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Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática
Sociedade Brasileira de
História da Matemática
Peculiaridades do Processo Histórico de Desenvolvimento da
Matemática
Peculiarities of the Historical Process of the Development of Mathematics
José Roberto Boettger Giardinetto1
Resumo
O trabalho fundamenta-se na pedagogia histórico-crítica, perspectiva marxista em Educação. Em função dessa fundamentação teórica, o
presente trabalho apresenta como pressupostos norteadores alguns posicionamentos: o saber escolar retrata as “formas mais desenvolvidas
em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente” (SAVIANI, 2003, p. 09); a referência para realização do trabalho educativo
escolar é garantir a apropriação das formas mais desenvolvidas do conhecimento resultante do maior grau de transformação da realidade
natural em realizada humanizada considerando a totalidade histórica do desenvolvimento das sociedades; os conceitos escolares hoje
presentes na grade curricular revelam na lógica de sua produção, os aspectos históricos essenciais ao longo de seu devir; a universalidade do
conhecimento é conseqüência do processo histórico de desenvolvimento da matemática, considerando a história na sua forma objetiva
efetivamente realizada. A partir desses pressupostos norteadores, o objetivo deste trabalho é tecer considerações sobre algumas
particularidades da dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento matemático quanto à sua constituição da produção em
contextos sociais diversos até a sua sistematização, a forma escolar hoje constituída, a saber: 1) a diversidade da produção do conhecimento
matemático apresenta, em alguns casos, uma determinada similaridade; 2) deve-se considerar o fato de que na lógica processual do
desenvolvimento da Matemática até sua universalização pode haver conhecimentos matemáticos que não tenham sido incorporados à forma
hoje conhecida; 3) a dinâmica histórica da produção da matemática é universal não cabendo denominar a matemática escolar de “matemática
ocidental”. Dessas considerações, o trabalho ainda apresenta algumas reflexões sobre uma especificidade do caráter universal da Matemática
presente na versão escolar hoje constituída. Entendendo o caráter universal da Matemática em sua forma escolar como uma conseqüência do
processo histórico objetivamente realizado, apresentamos uma reflexão quanto à sua qualidade de representar, em sua sistematização, um
conceito cuja gênese resulta da atividade humana realizada em contextos sociais diversos.
Palavras-chave: Educação Matemática. Perspectiva marxista em Educação. História da Matemática. Multiculturalismo
Abstract
This work is based on the historical critical pedagogy, Marxist perspective in Education. Due to this theoretical basis, the actual scientific
manifestation is developed based on some concepts: scholastic knowledge portraits the „more developed ways in which the objective
knowledge historically produced is expressed” (SAVIANI, 23,p.09) ; the reference for the realization of the educational scholastic work is to
guarantee the appropriation of the most developed ways of the knowledge resulting from the highest degree of transformation of the natural
reality into human reality, considering the whole history of the development of the societies; the scholastic concepts present nowadays on
the curricular subjects reveal in the logic of its production, the historical aspects, which are essential along its course; the universality of
mathematics knowledge is a consequence of the historical process of the development of mathematics, considering the history in its
objective form effectively realized. Taking into account these considerations, the objective of this study is to develop considerations about
1 Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru. E-mail: [email protected]
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some peculiarities of the procedural dynamics of the development of the knowledge about mathematics in relation to its productive
constitution in several social contexts until its systematization, which is the scholastic form constituted nowadays, as follows: 1) diversity of
the production of knowledge about mathematics presents, in some cases a specific similarity; 2) it must be considered the fact that in the
procedural logic of the development of Mathematics until its universalization, there may be some knowledge about mathematics which have
not been incorporated to the forms knows nowadays; 3) the historical dynamics of the production of mathematics is universal , not being
labeled as “occidental mathematics”. From the above considerations, this communication still presents some reflections about a specificity of
the universal aspect of the Mathematics present in the scholastic version nowadays. Analyzing the universal aspect of Mathematics in its
scholar version as a consequence of the historical process objectively realized, it is presented a reflection concerning its quality of
representing, in its systematization, a concept which origin results from the human activity employed in various social contexts.
