciecircncia eacute entender os princiacutepios e relaccedilotildees na natureza o conhecimento da natureza permite o

desenvolvimento de accedilotildees visando o aumento do conforto e do tempo de sobrevivecircncia do

homem A ciecircncia eacute baseada na observaccedilatildeo e na experimentaccedilatildeo cuidadosa dos fatos

permitindo a construccedilatildeo de teorias e a conexatildeo de diferentes experiecircncias O objetivo da ciecircncia

eacute entender os princiacutepios e relaccedilotildees na natureza Por exemplo o objetivo da psicologia eacute dar

equiliacutebrio ao ser humano de modo a que ele tenha um paraiacuteso na terra o da medicina eacute combater

as doenccedilas e aumentar o tempo meacutedio de vida do homem (SSILVA E 2003)

A religiatildeo procura explicar as origens do homem e do universo bem como seu papel dentro

deste numa perspectiva bastante ampla que inclui tambeacutem o poacutes vida Diferentemente da

ciecircncia a religiatildeo se baseia na revelaccedilatildeo e na sabedoria recebida

O objetivo da religiatildeo eacute entender o poacutes vida e dar aos fieacuteis uma certeza do poacutes morte que lhe

permita um equiliacutebrio nesta vida um paraiacuteso na outra vida e em alguns casos um paraiacuteso na

terra Ela se baseia na revelaccedilatildeo e na sabedoria recebida Embora hoje hajam divergecircncias entre

a ciecircncia e a religiatildeo isto nem sempre foi assim (Ibid)

A relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia estaacute na ordem do dia em todas as esferas da cultura ocidental

contemporacircnea por se tratar da relaccedilatildeo entre os dois principais sistemas de pensamentos que

dirigem a vida humana sobre a terra Trata-se de um tema bastante amplo e complexo de difiacutecil

abordagem uma vez que compreende vaacuterias aacutereas do conhecimento de ambos os lados e como

tal pode ser abordado de diferentes acircngulos filosoacutefico religioso teoloacutegico cientiacutefico e cada

um destes a partir de diferentes vertentes que englobam as diferentes ciecircncias fiacutesicas e culturais

sob prismas religiosos filosoacuteficos teoacuterico epistemoloacutegico e metodoloacutegico

Aqui abordaremos o assunto numa perspectiva socioloacutegica mais especificamente da

sociologia da religiatildeo e do conhecimento em seus aspectos epistemoloacutegicos e metodoloacutegicos

Nosso objetivo eacute destacar alguns aspectos fundamentais desta disputa simboacutelica entre ciecircncia e

magnoliagibsonbolcombr Profa Doutora em Sociologia lotada na Unidade Acadecircmica de Ciecircncias Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Federal da Campina Grande

religiatildeo seus efeitos sobre esta uacuteltima e a importacircncia dos atores sociais na disputa pela

legitimaccedilatildeo do saber

Recorrendo a uma grande simplificaccedilatildeo diriacuteamos que os diversos grupos que manteacutem e

alimentam esta disputa podem ser divididos em trecircs amplas e diversificadas frentes - nenhuma

delas homogecircnea nem claramente definida - compostas de um lado por estudiosos intelectuais

e profissionais em geral de diversas aacutereas do saber E por outro por especialistas e

profissionais filoacutesofos da religiatildeo e da ciecircncia diretamente encarregados na conduccedilatildeo do

debate em sua incansaacutevel busca de soluccedilotildees sejam estas praacuteticas imediatas eou

teoacutericometodoloacutegicas No centro desta arena estamos todos noacutes tentando nos situar enquanto

seres humanos A participaccedilatildeo como pessoa pode se dar de forma consciente e ativa ou

simplesmente inconsciente deixando-se levar ao sabor da corrente Ou ainda em trincheiras

claramente demarcadas sustentando posiccedilotildees Nesse sentido todos noacutes participamos direta ou

indiretamente individual ou coletivamente nos rumos e nos efeitos deste debate uma vez que

este interfere diretamente nossas em vidas influenciando nossas percepccedilotildees de realidade e os

direcionamentos que damos a estas

A presente discussatildeo toma como base as reflexotildees de autores claacutessicos e contemporacircneos

que se debruccedilaram direta ou indiretamente sobre a questatildeo Entre os claacutessicos Eacutemile Durkheim

Max Weber George Simmel e contemporacircneos Stefano Martteli Anthony Giddens Clifford

Geertz Leila Amaral entre outros Argumentamos que a ligaccedilatildeo entre os sistemas religioso e

cientiacutefico eacute intriacutenseca e estaacute na origem da ciecircncia e que as disputas entre estes dois sistemas

redundam tanto prejuiacutezos quanto em benefiacutecios para ambos em todos os sentidos bem como

para a vida humana em geral Iniciamos a discussatildeo a partir da interpretaccedilatildeo de Durkheim a

respeito da relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia os pontos de aproximaccedilatildeo e as tentativas de afastamento

entre os dois sistema e seus efeitos praacuteticos sobre a sociedade Em seguida ilustraremos a

discussatildeo com a atual relaccedilatildeo entre ciecircncia religiatildeo e sistemas de cura na sociedade ocidental

moderna e o papel dos atores sociais como legitimadores do saber

Religiatildeo e ciecircncia disputa e resistecircncia na luta pela legitimidade do saber

Na sociologia Eacutemile Durkheim foi o primeiro a refletir mais profundamente sobre a

relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia sob a influecircncia da visatildeo positivista na perspectiva da sociologia da

religiatildeo e do conhecimento A reflexatildeo de Durkheim a respeito da relaccedilatildeo religiatildeo e ciecircncia eacute

muito rica merece que nos debrucemos unicamente sobre ela o que natildeo eacute nosso propoacutesito

aqui Como jaacute foi dito queremos simplesmente salientar alguns aspectos do debate religiatildeo e

ciecircncia que permanecem atuais para mostrar como ele eacute construiacutedo e mantido e como os

resultados desta disputa simboacutelica se refletem em nossas formas de encarar o mundo e conduzir

nossas vidas como tem sido evidenciado pela sociologia Consoante Giddens (2000) aquilo que

as pessoas dizem e fazem aquilo que acreditam e aquilo que desejam como elas constroem

instituiccedilotildees e interagem entre si ndash satildeo distintos dos objetos das ciecircncias naturais como a fiacutesica a

quiacutemica ou a biologia na medida em que as accedilotildees e interaccedilotildees das pessoas bem como suas

crenccedilas e desejos constituem um aspecto essencial do mundo que o socioacutelogo investiga

(GIDDENS 2000 P 12-13)

A partir deste raciociacutenio pretendemos mostrar como as interpretaccedilotildees dos pensadores

em geral e dos cientistas em particular influenciam nossa percepccedilatildeo de realidade e nossos

modos de viver de pensar agir e de reagir diante do mundo Ou seja eacute no fluxo contiacutenuo entre

a produccedilatildeo e a difusatildeo de saberes praacuteticas sociais diaacuterias que devemos buscar as tendecircncias e os

direcionamentos da disputa entre religiatildeo e ciecircncia No caso interessam natildeo apenas as disputas

mas as reaccedilotildees e resistecircncias a estas por parte dos atores sociais Retornando Durkheim e sua

reflexatildeo sobre a ascensatildeo do pensamento cientiacutefico na sociedade ocidental contemporacircnea

vemos que esta eacute bem atual condizente como o modo de pensar contemporacircneo o qual ele

proacuteprio ajudou a construir Na conclusatildeo de Les formes eacuteleacutementaires de la vie religieuse ele

afirma

ldquocontrariamente agraves aparecircncias verificamos que as realidade a que se aplica a

especulaccedilatildeo religiosa satildeo exatamente aquelas que mais tarde serviratildeo como objetos

para a reflexatildeo (cientiacutefica) dos pensadores a natureza o homem a sociedade () A

religiatildeo esforccedila-se por traduzir essas realidades em linguagem inteligiacutevel que natildeo

difere quanto agrave natureza daquela empregada pela ciecircncia209 de ambas as partes trata-

se de ligar as coisas entre si de estabelecer relaccedilotildees internas de classificaacute-las de

sistematiza-lasrdquo (DURKHEIM 1989 P 507)

Como salienta Durkheim ldquoateacute as noccedilotildees essenciais da loacutegica cientiacutefica satildeo de origem

religiosardquo A ciecircncia diz ele para utilizaacute-las submete-as a novas elaboraccedilotildees purifica-as de todo

tipo de elementos oportunistas de maneira geral ela emprega em todos os seus procedimentos

um espiacuterito criacutetico ignorado pela religiatildeo cerca de precauccedilotildees para ldquoevitar a precipitaccedilatildeo e a

prevenccedilatildeordquo para manter agrave distacircncia as paixotildees os preconceitos e todas as influencias subjetivas -

ou seja procedimentos loacutegicos Mas continua ele esses aperfeiccediloamentos metodoloacutegicos natildeo

bastam para diferenciaacute-la da religiatildeo Uma e outra sob esse aspecto perseguem o mesmo

objetivo o pensamento cientiacutefico eacute apenas uma forma mais perfeita do pensamento religioso

Parece pois natural afirma ele que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro agrave

medida que este se torna mais apto para cumprir a tarefardquo (Ibid)

Aqui evidencia-se claramente a influecircncia do positivismo sistema de pensamento que

passaria a predominar na sociedade ocidental contemporacircnea inicialmente entre os cientistas e

209 Grifo nosso para ressaltar na fala da Durkheim aquilo que consideramos essencial no debate socioloacutegico contemporacircneo em relaccedilatildeo agrave disputa entre ciecircncia e religiatildeo tanto em termos teoacutericos como praacuteticos sobre a vida humana

posteriormente na proacutepria sociedade Modo de pensar que aparece hoje como ldquoperfeitamente

naturalrdquo

Continua ele

ldquo natildeo haacute duacutevida de que essa regressatildeo tenha se produzido no curso da histoacuteria Saiacuteda da religiatildeo a ciecircncia tende a substituir essa uacuteltima em tudo o que diz respeito agraves funccedilotildees cognitivas e intelectuais O cristianismo jaacute consagrou definitivamente essa substituiccedilatildeo na ordem dos fenocircmenos materiais Vendo na mateacuteria a coisa profana por excelecircncia abandonou facilmente o seu conhecimento a uma disciplina estranha traditit mundum hominum disputationi foi assim que as ciecircncias da natureza puderam estabelecer-se e fazer reconhecer a sua autoridade sem grandes dificuldades Mas natildeo podia renunciar tatildeo facilmente ao mundo das almas porque eacute sobre as almas que o Deus dos cristatildeo aspira e reinar antes de tudo Eacute por isso que (Op cit P 507) durante muito tempo a ideacuteia de submeter a vida psiacutequica agrave ciecircncia produzia o efeito de uma espeacutecie de profanaccedilatildeo tambeacutem hoje em dia ela ainda repugna a muitos espiacuteritos (Op cit P 508) Entretanto a psicologia experimental e comparativa se constituiu e hoje devemos contar com ela A grande maioria dos homens continua a acreditar que existe uma ordem de coisa nas quais o espiacuterito soacute pode penetrar por vias muito especiais Vecircm daiacute as fortes resistecircncias encontradas as vezes que se procura tratar cientificamente os fenocircmenos religiosos e morais Mas a despeito das oposiccedilotildees essas tentativas se repetem e essa mesma persistecircncia permite prever que essa uacuteltima barreira acabaraacute cedendo e que a ciecircncia dominaraacute inclusive nessa regiatildeo reservada210

Eis em que consiste o conflito entre a ciecircncia e a religiatildeo Temos dele muitas vezes ideacuteia inexata Diz-se em linha de princiacutepio que a ciecircncia nega a religiatildeo Mas a religiatildeo existe eacute um sistema de fatos dados em uma palavra eacute uma realidade Como a ciecircncia poderia negar a realidade Aleacutem disso a ciecircncia natildeo pode substituir a religiatildeo enquanto accedilatildeo enquanto meio de fazer os homens viverem porque se ela exprime a vida natildeo a cria ela pode perfeitamente procurar explicar a feacute mas por isso mesmo ela a supotildee Portanto soacute haacute conflito em ponto circunscrito Das duas funccedilotildees que a religiatildeo exercia primitivamente existe uma apenas uma que tende a escapar-lhe cada vez mais a funccedilatildeo especulativa O que a ciecircncia contesta na religiatildeo natildeo eacute o direito de ser mas o direito de dogmatizar sobre a natureza das coisas eacute a espeacutecie de competecircncia especial que ela se atribui para conhecer o homem e o mundo De fato ela natildeo conhece nem a si proacutepria Natildeo sabe nem de que eacute constituiacuteda nem a que necessidades responde Ela proacutepria eacute objeto de ciecircncia ela estaacute longe de poder impor leis agrave ciecircncia E como por outro lado fora do real a que se aplica a reflexatildeo cientiacutefica natildeo existe objeto proacuteprio sobre o qual recaia a especulaccedilatildeo religiosa eacute evidente que esta natildeo poderia desempenhar no futuro a mesma funccedilatildeo que no passadordquo Entretanto ela parece chamada a se transformar mais do que desaparecer (Ibid)

E eacute exatamente isso que estaacute acontecendo como sustentaram Max Weber e Clifford Geertz

Na introduccedilatildeo da segunda ediccedilatildeo de A eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismo (2001)

Weber acrescentou uma introduccedilatildeo na qual salienta a influecircncia do pensamento cientiacutefico

ocidental em todo o mundo mostrando que na ldquocivilizaccedilatildeo ocidental e soacute nela tecircm aparecido

fenocircmenos culturais que como queremos crer apresentam uma linha de desenvolvimento de

significado e valor universaisrdquo (WEBER 2001 P 21)

Mais recentemente Geertz em Observando o Islatilde (2004) mostra a influecircncia da visatildeo

cientiacutefica ocidental sobre o islamismo no Marrocos e na Indoneacutesia paises fisicamente distantes

que embora desfrutem da mesma tradiccedilatildeo religiosa como sistema de crenccedila religiosa

dominante o islamismo apresentam caracteriacutesticas particulares e onde eacute perfeitamente

perceptiacutevel a penetraccedilatildeo da interpretaccedilatildeo cientiacutefica ocidental de mundo 210 Esse eacute um dos aspectos centrais no debate que trataremos a seguir

A progressiva ascensatildeo do pensamento cientiacutefico a uma posiccedilatildeo hegemocircnica na escala do

conhecimento humano eacute o primeiro aspecto importante que gostariacuteamos de assinalar nesta

disputa simboacutelica que de certa forma seguiremos ateacute o final do trabalho E nesta o aspecto

ldquoreflexivo permanenterdquo que passaraacute caracterizar a sociedade ocidental contemporacircnea no

chamado processo de secularizaccedilatildeo Com efeito a secularizaccedilatildeo eacute um dos efeitos mais

marcantes da disputa entre religiatildeo e ciecircncia Por seu caraacuteter e autoridade respaldados na

pesquisa cientiacutefica a secularizaccedilatildeo tem-se constituiacutedo como um dos principais fatores

responsaacuteveis pela globalizaccedilatildeo cultural e econocircmica que hoje penetra na maioria das sociedades

do mundo ateacute mesmo as natildeo ocidentais

Na medida em que a pesquisa cientiacutefica produz efeitos materiais imediatos termina por

tornar-se necessaacuteria e mesmo indispensaacutevel ateacute mesmo para alguns setores da esfera religiosa

pois funciona como recurso eficiente para o aperfeiccediloamento e esclarecimento das mensagens e

questotildees religiosas que envolvem lsquocomprovaccedilatildeo cientiacuteficarsquo Na sociedade secularizada

portanto o pensamento cientiacutefico natildeo aparece mais como ameaccedilar agrave sobrevivecircncia do

pensamento religioso ao contraacuterio as chamadas ldquonovas religiotildeesrdquo frequentemente recorrem agrave

ciecircncia como instacircncia de legitimaccedilatildeo como se pode ver no espiritismo e nas inuacutemeras religiotildees

da ldquonova Erardquo (SILVA M 2000) Poreacutem natildeo se pode dizer o mesmo em relaccedilatildeo a seus efeitos

e desdobramentos sobre a vida e a sauacutede a doenccedila e a cura onde esta aparece muitas vezes

como insuficientes e ateacute mesmo inoperante no discurso de inuacutemeros muitos doentes (SILVA

MP 207)

Com efeito embora nos uacuteltimos seacuteculos o sistema cientiacutefico tenha suplantado oficial e

culturalmente o sistema religioso recorrendo ateacute mesmo agrave forccedila da lei para obter seu intento ateacute

hoje os perseguidos reivindicam seu direito agrave assistecircncia meacutedico-espiritual de seus pacientes

Nesse sentido a legitimaccedilatildeo proporcionada pelos atores sociais tem demonstrado ser mais

poderosa do que imaginaram os burocratas oficiais Todo o aparato oficial e todos os esforccedilos

no sentido de separar os diversos setores de atuaccedilatildeo natildeo foram capazes de romper a ligaccedilatildeo

seminal entre estes dois sistemas centrais de conhecimento pois embora autocircnomos

inevitavelmente caminham por vias paralelas perpassando todos os setores do conhecimento

humano e fornecendo explicaccedilotildees agrave compreensatildeo do universo e orientando as accedilotildees humanas O

mesmo pode-se dizer dos sistemas e rituais de cura onde os pacientes parecem acreditar que

quanto mais recursos utilizar para se curar mais eficiecircncia obteraacute

Do ponto de vista oficial os sistemas de cura popular satildeo vistos como uma ameaccedila agrave sauacutede

puacuteblica Este eacute o segundo aspecto fundamental neste debate que gostariacuteamos destacar pois

malgrado o enorme aparto oficial em defesa da medicina cientiacutefica e da enorme repressatildeo dos

poderes constituiacutedos sobre os ldquosistemas populares de curardquo ao contraacuterio da medicina oficial

esta conta com a legitimidade de largos setores da populaccedilatildeo destituiacuteda de recursos e de

educaccedilatildeo formal (mas natildeo exclusivamente desta) para as quais a medicina formal eacute taxada de

cara inoperante fria e indiferente ao sofrimento dos pacientes (Ibid) Eacute o que discutiremos a

seguir

Ciecircncia e religiatildeo vida e sauacutede doenccedila e cura

Ao contraacuterio do que supunha Durkheim quando afirmou ldquoas ciecircncias da natureza puderam

estabelecer-se e fazer reconhecer a sua autoridade sem grandes dificuldadesrdquo (Durkheim op cit

P 508) em certos setores a autoridade cientiacutefica natildeo obteve tatildeo facilmente a aceitaccedilatildeo esperada

E o mais interessante eacute que esse fenocircmeno natildeo se daacute apenas entre as camadas despossuidas da

populaccedilatildeo embora nestas seja muito maior Na biomeacutedica diante de todas as conquistas

passadas e recentes era de se esperar que a ciecircncia natildeo teria dificuldade de se afirmar e

facilmente sobrepujaria os ruacutesticos sistemas populares e miacutesticos de cura Mas natildeo foi isso que

aconteceu nem mesmo na Europa Tudo parece indicar que a aceitaccedilatildeo popular eacute um processo

bem mais complexo do que aparenta Ora durante milecircnios era a religiatildeo que provia todas as

necessidades humanas Em todas as civilizaccedilotildees a religiatildeo aparece como coacutedigo de conduta

individual e social bem como de eacutetica e de cura para a manutenccedilatildeo da sauacutede fiacutesica moral e

social constituindo amplos sistemas interligados sem soluccedilatildeo de continuidade Nas sociedades

arcaicas e antigas o sacerdote era tambeacutem o meacutedico (curandeiro pajeacute xamatilde etc)

Segundo George Ohsawa (1979) meacutedico macrobioacutetico de origem japonesa a finalidade das

cinco grandes religiotildees vaacuterias vezes milenares inventadas no Oriente antes de tudo parece ser

a de salvar os seres humanos de suas ldquoquatro maiores afliccedilotildees fisioloacutegicasrdquo (o sofrimento de

viver o sofrimento da doenccedila o sofrimento da velhice e o sofrimento da morte) Ao contraacuterio

do que muitos pensam para ele estas religiotildees seriam verdadeiros ldquotratadosrdquo onde as pessoas

devem buscar orientaccedilatildeo para conseguir a sauacutede a longevidade e a manutenccedilatildeo da juventude

fatores que constituiriam a base fundamental para o ser humano encontrar a felicidade e a

liberdade (OHSAWA 1979 9)

Na Iacutendia a medicina teve origem na tradiccedilatildeo Vede (palavra sacircnscrita que significa

aprendizado conhecimento) O livro Ayurvede (Vede da longa vida) era especificamente

dedicado agrave medicina Eram textos sagrados revelados por entidades divinas onde as referecircncias

histoacutericas entrelaccedilavam-se com lendas A tradiccedilatildeo foi seguida do periacuteodo bramacircnico IX aC

que marca o apogeu da medicina indiana (MARGOTA 1998 16)

A biomeacutedica eacute muito jovem em comparaccedilatildeo com os milenares sistemas populares Ao

contraacuterio da medicina oficial as medicinas tradicionais satildeo holiacutesticas natildeo separam mente

corpo e espiacuterito enquanto que a biomeacutedica baseia-se em princiacutepios mecanicistas e materialistas

A medicina popular eacute milenar e facilmente acessiacutevel Toda matildee e toda avoacute tem acesso agrave praacuteticas

simples e em geral eficientes grandemente enriquecidas pelo carinho e pelo dedicaccedilatildeo dos

familiares Do ponto de vista do paciente a assistecircncia emocional e espiritual ndash sobretudo nos

casos mais delicados ndash e que estaacute inteira ou parcialmente ausente da medicina oficial eacute

fundamental em todas as etapas do tratamento nos sistemas populares A biomeacutedica origina-se

numa cultura que soacute eacute acessiacutevel a intelectuais E o Ocidente adotou exatamente o ramo racional

da medicina grega que era materialista e mercenaacuteria (SILVA M 20002007)

Segundo os interpretes da Iliacuteada na eacutepoca de Homero na Greacutecia a medicina era o oposto

da Iacutendia natildeo se baseava na magia nem na religiatildeo era uma disciplina independente praticada

por profissionais pagos (Op cit 22-23) Muito provavelmente aiacute se encontram as bases da

medicina ocidental contemporacircnea porque o caraacuteter mercenaacuterio da medicina grega descrita em

Homero soacute encontra paralelo no Ocidente moderno

Ainda assim com o tempo a influecircncia oriental foi deixando sua marca sobre a cultura

grega e a medicina grega foi se tornando mais sacerdotal As praacuteticas meacutedicas sacerdotais

alastraram-se por toda a Greacutecia durante o seacuteculo V a C permanecendo em uso ateacute os seacuteculos

IV ou V d C periacuteodo no qual o culto a Esculaacutepio (deus da cura) funde-se ao dos santos da era

Cristatilde (Ibid)

A civilizaccedilatildeo ocidental moderna foi muito aleacutem da grega separando todas instacircncias da

vida que nas tradiccedilotildees arcaicas e antigas eram interligadas e constitutivas da esfera do sagrado

Na chamada sociedade poacutes-tradicional (Giddens 1997) a maior parte das funccedilotildees antes

atribuiacutedas agrave religiatildeo passaram para a alccedilada dos especialistas laicos Os meacutedicos os psicoacutelogos

os advogados os administradores os especialistas em geral passaram a ser as autoridades

Como vimos os especialistas natildeo conseguiram responder satisfatoriamente a inuacutemeras

questotildees que embora bastante antigas continuam a atormentar o homem contemporacircneo Uma

destas questotildees mal resolvidas eou natildeo satisfatoriamente explicadas pela ciecircncia ocidental eacute

exatamente a cura Para a proacutepria ciecircncia a cura ainda eacute em muitos casos um fenocircmeno

misterioso e inexplicaacutevel e a medicina estaacute muito longe de conseguir a cura para todos os males

A ciecircncia ocidental eacute um sistema altamente mercantilista Os grandes laboratoacuterios satildeo acusados

de retardar a cura de certos males quando as possibilidades de satildeo limitadas Os doentes

crocircnicos natildeo satildeo devidamente assistidos porque em geral essas doenccedilas natildeo matam

Especificamente no que diz respeito agrave sauacutede na praacutetica as conquistas e as orientaccedilotildees da

biomeacutedica ainda deixam muito a desejar e isso por inuacutemeros fatores Primeiro eacute uma medicina

dispendiosa necessita de muito investimento financeiro para custear seus sofisticados

instrumentos e dispendiosos medicamentos industrializados que em geral tecircm muitos efeitos

colaterais indesejaacuteveis

Esta seria talvez uma das razotildees da aceitaccedilatildeo das soluccedilotildees de cura propostas pelas

diferentes correntes religiosas e ou miacutesticas No Brasil a umbanda o espiritismo o Santo

Daime as igrejas pentencostais em geral a catoacutelica atraveacutes das promessas aos santos bem

como as inuacutemeras fraternidades esoteacutericas continuam a ocuparem-se da cura dos males fiacutesicos

emocionais e morais dos fieacuteis apesar das legislaccedilotildees proibitivas E o mais curioso eacute que a

religiatildeo natildeo apenas natildeo abdicou de sua atribuiccedilatildeo da cura como as diferentes formas miacutestica de

tratamento tem-se ampliado e se diversificado grandemente na modernidade

Natildeo sei se seria correto falar em lsquoreaccedilatildeorsquo mas a verdade eacute que a disputa que se origina com

o desenvolvimento cientiacutefico e que deu origem ao movimento de secularizaccedilatildeo que levou agrave

contestaccedilatildeo do sistema religioso dominante no Ocidente o catolicismo na modernidade

termina por favorecer o surgimento de religiotildees individualizadas e de novas religiotildees nacionais

e estrangeiras

Mas o fato eacute que a expansatildeo da ciecircncia na sociedade ocidental moderna foi reduzindo o

campo de accedilatildeo da religiatildeo fazendo com que esta natildeo pudesse mais desempenhar as mesmas

funccedilotildees que no passado era de sua alccedilada Ao contraacuterio do que pensavam muitos para

Durkheim a religiatildeo estaria sendo chamada a se transformar mais do que desaparecer (Op cit P

508) Ele tinha razatildeo eacute exatamente isso que se verifica hoje A ciecircncia continua expandindo-se

cada vez mais inclusive com um novo olhar para a religiatildeo Com efeito depois de seacuteculos de

tentativa de desacreditar as supostas ldquoverdades religiosasrdquo em alguns setores do pensamento

cientiacutefico vislumbram-se encaminhamentos no sentido da cooperaccedilatildeocompreensatildeo em lugar

da negaccedilatildeo e da simples imposiccedilatildeo E o mais interessante eacute que embora por motivos diferentes

de ambas as partes estaacute ocorrendo hoje uma espeacutecie de movimento em matildeo dupla tanto da

ciecircncia em direccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo como se vecirc na fiacutesica quacircntica e em alguns ramos da biomeacutedica

como das novas religiotildees em direccedilatildeo agrave ciecircncia

De fato nos uacuteltimos trinta anos observa-se na sociedade ocidental um crescente interesse

por parte de alguns profissionais da sauacutede em utilizar antigas tradiccedilotildees como a alimentaccedilatildeo

natural a fitoterapia o relaxamento a acupuntura a ioga entre outras como coadjuvante da

medicina oficial Isso eacute facilmente constataacutevel pelo crescente nuacutemero de institutos211 de

pesquisas com este fim e consequumlentes publicaccedilotildees bem como o surgimento de novas

especialidades meacutedicas que unem a ciecircncia moderna e os conhecimentos milenares (SILVA M

1989- 2000)

Por outro lado diversas formas de conhecimento e decisotildees na aacuterea religiosa hoje estatildeo

sujeitas ao julgamento de cientistas uma vez que a ciecircncia ocidental moderna constitui-se como

211 Na Inglaterra o New Englad Memorial Hospital eacute uma das instituiccedilotildees pioneiras que une a medicina Ayuveacutedica `a ocidental Nos Estados Unidos existem inuacutemeros centros e universidades que incluem o estudo de conhecimentos milenares em seus curriacuteculos A Califoacuternia eacute uma das regiotildees mais ativas neste sentido Um dos mais famosos centros eacute o Sharp Institute for Human Potencial and MindBody Medicine em San Diego O instituto oferece terapias mentecorpo e ayurveacutedicas tanto para pacientes externos quanto para residentes em associaccedilatildeo com o Center Form MindBody Medicine treinamento em medicina mentecorpo e ayurveacutedicas para profissionais da aacuterea da sauacutede e para o puacuteblico em geral e pesquisas para confirmar a eficaacutecia dos tratamentos mentecorpo Maiores informaccedilotildees podem ser obtidas atraveacutes do telefone 1-800-82-SHARP No Brasil a pioneira neste tipo de estudo eacute a USP Hoje a acupuntura teacutecnica milenar chinesa eacute oferecida em todo o paiacutes tendo sido oficialmente aceito e hoje eacute empregado tanto pelo INSS como por inuacutemeros planos de sauacutede privado

a instacircncia de legitimaccedilatildeo do conhecimento mais importante Eacute o caso da comprovaccedilatildeo de

milagres perante a Igreja Catoacutelica nos processos de canonizaccedilatildeo por exemplo

O proacuteprio misticismo da Nova Era procura se revestir de um caraacuteter cientiacutefico colocando-

se assim numa situaccedilatildeo ateacute certo ponto ambiacutegua pois ao mesmo tempo em que critica a

ciecircncia materialista ocidental (que continua sendo o conhecimento hegemocircnico) a ela recorre

em busca de respaldo e de legitimaccedilatildeo (Ibid 2000) Visto dessa forma tudo isso pode parecer

extremamente confuso e realmente eacute Pois ao mesmo tempo em que parece estar se processando

uma espeacutecie de fusatildeo entre o tradicional e o moderno o misticismo propotildee uma visatildeo diversa

daquela da ciecircncia moderna Na grande Rede Internacional da Nova Era a cura dos males

humanos a realizaccedilatildeo do homem integral (corpomenteespiacuterito) a partir de uma visatildeo holiacutestica

aparece como uma das preocupaccedilotildees fundamentais (SILVA M 2000 e AMARAL 2001)

Nesse processo de adaptaccedilotildees e mudanccedilas estas podem se dar atraveacutes das mais estranhas

formas de ressignificaccedilatildeo A esse respeito tivemos oportunidade de presenciar cerimocircnias

realizadas por xamatildes em San Cristobaacuten de las Casas no Meacutexico em 2004 e tambeacutem no museu

da cultura Maia onde estes pela dificuldade de conseguir os ingredientes de preparaccedilatildeo das

bebidas preparadas com ervas utilizadas nos rituais de cura a estavam substituindo por

refrigerantes Para eles o ritual natildeo perde a eficaacutecia em razatildeo desta substituiccedilatildeo Muitos

pacientes chegam curar-se de doenccedilas graves somente com o apoio da feacute Eacute o milagre da cura

que a ciecircncia constata mas natildeo explica Mas os pacientes carecem de explicaccedilatildeo e a dos

cientistas natildeo os satisfaz Eles necessitam de uma explicaccedilatildeo mais abrangente

As mulheres testemunhas de Jeovaacute viacutetimas do diabetes por exemplo entrevistadas pela

antropoacuteloga mexicana Elia Juarez (1998) acreditam que males como o diabetes assinalam o fim

dos tempos Para elas eacute chegada a hora de um novo reino de Deus as doenccedilas satildeo

oportunidades que Ele nos daacute de refletir e de tomar consciecircncia da vontade divina Soacute nos cabe

pedir consolo a Jeovaacute ante o sofrimento e dar graccedilas pela vida que ele nos concede Seu estudo

com diabeacuteticos idosos baseado em Geertz ilustra bem a importacircncia da religiatildeo na vida destes

enfermos

considero que la religioacuten como sistema de siacutembolos que les permite enteder y dar um significado a su experiecircncia com com la enfermidad estabelecer estados aniacutemicos de aceptacioacuten o rechazo ante su situacioacuten asiacute como motivaciones para seguir o no los tratamientos que les recomiendan de esta manera en el enfrentamiento cotidiano de su padecer el vieejo com diabetes redefine los elementos simboacutelicos aprendidos a lo largo de su vida y asumidos como parte de su identidad religiosa para una explicacioacuten a su existecircncia

Aqui mais uma vez somos obrigados a concordar com Durkheim quando afirma ldquoa ciecircncia

natildeo pode substituir a religiatildeo enquanto accedilatildeo enquanto meio de fazer os homens viveremrdquo

(DURKHEIM op cit P 508) Neste ponto consideramos bastante apropriado a assertiva de

Simmel a respeito da religiatildeo Para ele ldquoo homem eacute naturalmente religiosordquo A religiosidade eacute

um modo de ser do ser humano quer ela tenha ou natildeo uma caracteriacutestica que possa ser ou natildeo

incorporada numa feacute Religiatildeo natildeo seria o correspondente subjetivo de um objeto transcendente

pelo contraacuterio seria um processo que submete a si todo conteuacutedo da experiecircncia vital tornando-

o precisamente ldquoreligiosordquo (SIMMEL apud MARTELLI 1995 243) Nesse sentido toda a

experiecircncia humana pode ser assumida sob o ldquoa priorirdquo religioso Consoante Simmel existem

trecircs acircmbitos da vida nos quais as probabilidades que tal atividade geneacuterica plasme siacutembolos

religiosos satildeo mais altas trata-se do comportamento humano diante da natureza da proacutepria

sorte e a dos outros seres humanos (Ibid) Diriacuteamos que esta interpretaccedilatildeo de Simmel nos

ajuda a entender a relaccedilatildeo entre cura e religiatildeo em seu sentido mais amplo Porque a religiatildeo nos

faz acreditar que somos parte de algo muito maior do que uma simples e finita comunidade

humana Tanto em Durkheim como em Simmel o poder de integraccedilatildeo atraveacutes da difusatildeo e

manutenccedilatildeo de ideais elevados constituiria uma das funccedilotildees mais importantes da religiatildeo Em

Simmel a religiatildeo exprime a forma socioloacutegica da reciprocidade que ele denomina de unidade

de grupo (SIMMEL 1997 P 57)

O saber curativo lsquocarismaacuteticorsquo proposto pelos profetas da Nova Era eacute bem mais complexo

que o da nossa tradiccedilatildeo popular Neste sistema a visatildeo da cura dos males humanos parte de uma

perspectiva holiacutestica (corpomenteespiacuterito) e eacute essencialmente individual em todos os sentidos

Eacute uma cura pessoal deve ser conseguida peccedilo proacuteprio paciente No maacuteximo pode dispor de um

mestre para auxiliaacute-lo

Como tatildeo apropriadamente saliente Amaral (2001) em Carnaval da Alma comunidade

essecircncia e sincretismo na Nova Era o sistema carismaacutetico da Nova Era eacute essencialmente

aberto Para a referida autora na Nova Era a cura eacute quase uma obsessatildeo (AMARAL 2001 P

61)

Trata-se de uma quase obsessatildeo uma atitude de suspeita permanente em relaccedilatildeo ao mundo

contemporacircneo que se expressa no discurso da Nova Era como uma crise avassaladora que assola o

planeta () Trata-se enfim da restauraccedilatildeo da sauacutede da Terra concebendo-a como ldquoa grande

reconciliaccedilatildeordquo ()

Na busca dessa transformaccedilatildeo radical cura e salvaccedilatildeo acabam por se tornar sinocircnimos e a

afirmaccedilatildeo primeira em resposta a esse objetivo eacute categoacuterica e recorrente na Nova Era a ldquodoenccedilardquo e

o ldquomedordquo que a acompanha satildeo provocados pela ldquo ilusatildeo da separaccedilatildeordquo e seus efeitos perversos no

mundo fiacutesico emocional social e planetaacuterio Os males da modernidade e da civilizaccedilatildeo proviriam

em uacuteltima instacircncia da alienaccedilatildeo do ego dos outros planos da existecircncia para aleacutem dos seus proacuteprios

limites e dos da mateacuteria (Ibid)

Ela classifica os processos de cura da Nova Era em dois tipos a cura harmocircnica e a cura

xamacircnica

No primeiro tipo curar significa harmonizar as energias do corpo de maneira que elas

ressoem com as mais amplas forccedilas e leis da natureza Segundo a teoria do Magnetismo

Planetaacuterio desenvolvida por Mesmer existiria uma seacuterie de substacircncias produzindo efeitos umas

sobre as outras devido a sua fluidez e atraveacutes de sua sutileza elas penetrariam e preencheriam

todos os interstiacutecios Segundo este autor todo ser humano irradiaria um fluido magneacutetico que

pode influenciar as mentes e os corpos de outras pessoas atraveacutes do desejo A cura entatildeo pare

ele seria a transmissatildeo diretamente do curador para o paciente de uma forccedila vital que ele

denomina de ldquomagnetismo animalrdquo (Op cit 63)

No modelo harmonial curar significa transforma-se no sentido do reencontro da pessoa com

a totalidade entendida como junccedilatildeo a ligaccedilatildeo do espiacuterito agrave mateacuteria e da mente agrave substacircncia

fiacutesica (Op cit64)

Jaacute no modelo xamacircnico ao contraacuterio do anterior curar significa ldquoviajarrdquo para o reino da natildeo

mateacuteria no qual as forccedilas sutis se transmudam em substacircncia material isto eacute a mateacuteria se

dissolve na energia e reconfigura-se como mateacuteria Atraveacutes da visualizaccedilatildeo criativa o xamatilde

seja o proacuteprio paciente ou o curador procura penetrar o mais profundamente possiacutevel na mateacuteria

(o interior do seu corpo) a ponto de sentir-se naquele reino no qual a natureza natildeo se mostra

mais como blocos baacutesicos de construccedilatildeo isolados isto eacute objetos soacutelidos fixos e acabados em si

mesmos mas apenas como ondas de luz (Op cit 65)

Em suma no modelo xamacircnico curar significa transformar-se no sentido do reencontro da

pessoa com a totalidade entendida como abertura vastidatildeo ou passagem enfatizando mais o

sentido de comunicaccedilatildeo incessante e ilimitada do que o sentido de relaccedilotildees reificadas ou

substancializadas (Ibid)

Na praacutetica no entanto frequumlentemente os meacutedico e popular podem aparecem mescladas

porque existem numa realidade essencialmente dinacircmica e de alguma forma podem interferir

uns nos outros conforme as circunstacircncias e disposiccedilotildees do especialista e do doente

Eacute importante ressaltar tambeacutem que a contestaccedilatildeo agraves estruturas estabelecidas hoje eacute

celebrada e estimulada Em consequumlecircncia a estrutura tornou-se flexiacutevel para acomodar a

mudanccedila O processo eacute bem mais dinacircmico do que no passado e permite estudar a mudanccedila no

momento mesmo em que estaacute se processando

Agrave medida em que sobrevivem e de alguma forma convivem todos estes sistemas de saber

curativo satildeo legiacutetimos pois foram legitimados pelos usuaacuterios que os aceitam e neles confiam

Frequumlentemente haacute disputas entre os diferentes sistemas desde que os partidaacuterios de algum

deles se sintam prejudicados pelos outros

Na sociedade ocidental contemporacircnea as elites dominantes tentaram em vatildeo desacreditar

as medicinas tradicional e maacutegica chegando mesmo a impor leis proibitivas agraves suas praacuteticas e

perseguindo seus praticantes Contudo apesar das longas e interminaacuteveis disputas e da forccedila

institucional a medicina oficial natildeo conseguiu erradicar a medicina milenar nem mesmo pela

lsquoforccedila da leirsquo E natildeo consegue por vaacuterias razotildees Entre noacutes o alto custo da medicina alopaacutetica eacute

um deles O estado que impotildee as leis proibitivas natildeo oferece a infra-estrutura nem os recursos

necessaacuterios ao cumprimento das mesmas

Mas talvez a maior razatildeo do natildeo desaparecimento dos sistemas de cura tradicional e

maacutegica seja mesmo a visatildeo mecanicista que embasa a medicina cientiacutefica e que deixa o

paciente sem amparo humano emocional ou espiritual quando estes se fazem necessaacuterio De

fato enquanto a medicina oficial se restringe aos aspectos puramente fisioloacutegicos da doenccedila as

medicinas popular e maacutegica abrangem um espectro bem mais amplo incorporando os campos

simboacutelicos espiritual psicoloacutegicos e emocionais dos pacientes Este suporte eacute essencial

principalmente nos casos de doenccedilas graves ou de males crocircnicos Essa carecircncia da medicina

oficial deixa uma enorme vazio que leva os pacientes a buscar soluccedilotildees em outros sistemas seja

ele a religiatildeo a tradiccedilatildeo ou a magia ou todos os sistemas em conjunto inclusive o oficial

No Brasil como no Ocidente em geral o sistema preponderante eacute o hegemocircnico que eacute

aceito principalmente pelas camadas ilustradas e instruiacutedas da populaccedilatildeo O sistema popular

sobrevive principalmente na zona rural e nos subuacuterbios das grandes cidades sendo utilizado

sobretudo pelas camadas menos instruiacutedas e pior servidas pela medicina oficial Mas isso natildeo

quer dizer que as camadas mais instruiacutedas e economicamente mais elevadas estejam ausentes

dos sistemas tradicionais principalmente quando satildeo acometidas por doenccedilas graves ou

crocircnicas

Pode-se afirmar seguramente que quanto maior a gravidade do mal que se deseja curar

maior seraacute a probabilidade de doente buscar auxiacutelio em diferentes sistemas de cura ao mesmo

tempo Um bom exemplo eacute o dos catoacutelicos de todos os niacuteveis sociais que acorrem aos

santuaacuterios de Faacutetima em Portugal Aparecida em Satildeo Paulo Juazeiro no Cearaacute ou outros em

busca de um milagre

O inverso tambeacutem eacute verdadeiro Quanto menor a gravidade do um mal menor seraacute a

probabilidade de busca de outras opccedilotildees Quando um uacutenico sistema satisfaz o paciente e seus

familiares natildeo haacute razatildeo para recorrer a outros sistemas

Outro fator que facilita esta mobilidade entre os vaacuterios sistemas eacute o amplo leque de opccedilotildees

de cura agrave disposiccedilatildeo na sociedade ocidental moderna e a inoperacircncia do sistema de saber

curativo oficial

Medicina oficial versus medicina alternativa

Haacute aproximadamente trinta anos um nuacutemero cada vez maior de profissionais do sistema de

saber curativo oficial comeccedila a aderir agrave chamada lsquomedicina alternativarsquo Com efeito inuacutemeros

profissionais da sauacutede incorporaram sistemas tradicionais de cura como coadjuvante em seus

tratamentos convencionais entre outros a fitoterapia a acupuntura a meditaccedilatildeo transcendental

a ioga entre outros para tratar seus pacientes (SILVA M op cit 1989 e GIDDENS 2006 P

129) como podemos constatar nos exemplos a seguir Dr A R meacutedico pediatra com curso de

Mestrado e Residecircncia no Rio de janeiro professor universitaacuterio (PB) aderiu agrave macrobioacutetica e a

Homeopatia em 1974 por motivo de sauacutede

O que me encucava na medicina eram as limitaccedilotildees em relaccedilatildeo a certas doenccedilas como asma cacircncer

amigdalite crocircnica etc Foi esse motivo que me levou agrave procurar alternativas como Homeopatia Do-In

Acupuntura Moxa-bustatildeo A massagem eu considero um tratamento mais integral ele elimina a doenccedila

e acalma a crianccedila O problema eacute que os brasileiros estatildeo condicionados ao uso de medicamentos por

isso eu alio a massagem ao tratamento homeopaacutetico(Silva 1998 91)

Segundo Dr G S C cliacutenico geral professor universitaacuterio (PE) adepto da acupuntura

moxabustatildeo homeopatia e fitoterapia

A cura de todas as doenccedilas a cura do cacircncer estaacute muito relacionada com as condiccedilotildees

de consciecircncia haacute no organismo de cada um a substacircncia curativa o homem pode se auto-

curar A condiccedilatildeo fraacutegil de sauacutede que temos hoje se deve agrave ignoracircncia do homem da verdadeira

realidade As ciecircncias que fazem parte do componente das medicinas alternativas satildeo muito

antigas muito sutis muito especiais A medicina ocidental eacute muito nova muito pouco

explorada daiacute seus efeitos colaterais

Dr G B V psiquiatra (PE) depois de utilizar a ioga para tranquumlilizar a si proacuteprio passou a

utilizaacute-la tambeacutem em seus pacientes

Busquei na ioga a tranquumlilidade para mim mesmo Continuei meus estudos e graccedilas aos livros me iniciei no meu trabalho de busca de tranquumlilidade e de crescimento interior Alguns anos mais tarde 1977 usei a ioga de forma experimental com pacientes que estavam sofrendo ou passando uma ldquoviagemrdquo psicoacutetica Para a grande maioria a ioga permitiu um maior auto-domiacutenio atraveacutes da respiraccedilatildeo Ela ajudou a diminuir os estados depressivos e de ansiendade A praacutetica da respiraccedilatildeo ajuda em todos os sentidos Nos estados patoloacutegicos de esquisofrenia profunada eu natildeo consegui nenhuma melhora No entanto o conceito da ioga vem modificando a nossa ideacuteia de Deus que eacute limitada a um Deus castrador isso ajuda a qualquer tipo de doenccedila mental

Para Simmel somente na esfera religiosa seria possiacutevel realizar simbolicamente a unidade

da sociedade isto eacute aquela coesatildeo perfeita do grupo imune agraves rivalidades da competiccedilatildeo entre

os membros porque na vida cotidiana significa tensatildeo destinada a ser permanentemente

frustrada (MARTELLI 1995 P 250)

Considerando verdadeiro os argumentos de Durkheim e Simmel a respeito do papel da

religiatildeo na coesatildeo social diriacuteamos que os fatos parecem indicar que a ciecircncia jamais conseguiraacute

substituir completamente a religiatildeo sobretudo em seus aspectos simboacutelicos espirituais e

emocionais acircmbitos sobre os quais as possibilidade de controle cientiacutefico satildeo muito limitadas

Reflexotildees finais

Diriacuteamos que em relaccedilatildeo ao embate entre medicina e religiatildeo no Brasil hoje embora o

sistema de saber curativo legal seja predominantemente aceito (principalmente pelas camadas

sociais media e alta (mas natildeo exclusivamente) o prestiacutegio dos sistemas de saber curativo

tradicional (popular) e carismaacutetico (miacutestico) satildeo extremamente significativos para a populaccedilatildeo

como um todo E estes uacuteltimos embora sejam predominantemente utilizados pelas camadas

meacutedia e baixa tecircm uma significativa penetraccedilatildeo nas camadas elevadas e instruiacutedas da

populaccedilatildeo especialmente o espiritismo a chamada medicina alternativa da Nova Era

Como vimos os esforccedilos para sobrepujar os sistemas curativos tradicionais parecem natildeo ter

surtido o efeito desejado Diriacuteamos que a imposiccedilatildeo do saber curativo cientiacutefico como o uacutenico

vaacutelido teve um lsquoefeito colateralrsquo indesejado As tentativas dos oacutergatildeos oficiais natildeo apenas natildeo

foram capazes de sobrepujar os sistemas tradicional e carismaacutetico como natildeo os impediu de

crescer e adquirir ainda mais em prestiacutegio e aceitaccedilatildeo do antes A prova disso eacute o crescente

interesse da ciecircncia biomeacutedica pelo saber curativo tradicional e carismaacutetico

O interesse da biomeacutedica pelos sistemas tradicionais eacute visto por alguns como negativo uma

vez que na pode redundar em apropriaccedilatildeo do saber popular pelos setores oficiais e proibiccedilatildeo das

praacuteticas dos profissionais populares De fato isso tem ocorrido com frequumlecircncia A verdade eacute

que na praacutetica mesmo sem interferecircncia do poder oficial frequumlentemente os sistemas meacutedico

popular e religioso aparecem mesclados porque a realidade eacute essencialmente dinacircmica e de

alguma forma os diverso setores podem interferir uns nos outros conforme as circunstacircncias e

disposiccedilotildees dos especialistas e dos doentes

No que diz respeito agrave religiatildeo em si a questatildeo eacute bem mais complexa porque envolve

aspectos simboacutelicos espirituais e emocionais acircmbitos sobre os quais as possibilidade de

controle cientiacutefico ainda satildeo muito limitadas se comparadas aquelas obtidas em niacuteveis mais

concretos de realidade

Tudo parece indicar que enquanto o saber curativo oficial se restringir aos aspectos

puramente fisioloacutegicos da doenccedila continuaraacute a sofrer a concorrecircncia dos sistemas de cura

tradicional maacutegico e religioso que oferecem aos pacientes natildeo apenas um suporte fiacutesico mas

tambeacutem simboacutelico espiritual psicoloacutegico e emocional A biomeacutedica estaacute se dando conta disso

como comprovam os recentes incentivos oficiais agrave medicina psicossomaacutetica a fitoterapia e a

sistemas como acupuntura e meditaccedilatildeo entre outros Nesse sentido diriacuteamos que alguns

profissionais do setor cientiacutefico parecem se dar conta de que a ciecircncia natildeo pode abranger todos

os campos do saber pois por suas proacuteprias caracteriacutesticas inuacutemeros fenocircmenos lhe escapam e

que por isso mesmo eacute muito mais vantajoso para todos somar esforccedilos do que dividir E em

todo esse processo natildeo se deve desconsiderar os atores sociais e o senso comum pois no final

satildeo eles os verdadeiros legitimadores do saber

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WEBER Max A eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismo Satildeo Paulo Ed Martin Claret 2001

Biodiversidade e Modernidade212

Paulo Agostinho N Baptista213

ldquoSoacute uma sociedade bem informada a respeito da riqueza do valor e da importacircncia da biodiversidade eacute capaz de preservaacute-lardquo

Washington Novaes

ldquoO progresso daacute-nos tanta coisa que natildeo nos sobra nada nem para pedir nem para desejar nem para jogar forardquo Carlos Drumond

Introduccedilatildeo

Eacute muito provocativo no contexto em que vivemos articular essas duas questotildees

importantes ldquobiodiversidade e modernidaderdquo Comeccedilamos refletindo sobre o que eacute a

modernidade o que ela representou e representa O seu advento significou uma profunda

mudanccedila na histoacuteria Surge um novo paradigma Na esteira dessa mudanccedila se estrutura nova

compreensatildeo da razatildeo e o desenvolvimento das ciecircncias Ela surge junto ao lado de outra

mudanccedila a cosmoloacutegica ndash a terra natildeo eacute mais o centro O universo se apresenta diverso A

ciecircncia comeccedila a se desenvolver na perspectiva das descobertas de outras diversidades

Depois desse olhar passamos a refletir sobre o conceito ldquobiodiversidaderdquo seu

surgimento e suas implicaccedilotildees Natildeo foi possiacutevel o aparecimento desse conceito sem o ambiente

criado pela modernidade especialmente de suas contradiccedilotildees Mas o locus mais imediato da

emergecircncia dessa categoria eacute a consciecircncia de que a diversidade da vida estaacute ameaccedilada

acontece no contexto do paradigma ecoloacutegico Finalmente o momento de fazer aproximaccedilotildees

questionamentos e trazer problemas sobre a relaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade

A modernidade um paradigma marcante

Etimologicamente modernidade eacute um termo latino provindo do adveacuterbio ldquomodordquo que

significa recentemente ocorrido haacute pouco A palavra segundo Lima Vaz soacute aparece como

212 Este tema foi apresentado oralmente no VI Simpoacutesio do ICH ndash PUC Minas ndash ldquoParadigmas Perdidos Ciecircncias Humanas Cultura e Subjetividaderdquo em 24 de setembro de 2008 na mesa redonda ldquoBiodiversidade e modernidaderdquo Participaram tambeacutem da mesa a professora Uacutersula Ruchkys de Azevedo e o professor Alfeu Trancoso de Campos A presente comunicaccedilatildeo se baseou na estrutura de 2008 foi atualizada e agora desenvolvida como texto 213 Doutor em Ciecircncia da Religiatildeo (UFJF) professor e coordenador de Cultura Religiosa da Poacutes-graduccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo da PUC Minas E-mail pagostingmailcom

substantivo na Franccedila em meados do seacuteculo XIX214 O vocaacutebulo ldquomodernordquo poreacutem jaacute se faz

presente na idade meacutedia ndash seacuteculo XIV215 Para Habermas que se refere a estudos de Hans R

Jauss modernus eacute uma expressatildeo que surge no seacuteculo V fazendo a distinccedilatildeo entre o passado

(romano e pagatildeo) e o presente cristatildeo216 Haacute nesse conceito a ideacuteia de uma consciecircncia existe

uma nova eacutepoca diferente da antiga Mas essa consciecircncia soacute eacute possiacutevel a partir do momento

em que se quebra o esquema do tempo repetitivo do mito do eterno retorno com o

aparecimento da filosofia na Greacutecia Diz Lima Vaz que a modernidade eacute a

estruturaccedilatildeo modal na representaccedilatildeo do tempo em que este passa a ser representado como uma sucessatildeo de modos ou de atualidades constituindo segmentos temporais privilegiados pela forma de Razatildeo que neles se exerce Nesse sentido o tempo eacute vivido como propriamente histoacuterico e nele alguma coisa acontece que pode ser chamada qualitativamente moderna [] a modernidade emerge como diferenciaccedilatildeo modal do tempo histoacuterico ou como segmento privilegiado do lsquotempo do conceitorsquo217

