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Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática Sociedade Brasileira de História da Matemática Peculiaridades do Processo Histórico de Desenvolvimento da Matemática Peculiarities of the Historical Process of the Development of Mathematics José Roberto Boettger Giardinetto 1 Resumo O trabalho fundamenta-se na pedagogia histórico-crítica, perspectiva marxista em Educação. Em função dessa fundamentação teórica, o presente trabalho apresenta como pressupostos norteadores alguns posicionamentos: o saber escolar retrata as “formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente” (SAVIANI, 2003, p. 09); a referência para realização do trabalh o educativo escolar é garantir a apropriação das formas mais desenvolvidas do conhecimento resultante do maior grau de transformação da realidade natural em realizada humanizada considerando a totalidade histórica do desenvolvimento das sociedades; os conceitos escolares hoje presentes na grade curricular revelam na lógica de sua produção, os aspectos históricos essenciais ao longo de seu devir; a universalidade do conhecimento é conseqüência do processo histórico de desenvolvimento da matemática, considerando a história na sua forma objetiva efetivamente realizada. A partir desses pressupostos norteadores, o objetivo deste trabalho é tecer considerações sobre algumas particularidades da dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento matemático quanto à sua constituição da produção em contextos sociais diversos até a sua sistematização, a forma escolar hoje constituída, a saber: 1) a diversidade da produção do conhecimento matemático apresenta, em alguns casos, uma determinada similaridade; 2) deve-se considerar o fato de que na lógica processual do desenvolvimento da Matemática até sua universalização pode haver conhecimentos matemáticos que não tenham sido incorporados à forma hoje conhecida; 3) a dinâmica histórica da produção da matemática é universal não cabendo denominar a matemática escolar de “matemática ocidental”. Dessas considerações, o trabalho ainda apresenta algumas reflexões sobre uma especificidade do caráter universal da Matemática presente na versão escolar hoje constituída. Entendendo o caráter universal da Matemática em sua forma escolar como uma conseqüência do processo histórico objetivamente realizado, apresentamos uma reflexão quanto à sua qualidade de representar, em sua sistematização, um conceito cuja gênese resulta da atividade humana realizada em contextos sociais diversos. Palavras-chave: Educação Matemática. Perspectiva marxista em Educação. História da Matemática. Multiculturalismo Abstract This work is based on the historical critical pedagogy, Marxist perspective in Education. Due to this theoretical basis, the actual scientific manifestation is developed based on some concepts: scholastic knowledge portraits the „more developed ways in which the objective knowledge historically produced is expressed” (SAVIANI, 23,p.09) ; the reference for the realization of the educational schol astic work is to guarantee the appropriation of the most developed ways of the knowledge resulting from the highest degree of transformation of the natural reality into human reality, considering the whole history of the development of the societies; the scholastic concepts present nowadays on the curricular subjects reveal in the logic of its production, the historical aspects, which are essential along its course; the universality of mathematics knowledge is a consequence of the historical process of the development of mathematics, considering the history in its objective form effectively realized. Taking into account these considerations, the objective of this study is to develop considerations about 1 Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru. E-mail: [email protected]

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Anais do IX Seminário Nacional de História da Matemática

Sociedade Brasileira de

História da Matemática

Peculiaridades do Processo Histórico de Desenvolvimento da

Matemática

Peculiarities of the Historical Process of the Development of Mathematics

José Roberto Boettger Giardinetto1

Resumo

O trabalho fundamenta-se na pedagogia histórico-crítica, perspectiva marxista em Educação. Em função dessa fundamentação teórica, o

presente trabalho apresenta como pressupostos norteadores alguns posicionamentos: o saber escolar retrata as “formas mais desenvolvidas

em que se expressa o saber objetivo produzido historicamente” (SAVIANI, 2003, p. 09); a referência para realização do trabalho educativo

escolar é garantir a apropriação das formas mais desenvolvidas do conhecimento resultante do maior grau de transformação da realidade

natural em realizada humanizada considerando a totalidade histórica do desenvolvimento das sociedades; os conceitos escolares hoje

presentes na grade curricular revelam na lógica de sua produção, os aspectos históricos essenciais ao longo de seu devir; a universalidade do