Key-words: Mathematics Education. Marxist Perspective in Education. History of Mathematics. Multiculturalism
Considerações iniciais
A referência teórica que norteia este trabalho é a perspectiva marxista em Educação
(SAVIANI, LOMBARDI, 2005), hoje presente na denominada “Pedagogia Histórico-crítica”
(PHC) (SAVIANI,2007, 2003); DUARTE, FONTE, 2010; DUARTE,2003).
Segundo esta perspectiva, o saber escolar retrata as “formas mais desenvolvidas em que
se expressa o saber objetivo produzido historicamente” (SAVIANI,2003,p. 09). A expressão
“mais desenvolvida” (ou “mais complexa”) apresenta como referência, o conhecimento
resultante do maior grau de transformação da realidade natural em realizada humanizada,
conhecimento este, processado no decorrer da história social humana.
Em função disto, o saber escolar é considerado a mediação entre o saber cotidiano e o
saber próprio da ciência, da filosofia, da arte, da moral , da ética e da política)
(HELLER,2002, DUARTE,2003). A referência para realização do trabalho educativo escolar
é garantir a apropriação das tais formas mais desenvolvidas do conhecimento. Como tal, deve
retratar “as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade”
(DUARTE,2003,p.35). Sua apropriação visa garantir que o estágio de desenvolvimento já
atingido pelo gênero humano (a “categoria que expressa o resultado da história social humana
– a história da atividade objetivadora dos seres humanos”, segundo Duarte(1993,p.15) de
forma que este se perpetue, criando as bases para seu progressivo desenvolvimento para além
do estágio atual atingido.
Os conceitos escolares hoje presentes na grade curricular revelam na lógica de sua
produção, os aspectos essenciais ao longo de seu devir, aqueles conhecimentos que se
“firmaram como fundamentais”, os “clássicos”:
Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi
proposto. E por isso que a cultura greco-romana é considerada clássica: embora tenha sido
produzida na Antigüidade, mantém-se válida, mesmo para as épocas posteriores. De fato,
ainda hoje reconhecemos e valorizamos elementos que foram elaborados naquela época. É
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neste sentido que se considera Descartes um clássico da Filosofia moderna. Aqui o clássico
não se identifica com o antigo, porque um moderno é também considerado um clássico.
Dostoievski, por exemplo – segundo a periodização dos manuais de História, um autor
contemporâneo – é tido como um clássico da literatura universal. Da mesma forma, diz-se que
Machado de Assis é um clássico da literatura brasileira, apesar de o Brasil ser mais recente até
mesmo que a Idade Média, quanto mais que a Antigüidade. Então, o clássico não se confunde
com o tradicional. (SAVIANI, 2003, p.101)
Considerando o processo histórico-social de produção da Matemática como um
momento específico do desenvolvimento do gênero humano, os conhecimentos aí gerados
que se “firmaram como fundamentais”, e como tal, são “clássicos”, nas palavras de
SAVIANI(2003), são: a ampliação dos campos numéricos, a álgebra, a geometria, a
trigonometria, a análise combinatória, enfim, os conteúdos matemáticos que hoje compõem a
grade curricular de Matemática nos anos escolares.
Tendo como base tais concepções oriundas de referencial teórico específico acima
enunciado, o objetivo deste trabalho é tecer considerações acerca de algumas peculiaridades
da dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento matemático quanto à sua
constituição até a forma escolar hoje constituída. Além disso, este trabalho apresenta também
uma reflexão sobre a universalidade da matemática na medida em que as considerações sobre
as peculiaridades remetem a uma reflexão sobre a universalidade da matemática intrínseca à
sua apropriação mediante a atividade escolar.
Reflexões sobre a dinâmica processual do desenvolvimento da matemática
Entendemos que dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento
matemático quanto à sua constituição até a forma escolar apresenta três particularidades:
Uma primeira particularidade: existem momentos desta dinâmica em que se constata
uma similaridade na diversidade da produção matemática isto é, em diferentes contextos
sociais, em épocas históricas distintas, o conhecimento matemático resultante em cada
contexto social apresenta similaridades para com outros.