Foi quando o homem se colocou diante de si da natureza e do mundo se perguntando o

que sou eu o que eacute a realidade que ele rompeu o esquema do mito Vendo-se diferente diante

e frente a frente com a realidade o ser humano teve a consciecircncia da delimitaccedilatildeo e a partir daiacute

abre-se o caminho da criaccedilatildeo do conceito do meacutetodo enfim da racionalidade loacutegica Aqui

surge a filosofia trazendo ao presente a possibilidade de avaliar compreender e julgar o

passado ou ainda de apontar o novo o diferente E tudo isto tem lugar na Greacutecia por volta

do seacuteculo VI a C

Modernidade portanto eacute uma categoria de interpretaccedilatildeo do tempo histoacuterico eacute uma

concepccedilatildeo que passa a existir em civilizaccedilotildees que tecircm desenvolvido essa percepccedilatildeo filosoacutefica

pois ao contraacuterio natildeo poderiam julgar o ldquoseu passado a partir do presenterdquo

Mas antes da filosofia era a religiatildeo quem dava identidade ao tempo visto como

imutaacutevel ou repetitivo Entre as religiotildees haacute exceccedilotildees Por exemplo o Judaiacutesmo e o

Cristianismo construiacuteram uma visatildeo interessante O Judaiacutesmo produziraacute antes dos gregos uma

consciecircncia teoloacutegica na qual Deus caminha com seu povo uma ideacuteia de tempo

qualitativamente diferente de outras religiotildees avaliando o passado sempre significativo ao

lembrar a presenccedila libertadora de Deus no Ecircxodo mas tambeacutem anunciando o futuro atraveacutes dos

Profetas Surge uma concepccedilatildeo transcendentalizada de Deus a ideacuteia de uma ldquohistoacuteria da

salvaccedilatildeordquo e uma racionalizaccedilatildeo eacutetica Esses trecircs traccedilos fazem com que Israel se revele

religiosamente de forma totalmente nova perante os outros povos Natildeo seraacute mais o Deus

214 Cf VAZ Henrique C de Lima Escritos de Filosofia III Filosofia e Cultura Satildeo Paulo Loyola 1997 p 225 215 Cf Idem Escritos de Filosofia VII ndash Raiacutezes da modernidade Satildeo Paulo Loyola 2002 p 12 216 Cf HABERMAS Juumlrgen Modernidade versus poacutes-modernidade Trad de Anne Marie Summer e Pedro Moraes Arte em Revista Satildeo Paulo Kairos n 7 p 86-91 1983 Cf tb esse artigo em New German Critique University of Winsconsin Milwaukee Winter n 22 1981 217 Cf VAZ Henrique C de Lima Religiatildeo e modernidade filosoacutefica Siacutentese Nova Fase Belo Horizonte v 18 n 53 p 151 1991

coacutesmico o homem prisioneiro do ldquodestinordquo ou a eacutetica ldquofundada numa ordem coacutesmica eternardquo218

que balizaratildeo a feacute e a accedilatildeo humana O Judaiacutesmo rompe a visatildeo cosmoloacutegica de seus vizinhos

egiacutepcios e mesopotacircmios abrindo-se a tendecircncias dessacralizantes ou desmitologizantes

O Cristianismo herdeiro dessa tradiccedilatildeo judaica se apropriaraacute dessas concepccedilotildees

aprofundando-as especialmente a partir da afirmaccedilatildeo da crenccedila na ldquoencarnaccedilatildeo de Deusrdquo

gerando grandes consequumlecircncias na antropologia religiosa e na teologia Haveraacute uma interaccedilatildeo

constante com diversos sistemas filosoacuteficos produzindo uma verdadeira filosofia cristatilde

Stephen Toulmin historiador e adepto de uma concepccedilatildeo histoacuterico-hermenecircutica da

ciecircncia pensa que a modernidade natildeo eacute um fenocircmeno ldquodataacutevelrdquo Que criteacuterio nortearia a

escolha do iniacutecio da modernidade Haacute tantas possibilidades de datas que natildeo se poderia defini-

la precisamente E questiona mais natildeo seria paradoxal datar o seu fim Ele diz que o que se

chama ldquoera modernardquo poderia ter um fim mas com outro sentido um momento identificado na

Histoacuteria (que se inicia em torno de 1436 ou 1648 ou 1895) e que parece estar se completando219

Sua atitude primeira eacute de questionar e duvidar daquilo que se ensinou sobre a modernidade pois

estaacute se baseia numa histoacuteria ldquounilinearrdquo ldquootimistardquo e ldquoauto-enaltecedorardquo220 Ele critica a ideacuteia

de que o desenvolvimento do pensamento de Galileu Kepler ou Newton foi expressatildeo da

superaccedilatildeo da ldquotradiccedilatildeordquo e da ldquosupersticcedilatildeordquo ou seja da ldquoheranccedila medievalrdquo pela razatildeo por uma

racionalidade metoacutedica221 Como Vaz Toulmin natildeo enxerga a modernidade como uma ruptura

com o periacuteodo precedente Sem as condiccedilotildees medievais e por sua vez sem as bases gregas da

filosofia natildeo haveria tal ldquoprogressordquo tais mudanccedilas

Pode-se encontrar em Duns Escoto (iniacutecio do seacuteculo XIV ndash 1265-1308) importante

fundamento da modernidade a substituiccedilatildeo da ldquoteoria aristoteacutelico-tomista da informaccedilatildeo

imediata do ato intelectivo (causa eficiente do conhecer)rdquo pelo ldquoser objetivo ou

representadordquo222 Passando por F Suarez e Descartes esta posiccedilatildeo daacute os passos primeiros de

nossa cultura ocidental para entrar no ciclo da ldquomodernidade modernardquo Mas longe da tese

muito conhecida e ateacute aceita de que a modernidade inaugura um periacuteodo de progresso e

desenvolvimento fruto de ideacuteias inovadoras e originais num contexto construtivo Toulmin

pensa justamente o contraacuterio mostra que o periacuteodo entre os anos 1605 e 1650 foi muito difiacutecel

para a Europa Desta forma argumenta que o avanccedilo filosoacutefico e cientiacutefico foi uma reaccedilatildeo a

essa situaccedilatildeo ldquodesconfortaacutevelrdquo agrave crise e natildeo resultado de ldquoexpressatildeo intelectualrdquo223

218 Cf BERGER Peter L O dossel sagrado Satildeo Paulo Paulinas 1985 p 132 219 Cf TOULMIN Stephen Cosmopolis The hidden agenda of modernity New York The Free Press 1990 Utilizou-se aqui a traduccedilatildeo livre e a siacutentese do livro realizada pela profordf Beatriz Helena Domingues (UFJF) Juiz de Fora Mimeo 1998 220 Ibidem 221 Ibidem 222 Cf VAZ Henrique C de Lima O Sentido e o natildeo-sentido na crise da modernidade Siacutentese Nova Fase Belo Horizonte v 21 n 64 p 6 1994 223 Cf TOULMIN 1990 Utilizou-se aqui a traduccedilatildeo livre e a siacutentese do livro realizada pela profordf Beatriz Helena Domingues (UFJF) Juiz de Fora Mimeo 1998

Stephen Toulmin afirma que as questotildees do seacuteculo XVII estreitaram a discussatildeo jaacute

existente trecircs seacuteculos antes no seacuteculo XIV A atitude moderna pode ser identificada nos

humanistas Tambeacutem esse autor revela que a crise que se abateu sobre a sociedade nos seacuteculos

XV e XVI especialmente com as guerras de religiatildeo fez surgir uma nova visatildeo ilusoacuteria para

ele de buscar enquadrar tanto a natureza quanto a sociedade em ldquocategorias racionais precisas e

controlaacuteveisrdquo224 Por isto surge a formulaccedilatildeo da duacutevida como meacutetodo da busca de alguma

certeza miacutenima o ldquopenso logo existordquo de Descartes

Eacute importante destacar portanto que a modernidade natildeo eacute uma eacutepoca geralmente

situada apoacutes o periacuteodo medieval nascente com a ilustraccedilatildeo o iluminismo a ciecircncia etc

Existem vaacuterias modernidades A primeira foi grega e essa marcou todas as demais Com a

modernidade grega surge a consciecircncia histoacuterica e mais do que isto a consciecircncia historiadora e

a proacutepria ciecircncia histoacuterica evidentemente natildeo como a conhecemos atualmente225

Mas existe ainda uma distinccedilatildeo importante a ser feita sobre o conceito e a interpretaccedilatildeo

do fenocircmeno ldquomodernidaderdquo Como fenocircmeno complexo a ldquomodernidaderdquo deve ser entendida

tambeacutem sob os olhos da sociologia Na conclusatildeo de seu livro ldquoCriacutetica agrave modernidaderdquo Alan

Touraine diz que a ldquohistoacuteria da modernidade eacute a histoacuteria da dupla afirmaccedilatildeo da razatildeo e do

Sujeitordquo226 Eacute um processo de racionalizaccedilatildeo e de surgimento de um novo ator social o sujeito

moderno Essa visatildeo aponta para uma distinccedilatildeo importante ldquoModernidaderdquo e ldquoIlustraccedilatildeordquo natildeo

satildeo realidades simeacutetricas227 O processo de racionalizaccedilatildeo da modernidade e a construccedilatildeo da

subjetividade moderna natildeo se identificam totalmente

O pensamento de Max Weber eacute fundamental para a compreensatildeo da modernidade e daacute

oportunidade para mostrar o contraste ou a assimetria que existe nessa realidade A anaacutelise de

Weber em ldquoA eacutetica protestante e o espiacuterito do capitalismordquo228 e ldquoEconomia e Sociedaderdquo

(especialmente o cap V Sociologia da religiatildeo)229 mostra essa dinacircmica

Segundo Rouanet para Weber a modernidade se realiza como modernizaccedilatildeo que

significa racionalizaccedilatildeo aumento de eficaacutecia de eficiecircncia (visatildeo funcional da modernidade)

Seu juiacutezo eacute extremamente pessimista Na visatildeo de Gregory Baum

a tendecircncia racionalizante da modernidade a forccedila cultural da razatildeo instrumental era tatildeo avassaladora que acabaria sobrepujando todas as tendecircncias contraacuterias [] produzindo uma sociedade inflexiacutevel opressora cientificamente programada a lsquogaiola de ferrorsquo (das eherne

224 Ibidem 225 Cf VAZ Henrique C de Lima Religiatildeo e modernidade filosoacutefica p 151 226 Cf TOURAINE Alan Criacutetica da modernidade Petroacutepolis Vozes 1999 p 394 227 Sobre o desenvolvimento dessa distinccedilatildeo cf o texto que ocupa todo o caderno ROUANET Seacutergio Paulo Iluminismo e Modernidade Extensatildeo Cadernos de Ciecircncias Sociais da PUC-MG Belo Horizonte v 2 n 1 set 1990 228 Cf WEBER Max A eacutetica do protestantismo e o espiacuterito do capitalismo Satildeo Paulo Livraria Pioneira 1967 229 Cf Idem Economia e socidade v 1 Satildeo Paulo UNB 2004 (Cap V Sociologia da religiatildeo) Cf tb COHN Gabriel (Org) Weber Satildeo Paulo Aacutetica 2003

Gehaumluse) acompanhada pelo decliacutenio cultural e a morte de todos os sonhos verdadeiramente humanos [] era o fim da utopia230

A distinccedilatildeo de Rouanet entre modernidade funcional e modernidade iluminista revela

que para esta aleacutem da eficaacutecia deve haver tambeacutem um aumento de autonomia Haacute entatildeo

viacutenculo histoacuterico (relaccedilatildeo causal) entre ilustraccedilatildeo e modernidade mas ele eacute parcial pois a

modernidade ilustrada natildeo conseguiu fazer prevalecer historicamente o seu sentido

Na histoacuteria cultural do ocidente a modernidade ilustrada preconizava a universalidade

a individualidade e a autonomia a cruzada pela emancipaccedilatildeo do ser humano Nesse projeto

civilizatoacuterio da modernidade iluminista encontram-se entatildeo a universalidade que visa todos os

seres humanos independentemente de qualquer barreira (nacional eacutetnica ou cultural) a

individualidade ou seja os seres humanos satildeo considerados como pessoas concretas e natildeo

como integrantes de uma coletividade valorizando-se eticamente sua crescente

individualizaccedilatildeo e a autonomia compreendendo que os indiviacuteduos satildeo aptos a pensarem por si

mesmos sem a tutela da religiatildeo ou da ideologia podem agir publicamente e garantirem sua

sobrevivecircncia pelo trabalho bem como os bens necessaacuterios para o seu bem-estar

De outro lado a modernidade na perspectiva funcional era concebida como um

processo global de racionalizaccedilatildeo ldquoinjetar a razatildeo instrumental nos processos decisoacuterios do

Estado e da Empresardquo231 em trecircs esferas econocircmica poliacutetica e cultural Essa distinccedilatildeo sobre

o conceito modernidade eacute muito significativo e a leitura de Seacutergio Paulo Rouanet muito

elucidativa232

Pode-se ainda destacar sob o ponto de vista filosoacutefico que a modernidade representou

uma verdadeira mudanccedila de paradigma233 Ela prevaleceu ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX reagindo

ao essencialismo e dogmatismo claacutessico e medieval Introduziu a subjetividade e o cogito

produzindo uma racionalidade que se tornou cada vez mais dualista ldquoa divisatildeo do mundo entre

material e espiritual a separaccedilatildeo entre a natureza e a cultura entre ser humano e mundo razatildeo e

emoccedilatildeo feminino e masculino Deus e mundo e a atomizaccedilatildeo dos saberes cientiacuteficosrdquo234

A modernidade em seu processo de objetivaccedilatildeo produziu um novo tipo de

racionalidade a razatildeo instrumental-analiacutetica Hoje percebe-se que essa razatildeo natildeo eacute mais

suficiente para compreender a complexidade dos fenocircmenos e natildeo pode manter sua pretensatildeo de

legitimar os criteacuterios de verdade ldquoA razatildeo instrumental natildeo eacute a uacutenica forma de uso de nossa

230 Cf BAUM Gregory A modernidade perspectiva socioloacutegica Concilium Petroacutepolis v 244 n 6 p 8 1996 231 Cf ROUANET Seacutergio Paulo Mal-estar na modernidade Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 122 232 Cf ROUANET 1990 233 Sobre o conceito de paradigma e de mudanccedila de paradigma a partir da obra de Thomas Kuhn cf BAPTISTA Paulo Agostinho N Teologia e ecologia A mudanccedila de paradigma de Leonardo Boff In GUIMARAtildeES Juarez (Org) Leituras criacuteticas sobre Leonardo Boff Satildeo Paulo Perseu Abramo 2008 p 101-41 234 Cf BOFF Leonardo Dignitas Terrae Ecologia Grito da Terra grito dos pobres Satildeo Paulo Aacutetica 1995 p 29

capacidade de intelecccedilatildeo Existe tambeacutem a razatildeo simboacutelica e cordial e o uso de todos os nossos

sentidos corporais e espirituaisrdquo235 Nessa perspectiva o pensamento de Edgar Morin a partir

do iniacutecio da deacutecada de 70 ofereceraacute novo horizonte de compreensatildeo da epistemologia e do

proacuteprio pensamento conhecido como pensamento complexo236

A forma analiacutetica e instrumental de pensar e de agir das ciecircncias modernas comeccedila a

entrar em crise ldquopassam para o primeiro plano as relaccedilotildees que constituem a interdependecircncia

de todos os elementos do universo []rdquo237 O filoacutesofo Manfredo Oliveira afirma que o modelo

mecacircnico da maacutequina cede lugar para o ldquomundo atocircmico e subatocircmico [] que [] se

disssolvem em ondas de probalidades e que portanto soacute podem ser entendidas como

interconexotildees dinacircmicas e entre processosrdquo238

Ainda segundo este autor pode-se apresentar em trecircs toacutepicos as principais mudanccedilas

ocorridas no paradigma das ciecircncias atuais da visatildeo estaacutetico-determinista para a processual-

contingencial da realidade de uma concepccedilatildeo isolacionista para uma visatildeo integracional de

todos os seres e de uma consideraccedilatildeo materialista para uma concepccedilatildeo idealista-objetiva do

universo239 Tais mudanccedilas colocam em crise o paradigma moderno e enseja o surgimento de

um novo paradigma

A biodiversidade e o surgimento de um novo paradigma o paradigma ecoloacutegico

O conceito biodiversidade ou diversidade bioloacutegica natildeo eacute antigo Surge no final da

deacutecada de 1980 cunhado por Thomas Lovejoy bioacutelogo norte-americano Aparece numa

publicaccedilatildeo de 1988 nos EUA em livro que foi organizado pelo entomologista or Edward O

Wilson Biodiversity240

235 Cf Ibidem p 31 236 Edgar Morin socioacutelogo francecircs teve suas ideacuteias rejeitadas na deacutecada de 70 sendo hoje considerado um dos trecircs maiores pensadores vivos Suas publicaccedilotildees especialmente a partir do livro ldquoO paradigma perdidordquo (Cf MORIN Edgar O paradigma perdido a natureza humana 4 ed Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1973) e ldquoO meacutetodordquo (Cf Idem O meacutetodo I ndash A natureza da natureza 2 ed Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1977) se concentram na ideacuteia do ldquoPensamento complexordquo criando as bases para o despertar do ldquoparadigma ecoloacutegicordquo ou do ldquopensamento eco-sistecircmicordquo Para o aprofundamento nesses temas cf tb PENA-VEJA Alfredo O despertar ecoloacutegico Edgar Morin e a ecologia complexa Rio de Janeiro Garamond 2003 PENA-VEJA Alfredo NASCIMENTO Elimar Pinheiro do O pensar complexo Edgar Morin e a crise da modernidade 2 ed Rio de Janeiro Garamond 1999 Cf ainda MORAES Maria Cacircndida Pensamento eco-sistecircmico Petroacutepolis Vozes 2004 237 Cf OLIVEIRA Manfredo A Ampliaccedilatildeo do sentido de libertaccedilatildeo Perspectiva Teoloacutegica Belo Horizonte v 30 p 281 1998 238 Cf OLIVEIRA 1998 p 280 Uma melhor e mais completa abordagem desta visatildeo neste autor eacute encontrada em ANJOS Maacutercio Fabri dos (Org) Teologia aberta para o futuro Satildeo Paulo Loyola 1997 p21-39 no artigo ldquoA mudanccedila de paradigma nas ciecircncias contemporacircneasrdquo 239 Ibidem p21-39 Vale a pena citar sua conclusatildeo ldquopode-se interpretar o processo evolutivo que constitui o universo enquanto tal a partir da visatildeo das ciecircncias contemporacircneas como as diferentes etapas do processo de desdobramento do espiacuterito que vem a si toma consciecircncia de si em suas diferentes figuras ateacute chegar agrave consciecircncia plena de todo o processo cosmogecircnico no espiacuterito humanordquo (p 39) 240 Cf WILSON Edward O (Ed) Biodiversity Washington National Academy Press 1988

Durante a Eco-92 no Rio de Janeiro ndash ldquoConferecircncia das Naccedilotildees Unidas para o Meio

ambiente e o Desenvolvimentordquo (de 03 a 14 de junho de 1992) acontece um importante passo

para a proteccedilatildeo da biodiversidade foi assinada a ldquoConvenccedilatildeo sobre a Diversidade Bioloacutegicardquo

por mais de 150 paiacuteses O Brasil aleacutem de signataacuterio ratificou esse documento em 1994 e pelo

decreto 2519 (16 de marccedilo de 1998) promulgou a Convenccedilatildeo da Biodiversidade

Os antecedentes histoacutericos que revelam o surgimento de uma preocupaccedilatildeo ambiental

datam da deacutecada de 1960 Em 1968 realiza-se a Conferecircncia sobre a Biosfera em Paris

organizada pela UNESCO Foi uma discussatildeo acadecircmica sobre o uso racional dos recursos

naturais Neste mesmo ano eacute formado o Clube de Roma um grupo de cientistas poliacuteticos e

representantes da induacutestria preocupados em pensar o desenvolvimento o problema ambiental e

os limites do crescimento O relatoacuterio deste grupo em 1972 visou analisar a relaccedilatildeo entre

paiacuteses os problemas decorrentes da complexidade das relaccedilotildees e da interdependecircncia entre

elas especialmente em relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo da natureza Sua conclusatildeo foi

Caso as presentes tendecircncias de crescimento da populaccedilatildeo mundial industrializaccedilatildeo poluiccedilatildeo produccedilatildeo de comida e uso de recursos naturais natildeo se alterarem os limites para o crescimento no planeta seratildeo atingidos em algum ponto nos proacuteximos 100 anos O resultado mais provaacutevel seraacute um raacutepido e descontrolado decliacutenio tanto em termos de populaccedilatildeo como capacidade industrial241

A reaccedilatildeo foi imediata e no mesmo ano a ONU promoveu uma conferecircncia conhecida

como ldquoConferecircncia de Estocolmordquo que discordando sobre a diminuiccedilatildeo da produccedilatildeo do ritmo

de crescimento propunha ldquoproduzir melhorrdquo com menos lixo Comeccedila aiacute a construccedilatildeo de uma

ideacuteia problemaacutetica e contraditoacuteria que se torna ldquomadurardquo por ocasiatildeo da Eco-Rio 92

ldquodesenvolvimento sustentaacutevelrdquo

Aleacutem da Convenccedilatildeo sobre Diversidade Bioloacutegica a Eco-Rio produziu outros

importantes documentos ldquoDesertificaccedilatildeordquo ldquoDeclaraccedilatildeo-Quadro sobre Mudanccedilas climaacuteticasrdquo

ldquoDeclaraccedilatildeo do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimentordquo ldquoAgenda 21rdquo ldquoDeclaraccedilatildeo de

Princiacutepios sobre as Florestasrdquo e o iniacutecio da proposta de elaboraccedilatildeo de uma ldquoCarta da Terrardquo

O conceito biodiversidade segundo a Convenccedilatildeo significa ldquoa variabilidade de

organismos vivos de todas as origens compreendendo dentre outros os ecossistemas terrestres

marinhos e outros ecossistemas aquaacuteticos e os complexos ecoloacutegicos de que fazem parte

compreendendo ainda a diversidade dentro de espeacutecies entre espeacutecies e de ecossistemasrdquo242

Essa conceituaccedilatildeo mostra que haacute diversos niacuteveis e ambientes onde a vida se manifesta

A diversidade de espeacutecies eacute certamente a aacuterea de maior pesquisa Pode-se mencionar ainda

outras diversidades a geneacutetica e a dos ecossistemas Revela ainda que a vida eacute relaccedilatildeo Tudo

interage com tudo 241 Cf MEADOWS Dennis L et al The Limits to Growth New York Universe Books 1972 242 MINISTEacuteRIO DO MEIO AMBIENTE Convenccedilatildeo sobre Diversidade Bioloacutegica Brasiacutelia Ministeacuterio do Meio Ambiente 2000

Apesar de ser um conceito relativamente novo (20 anos) a ideacuteia de diversidade natildeo eacute

nova Desde a Greacutecia os filoacutesofos jaacute faziam listas sobre variedade de espeacutecies e formas de

vida como Aristoacuteteles que deu iniacutecio agrave taxonomia em biologia Antes os preacute-socraacuteticos

Empeacutedocles e Anaxaacutegoras defendiam uma posiccedilatildeo pluralista sobre a origem sobre os

princiacutepios que originaram o universo A proacutepria concepccedilatildeo cristatilde de Deus busca articular

unidade e pluralidade na ideacuteia de Trindade Pai Filho e Espiacuterito Santo Encontramos algo

parecido no Hinduiacutesmo com Brahma Vishnu e Shiva (os princiacutepios criador mantenedor e

transformador) e ateacute no radical monoteiacutesmo islacircmico os 99 nomes de Deus acrescidos de

mais um nome misterioso soacute conhecido dos miacuteticos

Mas foi soacute nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX que surge a consciecircncia de que a riqueza

da diversidade bioloacutegica estaacute ameaccedilada Satildeo trecircs espeacutecies por hora que somem Alguns

caacutelculos apontam para 18 mil espeacutecies que desaparecem anualmente243 Todas as reuniotildees e

protocolos que pretendem garantir a defesa da vida ainda natildeo produziram mudanccedilas efetivas

A degradaccedilatildeo da vida natural e da vida humana destruindo espeacutecies e desequilibrando

o tecircnue dinamismo vital ou reduzindo 23 da populaccedilatildeo mundial agrave condiccedilatildeo de pobreza ao

mesmo tempo em que concentra o bem-estar e qualidade de vida (225 pessoas no mundo tecircm

renda equivalente a 25 bilhotildees de pessoas)244 chegou a um limite insuportaacutevel Natildeo se pode

mais aceitar que apenas um paiacutes (EUA) que possui 75 da populaccedilatildeo mundial tenha um

consumo equivalente a ldquo13 dos recursos natildeo renovaacuteveis e 37 da energia produzida no mundo

anualmenterdquo245 E o tempo se faz curto para muitos pesquisadores jaacute se ultrapassou o momento

de parar esse desastre a contabilidade da luta pela vida estaacute devedora eacute negativa

Como fruto da percepccedilatildeo e da pesquisa cientiacutefica num longo processo especialmente

no seacuteculo XX percebeu-se que tudo interage com tudo todo o tempo Os estudos de Ilya

Prigogine246 sobre a irreversibilidade mostram que a evoluccedilatildeo caminha numa perspectiva de

complexificaccedilatildeo ldquoa seta do tempo e a linha da evoluccedilatildeo vatildeo no sentido de criar cada vez mais

complexidades auto-organizadas diversidades e inter-retro-relacionamentosrdquo247 Para isso

tambeacutem a fiacutesica deu enorme contribuiccedilatildeo ao descobrir as iacutenfimas partiacuteculas e a proacutepria

243 Cf REUTERS Mundo perde 3 espeacutecies por hora diz ONU no Dia da Diversidade O Globo 22 mai 2007 Disponiacutevel em httpogloboglobocomcienciamat20070522295857809asp Acesso em 21 set 2008 244 Cf COSTA Jurandir Freire Estrateacutegia de Avestruz Folha de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 23 mar1999 Cad Mais 245 Cf LAGO Antonio PAacuteDUA Joseacute Augusto O que eacute ecologia Satildeo Paulo Brasiliense 1984 p 59 246 Ilya Prigogine foi quiacutemico da Universidade de Bruxelas e da Universidade de Austin (Texas) Ganhou o precircmio Nobel de quiacutemica em 1977 e se dedicou a investigar a questatildeo do tempo Faleceu em 2003 De sua publicaccedilatildeo pode-se indicar PRIGOGINE I A nova alianccedila Metamorfose da ciecircncia Brasiacutelia Universidade de Brasiacutelia 1990 Idem O fim da certeza tempo caos e as leis da natureza Satildeo Paulo UNESP 1996 Cf tb PRIGOGINE I STENGERS I Entre o tempo e a eternidade Lisboa Gradiva 1990 247 Cf BOFF Leonardo Nova era a civilizaccedilatildeo planetaacuteria desafios agrave sociedade e ao cristianismo 3 ed Satildeo Paulo Aacutetica 1998 p 45 Esse livro foi reeditado com o tiacutetulo Idem Civilizaccedilatildeo Planetaacuteria desafios agrave sociedade e ao cristianismo Rio de Janeiro Sextante 2003

impossibilidade de separar como antes mateacuteria e energia De uma concepccedilatildeo dualista passa-se

para uma visatildeo efetivamente dialeacutetica (mais que dialeacutetica ela eacute circular complexa) e

interativa tudo carrega informaccedilatildeo tudo tem histoacuteria dos aacutetomos das estrelas agraves amebas

Leonardo Boff situa tal mudanccedila simbolicamente na esteira do desenvolvimento da

ldquoconquista do espaccedilordquo especialmente quando a ldquoterra comeccedilou a ser vista de fora da Terrardquo248

Em sua unidade e pequenez a Terra aparece como um ser vivo carregando uma pluralidade de

formas de vida ldquosurge destarte como um imenso superorganismo vivo chamado por Lovelock

de Gaia consoante a claacutessica denominaccedilatildeo da Terra de nossos ancestrais culturais gregosrdquo249

Da distacircncia de uma nave espacial a Terra emerge em toda a sua beleza e sua fragilidade250

revelando a existecircncia de uma interdependecircncia fundamental Mas tal concepccedilatildeo da Terra como

organismo vivo natildeo se fundamenta apenas nessa percepccedilatildeo esteacutetica

James Lovelock justifica sua posiccedilatildeo sobre essa nova forma de perceber a Terra

dizendo ldquoDefinimos a Terra como Gaia porque se apresenta com uma entidade complexa que

abrange a biosfera a atmosfera os oceanos e o solo na sua totalidade esses elementos

constituem um sistema ciberneacutetico ou de realimentaccedilatildeo que procura um meio fiacutesico e quiacutemico

oacutetimo para a vida neste planetardquo251

Essa visatildeo nasce tambeacutem da interaccedilatildeo de estudos da fiacutesica e da biologia que revelam a

natildeo-linearidade (tudo eacute rede de relaccedilotildees que natildeo se limitam a causa-efeito) a dinacircmica ciacuteclica

(adaptaccedilatildeo e equiliacutebrio eacute um processo constante em movimento num processo de crescimento

ciacuteclico incluindo a morte que gera vida) sistema estruturado (os sistemas se subdividem e

248 Cf BOFF Leonardo Nova era p 41 Idem Dignitas terrae p 32 249 Cf Idem Dignitas terrae p 36 Na mitologia grega haacute uma versatildeo que diz que Eacuterebo (as Trevas Infernais) liberta a noite e esta se transforma numa grande esfera Dividida como um ovo quebrado daacute origem a Eros (o Amor) As cascas do ovo tornam-se uma aboacutebada (ceacuteu) e um disco achatado a terra (Gaia) Esta ideacuteia de Gaia (ou Geacuteia) como organismo vivo estaacute presente em vaacuterios mitos de culturas primitivas Thomas Berry (cf BERRY Thomas O sonho da terra Petroacutepolis Vozes 1991) aponta diversas expressotildees culturais que denotam essa ideacuteia jen e chrsquoeng (amor e integridade na China) bhakti (amor de devoccedilatildeo na Iacutendia) karuna (compaixatildeo no Budismo) expressotildees que tecircm uma significaccedilatildeo coacutesmica (p 35) Mas os primeiros cientistas a formularem a postulaccedilatildeo da Terra como Gaia um superorganismo vivo foram James Lovelock (meacutedico e bioacutelogo inglecircs) e Lynn Margulis (microbioacuteloga americana) De sua pesquisa sobre vida em outros planetas pela Nasa Loverlock conclui que haacute ldquoum imenso equiliacutebrio do sistema-terra e a sua espantosa dosagem de todos os elementos benfazejos para vida []rdquo Cf BOFF Leonardo Princiacutepio-Terra A volta agrave Terra como Paacutetria comum Satildeo Paulo Aacutetica 1995 p 43 Gaia tem um significado que transcende ao termo biosfera (criado em 1875 por Edward Seuss) Sobre Gaia haacute grande literatura (cf BERRY 1991 p 34-8 cf tb LOVELOCK James Gaia Um novo olhar sobre a vida na terra Lisboa Ediccedilotildees 70 1989 Idem As eras de Gaia A biografia da nossa Terra viva Satildeo Paulo Campus 1991 Idem A vinganccedila de gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 MARGULIS L Quatro bilhotildees de anos de evoluccedilatildeo microbiana Lisboa Ed 70 1990 LUTZENBERGER J Gaia o planeta vivo Porto Alegre L ampPM 1990) 250 Cf o excelente capiacutetulo de Sagan ldquoVocecirc estaacute aquirdquo SAGAN Carl Paacutelido ponto azul Uma visatildeo do futuro da humanidade no espaccedilo Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 25-31 Confira tambeacutem trecircs outros trabalhos que oferecem uma visatildeo muito importante da histoacuteria do Universo e da Terra HAWKING Stephen MLODINOW Leonard Uma nova histoacuteria do tempo Rio de Janeiro Ediouro 2005 BRAHIC Adnreacute et al A mais bela histoacuteria da Terra Rio de Janeiro DIFEL 2002 REEVES Hubert et al A mais bela histoacuteria do mundo Petroacutepolis Vozes 1998 251 Cf LOVELOCK James Gaia p 27

guardam interaccedilatildeo entre si cada um fazendo parte de um organismo maior) autonomia e

integraccedilatildeo (haacute autonomia e integraccedilatildeo entre os sistemas) auto-organizaccedilatildeo e criatividade (cada

sistema complexo pode estruturar-se criativamente num contiacutenuo processo evolutivo)252 Tudo

isto revela a vida que corre nesse superorganismo que eacute a Terra

O conceito de ecologia formulado por Ernst Haeckel (1834-1919) em 1866 vai se

ampliando Segundo Leonardo Boff significa ldquoo estudo da interdependecircncia e da interaccedilatildeo

entre os organismos vivos (animais e plantas) e o seu meio ambiente (seres inorgacircnicos)rdquo253 ou

numa formulaccedilatildeo mais recente (1999) ldquoo estudo do inter-retro-relacionamento de todos os

sistemas vivos e natildeo-vivos entre si e com seu meio ambiente entendido como uma casa donde

deriva a palavra ecologia (oikos em grego = casa a mesma raiz etimoloacutegica de

ecumenismo)rdquo254

Ainda segundo Boff esse conceito vai superando seu nicho ldquoregionalrdquo e se torna

universal um novo paradigma que deteacutem a grande forccedila ldquomobilizadora do futuro milecircniordquo255

Leonardo fala entatildeo de diversas dimensotildees da ecologia eco-tecnologia eco-poliacutetica ecologia

ambiental ecologia social ecologia mental eacutetica ecoloacutegica e ecologia integral Como se vecirc ela

atinge todos os setores apontando criteacuterios e valores apresentando um novo olhar sobre tudo

Por isso se diz que eacute um novo paradigma Mas como ele ainda estaacute nascendo haacute longa

caminhada a percorrer Ainda natildeo virou certeza pois quando isso acontece transforma-se ldquona

atmosfera das evidecircncias existenciais () em convicccedilatildeo geral no elemento evidente e

inquestionaacutevel de uma sociedaderdquo256

A consciecircncia desse novo paradigma nascente coincide quase totalmente com a

descoberta de que o proacuteprio universo estaacute em gecircnese em criaccedilatildeo ldquose encontra em

cosmogecircneserdquo257 Se o universo vive esse processo tambeacutem os seres humanos o vivem

(antropogecircnese) Assim natildeo se pode falar em ldquonatureza humanardquo como um dado determinado

por mais que conheccedilamos o dinamismo geneacutetico A natureza humana estaacute em processo de

construccedilatildeo E tanto natureza humana quanto o cosmos vivem numa dinacircmica explicada atraveacutes

de trecircs concepccedilotildees ldquoa complexidadediferenciaccedilatildeo a auto-organizaccedilatildeoconsciecircncia a re-

ligaccedilatildeorelaccedilatildeo de tudo com tudordquo258

Mas o processo eacute contiacutenuo diferenciando-se e complexificando-se ao mesmo tempo

em que cresce a auto-organizaccedilatildeo e o crescimento da consciecircncia e de sua interioridade

chegando agrave capacidade reflexiva humana Dessa complexidade e consciecircncia avanccedila a 252 Cf BOFF Leonardo Ecologia mundializaccedilatildeo espiritualidade A emergecircncia de um novo paradigma Satildeo Paulo Aacutetica 1993 p 43-4 253 Ibidem p 17 254 Cf Leonardo BOFF Eacutetica da vida Brasiacutelia Letraviva 1999 p 25 255 Ibidem p 25 256 Cf Ibidem p 104 Leonardo continua ldquoAquilo que natildeo precisa ser explicado e que explica todas as demais coisasrdquo E ele proacuteprio diz que isto soacute surge do ldquobojo de uma grande criserdquo 257 Ibidem p 32 258 Ibidem

relacionalidade a re-ligaccedilatildeo de tudo e todos259 Tudo isto natildeo se fez e natildeo estaacute acontecendo sem

grande crise nos modelos estabelecidos Eacute do confronto com o paradigma moderno com sua

razatildeo instrumental-analiacutetica e da ameaccedila que este gera de colapso da proacutepria vida da

sobrevivecircncia humana de seu futuro que vai se forjando novo horizonte de compreensatildeo e daiacute

novo agir e tambeacutem nova Eacutetica

Biodiversidade e modernidade o desafio da defesa da diversidade da vida

Pensar a articulaccedilatildeo entre biodiversidade e modernidade hoje eacute um grande desafio

A racionalizaccedilatildeo moderna aplicada agrave economia e agrave poliacutetica tem produzido contradiccedilotildees que

colocam em risco o equiliacutebrio do sistema Terra Recentemente Lovelock apresenta um quadro

dramaacutetico da questatildeo ecoloacutegica

Gaia me tornou um meacutedico planetaacuterio e eu levo minha profissatildeo a seacuterio Agora tambeacutem devo trazer as maacutes notiacutecias Os centros de climatologia espalhados pelo mundo que satildeo os equivalentes aos laboratoacuterios de patologia dos hospitais tecircm relatado as condiccedilotildees fiacutesicas da Terra e os climatologistas acham que ela estaacute gravemente doente prestes a passar a um estado de febre moacuterbida que pode durar ateacute 100 mil anos [] A civilizaccedilatildeo usa energia intensamente e natildeo podemos desligaacute-la de forma abrupta eacute preciso ter a seguranccedila de um pouso motorizado [] Noacutes faremos o possiacutevel para sobreviver mas infelizmente eu natildeo consigo ver os EUA ou as economias emergentes da China e da Iacutendia voltando no tempo - e eles satildeo as maiores fontes de emissotildees [CO2] O pior vai acontecer e os sobreviventes teratildeo de se adaptar a um clima infernal Talvez o mais triste seja que Gaia [a Terra eacute um sistema vivo] perderaacute tanto quanto ou mais do que noacutes Natildeo soacute a vida selvagem e ecossistemas inteiros seratildeo extintos mas na civilizaccedilatildeo humana o planeta tem um recurso precioso Natildeo somos meramente uma doenccedila somos por meio da nossa inteligecircncia e comunicaccedilatildeo o sistema nervoso do planeta Atraveacutes de noacutes Gaia se viu do espaccedilo e comeccedila a descobrir seu lugar no Universo Noacutes deveriacuteamos ser o coraccedilatildeo e a mente da Terra natildeo sua moleacutestia Entatildeo sejamos corajosos e paremos de pensar somente nos direitos e necessidades da humanidade e enxerguemos que noacutes ferimos a Terra e precisamos fazer as pazes com Gaia Precisamos fazer isso enquanto somos fortes o bastante para negociar e natildeo uma turba esfacelada liderada por senhores da guerra brutais Acima de tudo precisamos lembrar que somos parte dela e que ela eacute de fato nosso lar260

O grande gargalho de todo o problema que coloca em risco a biodiversidade eacute a ideacuteia

equivocada e falaciosa de desenvolvimento sustentaacutevel O grande capital natildeo tem interesse em

frear o ritmo de crescimento e seu representante maior ndash os EUA ndash expressam seu cinismo de

modo claro Em 1992 George W H Bush reagia ao Clube de Roma dizendo ldquoVinte anos atraacutes

o Clube de Roma falava de lsquolimites para o crescimentorsquo Mas hoje sabemos que o crescimento eacute

a motriz da mudanccedila O crescimento eacute o amigo do meioambienterdquo261

259 Retomam-se aqui questotildees que satildeo o centro do pensamento de Edgar Morin jaacute citado anteriormente 260 Cf LOVELOCK James A vinganccedila de Gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 p 9 Na obra que tem o mesmo tiacutetulo do artigo Lovelock faz um diagnoacutestico sobre o ldquoestado da Terrardquo previsotildees para o seacuteculo XXI aleacutem de discutir questotildees como energia alimentos mateacuterias-primas tecnologia etc Cf tb LOVELOCK A vinganccedila de Gaia Rio de Janeiro Intriacutenseca 2006 261 Cf FIESP Globalizando a democracia e democratizando a globalizaccedilatildeo Capiacutetulo Brasileiro do Clube de Roma 29 ago 2005 Disponiacutevel em lthttpwwwfiespcombrdownloadacao_politicaclube_romapdfgt Acesso em 04 abril 2007 Cf tb IBPS Meio Ambiente - Histoacuteria desafios e possibilidades Disponiacutevel em

As economias emergentes como China e Iacutendia para ficar nos paiacuteses com maiores

contingentes populacionais estatildeo crescendo vertiginosamente a China com taxas de 10 ao

ano A meacutedia dos emergentes eacute de 71 O problema do petroacuteleo trouxe para a agenda mundial

a utilizaccedilatildeo de biocombustiacuteveis As implicaccedilotildees ambientais de uma economia baseada no

petroacuteleo e agora com os combustiacuteveis renovaacuteveis de forma simplificadora satildeo catastroacuteficas

aquecimento global e suas consequumlecircncias sobre as espeacutecies e o equiliacutebrio climaacutetico e o

desmatamento no terceiro mundo de aacutereas de florestas com problemas sociais na questatildeo da

terra e na produccedilatildeo de alimentos

A questatildeo que deveria presidir os debates sobre o Ambiente natildeo diz respeito ao

desenvolvimento mas agrave sociedade agrave sociedade sustentaacutevel Eacute uma questatildeo de natureza poliacutetica

e que tem como principais responsaacuteveis os agentes econocircmicos as empresas

Quando examinamos e reconstituiacutemos o surgimento da lsquoquestatildeo ambientalrsquo verificamos que ela estaacute atrelada ao interesse das grandes e poderosas instituiccedilotildees internacionais intimamente relacionada e dependente das grandes potecircncias e do grande captital Por isso a imensidatildeo de recursos existentes para essa questatildeo maiores do que aqueles necessaacuterios ao desenvolvimento das pesquisas para o enfrentamento do conhecimento jmprescindiacutevel agrave extinccedilatildeo das epidemias doenccedilas da fome etc [] O periacuteodo teacutecnico cientiacutefico e informacional produto da acumulaccedilatildeo de conhecimento teacutecnico e cientiacutefico trouxe para a humanidade a possibilidade de superar a maioria dos obstaacuteculos ateacute entatildeo oferecidos pela natureza Terremotos tornados vendavais tsunamis surprendiam a todos Temia-se a natureza Hoje ele surpreendem apenas as pessoas e naccedilotildees pobres aqueles que natildeo dispotildeem de informaccedilatildeo e conhecimento teacutecnico Esse eacute aliaacutes o sentido da teacutecnica criadora permanente de exclusatildeo pois a informaccedilatildeo eacute o motor da poliacutetica262

Esta visatildeo de Maria Adeacutelia Souza mostra que discutir a questatildeo ambiental eacute discutir a

vida humana as condiccedilotildees fundamentais de sobrevivecircncia humana Que sociedade eacute

sustentaacutevel para os recursos de que dispomos Que modo de vida deveremos e poderemos ter

para garantir a sustentabilidade da vida social e ambiental

lthttpwwwibpscombrindexaspidnoticia=1996 Acesso em 04 abril 2007 Em Boff cf Leonardo BOFF Dignitas terrae p 16 262 Cf SOUZA Maria Adeacutelia A de A geopoliacutetica do desenvolvimento sustentaacutevel panorama mundial O planeta e as metaacuteforas In SOTER (Org) Sustentabilidade da Vida e Espiritualidade Satildeo Paulo Paulinas 2008 p 30-1

Em diversos de seus livros e artigos263 Leonardo Boff tem procurado apontar para

uma saiacuteda Propotildee uma outra loacutegica inspirada em Francisco de Assis em lugar da atitude de

estar-sobre-as-coisas o estar-com-as-coisas Para isso o cuidado eacute a categoria fundamental de

mudanccedila ldquoO cuidado serve de criacutetica agrave nossa civilizaccedilatildeo agonizante e tambeacutem de princiacutepio

inspirador de um novo paradigma de convivialidaderdquo264 Seraacute necessaacuterio conviver com a

limitaccedilatildeo natildeo poderemos continuar consumindo no ritmo atual Deveremos optar por uma

ldquoauto-limitaccedilatildeordquo antes que a natureza o faccedila forccediladamente um consumo solidaacuterio ldquoque supera o

individualismo e se auto-limita por causa do amor e da compaixatildeo para com aqueles que natildeo

podem consumir o necessaacuteriordquo265

Conclusatildeo

O crescimento da populaccedilatildeo mundial eacute dado previsiacutevel e de seacuterias consequumlecircncias

especialmente se ele for acompanhado do mesmo processo de crescimento irresponsaacutevel do

consumo Se os estudos do IPCC sobre as mudanccedilas climaacuteticas se confirmarem ndash jaacute existem

constataccedilotildees de antecipaccedilotildees266 ndash os problemas econocircmicos sociais demograacuteficos agravados

pela questatildeo ambiental criaratildeo uma situaccedilatildeo insustentaacutevel

Os dados sobre o desaparecimento das espeacutecies eacute assustador Se natildeo houver uma

mudanccedila de visatildeo e de consciecircncia traduzidas em atitudes poliacuteticas e praacuteticas o futuro e a

qualidade de vida das proacuteximas geraccedilotildees estaratildeo comprometidos Sustentabilidade e cuidado

segundo Leonardo Boff satildeo os princiacutepios que devem nortear esse compromisso Para ele deve-

se alimentar a esperanccedila de nova relaccedilatildeo entre os seres ndash humanos e bioacuteticos Essa crise eacute

chance de crescimento e superaccedilatildeo de demonstraccedilatildeo de resiliecircncia de construccedilatildeo de relaccedilotildees

sociais respeitosas e includentes Devemos nos abrir a uma razatildeo cordial e compassiva que

religue e natildeo separe pois haacute uma interdependecircncia fundamental entre todos os seres em sua

biodiversidade As mudanccedilas criativas devem comeccedilar pelos pequenos os mais excluiacutedos e os

que mais sofrem os pobres Haacute uma pluralidade de soluccedilotildees e todos os sujeitos sociais ndash

especialmente as mulheres ndash devem participar garantindo-se a orientaccedilatildeo de princiacutepios eacuteticos

263 Cf os artigos de Leonardo Boff Auto-limitaccedilatildeo virtude ecoloacutegica (2003) Impasses do crescimento com inclusatildeo (2004) Devastaccedilatildeo amazocircnica (2005) Sociedade de sustentaccedilatildeo da vida (2006) Biodiversidade e futuro da vida (2006) Biodiversidade e novo paradigma (2006) Desenvolvimento ou sociedade sustentaacutevel (2006) Consumo solidaacuterio e responsaacutevel (2008) Esses textos podem ser encontrados no siacutetio ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo Disponiacutevel em httpalainetorgactiveshow_authorphtmlautor_apellido=Boffampautor_nombre=Leonardo 264 Cf BOFF Leonardo Saber cuidar Eacutetica do humano ndash compaixatildeo pela terra Petroacutepolis Vozes 1999 p 13 265 Cf Idem Consumo solidaacuterio e responsaacutevel ALAI 25 abril de 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive23730amplang=es Acesso em 21 set 2008 266 Cf BLOG DO PLANETA Ateacute os cientistas estatildeo assustados Revista Eacutepoca Satildeo Paulo 16 nov 2007 Disponiacutevel em httpblogdoplanetacomcolunaepoca20071116ate-os-cientistas-estao-assustados Acesso em 21 set 2008 Diversos fenocircmenos recentes satildeo indicados como expressatildeo da mudanccedila climaacutetica como o furaccedilatildeo que devastou Nova Orleans nos EUA em 2005

A espiritualidade os valores da gratuidade solidariedade e cooperaccedilatildeo satildeo fundamentais para

auto-limitaccedilatildeo e o envolvimento efetivos de todos na soluccedilatildeo dos graves desafios que temos267

Em niacutevel acadecircmico e dos movimentos sociais avanccedila-se na pesquisa e na mobilizaccedilatildeo

de ideacuteias e accedilotildees para enfrentar o grave desafio que se tem pela frente Um exemplo acadecircmico

foi a realizaccedilatildeo do Simpoacutesio Internacional de Ciecircncias da Religiatildeo na PUC Minas ldquoConsciecircncia

Planetaacuteria e Religiatildeordquo em 2009268

Uma reflexatildeo sobre as pistas praacuteticas para cuidar da terra de Leonardo Boff eacute uma

boa conclusatildeo sobre nosso tema Ele nos orienta

Procure em tudo o caminho do diaacutelogo e da flexibilidade porque eacute ele que garante o ganha-ganha e eacute uma forma de diminuir os conflitos e ateacute poder resolvecirc-los Valorize tudo o que vem da experiecircncia dando especial atenccedilatildeo aos que natildeo satildeo ouvidos pela sociedade Tenha sempre em mente que o ser humano eacute um ser contraditoacuterio sapiente e ao mesmo tempo demente por isso seja critico e simultaneamente compreensivo Tome a seacuterio o fato de que as virtualidades cerebrais e espirituais do ser humano constituem um campo quase inexplorado Por isso sempre esteja aberto agrave irrupccedilatildeo do improvaacutevel do inconcebiacutevel e do surgimento de emergecircncias Por mais problemas que surjam a democracia sem fim eacute sempre a melhor forma de convivecircncia e de superaccedilatildeo de conflitos democracia a ser vivida na famiacutelia a comunidade nas relaccedilotildees sociais e na organizaccedilatildeo do estado Natildeo queime lixo e outro rejeitos pois eles fazem aumentar o aquecimento global Eles podem ser reciclados Avise agraves pessoas adultas ou agraves autoridades quando souber de desmatamentos incecircndios florestais comeacutercio de bromeacutelias plantas exoacuteticas e de animais silvestres Ajude a manter um belo visual de sua casa da escola ou do local de trabalho pois a beleza eacute parte da ecologia integral Anime a grupos para que no bairro se crie um veiacuteculo de comunicaccedilatildeo uma folha ou um pequeno jornal para debater questotildees ambientais e sociais e acolher sugestotildees criativas Fale com frequumlecircncia em casa com os amigos com os moradores de seu preacutedio e na rua sobre temas ambientais e de nossa responsabilidade pelo bem viver humano e terrestre Reduzir reutilizar reciclar rearborizar rejeitar (a propaganda espalhafatosa) respeitar e se responsabilizar Estes 7 erres (r) nos ajudam a sermos responsaacuteveis face agrave escassez de bens naturais e satildeo formas de sequestar dioacutexido de carbono e outros gaacuteses poluentes da atmosfera O Pe Ciacutecero Romatildeo Batista um dos iacutecones religiosos do povo do Nordeste do Brasil elaborou no iniacutecio do seacuteculo XX dez preceitos de conteuacutedo ecoloacutegico ldquoNatildeo derrube o mato nem mesmo um soacute peacute de pau Natildeo toque fogo no roccedilado nem na caatinga Natildeo cace mais e deixe os bichos viverem Natildeo crie o boi nem o bode soltos faccedila cercados e deixe o pasto descansar para que possa se refazer Natildeo plante serra acima nem faccedila roccedilado em ladeira muito em peacute deixe o mato protegendo a terra para que a aacutegua natildeo a arraste e para que natildeo se perca a sua riqueza Faccedila uma cisterna no canto de sua casa para guardar a aacutegua da chuva Represe os riachos de cem em cem metros ainda que seja com pedra solta Plante cada dia pelo menos peacute de aacutervore ateacute que o sertatildeo seja uma mata soacute Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga Se o sertanejo obedecer a estes preceitos a seca vai se acabando o gado melhorando e o povo teraacute o que comer Mas se natildeo obedecer dentro de pouco tempo o sertatildeo todo vai virar um deserto soacuterdquo 269

267 Cf BOFF Leonardo Pistas praacuteticas para cuidar da Terra (I) ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo 05 set 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive26108amplang=es Acesso em 21 set 2008 268 Cf o resultado do grupo de pesquisa na publicaccedilatildeo do livro OLIVEIRA Pedro A Ribeiro de SOUZA Joseacute Carlos Aguiar de Consciecircncia planetaacuteria e religiatildeo Satildeo Paulo Paulinas 2009 269 Cf BOFF Leonardo Pistas praacuteticas para cuidar da Terra (II) ALAI ndash Agecircncia Latinoamericana de Informaccedilatildeo 12 set 2008 Disponiacutevel em httpalainetorgactive26253amplang=es Acesso em 21 set 2008

Leonardo termina dizendo que tais praacuteticas e compromissos produzem esperanccedila e

revelam que a crise e suas consequumlecircncias ldquodoloridasrdquo satildeo de parto ldquode um novo nascimentordquo

natildeo satildeo dores de morte pois a ldquovida triunfaraacuterdquo

Diante da biodiversidade somos desafios a respeitar a pluralidade e a integrar a

racionalidade moderna noutras formas de racionalidades que revelam a riqueza da vida