conhecimento é conseqüência do processo histórico de desenvolvimento da matemática, considerando a história na sua forma objetiva

efetivamente realizada. A partir desses pressupostos norteadores, o objetivo deste trabalho é tecer considerações sobre algumas

particularidades da dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento matemático quanto à sua constituição da produção em

contextos sociais diversos até a sua sistematização, a forma escolar hoje constituída, a saber: 1) a diversidade da produção do conhecimento

matemático apresenta, em alguns casos, uma determinada similaridade; 2) deve-se considerar o fato de que na lógica processual do

desenvolvimento da Matemática até sua universalização pode haver conhecimentos matemáticos que não tenham sido incorporados à forma

hoje conhecida; 3) a dinâmica histórica da produção da matemática é universal não cabendo denominar a matemática escolar de “matemática

ocidental”. Dessas considerações, o trabalho ainda apresenta algumas reflexões sobre uma especificidade do caráter universal da Matemática

presente na versão escolar hoje constituída. Entendendo o caráter universal da Matemática em sua forma escolar como uma conseqüência do

processo histórico objetivamente realizado, apresentamos uma reflexão quanto à sua qualidade de representar, em sua sistematização, um

conceito cuja gênese resulta da atividade humana realizada em contextos sociais diversos.

Palavras-chave: Educação Matemática. Perspectiva marxista em Educação. História da Matemática. Multiculturalismo

Abstract

This work is based on the historical critical pedagogy, Marxist perspective in Education. Due to this theoretical basis, the actual scientific

manifestation is developed based on some concepts: scholastic knowledge portraits the „more developed ways in which the objective

knowledge historically produced is expressed” (SAVIANI, 23,p.09) ; the reference for the realization of the educational scholastic work is to

guarantee the appropriation of the most developed ways of the knowledge resulting from the highest degree of transformation of the natural

reality into human reality, considering the whole history of the development of the societies; the scholastic concepts present nowadays on

the curricular subjects reveal in the logic of its production, the historical aspects, which are essential along its course; the universality of

mathematics knowledge is a consequence of the historical process of the development of mathematics, considering the history in its

objective form effectively realized. Taking into account these considerations, the objective of this study is to develop considerations about

1 Universidade Estadual Paulista, Campus de Bauru. E-mail: [email protected]

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some peculiarities of the procedural dynamics of the development of the knowledge about mathematics in relation to its productive

constitution in several social contexts until its systematization, which is the scholastic form constituted nowadays, as follows: 1) diversity of

the production of knowledge about mathematics presents, in some cases a specific similarity; 2) it must be considered the fact that in the

procedural logic of the development of Mathematics until its universalization, there may be some knowledge about mathematics which have

not been incorporated to the forms knows nowadays; 3) the historical dynamics of the production of mathematics is universal , not being

labeled as “occidental mathematics”. From the above considerations, this communication still presents some reflections about a specificity of

the universal aspect of the Mathematics present in the scholastic version nowadays. Analyzing the universal aspect of Mathematics in its

scholar version as a consequence of the historical process objectively realized, it is presented a reflection concerning its quality of

representing, in its systematization, a concept which origin results from the human activity employed in various social contexts.

Key-words: Mathematics Education. Marxist Perspective in Education. History of Mathematics. Multiculturalism

Considerações iniciais

A referência teórica que norteia este trabalho é a perspectiva marxista em Educação

(SAVIANI, LOMBARDI, 2005), hoje presente na denominada “Pedagogia Histórico-crítica”

(PHC) (SAVIANI,2007, 2003); DUARTE, FONTE, 2010; DUARTE,2003).

Segundo esta perspectiva, o saber escolar retrata as “formas mais desenvolvidas em que

se expressa o saber objetivo produzido historicamente” (SAVIANI,2003,p. 09). A expressão

“mais desenvolvida” (ou “mais complexa”) apresenta como referência, o conhecimento

resultante do maior grau de transformação da realidade natural em realizada humanizada,

conhecimento este, processado no decorrer da história social humana.