Uma segunda particularidade: é preciso considerar a hipótese de haver ao longo do
desenvolvimento do conhecimento matemático, a ocorrência de episódios que podem ou não,
terem sido contemplados na lógica hoje presente na versão escolar, sistematizada e
universalizada. Tal fato deve ser considerado em função da dinâmica processual do
desenvolvimento do conhecimento matemático presente na versão escolar.
Por fim, uma terceira particularidade, de certa forma decorrente das duas primeiras. Na
história do desenvolvimento do conhecimento matemático, até suas formas mais
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desenvolvidas presente na esfera escolar, não ocorreu uma “ocidentalização” da matemática
porque os conhecimentos progressivamente incorporados não são apenas aqueles diretamente
associados às nações européias. Assim, não é correto afirmar que a matemática escolar é a
matemática “do mundo ocidental”. Rotular a matemática constituída de “matemática
ocidental” distorce sua historicidade.
É possível agora desenvolver uma reflexão sobre cada uma das particularidades.
Quanto à primeira peculiaridade:
Conhecimentos matemáticos aparentemente distintos revelam não ser “diferentes
matemáticas”, mas sim, diferentes manifestações “da” matemática. Diferentes contextos
sociais, em épocas históricas distintas, produzem, em decorrência de atividades específicas,
conhecimentos matemáticos similares. O processo histórico de desenvolvimento da
matemática evidencia uma similaridade na diversidade:
É no processo histórico (das várias estruturas sociais que se sucedem) que vai sendo
produzido o conhecimento matemático elaborado. Por mais diferenciado que sejam “as
matemáticas” dos diferentes grupos sociais, o cerne fundamental de todas essas várias
matemáticas, que parecem à primeira vista como próprias do grupo, são mero produto da
mesma estrutura básica da matemática já elaborada histórica e
socialmente.(GIARDINETTO,1999, p.07)
Ifrah(1989,1994,2000), ao ir evidenciando a lógica processual dos sistemas de
numerações, seus avanços e limites, até a forma mais desenvolvida, o sistema numérico
hindu-arábico, percebe a existência de uma similaridade na diversidade da produção do
conhecimento, pois chega a afirmar:
É impressionante observar como, em suas buscas e tentativas, homens muito distantes no
tempo e no espaço tomaram às vezes os mesmos caminhos e desembocaram em resultados
inteiramente similares. Mas seria absurdo pensar que estes povos se copiaram uns aos outros:
como vimos, eles simplesmente foram colocados diante de condições iniciais rigorosamente
idênticas. O que explica por que sociedades sem nenhum contato entre si tenham chegado,
simultaneamente ou em épocas diferentes, a resultados semelhantes: domínio do fogo,
descoberta dos números, progresso do urbanismo e da tecnologia, desenvolvimento da
agricultura, tratamento e liga dos metais, invenção da roda ou do arado... (IFRAH,1989,p.180)
Esta similaridade na diversidade ocorre em alguns casos a partir da constatação de uma
fase antropomórfica na produção do conhecimento matemático presente em contextos sociais
diversos. Esta fase se faz presente na gênese dos conceitos de contagem e medidas em
diversos contextos sociais (GIARDINETTO, 2006). Por exemplo, Ferreira(s/d,p.92) em
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pesquisa realizada entre os índios tapirapé, região do Mato Grosso, aponta a contagem até
cinco com referências à mão, fato esse comum na história dos números.
Um outro exemplo é a similaridade presente na diversidade de ábacos em contextos
sociais diversos, porém, todos movidos pela realização de uma mesma atividade humana: a
contagem (ou registro da contagem). Diferentes povos em épocas distintas desenvolveram
mecanismos de registro e contagem em instrumentos similares diversos, formas distintas de
ábacos.