Enquanto natildeo aprendermos a conviver com a diversidade comeccedilando pela nossa pluralidade

cultural e humana natildeo conseguiremos respeitar a diversidade da vida Eacute urgente a mudanccedila de

nossa maneira de ver e viver Como nos ensina o antropoacutelogo Clifford Geertz ldquoDevemos

aprender a apreender o que natildeo podemos abraccedilar [] precisamos tornar-nos capazes de

enxergar com larguezardquo270

Referecircncias

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270 Cf GEERTZ Clifford Nova luz sobre a antropologia Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2001 p 84-5

DOMINGUES Beatriz Helena Siacutentese do livro ldquoCosmoacutepolisrdquo de Stephen Toulmin Juiz de Fora 1998 [mimeo]

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Ciberespaccedilos para o encontro do sagrado inteligecircncia artificial e religiatildeo271

Claudia Lima272

Introduccedilatildeo

Este artigo encontra-se ancorado na Aacuterea de Ciecircncias da Religiatildeo tal estudo tem

como proposta a assistecircncia psicorreligiosa na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos

processos subjetivos do ser humano e oportuniza uma discussatildeo entre a praacutetica e a

teoria da essecircncia das religiotildees no acircmbito da cibercultura273 O espaccedilo das

comunicaccedilotildees por rede de computador oportuniza novos espaccedilos para diferentes pontos

de vista e novas abordagens de valores culturais

Embora haja centenas de atividades para a reduccedilatildeo do estresse como a praacutetica

de esportes a teacutecnica especiacutefica desse estudo estaacute instaurada na lsquopsiquersquo propondo

trabalhar individualmente as necessidades subjetivas de cada indiviacuteduo no aspecto

psicorreligioso O espaccedilo fiacutesico para tanto torna-se de extrema necessidade para a

viabilizaccedilatildeo da proposta desse projeto oferecendo a possibilidade de integraccedilatildeo entre

corpo e mente no acircmbito das tensotildees e dos conflitos do cotidiano Essa oportuna

comunicaccedilatildeo com o sagrado tem como via de regra o despertar para um estado de

renovaccedilatildeo psiacutequica harmonia individual e por conseguinte melhor relacionamento

profissional e social como tambeacutem na prevenccedilatildeo de novas situaccedilotildees e accedilotildees sempre

em processo de reiteraccedilatildeo

Os benefiacutecios de credibilidade da religiatildeo segundo Kuumlng (2004) advecircm de um

discernimento racional pois o destino do ser humano estaacute mais relacionado com o seu

proacuteprio agir tendo em conta que as praacuteticas contemplativas trazem transformaccedilotildees

271 Artigo resultante de trabalho de pesquisa (em andamento) na aacuterea de Ciecircncias da Religiatildeo da Universidade Catoacutelica de Pernambuco - UNICAP Orientadores Prof Dr Seacutergio Sezino Duets Vasconcelos e Prof Dr Gilbraz de Souza Aragatildeo para o - GT Ciecircncia religiatildeo e pluralismo ndash Profordm Gilbraz de Souza Aragatildeo 272 Mestra em Gestatildeo de Poliacuteticas Puacuteblicas Mestranda em Ciecircncias da Religiatildeo na Universidade Catoacutelica de Pernambuco ndash UNICAP Especialista em Histoacuteria da Aacutefrica 273 Eacute o termo utilizado na definiccedilatildeo do espaccedilo eletrocircnico virtual

sociais e reorientaccedilatildeo espiritual A psicorreligiatildeo age em funccedilatildeo da autoconscientizaccedilatildeo

nesse contexto de forma individual introduzindo uma marcante mudanccedila de paradigma

2 Inteligecircncia artificial e religiatildeo

21 Cibercultura

Buscamos na concepccedilatildeo da cibercultura274 o estabelecimento de uma relaccedilatildeo

iacutentima entre as novas formas sociais e as novas tecnologias digitais como instrumental

que pretende despertar forccedilas latentes dissolver tensotildees superar cansaccedilos sem no

entanto se prender a nenhuma ideologia preestabelecida a natildeo ser a percepccedilatildeo de que

em algum momento do dia o indiviacuteduo natildeo estaraacute restrito agraves ocorrecircncias comuns do

cotidiano mas poderaacute alternar seu movimento com a introspecccedilatildeo e a interiorizaccedilatildeo da

experiecircncia do sagrado quando menos atraveacutes de alguns minutos meditativos

A cibercultura eacute o que se vive hoje Contatos diretos e pessoais como os home

banking (bancos eletrocircnicos) cartotildees inteligentes voto eletrocircnico pages palms

imposto de renda via rede inscriccedilotildees via internet etc provam que a cibercultura estaacute

presente na vida cotidiana de cada indiviacuteduo No que se refere agrave comunicaccedilatildeo o papel

das tecnologias foi de liberar os indiviacuteduos das limitaccedilotildees de espaccedilo e tempo Dessa

forma pode-se dizer que a cibercultura se caracteriza tambeacutem e fundamentalmente

pela apropriaccedilatildeo social-midiaacutetica (micro-informaacutetica internet e as atuais praacuteticas

sociais) da teacutecnica Andreacute Lemos professor da Universidade Federal da Bahia e um dos

principais teoacutericos do tema no Brasil afirma que a cibercultura nasceu nos anos 50 com

a informaacutetica e a ciberneacutetica tornando-se popular atraveacutes dos microcomputadores na

deacutecada de 70 consolidando-se completamente nos anos 80 atraveacutes da informaacutetica de

massa e nos 90 com o surgimento das tecnologias digitais e a popularizaccedilatildeo da

Internet275

Primo (1999) explicita que mesmo nesses ambientes se permite uma muacutetua

construccedilatildeo Esse estudo tem como grande desafio a reflexatildeo no (re)pensar de

organizaccedilotildeesempresas sob um novo olhar na dinacircmica dos novos paradigmas que satildeo

ajuizados na assistecircncia de accedilotildees continuadas especificamente se esta aacuterea atinge

pessoas Novas estrateacutegias se fazem urgentes quando o niacutevel de tensatildeo do cotidiano eacute

274 Cultura contemporacircnea fortemente marcada pelas tecnologias digitais 275 Disponiacutevel em lthttpptwikipediaorgwikiCibercultura gt Acesso em 06 jul 2008

somado ao exacerbado niacutevel de estresse a que estatildeo submetidas agrave grande maioria dos

profissionais Seja pela pressatildeo por resultados pela intensidade e elevado niacutevel de

competiccedilatildeo pelo medo da perda da funccedilatildeo ou do proacuteprio emprego e das incertezas em

relaccedilatildeo a seus familiares Tais indiviacuteduos ainda concentram estados de apatia

indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave proacutepria carreira sentimentos de vazio existencial conflitos

familiares em relaccedilatildeo agrave carreira sendo todas essas causas reais e muitas vezes

invisiacuteveis mesmo esses profissionais fazendo parte dos quadros das melhores empresas

ou organizaccedilotildees Portanto introduzir novas ferramentas terapecircuticas para uma melhor

qualidade de vida e desempenho de trabalho eacute mister na medida em que em tais

situaccedilotildees de estresse exacerbar-se a universal necessidade de auto-conhecimento e de

sentido para a existecircncia ndash que eacute trabalhada pelas tradiccedilotildees religiosas e movimentos

espirituais

O ecircxito de uma nova conformaccedilatildeo existencial estaacute no processo da legitimaccedilatildeo da

accedilatildeo Nesse contexto Berger (1999) trata a legitimaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo de

sentido de ldquosegunda ordemrdquo A legitimaccedilatildeo produz novos significados que servem para

integrar os significados jaacute ligados a processos institucionais diacutespares A funccedilatildeo da

legitimaccedilatildeo consiste em tornar objetivamente acessiacutevel e subjetivamente plausiacutevel as

objetivaccedilotildees de ldquoprimeira ordemrdquo que foram institucionalizadas Levando-se em conta

os motivos especiacuteficos que inspiram qualquer processo particular legitimador Berger

ainda chama atenccedilatildeo sobre a questatildeo da plausibilidade referente nesse processo ao

reconhecimento subjetivo de um sentido global ldquopor traacutesrdquo dos motivos do indiviacuteduo e de

seus semelhantes motivos predominantes no que diz respeito agrave situaccedilatildeo mas apenas

parcialmente institucionalizados

Nessa linha em niacutevel ldquomicrordquo visando trabalhar a motivaccedilatildeo e o desempenho

vem esse artigo apresentar uma estrateacutegia de accedilatildeo focada na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-

limite direcionando teacutecnicas para melhor eficaacutecia e excelecircncia no trabalho e na ecircnfase

ao bem-estar especificamente nos processos subjetivos dos profissionais a partir do

distensionamento ancorando-os na aacuterea da psicorreligiatildeo onde a modelagem de um

cenaacuterio organizado com instrumental adequado possibilite a fluidez psicossocial nos

processos de atuaccedilatildeo profissional do cotidiano

Destacando ainda como objeto desse estudo profissionais das mais

diversificadas aacutereas em situaccedilatildeo de estresse e como objetivos especiacuteficos provocar a

abertura de uma nova via de diaacutelogo em relaccedilatildeo ao campo da psicorreligiatildeo no acircmbito

das empresas buscar uma possiacutevel disposiccedilatildeo de envolvimento com a essecircncia das

religiotildees como elemento condutor de estabilidade nas situaccedilotildees-limite idealizar um

ambiente fiacutesico propiacutecio e positivo aos profissionais em situaccedilatildeo-limite de estresse

tendo como princiacutepio a subjetividade como instrumental de perspectivas

psicorreligiosas inerentes a todo ser humano sistematizar uma assistecircncia

individualizada com recursos de planos de accedilatildeo atendendo agrave constataccedilatildeo de que a

sauacutede psicoloacutegica passa pela esfera da construccedilatildeo e do entendimento do sagrado de

cada indiviacuteduo de forma proacutepria natildeo obstante a realidade nos oferecer uma enorme

variabilidade dos fenocircmenos psicorreligiosos propor um modelo no acircmbito das

empresas e organizaccedilotildees dessa abordagem-teacutecnica inovadora para aleacutem de uma

assistecircncia religiosa on-line concentrada na construccedilatildeo de um modelo sociopsicoloacutegico

na prevenccedilatildeo de situaccedilotildees-limite

22 Metodologia

Chegamos nesse contexto com o ponto focalizado na natureza humana seus

efeitos e suas relaccedilotildees muacutetuas Para a delimitaccedilatildeo metodoloacutegica desse estudo

encontramos em Bronislaw Malinowski (1997) a referecircncia que norteia nossa visatildeo

cientiacutefica do objeto de estudo no contexto do comportamento humano que se move

num meio multidimensional e complexo de interesses culturais compreendendo nesse

contexto especiacutefico orientaccedilatildeo psicoloacutegica e socioloacutegica a partir de sistemas conceitos

e valores

Destaca Malinowski que a anaacutelise funcional permite-nos verificar o uso de um

objeto como parte de um comportamento determinado pela teacutecnica pela lei ou pelo

ritual que conduz o ser humano a satisfazer uma necessidade O funcionalismo nortearaacute

o impulso principal que nesse vieacutes verificaraacute a proposta de assistecircncia psicorreligiosa

na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees-limite nos processos subjetivos dos profissionais em

situaccedilatildeo de estresse considerando essa necessidade relacionada agraves funccedilotildees bioloacutegicas

pelos laccedilos que unem os objetos aos seres humanos

Malinowski (1997) chega agrave definiccedilatildeo do funcionalismo ao demonstrar que as

instituiccedilotildees humanas assim como as atividades parciais que elas englobam se

relacionam com as necessidades primaacuterias ou seja bioloacutegicas e com as derivadas isto

eacute culturais Assim funccedilatildeo significa sempre o satisfazer de uma necessidade desde o

simples ato de comer ateacute ao dos sacramentos em que comungar se associa a todo um

sistema de crenccedilas determinadas pela necessidade cultural de uniatildeo com o Deus Vivo

A teacutecnica da assistecircncia psicorreligiosa realizada por meio de princiacutepios

computacionais simbolicamente sistematizados com o auxiacutelio de processos

tecnoloacutegicos de ponta encontra-se no acircmbito da manifestaccedilatildeo cultural religiosa onde

de acordo com Malinowski (1997) pode ser interpretada de modo funcional como

complemento imprescindiacutevel dos sistemas de pensamento e de tradiccedilatildeo puramente

racional e empiacuterica

23 Ciecircncias da Religiatildeo

Ao questionar-se sobre o que eacute lsquoCiecircncia da Religiatildeorsquo Usarski (2006) explicita

que eacute uma disciplina empiacuterica que investiga sistematicamente a religiatildeo em todas as

suas manifestaccedilotildees Natildeo se questiona entretanto a lsquoverdadersquo ou a lsquoqualidadersquo de uma

religiatildeo Do ponto de vista metodoloacutegico religiotildees satildeo ldquosistemas de sentido

formalmente idecircnticosrdquo Eacute especificamente esse princiacutepio metateoacuterico que distingue a

Ciecircncia da Religiatildeo da Teologia276 O objetivo da Ciecircncia da Religiatildeo eacute fazer um

inventaacuterio o mais abrangente possiacutevel de fatos reais do mundo religioso um

entendimento histoacuterico do surgimento e desenvolvimento de religiotildees particulares uma

identificaccedilatildeo e seus contatos muacutetuos e a investigaccedilatildeo de suas inter-relaccedilotildees com outras

aacutereas da vida A partir de um estudo de fenocircmenos religiosos concretos o material eacute

exposto agrave anaacutelise comparada Isso leva ao entendimento das semelhanccedilas e diferenccedilas

de religiotildees singulares a respeito de formas conteuacutedos e praacuteticas O reconhecimento de

traccedilos comuns do cientista da religiatildeo permite deduzir elementos que caracterizam a

religiatildeo em geral ou seja como um fenocircmeno antropoloacutegico universal

Para a histoacuteria da Ciecircncia da Religiatildeo segundo Usarski (2006) na sua qualidade

de ldquofilha emancipada da Teologiardquo eacute importante ressaltar que as uacuteltimas trecircs deacutecadas do

seacuteculo XIX foram para a Ciecircncia da Religiatildeo pelo menos tatildeo decisivas como para

vaacuterias das suas ldquodisciplinas de referecircnciardquo entre elas a sociologia a etnologia e a

psicologia A primeira caacutetedra de ldquoHistoire decircs Religionsrdquo fora da Teologia foi criada

em 1873 na Facultegrave decircs Lettres da Universidade de Genebra Apoacutes a crise do

positivismo no iniacutecio do seacuteculo XX Filoramo (1999) ressalta que o problema

epistemoloacutegico baacutesico da Ciecircncia da Religiatildeo surge pela primeira vez em toda sua

276 Um discurso racional sobre Deus Esta palavra natildeo eacute exclusivamente cristatilde nem se encontra no Novo Testamento vem do mundo grego e mais concretamente da filosofia Foi Aristoacuteteles quem empregou o termo teologia para falar de Deus Cf SANTRIDIAacuteN Pedro R Dicionaacuterio baacutesico das religiotildees Aparecida Satildeo Paulo Santuaacuterio 1996 p474

complexidade constituiacutedo pela alternativa ldquoexplicar ou compreender a religiatildeordquo De

maneira focal a Ciecircncia da Religiatildeo difere de outras ciecircncias Como qualquer outro

objeto de estudo a religiatildeo tem uma dimensatildeo visiacutevel De forma que Hans-Juumlrgen

Greschat (2005) contextualiza-a diferentemente dos objetos de outras disciplinas a

religiatildeo tem tambeacutem uma dimensatildeo invisiacutevel quando se refere ao ldquotranscendenterdquo ao

ldquoespiritualrdquo ao ldquodivinordquo ou as semelhantes Cientistas de outras disciplinas ignoram

essa dimensatildeo sem que isso distorccedila seus resultados Se cientistas da religiatildeo negassem

o transcendente natildeo levariam os fieacuteis a seacuterio e posicionar-se-iam arrogantemente contra

eles

O que chamamos de religiatildeo tem-se manifestado no decorrer da histoacuteria e em

todas as partes do mundo em diversificaccedilotildees e diferenccedilas muacuteltiplas De acordo com

essa complexidade natildeo eacute adequado pensar em uma definiccedilatildeo fechada de religiatildeo mas

optar por certo conceito aberto capaz de superar um entendimento preacute-teoacuterico que

generaliza fenocircmenos religiosos sobretudo os de origem cristatilde com os quais estamos

culturalmente acostumados Usarski (2006) a partir de uma entrevista com alunos do

programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo da PUC-SP em julho de 2002

divide o conceito de religiatildeo em quatro elementos

Primeiro religiotildees constituem sistemas simboacutelicos com plausibilidades proacuteprias

Segundo do ponto de vista de um indiviacuteduo religioso a religiatildeo caracteriza-se como a

afirmaccedilatildeo subjetiva de que existe algo transcendental algo extra-empiacuterico algo maior

mais fundamental ou mais poderoso do que a esfera que nos eacute imediatamente acessiacutevel

atraveacutes do instrumentaacuterio sensorial humano

Terceiro religiotildees se compotildeem de vaacuterias dimensotildees particularmente temos de pensar

na dimensatildeo da feacute na dimensatildeo institucional na dimensatildeo ritualiacutestica na dimensatildeo da

experiecircncia religiosa e na dimensatildeo eacutetica

Quarto religiotildees cumprem funccedilotildees individuais e sociais Elas datildeo sentido agrave vida

alimentam esperanccedilas para o futuro proacuteximo ou remoto sentido esse que algumas vezes

transcende o da vida atual e com isso possui a potencialidade de compensar

sofrimentos imediatos Religiotildees podem ter funccedilotildees poliacuteticas no sentido ou de legitimar

e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionaacuterias Aleacutem disso

religiotildees integram socialmente uma vez que membros de determinada comunidade

religiosa compartilham a mesma cosmovisatildeo seguem valores comuns e praticam sua feacute

em grupos

Ultrapassado o obstaacuteculo da afirmaccedilatildeo de que ldquotal religiatildeo eacute a verdadeirardquo Vigil

(2006) centra-se na afirmaccedilatildeo de que ldquotodas as religiotildees satildeo verdadeirasrdquo As religiotildees

tecircm seu valor em si mesmo O autor ainda trata de conceituar espiritualidade e religiatildeo

estabelecendo distinccedilatildeo entre o religioso ou a religiatildeo e o espiritual ou a

espiritualidade pois natildeo eacute a mesma coisa Ainda segundo Vigil (2006) a

espiritualidade eacute muito mais ampla do que a religiatildeo A espiritualidade natildeo eacute como se

pensa tradicionalmente um subproduto da religiatildeo uma atitude produzida pela religiatildeo

em seus adeptos pelo contraacuterio a religiatildeo eacute simplesmente uma forma dentre muitas nas

quais se pode expressar essa realidade abrangente e maximamente profunda que eacute a

espiritualidade acessiacutevel a todo ser humano antes e na base de sua adesatildeo a uma

religiatildeo

Acolher a pluralidade religiosa eacute a proposiccedilatildeo desse estudo entatildeo natildeo faz

sentido perguntar pelas identidades religiosas do puacuteblico alvo pois a questatildeo principal

estaacute no fator da espiritualidade intriacutenseca em cada indiviacuteduo e nessa perspectiva a

priori a verdadeira religiatildeo simplesmente eacute a que faz a diferenccedila dentro de cada ser a

que complementa seus momentos de infortuacutenio e a que eacute elevada no agradecimento das

graccedilas alcanccediladas

Durkheim (1996) considera que quando certo nuacutemero de coisas sagradas

manteacutem entre si relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo e de subordinaccedilatildeo de maneira a formar um

sistema dotado de certa unidade mas que natildeo participa ele proacuteprio de nenhum outro

sistema do mesmo gecircnero o conjunto das crenccedilas e dos ritos correspondentes constitui

uma religiatildeo Trata-se de um todo formado de partes distintas e relativamente

individualizadas O autor ainda entende que cada grupo homogecircneo de coisas sagradas

ou mesmo um centro organizador em torno do qual gravita um grupo de crenccedilas e ritos

um culto particular natildeo haacute religiatildeo por mais unitaacuteria que seja que natildeo reconheccedila uma

pluralidade de coisas sagradas

24 Psicologia da Religiatildeo

Entendendo o desafio e conscientes das nossas argumentaccedilotildees esse estudo busca

em Edecircnio Valle (2007) justificativas teoacutericas referentes agrave histoacuteria da humanidade que

haacute milecircnios tenta esclarecer o problema do relacionamento entre psiquismo e a religiatildeo

do ponto de vista da complexidade da alma humana em sua busca de sentido havendo

da parte dos pesquisadores o entendimento da enorme diversidade nas motivaccedilotildees

objetivos e dinacircmicas dos comportamentos religiosos

Valle (2007) afirma que a Psicologia da Religiatildeo estaacute consciente de que a

metodologia da pesquisa e compreensatildeo do humano natildeo pode se fechar aos aspectos

proacuteprios de comportamentos complexos como o religioso Sendo a religiosidade

idiossincraacutetica277 e a religiatildeo polissecircmica278 em cada uma das suas fontes e

manifestaccedilotildees a Psicologia da Religiatildeo natildeo esta autorizada a partir do pressuposto de

que a religiosidade seja uma realidade uacutenica Ao contraacuterio ela precisa pressupor que os

fenocircmenos psicorreligiosos satildeo de enorme variedade razatildeo pela qual solicita da parte

de quem a observa uma grande lucidez teoacuterico-epistemoloacutegica e metodoloacutegica Nesse

propoacutesito uma condiccedilatildeo para que a Psicologia da Religiatildeo aborde seu objeto sem

equiacutevocos e reduccedilotildees injustificadas eacute equilibrar o rigor do meacutetodo com suficiente

amplidatildeo teoacuterica para assim abraccedilar os muacuteltiplos processos subjetivos e objetivos

implicados na experiecircncia do ser humano colocado ante as questotildees-limite de seu

existir

Poreacutem de forma bem direta podemos dizer que religiatildeo eacute uma doutrina

estabelecida e reconhecida uma pessoa diante de uma religiatildeo natildeo tem alternativas para

inventar novas regras ou crenccedilas essas questotildees jaacute estatildeo preacute-estabelecidas e podem ser

aceitas ou natildeo pelos seus fieis jaacute a religiosidade eacute uma praacutetica coletiva mas que admite

certo grau de criatividade por exemplo os grupos moldam uma espeacutecie de religiosidade

dentro de uma religiatildeo jaacute estruturada secularmente e finalmente a espiritualidade eacute uma

dimensatildeo mais individual do contato com o sagrado aiacute as pessoas podem desenvolver

praacuteticas pessoais

A Psicologia da Religiatildeo eacute ressaltada em Valle (2007) como um dos embriotildees

dos quais nasceu agrave proacutepria psicologia moderna Algumas grandes obras dos pioneiros da

psicologia foram dedicadas a temas expressamente religiosos As relaccedilotildees entre teologia

e a psicologia natildeo tinham naquele momento a agressividade que passou a caracterizaacute-

las em iniacutecios do seacuteculo XX As novidades trazidas pelo conjunto das ciecircncias

relacionadas agrave psique humana segundo Valle (2007) provocaram uma reviravolta em

277 Idiossincrasia Disposiccedilatildeo do temperamento do indiviacuteduo que o faz reagir de maneira muito pessoal agrave accedilatildeo dos agentes externos maneira de ver sentir reagir proacutepria de cada pessoa Aureacutelio Buarque de Holanda Ferreira Novo Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 2 ed Rio de Janeiro Nova fronteira 1986 p 914 278 Polissemia Ter uma palavra muitas significaccedilotildees Cf FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 2 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 p 1357

concepccedilotildees milenarmente assumidas e transmitidas como indiscutiacuteveis pelas religiotildees

A Psicologia associou-se em dado momento agraves outras ciecircncias da modernidade para

usar das religiotildees o prestiacutegio e a credibilidade de que gozavam no mundo antigo e

medieval Muitos desses questionamentos e pendecircncias estatildeo ateacute hoje mal resolvidos e

ou sem soluccedilatildeo Um fato que ajudou na amenizaccedilatildeo dessa situaccedilatildeo esta sendo a

autocriacutetica agrave qual as ciecircncias se submetem atualmente reconhecendo muitas vezes a

precariedade de seus paracircmetros tidos antes como totalmente objetivos e neutros

Jung via a religiosidade como uma funccedilatildeo natural e inerente agrave psique Chegava a

consideraacute-la como aponta Silveira (1983) um instinto um fenocircmeno genuiacuteno A

religiatildeo era vista mais como uma atitude da mente do que qualquer credo sendo este

uma forma codificada da experiecircncia religiosa original Jung considerava todas as

religiotildees vaacutelidas visto que todas recolhem e conservam imagens simboacutelicas advindas

do inconsciente coletivo elaborando-as em seus dogmas e assim realizando conexotildees

com as estruturas baacutesicas da vida psiacutequica A autora afirma ainda que Jung reconhecia

todos os deuses como possiacuteveis desde que tenham sido atuantes no psiquismo humano

Isto apesar de as afirmaccedilotildees religiosas natildeo poderem ser universalmente comprovaacuteveis

Segundo Jung ainda todos os psicoacutelogos que estudem os fenocircmenos religiosos devem

abster-se de considerar como verdadeiro somente o que apresentar-se como um dado

fiacutesico visto natildeo ser este seu uacutenico criteacuterio de veracidade Haacute aleacutem verdades psiacutequicas

que natildeo podem ser recusadas mesmo sendo de difiacutecil explicaccedilatildeo Todas as religiotildees

vecircm do mesmo solo o inconsciente coletivo

O conceito de inconsciente explicita Paden (2001) inclui tudo aquilo sobre si

mesmo que por uma ou outra razatildeo o indiviacuteduo eacute incapaz de tornar consciente Nos

anos que se seguiram a 1912 Jung rompe com Freud porque o modelo do seu famoso

amigo era de concepccedilatildeo demasiada estreita e uma noccedilatildeo mais ampla da psique

precisava ser construiacuteda Na visatildeo de Jung o inconsciente freudiano estava limitado a

uma esfera onde o ego potildee todo o seu passado pessoal reprimido onde traumas desejos

inaceitaacuteveis e noacutes psicoloacutegicos natildeo-resolvidos de diversos tipos ficam armazenados

poreacutem continuando inconscientemente ativos Embora esses conteuacutedos sejam

suprimidos seu proacuteprio status inconsciente interfere nas vidas dos indiviacuteduos ateacute que

sejam trazidos agrave luz pela psicanaacutelise Contrapondo-se a essa imagem que foi vitima de

reducionismos por disciacutepulos de Freud Jung postulou um esquema mais amplo que via

o inconsciente natildeo soacute na sua dimensatildeo pessoal mas tambeacutem e principalmente na sua

dimensatildeo coletiva um reservatoacuterio das experiecircncias psiacutequicas da histoacuteria da

humanidade Na visatildeo de Jung o inconsciente era tatildeo profundo e tinha tantos niacuteveis

quanto o proacuteprio mundo refletindo as funccedilotildees criativas da vida assim como as

patologias Eacute aqui que entra a religiatildeo segundo Paden (2001) Enquanto para Freud os

siacutembolos religiosos eram fragmentos irocircnicos disfarccedilados da infacircncia natildeo-resolvida

para Jung eles podiam tambeacutem funcionar como mediadores positivos entre o ego e uma

parte mais profunda do self279 como agentes ativos de mudanccedila psicoloacutegica e

recentramento ou individuaccedilatildeo na linguagem junguiana do ser humano Se os deuses

representam projeccedilotildees de relaccedilotildees de dependecircncia eles tambeacutem representam projeccedilotildees

de transcendecircncia do ego e de uma emergente e mais abrangente autoconsciecircncia O

termo-chave de Jung para a totalidade da vida consciente e inconsciente eacute psique Ele

via a linguagem religiosa da religiatildeo como parte da linguagem natural da psique o

pensamento religioso natildeo nos diz o que eacute o universo mas revela o modo como a psique

simboliza a si mesma

Para Jung de acordo com Paden (2001) o poder das imagens religiosas eacute

portanto natildeo apenas o de representar a dependecircncia do ego como Freud poderia dizer

mas tambeacutem o de ativar o self que de certo modo ajuda a superar as neuroses e

fraquezas do ego Esse modelo de interpretaccedilatildeo da psicologia jungiana traduziu a

linguagem religiosa sobre o relacionamento entre humanidade e divindade para a

dinacircmica da relaccedilatildeo ego-self

O desenvolvimento psicoloacutegico moderno leva-nos segundo Jung (2007) a uma

compreensatildeo melhor daquilo de que o ser humano realmente se compotildee Primeiro os

deuses de poder e beleza sobrenaturais viviam nos cumes nevados dos montes ou nas

profundezas das cavernas dos bosques e dos mares Mais tarde fundiram-se num soacute

Deus que logo se fez homem Mas em nossa eacutepoca parece que ateacute o proacuteprio Deus-

Homem desce de seu trono para se diluir no homem comum Eacute por este motivo talvez

que seu lugar se encontre vazio E por isso tambeacutem o homem moderno sofre de uma

hybris da consciecircncia que se aproxima de um estado patoloacutegico

O mito religioso eacute uma das maiores e mais importantes aquisiccedilotildees que datildeo ao

homem segundo Jung (1995) a seguranccedila e a forccedila para natildeo ser esmagado pela

imensidatildeo do universo O siacutembolo eacute a chave da linguagem inteira da experiecircncia

279 O conceito de self fornece um esquema para explicitar o extraordinaacuterio papel desempenhado pelos siacutembolos miacuteticos e religiosos na experiecircncia humana Interpretando o sagrado modos de conceber a religiatildeo Cf PADEN 2001 p101

religiosa O simbolismo implica em uma funccedilatildeo social de comunicaccedilatildeo mas antes

disso ou ao mesmo tempo em uma vivecircncia Croatto (2001) explicita o significado

etimoloacutegico do termo ldquosiacutembolordquo como sendo do grego sum-ballo ou sym-ballo que se

refere agrave uniatildeo de duas coisas

Consideraccedilotildees finais

Eacute interessante para a reflexatildeo e tambeacutem muito surpreendente que hoje

numericamente do ponto de vista estatiacutestico as paacuteginas da web de cibersex e

cibereligiatildeo satildeo os dois best sellers absolutos da web Tambeacutem surpreende a quem entra

no ciberespaccedilo uma sensaccedilatildeo de ldquopromiscuidade temaacuteticardquo como bem coloca Andacht

(2000) quando expotildee o exemplo do Yahoo como um grande buscador no qual muitos

clubes onde se misturam em um modo fantaacutestico num sentido forte de ldquofantaacutesticordquo os

tipos mais diferentes e ateacute antiteacuteticos de religiotildees como algo mais forte ainda poderia

ateacute se falar de um shopping de religiotildees porque com somente um click se pode passar

de uma visita a uma congregaccedilatildeo com caracteriacutesticas de cristianismo adolescente e

ingecircnuo a uma de satanismo feroz e expliacutecito Quem passeia pelo ciberespaccedilo eacute muito

forte essa ideacuteia de hiper-viacutenculo de ldquosaltarrdquo de ldquosurfarrdquo como se fala na internet de

um mundo da crenccedila a outro

Na privacidade de um espaccedilo virtual fora da internet onde natildeo haja a

possibilidade de ldquosurfarrdquo (pelos diversos sites) eacute um dos focos de reflexatildeo desse estudo

objetivando portanto um programa especiacutefico desenvolvido exclusivamente para

atender aos profissionais em situaccedilatildeo de estresse de empresas e organizaccedilotildees atores

sociais focais nessa reflexatildeo

Entretanto eacute preciso que fique bem esclarecido que o estudo aqui apresentado

como reflexatildeo natildeo se propotildee a substituiccedilatildeo ao atendimento tradicional psicoloacutegico mas

sim no acircmbito da psicorreligiatildeo oferecer assistecircncia espiritualreligiosa tratado como

atendimento de suporte tendo como objetivo direto como bem explicita Andacht

(2000) o lsquovirtualrsquo que quer dizer uma coisa que tem a virtus a forccedila o poder a

potecircncia de outra coisa como instrumento de encontros cibersagrados tendo tambeacutem a

consciecircncia de que esse encontro virtual natildeo substitui os espaccedilos religiosos

convencionais ou tradicionais

Nesse sentido essa reflexatildeo tange a possibilidade de se construir um espaccedilo de

psicoterapia religiosa para atender a princiacutepio tais profissionais como tambeacutem a

pretensatildeo de no desdobramento dessa proposta de estudo dar continuidade instrumental

Dessa forma natildeo haacute intenccedilatildeo de buscar resultados parciais ou finais nesse momento

Referecircncias

ANDACHT Fernando 2000 Ciberespaccedilo e cibersagrado como a nova e maior assembleacuteia poliacutetica religiosa de nosso tempo Palestra proferida no Seminaacuterio Miacutedia Poliacutetica e Religiatildeo Org Poacutes-Graduaccedilatildeo da ECOUFRJ Disponiacutevel em lthttpwwwecoufrjbreposartigosart_andachthtmgt acesso em 16 jun 2008

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VIGIL Joseacute Maria 2006 Teologia do pluralismo religioso para uma releitura pluralista do cristianismo Satildeo Paulo Paulus 469 p

GT Religiatildeo Economia e Poliacutetica EMENTAS A feacute nas ondas do raacutedio a miacutedia empresarial-religiosa Luther King de Andrade Santana Em geral nos estudos sobre a relaccedilatildeo evangeacutelicos e miacutedia a ecircnfase recai na possiacutevel influecircncia dos veiacuteculos de comunicaccedilatildeo para o crescimento deste grupo no discurso e posicionamento poliacutetico que o grupo assume em suas miacutedias ou na concorrecircncia entre igrejas donataacuterias de empresas de miacutedia Tambeacutem eacute crescente o interesse sobre a relaccedilatildeo entre evangeacutelicos e televisatildeo destacando-se aiacute o investimento o proselitismo e a disputa religiosa Interessa-nos poreacutem duas raacutedios evangeacutelicas do Rio de Janeiro por se estabelecerem com tecnologia e linguagem para disputar audiecircncia tendo o pluralismo religioso e o consumo como mediaccedilatildeo para a livre concorrecircncia em substituiccedilatildeo ao proselitismo denominacional e aos viacutenculos institucionais

Economia ecumene e ecologia e o desenvolvimento sustentaacutevel oikos-teologia e habitat na perspectiva wesleyana

Helmut Renders Na teologia wesleyana destacam-se nos uacuteltimos 10 anos a sua ecircnfase no tema da nova criaccedilatildeo [heranccedila anglicana] e seu desdobramento para a soteriologia [soteriologia social] O artigo relaciona nesta perspectiva os trecircs temas do desenvolvimento sustentaacutevel (economia social meio ambiente) com os trecircs elementos da oikos-teologia (economia [economia da salvaccedilatildeo trinitaacuteria e ser humano como ecocircnomo] ecumene [alianccedilas sustentaacuteveis e da promoccedilatildeo da sustentabilidade] e ecologia [missatildeo da sustentabilidade e sustentabilidade da missatildeo]) O autor alega que o modelo da terra geia natildeo deve significar o retorno para sua divinizaccedilatildeo mas a ecircnfase na criaccedilatildeo como organismo inclusive com a capacidade de ato-organizaccedilatildeo ou auto-regulamento e sugere o modelo complementar da criaccedilatildeo como sacramento Perseguiccedilotildees e Preconceitos Religiosos em Caratinga no periacuteodo de 1936 a 1941 Simone Rodrigues Baacuterbara Este trabalho tem como objetivo estudar as relaccedilotildees entre a poliacutetica e a religiatildeo no interior de Minas Gerais na cidade de Caratinga no periacuteodo de 1936 a 1941 O estudo de caso proposto relata uma desavenccedila entre catoacutelicos e espiacuteritas no governo do prefeito municipal Omar Coutinho quando o caso foi parar na capital do paiacutes e nas mais altas ordenanccedilas catoacutelicas do Brasil O prefeito citado era de famiacutelia espiacuterita quando assumiu a prefeitura encontrou forte resistecircncia do Bispo local Iniciandashse uma seacuterie de desavenccedilas que culminam em grande movimentaccedilatildeo poliacutetica utilizando os jornais locais em uma grande campanha para que o prefeito fosse deposto e que a ldquotradicional famiacutelia catoacutelicardquo voltasse ao comando poliacutetico do municiacutepio

GT Religiatildeo Economia e Poliacutetica TEXTOS

A feacute nas ondas do raacutedio a linguagem da miacutedia empresarial-religiosa

Luther King de Andrade Santana

De modo geral nos estudos sobre a relaccedilatildeo evangeacutelicos e miacutedia280 a ecircnfase recai na

possiacutevel influecircncia dos veiacuteculos de comunicaccedilatildeo para o crescimento deste grupo281 no discurso

e posicionamento poliacutetico que o grupo assume em suas miacutedias ou na concorrecircncia entre igrejas

donataacuterias de empresas de miacutedia Tambeacutem eacute crescente o interesse sobre a relaccedilatildeo entre

evangeacutelicos e televisatildeo destacando-se aiacute o investimento o proselitismo e a disputa religiosa

Nesta pesquisa pretendemos investigar a construccedilatildeo de uma linguagem religiosa e

midiaacutetica por empresas de comunicaccedilatildeo de radiodifusatildeo Nosso interesse se volta para o raacutedio

por entendermos ser o meio de comunicaccedilatildeo popular com grande audiecircncia no horaacuterio

comercial282 A dinacircmica da comunicaccedilatildeo no raacutedio eacute direta intimista e inclusiva As pessoas

ouvem raacutedio em diferentes lugares em escritoacuterios em consultoacuterios em casa em bairros que

tenham sistema de som puacuteblico que funciona nas ruas em lojas no carro O raacutedio tem um

alcance maior que a televisatildeo tanto territorialmente quanto demograficamente283

Para nossa pesquisa escolhemos duas raacutedios orientadas para o puacuteblico evangeacutelico da

Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro a Raacutedio Melodia FM 973 e a Raacutedio El Shadai FM

933284 Pelo fato dessas raacutedios natildeo pertencerem a nenhuma denominaccedilatildeo igreja autocircnoma ou

liacuteder carismaacutetico nos perguntamos o que justifica elas estarem disputando os primeiros lugares

de audiecircncia entre todas as FMs da Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro285 Qual a

UERJUSSUNICARIOCA 280 Definimos como evangeacutelicas as igrejas protestantes e pentecostais de variados matizes P FRESTON Protestantismo e poliacutetica no Brasil Tese de Doutorado em Ciecircncias Sociais UNICAMP 1993 A B FONSECA Evangeacutelicos e miacutedia no Brasil Dissertaccedilatildeo de Mestrado PPGSA IFCSUFRJ 1997 V FIGUEIREDO FILHO Entre o palanque e o puacutelpito religiatildeo miacutedia e poliacutetica Dissertaccedilatildeo de Mestrado PPGCP IFCSUFRJ 2002 281 Em nuacutemeros absolutos os catoacutelicos caem de 952 (39177880) em 1940 para 738 (124980131) em 2000 enquanto os evangeacutelicos crescem no mesmo periacuteodo de 26 (1074857) para 1545 (26184942)L S CAMPOS Protestantismo brasileiro e mudanccedila social in SOUZA B M et al (org) Sociologia da religiatildeo e mudanccedila social SP Paulus 2004 p 129 282 J L O A SILVA Raacutedio oralidade mediatizada o spot e os elementos da linguagem radofocircnica SP Annablume 1999 p 38 283 Idem 284 Essas raacutedios atingem quase todo territoacuterio nacional via sateacutelite ou reproduzidas por pequenas repetidoras formando uma rede de comunicaccedilatildeo 285 Em 15 agosto de 2007 a Raacutedio Melodia FM ocupava o segundo lugar e a raacutedio El Shadai o quarto lugar no ranking geral das fmacutes na Regiatildeo Metropolitana do RJ Fonte Ranking das FMrsquos

linguagem (rede de significados) utilizada por elas que mesmo fora da regulaccedilatildeo institucional

consegue inserccedilatildeo no campo religioso evangeacutelico Quais satildeo suas estrateacutegias de marketing e

comunicaccedilatildeo Em quais aacutereas da Regiatildeo Metropolitana do Rio de Janeiro a audiecircncia eacute maior

O que elas priorizam em suas programaccedilotildees

Sustentando um ethos e uma visatildeo de mundo a linguagem dessas raacutedios divulga crenccedilas e

valores comuns aos evangeacutelicos tecendo uma teia de significados (Geertz 1978)286 fora da

regulaccedilatildeo institucional das igrejas Considerando a complexidade de nossa sociedade

entendemos que natildeo haacute mais um nuacutecleo central de onde procedem o sentido da realidade e a

definiccedilatildeo do religioso Satildeo muacuteltiplas as fontes de definiccedilatildeo e de sentido da realidade A miacutedia

tem sido apontada como uma dessas fontes e talvez a de maior influecircncia em nossos dias

Segundo Vattimo (1996) a miacutedia eacute o lugar da visibilidade atual estar na miacutedia eacute existir eacute ser

comprado eacute ditar normas eacute atingir a consciecircncia criando consenso A miacutedia faz parte da massa

de tal forma que soacute nela e nela mesma que se constitui a linguagem comum Tal linguagem eacute

produzida e distribuiacuteda com muito peso para todos os indiviacuteduos ldquo[] a miacutedia produz consenso

instauraccedilatildeo e intensificaccedilatildeo de uma linguagem comum no socialrdquo287

ldquo[] a miacutedia que distribui informaccedilatildeo cultura entretenimento mas sempre sob criteacuterios gerais de ldquobelezardquo (atraccedilatildeo formal dos produtos) assumiu na vida de todos um peso infinitamente maior do que em qualquer outra eacutepoca do passado Ela natildeo eacute um meio para a massa a serviccedilo da massa eacute o meio da massa no sentido de que a constitui como tal como esfera puacuteblica do consenso dos gostos e dos sentimentos comunsrdquo (VATTIMO 1996 p44)

Desta forma essas raacutedios mesmo fora do reduto eclesiaacutestico com sua linguagem

compartilham siacutembolos comuns aos evangeacutelicos criando assim consistecircncia cultural (Velho

1994)288 necessaacuteria para se estabelecerem no campo religioso evangeacutelico

A existecircncia de muitas fontes de sentido e de definiccedilatildeo fato comum numa sociedade

complexa pode sugerir uma disputa entre vaacuterios discursos diferentes uma polifonia289 -

segundo Bakhtin (1988) - ou seja discursos articulados uns aos outros e ao mesmo tempo

autocircnomos que disputam a cena social Essa disputa se daacute pela relaccedilatildeo entre os discursos pelo

diaacutelogo que travam entre si dentro de um contexto soacutecio-cultural especiacutefico

No entanto aleacutem de reconhecer a polifonia numa sociedade complexa eacute necessaacuterio

tambeacutem (re)interpretar esses discursos para se desvelar as disputas as negociaccedilotildees as

interlocuccedilotildees existentes entre eles O recurso de uma hermenecircutica de profundidade tal qual

nos mostra Thompson (1995)290 pode enriquecer a anaacutelise da linguagem dessas raacutedios

Thompson afirma que a hermenecircutica de profundidade tem trecircs momentos No primeiro uma 286 C GEERTZ A interpretaccedilatildeo das culturas RJ Zahar 1978 p15 287 G VATTIMO O fim da modernidade SP Martins Fontes 1996 288 G VELHO Projeto e metamorfose antropologia das sociedades complexas RJ Zahar 1994 p 17 289 M BAKHTIN Questotildees de literatura e esteacutetica Teoria do romance SP HucitecUnesp 1988 D L P BARROS amp J L FIORIN Dialogismo polifonia e intertextualidade em torno de Bakhtin SP USP 1999 290 J B THOMPSON Ideologia e cultura moderna teoria social criacutetica na era dos meios de comunicaccedilatildeo de massa Petroacutepolis Vozes 1995 p356-365

anaacutelise do contexto soacutecio-histoacuterico do discurso No segundo uma anaacutelise formal do discurso E

no terceiro a interpretaccedilatildeo ou re-interpretaccedilatildeo do discurso Ou seja tanto Bakhtin quanto

Thompson nos apontam para a urgecircncia em conhecer o contexto histoacuterico-social dos discursos

analisar sua retoacuterica e por fim investigar a interpretaccedilatildeo e re-interpretaccedilatildeo desses discursos por

parte dos envolvidos neles

Segundo Geertz (1978) os estudos claacutessicos em Antropologia da Religiatildeo datildeo maior

ecircnfase agrave relaccedilatildeo dos sistemas religiosos com os processos soacutecio-estruturais e psicoloacutegicos o que

ele chama de segundo estaacutegio Para ele eacute necessaacuterio voltarmos a atenccedilatildeo para a construccedilatildeo dos

sistemas de significados incorporados nos siacutembolos que formam a religiatildeo propriamente

dita291 o primeiro estaacutegio Geertz entende que eacute necessaacuteria a inversatildeo no procedimento

cientiacutefico para que se conheccedila a accedilatildeo simboacutelica motivada pelos sistemas de significados

A pouca satisfaccedilatildeo que venho obtendo com grande parte do trabalho antropoloacutegico social contemporacircneo sobre religiatildeo provecircm natildeo do fato dele se preocupar com o segundo estaacutegio mas do fato de negligenciar o primeiro e ao fazecirc-lo considerar como certo aquilo que precisa ser elucidado [hellip] Somente quando tivermos uma anaacutelise teoacuterica da accedilatildeo simboacutelica comparaacutevel em sofisticaccedilatildeo agrave qual temos hoje para a accedilatildeo social e para a accedilatildeo psicoloacutegica estaremos em condiccedilotildees de enfrentar decisivamente aqueles aspectos da vida social e psicoloacutegica nos quais a religiatildeo (ou a arte a ciecircncia a ideologia) desempenha um papel determinante (GEERTZ 1978 p142)

Entendemos que uma das formas de compreendermos a linguagem das raacutedios citadas eacute

por meio da anaacutelise da teia de significados produzida por elas Apesar dessas raacutedios natildeo serem

vinculadas a instituiccedilotildees religiosas a linguagem usada por elas eacute religiosa Somente quando

entendermos o que como com quem e por que as raacutedios falam o que falam eacute que

compreenderemos a relaccedilatildeo dessa accedilatildeo simboacutelica com o plano soacutecio-estrutural e psicoloacutegico

Por outro lado natildeo podemos supor que o ouvinte dessas raacutedios seja uma folha em branco

na qual elas iratildeo imprimir o que acharem melhor Esse indiviacuteduo eacute tambeacutem um grande

negociador da sua consciecircncia Ele escolhe controla as tradiccedilotildees mistura fazendo com que os

conteuacutedos religiosos passem a ser privados individuais e se refiram agrave existecircncia individual a

histoacuteria de vida Isto eacute mais um indicativo de que a linguagem religiosa pode estar sendo usada

fora dos limites institucionais religiosos com legitimidade e aceitabilidade

O contexto de pluralismo da atualidade contribui para uma mudanccedila da religiatildeo na

consciecircncia individual (Berger 1985)292 A minimizaccedilatildeo (ou natildeo) do discurso religioso em

busca de legitimaccedilatildeo social a afinidade empresarial entre as vaacuterias agecircncias de miacutedia

evangeacutelica a formulaccedilatildeo de um discurso sem ecircnfase doutrinaacuteria a apropriaccedilatildeo da linguagem

religiosa pela miacutedia satildeo fatores que podem alterar a religiatildeo na consciecircncia isto eacute modificar o

habitus religioso

291 C GEERTZ op cit p142

292 P L BERGER O Dossel Sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo SP Paulus 1985p160

Em funccedilatildeo de sua posiccedilatildeo na estrutura da distribuiccedilatildeo do capital de autoridade propriamente religiosa as diferentes instacircncias religiosas indiviacuteduos ou instituiccedilotildees podem lanccedilar matildeo do capital religioso na concorrecircncia pelo monopoacutelio da gestatildeo dos bens de salvaccedilatildeo e do exerciacutecio legiacutetimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representaccedilotildees e praacuteticas dos leigos inculcando-lhes um habitus religioso princiacutepio gerador de todos os pensamentos percepccedilotildees e accedilotildees segundo as normas de uma representaccedilatildeo religiosa do mundo natural e sobrenatural ou seja objetivamente ajustados aos princiacutepios de uma visatildeo poliacutetica do mundo social (LUCKMANN apud MARTINO 2003 p58 - grifo nosso)

Todo esse processo nos conduz a identificaccedilatildeo da contemporaneidade como condiccedilatildeo

soacutecio-cultural necessaacuteria e suficiente para todo esse empreendimento comunicacional

[hellip] como jaacute se observou muitas vezes e acertadamente essas instituiccedilotildees [meios de comunicaccedilatildeo de massa] desempenham um papel-chave na orientaccedilatildeo moderna de sentido ou melhor na comunicaccedilatildeo de sentido Satildeo intermediadoras entre a experiecircncia coletiva e individual oferecendo interpretaccedilotildees tiacutepicas para problemas definidos como tiacutepicos Tudo o que as outras instituiccedilotildees produzem em mateacuteria de interpretaccedilotildees de realidade e de valores os meios de comunicaccedilatildeo selecionam organizam (empacotam) transformam na maioria das vezes no curso desse processo e decidem sobre a forma de sua difusatildeo (BERGER amp LUCKMANN 2004 p 68 grifo nosso)

Sabemos que muitos desses condicionantes citados anteriormente tecircm sido explicados

pela teoria da secularizaccedilatildeo293 poreacutem ela natildeo se aplica a esta pesquisa Ainda que entendamos

a perda de domiacutenios que as religiotildees institucionais sofrem e a consequente transformaccedilatildeo de

alguns de seus setores em modelos empresarial-administrativos as raacutedios supracitadas

transitam fora da regulaccedilatildeo institucional o que nos impede de explicar essa linguagem dentro

do tenso quadro da secularizaccedilatildeo

Freston (1993)294 apresenta algumas justificativas para a relaccedilatildeo entre os evangeacutelicos e a

miacutedia Segundo ele os evangeacutelicos tecircm por princiacutepio religioso a divulgaccedilatildeo de sua feacute e isto

deve acontecer por quaisquer meios de comunicaccedilatildeo Como consequecircncia sempre existe entre

os evangeacutelicos o desejo missionaacuterio do proselitismo que tem como caracteriacutestica principal a

simplificaccedilatildeo da mensagem para conversatildeo de muitos Aleacutem disso com o crescimento dos

evangeacutelicos e a negaccedilatildeo dos atrativos mundanos feita por eles surgem condiccedilotildees culturais para

uma socializaccedilatildeo dirigida atraveacutes de discursos de variados tipos e produtos de bens simboacutelicos e

materiais para dar sustentaccedilatildeo agrave feacute

293 P L BERGER op cit 1985 P L BERGER A dessecularizaccedilatildeo do mundo uma visatildeo global Religiatildeo e Sociedade vol 21 no1 abril 2001 pp9-24 A FORTIN-MELKEVIK A exclusatildeo reciacuteproca da modernidade e da religiatildeo nos pensadores contemporacircneos Juumlrgen Habermas e Marcel Gauchet Concilium 244 pp 70[850]-82[862] 19926 C L MARIZ Secularizaccedilatildeo e dessecularizaccedilatildeo comentaacuterios a um texto de Peter Berger Religiatildeo e Sociedade vol 21 no1 abril 2001 pp 25-39 P A R OLIVEIRA Secularizaccedilatildeo mercado e o sagrado imanente [s d] (mimeo) A F PIERUCCI Reencantamento e dessecularizaccedilatildeo a propoacutesito do auto-engano em sociologia da religiatildeo Novos Estudos CEBRAP 49 pp99-119 1997 P SANCHIS A profecia desmentida Folha de SP Caderno Mais 20041997 p58 294 P FRESTON op cit p135-136

Como jaacute dissemos o interesse crescente sobre a relaccedilatildeo entre evangeacutelicos e miacutedia se

deteacutem mais no uso que estes fazem da televisatildeo Na produccedilatildeo cientiacutefica o raacutedio tem o menor

destaque comparativamente agraves outras miacutedias Haussen295 fez um levantamento nos Programas

de Poacutes-graduaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo entre os anos de 1991 e 2001 para identificar quantas

produccedilotildees acadecircmicas versavam sobre o raacutedio Em 10 anos foram escritos 82 artigos sobre

raacutedio entre esses somente 1 artigo era sobre as raacutedios religiosas Ainda foram identificadas 89

dissertaccedilotildees 16 teses e 63 livros296 dos quais nenhum destes faziam referecircncia ao raacutedio como

meio de transmissatildeo de mensagens religiosas Ou seja a pesquisa sobre raacutedios religiosas ou

com discurso religioso no Brasil em 10 anos foi pequena o que por si soacute jaacute nos desperta

interesse

Com certeza a televisatildeo daacute maior visibilidade a qualquer grupo Poreacutem poucas satildeo as

denominaccedilotildees297 evangeacutelicas que possuem concessatildeo de televisatildeo298 Para noacutes estas

denominaccedilotildees formam o que chamamos de Miacutedia Denominacional (MD) isto eacute miacutedias que

estatildeo em funccedilatildeo de alguma igreja especiacutefica por exemplo a IURD e a Igreja Internacional da