Em função disto, o saber escolar é considerado a mediação entre o saber cotidiano e o

saber próprio da ciência, da filosofia, da arte, da moral , da ética e da política)

(HELLER,2002, DUARTE,2003). A referência para realização do trabalho educativo escolar

é garantir a apropriação das tais formas mais desenvolvidas do conhecimento. Como tal, deve

retratar “as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade”

(DUARTE,2003,p.35). Sua apropriação visa garantir que o estágio de desenvolvimento já

atingido pelo gênero humano (a “categoria que expressa o resultado da história social humana

– a história da atividade objetivadora dos seres humanos”, segundo Duarte(1993,p.15) de

forma que este se perpetue, criando as bases para seu progressivo desenvolvimento para além

do estágio atual atingido.

Os conceitos escolares hoje presentes na grade curricular revelam na lógica de sua

produção, os aspectos essenciais ao longo de seu devir, aqueles conhecimentos que se

“firmaram como fundamentais”, os “clássicos”:

Clássico é aquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que ele foi

proposto. E por isso que a cultura greco-romana é considerada clássica: embora tenha sido

produzida na Antigüidade, mantém-se válida, mesmo para as épocas posteriores. De fato,

ainda hoje reconhecemos e valorizamos elementos que foram elaborados naquela época. É

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neste sentido que se considera Descartes um clássico da Filosofia moderna. Aqui o clássico

não se identifica com o antigo, porque um moderno é também considerado um clássico.

Dostoievski, por exemplo – segundo a periodização dos manuais de História, um autor

contemporâneo – é tido como um clássico da literatura universal. Da mesma forma, diz-se que

Machado de Assis é um clássico da literatura brasileira, apesar de o Brasil ser mais recente até

mesmo que a Idade Média, quanto mais que a Antigüidade. Então, o clássico não se confunde

com o tradicional. (SAVIANI, 2003, p.101)

Considerando o processo histórico-social de produção da Matemática como um

momento específico do desenvolvimento do gênero humano, os conhecimentos aí gerados

que se “firmaram como fundamentais”, e como tal, são “clássicos”, nas palavras de

SAVIANI(2003), são: a ampliação dos campos numéricos, a álgebra, a geometria, a

trigonometria, a análise combinatória, enfim, os conteúdos matemáticos que hoje compõem a

grade curricular de Matemática nos anos escolares.

Tendo como base tais concepções oriundas de referencial teórico específico acima

enunciado, o objetivo deste trabalho é tecer considerações acerca de algumas peculiaridades

da dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento matemático quanto à sua

constituição até a forma escolar hoje constituída. Além disso, este trabalho apresenta também

uma reflexão sobre a universalidade da matemática na medida em que as considerações sobre

as peculiaridades remetem a uma reflexão sobre a universalidade da matemática intrínseca à

sua apropriação mediante a atividade escolar.

Reflexões sobre a dinâmica processual do desenvolvimento da matemática

Entendemos que dinâmica processual do desenvolvimento do conhecimento

matemático quanto à sua constituição até a forma escolar apresenta três particularidades:

Uma primeira particularidade: existem momentos desta dinâmica em que se constata

uma similaridade na diversidade da produção matemática isto é, em diferentes contextos

sociais, em épocas históricas distintas, o conhecimento matemático resultante em cada

contexto social apresenta similaridades para com outros.

Uma segunda particularidade: é preciso considerar a hipótese de haver ao longo do

desenvolvimento do conhecimento matemático, a ocorrência de episódios que podem ou não,

terem sido contemplados na lógica hoje presente na versão escolar, sistematizada e

universalizada. Tal fato deve ser considerado em função da dinâmica processual do

desenvolvimento do conhecimento matemático presente na versão escolar.

Por fim, uma terceira particularidade, de certa forma decorrente das duas primeiras. Na

história do desenvolvimento do conhecimento matemático, até suas formas mais

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desenvolvidas presente na esfera escolar, não ocorreu uma “ocidentalização” da matemática

porque os conhecimentos progressivamente incorporados não são apenas aqueles diretamente

associados às nações européias. Assim, não é correto afirmar que a matemática escolar é a

matemática “do mundo ocidental”. Rotular a matemática constituída de “matemática

ocidental” distorce sua historicidade.

É possível agora desenvolver uma reflexão sobre cada uma das particularidades.