Da mesma forma, a relação matemática intrínseca ao denominado Teorema de
Pitágoras. Faz-se presente não somente na Grécia, mas, também no continente africano
(GERDES(1991,1992); BASTIAN(2003,p.45) ).
Uma segunda peculiaridade é que ao longo deste devir histórico, os conceitos
escolares hodiernos da matemática revelam enquanto lógica do produto, de sua forma mais
desenvolvida, os aspectos essenciais ao longo de seu processo histórico. Tal fato significa
admitir a possibilidade de se conceber a ocorrência de episódios que podem ou não, terem
sido contemplados na lógica de seu produto final, em sua versão sistematizada e
universalizada, constituindo-se como tal, aspectos secundários diante da forma processual
imprimida na história objetivamente realizada.
Neste caso, é possível considerar a hipótese (trata-se de uma hipótese merecedora de
maiores investigações) da existência da produção de um conhecimento, em contexto social
específico, com uma lógica completamente estranha à lógica da produção de conhecimento
matemático similar hoje presente na esfera escolar.
Trabalhos como o de FERREIRA (In SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, s/d, p.90-
98) e DUARTE (In KNIJNIK; WANDERER; OLIVEIRA,2004: p.183-202) apontam
dificuldades em entender a lógica utilizada por determinados grupos culturais por eles
investigados.
Cumpre, no entanto, observar que referências a contextos sociais isolados são raras
exceções em face à globalização e à unificação, por contradição, do gênero humano aí
intrínseca. Mesmo admitindo uma “autenticidade cultural”, revelam contextos com baixo grau
de transformação da realidade natural em realidade humanizada, o que determina que os
conhecimentos daí oriundos, retratam etapas superadas, já há muito tempo, pelo gênero
humano. Para o gênero humano, tais conhecimentos teriam maior importância, se retratassem
níveis mais complexos de conhecimentos, além dos atuais, pois, efetivamente, contribuiriam
para impulsionar o nível já obtido de seu desenvolvimento. Ocorre que, com freqüência,
pesquisas de natureza etnográfica evidenciam conhecimentos que retratam níveis já superados
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pelo grau mais desenvolvido já obtido pelo gênero humano e possível de ser apropriado pela
escola. Retratam ricos exemplos da diversidade da produção da matemática.
Finalmente, quanto à terceira peculiaridade cumpre observar que na história do
desenvolvimento da Matemática, até suas formas mais desenvolvidas, os conhecimentos
considerados não são apenas aqueles diretamente associados às nações européias. A ascensão
do modo de produção capitalista é um momento de um processo maior, o processo de
desenvolvimento do gênero humano.
A referência ao processo histórico de desenvolvimento do gênero humano considera a
relação entre os povos ao longo do processo de desenvolvimento das sociedades até o
surgimento da sociedade capitalista moderna. Trata-se do processo de desenvolvimento
histórico que iniciou no “modo de produção comunal”, passou pelo modo de produção antigo
ou escravista, pelo modo de produção medieval ou feudal e chegando ao modo de produção
capitalista com o advento da chamada sociedade moderna, capitalista ou burguesa
(SAVIANI,2003,p.94-95).
A dinâmica processual deste desenvolvimento abrange também, a cooptação de
conhecimentos gerados em épocas históricas por povos/nações, distintas das nações
européias, que viriam a fazer base teórica para o desenvolvimento das formas mais
desenvolvidas de conhecimento que se seguiria. A matemática hoje constituída presente na
sua forma escolar, não é “a matemática ocidental”, “imposta”, mas aquela que retrata em sua
gênese, a contribuição de diferentes povos em decorrência da dinâmica histórica
concretamente objetivada.
Um exemplo é a universalidade do sistema numérico hindu-arábico. Fez-se valer como
legado universal acessível a todos, via atividade escolar e não é originado na civilização
ocidental.
Da mesma forma, o indiano Bhaskara (século XII), com seu legado: a resolução da
equação de segundo grau.