Graccedila de Deus

Haacute ainda as investidas de lideranccedilas evangeacutelicas nas emissoras comerciais com programas

proacuteprios alguns auto-sustentaacuteveis e outros que vivem de mantenedores alcanccedilados pelo proacuteprio

programa Eacute o caso dos programas Vitoacuteria em Cristo do Pastor Silas Malafaia exibido na Rede

TV aos saacutebados pela manhatilde e outros com menos tempo na mesma emissora e em outras

exemplos que denominamos de Miacutedia de Lideranccedilas Evangeacutelicas (MLE) Isto porque apesar de

todos os pastores e apresentadores que fazem esses programas estarem ligados a alguma

denominaccedilatildeo exceto as que tecircm sua proacutepria miacutedia eles natildeo fazem divulgaccedilatildeo de suas

denominaccedilotildees mas de si mesmos e de suas igrejas locais

Identificamos tambeacutem os programas de igrejas autonocircmas299 Igrejas que tecircm se

notabilizado por um grande aparato administrativo-empresarial que investem muito em sua

marca para conquistar fieacuteis Eacute o caso do Programa Diante do Trono da Igreja Batista da

Lagoinha em Belo Horizonte tambeacutem exibido na Rede TV no saacutebado de manhatilde e no seu canal

fechado a Rede Super A estas iniciativas chamamos de Miacutedia de Igrejas Autonocircmas (MIA)

295 D F HAUSSEN A produccedilatildeo cientiacutefica sobre o raacutedio no Brasil livros artigos dissertaccedilotildees e teses (1991-2001) Revista FAMECOS miacutedia cultura e tecnologia Vol 1 No 25 (2004) httprevcom2portcomintercomorgbrindexphpfamecosarticleview4080 296 Idem 297 Usamos o conceito denominaccedilatildeo como referecircncia a qualquer grupo de igrejas 298 A IURD [hellip] tem a Rede Record a Igreja Assembleacuteia de Deus [hellip] opera no norte do paiacutes a Rede Boas Novas a Igreja Renascer em Cristo opera em Satildeo Paulo a Rede Gospel de Comunicaccedilatildeo [hellip] a Igreja Internacional da Graccedila de Deus tem uma exposiccedilatildeo de 60 horas semanais na TV aberta [Aleacutem dessas a Igreja Batista da Lagoinha tem um canal fechado a Rede Super que opera a partir de Belo Horizonte]rdquo L S CAMPOS op cit pp125-126 299 Chamamos de igrejas autonocircmas aquelas que natildeo estatildeo vinculadas a nenhuma denominaccedilatildeo a nenhuma convenccedilatildeo e que se estruturam eclesiasticamente como empresas inclusive abrindo franquias

No entanto como afirma o proacuteprio Freston (1997) o raacutedio domina a miacutedia evangeacutelica

ainda hoje e os argumentos usados para esse domiacutenio radiofocircnico satildeo esclarecedores ldquoo custo

mais acessiacutevel a facilidade teacutecnica da produccedilatildeo e a disponibilidade maior de horaacuteriosrdquo300 Ou

seja eacute ainda atraveacutes do raacutedio que os evangeacutelicos se inserem na comunicaccedilatildeo de massa do Brasil

O raacutedio eacute a miacutedia de maior alcance de puacuteblico pelo tipo de linguagem utilizada pelo seu poder

de mobilizaccedilatildeo divulgaccedilatildeo de posiccedilotildees e informaccedilotildees No raacutedio se especiacutefica com mais clareza

a quem se quer atingir qual o puacuteblico alvo natildeo de um programa mas de toda uma empresa de

comunicaccedilatildeo Cabe agora uma breve descriccedilatildeo das raacutedios que pretendemos estudar

A Raacutedio El Shadai FM 933 tem como proprietaacuterio Arolde de Oliveira desde maio de

1992 poliacutetico formado em engenharia de telecomunicaccedilotildees tendo trabalhado na Embratel nos

seus cinco mandatos de deputado federal se notabilizou pela participaccedilatildeo na Comissatildeo de

Ciecircncia Tecnologia Comunicaccedilatildeo e Informaccedilatildeo da Cacircmara Federal Membro de uma igreja

batista Oliveira faz parte da executiva do diretoacuterio regional do PFL no estado do Rio de Janeiro

desde marccedilo de 1993 Ele afirma que o tipo de muacutesica tocada na sua raacutedio eacute uma escolha

pensada em aspectos de mercado pois a raacutedio foi adquirida para divulgar e vender os CDs da

MK Publicitaacute (sua gravadora) e a classe meacutedia eacute o seu alvo Pesquisa desenvolvida por Fonseca

(1997) mostra que membros de igrejas renovadas com perfil ldquomais modernordquo e ldquomais classe

meacutediardquo satildeo os maiores ouvintes desta raacutedio (51 contra 26 que ouvem a Melodia) A Raacutedio

El Shadai possui uma programaccedilatildeo mais musical do tipo das FMrsquos tradicionais locutores com

linguagem para jovem e com ritmos modernos que vatildeo do rock ao funk Segundo dados

divulgados pela emissora o ouvinte da 933 FM fica ligado em meacutedia 4 horas e meia por dia

60 dos quais natildeo trocam de estaccedilatildeo Em 15 dias de programaccedilatildeo a Raacutedio El Shadai atinge 7

dos ouvintes de FM o que equivale a 62000 ouvintes por minuto diariamente de 6h agraves 19h301

Atualmente ocupa o quinto lugar de audiecircncia entre todas as fms do Rio de Janeiro com uma

meacutedia de 109208 mil pessoas por dia302 Essa raacutedio faz parte do Grupo MK de Comunicaccedilotildees

que conta ainda com a gravadora jaacute citada a MK Editora o portal de internet Elnet e um

programa de tv e internet chamado Conexatildeo Gospel

A Raacutedio Melodia 973 FM eacute outra empresa de grande penetraccedilatildeo entre os evangeacutelicos

Seu proprietaacuterio desde 1986 eacute o ex-deputado federal Francisco Silva (PL-RJ) Nas eleiccedilotildees de

1994 foi o campeatildeo de votos para Deputado Federal por Satildeo Paulo 220000 Sua inserccedilatildeo no

universo das igrejas evangeacutelicas deu-se tambeacutem a partir de uma opccedilatildeo comercial Adquiriu a

Raacutedio Melodia em 1986 e se tornou conhecido do grande puacuteblico evangeacutelico Segundo Fonseca

(1997) apenas 1 dos ouvintes tem niacutevel de terceiro grau sendo portanto uma raacutedio para os

menos escolarizados A programaccedilatildeo tem muitas pregaccedilotildees ao longo do dia e as muacutesicas

300 P FRESTON op cit p136-137 301 A B FONSECA op cit pp 88-92 1997 V FIGUEREDO FILHO op cit pp 62-84 2000 302 IBOPE abril-2009

seguem o padratildeo dos ritmos populares (baiatildeo forroacute lambada) com letras pentecostais que

falam em ldquofogordquo ldquopoderrdquo ldquounccedilatildeordquo marcas da teologia pentecostal Ocupa o terceiro lugar geral

no ranking das fms do Rio de Janeiro com 115977 mil pessoas por minuto303 A Raacutedio Melodia

faz parte tambeacutem de um grupo de comunicaccedilatildeo que conta com editora gravadora Top Gospel e

o Portal Melodia

No segmento de raacutedios religiosas a ordem eacute esta Melodia em seguida a El Shadai e a

Rede Aleluia de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus com 22965 mil pessoas por

minuto Por entendermos que estas duas raacutedios natildeo se enquadram em nenhuma das

classificaccedilotildees que fizemos anteriormente nossa hipoacutetese eacute a de que essas raacutedios podem estar

formando o que chamamos de Miacutedia Empresarial-Religiosa (MER) Elas satildeo formadas por

grupos empresariais desvinculados administrativamente de qualquer instituiccedilatildeo religiosa Tecircm

estrutura de comunicaccedilatildeo bem definidas contando em seus quadros com profissionais de

marketing comunicaccedilatildeo contabilidade evidenciando uma racionalidade administrativa Natildeo haacute

o compromisso de uma linguagem legitimada por alguma igreja lideranccedila carismaacutetica ou

denominanccedilatildeo O direcionamento eacute para o indiviacuteduo visto como cliente Natildeo fazem

proselitismo mas lutam pela audiecircncia divulgando e vendendo seus produtos seus cantores

seus cds fazendo circular linguagens e siacutembolos comuns aos evangeacutelicos Assim considerando a fragmentaccedilatildeo do universo evangeacutelico sua polifonia no campo

religioso e a autonomia do indiviacuteduo com relaccedilatildeo agrave regulaccedilatildeo religiosa eacute importante sabermos

que tipo de linguagem ou discurso essas raacutedios utilizam para conseguir abarcar diferentes

grupos e manter uma expressiva audiecircncia

Segundo Peter Berger304 a religiatildeo passa por uma crise das suas estruturas de

plausibilidade isto eacute com o fim da metafiacutesica e o advento da modernidade foi tirada da religiatildeo

a funccedilatildeo de sustentar e explicar a realidade A crise da religiatildeo eacute um dos efeitos claros da

secularizaccedilatildeo ldquoo processo pelo qual setores da sociedade e da cultura satildeo subtraiacutedos agrave

dominaccedilatildeo das instituiccedilotildees e siacutembolos religiososrdquo305 Com o fim da funccedilatildeo da religiatildeo como

ordenadora do cosmos entramos numa situaccedilatildeo de pluralismo onde todas as instituiccedilotildees podem

explicar e fundamentar a realidade O pluralismo eacute uma situaccedilatildeo objetivada real de algo que jaacute

aconteceu dentro do indiviacuteduo na consciecircncia dele Neste sentido a adesatildeo agrave religiatildeo passa a ser

voluntaacuteria depende da escolha e preferecircncia do indiviacuteduo e por isso eacute uma religiatildeo limitada agrave

vida privada sem com isso desempenhar a tarefa anteriormente claacutessica a saber ldquoconstruir um

mundo comum no acircmbito do qual toda vida social recebe um significado uacuteltimo que obriga a

todosrdquo306

303 Idem

304 BERGER P L O Dossel Sagrado elementos para uma teoria socioloacutegica da religiatildeo SP Paulus 1985

305 Ibid p119 306 Ibid p145

Para conseguir a adesatildeo de fieacuteis-clientes a religiatildeo tem agora que usar da loacutegica da

economia de mercado pois essa eacute uma situaccedilatildeo de mercado As tradiccedilotildees religiosas podem ou

natildeo ser assumidas como comodidades de consumo Aleacutem disso as tradiccedilotildees religiosas tecircm que

disputar a ldquodefiniccedilatildeo da realidade com rivais socialmente poderosos e legalmente toleradosrdquo307

Na situaccedilatildeo de pluralismo as tradiccedilotildees religiosas satildeo agecircncias de mercado elas sofrem

uma pressatildeo por resultados que provoca a racionalizaccedilatildeo das estruturas criando a burocracia A

burocracia se expande para as relaccedilotildees sociais internas (administraccedilatildeo) e as relaccedilotildees sociais

externas (instituiccedilotildees religiosas com instituiccedilotildees sociais) ou seja todas as relaccedilotildees sociais satildeo

burocratizadas para minimizar gastos (tempo dinheiro) e maximizar os resultados para poder

se relacionar com a sociedade o Estado e outras instituiccedilotildees e para executar meacutetodos de

trabalhos A montagem dessa administraccedilatildeo religiosa exige formaccedilatildeo e seleccedilatildeo de pessoal

adequado haacutebil tanto funcional quanto psicologicamente para lideranccedila Isso faz com que as

diferenccedilas entre as diversas tradiccedilotildees religiosas sejam diminuiacutedas A lideranccedila religiosa

burocraacutetica eacute semelhante a burocrata de outras instituiccedilotildees ldquoativista pragmaacutetico alheio a

qualquer reflexatildeo administrativamente irrelevante haacutebil nas relaccedilotildees interpessoais lsquodinacircmicorsquo e

conservador ao mesmo tempordquo308

A semelhanccedila administrativa entre as tradiccedilotildees religiosas provoca o ecumenismo como forma de ordenaccedilatildeo do mercado Nesse sentido as tradiccedilotildees religiosas reconhecem afinidades muacutetuas e promovem accedilotildees conjuntas Isto leva a competiccedilatildeo a um alto grau de racionalizaccedilatildeo ou seja as instituiccedilotildees religiosas lanccedilam matildeo da pesquisa de mercado para implantaccedilatildeo de novas frentes Haacute entatildeo uma demarcaccedilatildeo de espaccedilos determinados levando a cartelizaccedilatildeo ou seja surgem as incorporaccedilotildees e os remanescentes se organizam por acordos muacutetuos309

O pluralismo atinge os conteuacutedos religiosos que satildeo mudados pela preferecircncia dos

consumidores Essas preferecircncias acabam por formar os conteuacutedos da moda O mundo eacute

secularizado as preferecircncias de igual modo tambeacutem satildeo o que faz com que os produtos

religiosos se adequumlem as consciecircncias secularizadas Por isso a imposiccedilatildeo doutrinaacuteria ainda

que exista dificilmente aparece niacutetida na miacutedia religiosa Haacute uma aparecircncia objetiva

informativa sobre o real concreto sem que se faccedila distinccedilatildeo doutrinaacuteria310 Poreacutem onde for

necessaacuteria a legitimaccedilatildeo das formas tradicionais da religiatildeo ali elas seratildeo mantidas para

legitimar os novos liacutederes e as novas accedilotildees O uso da tradiccedilatildeo311 para legitimar os novos agentes

sociais e as novas maneiras de agir de uma instituiccedilatildeo aleacutem de ser uma reorganizaccedilatildeo

307 Ibid p149 308 Ibid p152 309 Ibid p155 310 MARTINO L M S Miacutedia e poder simboacutelico SP Paulus 2003 p9 311 ldquo[] entendemos que a tradiccedilatildeo eacute construiacuteda social e historicamente a partir das muitas possibilidades do presente e de dados fornecidos pela histoacuteria Natildeo se pode construir uma tradiccedilatildeo isenta do passado e da credibilidade social do presente Neste sentido a tradiccedilatildeo eacute ao mesmo tempo uma continuidade com o passado e uma ruptura com ele Por um lado quando a construccedilatildeo da tradiccedilatildeo faz uma releitura do passado de alguma forma faz com que se estenda e se prolongue por outro lado quando se faz uma releitura ou reinterpretaccedilatildeo do passado eacute porque elementos novos do momento presente estatildeo contribuindo para uma nova construccedilatildeo da tradiccedilatildeo Isto eacute a construccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo eacute sempre uma nova forma de se referir ao mesmo passado que a tradiccedilatildeo anterior se referiardquo (SANTANA op cit p31)

identitaacuteria mostra que as religiotildees conseguem se organizar para continuar existindo num mundo

plural Ou seja se eacute verdade que o sentido de religiatildeo mudou foi esvaziado perdeu valor pela

pulverizaccedilatildeo de loacutegicas religiosas tambeacutem eacute verdade que novas formas de religiatildeo apareceram e

tentam se firmar acompanhando as mudanccedilas da sociedade312

Juntamente a esse ordenamento Acontece tambeacutem um recrudescimento das ldquoheranccedilas confessionaisrdquo A ecircnfase na identidade eacute ldquoparte do processo de racionalizaccedilatildeo da concorrecircnciardquo Pode ser que essa diferenciaccedilatildeo seja soacute externa mas internamente haja a padronizaccedilatildeo descrita acima A busca das heranccedilas confessionais eacute um correlato estrutural do ecumenismo313 No pluralismo as estruturas de plausibilidade satildeo multiplicadas relativizadas e entram em concorrecircncia Os conteuacutedos religiosos passam a ser privados individuais e passam a se referir a existecircncia individual a histoacuteria de vida A pluralidade faz com que os grupos religiosos busquem cada qual manter seu fragmento frente aos outros fragmentos do mundo Assim as possibilidades de legitimaccedilotildees satildeo muito variadas sem serem seguras O indiviacuteduo escolhe a legitimaccedilatildeo se certifica dela e a legitima com dados existenciais para si mesmo

Segundo Martino as instituiccedilotildees estatildeo em busca da legitimidade social a fim de se

fazerem ver e divulgar suas ideologias e para tanto oferecem bens simboacutelicos e bens materiais

para os consumidores314 As alteraccedilotildees ocorridas nas formas tradicionais das instituiccedilotildees

religiosas eacute que criam a necessidade de uso da miacutedia para ao mesmo tempo existirem e criarem

demandas de bens simboacutelicos religiosos315

Assim a religiatildeo responde agraves necessidades micros natildeo mais as necessidades macro da

sociedade a relevacircncia da religiatildeo se limita ao privado Esse controle do indiviacuteduo sobre a

religiatildeo e seus conteuacutedos leva as tradiccedilotildees religiosas a uma padronizaccedilatildeo que facilita a

cartelizaccedilatildeo e o ecumenismo diminuindo logicamente a diferenccedila entre as vaacuterias tradiccedilotildees

religiosas e cria a moda como dissemos acima Essa padronizaccedilatildeo aproxima a religiatildeo enquanto

produtora de bens simboacutelicos da induacutestria cultural ou seja ela tambeacutem produz nos indiviacuteduos

efeitos psiacutequicos que isentam os bens simboacutelicos de serem vistos como mercadoria mas

tambeacutem cria o desejo do consumo de tais bens simboacutelicos316

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GT Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea EMENTAS La Miacutestica seguacuten Nicolaacutes de Cusa y los Desafiacuteos de la Teologiacutea Contemporaacutenea Peter Casarella Nos passos de Karl Rahner que jaacute reconhecera a atualidade da miacutestica para a teologia contemporacircnea faz-se aqui uma aproximaccedilatildeo entre os desafios atuais e Nicolau de Cusa (1401-1464) filoacutesofo alematildeo e Cardeal da igreja catoacutelica que impulsionou a noccedilatildeo de uma igreja reformada no seacutec XV A forma dialeacutetica de sua miacutestica segue um caminho original que segundo o autor desta comunicaccedilatildeo natildeo eacute gnosticismo moderno nem puramente hegeliano Contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde para a teologia uma reflexatildeo em busca de referecircncias fundamentais

Ceci Baptista Mariani

A palavra miacutestica frequumlenta o discurso contemporacircneo Observa-se todavia que no uso que se faz dela natildeo se encontra mais as referecircncias da tradiccedilatildeo cristatilde que fizeram dela uma experiecircncia que desafiou a vivecircncia da feacute e a reflexatildeo sobre essa vivecircncia a teologia Neste artigo buscaremos refletir sobre as caracteriacutesticas da miacutestica e considerar sua contribuiccedilatildeo para a teologia a partir de duas referecircncias fundamentais a teologia miacutestica de Dioniacutesio Areopagita e alguns exemplos da miacutestica medieval

De Beata Vita de Santo Agostinho uma reflexatildeo sobre a felicidade Neuza de Faacutetima Brandellero De Beata Vita de Santo Agostinho uma reflexatildeo sobre a felicidade eacute uma abordagem a partir do pensamento agostiniano sobre a vida feliz A discussatildeo desse tema era muito comum na antiguidade Felicidade foi a finalidade do ser humano sob a oacutetica de muitas correntes por exemplo socraacutetica aristoteacutelica epicurista e estoacuteica Onde encontrar a felicidade Santo Agostinho pretende resolver estas questotildees agrave luz das certezas cristatildes A Reflexatildeo Teoloacutegica como Obra do Amor Cleide Cristina da Silva Scarlatelli Aqui se apresentam os resultados de tese doutoral que no horizonte da teologia da libertaccedilatildeo visa elaborar uma razatildeo compassiva apresentando uma configuraccedilatildeo da atividade teoloacutegica a partir do amor O esforccedilo eacute iluminado pelas reflexotildees de S Kierkegaard Como alternativa ao modo de pensar dominante em seu tempo Kierkegaard busca reconfigurar a reflexatildeo incluindo a teoloacutegica a partir do amor A tese divide-se em quatro partes analisa o primado do amor no cristianismo reflete sobre a relaccedilatildeo entre amor e conhecimento na atividade teoloacutegica potildee em cena o pensador Soumlren Kierkegaard que nos apresenta caminhos para nossa busca de uma configuraccedilatildeo da atividade teoloacutegica a partir do amor e afinal apresenta um balanccedilo conclusivo a respeito dessa configuraccedilatildeo da teologia enquanto intellectus amoris

GT Desafios da Miacutestica para a Teologia Contemporacircnea TEXTOS La Miacutestica seguacuten Nicolaacutes de Cusa y los Desafiacuteos de la Teologiacutea Contemporaacutenea

Peter Casarella PhD

Seguacuten Karl Rahner el cristiano del siglo XXI seraacute miacutestico o no seraacute Rahner reconocioacute

la actualidad de la miacutestica para la teologiacutea contemporaacutenea Su meditacioacuten de 1938 Palabras al

Silencio (Worte ins Schweigen) aparecioacute durante la crisis de la Segunda Guerra Mundial Ese

texto muy pastoral comienza con la franca confesioacuten que todo discurso teoloacutegico tiene que ser

una conversacioacuten con Dios aunque tal discurso es inevitablemente autoreferencial

Rahner no queriacutea facilitar la comodificacioacuten de la miacutestica cristiana pero su dicho sobre

la necesidad de entrar en el camino del miacutestico puede ser mal entendido Rahner entendioacute bien

que la afirmacioacuten del Dios de la vida cotidiana no puede ser la afirmacioacuten de la mera

uniformidad del cotidiano En realidad la miacutestica como fuente renovadora de la teologiacutea es

asimismo un camino a la experiencia de diferencia dentro de la vida La miacutestica del cotidiano es

llena de interupciones y ruacutepturas En su capiacutetulo sobre lo cotidiano Rahner reconoce que el

ritmo de Dios en su plenitud no puede ser identificado con la rutina de mi vida La siacutentesis

miacutestica de la vida seraacute entonces una siacutentesis del diacutea de Dios en su plenitud eterna con el diacutea

cotidiano de mi vida El cristiano del futuro crearaacute una disponibilidad dentro de su propria

interioridad para dejar entrar el Dios de la vida Este proceso de interiorizacioacuten es esencial en la

apropriacioacuten de la sabiduriacutea experimental de los miacutesticos (la llamada cognitio Dei

experimentalis) pero tambieacuten presupone una explicacioacuten maacutes amplia que no provee Rahner en

su escrito de 1938 sobre la relacioacuten entre interioridad de la experiencia y su exterioridad en

compromisos sociales El camino a una interiorizacioacuten siempre maacutes profunda por ejemplo

puede muy faacutecilmente conducir a la ignorancia de las condiciones de injusticia que imponen una

uniformidad opresiva en la vida de los maacutes vulnerables en la sociedad DePaul University ndash Chicago EUA

Maria Clara Luchetti Bingemer ha aclarado muy bien la relacioacuten entre la miacutestica y la

experiencia de Dios y en un modo que refleja las nuevas condiciones de la teologiacutea

contemporaacutenea317 Ella subraye que la experiencia miacutestica no es mero sentimiento sino una

forma de conocimiento de la alteridad Asiacute ha formulado el viacutenculo entre la miacutestica y la

alteridad ldquoeste sentir ecirc um sentir que implica una alteridade e uma relaccedilaordquo318 Se nota en la

teoriacutea de Bingemer la influencia de Emanuel Levinas Levinas ha formulado una eacutetica de

responsibiildad enfrente del rostro del Otro Seguacuten Levinas el encuentro con el otro en su

exteriorizacioacuten provoca el mandamiento de no matarlePor eso la experiencia miacutestica no

consiste sencillamente de una totalidad numeacuterica de experiencias de individuos Aunque la

dimensioacuten personal de la experiencia es decisivo la relacioacuten con el otro co-determina la

experiencia misma El individuo como tal participa en la experiencia pero su experiencia debe

ser considerado a la luz del conocimiento de una relacioacuten con el otro La experiencia del

individuo es entonces una experiencia de individuacioacuten o sea que un proceso que separa el

individuo de la relacionidad que constituye nuestra identidad formada en comunioacuten con el otro

La experiencia del otro dentro de la comunioacuten de personas no es una experiencia de un objeto

Si se puede objectivizar la realidad personal de la persona enfrente de siacute mismo pero jamaacutes

puede el cristiano reducer la epifaniacutea o revelacioacuten del Otro como otro a la existencia de un

objeto319 El caso de Dios no es distinto Seguacuten Bingemer ldquoO caminho de relaccedilatildeo com o outro

Transcendente e Divino e constitutivo mesmo de la experiencia miacutesticardquo320 Como en el caso de

la espiritualidad de Rahner se encuentra el Dios de la vida como si fuera una parte integral de la

vida

Rahner introduce descubre la miacutestica del cotidiano por la internalizacioacuten de la vida

dinaacutemica y eternal de Dios El Dios Rahneriano como un ritmo de trabajo y descanso (como se

encuentra tambieacuten en la espiritualidad trinitaria de Ruusbroec) es un Dios que nos ayuda

enfrentar el ritmo caacuteotico de la vida cotidiana Pero Bingemer muestra justamente la suma

317 Maria Clara Lucchetti Bingemer ldquoExperiecircncia de Deusmdashuna busca por uma identidaderdquo Atualidade Teologica 611 (2002) 241-55 318 Ibid 250 319 Ibid 320 Ibid 251

importancia de la exterioridad en la experiencia de Dios Se puede seguir desde aquiacute con la idea

de que tenemos que aceptar la dialeacutectica entre la trascendencia de Dios como el totalmente Otro

y la imanencia de la experiencia incluso la experiencia de Dios como fundacioacuten y presupuesto

absoluto de mi propria experiencia Pero la forma de una dialeacutectica dentro de la miacutestica cristiana

huye la resolucioacuten hegeliano de la antinomiacutea entre trascendencia y imanencia en el concepto

filosoacutefico (die Anstrengung des Begriffes) Dios puede ser llamado el totalmente Otro (der ganz

Andere de Karl Barth por ejemplo) pero la relacionalidad entre el Dios de la vida y la

experiencia del miacutestico no sigue entonces la loacutegica de una dialeacutectica abstracta El Dios de la

vida no es un concepto colgado del cielo para fomentar dentro de nosotros el deseo de huirse del

mundo creado Este planteamiento es en realidad el puro gnosticisimo que tambieacuten tiene sus

nietos en la modernidad321

Nicolaacutes de Cusa (1401-1464) fue un filoacutesofo aleman y Cardenal de la iglesia catoacutelica

que impulsoacute la nocioacuten de una iglesia reformada en el siglo XV (o sea antes de la Reformacioacuten

Protestante) La forma dialeacutectica de su miacutestica sigue un camino que no es ni gnosticismo

moderno ni puramente hegeliano Asiacute tenemos de examinar la relacioacuten entre la trascendencia de

Dios y su imanencia en la obra de Nicolaacutes322 Su tratado sobre la miacutestica Sobre la visioacuten de Dios

fue su respuesta a los monjes de Tegernsee en torno a una cuestioacuten sobre la relacioacuten entre

affectividad y intelecto dentro de la gnoseologiacutea cristiana En su escrito El No-Otro (De li non

aliud) ofrece una definicioacuten de Dios como el No Otro y tambieacuten una definicioacuten de la definicioacuten

como tal como el no-otro La complejidad de su lenguaje puede conducirnos a otra forma

puramente speculativa de la dialeacutecitca Pero en realidad el investigador de los escritos miacutesticos

de Dionisio Areopagita y del pensamiento del Absoluto del filoacutesofo neoplatoacutenico Proclo quiere

decir nada maacutes de que el Dios del universo debe sobrepasar nuestras ideas muy limitadas de la

distinction entre trascendencia y imanencia Aunque la revelacioacuten de Jesucristo no es el enfoque

321 La cuestioacuten del gnosticismo en la modernidad fue elaborado por Hans Urs von Balthasar y Erich Voegelin Un teoacutelogo actual que reclama este tema es Cyril OrsquoRegan Veacutease su libros Gnostic Return in Modernity (State University of New York Press 2001) y Gnostic Apocalypse Jacob Boehmersquos Haunted Narrative (State University of New York Press 2002) 322 El mejor libro sobre este tema se queda Mariano Alvaacuterez Goacutemez Das verborgene Gegenwart des Unendlichen

de este tratado (su cuerpo de casi 300 sermones publicadas tematiza cristologiacutea ampliamente)

Nicolaacutes quiere destacar una unidad en diferencia que recibe su forma maacutes concreta y absoluta en

la revelacioacuten uacutenica de la palabra encarnada de Dios Para Nicolaacutes la imanencia de Dios nunca

puede ser una limitacioacuten con respeto a su trascendencia y vice versa El filoacutesofo alemaacuten ha

pensado la radicalidad de trascendencia y de imanencia en su intimidad sin aceptar una

resolucioacuten conceptual

La alteridad es una dimensioacuten del mundo creado por Dios Nicolaacutes de Cusa ha intentado

reflexionar sobre el origen de la alteridad Su planteamiento fue lo de un buscador de una

posible metafiacutesica de la creacioacuten Seguacuten Nicolaacutes no podemos comprender el origen de la

alteridad como tal En su tratado Sobre la Geacutenesis Dios es lo mismo (idem) El concepto de lo

mismo no es un concepto de lo mismo en el mundo creado sino lo del mismo absoluto Su

absolutizacioacuten de lo mismo en realidad es la restitucioacuten del valor de la alteridad dentro de la

creacioacuten Dios como lo mismo ha creado un mundo de diferencias

Queacute es la alteridad seguacuten el tratado Sobre la Geacutenesis Alteridad puede ser identificado

con multiplicidad A causa de su identidad con multiplicidad hay que hablar de alteridades en

vez de alteridad como tal La alteridad como una realidad singular no existe seguacuten el

Cusanus323 La alteridad es una forma de presentacioacuten de las cosas Asiacute encontramos la doctrina

de Nicolaacutes sobre la perspectiva Cuando Nicolaacutes examina el mundo su investigacioacuten revela

diferencias y concordancias La mente asimilitiva siempre considera estas diferencias y

concordancias en la condicioacuten de ser codeterminado La mente que asimila no puede trascender

la realidad de aquel mundo fiacutenito de perspectivas para ascender a una asimilacioacuten de todo sin

diferencias y concordancias Dice Nicolaacutes ldquoEl ojo no puede ver una esfera por una sola

miradardquo No quiero negar la capaz del intelecto de sobrepasar las medidas de la mente dentro de

la gnoseologiacutea del Cusano Sin embargo la presentacioacuten de la alteridad es el producto de una

mente que asimila y en este sentido nos presenta un viacutenculo entre alteridad y perspectiva

323 La cuestioacuten de singularitas nos aborda al pensamiento de nominalismo y Nicolaacutes de Cusa rechazoacute el nominalismo aunque hay semejanzas entre sus creaciones filosoacuteficas y el nominalismo de su tiempo

Hay mucho maacutes que me gustariacutea relatar sobre la miacutestica de Nicolaacutes porque este breve

resumen toca soacutelo una parte de su contribucioacuten a la discusioacuten contemporaacutenea sobre la alteridad

La contribucioacuten maacutes original de Nicolaacutes fue el pensamiento radical de la relacioacuten entre unidad y

diferencia Dentro de la metafiacutesica del Medievo no hay otro pensador que muestra tanta

originalidad en este campo ldquoEl ojo no puede ver una esfera por una sola miradardquo es un dicho

que nos recuerda de la productividad intelectual y espiritual de nuestra finitud en el camino de

buscar el Dios infinito de nuestras vidas

Obrigado pela atenccedilatildeo

Contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde para a teologia uma reflexatildeo em busca de

referecircncias fundamentais

Ceci Baptista Mariani

A palavra miacutestica na atualidade se refere a um conceito de difiacutecil definiccedilatildeo eacute em geral utilizado

de forma fluida e aparece muitas vezes entendido como sinocircnimo de esoterismo ou

simplesmente como sinocircnimo de religiatildeo324 Haacute tambeacutem quem utilize o conceito para falar de

uma energia ou forccedila interior que mobiliza o sujeito ou como um sentimento uma sensaccedilatildeo ou

uma emoccedilatildeo Sentidos que tem certamente relaccedilatildeo com o uso que fizeram dele os romacircnticos

sentidos que emergem da valorizaccedilatildeo da experiecircncia religiosa subjetiva quando do processo

operado pela reforma de interiorizaccedilatildeo da religiatildeo Um melhor entendimento desse conceito e

da contribuiccedilatildeo que a miacutestica pode oferecer agrave vivecircncia e agrave reflexatildeo sobre a experiecircncia religiosa

supotildee no entanto entendemos a recuperaccedilatildeo de elementos importantes que caracterizam a

miacutestica presentes na histoacuteria da utilizaccedilatildeo desse conceito no interior da tradiccedilatildeo cristatilde

A Teologia Miacutestica de Dioniacutesio Areopagita

Em seu pequeno tratado denominado Teologia Miacutestica de importacircncia fundamental para todo o

desenvolvimento do pensamento cristatildeo Dioniacutesio Areopagita natildeo soacute cria o termo ldquoteologia

miacutesticardquo afirma Bernard McGinn como daacute expressatildeo sistemaacutetica agrave visatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo

entre Deus e o mundo que foi a fonte de sistemas mistico-especulativos por pelo menos mil

anos325 A estrutura do sistema teoloacutegico de Dioniacutesio segundo esse autor eacute a mais importante

contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da miacutestica latina326

Doutora em ciecircncias da religiatildeo leciona na EDT no ITESP e na PUCCAMP 324 Carlos Eduardo SELL e Franz Josef BRuumlSEKE Miacutestica e Sociedade p17 325 McGINN Bernard The Foundations of Mysticis The Presence of God A History of Western Christian Mysticism New York Crossroad 2003 p 158 326 Cf Ibidem p 161

Nesse tratado que deve ser interpretado em relaccedilatildeo ao conjunto de sua obra327 ldquomiacutesticasrdquo satildeo

revelaccedilotildees dos misteacuterios simples absolutos e imutaacuteveis da teologia revelados na treva

superluminosa do silecircncio que ensina ocultamente Treva que ilumina e ldquosuperpleniza com

esplendores dos superbens espirituais as inteligecircncia espirituaisrdquo328 Revelaccedilotildees a que se chega

aconselha Dioniacutesio quando se deixa de lado ldquoas sensaccedilotildees as operaccedilotildees intelectuais todas as

coisas sensiacuteveis e inteligiacuteveis tudo o que natildeo existe e que existerdquo para unir-se com Aquele que

estaacute acima de todo o ser e de todo conhecimento num abandono irrestrito absoluto e puro

ldquoVisotildees miacutesticasrdquo satildeo para Dioniacutesio no entanto possibilidades dadas a iniciados a saber

aqueles que natildeo permanecem prisioneiros por supor ldquonada existir de modo superessencial acima

dos seresrdquo e que natildeo ldquopresumem conhecer com a proacutepria sabedoria lsquoAquele que fez da treva seu

esconderijorsquordquo 329

Para ver atraveacutes da cegueira e da ignoracircncia e para conhecer o princiacutepio superior agrave visatildeo e ao

conhecimento explica Dioniacutesio eacute preciso ir removendo todas as coisas ldquodo mesmo modo pelo

qual aqueles que modelam uma bela estaacutetua aplainam-lhe os impedimentos que poderiam

obnubilar a pura visatildeo de sua arcana beleza sendo capazes de mostraacute-la plenamente mediante

remoccedilatildeordquo330 Agrave Treva superluminosa enquanto Causa de tudo aplicam-se-lhe todas as

afirmaccedilotildees positivas dos seres todavia enquanto a tudo transcende ldquoeacute mais apropriado negar-

Lhe todos os atributosrdquo331 As negaccedilotildees no entanto natildeo se opotildeem agraves afirmaccedilotildees pois a Causa

universal estaacute acima de ambas e eacute feita ldquode muitas palavras de poucas palavras e desprovida de

palavras porque natildeo se Lhe aplica discurso ou pensamento algumrdquo332 A teologia ou teosofia

sabedoria de Deus conforme indica Dioniacutesio implica uma dialeacutetica ascendente que envolve

afirmaccedilotildees e negaccedilotildees que para ele ldquodevem ser louvadas com procedimentos contraacuteriosrdquo

Com efeito afirmamos quando partimos dos princiacutepios mais originaacuterios e descemos atraveacutes dos membros intermeacutedios agraves uacuteltimas coisas no caso das negaccedilotildees todavia removemos tudo quando subimos das uacuteltimas coisas agraves mis originaacuterias para conhecer a ignoracircncia escondida em todos os seres por todas as coisas cognosciacuteveis e para ver a treva supernatural escondida por todas as luzes presentes nos seres333

327 No capiacutetulo III de sua Teologia Miacutestica Dioniacutesio explicita o lugar dessa uacuteltima no conjunto de sua obra e indica que o silecircncio miacutestico eacute fruto de uma ascese e antes de chegar a ele eacute preciso considerar as muitas palavras e a presenccedila de Deus em toda a criaccedilatildeo ldquoNo livro Dos nomes divinos (explicamos) como Deus eacute chamado bom e como eacute chamado ser vida sabedoria e potecircncia e todas as denominaccedilotildees divinas Na Teologia simboacutelica (tratamos) dos nomes transferiacuteveis dos objetos sensiacuteveis agraves coisas divinas formas e figuras divinas partes instrumentos lugares divinos ornatos iras afliccedilotildees dores coacuteleras ebriedades excessos juramentos imprecaccedilotildees sonos vigiacutelias e todas as sacras figuraccedilotildees da representaccedilatildeo de Deus Creio que te daacutes conta do modo pelo qual esses uacuteltimos temas demandam mais palavras do que os primeiros os Esboccedilos teoloacutegicos e as explicaccedilotildees dos nomes divinos satildeo mais concisos que a Teologia simboacutelica Quanto mais olhamos para cima mais os discursos se contraem pela contemplaccedilatildeo das coisas inteligiacuteveis assim tambeacutem agora ao penetrarmos na treva superior do intelecto jaacute natildeo encontramos discursos breves mas uma total ausecircncia de palavras e de pensamentosrdquo (Dioniacutesio Areopagita opcit p 25-26) 328 Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Teologia Miacutestica p15 Usaremos aqui a traduccedilatildeo de Marco Lucchesi 329 Ibidem p 15-16 330 Ibidem p21 331 Ibidem p16 332 Ibidem p17 333 Ibidem p 21-22

Segundo Balthasar para Dioniacutesio o conhecimento de Deus requer uma penetraccedilatildeo sempre mais

profunda e o ultrapassamento sempre mais completo da imagem e as duas coisas natildeo separadas

nem justapostas mas se integrando sempre mais profundamente A teologia eacute adoraccedilatildeo

admirada diante da Beleza insondaacutevel que aparece em todas as manifestaccedilotildees334 Porque Deus eacute

em tudo e aleacutem de tudo a existecircncia e o conhecimento satildeo uma celebraccedilatildeo permanente da gloacuteria

divina que reina em tudo e aleacutem de tudo e que se comunica em tudo335

Miacutestica em Dioniacutesio segundo esse mesmo autor eacute a realizaccedilatildeo do que Deus que eacute Treva mais

que luminosa opera no ser e no conhecer humano que se volta para ele em relaccedilatildeo estabelecida

por ele portanto natildeo eacute uma experiecircncia psicoloacutegica Ela representa uma realizaccedilatildeo filosoacutefica-

teoloacutegica do que eacute ecircxtase de si a Deus por imitaccedilatildeo do eros extaacutetico divino que entra por amor

na multiplicidade do mundo Ecircxtase que natildeo seraacute em Dioniacutesio perda de identidade mas

fundamento e aprofundamento dela336 A relaccedilatildeo da criatura com Deus sempre maior eacute relaccedilatildeo

estabelecida por Deus a partir da criaccedilatildeo Nesta relaccedilatildeo cabe a Deus mesmo elevar os veacuteus

dissimuladores do ser e do conhecer criados A impressatildeo negativa disso que Deus opera eacute o

meacutetodo de pensar apofaacutetico

O meacutetodo de negaccedilatildeo contiacutenua e de remoccedilatildeo crescente dos envoltoacuterios simboacutelicos sensiacuteveis e dos conceitos espirituais natildeo eacute para Dioniacutesio separado da experiecircncia positivamente miacutestica que procede de Deus O que de concreto ele tem constantemente em vista natildeo eacute o meacutetodo de pensamento mas eacute um encontro carregado de experiecircncia evento que se realiza diante do misteacuterio do Deus vivo apreendido na feacute Por isso o ldquoterceiro passordquo somente mencionado e que ultrapassa a afirmaccedilatildeo e a negaccedilatildeo o movimento de ultrapassamento (hyperochecirc) natildeo eacute um ldquomeacutetodordquo de conhecimento mas uma demonstraccedilatildeo que aleacutem de toda a afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo de que eacute capaz a criatura natildeo haacute mais que a transcendecircncia absoluta de Deus A palavra suprema da ldquoteologia miacutesticardquo deve entatildeo ser que Deus natildeo eacute somente aleacutem de todas as afirmaccedilotildees mas tambeacutem aleacutem de todas as negaccedilotildees337

Neste sentido Deus que levanta o veacuteu leva agravequele que fecha os olhos transformando o ser e o

conhecer agrave afirmaccedilatildeo de que Deus eacute aleacutem de todas as afirmaccedilotildees e negaccedilotildees Treva mais que

luminosa Dioniacutesio concorda com autores cristatildeos antigos ao acreditar que a alma eacute divina e

pode alcanccedilar uma forma de uniatildeo indistinta com Deus mas em sua visatildeo menos platocircnica do

que a de muitos autores patriacutesticos comenta McGinn entende que ela eacute divina somente como

uma manifestaccedilatildeo e eacute unificada e divinizada somente pelo eros ascendente de Deus

Divinizaccedilatildeo neste sentido eacute um dom e natildeo um direito de nascenccedila338

A uniatildeo miacutestica identificada aqui com a divinizaccedilatildeo seraacute portanto na concepccedilatildeo de Dioniacutesio

baseada na transcendentalizaccedilatildeo do conhecimento em natildeo conhecimento e do desejo eroacutetico339

334 Cf Hans Urs VON BALTHAZAR La Gloire e la Croix les aspects estheacutetiques de la Reacuteveacutelation Paris Aubier 155 335 Cf Ibidem p 157 336 Cf Ibidem p 187 337 Ibidem p 188 338 Cf Ibidem p 178 339 Eacute importante lembrar que Eros deve aqui ser entendido natildeo a partir de uma perspectiva sexualizada e intersubjetiva mas como princiacutepio metafiacutesico

em possessatildeo extaacutetica Amor e conhecimento tecircm papel essencial na ascese amorosa Para

Dioniacutesio o desejo amoroso (Eros) que eacute ao mesmo tempo amor caridoso (Aghapeacute) pode ser

entendido como poder para efetuar uniatildeo reuniatildeo e conservaccedilatildeo

Todavia dirigindo-se agravequeles que sabem entender o verdadeiro sentido das palavras divinas os santos teoacutelogos para lhes revelar os segredos divinos atribuem mesmo valor agraves duas expressotildees de caridade e desejo Com efeito as duas designam um mesmo poder de unificaccedilatildeo e de reuniatildeo e mais ainda de conservaccedilatildeo que pertencem desde de toda eternidade ao Belo-e-Bem graccedilas ao Belo-e-Bem que emana do Belo-e-Bem que une uns aos outros os seres da mesma categoria que leva os superiores a exercer sua providecircncia em relaccedilatildeo aos inferiores que converte os inferiores e os liga aos superiores340

Esse desejo amoroso eacute capacidade que preexiste em Deus na Tearquia e eacute a partir dela

comunicado agrave criaccedilatildeo no coacutesmico pulsar da processatildeo e reversatildeo O desejo amoroso que vem

de Deus em Deus para noacutes eacute extaacutetico Graccedilas a ele afirma Dioniacutesio os amorosos natildeo mais se

pertencem mas pertencem agravequeles que amam Eacute poder de unificaccedilatildeo pelo ecircxtase que eacute saiacuteda de

si para o exerciacutecio da providecircncia e da comunhatildeo

() O proacuteprio Deus que eacute causa universal e cujo desejo amoroso ao mesmo tempo belo e bom se estende agrave totalidade dos seres pela superabundacircncia de sua bondade amorosa sai tambeacutem de si mesmo quando exerce suas Providecircncias em relaccedilatildeo a todos os seres e que de alguma foram ele os cativa pelo sortileacutegio de sua bondade de sua caridade e de seu desejo Eacute assim que total e perfeitamente transcendente natildeo condescende menos ao cuidado de todos os seres graccedilas a este poder extaacutetico supra-essencial e indivisiacutevel que lhe pertence341

Fundamentalmente o que Dioniacutesio nos ensina sobre miacutestica eacute que essa palavra anuncia por um

lado a inefabilidade a liberdade e a grandeza da Realidade Uacuteltima que nos envolve e por outro

lado a insuficiecircncia do nosso conhecimento e a inadequaccedilatildeo de nossa linguagem incapaz de

definiccedilotildees e conceitos que decircem conta de enquadrar essa Realidade Ele vai nos mostrar que a

relaccedilatildeo com Deus absolutamente transcendente implica o ecircxtase operado atraveacutes do

procedimento da negaccedilatildeo (remoccedilatildeo) com a finalidade uacuteltima da uniatildeo transformadora

(divinizaccedilatildeo) pelo amor que eacute Deus absolutamente transcendente e totalmente presente em toda

a criaccedilatildeo Miacutestica eacute para ele qualidade da teologia um tipo de sabedoria de Deus na qual

penetram os iniciados que se dispotildeem a despojarem-se do proacuteprio saber e abandonando-se de

forma irrestrita absoluta e pura deixam-se conduzir para o alto e viver nAquele que a tudo

transcende unindo-se ao princiacutepio superdesconhecido segundo o melhor (de suas faculdades)

mas conhecido aleacutem da inteligecircncia342

A miacutestica medieval e a experiecircncia subjetiva de Deus

Eacute no mundo medieval entretanto que uma literatura miacutestica se afirma por si mesma e se

desenvolve como busca do divino dentro da alma e como experiecircncia miacutestica de unidade com

Deus unio mystica experiecircncia subjetiva que transborda todos os conceitos e doutrinas

340 Pseudo-Dioniacutesio o Areopagita Os Nomes Divinos 412 (709C-709D) Em Obras Completas p 53 341 Ibidem 413 (712A-712B) p54 342 Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita Teologia Miacutestica p18

teoloacutegicas Uma literatura claramente influenciada por Dioniacutesio Areopagita uma vez que

descobre e anuncia que no fundamento de todo o esforccedilo de falar sobre Deus existe uma

experiecircncia indiziacutevel e que para chegar a Ele eacute preciso remover ou como entendem os

medievais exige despojamento de todas as coisas e mais que isso despojamento de si mesmo

isto eacute aniquilamento A miacutestica medieval vai se expressar num discurso mais voltado para os

movimentos provocados na alma experiecircncia de ecircxtase (ecircxodo de si) e transformaccedilatildeo pela

uniatildeo com Deus E aqui talvez possamos falar em miacutestica como ldquoexperiecircnciardquo entendendo esse

termo como Congar

percepccedilatildeo da realidade de Deus vindo ateacute noacutes ativo em noacutes e por noacutes atraindo-nos a si numa comunhatildeo numa amizade isto eacute num ser para o outro Tudo isso eacute claro aqueacutem da visatildeo sem abolir a distacircncia na ordem do conhecimento do proacuteprio Deus mas superando-a no plano de uma presenccedila de Deus em noacutes como fim amado de nossa vida presenccedila que se torna sensiacutevel atraveacutes dos sinais nos efeitos de paz alegria certeza consolaccedilatildeo iluminaccedilatildeo e tudo aquilo que acompanha o amor343

De Bernardo de Claraval (1091-1153) ateacute Mestre Eckhart (1260-1328) estende-se uma

grande corrente de teoacutelogos e especialmente de teoacutelogas acompanhadas por um

verdadeiro movimento popular que vatildeo falar de Deus absolutamente transcendente a

partir da transformaccedilatildeo operada por Ele nelas Escritos muitas vezes redigidos em

primeira pessoa como testemunho ou em versos em forma de canccedilatildeo e em liacutengua

vernaacutecula como eacute o Espelho das Almas Simples de Marguerite Porete344 O texto de

Marguerite Porete natildeo eacute fala sobre Deus ou sobre o humano aberto para Deus mas eacute

fala da alma com Deus e em Deus No Espelho das Almas Simples segundo Luisa

Muraro eacute possiacutevel ouvir as palavras de uma conversaccedilatildeo natildeo apenas nova mas

ldquoinauditardquo entre uma mulher e Deus

Uma mulher estava com certeza ela diz Deus natildeo sei mas com certeza ela natildeo era soacute estava um outro ou outra cuja voz natildeo chegava ateacute mim mas que ouvia o mesmo porque fazia uma interrupccedilatildeo nas palavras dela ou melhor uma cavidade que transformava a leitura a tornava semelhante ao gesto de quem bebe lentamente de uma taccedila345

Na escritura de Marguerite Porete e de outras mulheres desse mesmo periacuteodo o absoluto natildeo eacute

o objeto de uma procura mas eacute a experiecircncia de uma Presenccedila que desfaz aquele que o estaacute

buscando De posse da pergunta pelo absoluto reflete ainda Luisa Muraro

Elas comeccedilam da proacutepria experiecircncia e trabalham a tirar do meio e abrir passagens desfazem sem substituir o mundo desfeito com produtos de pensamento e a escritura delas eacute um desfazer-se de si () Natildeo satildeo construtivas

343 Yves CONGAR Revelaccedilatildeo e experiecircncia do Espiacuterito p13-14 344 Cf Georgette EacutePINEY-BURGARD y Eacutemilie ZUM BRUNN Mujeres Trovadoras de dios Una tradicioacuten silenciada de la Europa medieval 345 Luisa MURARO Il Dio delle donne p 14

A pergunta que natildeo desfaz a procura construtiva visa a embaraccedilar assim tanto a mente com os seus objetos e os seus meacutetodos que natildeo aparece mais uma verdadeira pergunta Como verdadeira pergunta entendo uma pergunta cuja resposta natildeo depende de nada que eu tenho e que sou Uma verdadeira pergunta chama a existecircncia de outra coisa346

A experiecircncia religiosa relatada fala de um amor voltado para um objeto inacessiacutevel sempre

disposto a perder e nunca seguro de possuir amor a nada do que se pode imaginar no entanto

algo real e dotado de poder Fala da relaccedilatildeo com Deus que se faz reconhecer sem nunca se

deixar pegar Nesses textos a experiecircncia com Deus eacute descrita como experiecircncia de liberdade

que nasce (e isso desafia a compreensatildeo moderna) do aniquilamento

A alma aniquilada afirma Marguerite Porete se apoacuteia sobre dois pilares que a faz forte contra

seus inimigos forte como um castelo sobre um monte rodeado pelo mar Um dos pilares eacute o

conhecimento de sua proacutepria pobreza O outro eacute o conhecimento elevado que ela recebe da pura

Divindade De tatildeo tomada pelo conhecimento de sua pobreza a alma eacute estranha aos olhos do

mundo e aos olhos dos seus Por outro lado ela eacute tatildeo embriagada do conhecimento do amor e da

graccedila da pura divindade que estaacute sempre becircbada de conhecimento e repleta de louvores do

amor divino Becircbada natildeo somente do que tem bebido mas becircbada do que jamais bebeu e do que

jamais beberaacute Becircbada da bebida que bebe seu bem-amado pois que entre ele e ela por

transformaccedilatildeo do amor natildeo haacute nenhuma diferenccedila Esta alma eacute um abismo pela humildade de

sua memoacuteria de seu entendimento e de sua vontade ao mesmo tempo em que eacute muito livre pelo

amor da Divindade347 A alma aniquilada conhecendo sua pobreza ao mesmo tempo conhece a

bondade de Deus que eacute a sua salvaccedilatildeo Pois Deus de bondade natildeo poderia deixar de favorececirc-la

em sua mendicacircncia sem se renegar Tamanha pobreza entretanto afirma natildeo poderia se

acomodar com menos do que o cume da abundacircncia de toda a bondade divina

A salvaccedilatildeo para Porete consiste portanto no conhecimento da bondade de Deus a partir do

reconhecimento da proacutepria maldade A autocompreensatildeo da alma como mina de desgraccedila

explica Babinski eacute ao mesmo tempo o meio pelo qual a alma recebe a divindade Neste

sentido a humildade torna-se a ocasiatildeo para o divino preenchimento348 E nisso consiste a

nobreza na transformaccedilatildeo de amor operada por Deus naquele que se despojou de tudo ateacute de si

mesmo O homem nobre para a tradiccedilatildeo renana da qual participa Porete eacute o homem livre no

entanto natildeo porque nasceu nessa condiccedilatildeo explica M Eckhart em seu sermatildeo O homem nobre

mas porque argumenta ele inspirado em Agostinho avanccedila no caminho do desprendimento

degrau a degrau ateacute o limite que implica despojar-se da proacutepria imagem humana para assumir a

imagem divina

346 Ibidem p 19-20 347 Cf ibidem p 85-86 348 Ellen BABINSKI op cit p 6

O primeiro degrau eacute aquele do homem interior e novo diz Santo Agostinho consiste em modelar o homem sua vida pelo exemplo de pessoas boas e santas mas continuando a caminhar pegado agraves cadeira e cosido agraves paredes e a sustentar-se com leite