Quanto à primeira peculiaridade:

Conhecimentos matemáticos aparentemente distintos revelam não ser “diferentes

matemáticas”, mas sim, diferentes manifestações “da” matemática. Diferentes contextos

sociais, em épocas históricas distintas, produzem, em decorrência de atividades específicas,

conhecimentos matemáticos similares. O processo histórico de desenvolvimento da

matemática evidencia uma similaridade na diversidade:

É no processo histórico (das várias estruturas sociais que se sucedem) que vai sendo

produzido o conhecimento matemático elaborado. Por mais diferenciado que sejam “as

matemáticas” dos diferentes grupos sociais, o cerne fundamental de todas essas várias

matemáticas, que parecem à primeira vista como próprias do grupo, são mero produto da

mesma estrutura básica da matemática já elaborada histórica e

socialmente.(GIARDINETTO,1999, p.07)

Ifrah(1989,1994,2000), ao ir evidenciando a lógica processual dos sistemas de

numerações, seus avanços e limites, até a forma mais desenvolvida, o sistema numérico

hindu-arábico, percebe a existência de uma similaridade na diversidade da produção do

conhecimento, pois chega a afirmar:

É impressionante observar como, em suas buscas e tentativas, homens muito distantes no

tempo e no espaço tomaram às vezes os mesmos caminhos e desembocaram em resultados

inteiramente similares. Mas seria absurdo pensar que estes povos se copiaram uns aos outros:

como vimos, eles simplesmente foram colocados diante de condições iniciais rigorosamente

idênticas. O que explica por que sociedades sem nenhum contato entre si tenham chegado,

simultaneamente ou em épocas diferentes, a resultados semelhantes: domínio do fogo,

descoberta dos números, progresso do urbanismo e da tecnologia, desenvolvimento da

agricultura, tratamento e liga dos metais, invenção da roda ou do arado... (IFRAH,1989,p.180)

Esta similaridade na diversidade ocorre em alguns casos a partir da constatação de uma

fase antropomórfica na produção do conhecimento matemático presente em contextos sociais

diversos. Esta fase se faz presente na gênese dos conceitos de contagem e medidas em

diversos contextos sociais (GIARDINETTO, 2006). Por exemplo, Ferreira(s/d,p.92) em

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pesquisa realizada entre os índios tapirapé, região do Mato Grosso, aponta a contagem até

cinco com referências à mão, fato esse comum na história dos números.

Um outro exemplo é a similaridade presente na diversidade de ábacos em contextos

sociais diversos, porém, todos movidos pela realização de uma mesma atividade humana: a

contagem (ou registro da contagem). Diferentes povos em épocas distintas desenvolveram

mecanismos de registro e contagem em instrumentos similares diversos, formas distintas de

ábacos.

Da mesma forma, a relação matemática intrínseca ao denominado Teorema de

Pitágoras. Faz-se presente não somente na Grécia, mas, também no continente africano

(GERDES(1991,1992); BASTIAN(2003,p.45) ).

Uma segunda peculiaridade é que ao longo deste devir histórico, os conceitos

escolares hodiernos da matemática revelam enquanto lógica do produto, de sua forma mais

desenvolvida, os aspectos essenciais ao longo de seu processo histórico. Tal fato significa

admitir a possibilidade de se conceber a ocorrência de episódios que podem ou não, terem

sido contemplados na lógica de seu produto final, em sua versão sistematizada e

universalizada, constituindo-se como tal, aspectos secundários diante da forma processual

imprimida na história objetivamente realizada.

Neste caso, é possível considerar a hipótese (trata-se de uma hipótese merecedora de

maiores investigações) da existência da produção de um conhecimento, em contexto social

específico, com uma lógica completamente estranha à lógica da produção de conhecimento

matemático similar hoje presente na esfera escolar.

Trabalhos como o de FERREIRA (In SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, s/d, p.90-

98) e DUARTE (In KNIJNIK; WANDERER; OLIVEIRA,2004: p.183-202) apontam

dificuldades em entender a lógica utilizada por determinados grupos culturais por eles

investigados.