Se, por um lado, em um determinado momento, a universalidade do conhecimento foi
se dando através do desenvolvimento do mundo ocidental, por outro, questionar a visão
eurocêntrica aí implícita não significa necessariamente questionar a sua universalidade. A
universalidade implícita ao conhecimento matemático escolar foi se constituindo
historicamente à luz de nossa história que se manifesta de forma eurocêntrica. Trata-se,
portanto, de negar a visão eurocêntrica sem ter que negar a universalidade e objetividade.
(GIARDINETTO, 2004)
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As reflexões aqui apresentadas sobre a particularidade do desenvolvimento da
matemática remetem à reflexão sobre a universalidade da Matemática. A dinâmica processual
do desenvolvimento matemático não decorre da somatória de conhecimentos distintos
desconexos, impostos, mas sim, da lógica da superação pela incorporação na construção de
uma universalidade que transcende os contextos locais. Justifica-se a necessidade de abordar
algumas reflexões acerca da universalidade do conhecimento matemático, último assunto
deste trabalho.
A universalidade do conhecimento matemático presente na versão escolar
A universalidade do conhecimento é consequência do devir histórico, só pode ser
compreendida na sua materialidade histórica, isto é, a compreensão da universalidade do
conhecimento matemático só é possível mediante uma reflexão crítica sobre o papel da
matemática desempenhada no contexto deste processo histórico. Daí, a referência para a
realização do trabalho educativo. Este deverá responder às exigências do grau de
complexidade atingido pelo gênero humano, o quanto o gênero humano conseguiu se
desenvolver ao longo do processo histórico. A apropriação da matemática será aquela que
retrata “as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade”
(DUARTE,2003,p.35). Neste sentido, necessariamente deverá garantir o grau mais alto de
desenvolvimento do gênero humano e que garantirá formas mais desenvolvidas na
continuidade da complexidade até o momento atingida.
A universalidade do conhecimento apresenta algumas características. Por ora,
considerando os limites de apresentação deste trabalho, consideremos sua qualidade de
representar um conceito cuja gênese resulta da atividade humana realizada em contextos
sociais diversos.
A citação abaixo é ilustrativa para as considerações a seguir:
Outro fato interessante da aldeia tapirapé ocorreu no dia em que um dos índios resolveu me
ensinar a pescar com arco e flecha. Evidentemente que não aprendi. Mas, ele de pé no barco
lançou a flecha na metade da distância entre onde víamos o peixe e a proa do barco e
conseguiu pescá-lo. Minha primeira reação foi de espanto: como ele podia conhecer a lei da
refração? Perguntei como ele sabia que deveria atirar a flecha não no ponto onde víamos o
peixe e sua resposta foi ainda mais intrigante: “O peixe não estava lá, os olhos da gente estão
errados.”
Quando voltei a Campinas, trouxe este fato para o grupo que tínhamos na época no Instituto
de Artes da Unicamp, onde discutíamos cultura popular, e a análise que fizemos para mim foi
conclusiva. Somos de uma cultura judaico-cristã, na qual existe a crença de que fomos feito à
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imagem e semelhança de Deus – ser perfeito-, portanto não admitimos que podemos ter algo
errado no nosso corpo. Para responder ao fenômeno da refração inventamos uma lei física, e
com este pressuposto criamos toda a nossa ciência. Para o índio, como não existe essa crença
de ele ser imagem e semelhança de um ser perfeito, é possível explicar o fenômeno atribuindo
um defeito aos olhos, e assim compreender algo que lhe foi passado pelos antepassados, ou
aprendido por experiência própria. (FERREIRA,s/d,p.92)
Sem entrar no questionamento quanto aos argumentos apresentados pelo autor em que
ele faz referências a “nossa” cultura ser judaico-cristã, a citação apresenta elementos para
entendermos uma especificidade da universalidade do conhecimento matemático.