O segundo degrau eacute aquele em que o homem jaacute natildeo olha apenas para os modelos exteriores inclusive os de homens bons Mas corre a buscar pressuroso a doutrina e o conselho de Deus e da sabedoria divina dando as costas agrave humanidade e voltando o rosto para Deus deixando o regaccedilo da matildee e sorrindo para o pai

O terceiro degrau consiste em apartar-se o homem mais e mais de sua matildee e em distanciar-se sempre mais de seu colo fugindo ao cuidado e depondo o temor de modo tal que embora pudesse praticar o mal e a injusticcedila sem dar escacircndalo a toda a gente nem assim queria faze-lo tatildeo iacutentima eacute sua uniatildeo de amor com Deus e tatildeo zelosa a sua diligecircncia (que natildeo descansa) ateacute que seja introduzido na alegria na doccedilura e na bem-aventuranccedila que lhe faccedilam aborrecer tudo que lhe eacute dessemelhante e alheio

O quarto degrau consiste em que o homem cresccedila e se fixe mais e mais no amor e em Deus dispondo-se assim a enfrentar com vontade e gosto com sofreguidatildeo e alegria toda espeacutecie de provaccedilatildeo de tentaccedilatildeo de contrariedade e de padecimento

O quinto degrau estaacute em que o homem viva em toda a parte na paz interior descansando tranquumlilamente na riqueza e na superabundacircncia da suprema e inefaacutevel sabedoria

O sexto degrau consiste no despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da eternidade divina pelo esquecimento total e perfeito da vida transitoacuteria e temporal de tal modo que feito filho de Deus e atraiacutedo por Deus o homem se transmude em imagem de Deus349

Eacute nobre aquele que se despoja de si e nasce do alto O segredo da nobreza eacute revelado pelo Filho

de Deus

Com referecircncia a este homem interior e nobre no qual se encontra impressa e implantada a semente de Deus e a imagem de Deus e agrave maneira como se manifesta esta semente e esta imagem da natureza e da essecircncia divina o Filho de Deus e como dela se toma conhecimento e tambeacutem como por vezes ela se oculta ndash sobre isso o grande mestre Oriacutegenes apresenta uma comparaccedilatildeo O Filho de Deus diz estaacute no fundo da alma como uma fonte viva350

A alma aniquilada eacute nobre porque pelo aniquilamento acolhe a obra de Deus nela Essa alma

que leva a marca de Deus como o lacre toma a forma do selo afirma Marguerite Porete sabe

que a obra de Deus na criaccedilatildeo natildeo eacute condenaacute-la mas conformaacute-la a Ele351 Este eacute o segredo do

Filho que eacute dado a ela pelo amor do Espiacuterito Santo A alma aniquilada eacute portanto semelhante agrave

divindade A liberdade perfeita que define a nobreza vem pela graccedila de Deus que daacute agrave alma o

conhecimento do seu nada conhecimento que leva do mais profundo abismo agrave mais elevada

condiccedilatildeo Em sua nobreza a oraccedilatildeo e a prece da alma jaacute natildeo pede mais nada repousa em paz

Esses teoacutelogos e teoacutelogas vatildeo constituir no interior da teologia cristatilde medieval uma tradiccedilatildeo ao

lado e em controveacutersia com a teologia escolaacutestica mais racional e cientiacutefica Miacutestica porque se

funda na experiecircncia da alma que procura julgar a realidade com os olhos de Deus e que para

isso considerando a diferenccedila imensa que separa o finito do infinito deve percorrer um

itineraacuterio atravessar suas proacuteprias faculdades despojando-se da inteligecircncia e da vontade

349 Mestre ECKHART A Miacutestica de Ser e de natildeo Ter p 92-93 350 Ibidem p 93 351 Ibidem p 115

confiando que ao longo desse trabalho Deus vem a ela e fazendo aiacute sua morada transforma

seu saber e seu querer

Miacutestica eacute entatildeo nesse contexto discurso sobre a relaccedilatildeo com Deus daquele que faz um percurso

que implica o envolvimento num trabalho de despojamento de si para deixar-se transformar pelo

totalmente Outro que em sua grandeza e liberdade eacute absolutamente transcendente impossiacutevel

para o entendimento e o querer humanos Esse processo em muitos escritos desses que seratildeo

posteriormente eles mesmos denominados miacutesticos eacute descrito como caminho que conduz a um

alto grau de intimidade experiecircncia de amor que seraacute expressa como nos poemas de Satildeo Joatildeo

da Cruz atraveacutes de imagens nupciais352

Em uma noite escura De amor em vivas acircnsias inflamada Oh ditosa ventura Saiacute sem ser notada Jaacute minha casa estando sossegada Na escuridatildeo segura Pela secreta escada disfarccedilada Oh ditosa ventura Na escuridatildeo velada Jaacute minha casa estando sossegada Em noite tatildeo ditosa E num segredo em que ningueacutem me via Nem eu olhava coisa Nem outra luz nem guia Aleacutem da que no coraccedilatildeo me ardia Essa luz me guiava Com mais clareza que a do meio-dia Aonde me esperava Quem eu bem conhecia Em siacutetio onde ningueacutem aparecia Oh noite que me guiaste Oh noite que juntaste Amado com amada Amada no Amado transformada Em meu peito florido Que inteiro para ele soacute guardava Quedou-se adormecido E eu terna o regalava E dos cedros o leque o refrescava

352 Segundo comentaacuterio de Satildeo Joatildeo da Cruz esses satildeo versos que tratam do modo e maneira que tem a alma no caminho da uniatildeo de amor com Deus (Cf Satildeo Joatildeo da Cruz Obras Completas p439)

Da ameia brisa amena Quando eu os seus cabelos afagava Com sua matildeo serena Em meu colo soprava E meus sentidos todos transportava Esquecida quedei-me O rosto reclinado sobre o Amado Tudo cessou Deixei-me Largando meu cuidado Por entre as accedilucenas olvidado353

Essa podemos dizer satildeo as caracteriacutesticas fundamentais do que se entendeu como miacutestica ou

misticismo discurso sobre a experiecircncia de Deus que toma impulso nos paiacuteses do norte entre os

seacuteculos XII e XIII e que floresce tambeacutem nos seacuteculos XVI na Espanha e no seacuteculo XVII na

Franccedila Esse discurso que recebeu grandes criacuteticas do iluminismo354 ganha atualmente

renovada atenccedilatildeo pela contribuiccedilatildeo que pode dar ao contexto contemporacircneo desafiado pelo

retorno agrave preocupaccedilatildeo com o sagrado e pela diversidade religiosa

Contribuiccedilotildees

Natildeo se pode negar que um dos grandes desafios da teologia hoje mais do que o ateiacutesmo eacute o

enfrentamento da diversidade religiosa o obrigatoacuterio encontro entre tradiccedilotildees religiosas num

mundo globalizado e tenso entre a violecircncia e a promessa de uma frutuosa convivecircncia Muitas

vezes o impulso para o diaacutelogo representa mais um desejo de assimilaccedilatildeo do que verdadeiro

respeito agrave diferenccedila e ao valor da alteridade Nesse contexto e em vista do itineraacuterio que

fizemos procurando destacar alguns pontos importantes para o entendimento da miacutestica

queremos propor aqui algumas consideraccedilotildees sobre as contribuiccedilotildees da mesma para a teologia

Em primeiro lugar e fundamentalmente a miacutestica ensina um grande respeito agrave verdade

abrangente de Deus que eacute sempre mais do que aquilo que algueacutem reconhece e percebe Misteacuterio

353 Satildeo Joatildeo da Cruz opcit p 438-439 354 Para os modernos a miacutestica contradiz a eacutetica Entendida como feacute no milagre isto eacute feacute em que o humano estaria submetido a uma influecircncia do sobrenatural a miacutestica levaria necessariamente ao quietismo Para Kant na obra ldquoO conflito das faculdadesrdquo a miacutestica se refere a uma experiecircncia que natildeo podendo se reduzir agrave regra da razatildeo acaba sendo apenas interpretaccedilatildeo (aleatoacuteria segundo o nosso entender) de certas sensaccedilotildees conhecimento interpretativo sem aplicaccedilatildeo praacutetica Para aceitarmos que a transformaccedilatildeo do humano em um humano melhor seja fruto de uma experiecircncia miacutestica afirma Kantldquo() o homem deveria demonstrar que nele se realizou uma experiecircncia sobrenatural a qual eacute em si mesma uma contradiccedilatildeo Poderia quando muito admitir-se que o homem teria em si mesmo feito uma experiecircncia (por exemplo de determinaccedilotildees novas e melhores da vontade) de uma transformaccedilatildeo que ele natildeo sabe explicar de outro modo a natildeo ser por milagre por conseguinte de algo sobrenatural Mas uma experiecircncia da qual nem sequer se pode convencer que eacute de fato experiecircncia porque (enquanto sobrenatural) natildeo pode reduzir-se a regra alguma da natureza do nosso entendimento nem comprovar-se eacute uma interpretaccedilatildeo de certas sensaccedilotildees a cujo respeito natildeo se sabe o que com elas se haacute-de fazer se teratildeo um objeto efetivo para o conhecimento ou se seratildeo simples devaneiosrdquo (Immanuel KANT O conflito das faculdades p70)

sempre Absconditus nunca totalmente revelado porque sempre maior do que se pode pensar e

ateacute de tudo que se pode desejar Nesse sentido a afirmaccedilatildeo jaacute presente na tradiccedilatildeo miacutestica

cristatilde expressa na Teologia Miacutestica de Dioniacutesio Areopagita que Deus eacute Treva luminosa parece

profundamente questionadora de posturas que se arrogam detentoras da totalidade do saber

sobre Deus Para a tradiccedilatildeo miacutestica todo conceito positivo sobre Deus por mais importante que

deva ser considerado em sua funccedilatildeo de sustentaccedilatildeo no caminho para Deus se relativiza ou se

desfaz na medida da aproximaccedilatildeo com o Deus vivo absolutamente transcendente

Em segundo lugar e articulado a esse primeiro ponto a tradiccedilatildeo miacutestica cristatilde mostra que o

misteacuterio de Deus se revela como Amor transformador na intimidade daquele que se dispotildee a

desprender-se de tudo e ateacute de si mesmo aquele que sabe reconhecer seu limite sua fraqueza e

sua pobreza Experimentar Deus supotildee portanto testemunham os miacutesticos atravessar e

ultrapassar tudo o que serve de mediaccedilatildeo no caminho para essa experiecircncia todos os ldquonomes

transferiacuteveis dos objetos sensiacuteveis agraves coisas divinas formas e figuras divinas partes

instrumentos lugares divinos ornatos iras afliccedilotildees dores coacuteleras ebriedades excessos

juramentos imprecaccedilotildees sonos vigiacutelias e todas as sacras figuraccedilotildees da representaccedilatildeo de

Deusrdquo355 como mostra Dioniacutesio e supotildee como ousa afirmar Mestre Eckhart perder ateacute mesmo

a Deus

Se a alma contempla Deus na qualidade de Deus enquanto ele eacute imagem ou na medida que ele eacute trinitaacuterio existe nela uma insuficiecircncia Mas quando todas as imagens da alma satildeo descartadas e ela contempla somente o uacutenico Uno o ser despido da alma descobre o ser despido sem forma da unidade divina que eacute o ser superessencial que repousa impassiacutevel nele mesmo Ah Maravilha das maravilhas que nobre sentimento existe no fato de natildeo poder o ser da alma sofrer outra coisa a natildeo ser a uacutenica e pura unidade de Deus356

Essas duas grandes caracteriacutesticas da experiecircncia de Deus enfatizadas pela miacutestica a saber a

abertura ao misteacuterio incontiacutevel de Deus e a necessidade do despojamento como caminho para o

encontro eacute hoje uma grande contribuiccedilatildeo para o estabelecimento de uma postura aberta ao

diaacutelogo que sempre esbarra no confronto entre imagens positivas de Deus e definiccedilotildees de

caminhos de Salvaccedilatildeo A miacutestica alerta para a fragilidade de todo edifiacutecio que se arroga como

uacutenico caminho para Deus Afirmando a grandeza e a liberdade infinita de Deus propotildee uma

desconfianccedila criacutetica de todo caminho positivo para o encontro com Deus e afirma a necessidade

do reconhecimento dos limites de toda construccedilatildeo humana que apoacuteia esse caminho Confia mais

na via do despojamento e no potencial da pobreza que promove abertura para a transformaccedilatildeo

amorosa de Deus do que no poder das instituiccedilotildees e suas indicaccedilotildees dos meios de salvaccedilatildeo A

tradiccedilatildeo miacutestica convida a natildeo perder de vista a distinccedilatildeo entre os meios que conduzem a Deus

355 Cf nota 8 356 Esse trecho do Sermatildeo 83 de Mestre Eckhart estaacute citado em Jean Franccedilois Malherbe Sofrer Deus A pregaccedilatildeo de Mestre Eckhart AparecidaSP Editora Santuaacuterio 2006 p 35

dispostos no interior das religiotildees e a experiecircncia da Presenccedila Dele que transborda todos as

limites ateacute mesmo os limites dos quais natildeo escapam as religiotildees

Uma terceira caracteriacutestica do discurso miacutestico sobre a experiecircncia de Deus a se destacar diz

respeito agrave ecircnfase na intimidade de determina a maneira como esse discurso articula

singularidade e universalidade O problema do diaacutelogo muitas vezes estaacute associado ao discurso

sobre Deus que procura sempre uma projeccedilatildeo universal O miacutestico a miacutestica ao contraacuterio natildeo

tem como ponto de partida as verdades universais celebra sua proacutepria experiecircncia fala em

primeira pessoa da sua intimidade com Deus No entanto esse mesmo discurso que eacute particular

ao mesmo tempo testemunha que o relacionamento com Deus eacute absolutamente livre que natildeo se

prende a nenhuma determinaccedilatildeo de pessoa de lugar ou de tradiccedilatildeo A miacutestica revela que o

Amor de Deus manifestado na intimidade do sujeito tem abertura universal A miacutestica ensina

entatildeo que todo edifiacutecio construiacutedo toda tradiccedilatildeo religiosa determinada pelas condiccedilotildees

limitadas do tempo e do espaccedilo a que pertence tem no seu fundamento um momento de

intimidade com Deus que se manifesta como uma experiecircncia universal possiacutevel para todos

mas que natildeo eacute posse de ningueacutem

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WILDERINK Ocarm Vital J G Miacutestica e Miacutesticos Belo Horizonte Ed Divina Misericoacuterdia 2004

De Beata Vita de Santo Agostinho Uma reflexatildeo sobre a felicidade

Neuza de Faacutetima Brandellero 357

De Beata Vita eacute escrito em forma de diaacutelogo comum em sua eacutepoca e com uma

estrutura simples Compotildeem-se de um uacutenico livro abrangendo quatro capiacutetulos Comentarei os

trecircs paraacutegrafos do primeiro capiacutetulo da obra De Beata Vita de Santo Agostinho O jovem

Agostinho nos apresenta o magniacutefico quadro da humanidade navegando no oceano da vida em

direccedilatildeo ao porto da Filosofia interceptado por escolho escarpado ( o orgulho ) A alegoria da

navegaccedilatildeo

ldquoSe fosse possiacutevel atingir o porto da Filosofia uacutenico ponto de acesso agrave regiatildeo e terra

firme da vida felizrdquo358 A Filosofia seria o porto a terra firme e a felicidade seriam onde nossa

viagem nossa navegaccedilatildeo terminaria Mas o nuacutemero de pessoas que atingem a terra firme eacute

muito pequeno Por que eacute tatildeo difiacutecil chegar ao porto Quais os obstaacuteculos Aos poucos aquelas

pessoas vatildeo aprendendo a superar os perigos do mar conduzindo a navegaccedilatildeo com cuidado ateacute

o porto

Todos convidados estatildeo atentos ao que Agostinho vai falar ldquoCom efeito estamos

lanccedilados neste mundo como em um mar tempestuoso e por assim dizer ao acaso e agrave aventura

seja por Deus seja pela natureza seja pelo destino seja ainda por nossa proacutepria vontaderdquo359 O

mar eacute o proacuteprio mundo nossa existecircncia com suas tempestades e seus medos Somos lanccedilados

neste mar tempestuoso O nosso barco quer retornar agrave terra firme O que garante esse retorno agrave

paacutetria tatildeo almejada eacute o porto ou seja a filosofia Haacute uma valorizaccedilatildeo da filosofia sendo ela

porto que vai levar ateacute agrave paacutetria tatildeo almejada que eacute a vida feliz A paacutetria eacute aquilo que todos

querem encontrar a felicidade

Segundo Santo Agostinho existem trecircs tipos de navegantes rumos agrave Filosofia

A primeira eacute daqueles que tendo chegado agrave idade em que a razatildeo domina afastam-se da terra mas natildeo demasiadamente Com pequeno impulso e algumas remadas chegam a fixar-se em algum lugar de tranquumlilidade de onde manifestam sinais luminosos por meio de obras realizadas na intenccedilatildeo de atingir o maior nuacutemero possiacutevel de seus concidadatildeos para estimulaacute-los a virem ao seu encalccedilo360

Aqueles que amadurecidos pela razatildeo sabem se conduzir se afastam da regiatildeo soacutelida e

se conduzem agrave tranquumlilidade dando o exemplo a ser seguido por outros

A segunda espeacutecie de navegantes ao contraacuterio da primeira eacute constituiacuteda dos que iludidos pelo aspecto falacioso do mar optam por lanccedilar-se ao longe Ousam aventurar-se

357 Doutoranda em Ciecircncias da Religiatildeo na Pucsp 358 SANTO AGOSTINHO De Beata Vita I 1 359 IdemIbidem I 1 360 Idem Ibidem I 2

distante de sua paacutetria e com frequumlecircncia esquecem-se dela Se a esses natildeo sei por qual inexplicaacutevel misteacuterio sopra-lhes o vento em popa perdem-se nos mais profundos abismos da miseacuteria ( ) Nessa segunda categoria entretanto acontece que alguns por natildeo terem arriscado longe de mais satildeo trazidos de volta ao porto graccedilas a adversidades menos danosas Tais por exemplo os que sofrem alguma vicissitude em seus bens ou grave dificuldade em seus negoacutecios A esse contacto acordam de certa forma no porto de onde natildeo mais os tiraraacute nenhuma promessa nenhum sorriso ilusoacuterio do mar 361

Estes navegantes longe da terra firme se deixando levar pelo vento que lhes parece

favoraacutevel sem saber que satildeo conduzidos pelos prazeres e honras enganadoras Parecendo-lhes

tudo tatildeo agradaacutevel por que procurar outros caminhos Talvez estes navegadores natildeo tenham ido

longe o suficiente para distinguir o caminho certo Estes navegadores satildeo aqueles que por natildeo

terem nada a perder se guiam por falsos saacutebios e conduzem seus destinos achando que iratildeo

encontrar o porto seguro

Finalmente haacute a terceira categoria de navegantes a meio termos entre as outras duas Compreende os que desde o iniacutecio da adolescecircncia ou apoacutes terem ido longe e prudentemente balanccedilados pelo mar natildeo deixam de dar sinais de se recordarem da doce paacutetria ainda que no meio de vagalhotildees Poderiam entatildeo recuperaacute-la de imediato sem se deixar desviar ou atrasar Frequumlentemente poreacutem acontece que perdem a rota em meio a nevoeiro ou fixam astros que declinam no horizonte Deixam-se reter pelas doccediluras do percurso Perdem a boa oportunidade do retorno Erram longamente e muitas vezes correm ateacute o risco de naufraacutegio A tais pessoas sucede por vezes que alguma infelicidade adveacutem em meio agraves suas fraacutegeis prosperidades como por exemplo uma tempestade a desbaratar seus projetos362 Seratildeo assim reconduzidos agrave desejada e apraziacutevel paacutetria onde recuperaratildeo o sossego 363

Esta terceira classe por sua vez eacute daqueles que se lanccedilam ao mar ainda muito jovens e

atraveacutes da contemplaccedilatildeo recordam da sua paacutetria querida E assim reconduz-se a ela mesmo

atraveacutes das adversidades do tempo enfrentando ventos fortes e neblinas desviando-os do

361 Idem Ididem I 2 362 CREMONA Carlo Agostinho de Hipona P62-66 Esta metaacutefora colocada nos primeiros paraacutegrafos do De Beata Vita eacute em suma confidecircncia pessoal de sua vida que Agostinho faz a Macircnlio Teodoro Eis como Carlo Cremona nos apresenta O relato recorda-nos certamente a Sexta sinfonia de Beethoven A vida eacute semelhante a um mar natildeo igual para todos As aacuteguas tranquumlilas convidam-te a te distanciares da paacutetria e do porto Aacuteguas sempre enganosas De improviso pode desabar uma tempestade Tu de aforas entatildeo por acaso Elas te arrastam como naacuteufrago para a paacutetria Quem se afasta da paacutetria por mares enganosos tambeacutem se natildeo passa por tempestades eacute infeliz E seria caso de augurar-lhe temporal bem cruel pois nem sempre eacute desventura irreparaacutevel se te devolve violentamente agrave terra firme Mas ao primeiro sinal de tempestade temem e retornam apavorados ao porto Eacute a sua salvaccedilatildeo Vem depois uma terceira categoria de navegantes aqueles que seja como for se encontram em alto mar e lutam com vagalhotildees tendo os olhos impedidos de divisar um farol distante bem ao longe que indica a paacutetria amada Ou se neacutevoa oculta aquela luz ficam com os olhos a procurar uma estrela indicadora a declinar Alguns tendo recuperado alguma efecircmera seguranccedila retardam ainda o retorno Os homens falam sempre de tempestade como de desventura No entanto haacute tempestades que reconduzem agrave margem segura precisamente graccedilas agrave sua violecircncia Apud SANTO AGOSTINHO A vida feliz diaacutelogo filosoacutefico Satildeo Paulo Paulinas 1993 p 70 Nota de rodapeacute 8 363 SANTO AGOSTINHO De Beata Vita I 2

caminho e agraves vezes arriscando suas proacuteprias vidas encontram o local desejado podendo entatildeo

regozijar da tranquumlilidade da terra firme

Podemos perceber atraveacutes desta alegoria que para Agostinho a terra firme ou seja o

lugar da felicidade seraacute encontrado por meio da filosofia A meta ou o fim a ser alcanccedilado pelo

navegante seraacute retornar ao local de onde partiu para sua vivecircncia total364 Percebe-se

implicitamente que a utilizaccedilatildeo da alegoria parece fazer uma comparaccedilatildeo aos conflitos internos

vividos pelo ser humano que seria a navegaccedilatildeo no mar ou mais a inquietaccedilatildeo do filoacutesofo que

estaacute agrave busca da certeza da sabedoria encontrando a inveacutes atalhos desvios turbulecircncias em sua

caminhada de retorno ao porto Porto paacutetria terra e lugar seguro satildeo palavras que expressam a

finalidade do que se procura O porto eacute ponto de saiacuteda e partida mas tambeacutem o ponto de

chegada Angustiado no interior da alma e que por si soacute natildeo encontra explicaccedilatildeo nem o porquecirc

de tanta dor e da incerteza dos passos que se deve dar e tambeacutem nem por onde e nem para onde

se encaminha Onde estaacute a verdade Nas coisas da terra Entre os seres humanos Em Deus A

criatura procura seu criador sem saber como se conduzir para encontraacute-Lo

Para Agostinho eacute necessaacuterio ser forte e evitar um enorme rochedo que se

encontra na entrada do porto365 Porque existe neste lugar uma luz enganadora que brilha de tal

maneira e faz pensar aos que aiacute chegaram a ter encontrado a terra da felicidade Pois a filosofia

seduz prometendo a satisfaccedilatildeo dos desejos e detendo estas pessoas por longo tempo Estas

pessoas por sua vez se declinando com o que encontram chegam a desprezar os outros

navegantes Aqueles que se dedicam agrave filosofia natildeo devem procurar por honra e gloacuteria Pois este

rochedo eacute fraacutegil racha e os engole em trevas profundas e a soberba deixa-os longe da doce

paacutetria

Ora que outro rochedo a razatildeo indica como temiacutevel aos que se aproximam da filosofia do que esse da busca orgulhosa Pois esse rochedo eacute oco interiormente e sem consistecircncia Aos que se arriscam a caminhar sobre ele abre-se o solo a tragaacute-los sorvecirc-los e submergindo-o em profundas trevas Desvia-os assim da esplecircndida mansatildeo que havia apenas entrevisto366

Santo Agostinho continua dizendo que haacute vaacuterios tipos de navegantes Haacute aqueles que

sempre estatildeo no mar mas que perderam o rumo devido agrave mentira ilusatildeo e erros mas devido agrave

providecircncia de Deus conseguiram voltar Ele mostra de maneira bem sucinta e chama a atenccedilatildeo

364 Note-se que esta alegoria ao fundar a universalidade do desejo da felicidade aponta-o simultaneamente como meta e tarefa Se o percurso da tarefa culmina em escatologia o homem que navega comprazendo-se embora no ato da navegaccedilatildeo natildeo pode deixar de regressar ao porto donde zarpou a meta seraacute a sua vivecircncia total Cf Idem Ibidem nota de rodapeacute 4 p 93 365 Que o leitor medite esta descriccedilatildeo da vangloacuteria monte situado agrave entrada do porto da sabedoria barrando a entrada e natildeo menos perigoso para os que natildeo deixaram o porto Constitui obstaacuteculo aos que chegam assim como atraccedilatildeo aos que laacute permanecem Quem pode escapar a ele Eacute rochedo oco onde se afunda se soccedilobra na obscuridade nada mais se podendo ver com clareza SANTO AGOSTINHO De Beata Vita nota de rodapeacute n 10 p 71 366 Idem De Beata Vita I 3

de que na entrada do porto haacute uma rocha significando a possibilidade do erro e da ilusatildeo

Aquele que chega ateacute o porto da filosofia portanto atraveacutes da filosofia e da razatildeo comeccedila a

buscar a verdadeira sabedoria a verdade absoluta ele tem que tomar cuidado para que sua

busca natildeo seja impulsionada pela vaidade vatilde gloacuteria ou seja o orgulho Natildeo pode ser o orgulho

ou a vatilde gloacuteria que impulsiona o ser humano a buscar a verdade e a sabedoria prejudicaraacute a

pessoa e sua filosofia mundana que ao inveacutes de ajudar a chegar agrave paacutetria almejada que eacute a vida

feliz vai se perder no meio da vatilde gloacuteria e ilusatildeo

Com esta alegoria da navegaccedilatildeo Santo Agostinho vai introduzir seus convidados no

contexto da natureza da alma e coloca a felicidade como um dom de Deus Talvez a felicidade

natildeo seja uma mera conquista humana A questatildeo da alma eacute aquilo que haacute de mais semelhante

entre o ser humano e Deus E a felicidade mesmo que natildeo esteja claro percebe-se que haacute um

viacutenculo com Deus na conservaccedilatildeo da mesma Eacute preciso buscar a felicidade na interioridade pois

eacute na natureza da alma que existe uma certa possibilidade de resposta para estas questotildees

REFEREcircNCIAS

CREMONA Carlo Agostinho de Hipona Petroacutepolis Vozes 1990 SANTO AGOSTINHOSoliloacutequios e a vida feliz Satildeo Paulo Paulus 1998 Traduccedilatildeo de Nair de Assis Oliveira ----------A vida feliz diaacutelogo filosoacutefico Satildeo Paulo Paulinas 1993 Traduccedilatildeo de Nair de Assis Oliveira

GT Interculturalidade e Religiatildeo EMENTAS

Existe uma hermenecircutica afroamericana Proposta de um ensaio de linguagem teoacutelogica visual Reinaldo Joatildeo De Oliveira Joe Marccedilal G Santos Existe um pensar hermenecircutico negro A partir dessa questatildeo buscamos refletir uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo da cultura na construccedilatildeo local de saber de apropriaccedilatildeo contextual e poliacutetica de linguagem A proposta dessa reflexatildeo se vale da metaacutefora do ldquoolhar-escutardquo para pensar a proacutepria teologia concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teoacuterico de uma etnografia natildeo como mera produccedilatildeo de imagem e representaccedilatildeo desobre o outro mas na construccedilatildeo um olhar-narrativo uma forma de mediaccedilatildeo cognitiva e eacutetica relacionada situada e que se movimenta junto dessa alteridade O objetivo dessa proposta eacute fazer o recorte teoacuterico do que seria um ensaio de linguagem teoloacutegica determinada pela racionalidade imageacutetica metafoacuterica e narrativa proacutepria agrave cultura afroamericana postulando uma razatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidade Venha o teu Reino ilustraccedilotildees indagaccedilotildees e ponderaccedilotildees sobre interculturalidade e religiatildeo a partir das HQs Iuri Andreacuteas Reblin Apresenta-se o tema da interculturalidade e da religiatildeo a partir do universo das Histoacuterias em Quadrinhos em particular das histoacuterias dos super-heroacuteis Surgidos na primeira parte do seacuteculo XX os super-heroacuteis satildeo mitologias modernas que expressam o universo de valores do ser humano o que ele aspira o que ele crecirc o que ele espera o que ele teme Como narrativas mitoloacutegicas as histoacuterias dos super-heroacuteis tornam-se loacutecus de representaccedilatildeo da realidade cultura religiatildeo sociedade poliacutetica tudo pode ser encontrado em suas histoacuterias em proporccedilotildees desiguais de acordo com aquilo que se intenta contar A partir dessa premissa o presente texto lanccedila um olhar sobre a forma com que acontece o intercacircmbio cultural e a transposiccedilatildeo de um super-heroacutei a outros contextos e por meio de ilustraccedilotildees e ponderaccedilotildees conjetura e de igual modo como a religiatildeo e o estudo sobre ela se inserem nesse contexto Interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica uma abordagem latino-americana a partir do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade Roberto E Zwetsch O autor apresenta o desafio que a pluralidade de culturas na Ameacuterica Latina representa para a Educaccedilatildeo Teoloacutegica Ecumecircnica Seu ponto de partida seraacute uma anaacutelise do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade lanccedilado em dezembro de 2007 por uma ONG de La Paz Boliacutevia Servicios Pedagoacutegicos y Teoloacutegicos documento coordenado pelo Dr Matthiacuteas Preiswerk e que depois foi assinado por quase uma centena de teoacutelogas e teoacutelogos de diferentes paiacuteses latino-americanos representando um referencial teoacuterico e pedagoacutegico para a compreensatildeo da Interculturalidade na Educaccedilatildeo Teoloacutegica que se oferece em Faculdades de Teologia e Seminaacuterios em toda a regiatildeo e Caribe As culturas e a Biacuteblia Flaacutevio Schmitt

A Biacuteblia eacute um livro forjado ao longo do tempo No processo de formaccedilatildeo do texto sagrado de judeus e cristatildeos satildeo reunidas informaccedilotildees e contribuiccedilotildees de diversos grupos geograacutefica e culturalmente distintos Atraveacutes de diferentes processos sociais satildeo reunidos diferentes aspectos que contribuem de forma heterogecircnea na constituiccedilatildeo do texto atual Comeccedila pelas culturas semitas do oriente passa pela tradiccedilatildeo ocidental grega e incorpora inuacutemeras tradiccedilotildees locais O resultado eacute uma siacutentese que reflete tensotildees ajustes e consensos perceptiacuteveis no texto sagrado Trabalho com mulheres negras no Quilombo do ValongosTijucas-SC Rita de Caacutessia Maraschin da Silva Silva Como a experiecircncia das mulheres negras da comunidade quilombola dos Valongos encravadas no interior de Porto Belo na Grande Florianoacutepolis motivadas pela feacute cristatildeo adventista do 7ordm dia desejam contribuir no processo de emancipaccedilatildeo como mulheres visando a melhoria das suas condiccedilotildees de vida e dos niacuteveis de organizaccedilatildeo atraveacutes de processos de qualificaccedilatildeo social e profissional formaccedilatildeo e apoio a iniciativas grupais de geraccedilatildeo de trabalho e renda para que possam ter maior participaccedilatildeo e intervenccedilatildeo no desenvolvimento local sustentaacutevel com equidade de gecircnero embasados na democracia direta na cooperaccedilatildeo e na solidariedade A questatildeo negra e a interculturalidade em evidecircncia abordagem discussatildeo e inclusatildeo nos curriacuteculos escolares e dos cursos de formaccedilatildeo acadecircmica Selenir Correcirca Gonccedilalves Kronbauer

A partir da temaacutetica pretende-se abrir possibilidades para uma reflexatildeo e discussatildeo sobre a questatildeo negra cultura e religiosidade desenvolvida nos curriacuteculos escolares e dos cursos de formaccedilatildeo em geral do Curso de Teologia em particular Toda essa questatildeo passa pela necessidade de organizaccedilatildeo de um programa que venha subsidiar as accedilotildees pedagoacutegicas realizadas nas instituiccedilotildees Com base na experiecircncia vivida na Faculdades EST atraveacutes da disciplina Histoacuteria e Cultura Afro-Brasileira o tema nos remete a essas reflexotildees seguidas de sugestotildees para o desenvolvimento de accedilotildees concretas que venham desencadear atividades que visem a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias para o cumprimento da Lei 106392003 no que se refere ao cumprimento dos art 26-A e 79-B da LDB

GT Interculturalidade e Religiatildeo TEXTOS

Existe uma hermenecircutica afroamericana Proposta de um ensaio de linguagem teoacutelogica visual

Reinaldo Joatildeo De Oliveira

Joe Marccedilal G Santos

Nosso maior desafio eacute o de uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo da cultura na construccedilatildeo local de saber de apropriaccedilatildeo contextual e poliacutetica de linguagem

O diaacutelogo inter-cultural inter-religioso e ecumecircnico como ldquoespaccedilo de re-conhecimento e legitimaccedilatildeo de culturardquo nos auxilia a ldquosituar-nos dentro do mundordquo Neste foco desenvolvemos um diaacutelogo partindo de uma ldquointerpretaccedilatildeordquo sobre o tema que aqui nos impele a reflexatildeo ldquoExiste um pensar hermenecircutico-teoloacutegico negrordquo367 O objetivo passa ser portanto esse ldquopensarrdquo como accedilatildeo situada e por isso o sentido de um ldquosituar-serdquo em determinado ldquolugarrdquo

A hermenecircutica se torna ldquocasardquo (oikos) de um embasamento reflexivo e vivencial do ldquoolhar-escutardquo do ldquoaprendizado-ensinamentordquo na perspectiva teoloacutegica afro-americana Sem duacutevida que nossa busca compreende os fundamentos do fazer teoloacutegico como missatildeo de concepccedilatildeo de um olhar para a teologia de modo diferente e assim uma busca pela epistemologia da proacutepria teologia ou do que seja ldquoesse tipo de fazer teologiardquo

Hermenecircutica eacute um termo carregado de significado e de histoacuteria Originalmente o uso linguumliacutestico do ldquotermo gregordquo situa-se num contexto religioso o sentido de ldquoproclamaccedilatildeordquo submetido a que estaacute impliacutecito no nome de Hermes o mensageiro dos deuses a quem se atribuiacutea a invenccedilatildeo da linguagem Assim sendo esta a origem do termo no grego desde o iniacutecio estaacute ligado com a divindade (ou os ldquodeuses do Olimpordquo)

O uso linguumliacutestico de mesmo fora do mundo claacutessico continua dentro do acircmbito da teologia cristatilde caracteriacutestica essa que igualmente se verificava na antiga arte da intimamente vinculada agrave esfera sacral Foi Gadamer quem elaborou uma teoria da compreensatildeo baseando-se nos trabalhos iniciados por Schleiermacher Dilthey e Heidegger368 tentando assim valorizar o preconceito (via de acesso aos conceitos) O

Mestrando em Teologia (PPG- FATEOPUCRS) Realiza pesquisa na aacuterea da Teologia Afroamericana sob orientaccedilatildeo do professor Dr Luiz Carlos Susin (Nuacutecleo de Pesquisa Teologia e Sociedade) Doutor em Teologia (IEPGEST) integra o Nuacutecleo de Pesquisa Teologia e Sociedade (PUCRS) coordenada de atividades da Secretaria Permanente do Foacuterum Mundial de Teologia e Libertaccedilatildeo (FMTL) 367 Remetendo aqui ao livro organizado por Antonio Aparecido da Silva ldquoExiste um pensar teoloacutegico negrordquo Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque) 368 Descrevendo acerca do conceito de hermenecircutica e em sua elaboraccedilatildeo interpretativa sobre este mesmo assunto que levou-o a chegar nas suas proacuteprias consideraccedilotildees sem poreacutem abandonar uma construccedilatildeo Gadamer escreve que ldquogostaria de discutir de maneira introdutoacuteria o termo hermenecircuticardquo para depois aprofundaacute-lo no seguinte ldquoEsse natildeo eacute nenhum termo usual no acircmbito da filosofia O jurista sabia o que esse termo significava mas natildeo o considerava ndash outrora ndash como efetivamente importante Com o teoacutelogo as coisas natildeo eram diferentes Mesmo em Schleiermacher o avocirc da hermenecircutica moderna a hermenecircutica ainda se mostra quase como uma disciplina auxiliar e em todo caso como subordinada agrave

preconceito significa em Gadamer uma preacute-compreensatildeo historicamente determinada que possibilita um primeiro acesso agrave compreensatildeo mais aprofundada na realidade do objeto ndash ldquoo sujeito ao ver um objeto jaacute conhecido natildeo precisar refletir sobre elerdquo O meacutetodo hermenecircutico avanccedila dessa preacute-compreensatildeo a uma curiosidade de conhecer as coisas desde sua gecircnese abordar a realidade para saber de sua biografia visitar suas raiacutezes e compartilhar de seu chatildeo A partir daiacute Gadamer iraacute falar da fusatildeo dos horizontes que seria o alargamento do nosso horizonte limitado mediante a compreensatildeo do outro por exemplo o que me interessaria por exemplo eacute o meu ponto de vista fazendo (realizando) uma fusatildeo de horizontes (o meu e o do outro) para compreender

A fusatildeo dos horizontes nos interessa enquanto nos possibilita a abordagem eacutetica como anaacutelise acerca desta proposta de leitura ldquofusatildeordquo remete a interaccedilatildeo entre sujeitos em niacuteveis intersubjetivos e intercomunicativos condicionando agrave hermenecircutica a uma accedilatildeo e situaccedilatildeo poliacutetica A hermenecircutica carrega consigo uma bagagem teoacuterica e de significaccedilatildeo estritamente absorvida desde uma cultura e tradiccedilatildeo Contudo nosso modo de pensar e interagir com as culturas e tudo o que refletimos no campo teoacuterico das letras e das ciecircncias pode tambeacutem demonstrar uma certa maneira de conceber um pensamento proacuteprio que mesmo nascente pode tornar-se algo estritamente latente (mesmo ideoloacutegico) para a reflexatildeo teoloacutegica Assim a noccedilatildeo de fusatildeo de horizontes se torna um princiacutepio criacutetico e ao mesmo tempo criativo sugerindo que a hermenecircutica irrompe de um envolvimento entre sujeitos

Disso tudo depende onde estamos ndash o lugar socioloacutegico e epistemoloacutegico ndash quando iniciamos a nossa reflexatildeo ou melhor a partir de onde construiacutemos nosso pensamento E natildeo apenas isso nossa proposta eacute agregar a essa pergunta outra que muitas vezes eacute relegada pela teologia natildeo apenas a partir de onde construiacutemos pensamento mas com o que o fazemos Que material e temas usamos Essa pergunta nos levaria a fazer uma criacutetica ideoloacutegica da cultura ldquoescritardquo em vista da ldquooralidaderdquo que determina o contexto que nos interessa aqui

Situamo-nos ldquodentrordquo de uma ldquoculturardquo realidade Latino-americana ou ldquoAmeriacutendiardquo Estamos refletindo uma teologia que tem bases epistecircmicas e hermenecircuticas de acordo com o ldquochatildeo comumrdquo (realidade) de histoacuteria e por isso em uma ldquoconstruccedilatildeo local de saber e de apropriaccedilatildeo de linguagemrdquo bem como de referenciais teoacutericos Entatildeo propomos aqui uma reflexatildeo hermenecircutico-teoloacutegica Afro-Ameriacutendia com base numa epistemologia tambeacutem contextual

A proposta e o meacutetodo da etnografia metaacutefora do ldquoolhar-escutardquo como descortinamento

Pensando a proacutepria teologia concebendo-a metodologicamente a partir do quadro teoacuterico de uma etnografia natildeo como mera produccedilatildeo de imagem e representaccedilatildeo desobre o outro mas na construccedilatildeo um olhar-narrativo uma forma de mediaccedilatildeo cognitiva e eacutetica relacionada situada e que se movimenta junto dessa alteridade Isso nos leva a uma consideraccedilatildeo poliacutetica importante ao nos situarmos nesse chatildeo comum da cultura afroamericana (alteridade) estamos querendo sim ldquodar vez e vozrdquo Mas eacute preciso ter o cuidado de natildeo fazecirc-lo de modo ldquocolonialistardquo Por isso o silecircncio e a discriccedilatildeo metodoloacutegica de uma etnografia E tambeacutem por isso ter em mente que esse situar-se traz implicaccedilotildees mutuamente estruturantes oxalaacute leve a algum tipo de deslocamento teoacuterico desvio e revoluccedilatildeo na cultura e no olhar desde o qual operamos na teologia

dialeacutetica Em seguida em Dilthey a hermenecircutica eacute enquadrada na psicologia Foi soacute a aplicaccedilatildeo dada por Heidegger agrave fenomenologia husserliana uma aplicaccedilatildeo que significou ao mesmo tempo a recepccedilatildeo da obra de Dilthey pela fenomenologia que forneceu agrave hermenecircutica pela primeira vez a sua significaccedilatildeo filosoacutefica fundamentalrdquo (In GADAMER Hans-Georg Hermenecircutica em retrospectiva traduccedilatildeo Marco Antocircnio Casanova ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2007 p 94)

Sabemos dos contextos histoacutericos sociais poliacuteticos que vivemos envolvidos no decorrer de seacuteculos desde um tal ldquodescobrimentordquo que seguiu a corrente da ldquoera colonialrdquo implicando vaacuterios processos de ldquoencortinamentordquo ao inveacutes de ldquodescobrimentordquo Esse desvelamento que natildeo ocorreu e poderiamos chamar de uma ldquoencurtaccedilatildeordquo pois encurtou-se a reflexatildeo colocou-se limites agrave compreensatildeo sobre o outro sobre o mundo o cosmos incutindo-lhe ateacute mesmo uma compreensatildeo acerca dos povos nativos como ldquosem culturardquo ndash ldquosem almardquo e ateacute chegar a um outro processo no qual se escreveu a nossa histoacuteria (de Escravidatildeo de marginalizaccedilatildeo de expropriaccedilatildeo de cultura de saber de linguagem etc) ainda destes povos nativos e transplantados

Seguindo o vieacutes desta nossa reflexatildeo e dos processos presentes na histoacuteria do pensamento teoloacutegico latino-americano precisamos nos perguntar Onde estatildeo estes povos que fizeram a histoacuteria do Brasil ser mais rica de sentidos significados (de cultura de linguagem e de sabedorias) estatildeo situados A partir de onde poderiacuteamos situar as raiacutezes desta teologia ou sabedoria latino-americana afro indiacutegena Ateacute onde esses povos estiveram envolvidos pelo ldquoocultamentordquo ou ldquoencobrimentordquo369 de suas ldquoculturasrdquo Atraveacutes daquilo que percebemos pelas vaacuterias formas de opressatildeo como construir-se em solo brasileiro uma legitimaccedilatildeo de outros saberes ditos natildeo-oficiais Como partir por uma metodologia que favoreccedila um olhar diferente para esses ldquoOutrosrdquo que se mantiveram ldquona marginalidaderdquo

Assim Leonardo Boff no livro organizado por Paulo Suess ldquoCulturas e Evangelizaccedilatildeordquo reflete sobre a cultura do opressor versus cultura do oprimido e exatamente nesta nossa anaacutelise situariacuteamos outra pergunta para a teologia Afinal qual eacute a teologia do opressor e qual a teologia do oprimido Em que referenciais teoacutericos hermenecircuticos podem estar situadas

No niacutevel poliacutetico se datildeo relaccedilotildees sociais de poder que se

apresentam como autoritaacuterias ditatoriais carismaacuteticas democraacuteticas

relaccedilotildees que podem ser de apropriaccedilatildeo expropriaccedilatildeo controle

consolidaccedilatildeo ou enfraquecimento de interesses imposiccedilatildeo de

princiacutepios reguladores de condutas de grupos sobre outros Eacute aqui que

apontam os conflitos nas culturas havendo culturas dominantes

culturas subalternas culturas do silecircncio culturas populares etc Natildeo

captar os conflitos dentro das culturas particularmente nas nossas

histoacutericas que satildeo culturas da desigualdade eacute mascarar um dado

fundamental que eacute decisivo para um processo de libertaccedilatildeo e uma

autecircntica evangelizaccedilatildeo370

Podemos citar alguns casos tristes e crueacuteis da histoacuteria onde se fundou ldquosistemasrdquo e ldquoloacutegicas de dominaccedilatildeordquo onde se prevalecia a ldquouniformidaderdquo a ldquoexclusatildeo como processo de seleccedilatildeo de seres-humanosrdquo a ldquoeugeniardquo pregando a superioridade de uns sobre outros bem como a xenofobia como medo aversatildeo e intoleracircncia em oposiccedilatildeo e rejeiccedilatildeo do ldquooutrordquo que eacute diferente na sua concepccedilatildeo de mundo cultura religiatildeo existecircncia (do ldquoser-aiacute-no-mundordquo chamado como dasein por Heidegger) Mas a corrente do pensamento formal elaborou postulados que tambeacutem corroboram para a nossa anaacutelise Por exemplo Gadamer iria considerar o seguinte

369 Somente para citar um pequeno comentaacuterio agrave conceptuaccedilatildeo que estamos buscando dentro do pensamento ocidental para traduzir o que queremos afirmar Heidegger tematizaria pela expressatildeo aletheia mais ou menos isso que dizemos sobre o desvelamento ou o ldquoencobrimentordquo 370 Ibid Culturas e evangelizaccedilatildeo p 129

Todavia apesar de toda a densidade da experiecircncia o que

significa propriamente ldquoserrdquo para aqueles que foram educados no

pensamento ocidental e em seu horizonte religioso eacute obscuro O que

significa a expressatildeo ldquoisso estaacute aiacuterdquo Trata-se do segredo do aiacute natildeo

daquilo que eacute aiacute mas do fato de o ldquoaiacuterdquo ser Isso natildeo visa a existecircncia

do homem tal como na expressatildeo sobre a ldquoluta da existecircnciardquo mas ao

fato de no homem o aiacute se descortinar e permanecer ao mesmo tempo

velado em toda abertura371

Aqui encontramos o caraacuteter eacutetico e esteacutetico do conhecimento em sua relaccedilatildeo fundamental esse descortinar e velar do lugar social ndash o ldquoaiacuterdquo da condiccedilatildeo humana que ganha corpo na cultura na linguagem no cotidiano das pessoas ndash torna-se o objeto de uma teologia orientada hermeneuticamente

Um recorte teoacuterico

Partindo de que o nosso objetivo seria ldquofazer o recorte teoacuterico do que seria um ensaio de linguagem teoloacutegica determinada pela racionalidade imageacutetica metafoacuterica e narrativa proacutepria agrave cultura afroamericanardquo como um situar-se dentro de uma forma ldquooutrardquo de mundo

Jaacute neste situar-se o movimento de resistecircncia pelo pensar teoloacutegico afro-americano afro-brasileiro afro-ameriacutendio buscou-se ter sua autonomia reconhecida divulgada (nem tanto) mas realmente respeitada e mais que isso valorizada por suas fortes manifestaccedilotildees que estatildeo impregnadas de cultura da religiosidade e por tudo isso da feacute Hoje esta busca continua e natildeo eacute diferente das deacutecadas e dos contextos (sociais poliacuteticos religiosos histoacutericos) ndash Apenas o que percebemos eacute uma construccedilatildeo conjunta pela ldquoidentidaderdquo da reflexatildeo

Trazendo de volta uma anaacutelise sobre o modo como pensamos o nosso pensamento hermenecircutico-teoloacutegico um reconhecido grupo de teoacutelogos e teoacutelogas Afro-brasileiros (as) na deacutecada de 90 produziu um ldquopensar teoloacutegico contextual aberto agraves provocaccedilotildees que fizemos neste pequeno relato sobre o percurso da nossa reflexatildeo atualrdquo372 E que aleacutem destes questionamentos trazem consigo outros tantos para refletirmos hoje Eacute por isso que preocupa-nos antes de tudo - Para onde caminhamos E ldquopor onde comeccedilamos a pensar sobre o pensamento teoloacutegico negrordquo E por que refletirmos a partir deste vieacutes

Talvez alguns se perguntem por que o negro o afro quer saber de pensar teologia Certamente seria oacutebvio que ldquodentrordquo do situar-se teoloacutegico contextual seria praxe pensar que este ou aquela pensasse sobre si mesmo(a) Mas ainda natildeo satisfeitos os acadecircmicos perguntariam Jaacute natildeo bastaria pensar a histoacuteria como memoacuteria ou correccedilatildeo ou pensar a partir das ciecircncias sociais como reivindicaccedilatildeo ou ldquoreparaccedilatildeordquo ou analisar atraveacutes das Ciecircncias Humanas ou as Ciecircncias Religiosas e ainda quem sabe em particular a Antropologia como pergunta sobre sua origem cultural ou como contribuiccedilatildeo agrave pesquisa cientiacutefica e a Psicologia como uma anaacutelise mais voltada agrave psique ou agrave alma como afirmaccedilatildeo de uma identidade afro373 Acreditamos que isso vem sendo feito apesar das resistecircncias

371 In GADAMER Hermenecircutica em retrospectiva ndash Vol I p 99 372 SILVA Antocircnio Aparecido (org) Existe um pensar teoloacutegico negro Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque) 373 Dizemos isso refletindo jaacute sobre os vaacuterios conteuacutedos e estudos elaborados e amplamente refletidos em todas as direccedilotildees sobre o aspecto da pensamento afro poreacutem como sentimos uma imensa defasagem de

Contudo ao querermos mexer num ldquodepartamentordquo quase que exclusivista do ponto de vista praacutetico ou formal como jaacute criticava outros autores ao negar o estatuto de ciecircncia para a Teologia cabe perguntar neste caso se as intencionalidades coiacutebem ainda o pensar livre374 Acreditamos tambeacutem que isso esteja superado pela ciecircncia tal como a concebamos No entanto ainda bastaria olhar para as academias que lecionam a Teologia e perguntar Onde se reflete teologia afro-indiacutegena Como se reflete O que se fala sobre teologia Afro E ainda Por quem Quem satildeo os sujeitos do saber teoloacutegico negro afro no mundo na histoacuteria da Teologia na histoacuteria das Religiotildees

Natildeo queremos dizer aqui que deva-se mudar a abordagem teoloacutegica por quem jaacute esteja refletindo nas academias mas acreditamos ser necessaacuterio uma avaliaccedilatildeo e uma retomada histoacuterica primordial resguardando a feacute e os sentidos para aleacutem de uma inculturaccedilatildeo teoloacutegica e hermenecircutica A questatildeo natildeo eacute disputar poder mas desenvolver coerentemente uma criacutetica a uma ideologia de poder Para tal talvez tenhamos que desviar de coibiccedilotildees ao pensar livremente para promover um ldquoestranhamentordquo desideologizante da epistemologia teoloacutegica

Sentimos que se devam valorizar e empoderar os povos e as culturas a partir do diaacutelogo e da abertura para eles se encontrarem como ldquoserrdquo para o mundo para os outros e para si mesmos na interaccedilatildeo livre e respeitosa de seus valores

Querendo com isso provocar ou recordar de um dos ldquogritosrdquo deste tipo na Ameacuterica Latina relatado no livro Teologiacutea Negra teologia de la liberacioacuten organizado por Paulo Freire Hugo Assman Eduardo I Bodipo-Malumba e James H Kone no iniacutecio da deacutecada de 70375 abrimos o campo da reflexatildeo para discutir a dimensatildeo de ldquoafricanidaderdquo ou ldquoafricanizaccedilatildeo da teologiardquo nos nossos momentos nas nossas academias nos nossos grupos socialmente constituiacutedos

Numa reflexatildeo intitulada por ldquoDiaacutelogo ndash Incomunicacioacutenrdquo Eduardo I Bodipo Malumba se apresenta com o seguinte discurso para uma plateacuteia acerca da teologia negra (ou africana) neste mesmo evento que ldquogestourdquo depois o livro supracitado Traduzindo o texto que se encontra no espanhol eis a fala de Bodipo