Um dos pressupostos norteadores deste trabalho afirma que o saber escolar representa
as “formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido
historicamente” (SAVIANI,2003,p.09). Diante deste posicionamento, não é possível admitir
que os índios acima referidos tenham o domínio conceitual da universal “Lei da Refração”, na
sua expressão mais complexa. Os índios lidam com tal conhecimento, na sua manifestação
prática, no decorrer da atividade da pesca. Portanto, os índios não conhecem tal “Lei”
considerando a perspectiva de forma mais desenvolvida aqui utilizada, um conhecimento
sistematizado possível de ser apropriado, por todos, nas aulas de Física. E não “inventamos”
tal lei, “nós” a sistematizamos. E isso foi possível pela perspectiva de totalidade utilizada
como instrumento de investigação sobre práticas comuns em contextos sociais diversos: a
atividade da pesca (quer seja entre índios, entre africanos, entre europeus, entre maias etc.).
Importante ressaltar que através da apropriação da denominada “Lei da Refração”, via
atividade escolar, cada indivíduo tem acesso a algo oriundo de uma atividade específica em
contextos que não são necessariamente o do indivíduo/aluno. Os conteúdos escolares
propiciam o acesso àquilo que é decorrente de práticas sociais diversas, práticas até mesmo
não vividas, não demandadas, pela vida cotidiana possível de cada aluno (o que legitima ainda
mais a crítica à propostas pedagógicas no ensino da Matemática que defendem o cotidiano
como parâmetro para o ensino de Matemática. O cotidiano não é parâmetro, é apenas ponto de
partida, quando possível, para introdução dos conceitos escolares). Não é o contexto de vida
do indivíduo a condição de acesso a tal conhecimento. Ele não precisa exercer a atividade
humana específica que resulta em tal conhecimento, para que ele possa ter acesso a ele. Uns
dos méritos da atividade escolar, é a democratização, via apropriação dos conhecimentos
sistematizados, daquilo que são resultantes de práticas em contextos sociais diversos. A
universalidade “garante” o acesso a este conhecimento de forma independente aos contextos
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sociais geradores. O aluno pode ter acesso a aquilo que o índio da aldeia tapirapé pratica, mas
não sabe. E o aluno pode saber, mesmo sem praticar.
O conhecimento sistematizado na forma da “Lei da Refração” é um “clássico” da
Física, no dizer de Saviani(2003). Por isso faz parte do conteúdo da Física em nossas escolas.
Diferentes contextos sociais propiciaram, através de atividades similares, a obtenção de um
conhecimento de grande utilidade para o gênero humano. Daí sua incorporação como
conhecimento “clássico”. Pode hoje haver conhecimentos no âmbito da produção (não da
sistematização) que não se fazem presentes como legado universal ao gênero humano (item
específico já abordado neste trabalho). Mas isso revela uma remota possibilidade. E mesmo
assim, só terá legitimidade se esse conhecimento fosse um elemento a mais a ser incorporado
ao processo de desenvolvimento da matemática para além do estágio atual atingido, isto é, se
retratasse aspectos que somassem, agregassem à dinâmica universal em processo, passando
assim a ser efetivamente incorporado ao já constituído pelo gênero humano. Não sendo este o
caso, restringe-se, mesmo, a exemplos peculiares do desenvolvimento histórico da
matemática, aspectos secundários da gênese hoje atingida.
Por fim, cumpre ainda registrar a defesa por uma didática de ensino que relacione,
quando efetivamente for possível, a apropriação do saber sistematizado com a sua produção
de origem, realizada em contextos sociais. Isso quer dizer que as práticas sociais são
elementos possíveis de serem incorporados à sistematização do conhecimento garantindo a
apropriação das formas mais complexas de conhecimento, através de sua contextualização.
Não se trata de uma contextualização “refém” daquilo que é próprio da vida cotidiano do
aluno, mas uma contextualização que revela práticas universais que podem até ser vivida pelo
aluno ou não. No caso da “Lei da Refração” é salutar que sua apropriação parta da
apresentação de atividades que lhe originam, formas de produção no decorrer da execução da
diversidade de atividades, como a da pesca, mas com o objetivo de chegar aos níveis da
sistematização do conceito (SAVIANI,2003,p.77).
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