Estaacute comprovado que a diferenccedila baacutesica que existe entre nossos

padrotildees de pensamento eacute que vocecircs ndash e quando digo vocecircs refiro-me

ao auditoacuterio ocidental que se encontra aqui ndash seguem um caminho

estritamente determinista enquanto que nossa interpretaccedilatildeo da

uma abordagem hermenecircutica e teoloacutegica nesta mesma direccedilatildeo Nos perguntamos onde estariam as dificuldades para a ldquoTeologiardquo ou para os teoacutelogos refletirem a partir de um referencial que fosse discutido redefinido e constantemente reelaborado tambeacutem como quebra de paradigmas e reestruturaccedilatildeo de pensamentos Afinal errar querendo acertar nem sempre foi pecado ndash Ateacute mesmo para a teologia O que se diraacute entatildeo tentando acertar consigamos tambeacutem acertar o nosso caminho comeccedilando por isso

374 Enquanto constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo teoacuterico-praacutetica das disciplinas ensinadas natildeo somente para os (as) afrodescendentes como para todos(as) aqueles(as) que buscam e interessam-se pela temaacutetica Tendo presente a Lei Federal 106392003 que ateacute hoje nunca fora colocada em praacutetica nas academias puacuteblicas e particulares da Naccedilatildeo Brasileira devido a controversa discussatildeo ou falta de vontade poliacutetica dos governantes Coordenadores Pedagoacutegicos Diretores de Faculdades ndash para mudanccedila e implementaccedilatildeo das medidas determinadas por leis que natildeo se cumprem 375 FREIRE Paulo Teologia negra y teologiacutea de la liberacioacuten Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo argentina da obra de James H Cone ldquoA black theology of liberationrdquo Traduccedilatildeo de Manuel Mercador Buenos Aires Editorial Carlos Lolhe 1973 180 p Tambeacutem reproduzido Cuadernos Latinoamericanos Buenos Aires 129-11 1974 Fichas Latioamericanas Buenos Aires Tierra Nueva 1(4)55-6 dezembro de 1974 Prefaacutecio agraveediccedilatildeo argentina de A black theology of liberation In Paulo Freire Accedilatildeo cultural para a liberdade p 128-30 Este texto originou-se de um simpoacutesio realizado em Genebra e intitulado A Symposium on Black Theology and the Latin American Theology of Liberation promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas e com a colaboraccedilatildeo de Hugo Assman EI Bodipo-Malumba e James H Cone (Fonte wwwfreiredeservicebooksofpauhtml)

teologia e do papel que o homem desempenha na histoacuteria se encontra

enraizada em uma dialeacutetica que eacute puramente negra e sinceramente

africana Atualmente parece que o oeste pretende defender a liberdade

para si e tambeacutem para noacutes Considera-se protagonista da causa da

liberdade e interlocutor do resto do mundo O ocidente acredita que

herdou uma metafiacutesica do ser que natildeo pode construir coerentemente a

liberdade Esta eacute a diferenccedila baacutesica que existe entre noacutes Somente

fazendo um esforccedilo para a convergecircncia poderiacuteamos chegar a

entendermo-nos mutuamente Mas de momento somos dois mundos

separados376

Nota-se que Eduardo Bodipo abriu caminhos natildeo somente para se pensar um outro tipo de hermenecircutica teologia ou o que quer que venhamos perguntar como tambeacutem procura questionar uma outra ldquometafiacutesicardquo que natildeo seja determinista e ocidental mas africana negra E neste movimento poderiacuteamos nos perguntar se essa corrente tambeacutem natildeo nos levaria a uma outra ldquoloacutegicardquo que natildeo agrave que estamos habituados a ldquoverrdquo em nossos programas e ldquoconteuacutedos disciplinaresrdquo

Uma razatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidade

Em uma obra de construccedilatildeo mais recente Guumlnter Padilha resgata uma constataccedilatildeo de que ldquoa Teologia da Libertaccedilatildeo e a Teologia Negra e suas hermenecircuticas impulsionaram o surgimento de uma Teologia Afro-Americanardquo377 Assim jaacute podemos afirmar que a ldquosementerdquo jaacute cresceu e daacute seus frutos principalmente atraveacutes deste discurso que estamos analisando ndash o da Teologia Afro-brasileira

Embora aqui pareccedila jaacute estar bem clara e respondida a questatildeo queremos continuar nesta atitude provocadora de perguntarmos sobre e pela existecircncia ou natildeo da hermenecircutica e da teologia afro (americana brasileira etc) e se existente eacute tambeacutem pertinente

Agraves vezes nossas perguntas podem direcionar para caminhos inesperados principalmente quando refletidos sobre temaacuteticas como esta Vejamos por quecirc No mesmo livro que pergunta sobre a existecircncia da teologia negra o teoacutelogo ldquoMarcos Rodrigues da Silvardquo escreveu o seguinte ldquoEntendemos que hoje natildeo eacute mais novidade falar da existecircncia de um pensamento teoloacutegico afro-americanordquo378 E mais a frente define melhor como se apresenta este tipo de pensamento na teologia

O pensamento teoloacutegico afro-americano embora tenha um

ponto de partida comum determinado pelo racismo pela opressatildeo

marginalizaccedilatildeo e exclusatildeo da comunidade negra no continente estaacute

atento tambeacutem agraves particularidades geograacuteficas e agraves praacuteticas do

cotidiano A comunidade negra vive realidades que fazem dela um

376 MALUMBA Eduardo B In FREIRE Paulo (orgs) Teologiacutea negra y teologiacutea de la liberacioacuten p 99 377 MENA LOacutePES Maricel Abrindo Sulcos para uma teologia afro-americana e caribenha Organizaccedilatildeo de Maricel Mena Loacutepez e Peter Theodore Nash ndash Satildeo Leopoldo RS Sinodal 2003 p 110 378 Ibid SILVA Antocircnio A Existe um pensar teoloacutegico negro p 9

todo Entretanto ela constitui tambeacutem uma realidade plural presente

em todos os espaccedilos do continente Estes fatores fazem com que o

pensamento teoloacutegico defina uma oacutetica proacutepria priorizando

acontecimentos379

Acrescentando que aleacutem de acontecimentos tambeacutem nos situamos dentro de contextos jaacute mencionados e que satildeo importantiacutessimos continuamente se rediscutir na linguagem e na teologia como cultura(s) identidade(s) poliacutetica(s) economia(s) pluralidade(s) eacutetica etc

Percebendo que para muitos essas palavras natildeo convencem e que por isso questionam elencamos algumas perguntas que necessariamente precisamos perguntar na elaboraccedilatildeo do nosso conhecimento ou da construccedilatildeo do nosso pensamento - de que teologia partimos

Seria possiacutevel de se refletir teologicamente conceitos de povo e de cultura africana ateacute mesmo sobre a feacute e a experiecircncia religiosa de africanos e afro-descendentes mas com as categorias latinas (natildeo da Ameacuterica Latina) mas ldquoocidentalrdquo e natildeo africana ou natildeo de ldquomatrizes africanasrdquo Mesmo sendo possiacutevel qual seria o melhor caminho A inculturaccedilatildeo

Reduzir experiecircncias de feacute manifestaccedilotildees religiosas como ldquosincreacuteticasrdquo ou tentar entender a ldquosiacutenteserdquo que uma comunidade religiosa afro-descendente faz mediante um contexto e condicionamentos parece-nos uma maacute tentativa de inculturaccedilatildeo Neste aspecto o essencial natildeo seria o emprego de um outro tipo de hermenecircutica ndash natildeo ldquotradicional ocidental e ortodoxordquo mas ldquotradicional africano e afro-brasileirordquo

Essencialmente importante eacute a valorizaccedilatildeo de aspectos cotidianos natildeo tatildeo elaborados como eacute o dado da ldquoTradiccedilatildeo Oralrdquo Os frutos das compreensotildees re-significadas a partir das ldquoDiaacutesporasrdquo de um povo transplantado de um continente a outro satildeo importantiacutessimos elementos para se ler teologicamente a realidade da vida O imaginaacuterio constituiacutedo de metaacuteforas de faacutebulas mitos e tantos elementos proacuteprios desse povo e das culturas que permeiam mundo simboacutelico imaginaacuterio e ldquorealrdquo380 eacute uma manifestaccedilatildeo de crenccedilas Pensamos existir nesta concepccedilatildeo a visatildeo de uma ldquorazatildeo integrada agrave imaginaccedilatildeo e agrave oralidaderdquo

Jaacute vimos que na Histoacuteria o ldquomundo orientalrdquo teve tanta importacircncia para fundamentar uma teologia da experiecircncia do ldquoinefaacutevelrdquo tanto quanto na explicitaccedilatildeo da mensagem E exatamente por isso a Teologia oriental eacute melhor entendida como ldquosabedoriardquo e mais voltada ao ldquomisteacuteriordquo do que sobre o pensamento sobre o misteacuterio

Pontuando quanto ao sentido da Aacutefrica e do simbolismo africano para a teologia afro-americana sentimos a necessidade de implicaccedilotildees voltadas para buscas por outras categorias nas culturas e nas religiotildees Africanas e Afro-brasileiras As vaacuterias manifestaccedilotildees e expressotildees de feacute ndash trazem consigo ldquoTradiccedilatildeo Oralrdquo ldquoRitualrdquo histoacuteria vivenciada e contada num ambiente enfim ldquomais Culturalrdquo do que propriamente acadecircmico Embora os ldquoambientes de produccedilatildeordquo e de pensamentos afros natildeo sejam ainda teoloacutegicos por essecircncia todas estas experiecircncias de crenccedilas satildeo ldquoteologizaacuteveisrdquo Assim como fazemos no estudo da filosofia quando filosofamos sobre ldquocoisasrdquo dizemos que tudo o que existe pode ser questionado e soacute natildeo questionamos o que natildeo existe Logo o pensar hermenecircutico-teoloacutegico negro existe O que natildeo existe eacute o que ainda natildeo se pensou sobre este pensamento ou porque natildeo se quer pensar ou porque natildeo se admite pensar diferente Mas o diferente existe

O desafio hoje estaria entre o que se faz com o pensamento hermenecircutico-teoloacutegico negro afro e seus fundamentos negar rejeitar condenar ou valorizar respeitar incluir

379 Ibid p 10 380 Natildeo deixando de considerar que tambeacutem o simboacutelico e o imaginaacuterio satildeo reais dentro de uma cultura africana Apenas mencionamos para designar ldquoos mundosrdquo como comumente ou ocidentalmente o separamos para entender melhor aquilo que geralmente numa visatildeo africana forma um mesmo ldquotodordquo da existecircncia real

construir e se afirmar Creio que a resposta para esta questatildeo depende de noacutes que hoje temos este desafio a nossa espreita Tudo isto eacute antes de tudo uma questatildeo de ldquoliberdaderdquo intelectual de vontade e de feacute Se a consciecircncia ainda natildeo se mostra a partir de uma construccedilatildeo tambeacutem teoacuterica podemos comeccedilar agora por auxiliar num desenvolvimento epistemoloacutegico atraveacutes de uma leitura hermenecircutica e de uma ou de tantas quantas forem possiacuteveis Teologia Afro-americana Afro-brasileira

E como afirma Eduardo I Bodipo-Malumba na ocasiatildeo da mesma conferecircncia antes mencionada na deacutecada de 70 ldquoA consciecircncia deve conduzir agrave atividade uma atividade que implica criatividade senatildeo como seremos conscientes do que somos Se somos conscientes do que somos neste contexto entatildeo vamos procurar a liberdade fazendo-ardquo381

REFERENCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

FREIRE Paulo CONE James H MALUMBA Eduardo I B ASSMAN Hugo (orgs) Teologia negra y teologiacutea de la liberacioacuten Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo argentina da obra de ldquoA black theology of liberationrdquo Traduccedilatildeo de Manuel Mercador Buenos Aires Editorial Carlos Lolhe 1973 GADAMER Hans-Georg Hermenecircutica em retrospectiva traduccedilatildeo Marco Antocircnio Casanova ndash Petroacutepolis RJ Vozes 2007 MENA LOacutePES Maricel Abrindo Sulcos para uma teologia afro-americana e caribenha Organizaccedilatildeo de Maricel Mena Loacutepez e Peter Theodore Nash ndash Satildeo Leopoldo RS Sinodal 2003 SILVA Antocircnio Aparecido (org) Existe um pensar teoloacutegico negro Satildeo Paulo Paulinas 1998 (Coleccedilotildees Atabaque)

381 MALUMBA Eduardo I Bodipo Teologiacutea negra y teologiacutea de la liberacioacuten p 102

Venha o Teu Reino Ilustraccedilotildees indagaccedilotildees e ponderaccedilotildees sobre interculturalidade e religiatildeo a partir das HQrsquos

Iuri Andreacuteas Reblin

Consideraccedilotildees Preliminares

Em 1996 a DC Comics publicou

uma minisseacuterie de luxo em quatro ediccedilotildees

intitulada Kingdom Come Concebida e

ilustrada por Alex Ross e narrada por Mark

Waid a minisseacuterie apresentava uma visatildeo de

um futuro em que uma nova geraccedilatildeo de super-

heroacuteis defendia o mundo contra aqueles que

tentavam dominaacute-lo Essa nova geraccedilatildeo de

super-heroacuteis era desprovida dos antigos valores morais regentes da sociedade e de uma

responsabilidade calcada na proteccedilatildeo de inocentes e na defesa da vida As caracteriacutesticas

intriacutensecas do heroiacutesmo esmaeceram diante dos princiacutepios maniqueiacutestas beacutelicos da luta entre o

bem e o mal Em outras palavras o objetivo principal era combater o mal natildeo importando onde

essa batalha se desenvolvia nem as vidas que estariam sujeitas ao perigo que ela poderia

provocar naquele palco Esse panorama se insere numa narrativa que culmina num evento

catacliacutesmico decisivo e eacute testemunhado em detalhes por um pastor que perdera o sentido das

palavras que pronunciava em seus sermotildees Esse pastor eacute escolhido pelo Espectro ndash personagem

que cumpre parcialmente as funccedilotildees do anjo do Senhor intervindo na histoacuteria humana para

punir os culpados ndash para julgar o mal em seu momento derradeiro A histoacuteria ndash permeada por

citaccedilotildees biacuteblicas extraiacutedas do livro de Apocalipse ndash termina com o retorno dos antigos valores

por meio do autosacrifiacutecio do Capitatildeo Marvel a favor da vida humana

Imagem Divulgaccedilatildeo

Essa minisseacuterie de tiacutetulo alusivo diretamente a um trecho da oraccedilatildeo do Pai-Nosso recebeu em

portuguecircs o tiacutetulo O Reino do Amanhatilde e eacute apenas um dos exemplos possiacuteveis quando se discute

quadrinhos religiatildeo e cultura e as interconexotildees imaginaacuteveis Religiatildeo cultura e qualquer outro

elemento constituinte do mundo humano e de seu universo de significados podem ser

Este texto apresenta trechos de uma pesquisa do autor jaacute publicada no livro ldquoPara o Alto e Avante

uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteisrdquo Para ter acesso a ele entre em contato com o autor ou adquira atraveacutes da Livraria Cultura

Iuri Andreacuteas Reblin eacute bacharel mestre e doutorando em teologia pela Escola Superior de Teologia em Satildeo Leopoldo RS com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico (CNPq) Eacute autor de ldquoPara o Alto e Avante uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteisrdquo (Porto Alegre Asterisco 2008 128p) e de ldquoOutros cheiros Outros sabores o pensamento teoloacutegico de Rubem Alvesrdquo (Satildeo Leopoldo Oikos 2009 223p) Contato reblin_iaryahoocombr

encontrados nas histoacuterias em quadrinhos pois os quadrinhos satildeo a exemplo do cinema

representaccedilotildees da realidade humana Como tais os quadrinhos se nutrem da linguagem dos

siacutembolos e dos valores para compartilhar as histoacuterias que intentam contar382 Nesse sentido o

propoacutesito deste texto eacute apresentar a clamada nona arte em duas perspectivas complementares

Em primeiro lugar abordar como acontece o tracircnsito cultural do fenocircmeno dos quadrinhos em

particular o universo dos super-heroacuteis entre culturas distintas como por exemplo entre a

cultura estadunidense e a brasileira a japonesa e a indiana Em segundo lugar ilustrar como

acontece a representaccedilatildeo cultural e religiosa nos quadrinhos em especial no gecircnero da

superaventura

Interculturalidade

Os super-heroacuteis estadunidenses estavam dentro do pacote cultural que o Brasil

importou e tem importado dos Estados Unidos nas uacuteltimas cinco deacutecadas aproximadamente

Muitas pessoas cresceram lendo suas histoacuterias assistindo a seus filmes seriados e desenhos ndash

principalmente aqueles produzidos por Hanna-Barbera ndash consumindo uma infinidade de

produtos com suas marcas Aos poucos aquele siacutembolo ambiacuteguo de liberdade e de impeacuterio383

foi ganhando espaccedilo na imaginaccedilatildeo dos brasileiros e das brasileiras Afinal um super-heroacutei eacute

muito mais do que um personagem fantasiado uma mulher de maiocirc ou um homem com a cueca

sobre a calccedila Ele eacute constituiacutedo por uma amaacutelgama de valores ideais sonhos desejos que

refletem tudo aquilo que o ser humano moderno acredita espera e aspira No entanto o foco da

discussatildeo neste capiacutetulo natildeo eacute o conteuacutedo simboacutelico dos super-heroacuteis em si384 mas sim

perguntar como acontece o processo de assimilaccedilatildeo incorporaccedilatildeo transformaccedilatildeo de

determinados siacutembolos de uma cultura para outra

Nesse sentido o que a histoacuteria do comeacutercio da cultura industrializada tem afirmado

em relaccedilatildeo ao contexto brasileiro eacute que nos uacuteltimos anos o Brasil tem sido um mero receptor

desse tipo de cultura principalmente no que tange agrave importaccedilatildeo de filmes seacuteries quadrinhos e

certos estilos musicais Em relaccedilatildeo a tais produtos ou o Brasil natildeo tem o seu espaccedilo ou ele eacute

muito restrito Um fato claro eacute a recuperaccedilatildeo paulatina do cinema brasileiro apoacutes a sua quase

extinccedilatildeo ocorrida na deacutecada de 1980 Embora as produccedilotildees atuais tenham sido de boa qualidade

teacutecnica e artiacutestica ainda predomina um certo sentimento de rejeiccedilatildeo e aversatildeo aos filmes

382 Para mais informaccedilotildees a esse respeito consulte REBLIN Iuri Andreacuteas Para o Alto e Avante

uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteis Porto Alegre Asterisco 2008 128p 383 Refiro-me aqui ao caraacuteter ideoloacutegico e o caraacuteter inconsciente que faz parte da representaccedilatildeo dos

super-heroacuteis conforme Nildo Viana expocircs em sua publicaccedilatildeo (VIANA Nildo Heroacuteis e Super-heroacuteis no mundo dos quadrinhos Rio de Janeiro Achiameacute 2005 p 65-69)

384 Cf REBLIN 2008 cap 1 e tambeacutem VIANA 2005 p 37-74

nacionais por parte do puacuteblico brasileiro A preferecircncia continua sendo aos filmes

hollywoodianos especialmente os blockbusters os de grande bilheteria ndash essa preferecircncia se

manteacutem tambeacutem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees europeacuteias No caso especiacutefico dos quadrinhos de

super-heroacuteis o Brasil literalmente natildeo possui espaccedilo autocircnomo As revistas satildeo apenas

traduzidas do original O Brasil eacute um simples receptor do produto americano

Eacute necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo que o gecircnero da superaventura tem sua origem nos

Estados Unidos da Ameacuterica durante o periacuteodo de reestruturaccedilatildeo econocircmica e poliacutetica do paiacutes

implantado pelo governo de Franklin Roosevelt devido agrave quebra da bolsa de Nova Iorque

(1929) Durante os anos turbulentos da Grande Depressatildeo o desemprego e a miseacuteria foram

combatidos pelo plano New Deal que incluiacutea uma seacuterie de reformas econocircmicas e sociais a

ecircnfase na assistecircncia e em obras puacuteblicas e o controle mais riacutegido das empresas por parte do

Estado Ao mesmo tempo tratava-se do periacuteodo preacute-guerra em que o medo da possibilidade da

necessidade de uma incursatildeo na Europa preocupava muitos jovens Eacute nesse contexto que surge

o gecircnero da superaventura a partir do advento do Super-Homem (1938) Segundo Roberto

Guedes

o escapismo oferecido pelos baratos comic books ndash com seus semideuses de colantes

e suas proezas fantaacutesticas ndash aliado a uma terriacutevel recessatildeo econocircmica e agrave falta de

opccedilotildees de divertimento para a grande massa de crianccedilas e jovens foram sem duacutevida

alguma determinantes no sucesso de Super-Homem e demais personagens em

quadrinhos que viriam em sua esteira385

No entanto mesmo que o gecircnero da superaventura seja em si algo estrangeiro ndash assim

como o Reagge o Funk e o Jazz ndash isso natildeo significa que ele tenha que ser imune agraves leituras que

os seus receptores efetuam que os significados de seus siacutembolos natildeo sofram nenhuma

influecircncia do inteacuterprete desses A primeira impressatildeo que se tem no caso do contexto brasileiro

eacute que a importaccedilatildeo da cultura industrial e a aparente complexidade desta ndash como a narrativa e a

teacutecnica ndash abafam qualquer iniciativa nacional Assim geraccedilotildees de brasileiros e de brasileiras

crescem vendo He-Man Smurfs Looney Toons Timatildeo e Pumba X-Men Evolution Super

Shock A Liga da Justiccedila entre outros enquanto que desenhos nacionais natildeo estatildeo nem agrave deriva

porque simplesmente ndash praticamente ndash satildeo inexistentes quer seja devido ao custo quer seja

devido agrave teacutecnica

A cultura industrial estadunidense faz parte portanto da infacircncia e da juventude do

povo brasileiro o qual tambeacutem sente o processo da influecircncia da cultura japonesa ndash com

personagens como Jaspion Jiraya Pokemon Cavaleiros do Zodiacuteaco entre outros ndash produtos 385 GUEDES Roberto Quando Surgem os Super-heroacuteis Satildeo Paulo Oacutepera Graacutefica 2004 p 16

que vecircm conquistando cada vez espaccedilo no paiacutes Todos esses produtos fantaacutesticos e imaginaacuterios

satildeo importados sem restriccedilotildees Em si o problema natildeo eacute a existecircncia da cultura estrangeira no

paiacutes mas sim a dinacircmica que acontece entre o produto estrangeiro e o produto nacional No

caso dos ritmos musicais eacute claro que o Reagge o Funk sofreram um processo de adaptaccedilatildeo agrave

brasilidade falando dos problemas e sonhos brasileiros Em outras palavras alguns siacutembolos

desses gecircneros sofreram transformaccedilotildees Isso natildeo acontece no caso do gecircnero literaacuterio da

superaventura

Lamentavelmente as poucas tentativas brasileiras frente ao mercado de quadrinhos de

super-heroacuteis natildeo conseguem se destacar Eacute impossiacutevel competir com os quadrinhos

estadunidenses Natildeo haacute infra-estrutura suficiente de criaccedilatildeo e de distribuiccedilatildeo e o custo eacute muito

elevado Aleacutem disso existem poucos adeptos e pouco interesse por parte do puacuteblico Assim

como no cinema natildeo se cria uma arte brasileira capaz de ter a eficaacutecia de alcanccedilar pessoas fatildes

e de ser levada adiante Ou melhor natildeo se cultivou o haacutebito de observar e de defender o que eacute

proacuteprio da naccedilatildeo parece que ainda se espera pelo que os navios portugueses (atualmente

estadunidenses) possam trazer de diferente ao ancorarem proacuteximos agraves terras tupiniquins Assim

super-heroacuteis brasileiros acabam sendo dependentes existencialmente de seus criadores

Nesse sentido as criaccedilotildees brasileiras estatildeo por um lado agrave margem da globalizaccedilatildeo

Trata-se de algo pequeno frente ao impeacuterio estadunidense de algo novo lutando pela

preferecircncia do puacuteblico brasileiro Entrementes existem muitos artistas brasileiros como Mike

Deodato Joe Bennett Ivan Reis que trabalham para as grandes empresas de quadrinhos

estadunidenses devido agrave ausecircncia de campo de trabalho que possibilite a sobrevivecircncia do

artista no Brasil Por outro lado cada super-heroacutei brasileiro reflete alguns elementos dos super-

heroacuteis americanos A maioria dos super-heroacuteis brasileiros nem brasileiros satildeo e talvez aiacute estaacute

sua dificuldade em se estabilizar no mercado de quadrinhos a ausecircncia de siacutembolos nacionais

Eacute como ter agrave escolha um produto importado com um preccedilo acessiacutevel e um produto lsquoimportadorsquo

com um preccedilo inacessiacutevel caso se queira manter a qualidade graacutefica deste uacuteltimo Enfim toda a

constituiccedilatildeo reflete as influecircncias que a arte brasileira teve preacutedios nova-iorquinos fantasias

que remetem a super-heroacuteis famosos o que possibilita perceber a influecircncia que o criador teve

como fatilde do produto americano e agraves vezes tambeacutem do produto japonecircs386

Cometa Cabala Cracircnio e Arcanum

satildeo alguns dos super-heroacuteis brasileiros que tecircm

conseguido se manter no mercado como

produccedilatildeo independente O primeiro possui uma

386 Cf GUEDES Roberto A Saga dos Super-Heroacuteis Brasileiros Vinhedo Editoractiva Produccedilotildees

Artiacutesticas 2005 passim (especialmente p 104)

Imagem Divulgaccedilatildeo

publicaccedilatildeo proacutepria quadrimestral O gibi possui uma narrativa simples que lembra muito as

primeiras histoacuterias em quadrinhos desse gecircnero Ele resgata a jovialidade e a fantasia atraveacutes de

uma leitura agradaacutevel Mesmo que os personagens tenham nomes brasileiros os traccedilos lembram

o estilo DC (i eacute da DC Comics) e as histoacuterias do Super-Homem e da Mulher-Maravilha Jaacute os

trecircs super-heroacuteis seguintes possuem suas histoacuterias publicadas num gibi nordestino independente

chamado ldquoBrado Retumbanterdquo de publicaccedilatildeo semestral

Todavia um super-heroacutei brasileiro que chama a atenccedilatildeo para o propoacutesito deste

capiacutetulo eacute o Gralha o ldquoVigilante das Araucaacuteriasrdquo O Gralha jaacute teve alguns aacutelbuns publicados

com a reuniatildeo de vaacuterias tiras de jornal e pequenas histoacuterias jaacute foi tema de peccedila de teatro

estrelou dois filmes curta-metragem sendo que um terceiro estaacute a caminho O super-heroacutei foi

cunhado a partir do siacutembolo criado com o propoacutesito de identificar o Estado do Paranaacute a Gralha

Azul

Mesmo que a associaccedilatildeo da Gralha Azul com o Estado do Paranaacute tenha sido criada

propositalmente para distinguir esse dos outros Estados ele acabou se tornando um siacutembolo

regional Esse fator daacute mais forccedila ao personagem possibilita sua independecircncia do criador

original e pode despertar o interesse do puacuteblico nacional Na verdade o proacuteprio super-heroacutei eacute

uma releitura do extinto Capitatildeo Gralha um personagem da deacutecada de 40 do seacuteculo passado

Ele [O Gralha] surgiu em outubro de 1997 numa ediccedilatildeo especial (comemorando os

15 anos da Gibiteca de Curitiba) da extinta revista Metal Pesado Para realizaacute-la

foram convocados vaacuterios quadrinhistas locais dos quais um grupo decidiu fazer de

um projeto comum uma homenagem a um iacutecone desconhecido dos quadrinhos

curitibanos o Capitatildeo Gralha Publicado no iniacutecio dos anos quarenta pelo tambeacutem

desconhecido (e quase lendaacuterio ateacute) Francisco Iwerten Fugitivo de um planeta de

homens-paacutessaros regido pelo terriacutevel Thagos o usurpador o Capitatildeo Gralha

encontrou refuacutegio na Terra onde utilizava seus poderes alieniacutegenas no combate ao

crime no Paranaacute Misto de Flash Gordon com Super-Homem ele teve vida breve

Foram publicados apenas dois nuacutemeros de suas aventuras mergulhando esse trabalho

pioneiro no mesmo abismo que tantos outros precursores das HQs nacionais

Infelizmente ningueacutem sabe se existe ainda algum exemplar de suas revistas

Foi unacircnime que um homem alado com um G no peito e bigodinho natildeo seria muito

bem visto hoje em dia Optou-se entatildeo por criar uma versatildeo atualizada do datado

Capitatildeo Alessandro Dutra criou o visual Gian Danton e Joseacute Aguiar criaram a

histoacuteria Antonio Eder Luciano Lagares Tako X Edson Kohatsu Augusto Freitas

Dutra e Aguiar se encarregaram da arte e Nilson Miller fez a capa da ediccedilatildeo E assim

o Gralha fez sua estreacuteia Um ano depois o personagem ganhava sua paacutegina semanal

no caderno Fun da Gazeta do Povo agora como um adolescente que descende do

Capitatildeo Gralha original Um heroacutei iniciante em uma metroacutepole um pouco diferente da

Curitiba de hoje Talvez a uacutenica cidade do paiacutes onde um super-heroacutei se enquadraria

sem parecer (muito) deslocado Afinal ela mesma faz questatildeo de provincianamente

vender sua imagem como cidade de primeiro mundo E nada mais isso que um

vigilante de colante387

A ausecircncia de siacutembolos nacionais nos super-heroacuteis brasileiros jaacute foi tema de um artigo

de Andreacute Diniz388 o qual defende a fuga dos clichecircs das principais editoras estadunidenses a

DC Comics e a Marvel Comics Diniz questiona por um lado a necessidade da luta contra um

supervilatildeo com superpoderes da ambientaccedilatildeo em grandes metroacutepoles do uso do uniforme da

complexidade nas narrativas da narraccedilatildeo em off do formato de novela (a continuaccedilatildeo da

histoacuteria em diversos capiacutetulos) enfatizado por outro lado a importacircncia da fuga dos

estereoacutetipos brasileiros a necessidade de referecircncias histoacutericas e o enriquecimento do cenaacuterio i

eacute a brasilidade

No entanto natildeo se pode abdicar de todas as estruturas que fornecem ao gecircnero da

superaventura sua razatildeo de ser Certos elementos precisam ser preservados como a identidade

secreta e a existecircncia dos superpoderes aleacutem do senso de heroiacutesmo A soluccedilatildeo para os super-

heroacuteis brasileiros estaacute realmente na incorporaccedilatildeo de siacutembolos nacionais em seu conteuacutedo e em

sua narrativa e esteacutetica Afinal natildeo adianta nada desenhar o Corcovado e o Patildeo de Accediluacutecar ao

lado de preacutedios nova-iorquinos Haacute portanto a necessidade de uma dosagem adequada entre as

estruturas estadunidenses (i eacute do gecircnero da superaventura) e os siacutembolos nacionais para que os

leitores identifiquem o gecircnero da superaventura e ao mesmo tempo sua proacutepria brasilidade

Nesse aspecto o Gralha eacute um bom exemplo No entanto o Brasil natildeo eacute o uacutenico que importa e lecirc

histoacuterias de super-heroacuteis

No Japatildeo o Homem-Aranha teve seu destaque numa antiga seacuterie de TV produzida

pela Companhia Toei em 1978 Ao contraacuterio do super-heroacutei estadunidense ndash que se manteacutem

iacutentegro ao ser traduzido para a maioria dos outros paiacuteses ndash a versatildeo japonesa soacute lembra o traje

do super-heroacutei original O protagonista eacute um japonecircs que recebe um bracelete poderoso de um

alieniacutegena proveniente do planeta aranha e que estaacute agrave beira da morte Esse bracelete concede ao

portador os poderes de uma aranha aleacutem de conter o traje ateacute que ele venha a ser utilizado

387 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwogralhacombrGralha20HQorigemhtmlgt Acesso em 08 abr

2006 388 Cf DINIZ Andreacute Como fazer um super-heroacutei brasileiro Universo HQ dia 09 abr 2004 Disponiacutevel

na Internet lthttpwwwuniversohqcomquadrinhos2004diniz06cfmgt Acesso em 08 abr 2006

Seus inimigos satildeo monstros que depois de mortos se tornam gigantes Entatildeo o Homem-

Aranha aciona um robocirc gigante do espaccedilo e utiliza-o para vencer as batalhas389

O Homem-Aranha japonecircs possui uma

narrativa e uma estrutura idecircnticas aos seriados

japoneses se comparados agraves seacuteries de National Kid

Spectroman Jaspion Changeman entre outros

Esses expressam tendencialmente o contraste e o

conflito entre o moderno e o antigo que a sociedade

japonesa vive com as tradiccedilotildees de um lado (no caso

os seres mitoloacutegicos monstros) e os avanccedilos

tecnoloacutegicos de outro (no caso os robocircs) Assim o

Homem-Aranha japonecircs se tornou uma espeacutecie de

super-heroacutei ninja bem distinto do original Em outras palavras o seriado reflete a cultura a

geografia e a identidade japonesas

Um outro exemplo rico artisticamente eacute o Homem-Aranha indiano Ao contraacuterio da

lsquoversatildeorsquo japonesa que apenas licenciou o nome e produziu um enredo totalmente comum aos

padrotildees japoneses sem as motivaccedilotildees e os conflitos caracteriacutesticos do personagem o Homem-

Aranha indiano eacute realmente inspirado na histoacuteria original criada por Stan Lee e Steve Dikto em

1962 e soacute foi possiacutevel mediante um acordo entre a Marvel (empresa estadunidense) e a Gotham

(empresa indiana) Inspirado na histoacuteria original o Homem-Aranha indiano eacute na verdade uma

transcriaccedilatildeo do super-heroacutei estadunidense Explicitamente o uacutenico elemento em comum eacute o

traje (na parte superior) No entanto ao ler a histoacuteria eacute possiacutevel perceber nela suas motivaccedilotildees

seus princiacutepios ndash sobretudo o jargatildeo ldquocom grandes poderes vecircm grandes responsabilidadesrdquo ndash a

morte do tio a ldquogarota da porta ao ladordquo a semelhanccedila foneacutetica entre os nomes das personagens

(Peter Parker = Pavitr Prabhakar Mary Jane =

Meera Jain) entre outros exemplos A

diferenccedila entre a versatildeo ocidental e a oriental

estaacute na inserccedilatildeo de elementos indianos na

histoacuteria criada no Oriente390

O Homem-Aranha eacute um adolescente

da Iacutendia que adquire seus poderes atraveacutes da

389 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwinternationalherocouksspideyjapanhtmgt Acesso em 10 abr

2006 390 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwinternationalherocouksspideyindiahtmgt Acesso em 10 abr

2006 Imagem Divulgaccedilatildeo

magia combate criminosos indianos balanccedila-se pelos preacutedios baixos de Mumbai Sua vida estaacute

ligada ao carma e presa ao destino Assim tambeacutem o super-heroacutei indiano eacute expressatildeo da cultura

da geografia da religiosidade da histoacuteria e da identidade indianas Em relaccedilatildeo agrave versatildeo

japonesa a diferenccedila reside na fusatildeo entre os elementos indianos e os elementos estadunidenses

que constituem o personagem oriental Haacute um interesse pelo produto mas tambeacutem haacute um

interesse em preservar o que eacute proacuteprio os siacutembolos as tradiccedilotildees enfim os aspectos culturais

que formam a identidade do povo indiano conforme afirma Sharad Devarajan o responsaacutevel

pela adaptaccedilatildeo do Homem-Aranha na Iacutendia

Uma coisa eacute traduzir os quadrinhos existentes nos Estados Unidos mas este projeto eacute

verdadeiramente o que noacutes chamamos de uma ldquotranscriaccedilatildeordquo onde noacutes realmente

reinventamos a origem de uma propriedade como o Homem-Aranha de modo que ele

seja um menino indiano que cresce em Mumbai (anteriormente Bombaim) e que trata

dos problemas e dos desafios locais Eu sempre acreditei que um super-heroacutei se

relaciona a uma ldquopsique universalrdquo jaacute estabelecida firmemente na Iacutendia atraveacutes de

seacuteculos de histoacuterias mitoloacutegicas que descreviam deuses e heroacuteis com habilidades

sobrenaturais

Embora noacutes permaneccedilamos fieacuteis aos mitos elementares do Homem-Aranha que estatildeo

compendiados na frase ldquoCom grande poder vem grande responsabilidaderdquo o

personagem seraacute reinventado assim seus poderes problemas traje seratildeo mais

integrados com a cultura indiana Ao contraacuterio da origem dos Estados Unidos que eacute

enraizada profundamente na ciecircncia a versatildeo indiana eacute mais enraizada na maacutegica e na

mitologia391

Religiatildeo

Longe de se realizar uma leitura exaustiva sobre o fenocircmeno religioso nas histoacuterias em

quadrinhos (para isso um outro espaccedilo seraacute reservado) importa destacar alguns paracircmetros e

suspeitas de como tal transposiccedilatildeo ou infusatildeo acontece a fim de que o leitor interessado possa

desbravar seus proacuteprios mares A religiatildeo pode estar presente nos quadrinhos e especialmente

na narrativa do gecircnero da superaventura por inuacutemeros vieses Um deles certamente estaacute na

histoacuteria que se intenta contar ie quando os autores incluem intencionalmente elementos de

391 DEVARAJAN apud ADESNIK David Marvel Comics and Manifest Destiny Weekly Standard dia

28jan2005 sect 8 e 9 Disponiacutevel na Internet httpwwwweeklystandardcomContentPublicArticles000000005181egxmvasppg=1 Acesso em 08 abr 2006 Traduccedilatildeo Proacutepria

tradiccedilotildees religiosas citaccedilotildees de textos sagrados etc e a maneira como eles aparecem no texto a

forma como participam da trama central Um outro vieacutes estaacute no enredo que constitui o

personagem em si como por exemplo a origem do Superman do Capitatildeo Marvel da DC da

Mulher Maravilha entre outros Um terceiro e mais importante que os anteriores satildeo os

elementos mitoloacutegicos e religiosos presente nas narrativas sobretudo aqueles ligados ao sentido

do heroiacutesmo como o sacrifiacutecio o altruiacutesmo os valores ie quando estes revelam as anguacutestias

as esperanccedilas os medos a busca por um sentido a formulaccedilatildeo de questotildees existenciais agrave vida

humana e quando o leitor estabelece uma relaccedilatildeo com esses elementos quando haacute na relaccedilatildeo

entre o emissaacuterio e o destinataacuterio um intercacircmbio e um envolvimento emocionalexistencial

com a narrativa Essa seria a ldquoverdadeirardquo narrativa religiosa

A partir desses vieses eacute possiacutevel perceber que haacute inuacutemeras possibilidades de se

perceber e de se vislumbrar o fenocircmeno religioso nas histoacuterias em quadrinhos Como jaacute foi

afirmado no iniacutecio do texto As histoacuterias em quadrinhos assim como o cinema satildeo janelas da

realidade e como tais natildeo apenas trazem os elementos pertencentes agrave vida humana mas a forma

com que o ser humano se relaciona com eles e a eles atribui um significado um sentido As

histoacuterias em quadrinhos satildeo espaccedilos riquiacutessimos para se estudar e se compreender a vida

humana e a sociedade que laacute estatildeo representadas Em muitas circunstacircncias tratar-se-atildeo dos

valores axioloacutegicos da classe dominante como apontou Nildo Viana392 No entanto ao mesmo

tempo em que a classe burguesa pode se ver nitidamente exposta os valores reprimidos e a

busca por liberdade podem igualmente se manifestar393 Enfim as histoacuterias em quadrinhos satildeo

janelas da realidade e como tais podem ser um espaccedilo para o ser humano sair de si mesmo e

com os oacuteculos adequados conhecer um pouco mais de si mesmo

Consideraccedilotildees Finais

A cultura eacute uma teia de siacutembolos que o ser humano tece e agrave qual ele estaacute

simultaneamente subordinado Ela eacute a condiccedilatildeo essencial para a existecircncia humana394 Trata-se

de um mecanismo de controle comportamental que supre as necessidades governamentais do ser

humano uma vez que ele natildeo nasce com as aptidotildees suficientes ndash as informaccedilotildees bioloacutegicas

necessaacuterias ndash para sua sobrevivecircncia395 Ela eacute o lsquoprogramarsquo que define o lsquoo quersquo o lsquocomorsquo o

lsquoporquersquo e o lsquopara quersquo o ser humano deve ou natildeo fazer determinadas coisas ter certos haacutebitos

392 VIANA 2005 393 VIANA 2005 394 Cf GEERTZ Clifford A Interpretaccedilatildeo das Culturas Rio de Janeiro Zahar Editores 1978 p 15ss 395 Cf GEERTZ 1978 p 57ss

acreditar em certos deuses preservar certos valores Sendo assim todo ldquoo comportamento

humano eacute visto como accedilatildeo simboacutelicardquo396

Desse modo o ser humano nasce cresce e morre inserido e dependente de um

universo simboacutelico Assim a cultura eacute pois o contexto dentro do qual os acontecimentos

sociais os comportamentos as instituiccedilotildees podem ser descritas de forma inteligiacutevel397 Como

contexto a cultura assume caracteriacutesticas peculiares de locais povos e eacutepocas especiacuteficas No

entanto mesmo que determinados siacutembolos atravessem uma geraccedilatildeo inteira eles acabam se

transformando sucumbindo e (re-)surgindo dentro da dinamicidade das accedilotildees simboacutelicas e do

desenvolvimento humano no passar do tempo398 A cultura eacute dinacircmica mutaacutevel puacuteblica

(porque os significados o satildeo399) e sempre carrega o especiacutefico de um povo e dentro dessa

especificidade algo que pode conduzir a uma definiccedilatildeo geneacuterica400 Isso significa que natildeo

existem pessoas que natildeo satildeo transformadas pelos costumes de lugares particulares401

As escolhas assumidas por um determinado povo diante da ldquoamplitude e a

indeterminaccedilatildeo de suas capacidades inerentesrdquo constituem sua identidade social Com a

globalizaccedilatildeo e suas estruturas funcionais ndash beneacuteficas e maleacuteficas ndash culturas se aproximam e a

tensatildeo entre identidade e alteridade torna-se uma constante Por um lado haacute o reforccedilo da

identidade diante da alteridade mas por outro haacute tambeacutem o diaacutelogo e ateacute a identificaccedilatildeo com a

alteridade Em outras palavras a globalizaccedilatildeo intensifica o traacutefico de siacutembolos Nesse transito

livre regulamentado por quem estaacute no poder poliacutetico-econocircmico mundial haacute (1) casos de

sobreposiccedilatildeo de siacutembolos estrangeiros sobre siacutembolos nacionais (2) a incorporaccedilatildeo de siacutembolos

estrangeiros (3) a adaptaccedilatildeo e a transformaccedilatildeo e ateacute mesmo a rejeiccedilatildeo (em qualquer escala) de

siacutembolos estrangeiros em defesa da preservaccedilatildeo de siacutembolos nacionais Dificilmente esses casos

acontecem isolados devido agrave infinidade de amarras que a rede simboacutelica de um povo possui De

qualquer forma haacute de se considerar que a globalizaccedilatildeo sempre atua com persuasatildeo

Eacute nessa dinacircmica entre as diversas culturas que surge a pergunta sobre a incorporaccedilatildeo

a adaptaccedilatildeo ou mesmo a rejeiccedilatildeo da linguagem simboacutelica do gecircnero narrativo da superaventura

A pergunta sobre o impacto que esse gecircnero ndash expressatildeo de liberdade e impeacuterio ndash tem sobre as

culturas eacute latente Este jaacute ultrapassou as fronteiras de seu lugar original a literatura alcanccedilando

o cinema e a televisatildeo Filmes de super-heroacuteis estatildeo lsquona modarsquo e atingem um puacuteblico cada vez

396 GEERTZ 1978 p 20 397 Cf GEERTZ 1978 p 24 398 Cf GEERTZ 1978 p 57s 399 Cf GEERTZ 1978 p 22 400 Cf GEERTZ 1978 p 55 ldquo[] pode ser que nas particularidades culturais dos povos ndash nas suas

esquisitices ndash seja encontradas algumas das revelaccedilotildees mais instrutivas sobre o que eacute ser genericamente humanordquo

401 Cf GEERTZ 1978 p 47

mais expressivo Isso comprova que os Estados Unidos possuem de fato uma rede de siacutembolos

de entretenimento fantaacutestica e que seu poder exercido sobre outros paiacuteses deve-se tambeacutem a

uma estrateacutegia semelhante agravequela utilizada pelo Impeacuterio Grego no passado o domiacutenio cultural

Por isso cabe perguntar em que medida esse domiacutenio eacute exercido pelos Estados Unidos sobre o

Brasil Ateacute que ponto essa rede de siacutembolos natildeo abafa a rede brasileira Ateacute que ponto essa

cultura se torna padratildeo Por que no Brasil natildeo haacute a atitude de colocar a identidade brasileira nos

super-heroacuteis Por que esse gecircnero tem que ser 100 estadunidense no Brasil

Haacute casos significativos como o Gralha no Brasil mas principalmente como o

Homem-Aranha indiano que natildeo soacute aceitou ou importou siacutembolos mas recriou e inventou

outros siacutembolos Trata-se de uma cultura que resistiu ao padronismo nesse tipo de arte A

argumentaccedilatildeo eacute que a Iacutendia possui uma cultura milenar mas natildeo eacute possiacutevel concordar com essa

afirmaccedilatildeo A muacutesica popular brasileira por exemplo consiste nessa resistecircncia a certos

lsquoamericanismosrsquo como a muacutesica ldquoBrasil Pandeirordquo e ateacute mesmo a Muacutesica Popular Brasileira

em geral Tambeacutem a Tropicaacutelia diante da Ditadura eacute expressatildeo de resistecircncia De qualquer

forma questotildees remanescentes satildeo Por que outros tipos de arte como os quadrinhos natildeo

manifestam essa resistecircncia Afinal os super-heroacuteis estadunidenses como siacutembolos

representantes de uma cultura especiacutefica possuem o mesmo significado no Brasil Tanto o

siacutembolo quanto seu significado permanecem inalterados no processo de importaccedilatildeo Eacute

procurando por essa resposta que se encontraraacute liberdade cultural e espaccedilo pleno para a

expressatildeo identitaacuteria

Referecircncias

DAMATTA Roberto O que faz o brasil Brasil 12 ed Rio de Janeiro Rocco 2001

DEVARAJAN apud ADESNIK D Marvel Comics and Manifest Destiny Weekly Standard 28012005 sect 8 e 9 In httpwwwweeklystandardcomContentPublicArticles000000005181egxmvasppg=1 Acesso 0842006

DINIZ Andreacute Como fazer um super-heroacutei brasileiro Universo HQ dia 09 abr 2004 Disponiacutevel na Internet lthttpwwwuniversohqcomquadrinhos2004diniz06cfmgt Acesso em 08 abr 2006

GEERTZ Clifford A Interpretaccedilatildeo das Culturas Rio de Janeiro Zahar Editores 1978

GUEDES Roberto A Saga dos Super-Heroacuteis Brasileiros Vinhedo Editoractiva Produccedilotildees Artiacutesticas 2005

______ Quando Surgem os Super-heroacuteis Satildeo Paulo Oacutepera Graacutefica 2004

REBLIN Iuri A Para o Alto e Avante uma anaacutelise do universo criativo dos super-heroacuteis Porto Alegre Asterisco 2008

VIANA Nildo Heroacuteis e Super-heroacuteis no mundo dos quadrinhos Rio de Janeiro Achiameacute 2005

Interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica Uma abordagem latino-americana a partir do Manifesto por uma Educaccedilatildeo Teoloacutegica de Qualidade

Roberto E Zwetsch402

Introduccedilatildeo

A Ameacuterica Latina e o Caribe apresentam uma diversidade cultural ampla e pouco

considerada no acircmbito da educaccedilatildeo teoloacutegica Normalmente os cursos de teologia oferecidos

em seminaacuterios e faculdades de teologia tanto no acircmbito catoacutelico romano quanto protestante

seguem ainda hoje a heranccedila trazida dos paiacuteses do hemisfeacuterio norte e sua teologia

Esta situaccedilatildeo herdada do passado colonial tambeacutem se manifesta em outras aacutereas do

conhecimento mas sua influecircncia na educaccedilatildeo teoloacutegica teve repercussotildees muito grandes na

praacutetica pastoral das igrejas e por isto merece atenccedilatildeo por parte de quem trabalha com educaccedilatildeo

teoloacutegica seja na esfera acadecircmica seja na formaccedilatildeo das lideranccedilas comunitaacuterias que datildeo vida

ao testemunho evangeacutelico nas sociedades onde as igrejas e comunidades estatildeo inseridas

Reneacute Padilla teoacutelogo equatoriano afirmou que um dos maiores problemas da missatildeo

das igrejas no contexto latino-americano foi o fato de se valer em sua praacutetica missionaacuteria de

teologias descontextualizadas Reportando-se a uma conferecircncia internacional sobre a

comunicaccedilatildeo do evangelho na Ameacuterica Latina conta que algueacutem observou que sem teologia a

evangelizaccedilatildeo se torna proselitismo e a feacute ideologia Imediatamente um evangelista de renome

contestou esta afirmaccedilatildeo defendendo a evangelizaccedilatildeo contra a teologia Disse ele ldquoQue sentido

tem investir tempo e energia na teologia quando a demanda agora eacute pregar o evangelhordquo Ora

escreveu Padilla este fato exemplar soacute revela o que a histoacuteria da igreja cristatilde na Ameacuterica Latina

legou ao povo de Deus ldquoa igreja na Ameacuterica Latina eacute uma igreja sem teologiardquo403

Pode-se argumentar entretanto que houve sim teologia mas teologia colonial

importada imposta a uma realidade que se rebelava contra as afirmaccedilotildees doutrinaacuterias e que

com as exceccedilotildees de regra natildeo soube encarnar o evangelho biacuteblico na nova realidade de povos e

culturas estranhas agraves matrizes culturais e de pensamento norte-atlacircnticas

A partir dos anos de 1950 esta situaccedilatildeo da educaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina

comeccedila a mudar tanto por razotildees internas agraves igrejas quanto devido agraves novas conjunturas

poliacuteticas econocircmicas e culturais que passam a questionar o status quo na regiatildeo Os

movimentos de libertaccedilatildeo as novas teorias sociais a busca por uma nova inserccedilatildeo no contexto

internacional por parte das naccedilotildees latino-americanas estes e outros fatores fizeram com que

402 Doutor em Teologia professor de Teologia Praacutetica e Missiologia da Escola Superior de Teologia ndash Faculdades EST em Satildeo Leopoldo RS Secretaacuterio Executivo de CETELA ndash Comunidade de Educaccedilatildeo Teoloacutegica Ecumecircnica Latino-Americana e Caribenha Escreveu vaacuterios livros e artigos destacando-se sua tese de doutorado Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 403 PADILLA C Reneacute Missatildeo integral Ensaios sobre o reino e a igreja Trad EmilA Sobottka Satildeo Paulo FTL-B Temaacutetica 1992 p 104

surgisse na Ameacuterica Latina um ambiente favoraacutevel a repensar a educaccedilatildeo como um todo A

pedagogia de Paulo Freire e outras pedagogias de transformaccedilatildeo surgem no iniacutecio dos anos de

1960 como um elemento desse movimento de renovaccedilatildeo e mudanccedila

Ora este novo momento histoacuterico acaba por influenciar a teologia e a educaccedilatildeo

teoloacutegica No campo protestante o teoacutelogo presbiteriano Richard Shaull que lecionou no

Seminaacuterio de Campinas nos anos de 1950 arrisca uma teologia da revoluccedilatildeo acompanhando um

conjunto de intelectuais cristatildeos que assumiram as lutas por reformas de base como desafio para

a praacutetica da feacute evangeacutelica404 Natildeo por acaso em 1962 a Confederaccedilatildeo Evangeacutelica do Brasil

organiza a famosa Conferecircncia do Nordeste com o tema ldquoCristo e o Processo Revolucionaacuterio

no Brasilrdquo sob a coordenaccedilatildeo do ativo Departamento de Accedilatildeo Social da CEB O socioacutelogo

Waldo Ceacutesar escreveu em 1968 junto com outros colegas sobre ldquoProtestantismo e

imperialismo na Ameacuterica Latinardquo com uma anaacutelise francamente criacutetica agrave dominaccedilatildeo cultural e

religiosa dos EUA no continente o que inclui o tipo de formaccedilatildeo teoloacutegica que se praticava nos

seminaacuterios protestantes405 Em 1969 Rubem Alves publica nos EUA sua tese de doutorado em

que investiga a teologia como linguagem criacutetica e potencialmente subversiva do status quo Seu

livro deveria chamar-se Teologia da Libertaccedilatildeo mas acabou publicado por insistecircncia do

editor com o nome de Teologia da esperanccedila humana numa referecircncia criacutetica agrave obra do

teoacutelogo alematildeo Juumlrgen Moltmann que publicara em 1964 sua Teologia da esperanccedila406

Pode-se afirmar com seguranccedila que eacute a partir dessa eacutepoca que surgem na Ameacuterica

Latina os primeiros textos para a elaboraccedilatildeo de um pensamento teoloacutegico autoacutectone seja o que

se queira dizer com esta palavra Pela primeira vez na histoacuteria do cristianismo latino-americano

um corpo de teoacutelogos e logo mais tambeacutem teoacutelogas passou a interrogar-se de maneira nova

procurando inserir-se com sua reflexatildeo no movimento social que brotava das situaccedilotildees de

injusticcedila social e miseacuteria e que exigiam mudanccedilas substantivas nas estruturas coloniais e

neocoloniais responsaacuteveis por manter as sociedades divididas entre uma elite rica bem situada e

uma multidatildeo de pobres sem perspectivas de futuro Estas reflexotildees ganharam cada vez mais

consistecircncia sistemaacutetica e profundidade na investigaccedilatildeo A teologia da libertaccedilatildeo eacute o resultado

de um movimento teoloacutegico inovador criacutetico e comprometido com a mudanccedila social Nas

deacutecadas seguintes surgem em todo o Brasil e tambeacutem em diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina

cursos de poacutes-graduaccedilatildeo com o intuito de formar uma nova geraccedilatildeo de teoacutelogas e teoacutelogos

404 SHAULL Richard De dentro do furacatildeo Richard Shaull e os primoacuterdios da teologia da libertaccedilatildeo Satildeo Paulo Sagarana CEDI CLAI Programa Ecumecircnico de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Ciecircncias da Religiatildeo 1985 405 CESAR Waldo et alii Protestantismo e imperialismo na Ameacuterica Latina Petroacutepolis Vozes 1968 406 ALVES Rubem Religioacuten iquestopio o instrumento de liberacioacuten Trad Rosario Lorente Montevideo Tierra Nueva 1970 Chamo a atenccedilatildeo para estas datas pois elas confirmam que a teologia da libertaccedilatildeo que logo depois ganha sua expressatildeo claacutessica na obra do teoacutelogo catoacutelico peruano Gustavo Gutieacuterrez Teologiacutea de la liberacioacuten Perspectivas Lima CEP 1971 eacute na verdade uma reflexatildeo que nasce como resultado de um esforccedilo ecumecircnico de setores das igrejas mais abertas aos clamores dos pobres e que buscou dar respostas aos desafios que a vida de milhotildees de pessoas colocavam para as igrejas e suas praacuteticas pastorais ainda que natildeo tenha sido programada como tal Cf ainda REBLIN Iuri Andreas Outros cheiros outros sabores O pensamento teoloacutegico de Rubem Alves Satildeo Leopoldo EST Oikos 2009

Estes intelectuais cristatildeos desde entatildeo natildeo mais pararam de produzir inovar e provocar o

pensamento teoloacutegico a partir de suas novas intuiccedilotildees Tanto que nomes como os de Leonardo

Boff Gustavo Gutieacuterrez Jon Sobrino Ivone Gebara Elsa Tamez Luis Carlos Susin Diego

Irarraacutezaval Ernesto Cardenal Rubem Alves Milton Schwantes Carlos Mesters Joseacute Comblin

Joatildeo Batista Libacircnio Julio de Santa Ana Hugo Assmann Franz Hinkelammert e tantos outros

se tornaram referecircncias internacionais no campo teoloacutegico Chama a atenccedilatildeo que maior parte

desses teoacutelogos e teoacutelogas estudaram na Europa ou EUA mas definitivamente sua perspectiva

de anaacutelise tornou-se latino-americana e criacutetica agrave teologia norte-atlacircntica Como consequumlecircncia

desde entatildeo teologia e sociedade natildeo mais se separaram ainda que nem sempre as orientaccedilotildees

sejam similares

No que se refere agrave educaccedilatildeo teoloacutegica eacute interessante lembrar aqui que nos anos de 1970

houve experiecircncias ineacuteditas no Brasil No Nordeste com o apoio do padre Joseacute Comblin vai

nascer a teologia da enxada uma experiecircncia de inserccedilatildeo de seminaristas em zonas rurais de

Pernambuco com o objetivo de estudar teologia a partir das perguntas e do drama do povo do

sertatildeo Nas cidades comeccedilam a se organizar as diferentes pastorais grupos organizados nas

igrejas para atuarem em contextos especiacuteficos como por exemplo a pastoral operaacuteria a

pastoral da terra a pastoral universitaacuteria a pastoral da mulher a pastoral da crianccedila e assim

por diante Esta inserccedilatildeo em diferentes contextos sociais exigiu o exerciacutecio de uma nova

reflexatildeo teoloacutegica pois a teologia que vinha pronta dos seminaacuterios natildeo mais respondia agraves

demandas daquelas pessoas Foi necessaacuterio e urgente repensar o legado teoloacutegico recebido o

que obrigou a uma volta agraves fontes se assim se pode dizer Um exemplo a releitura biacuteblica que

o Movimento Biacuteblico comeccedila a praticar desde os anos de 1960 na Ameacuterica Latina eacute algo que

motivou novas descobertas na interpretaccedilatildeo biacuteblica aproximando o texto da realidade e a

realidade da vida das pessoas daqueles velhos textos A leitura da Biacuteblia e a leitura da vida em

muacutetuo questionamento passaram a ser um dos elementos mais fortes dessa nova visatildeo teoloacutegica

que nascia junto com as luta por transformaccedilotildees sociais Isto repercutiu nos curriacuteculos das

escolas de teologia mesmo naquelas que primavam por uma posiccedilatildeo mais conservadora e

doutrinaacuteria O mesmo se pode afirmar de outras aacutereas do estudo teoloacutegico como a nova

perspectiva de histoacuteria da igreja que encontrou em CEHILA ndash Comissatildeo Ecumecircnica de Histoacuteria

da Igreja na Ameacuterica Latina ndash uma expressatildeo organizada de um conjunto de pesquisadores que

transformou completamente a visatildeo que se tinha da histoacuteria eclesiaacutestica em nossa regiatildeo

CEHILA eacute responsaacutevel por um sem nuacutemero de publicaccedilotildees que hoje ajudam a rever o passado

colonial com novas chaves de leitura o que evidentemente repercutiu numa nova atitude diante

dos desafios presentes e futuros que se colocam para as igrejas

Eacute nessa eacutepoca que muitos estudantes de teologia saiacuteram dos seminaacuterios e faculdades de

teologia para se inserirem nas periferias das cidades em pequenos grupos de vida comunitaacuteria O

intuito foi encarnar-se na realidade daqueles contextos deixando-se questionar pela vida e o

drama concreto das pessoas para entatildeo formular uma reflexatildeo teoloacutegica que estivesse embebida

destas novas percepccedilotildees da vida cotidiana Tratava-se de evidenciar a praacutexis da feacute como

elemento primordial para a reflexatildeo teoloacutegica407

Trinta anos depois ao final do seacuteculo 20 e iniacutecio do seacuteculo 21 podemos sentir que nos

encontramos num novo momento Se antes a teologia ficava restrita aos ambientes eclesiaacutesticos

e era ensinada como curso livre depois de longas demandas junto ao Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e

ao Congresso brasileiro a partir de 1999 a teologia finalmente foi aceita como curso de ensino

superior e situada no campo das ciecircncias humanas paradoxalmente Desde entatildeo existe em

todo o paiacutes um movimento que se instaurou entre os seminaacuterios e faculdades de teologia para a

busca de autorizaccedilatildeo e reconhecimento dos antigos cursos livres Este fato trouxe consigo

ganhos para a educaccedilatildeo teoloacutegica tanto em termos de qualidade dos cursos como de

qualificaccedilatildeo do corpo docente e dos proacuteprios egressos mas tambeacutem acarreta implicaccedilotildees quanto

ao que se entende por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade ou que responda a certos padrotildees

baacutesicos vaacutelidos para as pessoas para as instituiccedilotildees eclesiaacutesticas e para a proacutepria academia

O Conselho Nacional de Educaccedilatildeo estaacute debatendo a questatildeo e comeccedila a elaborar

criteacuterios que no futuro poderatildeo valer para a avaliaccedilatildeo das instituiccedilotildees que oferecem educaccedilatildeo

teoloacutegica no Brasil ainda que o debate receacutem tenha comeccedilado e natildeo sem provocar apoio e

contestaccedilatildeo408 Nesse contexto um documento recente pode tornar-se uma referecircncia criacutetica e

uma plataforma de discussatildeo para fazer avanccedilar o debate sobre que educaccedilatildeo teoloacutegica melhor

responde aos desafios que as pessoas as igrejas e as sociedades colocam atualmente para a

reflexatildeo a partir da feacute na Ameacuterica Latina Trata-se do Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica

de qualidade documento que surgiu na Boliacutevia a partir do trabalho de uma ONG que presta

consultoria a instituiccedilotildees teoloacutegicas latino-americanas ndash Servicios Pedagoacutegicos y Teoloacutegicos ndash e

que recebeu a primeira formulaccedilatildeo de parte do Dr Matthiacuteas Preiswerk teoacutelogo reformado suiacuteccedilo

que vive naquele paiacutes haacute mais de 30 anos e que atua tambeacutem como professor no ISEAT ndash

Instituto Superior Ecumeacutenico Andino de Teologiacutea O documento foi apresentado numa reuniatildeo

do Foacuterum de Associaccedilotildees Teoloacutegicas da Ameacuterica Latina depois reformulado e soacute entatildeo

divulgado amplamente por meios eletrocircnicos como um texto para debate Mais de cem teoacutelogas

e teoacutelogos de renome na Ameacuterica Latina jaacute assinaram este Manifesto409 de tal forma que ele se

407 Harding Meyer professor de teologia alematildeo da Faculdade de Teologia da Igreja Evangeacutelica de Confissatildeo Luterana numa palestra a estudantes universitaacuterios em 1961 (sic) afirmou que para se desenvolver uma teologia autoacutectone ldquoprecisa-se de reflexatildeo teoloacutegica que acontece em confronto incondicional com as situaccedilotildees concretas e especiacuteficas e problemas raciais sociais poliacuteticos culturais e religiosos e que por isso natildeo pode ser intermediada a partir de fora [] mas precisa ser trabalhada e formulada in locordquo Outro teoacutelogo alematildeo na mesma eacutepoca escreveu ldquoSomente quando a cultura brasileira for examinada responsavelmente a partir do evangelho a Igreja evangeacutelica estaraacute em casa na realidade espiritual e cultural brasileira ndash mesmo com distacircncia criacuteticardquo Apud SCHUENEMANN Rolf Do gueto agrave participaccedilatildeo O surgimento da consciecircncia soacutecio-poliacutetica na IECLB entre 1960 e 1975 Satildeo Leopoldo Sinodal IEPGEST 1992 p 59s 408 Cf Parecer do Conselho Nacional de EducaccedilatildeoCacircmara de Educaccedilatildeo Superior n 1182009 ZABATIERO Julio O estatuto acadecircmico da teologia agrave luz do Parecer 1182009 do CNE 9 p (texto ineacutedito) 409 Cf versatildeo eletrocircnica em diversas liacutenguas in wwwserviciosptorg Para contato com o Dr Matthiacuteas Preiswerk escrever para serviciosptgmailcom Em Anexo segue a iacutentegra do Manifesto conforme a traduccedilatildeo brasileira O

torna pouco a pouco um marco para as discussotildees atuais em torno da educaccedilatildeo teoloacutegica na

Ameacuterica Latina

No texto que segue pretendo apresentar brevemente o modelo claacutessico de curriacuteculo

teoloacutegico que vigorou por mais de cem anos no Brasil e na Ameacuterica Latina e a consequumlente luta

por contextualizar a teologia para que ela possa responder agrave diversidade cultural que caracteriza

as sociedades latino-americanas Faz parte desse processo mais recente a busca de muitas

instituiccedilotildees teoloacutegicas por autorizaccedilatildeo e reconhecimento oficial de seus cursos de teologia que

entatildeo se inserem nos sistemas nacionais de ensino superior tanto no Brasil como em diversos

paiacuteses da Ameacuterica Latina (por exemplo Argentina Boliacutevia Costa Rica Nicaraacutegua)410 Em

seguida apresento o Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade tecendo algumas

consideraccedilotildees sobre o mesmo destacando desafios cruciais que a educaccedilatildeo teoloacutegica precisa

assumir num contexto em franca transformaccedilatildeo e com uma diversidade cultural e religiosa que

natildeo pode ser ignorada por quem exerce a funccedilatildeo de pensar a feacute com os peacutes no chatildeo da vida e da

histoacuteria Seguem algumas reflexotildees finais para a continuidade do debate e pesquisa sobre este

tema

1 ndash Os modelos claacutessicos de curriacuteculo teoloacutegico e a luta pela contextualizaccedilatildeo da Teologia

na Ameacuterica Latina

Desde muito cedo na histoacuteria da igreja cristatilde a educaccedilatildeo do povo de Deus se tornou um

requisito para sua missatildeo de divulgar o evangelho de Jesus Cristo no mundo A proacutepria

existecircncia dos evangelhos e das cartas apostoacutelicas como texto escrito no primeiro seacuteculo atestam

esta decisatildeo por parte das primeiras comunidades cristatildes Mais tarde desenvolveu-se um campo

de estudos que tinha por objetivo o aprofundamento da feacute e dos conselhos para a vida cristatilde no

mundo Os escritos dos Padres da Igreja (Tertuliano Irineu Oriacutegenes Clemente Agostinho) e

mais tarde a teologia elaborada por Bernardo Tomaacutes de Aquino Mestre Eckart e tantos outros

eminentes teoacutelogos contribuiacuteram para que a igreja cristatilde constituiacutesse um corpo doutrinaacuterio e

teoloacutegico que atravessa os seacuteculos e continua a ser revisitado ainda hoje

Na Idade Meacutedia a teologia passou a ser a rainha das disciplinas da Universidade

europeacuteia Somente no alvorecer da Idade Moderna com o avanccedilo das ciecircncias fiacutesicas

matemaacuteticas e bioloacutegicas eacute que a teologia pouco a pouco vai perdendo a sua posiccedilatildeo

texto original foi publicado em espanhol por SPT em La Paz Boliacutevia Por sua importacircncia para o atual debate internacional em torno da educaccedilatildeo teoloacutegica o texto jaacute estaacute traduzido para o inglecircs e o francecircs Cf wwwserviciosptorg 410 Para um breve retrospecto da histoacuteria da educaccedilatildeo teoloacutegica no Brasil e o reconhecimento oficial da Teologia como curso de ensino superior no Brasil cf ZWETSCH Roberto E Nova situaccedilatildeo do ensino de teologia no Brasil a experiecircncia da Escola Superior de Teologia (EST) da Igreja Evangeacutelica de Confissatildeo Luterana no Brasil in OSOWSKI Ceciacutelia (Org) Teologia e Humanismo social cristatildeo Satildeo Leopoldo Unisinos 2000 p 273-286

dominante para se tornar um conhecimento entre outros Isto acontece com o avanccedilo do

processo de secularizaccedilatildeo da sociedade ocidental

Desde entatildeo a teologia passou a ser ensinada como um estudo acadecircmico que requeria

boa formaccedilatildeo linguumliacutestica filoloacutegica histoacuterica e retoacuterica No sentido claacutessico do estudo

teoloacutegico ele abarcava primeiramente dois grandes campos a Biacuteblia e a Histoacuteria Soacute mais tarde

foi se criando uma diferenciaccedilatildeo que por fim estabeleceu as seguintes trecircs aacutereas do ensino e do

estudo teoloacutegico Biacuteblia Histoacuteria e Teologia Teologia Aplicada ou Praacutetica

Cada uma dessas aacutereas tinha seus proacuteprios instrumentos de pesquisa por exemplo para os

estudos biacuteblicos a exegese e a homileacutetica se necessitava o conhecimento das liacutenguas antigas

hebraico grego e latim No caso da Histoacuteria e da Teologia se requeria o conhecimento da

histoacuteria da filosofia desde os gregos A Teologia Aplicada ou Praacutetica soacute veio a ganhar espaccedilo na

academia em meados do seacuteculo 19 principalmente pela insistecircncia de Friedrich Schleiermacher

para quem a teologia soacute faz sentido se ela serve agrave igreja e agrave praacutetica da feacute na comunidade411

Este esquema claacutessico das trecircs aacutereas permaneceu vigente por mais de 200 anos e

tambeacutem chegou ao Brasil quando da implantaccedilatildeo dos primeiros cursos de teologia Mais adiante

se abriu uma nova aacuterea de estudos que se chamou em alguns seminaacuterios de Correlaccedilatildeo

Incluiacuteram-se novas ciecircncias como auxiliares ou correlacionadas ao estudo teoloacutegico sociologia

antropologia psicologia dinacircmica de grupo pedagogia e outras Evidentemente eacute necessaacuterio

fazer uma diferenciaccedilatildeo entre o ensino da teologia nos seminaacuterios catoacutelicos romanos os

primeiros a se organizarem no Brasil desde o periacuteodo colonial e os seminaacuterios e faculdades de

teologia protestantes que somente satildeo criados no decorrer da primeira metade do seacuteculo 20 com

uma ou outra exceccedilatildeo

No caso dos seminaacuterios catoacutelicos sempre existiu a premissa do ensino da filosofia

aristoteacutelica e a Suma Teoloacutegica de Tomaacutes de Aquino bem como as doutrinas dos Papas e dos

Conciacutelios Assim o componente doutrinal predominou nesses seminaacuterios Todavia eacute

surpreendente como ao longo da histoacuteria da igreja catoacutelica no Brasil se pode encontrar um veio

progressista que se mostra na atuaccedilatildeo de padres que muito contribuiacuteram para o desenvolvimento

do pensamento brasileiro e da inserccedilatildeo da feacute nas realidades profanas da sua histoacuteria O advento

do Conciacutelio Vaticano II (1962-1965) a orientaccedilatildeo para o aggiornamento do grande Papa Joatildeo

XXIII repercutiu positivamente nos seminaacuterios e proporcionou novos ares agrave educaccedilatildeo teoloacutegica

na igreja catoacutelica Surge uma nova teologia que procura reler a tradiccedilatildeo e dar novas respostas

numa clara tentativa de inserir-se nas realidades profanas do mundo e da histoacuteria Grandes

nomes desse novo momento satildeo Yves Congar Karl Rahner Edward Schillebeeckx mais tarde

os representantes da Teologia Poliacutetica alematilde como J B Metz e outros

411 Cf HOCH Lothar C O lugar da teologia praacutetica como disciplina teoloacutegica In SCHNEIDER-HARPPRECHT Christoph (Org) Teologia praacutetica no contexto da Ameacuterica Latina Satildeo Leopoldo Sinodal ASTE 1998 p 23-26

Os seminaacuterios protestantes de um modo geral surgem como resultado da atuaccedilatildeo

missionaacuteria com algumas exceccedilotildees como a Faculdade de Teologia da Igreja Evangeacutelica de

Confissatildeo Luterana no Brasil hoje Escola Superior de Teologia (EST) fundada em 1946 como

uma decisatildeo eclesial em vista da formaccedilatildeo de um clero nacional Desde os primeiros intentos

nessa luta por formaccedilatildeo teoloacutegica poreacutem se estabelece um debate que perpassa todo o seacuteculo

20 e ainda hoje natildeo estaacute de todo resolvido

Por um lado temos a ideacuteia de que a teologia e o ensino teoloacutegico estatildeo em funccedilatildeo das

igrejas da pregaccedilatildeo da mensagem evangeacutelica o que exige uma preparaccedilatildeo seacuteria e responsaacutevel

academicamente fundamentada Mas desde logo se estabeleceu a pergunta sobre a incidecircncia

praacutetica desse ensino O teoacutelogo anglicano Jaci Maraschin escreveu no iniacutecio dos anos de 1970

A educaccedilatildeo teoloacutegica faz parte da funccedilatildeo preciacutepua da Igreja Natildeo me parece saudaacutevel

equacionaacute-la agrave academia A grande educadora eacute a Igreja (enquanto instrumento visiacutevel

do Cristo e sob o influxo do Espiacuterito Santo) enquanto povo de Deus disperso no

mundo participante e cooperante nos planos de Deus para a criaccedilatildeo412

Por outro lado Rubem Alves na mesma eacutepoca e com base na pedagogia da liberdade de

Paulo Freire adverte para o componente criacutetico da educaccedilatildeo inserindo aiacute tambeacutem a educaccedilatildeo

teoloacutegica Para Alves a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica soacute fazem sentido se preservarem seu

caraacuteter regenerador e criacutetico Soacute assim a educaccedilatildeo teoloacutegica teria uma contribuiccedilatildeo de valor

permanente para a ldquoedificaccedilatildeo expansatildeo e reforma da Igrejardquo Nessa perspectiva o mundo atual

jaacute natildeo aceita mais a tutela da Igreja que natildeo soacute eacute rejeitada devido ao avanccedilo das ideacuteias

democraacuteticas e de novos conceitos de cidadania e governo poliacutetico A teologia e a igreja

precisam responder agrave criacutetica da religiatildeo que as considerou como formas de escravidatildeo de

alienaccedilatildeo e opressatildeo agrave liberdade das pessoas413

Esta compreensatildeo de uma educaccedilatildeo teoloacutegica acadecircmica voltada exclusivamente para

as questotildees internas das igrejas em dado momento passou a ser severamente criticada e em seu

lugar surge a necessidade de contextualizar a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica Nesse sentido a

educaccedilatildeo teoloacutegica passou a ser entendida principalmente a partir dos anos de 1970 como um

espaccedilo de reflexatildeo sobre a natureza da feacute cristatilde e seu relacionamento com o mundo com a

sociedade Ela assume entatildeo um caraacuteter mais criacutetico e contundente quanto agraves estruturas que

prevalecem na sociedade e que causam pobreza miseacuteria e opressatildeo sobre as maiorias

Num texto de 1970 Rubem Alves antecipa uma visatildeo de educaccedilatildeo teoloacutegica que soacute

mais tarde foi assumida por alguns seminaacuterios e faculdades de teologia protestantes natildeo sem

causar dificuldades na sua relaccedilatildeo com as direccedilotildees das igrejas Ele escreveu

412 Apud LONGUINI NETO Luiz Educaccedilatildeo teoloacutegica contextualizada Satildeo Paulo ASTE IEPG em Ciecircncias da Religiatildeo 1991 p 64 413 LONGUINI NETO 1991 p 65

Diriacuteamos que o alvo da educaccedilatildeo teoloacutegica eacute a criaccedilatildeo de uma consciecircncia criacutetica

inserida no presente destinada a negar tudo o que for desumano em qualquer tipo de

sociedade seja ela conservadora ou revolucionaacuteria Partindo da negaccedilatildeo do presente ela

se dirigiria agrave exploraccedilatildeo do caraacuteter inacabado do mundo na busca das possibilidades

positivas que ateacute o momento permanecem agrilhoadas Deve portanto determinar-se

pela esperanccedila E vemos pelo exame da consciecircncia profeacutetica que essa consciecircncia soacute

pode ser criada no contexto de profundo envolvimento no mundo secular com suas

dores e esperanccedilas Nesse contexto a educaccedilatildeo teoloacutegica poderia vir a ser uma praacutetica

da liberdade414

Teologia profeacutetica como praacutetica da liberdade deve se tornar um discurso da esperanccedila

para o mundo secular esta a proposta que Rubem Alves defendeu naquela eacutepoca A teologia da

libertaccedilatildeo que surgiu por essa eacutepoca na Ameacuterica Latina foi precisamente um passo decisivo na

busca por uma reflexatildeo autoacutectone e calcada na realidade deste continente O teoacutelogo peruano

Gustavo Gutieacuterrez um de seus formuladores claacutessicos definiu esta teologia como uma reflexatildeo

criacutetica sobre e a partir da praacutexis histoacuterica de libertaccedilatildeo cujo fundamento estaacute na redescoberta do

amor como centro da vida cristatilde A partir da inserccedilatildeo de pessoas e lideranccedilas cristatildes nos

movimentos sociais de libertaccedilatildeo na Ameacuterica Latina se concretizou uma nova compreensatildeo e

vivecircncia da feacute cristatilde Escreveu ele em 1971

Isto levou a ver a feacute mais biblicamente como um ato de confianccedila de saiacuteda de si

mesmo como um compromisso com Deus e com o proacuteximo como uma relaccedilatildeo com os

demais Eacute nesse sentido que Satildeo Paulo nos diraacute que a feacute atua pela caridade [] Esse eacute o

fundamento da praacutexis do cristatildeo de sua presenccedila ativa na histoacuteria Para a Biacuteblia a feacute eacute a

resposta total do homem a Deus que salva por amor Nesta perspectiva a inteligecircncia da

feacute aparece como a inteligecircncia natildeo de uma simples afirmaccedilatildeo [] mas de um

compromisso de uma atitude global de uma postura diante da vida415

O compromisso de que fala Gutieacuterrez passou a ser assumido crescentemente na Ameacuterica

Latina pelos setores mais progressistas das igrejas Dessa forma a teologia e a educaccedilatildeo

teoloacutegica que a secundava cobraram uma nova incidecircncia nos contextos de opressatildeo e luta por

justiccedila Tratava-se de uma luta por recuperar e viver plenamente a dignidade da filiaccedilatildeo divina

E esta natildeo podia concordar com a pobreza a miseacuteria e a injusticcedila reinantes no cotidiano da vida

de milhotildees de pessoas Para natildeo deixar margem a equiacutevocos e ambiguumlidades Gutieacuterrez escreveu

sobre este processo o seguinte 414 Apud LONGUINI NETO 1991 p 66 Para mais informaccedilotildees do debate sobre a educaccedilatildeo teoloacutegica nos anos de 1980 cf MATEUS Odair Pedroso (Ed) Educaccedilatildeo teoloacutegica em debate Satildeo Paulo ASTE Satildeo Leopoldo Sinodal 1988 415 GUTIEacuteRREZ Gustavo Teologiacutea de la liberacioacuten Perspectivas Lima CEP 1971 p 21 Para um desdobramento dessa teologia em relaccedilatildeo agrave teologia da missatildeo na Ameacuterica Latina cf ZWETSCH Roberto E Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 p 335-362

uma opccedilatildeo clara pelo setor oprimido e por sua libertaccedilatildeo leva a reconsideraccedilotildees

profundas e a uma visatildeo da fecundidade e originalidade do cristianismo assim como do

papel que a comunidade cristatilde pode jogar nesse processo A esse respeito natildeo haacute soacute

uma vontade reafirmada mas experiecircncias concretas de como dar testemunho do

Evangelho no hoje da Ameacuterica Latina Poreacutem satildeo muitas as questotildees que ficam por

resolver a nova vitalidade que se pode pressagiar natildeo tem todavia diante dela um

horizonte claro416

O cuidado com que Gutieacuterrez emitiu seu prognoacutestico naquele momento foi plenamente

justificado posteriormente A proacutepria teologia da libertaccedilatildeo desdobrou-se em novas teologias

assumindo um rosto plural exigido pela vitalidade dos movimentos sociais das comunidades

eclesiais e das pessoas nelas envolvidas O advento de outras teologias como a teologia

feminista a teologia indiacutegena a teologia afroamericana a teologia da terra a teologia gay (mais

recentemente teologia queer) como aprofundamento e criacutetica das primeiras formulaccedilotildees da

teologia da libertaccedilatildeo satildeo expressatildeo da capacidade de a teologia cristatilde se renovar e de dialogar

com novas realidades histoacutericas para aleacutem do acircmbito estritamente eclesial

Sem duacutevida muito do que se debateu nas deacutecadas seguintes como sentido da educaccedilatildeo

teoloacutegica na Ameacuterica Latina e particularmente no Brasil foi desdobramento atualizaccedilatildeo

contestaccedilatildeo novas buscas daquele debate que mudou o tipo de teologia que por muito tempo se

ensinou nos seminaacuterios e faculdades de teologia

A partir da deacutecada de 1990 novos impulsos e questionamentos trazem consigo a

necessidade de se repensar a educaccedilatildeo teoloacutegica E nesse sentido um desafio premente foi a

relaccedilatildeo entre Teologia e Pedagogia sempre deficiente nos cursos de teologia Mas vale

mencionar ainda outros o avanccedilo dos novos movimentos religiosos a conquista de

significativos espaccedilos de afirmaccedilatildeo das identidades plurais que caracterizam a sociedade as

novas tecnologias da informaccedilatildeo e sua apropriaccedilatildeo por grupos religiosos principalmente as

igrejas pentecostais e neopentecostais as mudanccedilas na economia globalizada o processo

contraditoacuterio de redemocratizaccedilatildeo apoacutes o periacuteodo ditatorial quebra de paradigmas cientiacuteficos e

assunccedilatildeo de novos valores e de sentido da vida Toda uma nova conjuntura sociocultural

econocircmica e poliacutetica se fez refletir no acircmbito da educaccedilatildeo teoloacutegica De certa forma sentimos

hoje certa perplexidade frente as novas circunstacircncias Tanto a teologia e a ciecircncia quanto a

educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo encontram respostas adequadas e ensaiam propostas para equacionar tatildeo

diversificados e contraditoacuterios desafios

Nesse contexto o Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade (2007) pode

se tornar um documento orientador para definir pelo menos os termos de como a educaccedilatildeo

416 GUTIEacuteRREZ 1971 p 132

teoloacutegica poderia tornar-se relevante seja para as igrejas e comunidades de feacute seja para as

sociedades das quais ela faz parte

2 ndash O desafio da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica ndash Um comentaacuterio ao Manifesto

por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade

Rauacutel Fornet-Betancourt filoacutesofo cubano que leciona em Aachen Alemanha eacute um dos

intelectuais latino-americanos que mais tem pesquisado o tema da interculturalidade na sua

relaccedilatildeo entre Filosofia e Teologia na Ameacuterica Latina Ele tem aprofundado este tema em vaacuterias

publicaccedilotildees e artigos nos uacuteltimos 20 anos Ao nos debruccedilarmos sobre as implicaccedilotildees da

interculturalidade para a educaccedilatildeo teoloacutegica faz bem dialogar com ele pois isto pode servir de

estiacutemulo para avanccedilarmos no debate atua sobre uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade

Fornet-Betancourt afirma que a interculturalidade eacute uma realidade na Ameacuterica Latina e

esta realidade desafia a filosofia que se formulou e se desenvolve ainda hoje nessa parte do

mundo Em sua anaacutelise ele parte de uma suspeita

Minha suspeita [] eacute que a filosofia latino-americana [] natildeo tem sabido responder []

ao desafio do tecido intercultural que caracteriza a realidade cultural da Ameacuterica Latina

Por isso vejo a interculturalidade como uma lsquodisciplina pendentersquo e chamo-a assim

porque entendo que [] a interculturalidade natildeo eacute um chamado de agora fruto da

difusatildeo de uma nova moda filosoacutefica senatildeo mais bem uma demanda de justiccedila cultural

que se vem formulando haacute seacuteculos na histoacuteria social e intelectual da Ameacuterica Latina e

que se houvesse sido escutada teria contribuiacutedo para mudar o curso da histoacuteria da

filosofia na Ameacuterica Latina417

Se este eacute o caso para a filosofia o mesmo se pode dizer e ainda com mais propriedade

para a teologia cristatilde na Ameacuterica Latina Justamente porque o cristianismo chegou com os

colonizadores ibeacutericos sua cegueira para a riqueza cultural que aqui foi encontrada ajudou a

destruir aquele mundo diverso de vivecircncias culturais religiosas eacutetnicas sociais que

predominaram e se desenvolveram por seacuteculos nesta parte do mundo Houve sim genociacutedio no

seacuteculo 16 e junto com esta hecatombe um etnociacutedio que marcou definitivamente a histoacuteria das

relaccedilotildees entre os povos da terra e os colonizadores ibeacutericos Felizmente a destruiccedilatildeo natildeo foi

absoluta e hoje vemos ressurgir povos e culturas que muitos julgavam extintas O movimento

indiacutegena em vaacuterios paiacuteses da Ameacuterica Latina e do Caribe protagoniza novas lutas e ganha

espaccedilo nas sociedades nacionais readquirindo seus direitos a uma cidadania diferenciada Estes

fatos novos tambeacutem incidem sobre as igrejas e as escolas de teologia Natildeo por acaso o

Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade que me proponho comentar aqui surgiu 417 FORNET-BETANCOURT Rauacutel Interculturalidade Criacuteticas diaacutelogo e perspectivas Satildeo Leopoldo Nova Harmonia 2004 p 13

em La Paz Boliacutevia em meio a um novo processo poliacutetico nacional no qual os povos indiacutegenas

readquirem espaccedilo na sociedade e mesmo no governo nacional o que certamente traraacute

consequumlecircncias saudaacuteveis para as tensas relaccedilotildees que desde sempre caracterizaram o contato

entre populaccedilatildeo nacional crioula e povos aboriacutegines

Antes poreacutem cabe aqui registrar o que entendo por interculturalidade Recorro

novamente a uma definiccedilatildeo de Fornet-Betancourt pois ela nos ajuda a colocar bem os termos

que devem orientar o debate da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica

Interculturalidade quer designar [] aquela postura ou disposiccedilatildeo pela qual o ser

humano se capacita para e se habitua a viver lsquosuasrsquo referecircncias identitaacuterias em relaccedilatildeo

com os chamados lsquooutrosrsquo quer dizer compartindo-as em convivecircncia com eles Daiacute

que se trata de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de

reaprendizagem e recolocaccedilatildeo cultural e contextual Eacute uma atitude que [] permite-nos

perceber o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpaacuteveis quando cremos que

basta uma cultura a lsquoproacutepriarsquo para ler e interpretar o mundo418

Como se pode notar o tema da interculturalidade eacute na verdade um desafio que estaacute

posto desde os tempos coloniais O problema eacute que muito raramente ele foi reconhecido e

assumido Temos grandes nomes do passado colonial que abriram seus coraccedilotildees e mentes para

este fato mas foram raros Menciono aqui apenas Bartolomeu de Las Casas no acircmbito da

colonizaccedilatildeo hispacircnica e Antonio Vieira na colonizaccedilatildeo portuguesa Mas mesmo nesses casos

em que os missionaacuterios assumiram corajosamente a defesa dos Direitos Indiacutegenas e de sua

liberdade natildeo se pode dizer que houve um diaacutelogo intercultural pleno e frutiacutefero

Desde que se deu iniacutecio agrave formaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina os modelos que

prevaleceram foram norte-atlacircnticos europeus e anglo-saxotildees Natildeo havia espaccedilo para a cultura

do outro Soacute na segunda metade do seacuteculo 20 eacute que o desafio da interculturalidade comeccedila a ser

assumido na teologia e na educaccedilatildeo teoloacutegica mesmo que timidamente No campo catoacutelico-

romano mencione-se o Documento de Puebla (1979) que pela primeira vez assumiu as culturas

dos povos indiacutegenas como desafio para a evangelizaccedilatildeo e como um fator de riqueza cultural e

humana que natildeo pode ser ignorado

Fornet-Betancourt nos ajuda a situar o desafio de modo ainda mais concreto Ele afirma

que a interculturalidade eacute uma experiecircncia uma vivecircncia do encontro com quem eacute diferente de

noacutes em novos termos E quando tal vivecircncia se daacute num clima de abertura positiva e solidaacuteria eacute

bem provaacutevel que nos demos conta do que o filoacutesofo cubano chama de ldquoimpropriedade dos

nomes proacuteprios com que nomeamos as coisas Ou [] eacute a experiecircncia de que nossas praacuteticas

culturais devem ser tambeacutem praacuteticas de traduccedilatildeordquo419

418 FORNET-BETANCOURT 2004 p 13 419 FORNET-BETANCOURT 2004 p 13

Ora quando se trata de repensar a teologia cristatilde e a educaccedilatildeo teoloacutegica em vista do

desafio intercultural e da convivecircncia com os diferentes mas proacuteximos nos encontramos

precisamente no campo da traduccedilatildeo da busca por nomes proacuteprios que identifiquem sujeitos e

que permitam a estes sujeitos dizerem sua palavra para recordar mais uma vez o saudoso Paulo

Freire

Isto significa que tratar da interculturalidade na educaccedilatildeo teoloacutegica eacute um desafio difiacutecil

custoso e que natildeo teraacute uma resoluccedilatildeo pronta e acabada A meu ver estamos aqui diante de um

desafio permanente que diz respeito agrave realidade da diversidade cultural eacutetnica social que vigora

nas sociedades latino-americanas Temos de assumir definitivamente que somos uma realidade

heterogecircnea diversa multicultural plurirreligiosa na Ameacuterica Latina o que exige um miacutenimo

de justiccedila cultural se de fato desejamos ser sociedades democraacuteticas na qual professamos de

maneira aberta e dialoacutegica o evangelho da vida e do amor divinos420

Com este preacircmbulo passo a comentar o Manifesto em questatildeo chamando a atenccedilatildeo

para os pontos que me pareceram os mais pertinentes para este tema O documento se compotildee

de 13 paraacutegrafos sendo o primeiro uma introduccedilatildeo e o uacuteltimo um chamamento para que se

continue a trabalhar o tema nas instituiccedilotildees teoloacutegicas procurando envolver nesse debate a

docentes estudantes funcionaacuterios comunidades eclesiais enfim todas aquelas pessoas que de

uma ou de outra forma contribuem para levar adiante a educaccedilatildeo teoloacutegica em nosso contexto

O Manifesto entende educaccedilatildeo teoloacutegica como parte da missatildeo da igreja cristatilde no

mundo Eacute uma modalidade particular de educaccedilatildeo que se realiza por meio de uma

ldquoaprendizagem criativa organizada e criacutetica de quem reflete sobre sua feacute ndash isto eacute que fazem

teologia ndash desde a diversidade de seus dons e ministeacuteriosrdquo (sect 2)421 Educaccedilatildeo teoloacutegica entatildeo

natildeo eacute catequese ou proclamaccedilatildeo do evangelho embora sirva a estas Eacute antes uma forma de se

interrogar sobre as razotildees da feacute que se articula em manifestaccedilotildees concretas de vivecircncias

religiosas diaconais e solidaacuterias Por isto mesmo uma educaccedilatildeo teoloacutegica atenta agraves pessoas

crentes e agraves comunidades de feacute estaraacute sempre aberta ao diaacutelogo com elas diaacutelogo fraterno e

criacutetico ao mesmo tempo Da mesma forma seraacute um serviccedilo agrave promoccedilatildeo e defesa da vida em

todas as suas dimensotildees O que caracteriza a educaccedilatildeo teoloacutegica na Ameacuterica Latina eacute o fato de

ela se dar num contexto intercultural e interreligioso Por isto o Manifesto anuncia desde o

iniacutecio um propoacutesito grandioso e ao mesmo tempo exigente ldquoQueremos que a educaccedilatildeo

teoloacutegica aleacutem de estar a serviccedilo das Igrejas se deixe interpelar [] pelas teologias expliacutecitas

ou impliacutecitas das tradiccedilotildees religiosas e culturais ancestrais e contemporacircneas de Abya Yalardquo (sect

420 Rauacutel FORNET-BETANCOURT formula sua ideacuteia da praacutetica de um cristianismo intercultural que respeita as outras tradiccedilotildees religiosas na Ameacuterica Latina da seguinte maneira trata-se de chegar a ldquouma praacutetica e elaboraccedilatildeo teoloacutegica da feacute cristatilde que [] eacute confessada no diaacutelogo e com vontade de transformaccedilatildeo pela convivecircncia [] Na convivecircncia pluralista e intercultural as tradiccedilotildees se transformam mas sem se dissolver em uma siacutentese carente de perfis contextuais Um cristianismo intercultural por ser mais universal eacute ao mesmo tempo mais memoacuteria de sua memoacuteriardquo In Religiatildeo e inteculturalidade Satildeo Leopoldo Nova Harmonia Sinodal 2007 p 53 421 A partir desta citaccedilatildeo ao me referir ao Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade vou indicar apenas o paraacutegrafo que estou comentado O texto completo do Manifesto segue em anexo a este trabalho

2) Este pressuposto dialogal natildeo eacute aceito em muitos seminaacuterios e faculdades de teologia

protestantes sem cuidadosas discussotildees (sect 2) Ainda assim eacute importante que conste aqui como

expressatildeo da realidade latino-americana

O paraacutegrafo seguinte define o que no documento se entende por qualidade pois o

conceito natildeo eacute inequiacutevoco Ultimamente ele eacute utilizado com frequumlecircncia na linguagem

empresarial especialmente no contexto das ideacuteias neoliberais Nesse documento entretanto se

arrisca usaacute-lo com outro significado Partindo da praacutetica do ministeacuterio de Jesus como

apresentada no Novo Testamento qualidade na educaccedilatildeo teoloacutegica cristatilde significa

Integrar a Palavra inspiradora e transformadora (Pneuma) com o discurso normativo (Logos)

Assumir a tensatildeo criativa entre a feacute do Povo de Deus e a sofisticaccedilatildeo do discurso sobre a feacute Nutrir-se tanto da luta transformadora e do silecircncio quanto da miacutestica Transitar entre culturas com racionalidades emergentes e a heranccedila de uma cultura e uma

racionalidade dominante Saber que lsquoa verdade se fazrsquo e que ela corre sempre o risco de estar lsquoaprisionada na

injusticcedilarsquo

Em suma o que o documento entende por qualidade implica dialeticamente ldquocombinar

[] a relevacircncia da teologia no contexto da realidade [] de Abya Yalardquo com a ldquopertinecircncia de

uma disciplina que tem identidade e exigecircncias epistemoloacutegicas proacutepriasrdquo ((sect 3)

Mas esta combinaccedilatildeo dialeacutetica e sua importacircncia para as igrejas e as sociedades onde

acontece a educaccedilatildeo teoloacutegica eacute preciso reconhecer natildeo se daacute num contexto muito favoraacutevel

nos dias de hoje Haacute questionamentos que procedem das igrejas sobre o real serviccedilo que a

educaccedilatildeo teoloacutegica lhes presta ateacute aqueles que vem dos movimentos sociais das culturas

ancestrais das instacircncias educativas acadecircmicas ou populares e mais recentemente dos

proacuteprios Ministeacuterios de Educaccedilatildeo que impotildeem requisitos formais cada dia mais exigentes

Isto faz com que o documento mencione a vulnerabilidade que afeta a educaccedilatildeo

teoloacutegica na Ameacuterica Latina (sect 4) Esta situaccedilatildeo portanto cobra maior responsabilidade o que

significa relacionar qualidade com inserccedilatildeo contextual da educaccedilatildeo teoloacutegica assim como

qualidade no que se refere a praacuteticas disciplinas e paradigmas utilizados

Um ponto de partida para uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade eacute o que o documento

chama da ldquoqualidade de vidardquo (sect 5) Deus eacute o autor da vida e as comunidades humanas satildeo parte

da criaccedilatildeo divina que continua ateacute hoje e abraccedila todos os seres vivos dentro do cosmos Por isto

a qualidade de vida de que aqui se fala natildeo eacute um estado mas uma dinacircmica e uma meta

relacional Ela eacute integral material e espiritual corporal e intelectual moral e esteacutetica pessoal e

comunitaacuteria natural e cultural Nesse sentido abarca tanto necessidades como desejos

Como esta concepccedilatildeo de vida integral natildeo eacute garantida nem pelas sociedades nem pelas

igrejas na Ameacuterica Latina reconhecendo que haacute visotildees e praacuteticas diferentes e ateacute contraditoacuterias

em funccedilatildeo da origem social ou cultural de gecircnero ou eacutepoca eacute preciso admitir que tal

diversidade de visotildees utoacutepicas eacute causa de conflitos

Em meio a tais conflitos e as tensotildees proacuteprias entre formas diferenciadas de vida o

documento propugna por uma ldquoformaccedilatildeo teoloacutegica [] aberta agraves novas experiecircncias de feacute a um

futuro renovado ndash sem que fiquemos encerrados em sistemas ou esquemas predeterminados

nem nos deixemos ganhar pela ideologia do sistema uacutenicordquo (sect 5) o que por decorrecircncia leva a

profundas implicaccedilotildees antropoloacutegicas

O paraacutegrafo 6ordm define como o documento entende missatildeo no contexto da busca por

qualidade na educaccedilatildeo teoloacutegica Ela eacute vista a partir da accedilatildeo de Deus e deve ser entendida como

uma praacutetica criadora e transformadora Nesse sentido a qualidade da missatildeo cristatilde estaacute dada por

sua conformidade com a praacutetica e o ministeacuterio de Jesus

O paraacutegrafo seguinte explicita que tipo de educaccedilatildeo teoloacutegica orienta o documento

ldquoLutamos por uma educaccedilatildeo a serviccedilo da vida o que implica uma educaccedilatildeo de qualidade

contiacutenua e permanente para todas as pessoasrdquo (sect 6) Isto significa que de saiacuteda a compreensatildeo

de educaccedilatildeo teoloacutegica aqui defendida se estende ao longo da vida e natildeo se limita a formar

apenas profissionais mas inclui a formaccedilatildeo das pessoas de cada comunidade Ela visa

porgtanto formar para a cidadania responsaacutevel para diversidade o conhecimento criacutetico da

realidade o respeito agraves diferenccedilas optando por uma pedagogia que se baseia nos seguintes

axiomas aprender para aprender aprender a ser aprender a conviver e aprender a

empreender em direccedilatildeo a uma cultura de paz

Considerando os pontos acima o documento assume o paradigma intercultural como

referecircncia epistemoloacutegica em que confluem diversas vertentes e dimensotildees do pensamento e da

accedilatildeo humana (sect 8) Tal paradigma se caracteriza pelos seguintes aspectos

intertransdisciplinaridade e interculturalidade assume uma multiplicidade de formas de

conhecimento e a complexidade das relaccedilotildees interhumanas inclui muacuteltiplas racionalidades e a

variedade de potencialidades humanas (emocional cognitiva corporal espiritual moral

intuitiva criativa e outras) eacute contextual e estaacute inserido na histoacuteria eacute questionador e estaacute em

busca de transformaccedilatildeo da realidade com vistas a uma maior qualidade de vida Por isto mesmo

eacute processual em direccedilatildeo agrave superaccedilatildeo de preconceitos e limitaccedilotildees sempre presentes na vida

Quanto agrave teologia que orienta este novo paradigma o documento se define por uma

teologia que assume criticamente sua proacutepria identidade em interaccedilatildeo com outras teologias

espiritualidades culturas e ideologias Afirma ainda que a ldquomarca evangeacutelica desta teologia

proveacutem de uma revelaccedilatildeo dirigida mais a lsquotolos e pequenosrsquo que a lsquosaacutebios e ilustradosrsquo (sect 9)

Por isto mesmo tal teologia libertadora e liberta de esquemas intelectuais poliacuteticos ou

eclesiaacutesticos encontra nas comunidades de feacute natildeo apenas interlocutoras aptas como tambeacutem

protagonistas dessa teologia Por esta razatildeo ela deveraacute apresentar as seguintes dimensotildees

profeacutetica sapiencial e miacutestica aberta agrave dimensatildeo trinitaacuteria da feacute cristatilde hermeneuticamente

voltada para a releitura biacuteblica com vistas agrave praacutetica transformadora Tal teologia haveraacute de

considerar as tradiccedilotildees especiacuteficas de cada manifestaccedilatildeo eclesial sendo ao mesmo tempo

receptiva e aberta ao diaacutelogo com outras tradiccedilotildees natildeo cristatildes procurando articular uma

espiritualidade com incidecircncia poliacutetica e social

A pergunta pela pedagogia que embasa esta proposta de educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo poderia

faltar Nesse sentido o documento afirma que para se chegar a uma educaccedilatildeo teoloacutegica de

qualidade haacute que contar com o aporte das pedagogias da esperanccedila da transformaccedilatildeo do

diaacutelogo de saberes e da negociaccedilatildeo cultural pedagogias democraacuteticas e democratizadoras em

direccedilatildeo agrave equumlidade de gecircnero entre geraccedilotildees e eacutetnica para se alcanccedilar uma cultura de paz

Nesse sentido esta proposta assume se sabe em diacutevida com a Educaccedilatildeo Popular tatildeo importante

na pedagogia latino-americana das uacuteltimas deacutecadas (sect 10)

Trata-se portanto de pensar e de realizar uma educaccedilatildeo teoloacutegica que se entenda

integrada a um projeto de vida Por isto o documento explicita uma vez mais o argumento de

fundo ldquoQueremos abrir a educaccedilatildeo teoloacutegica agrave multiplicidade de atores que respondem a

carismas e ministeacuterios vinculados por sua vez a diferentes tipos de aprendizagens teoloacutegicas e

modalidades de ensinordquo (sect 11) Nesse sentido o documento aponta para a fecundaccedilatildeo reciacuteproca

entre teologia ou saber popular e exerciacutecio acadecircmico da teologia para a continuidade e

diversidade da educaccedilatildeo teoloacutegica ao longo da vida e em todos os acircmbitos desta para uma

possiacutevel resoluccedilatildeo positiva da tensatildeo entre vocaccedilatildeo reflexatildeo criacutetica e aquisiccedilatildeo de

conhecimento e ferramentas para o compromisso cristatildeo em geral e o trabalho pastoral

especiacutefico

O uacuteltimo paraacutegrafo de conteuacutedo relaciona esta concepccedilatildeo de educaccedilatildeo teoloacutegica de

qualidade com as instituiccedilotildees teoloacutegicas onde se realiza ou se oferece tal educaccedilatildeo (sect 12) Desse

ponto de vista uma gestatildeo institucional de qualidade ldquose mede em funccedilatildeo do niacutevel de

aprendizagem seguranccedila bem-estar confianccedila muacutetua iniciativa assim como de outros criteacuterios

gerais vinculados ao caraacuteter inclusivo agrave diversidade e agrave equumlidade de gecircnerordquo Isto significa

afirmar que o modelo administrativo natildeo pode estar dissociado da pedagogia e da teologia que a

instituiccedilatildeo ensina e da educaccedilatildeo que oferece Nesse sentido a qualidade da instituiccedilatildeo teoloacutegica

requer participaccedilatildeo poliacutetica democraacutetica relaccedilotildees de confianccedila muacutetua e compromisso

profissional transformador transparecircncia e flexibilidade eficiecircncia solidaacuteria empoderamento

dos diferentes atores (docentes estudantes funcionaacuterios comunidade maior) circulaccedilatildeo de

informaccedilotildees e sustentabilidade com autogestatildeo e em busca de menor dependecircncia possiacutevel

quanto a recursos externos

Reflexotildees finais

O Manifesto por uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade eacute um documento arrojado

ineacutedito ao menos em relaccedilatildeo agraves instituiccedilotildees teoloacutegicas da Ameacuterica Latina Ele propotildee na

verdade um ideal pois dificilmente vamos encontrar uma soacute instituiccedilatildeo que preencha todas

estas especificaccedilotildees acima anunciadas Ainda assim ele serve como um paracircmetro para a

discussatildeo e a formulaccedilatildeo de projetos de educaccedilatildeo teoloacutegica que estejam em melhores condiccedilotildees

para nos dias de hoje colaborar na busca por respostas aos mais candentes problemas que as

igrejas e a humanidade estatildeo enfrentando Se a teologia e a educaccedilatildeo teoloacutegica natildeo tecircm em vista

a vida mesma e os clamores que as pessoas lhes trazem desde o seu cotidiano podemos nos

perguntar para que serve a teologia

Em outro texto eu faccedilo referecircncia a uma tarefa importante que cabe agrave teologia na

Ameacuterica Latina atualmente eu a denominei de imaginaccedilatildeo criadora Esta tarefa ou dimensatildeo

intriacutenseca da teologia tambeacutem precisa ganhar espaccedilo na educaccedilatildeo teoloacutegica de nossos dias Pois

ela diz respeito ao futuro agrave esperanccedila Uma educaccedilatildeo teoloacutegica de qualidade portanto deve

abrir-se agrave imaginaccedilatildeo ao sonho ao ineacutedito possiacutevel como formulou certa vez Paulo Freire

Teologicamente o futuro jaacute estaacute presente ainda que apenas em germe pois a feacute jaacute nos

foi dada e jaacute vivemos em meio aos sinais do novo que Cristo nos ofertou Mas a tensatildeo

se deve ao fato de que ainda natildeo vivemos essa novidade plenamente Aliaacutes soacute a

experimentamos como promessa e cruz Por isso eacute necessaacuterio trabalhar com imagens de

esperanccedila que mobilizem as pessoas que as faccedilam desinstalar-se caminhar lutar

resistir sonhar com novas possibilidades de vida com uma nova sociedade ainda

quando parecemos estar aqueacutem desses sonhos ou diante das surpresas que a histoacuteria nos

reserva e que natildeo conseguimos entender bem422

Isto significa dizer tambeacutem que a imaginaccedilatildeo criadora faz parte da qualidade da

educaccedilatildeo teoloacutegica Se na formaccedilatildeo que propomos faltar esta dimensatildeo possivelmente se estaraacute

na melhor das hipoacuteteses oferecendo notaacutevel conhecimento teoloacutegico mas faltaraacute aquele sal

aquele tempero que faz da comida algo saboroso e inesqueciacutevel E junto com esta dimensatildeo haacute

que resgatar ainda outras caracteriacutesticas presentes desde o seu nascedouro na teologia latino-

americana de libertaccedilatildeo a dimensatildeo poliacutetica irrenunciaacutevel da feacute cristatilde sua presenccedila criadora e

revolucionaacuteria em meio aos pobres da terra com quem dialoga de modo uacutenico e transformador

a dimensatildeo espiritual que caracteriza este conhecimento como movido pelo Espiacuterito libertador

de Cristo e por fim a dimensatildeo missionaacuteria como constitutiva de sua inserccedilatildeo eclesial e de

continuidade com o que define a teologia cristatilde como intellectus amoris na feliz expressatildeo de

Jon Sobrino ldquouma inteligecircncia da realizaccedilatildeo do amor histoacuterico aos pobres deste mundo e do

amor que nos faz afins agrave realidade do Deus reveladordquo423

Referecircncias

422 ZWETSCH Roberto E Missatildeo como com-paixatildeo Por uma teologia da missatildeo em perspectiva latino-americana Satildeo Leopoldo Sinodal Quito CLAI 2008 p 379 423 Apud MUumlLLER Ecircnio Um balanccedilo da Teologia da Libertaccedilatildeo como intellectus amoris in SUSIN Luiz Carlos (Org) Sarccedila ardente Teologia na Ameacuterica Latina Prospectivas Satildeo Paulo Paulinas Belo Horizonte SOTER 2000 p 41-47

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As culturas e a Biacuteblia uma aproximaccedilatildeo agraves diferenccedilas

Flaacutevio Schmitt424

Introduccedilatildeo

Existe consenso entre os entendidos que a Biacuteblia eacute um livro passiacutevel de duas percepccedilotildees

principais a saber ela eacute palavra de Deus e palavra de homens A primeira alternativa natildeo nos

interessa nesse momento Natildeo eacute propoacutesito deste escrito discutir ou argumentar sobre a Escritura

Sagrada cristatilde enquanto revelaccedilatildeo

A Biacuteblia como fruto de uma iniciativa humana reflete os condicionamentos culturais

das pessoas que lhe deram origem Isso tambeacutem jaacute eacute senso comum Afinal a Biacuteblia eacute

testemunha de tempos e lugares O ser humano familiarizado com a cultura biacuteblica toma

consciecircncia bem depressa da grande diversidade de culturas existentes neste livro

Nesse sentido o propoacutesito deste artigo eacute discutir a influecircncia cultural nas tradiccedilotildees que

se tornaram normativas para o texto sagrado judeu e cristatildeo A cultura eacute e representa toda a

produccedilatildeo de conhecimento humano nas aacutereas da arte ciecircncia literatura muacutesica filosofia

poliacutetica economia e religiatildeo A cultura resume todos os costumes ligados agrave famiacutelia agrave

nacionalidade ao trabalho e ao modo de ser humano e encarar a vida425 Por cultura entendemos

a segunda natureza 426 ou seja tudo aquilo que eacute acrescentado ao ser humano bioloacutegico natural

em determinado lugar e eacutepoca Por sua vez cultura religiosa diz respeito agrave segunda natureza do

ser humano relacionada com a religiatildeo

Os estudos na aacuterea da antropologia jaacute se preocupam haacute muito em verificar como as

religiotildees se parecem e se diferenciam A Histoacuteria Comparada das Religiotildees e a Histoacuteria das

Religiotildees trataram de verificar as caracteriacutesticas peculiares a cada religiatildeo bem como os

aspectos que lhe satildeo comuns Independente de sua natureza religiatildeo eacute sempre fruto de um

processo histoacuterico Eacute ao longo do tempo que as religiotildees satildeo forjadas A histoacuteria registra que de

tempos em tempos ocorrem novas siacutenteses que excluem e reuacutenem elementos numa nova

configuraccedilatildeo

Mais recentemente o estudo do contato entre culturas diferenciadas tornou-se um

campo de estudo bastante dinacircmico onde satildeo identificadas categorias essenciais de anaacutelise que

problematizam a recepccedilatildeo a reaccedilatildeo a alteraccedilatildeo e transformaccedilatildeo e reproduccedilatildeo de referenciais

424 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo professor de Biacuteblia Novo Testamento ndash Faculdades EST em Satildeo Leopoldo RS

425 Michael Horton O Cristatildeo e a cultura p 12 426 Jung Mo Sung Conversando sobre Eacutetica e Sociedade p46

culturais que permitem sobrevivecircncia e continuidade de distintas comunidades ainda que natildeo

fossem mais as mesmas apoacutes essas interaccedilotildees resultando na pluralidade de representaccedilotildees427

Dessa maneira nasceu o cristianismo Dessa maneira nasceram todas as religiotildees O

mesmo fenocircmeno aconteceu com a religiatildeo de Israel Eacute na influecircncia de diferentes tradiccedilotildees

religiosas ou natildeo que devemos buscar a contribuiccedilatildeo para a constituiccedilatildeo das religiotildees na

atualidade

A Arqueologia Biacuteblica ramo da Arqueologia do Oriente Proacuteximo tambeacutem tem

procurado demonstrar como a cultura material estaacute ligada agrave constituiccedilatildeo de identidades

religiosas Os trabalhos iniciados com a primeira escavaccedilatildeo cientiacutefica propriamente dita na

Palestina em 1890 promovida pelo inglecircs William Matthew Flinders Petrie em Tell el-Hesi e

se multiplicados com a criaccedilatildeo de Fundaccedilotildees e Sociedades como o Fundo de Exploraccedilatildeo da

Palestina [Palestine Exploration Fund] na Inglaterra em 1865 a Associaccedilatildeo alematilde de pesquisa

na Palestina [Deutscher Verein zur Erforschung Palaumlstinas] de 1877 e a Sociedade Oriental

Alematilde [Deutsch Orientgesellschaft] de 1898 Os Estados Unidos fundaram a Sociedade

Americana de Arqueologia Biacuteblica [American Society of Biblical Archaeology] em 1870 que

em 1900 eacute substituiacuteda pela ASOR [American Schools of Oriental Research]428

O ano de 1948 marca o iniacutecio de uma nova fase para as pesquisas arqueoloacutegicas na

Palestina Os trabalhos arqueoloacutegicos passam a ser controlados pelos israelenses Aleacutem disso haacute

uma mudanccedila de enfoque na disciplina A ecircnfase tradicional no texto biacuteblico comeccedilou a ser

substituiacuteda por uma preocupaccedilatildeo de caraacuteter antropoloacutegico e histoacuterico mais geral

Todo esse trabalho traz agrave tona vestiacutegios e provas materiais da diversidade de culturas

pessoas praacuteticas ritos e locais habitados e cultivados pela sociedade e religiatildeo de Israel

No atual momento das pesquisas arqueoloacutegicas percebe-se que as pesquisas judaico-

cristatildes ainda satildeo as que predominam por outro lado as dirigidas por grupos muccedilulmanos

seguem a mesma premissa utilizada por judeus e cristatildeos preocupam-se apenas com os

periacuteodos relacionados agrave histoacuteria do Islatilde

A Sociologia tambeacutem elaborou conceitos que podem ajudar na compreensatildeo da

dinacircmica da sociedade Quando fala em Processos Sociais a Sociologia procura evidenciar

como ocorrem as diferentes formas de interaccedilatildeo entre indiviacuteduos grupos sociais e sociedades

Entre os processos estatildeo a acomodaccedilatildeo a assimilaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo como processos

associativos Como processos dissociativos estatildeo o conflito e a competiccedilatildeo

De alguma maneira este referencial teoacuterico tambeacutem serve de paradigma para verificar o

processo de formaccedilatildeo das religiotildees Satildeo muitos e variados os diferentes fenocircmenos e praacuteticas

427 Cf Marshall Sahlins Cultura e razatildeo praacutetica p37

428 Gabriella Barbosa RODRIGUES Arqueologia Biacuteblica e construccedilatildeo de identidades notas acerca da pesquisa arqueoloacutegica nas chamadas terras da Biacuteblia p276

ligados agraves religiotildees Crenccedilas ritos e orientaccedilotildees eacuteticas estatildeo sujeitos aos mais diferentes

processos sociais Por vezes ocorre a assimilaccedilatildeo outras vezes estas mesmos aspectos satildeo

causa de competiccedilatildeo e conflito

Os estudos na aacuterea da Antropologia Sociologia Arqueologia Histoacuteria e Geografia

permitem compreender e perscrutar com maior precisatildeo os caminhos e processos atraveacutes dos

quais as religiotildees de modo geral vatildeo se constituindo ao longo do tempo

Admitir que as religiotildees satildeo forjadas sob o impulso e impacto de muacuteltiplas influecircncias

bem como a constataccedilatildeo deste fato ainda natildeo nos diz tudo Lamentavelmente em muitas

religiotildees natildeo estamos em condiccedilotildees de precisar suas origens tampouco o grau de influecircncia que

cultura a sociedade de modo geral e a religiatildeo o em partiacutecula exerceu sobre elas

1 A Religiatildeo de Israel

A Biacuteblia reflete uma realidade consideravelmente plural e diversificada no que se refere

agraves culturas e fronteiras geograacuteficas O que hoje conhecemos como o Israel biacuteblico eacute resultado

de um processo relacional de povos naccedilotildees e territoacuterios Egipto Mesopotacircmia Siacuteria e Canaatilde

satildeo o caldeiratildeo cultural onde eacute forjado o povo da Biacuteblia

A religiatildeo que surge em Israel na eacutepoca em que diferentes grupos passam a povoar as

regiotildees desabitadas das montanhas de Canaatilde recebe influecircncia das diferentes culturas que se

encontram nesta regiatildeo A simples contextualizaccedilatildeo geograacutefica da Terra de Canaatilde no contexto

do crescente Feacutertil jaacute permite constatar como esta aacuterea geograacutefica constitui uma ponte entre o

continente africano ao sul e o Oriente Meacutedio ao norte Como corredor de ligaccedilatildeo entre Egito e

Mesopotacircmia a Terra de Canaatilde e os habitantes nela instalados sofrem a influecircncia cultural das

civilizaccedilotildees com as quais mantecircm contato

Ainda que seja difiacutecil precisar esta influecircncia nos seus detalhes os relatos biacuteblicos nos

fornecem indiacutecios preciosos Os proacuteprios patriarcas guardam na memoacuteria de sua identidade a

informaccedilatildeo de que satildeo semitas migrantes oriundos da regiatildeo Mesopotacircmica (Gn 121-4)

Fronteira e territoacuterio satildeo os paracircmetros para demarcar e distinguir a religiatildeo de Israel

Enquanto a fronteira marca o grupo e seus valores o territoacuterio marca as origens e influecircncias

A influecircncia egiacutepcia mesopotacircmica e cananeacuteia eacute cada vez mais destaca nos estudos da

religiatildeo dos judeus Fenocircmenos como o profetismo biacuteblico originalmente atribuiacutedo agrave natureza

proacutepria da religiatildeo dos israelitas apresenta traccedilos de tradiccedilotildees semelhantes presentes em outras

culturas como em Mari e no Egito429

429 Abrego de Lacy Os Livros Profeacuteticos p 25s

Tanto na mentalidade profeacutetica quanto na mentalidade sapiencial o povo de Israel eacute

devedor da cultura e praacutetica de seus vizinhos Os especialistas inclusive destacam a assimilaccedilatildeo

por parte de Israel de aspectos literaacuteria presentes em outras culturas430

O proacuteprio processo de formaccedilatildeo do povo de Israel431 reflete uma amaacutelgama de tradiccedilotildees

e expectativas que passam a ser canalizadas pelo vieacutes da religiatildeo Os diferentes grupos

portadores de tradiccedilotildees culturais e religiosas distintas encontram num mesmo espaccedilo geograacutefico

a oportunidade para reunir num soacute sentido as diferentes experiecircncias religiosas de que satildeo

portadores

As tribos satildeo constituiacutedas de membros que partilham de um senso comum de origem

reclamam uma comum e distintiva histoacuteria e destino possuem uma ou mais caracteriacutesticas

distintas e sentem um senso uacutenico de coletividade e solidariedade

As rupturas provocadas pelas tensotildees e conflitos poliacuteticos tecircm seus reflexos na cultura

religiosa Natildeo eacute por acaso que os samaritanos passam a vigorar entre o grupo de judeus com

reputaccedilatildeo duvidosa aos olhos de Jerusaleacutem Aleacutem disso as consequumlecircncias provocadas pelo

exiacutelio e a dispersatildeo dos judeus pelo mundo antigo trouxe novos desafios para a praacutetica da

religiatildeo de Israel

Praacuteticas maacutegicas visotildees apocaliacutepticas construccedilotildees imageacuteticas e

simboacutelicas que discutem e unem a relaccedilatildeo do sagrado com a

realidade vivida no cenaacuterio cotidiano nas estrateacutegias utilizadas

por diferentes grupos politeiacutestas e monoteiacutestas para ateacute superar

as condiccedilotildees estabelecidas pelas forccedilas dominantes e criar

referenciais proacuteprios que valorizam seus modos de vida e

pensamentos particulares caracterizando a cultura popular

ldquosignificando uma ruptura da legitimidade do sagradordquo

O esforccedilo de liacutederes populares e dos profetas visava justamente preservar o patrimocircnio

religioso de Israel contra quaisquer influecircncias estrangeiras e defendecirc-lo de toda contaminaccedilatildeo

oriunda principalmente do substrato cananeu432

Ao longo de toda sua histoacuteria no interior ou longe de sua paacutetria os judeus

experimentaram contatos permanentes e diretos com diferentes culturas e civilizaccedilotildees (egiacutepcia

mesopotacircmia persa e sobretudo a grega em seguida a romana) exigindo constante processo

de releitura e interpretaccedilatildeo de seus proacuteprios princiacutepios religiosos

430 Erich Zenge et alli Introduccedilatildeo ao Antigo Testamento p284ss 431 Milton Schwantes Histoacuteria de Israel p 31ss 432 Marcel Simon Andreacute Benoit Judaiacutesmo e cristianismo antigo de Antiacuteoco Epifacircnio a Constantino Satildeo Paulo EDUSP 1987 p 49

O judaiacutesmo monoteiacutesta se fundamenta na feacute em Deus e na obediecircncia agrave Lei Esta

relaccedilatildeo entre a Fidelidade e a Lei torna-se uma peculiaridade para os judeus por causa de seu

modo de vida ainda mais destacado ente os estrangeiros A Toraacute pode ser identificada com a lei

da natureza e da humanidade Os gentios politeiacutestas eram adoradores da criaccedilatildeo mais que do

Criador Adoravam as coisas mateacuterias do universo Os judeus respondiam agraves calunias

concernentes agraves suas origens recitando a histoacuteria da criaccedilatildeo e seu contexto na histoacuteria do povo

A proacutepria relaccedilatildeo entre religiatildeo e naccedilatildeo na constituiccedilatildeo do judaiacutesmo poacutes-exiacutelico eacute

muito visiacutevel e seu desenvolvimento passou a depender em muito das accedilotildees profeacuteticas

fortalecendo assim uma identidade voltada ao nacionalismo e agrave plena observacircncia dos preceitos

religiosos estabelecidos

Outro aspecto relevante neste processo de assimilaccedilatildeo de padrotildees culturais de outros

povos pode ser tipificado pelo proacuteprio surgimento da liacutengua hebraica O surgimento de uma

liacutengua semita com escrita alfabeacutetica se insere no horizonte das explicaccedilotildees do surgimento das

proacuteprias liacutenguas e de seus respectivos alfabetos (hebraico aramaico grego)

Ainda envolto em misteacuterios que intrigam pesquisadores o alfabeto surgiu por volta de

2000 aC entre os semitas em alguma parte do territoacuterio entre a Siacuteria Palestina e o Sinai

Acredita-se que povos desta regiatildeo entre o Egito e a Mesopotacircmia tenham simplificado

as escritas cuneiformes e hierogliacuteficas decompondo-as em pouco mais de vinte sons e sinais

elementares Cananeus e feniacutecios teriam sido pioneiros na criaccedilatildeo de alfabetos

Graccedilas aos comerciantes feniacutecios mdash povo que viveu onde hoje se acha o Liacutebanomdash esse

novo sistema se espalhou por todo o mundo antigo A partir deste alfabeto feniacutecio surge o

aramaico antigo hebreu antigo moabita e puacutenico

Aleacutem da liacutengua haacute relatos extra-biacuteblicos cuja semelhanccedila aponta apara aleacutem de uma

mera coincidecircncia Fragmentos de um tablete cuneiforme encontrados nas ruiacutenas da cidade

sumeacuteria de Nippur demonstram haver muitos viacutenculos entre mitos sumeacuterios e histoacuteria biacuteblica

O tablete fala de uma terra pura e numinosa sem malesTambeacutem eacute mencionado Enki

deus das aacuteguas que come uma planta preciosa e proibida e eacute condenado agrave morte De uma de

suas costelas nasce deusa Ninti ldquoa mulher que daacute vidardquo

uma Eva sumeacuteria matildee do gecircnero humano

Os trabalhos de comparaccedilatildeo e anaacutelise entre os textos biacuteblicos e os documentos

encontrados em Mari e Tell El Amarna no Egito revelam que a originalidade da feacute de Israel natildeo

consiste propriamente na criaccedilatildeo mas na interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo de princiacutepios e praacuteticas de

outras culturas

2 O Cristianismo

Assim como na religiatildeo de Israel tambeacutem na tradiccedilatildeo cristatilde ocorre o encontro e

desencontro entre diferentes sociedades e culturas Devemos pressupor ao menos trecircs matrizes

principais ndash judaiacutesmo helenismo e ambiente romano - para compor o cenaacuterio sobre o qual

haveria de transcorrer a histoacuteria do proto cristianismo

O cristianismo natildeo interage apenas com uma corrente de pensamentos e filosofias mas

com povos e culturas Nesta interaccedilatildeo a nova feacute assimila elementos da religiosidade de outras

culturas Procura se adaptar as condiccedilotildees proporcionadas pela diversidade de ambientes Em

ocasiotildees estabelece relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo com outras religiotildees especialmente com o judaiacutesmo

da diaacutespora mormente as sinagogas Natildeo faltam situaccedilotildees onde o cristianismo se vecirc envolvido

em conflitos Em meio a diversidade religiosa e cultural a feacute cristatilde tambeacutem cria situaccedilotildees onde

a competiccedilatildeo se faz notar

Como religiatildeo que sucede ao judaiacutesmo o cristianismo nasce no ambiente judeu Cresce

e se desenvolve no ambiente greco-romano Neste contexto passa a assimilar integrar e

interpretar os elementos soacutecio-culturais e as categorias de pensamento presentes neste meio

Especificamente no que diz respeito ao mundo religioso a tradiccedilatildeo cristatilde precisa fazer frente ao

judaiacutesmo agrave religiatildeo dos misteacuterios aos cultos locais ao gnosticismo e agraves praacuteticas legitimadores

dos poder poliacuteticos Diante de toda essa diversidade religiosa os cristatildeos desenvolvem um

modo peculiar de relaccedilatildeo

ldquoo cristianismo primitivo eacute uma religiatildeo sincreacutetica com vaacuterias raiacutezes O judaiacutesmo natildeo foi o uacutenico

berccedilo do cristianismo primitivo mas havia diversas outras correntes como o gnosticismo

religiotildees misteacutericas gregas e orientais magias astrologia politeiacutesmo pagatildeo histoacuterias de homens

divinos (theioi andres) e seus milagres filosofia helenista popular com a influecircncia do culto

pagatildeo e natildeo judeu e tambeacutem influecircncia da imaginaccedilatildeo e linguagem religiosa helenista na

diaacutesporardquo 433

A proacutepria origem do Evangelho jaacute denuncia a importacircncia e o papel da cultura judaica

Uma cultura marcada pela obstinaccedilatildeo em ser Nesse sentido eacute inquestionaacutevel a pertenccedila

cultural de Jesus As pessoas mencionadas nos evangelhos tambeacutem denunciam uma clara

pertenccedila cultural Os costumes e as tradiccedilotildees revelam elementos proacuteprios da cultura judaica do

mediterracircneo do primeiro seacuteculo da era cristatilde434

Os exemplos as imagens e recursos utilizados por Jesus em sua pregaccedilatildeo evidenciam

traccedilos de uma sociedade marcada pelos valores e normas da tradiccedilatildeo judaica sejam do ponto de

vista religioso ou social

Outra significativa contribuiccedilatildeo cultural para a configuraccedilatildeo do cristianismo vem do

mundo grego Tudo que possa ser agregado agrave compreensatildeo de helenismo encontra aqui o seu

433 Martin Hengel Judaism and Hellenism studies in their encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period p6ss 434 John Dominic Crossan O Jesus Histoacuterico p40

lugar435 A dinacircmica da vida impregnada na sociedade antiga pela presenccedila de haacutebitos e cultura

ligados ao povo da Heacutelade estaacute assentada na tradiccedilatildeo cristatilde

O palco para o surgimento do cristianismo tem como pano de fundo a piedade e o

sentido de vida proacuteprio da cosmovisatildeo grega Os gregos eram tremendamente religiosos

embora desconhecessem o termo religiatildeo para caracterizar suas crenccedilas divindades templos e

ritos

Para os gregos o mundo estaacute povoado de deuses e deusas As tarefas e atividades diaacuterias

estatildeo diretamente implicadas na vontade e destino reservados pelos deuses aos mortais Seus

mitos deuses e templos existem para confirmar o destino da vida determinado pelas divindades

Aleacutem de toda cultura material com suas cidades e templos os gregos legaram uma

contribuiccedilatildeo no niacutevel da compreensatildeo As primeiras tentativas racionais de explicar de onde

viemos quem somos e para onde vamos tem sua origem na especulaccedilatildeo grega A ideacuteia de

morte alma ser humano encontra uma primeira formataccedilatildeo no mundo grego Nesse sentido o

cristianismo natildeo esteve blindado agraves concepccedilotildees e filosofias difundidas ao longo do periacuteodo de

dominaccedilatildeo dos gregos Resquiacutecios do estoicismo e do proacuteprio cinismo podem ser deduzidos de

palavras e accedilotildees ligadas agrave pobreza e sentido da vida

A relaccedilatildeo entre grupos culturais diferentes nem sempre eacute tranquila Nem mesmo as

religiotildees oferecem as condiccedilotildees necessaacuterias para evitar os conflitos Pelo contraacuterio satildeo

justamente as religiotildees ou os motivos religiosos que desencadeiam os conflitos mais acirrados

Aqui basta considerar as razotildees que culminaram na guerra dos macabeus por exemplo Motivos

religiosos tambeacutem contribuiacuteram para a destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem em 70 dC

O cruzamento entre as fronteiras eacutetnicas e culturais entre judeus e natildeo judeus

(gentios) que poderiam ser gregos ou de formaccedilatildeo grega ampliava e dilatava os conceitos de

judaiacutesmo e helenismo Nestas situaccedilotildees histoacutericas vai sendo construiacuteda uma nova identidade

fruto da siacutentese entre elementos eacutetnicos ambientais religiosos e poliacutetico-sociais

Exemplo concreto eacute a pessoa de Paulo Natildeo obstante a forte carga judaica presente no

pensamento do apoacutestolo fatores como o emprego do nome romano o uso do Antigo

Testamento em liacutengua grega e a redaccedilatildeo das epistolas nessa mesma liacutengua revelam tratar-se de

um judeu da diaacutespora Por mais que afirme a sua origem judaica suas palavras e desenvoltura

com a sociedade de seu tempo revelam a siacutentese cultural que se opera em sua proacutepria pessoa

O papel desempenhado pela matriz romana no processo de constituiccedilatildeo do cristianismo

tem sido objeto de especial atenccedilatildeo de teoacutelogos e historiadores A heranccedila romana fornece as

diretrizes estruturais para a formaccedilatildeo do quadro do cristianismo primitivo

435 Compreende-se o helenismo como um meio cultural largamente grego dos periacuteodos heleniacutesticos romano e uma extensatildeo mais limitada do bizantino enquanto que por helenizaccedilatildeo se entende o processo de adoccedilatildeo e adaptaccedilatildeo desta cultura em niacutevel local CHEVITARESE Andreacute Leonardo CORNELLI Gabriele Judaiacutesmo cristianismo helenismo p 7

Por mais que os cristatildeos natildeo admitissem o imperador como um deus vivo se opunham

ao militarismo e ao escravismo a cultura romana exerceu notaacutevel influecircncia na criaccedilatildeo e

desenvolvimento de Igrejas ao longo do Impeacuterio Romano

A relaccedilatildeo entre os primeiros cristatildeos e o Impeacuterio Romano tem sido objeto de inuacutemeros

estudos436 De modo especial recebe destaque o papel desempenhado pelas condiccedilotildees de

mobilidade proporcionadas pelo Impeacuterio Romano A relaccedilatildeo entre cristatildeos e autoridades

cristatildeos e a lei romana tem contribuiacutedo para perceber a especificidade do testemunho cristatildeo

Augusto havia conseguido assegurar a paz em praticamente todo impeacuterio O senado

inclusive lhe prestou uma homenagem com o monumento ara pacis Eacute sabido no entanto que

paz de Augusto consistia nas armas Esta realidade contribuiu significativamente para distinguir

a proposta de paz testemunhada pelos cristatildeos

Outro papel importante na configuraccedilatildeo do cristianismo deve ser atribuiacutedo agraves vias de

comunicaccedilatildeo seja terrestre ou mariacutetima A grande rede de estradas romanas garantia o

deslocamento raacutepido e seguro seja por causa do comeacutercio trabalho ou mesmo para outras

finalidades O deslocamento de peregrinos militares filoacutesofos e missionaacuterios itinerantes satildeo

expressatildeo clara das condiccedilotildees de mobilidade criadas pelo Impeacuterio437 Trata-se de toda uma

infra-estrutura da eacutepoca subjacente ao texto biacuteblico Sem essas condiccedilotildees podemos nos

imaginar que a proacutepria expansatildeo do cristianismo natildeo teria acontecido da maneira como hoje estaacute

documentada

Aleacutem disso a sociedade estruturalmente dividida em honestiores e escravos lanccedilou

novos desafios para a concretizaccedilatildeo da ideacuteia de igualdade e liberdade testemunhada pelos

cristatildeos

Conclusatildeo

O propoacutesito desta breve reflexatildeo eacute evidenciar de alguma maneira que uma religiatildeo natildeo

nasce do acaso Pelo contraacuterio ela eacute resultado de inuacutemeras influecircncias e confluecircncias A Biacuteblia

como livro sagrado de duas religiotildees reflete esse processo Nela estatildeo presentes as tensotildees e

contradiccedilotildees decorrentes do processo de assimilaccedilatildeo adaptaccedilatildeo cooperaccedilatildeo competiccedilatildeo e

conflito desencadeados na interaccedilatildeo entre diferentes culturas

Mesmo que no decorrer do trabalho natildeo tenham sido fornecidos maiores detalhes da

influecircncia e do processo de constituiccedilatildeo da religiatildeo de Israel ou do proacuteprio cristianismo haacute

evidecircncias suficientes para caracterizar o processo de assimilaccedilatildeo de elementos culturais dos

mais diferentes povos no processo de configuraccedilatildeo destas religiotildees De certa maneira a proacutepria

abrangecircncia do tema proposto condiciona esta abordagem mais geral e geneacuterica

436 Ekkehard Stegemann Wolfgang Stegemann Histoacuteria Social do Protocristianismo p13ss 437 Giuseppe Barbaglio Satildeo Paulo o homem do evangelho p56

No entanto natildeo haacute duacutevida de que o diagnoacutestico bem como a compreensatildeo do processo

e dos elementos culturais envolvidos no surgimento do judaiacutesmo e cristianismo podem nos

ajudar a compreender a dinacircmica do ambiente religioso na atualidade Nenhuma religiatildeo eacute tatildeo

autocircnoma e auto-suficiente que natildeo apresente aspectos e caracteriacutesticas que jaacute natildeo estejam

presentes em outras formas de manifestaccedilatildeo A rigor nada eacute exclusivo e uacutenico

Ainda assim cada cultura contribui de uma maneira peculiar Da mesma forma cada

religiatildeo incorpora dados culturais na medida em que estes podem ser enquadrados na sua

cosmovisatildeo crenccedilas e expectativas Os mesmos elementos da cultura instrumentalizados e

absorvidos pelo cristianismo estiveram tambeacutem agrave disposiccedilatildeo de outras praacuteticas religiosas aliaacutes

abundantes no acircmbito do Impeacuterio Romano

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREGO DE LACY J M Os livros profeacuteticos Satildeo Paulo AM Ediccedilotildees 1998 295 p BARBAGLIO Giuseppe Satildeo Paulo o homem do evangelho Petroacutepolis Vozes 1993 525 p CHEVITARESE Andreacute Leonardo CORNELLI Gabriele Judaiacutesmo cristianismo helenismo ensaios sobre interaccedilotildees culturais no Mediterracircneo Antigo Itu Ottoni Editora 2003 138 p CROSSAN John Dominic O Jesus Histoacuterico a vida de um Camponecircs Judeu do Mediterracircneo Rio de Janeiro Imago 1994 543 p HENGEL Martin Judaism and Hellenism studies in their encounter in Palestine during the Early Hellenistic Period Philadelphia Fortress Press 1974 HORTON Michael O Cristatildeo e a Cultura Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 1998 IZIDORO Joseacute Luiz Interaccedilatildeo Conflitos e Desafios na Identidade do Cristianismo Em httpwwwdhiuembrgtreligiaopdf0720Jose20Luiz20Izidoropdf Acessado em 15062009 RODRIGUES Gabriella Barbosa Arqueologia Biacuteblica e construccedilatildeo de identidades notas acerca da pesquisa arqueoloacutegica nas chamadas terras da Biacuteblia Disponiacutevel em wwwfclarunespbrecBANCO DE DADOSXXIII SECTEXTOSARTIGOS PDFrodriguespdf Acessado 15062009 SAHLINS Marshall David Cultura e razatildeo praacutetica Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 230 p SCHWANTES Milton Histoacuteria de Israel v 1 local e origens 3 ed S Leopoldo Oikos 2008 141 p STEGEMANN Ekkehard W STEGEMANN Wolfgang Histoacuteria social do protocristianismo os primoacuterdios no judaiacutesmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterracircneo Satildeo Leopoldo Sinodal Satildeo Paulo Paulus 2004 596 p SUNG J Mo SILVA Josueacute C da Conversando sobre eacutetica e sociedade 4 ed Petr Vozes 1998 117 p ZENGER Erich Introduccedilatildeo ao Antigo Testamento Satildeo Paulo Loyola 2003 557 p

Trabalho com mulheres negras no Quilombo do ValongosTijucas-SC

Rita de Caacutessia Maraschin da Silva438

ldquoNatildeo esperava que fosse tatildeo bom

Muitas coisas natildeo sabemos aproveitar

Era o leite o queijo e deu

Precisamos de ajuda para fazer uma

casa para poder produzir

Vender e fazer algum dinheiro para ajudar

Se a gente soacute fizer o Curso e ficar parado

Natildeo vamos tirar muito proveito

Por isso eacute importante ir adianterdquo

Ester Bertolina Caetano ndash

moradora do Valango

1 Origem de valongo

A falta de documentos eacute um obstaacuteculo difiacutecil de ser superado para informar a origem

dos primeiros povoadores negros do Sertatildeo dos Valongos Mas haacute informaccedilotildees coletadas por

pesquisadores439 junto a antigos moradores segundo as quais o lugar teria ldquoservido de ponto de

convergecircncia entre os ex-escravos de regiotildees vizinhasrdquo A terra era a base geograacutefica a partir da

qual os ex-escravos puderam tentar viver sem trabalhar para ex-senhores ou viver agrave miacutengua nas

cidades Haacute relatos de que as terras do sertatildeo foram sendo tomadas pouco a pouco pela

populaccedilatildeo de origem africana Quem chegava ia adquirindo os locais dos pontos mais afastados

onde a madeira o grande

atrativo para os

exploradores jaacute natildeo era mais

cobiccedilada A ocorrecircncia da

malaria pode ter sido outro

fator que afastou a

populaccedilatildeo branca Agrave

populaccedilatildeo negra com menos

438 Secretaria Executiva do CENTRO DE ELABORACcedilOtildeES ASSESSORIA E DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS ndash

CESAP (ORGANIZACcedilAtildeO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PUacuteBLICO)Bacharelada do Curso de Direito no Curso Superior da Faculdade de Ciecircncias Sociais de Florianoacutepolis SCCESUSC 439 Mestrado em Antropologia SocialUniversidade Federal de Santa Catarina UFSC Brasil Tiacutetulo DE NEGROS A ADVENTISTAS EM BUSCA DA SALVACAO ESTUDO DE UM GRUPO RURAL DE SANTA CATARINA Ano de Obtenccedilatildeo 1990

poder de mobilidade restou se fixar no sertatildeo O auxilio mutuo teria propiciado a superaccedilatildeo de

doenccedila Em 2004 Comunidade de

Igreja Adventista ndash comunidade dos Valongos ndash Maio2009

Valongo obteve a Certidatildeo de Auto-Reconhecimento emitida pela Fundaccedilatildeo Cultural Palmares

(Ministeacuterio da Cultura ndash Governo Federal) na qual eacute considerada como remanescente das

comunidades dos quilombos Entretanto o processo de regularizaccedilatildeo fundiaacuteria natildeo teve por

enquanto o consenso necessaacuterio para dar prosseguimento agraves etapas requeridas

Em contraste com a maioria de negros rurais brasileiros e da regiatildeo os valonguenses que eram

catoacutelicos ateacute os anos trinta do seacuteculo passado converteram se na sua maioria em membros da

Igreja Adventista do Seacutetimo Dia Hoje praticando a religiatildeo adventista lutam para manter a

terra e desenvolver atividades que garantam a continuidade da vida autocircnoma que os

antepassados conquistaram

A comunidade de Valongo eacute composta por trecircs famiacutelias-tronco originaacuterias praticamente

todos os membros satildeo parentes entre si O casamento endoacutegeno eacute o preferido pelo grupo que

convive com uma loacutegica tradicional onde a terra eacute pensada como terra de trabalho e de moradia

As terras familiares nestes termos seriam compartilhadas pela parentela dentro de uma

perspectiva comunal Entretanto a praacutetica de venda de terras tem sido comum passando a ser

parte das novas estrateacutegias econocircmicas dos valonguenses transgredindo a loacutegica anterior dos

mais velhos regida pelas regras da parentela e da heranccedila para a constituiccedilatildeo de novas famiacutelias

Os valonguenses apresentam trecircs atributos distintivos que os identificam sendo a

religiatildeo que professam um deles a doutrina e os ritos religiosos impregnam a rotina comunitaacuteria

no territoacuterio do sertatildeo e extrapolam suas fronteiras reforccedilando externamente laccedilos sociais com

outros integrantes da igreja Nessas redes externas de sociabilidade propiciadas pela vida

religiosa os outros dois atributos caracteriacutesticos ndash etnia e regras de parentesco ndash se diluem em

relaccedilatildeo agrave identidade grupal prevalecendo agrave identidade religiosa para os valonguenses

A nossa inserccedilatildeo nesta Comunidade tem duas atitudes que se destacam - busca de

aprender com as mulheres as praacuteticas de organizaccedilatildeo articulaccedilatildeo e proposiccedilatildeo junto agrave

comunidade do municiacutepio de suas culturas agriacutecolas e produtos artesanais que produzem na

forma coletiva - e buscar atraveacutes de instrumentos pedagoacutegicos criacuteticos novas teacutecnicas de

empreendedorismo que combinem a suas experiecircncias religiosas e os costumes das tradiccedilotildees

culturais afro

Deste modo realizamos

uma accedilatildeo de capacitaccedilatildeo e

formaccedilatildeo de novas

teacutecnicas empreendedoras

combinadas com a

realidade das praacuteticas

religiosas adventistas que

demarcam o dia-a-dia de

cada valonguense

Momento de

confraternizaccedilatildeo ndash

Comunidade dos Valongos

ndash Maio2009

Ressaltando que o papel das mulheres hoje satildeo as lideranccedilas que articula decide e empreende

as accedilotildees para fora da Comunidade A elas preferencialmente jaacute natildeo compete o trabalho no

campo este eacute um serviccedilo dos homens Mas podemos perceber que o poder matriarcal eacute

marcante no processo de construccedilatildeo da identidade familiar e coletiva da Comunidade

2 Capacitaccedilatildeo para fortalecimento das tecnologias valonguense

Este projeto junto a Comunidade do Valongo esta sendo desenvolvido para o

fortalecimento das lideranccedilas entre as mulheres com a compreensatildeo do como se fortalece as

organizaccedilotildees sociais a qualificaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas com vistas ao exerciacutecio qualificado

da cidadania com equidade de gecircnero etnia e geraccedilatildeo rumo a uma sociedade sem exclusatildeo

discriminaccedilatildeo e exploraccedilatildeo Como mantendo a identidade negra e a auto-estima de ser mulher

fortalecer a solidariedade humana no respeito agraves diversidades e na sustentabilidade social

econocircmica e ambiental

Para este campo de trabalho na Comunidade do Valongo foi definida uma aacuterea

prioritaacuteria da Organizaccedilatildeo Soacutecio-econocircmica com Qualificaccedilatildeo Social e Profissional visando a

Geraccedilatildeo de Cidadania e Iniciativas de Trabalho e Renda com especial ecircnfase para as Mulheres

e Jovens

Combinar processo

educativo e formaccedilatildeo

profissional eacute uma meta

que busca valorizar as

iniciativas que tecircm sido

realizadas na

comunidade O problema

de boa parte delas estaacute no

ponto de partida Como

muitas vezes os

promotores

Reuniatildeo de Planejamento

ndash Comunidade dos Valongos ndash Maio2009

destas iniciativas natildeo tecircm vinculaccedilatildeo alguma com o puacuteblico que pretendem atingir a accedilatildeo

muitas vezes eacute praticamente nula Entatildeo a primeira medida eacute conhecer no sentido mais

profundo da palavra as pessoas para as quais a iniciativa estaacute sendo dirigida a segunda eacute natildeo

subestimar jamais capacidade de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo da realidade por estes grupos e

uma terceira eacute potencializar esta capacidade na forma de iniciativas concretas na busca de

soluccedilotildees para o fortalecimento da dignidade destas pessoas envolvidas

O projeto eacute desenvolvido com mulheres das diferentes faixas etaacuterias da comunidade

extremamente vulneraacuteveis no acircmbito soacutecio-econocircmico e organizativo natildeo soacute pela discriminaccedilatildeo

e opressatildeo proacutepria das relaccedilotildees desiguais de gecircnero numa sociedade machista como tambeacutem

no que se refere a sua inserccedilatildeo no mercado de trabalho e consequentemente a falta de acesso agrave

condiccedilotildees dignas de vida quanto ao aspecto econocircmico

A proposta eacute desenvolver trabalhos junto a mulheres respeitando seus valores e sonhos

do meio rural mas conjugando com as relaccedilotildees que satildeo estabelecidas com o puacuteblico urbano

onde aparecem as dificuldades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho na maioria das vezes em

funccedilatildeo da baixa escolaridade e pelas exigecircncias e responsabilidades familiares ndash filhos

Esta opccedilatildeo se daacute a partir de um preacute-diagnostico mostrando que as mulheres satildeo

oprimidas sofrem violecircncia (fiacutesica moral e psicoloacutegica) com baixa escolaridade e que a

maioria dos cursos e atividades oferecidas geralmente eacute incompatiacutevel com suas possibilidades

de participaccedilatildeo Estamos conjugando accedilotildees de capacitaccedilatildeo (qualificaccedilatildeo) com a organizaccedilatildeo

comunitaacuteria de base ampliando assim as possibilidades de geraccedilatildeo de trabalho e renda

juntamente com o exerciacutecio da cidadania Este trabalho tem por objetivo a re-inserccedilatildeo social

ldquointegralrdquo das mulheres numa perspectiva de apoio na reconstituiccedilatildeo da sua auto-estima

atraveacutes da revalorizaccedilatildeo de gecircnero pessoal comunitaacuteria profissional cultural e organizativa

agregada a accedilotildees voltadas para a geraccedilatildeo de trabalho e renda

3 Planejamento e execuccedilatildeo de Metas ndash produccedilatildeo e decisatildeo participativa

A construccedilatildeo de agenda de trabalho num coletivo de mulheres eacute sempre um exerciacutecio que

requer muita habilidade e atenccedilatildeo redobrada com o objetivo de contemplar todas as

intencionalidades e vontades Mas aqui estaacute o que foi aprovado e implementado neste 1ordm

semestre de 2009 na Comunidade do Valongo

COMUNIDADE DO VALONGO - PORTO BELOSC METASANO METASATIVIDADESPUBLICO RESULTADOS Fazer visitas agraves famiacutelias para diagnosticar com maior precisatildeo a situaccedilatildeo e as demandas de trabalho junto agraves mulheres e sensibilizaacute-las para as atividades nas comunidades

Realizaccedilatildeo de visitas agrave 100 famiacutelias para sensibilizar as mulheres a participar das atividades do projeto como tambeacutem diagnosticar melhor a situaccedilatildeo em que vivem estas mulheres

Sensibilizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo das mulheres para participarem nas atividades em suas comunidades e demais espaccedilos

Realizaccedilatildeo de dois cursos (24h cada) de capacitaccedilatildeo profissional de pintura em tecido

volvendo 40 participantes (em duas turmas) enRealizaccedilatildeo de um curso (24h) de ornamentaccedilatildeo e personalizaccedilatildeo de vidros e embalagens para doces e geleacuteias com 40 participantes (em duas turmas)

Capacitar 100 mulheres para desenvolver atividades com artesanato em pano palha vidro e confecccedilatildeo para venda dos produtos na feira e em outros locais Realizaccedilatildeo de curso (24h) de produccedilatildeo de

artesanato em palha e materiais reciclados com 20 participantes

100 mulheres capacitadas profissionalmente organizadas em grupos com desenvolvendo iniciativas de auto-gestatildeo eou inseridas em atividades geradoras de trabalho e renda a partir do exerciacutecio dos saberes adquiridos atraveacutes do processo de capacitaccedilatildeo

Realizaccedilatildeo de um curso (24h) de capacitaccedilatildeo profissional para a produccedilatildeo de doces e geleacuteias de maracujaacute e outras frutas envolvendo 40 mulheres (em duas turmas)

Capacitar 40 mulheres para atuar na transformaccedilatildeo do maracujaacute e de outras frutas locais em doces geleacuteias e sucos para o autoconsumo e comercializaccedilatildeo na feira e em estabelecimentos comerciais do municiacutepio

Realizaccedilatildeo de dois (02) intercacircmbios para troca de experiecircncias (16h cada) sobre a produccedilatildeo de doces e geleacuteias de frutas envolvendo 10 mulheres por atividade

Capacitaccedilatildeo de 40 mulheres para que possam de forma coletiva eou individual produzir doces e geleacuteias de qualidade para o autoconsumo e para comercializaccedilatildeo

Envolver 80 mulheres em oficinas de gestatildeo de empreendimentos solidaacuterios

Realizaccedilatildeo de 5 oficinas (8h cada) sobre gestatildeo de grupo e administraccedilatildeo do empreendimento com participaccedilatildeo de 15 mulheres em cada atividade

Mulheres capazes de gerir os seus empreendimentos de forma qualificada

Dar acompanhamento aos grupos comunitaacuterios e aos empreendimentos em processo de constituiccedilatildeo

Realizaccedilatildeo de 6 reuniotildees com as mulheres para assessorar o seu processo organizativo ao niacutevel das comunidades (8h cada) com participaccedilatildeo de 15 mulheres por atividade

Constituiccedilatildeo de grupos por comunidade para desenvolvimento de atividades coletivas

Envolver 40 mulheres em oficinas sobre

Realizaccedilatildeo de trecircs (03) oficinas sobre cooperaccedilatildeocooperativismo e associativismo (8h

Construccedilatildeo das bases para a organizaccedilatildeo de pequenas

cooperativismo e associativismo

cada) com 15 participantes por oficina cooperativas e associaccedilotildees

Realizar um encontro municipal das mulheres para discutir a sua organizaccedilatildeo e participaccedilatildeo nos diferentes espaccedilos da sociedade

Realizaccedilatildeo de um encontro municipal de mulheres (8h) com a participaccedilatildeo de 80 mulheres

Contribuir para a conscientizaccedilatildeo das mulheres quanto a importacircncia do seu papel na sociedade

Envolver 50 mulheres em encontros temaacuteticos para discussatildeo de temas de seu interesse (sauacutede sexualidade etc)

Realizaccedilatildeo de trecircs (02) encontros temaacuteticos (8h cada) com a participaccedilatildeo de 25 mulheres em cada encontro

Contribuir para ampliar o acesso das mulheres a informaccedilotildees sobre seus direitos com vistas ao exerciacutecio de cidadania

5 Resultados alcanccedilados

A Comunidade de Valongo como afirmamos eacute composta por trecircs famiacutelias-tronco

originaacuterias onde a relaccedilatildeo de parentesco eacute fundamental a continuidade dos sonhos e da certeza

de que a terra objeto de valor e de garantia de vida (produz alimentos de subsistecircncia e gera

economia de trocas) entre si A terra eacute pensada como terra de trabalho e de moradia Entretanto

como tambeacutem jaacute afirmamos estaacute sendo costumeira a praacutetica de venda de terras para uma ldquoclasse

meacutediardquo que aproxima da comunidade com profunda violecircncia os costumes e modos da vida

urbana (cercas eleacutetricas festas e bailes proibiccedilotildees de ir e vir etc) Parecem atitudes relevantes

considerando que estamos num mundo globalizado poreacutem aqui aparecem o confronto real e

criacutetico entre as novas tecnologias a concepccedilatildeo de hierarquia e o que seja valores E ainda

temos daqueles que ldquoacabam de chegarrdquo um total desrespeito a um povo quilombola que ali se

constituiu deste o seacuteculo XIX que tem sua religiosidade violada principalmente no silecircncio

atitude importante e significativa para o culto aos saacutebados e na alegria do coral da Comunidade

Mas poderiacuteamos relevar estas agressotildees secirc esta Comunidade tivesse direitos prioritaacuterios

sendo violados por exemplo de acesso a cidade transporte e poliacuteticas de sauacutede e educaccedilatildeo de

faacutecil acesso Tudo isso para ser alcanccedilado tem que ser superado depois de uma caminhada de

10 km iniciais para chegar agrave margem do periacutemetro urbano da cidade mais proacutexima Tijucas A

Porto Belo cidade sede do municiacutepio satildeo 40 km impossiacutevel de acessar sem a colaboraccedilatildeo de

ldquocaronardquo ocircnibus escolar ou de veiacuteculos de compadres e pessoas solidaacuterias Diante deste cenaacuterio

podemos concluir que apontar novas tecnologias para os valonguense deve antes considerar

como parte destas novas estrateacutegias natildeo transgredir a loacutegica anterior dos mais velhos regida

pelas regras da parentela e da heranccedila para a constituiccedilatildeo de novas famiacutelias Eis um desafio a ser

perseguido antes de acusar quaisquer obscurantismos preacute-cientiacuteficos

Um processo vivido nesta experiecircncia de capacitaccedilatildeo e formaccedilatildeo profissional vivido

junto as mulheres negras do Valongo concluiacutemos do como foi discutir ndash entre noacutes os

promotores da accedilatildeo - com as lideranccedilas das organizaccedilotildees do Municiacutepio e do Movimento

Sindical Estes tinham compreensotildees interpretaccedilotildees e definiccedilotildees que tivemos que refletir ndash

antesdurantedepois ndash do processo para ter certezas que os objetivos seriam alcanccedilados Muitas

destas leituras estatildeo marcadas por experiecircncias histoacutericas de preconceitos inseguranccedilas e

desconhecimento do que o ldquooutrordquo sonha deseja e possui como seus valores e garantias para se

garantir nesta realidade ndash a Comunidade do Valongo Aqui tivemos ao longo do processo que

alimentar conversar entre os monitores e com a lideranccedilas das mulheres com o objetivo de

atingir aos ldquodesejosrdquo e ldquoanseiosrdquo das mulheres e jovens ali ndash entusiasmadas e sonhadoras de

novas alternativas sendo apresentadas

Neste cenaacuterio tambeacutem esteve sempre presente como marco regulatoacuterio a experiecircncia

religiosa da tradiccedilatildeo Adventista do 7ordm Dia Tudo deve acontecer com a recomendaccedilatildeo e

aprovaccedilatildeo do Pastor e da Comunidade reunida Portanto um fato que demarcou ndash quando e

como deveria acontecer o Curso eacute o ldquodiardquo O saacutebado natildeo poderia ser por ser este um dia

consagrado ao dever religioso e as praacuteticas do culto e do louvor atraveacutes de um lindo coral de

vozes em toda a Comunidade participam de forma alegre e festiva

Ao concluir este Projeto podemos afirmar que tivemos uma liccedilatildeo de como devemos ter

ldquocuidados pedagoacutegicosrdquo entre aquilo que projetamos (estrateacutegias) e o que devemos ldquocombinar

no local e suas singularidadesrdquo

Pensar progresso de novas tecnologias como fonte de empreendedorismo junto a

Comunidades Negras Rurais e em particular com o recorte histoacuterico de serem de matriz

quilombola requer uma atenccedilatildeo a esta realidade de conviver com as demandas proacuteprias e

pontuais do seu cotidiano e com destaque para o valor da mulher ndash sistema matriarcal no

conjunto das decisotildees comunitaacuterias

Referecircncias Bibliograacuteficas UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAUFSC Brasil Tiacutetulo De Negros a Adventistas em busca da Salvaccedilatildeo estudo de um grupo de Santa Catarina Ano de Obtenccedilatildeo 1990 NUacuteCLEO DE ESTUDOS NEGROSNEN Revista Pedagogia da Vida ndash Educaccedilatildeo e Formaccedilatildeo Profissional para Comunidades Negras em Santa Catarina FlorianoacutepolisSC 2002 CENTRO DE ELABORACcedilOtildeES ASSESSORIA E DESENVOLVIMENTO DE PROJETOS ndash CESAP Projeto de Geraccedilatildeo de Cidadania Trabalho e Renda para Mulheres de Comunidades em Situaccedilatildeo de Vulnerabilidade Social nos Municiacutepios da Palhoccedila Tijucas e Itajaiacute atraveacutes da Organizaccedilatildeo e da Capacitaccedilatildeo Social e Profissional FlorianoacutepolisSC 2008 Fotos satildeo autorizadas pelo Grupo de Mulheres para divulgaccedilatildeo de suas Atividades Formativas

ANEXO

PROGRAMACcedilAtildeO DO 22ordm CONGRESSO ANUAL DA SOTER 2009

TEMA ldquoRELIGIAtildeO CIEcircNCIA E TECNOLOGIArdquo

67 ndash Segunda ndash Feira 77 terccedila ndash feira 87 quarta ndashfeiraMANHAtilde 7h30 ndash Cafeacute 8h30 ndash Palestra 10h ndash Cafeacute 10h30 ndash Palestra

Humanismo ciecircncia e tecnologia 8h30 Contribuiccedilatildeo cientiacutefica Luiacutes Pinguelli Rosa (UFRJ) 10h30 Abordagem teoloacutegica Maacutercio Fabri dos Anjos Fernando Altemeyer Jr

Mito religiatildeo e cide saberes 8h30 Contribuiccedilatildeo cientHilton Japiassu 10h30 Abordagem teoloacutegJoseph Comblin Ivone Gebara

TARDE 14h Reiniacutecio dos trabalhos 16h Cafeacute 16h30 Atividades 18h30 ndash Jantar

15 h reuniatildeo da Diretoria 16h Reuniatildeo com os Conselheiros Regionais

14h GTsComunicaccedilotildees 1 Filosofia da Religiatildeo (coord F Senra ndash PUC-Minas) 2 Religiatildeo e Educaccedilatildeo Ensino Religioso (coord Afonso ML Soares-PUCSP - Sergio Junqueira-PUCPR) 3 A Biacuteblia e suas leituras orante literaacute-ria popular e cientiacutefica (coord ABIB) 4 Teologia Universidade e Sociedade (coord J Decio Passos ndash PUCSP - PUC-Rio) 5 Literatura Arte e Religiatildeo (coord Waldecy Tenoacuterio-USP MC Bingemer-PUC-Rio) 6 Gecircnero e Religiatildeo (coord Maria Inecircs Milleacuten algueacutem EST) 7 Teologias Reformadas (R Cavalcante-Mackenzie Rudolph ndash EST) 16h30 - Reuniotildees das Regionais

14h GTsComun1 Religiotildees de asce indiacutegena (coordUnicap) 2 Cristianismo hicontemporaneidad3 Novos Movimen(coord Brenda Ca4 Religiatildeo ciecircnci(coord Eacuterico Hamalgueacutem Unisinos)5 Ciecircncia religiatildeo(coord Gilbraz A6 Religiatildeo Econo(coord Marcio TaPUCCamp) 7 Interculturalidad 18h ndash Assembleacuteia

NOITE Atividades

19h30min Abertura solene 20h Conferecircncia inaugural Religiatildeo ciecircncia e tecnologia Eduardo Rodrigues da Cruz PUCSP Confraternizaccedilatildeo

19h30h Panorama Teoloacutegico Contemporacircneo desafios NorteSul Peter Casarella ndash DePaul University EUA 21h Grande Final do Concurso de Teses Soter-Paulinas

20h ndash Espiritualidconfraternizaccedilatildeo