Cumpre, no entanto, observar que referências a contextos sociais isolados são raras

exceções em face à globalização e à unificação, por contradição, do gênero humano aí

intrínseca. Mesmo admitindo uma “autenticidade cultural”, revelam contextos com baixo grau

de transformação da realidade natural em realidade humanizada, o que determina que os

conhecimentos daí oriundos, retratam etapas superadas, já há muito tempo, pelo gênero

humano. Para o gênero humano, tais conhecimentos teriam maior importância, se retratassem

níveis mais complexos de conhecimentos, além dos atuais, pois, efetivamente, contribuiriam

para impulsionar o nível já obtido de seu desenvolvimento. Ocorre que, com freqüência,

pesquisas de natureza etnográfica evidenciam conhecimentos que retratam níveis já superados

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pelo grau mais desenvolvido já obtido pelo gênero humano e possível de ser apropriado pela

escola. Retratam ricos exemplos da diversidade da produção da matemática.

Finalmente, quanto à terceira peculiaridade cumpre observar que na história do

desenvolvimento da Matemática, até suas formas mais desenvolvidas, os conhecimentos

considerados não são apenas aqueles diretamente associados às nações européias. A ascensão

do modo de produção capitalista é um momento de um processo maior, o processo de

desenvolvimento do gênero humano.

A referência ao processo histórico de desenvolvimento do gênero humano considera a

relação entre os povos ao longo do processo de desenvolvimento das sociedades até o

surgimento da sociedade capitalista moderna. Trata-se do processo de desenvolvimento

histórico que iniciou no “modo de produção comunal”, passou pelo modo de produção antigo

ou escravista, pelo modo de produção medieval ou feudal e chegando ao modo de produção

capitalista com o advento da chamada sociedade moderna, capitalista ou burguesa

(SAVIANI,2003,p.94-95).

A dinâmica processual deste desenvolvimento abrange também, a cooptação de

conhecimentos gerados em épocas históricas por povos/nações, distintas das nações

européias, que viriam a fazer base teórica para o desenvolvimento das formas mais

desenvolvidas de conhecimento que se seguiria. A matemática hoje constituída presente na

sua forma escolar, não é “a matemática ocidental”, “imposta”, mas aquela que retrata em sua

gênese, a contribuição de diferentes povos em decorrência da dinâmica histórica

concretamente objetivada.

Um exemplo é a universalidade do sistema numérico hindu-arábico. Fez-se valer como

legado universal acessível a todos, via atividade escolar e não é originado na civilização

ocidental.

Da mesma forma, o indiano Bhaskara (século XII), com seu legado: a resolução da

equação de segundo grau.

Se, por um lado, em um determinado momento, a universalidade do conhecimento foi

se dando através do desenvolvimento do mundo ocidental, por outro, questionar a visão

eurocêntrica aí implícita não significa necessariamente questionar a sua universalidade. A

universalidade implícita ao conhecimento matemático escolar foi se constituindo

historicamente à luz de nossa história que se manifesta de forma eurocêntrica. Trata-se,

portanto, de negar a visão eurocêntrica sem ter que negar a universalidade e objetividade.

(GIARDINETTO, 2004)

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As reflexões aqui apresentadas sobre a particularidade do desenvolvimento da

matemática remetem à reflexão sobre a universalidade da Matemática. A dinâmica processual

do desenvolvimento matemático não decorre da somatória de conhecimentos distintos

desconexos, impostos, mas sim, da lógica da superação pela incorporação na construção de

uma universalidade que transcende os contextos locais. Justifica-se a necessidade de abordar

algumas reflexões acerca da universalidade do conhecimento matemático, último assunto

deste trabalho.

A universalidade do conhecimento matemático presente na versão escolar

A universalidade do conhecimento é consequência do devir histórico, só pode ser

compreendida na sua materialidade histórica, isto é, a compreensão da universalidade do

conhecimento matemático só é possível mediante uma reflexão crítica sobre o papel da

matemática desempenhada no contexto deste processo histórico. Daí, a referência para a

realização do trabalho educativo. Este deverá responder às exigências do grau de

complexidade atingido pelo gênero humano, o quanto o gênero humano conseguiu se

desenvolver ao longo do processo histórico. A apropriação da matemática será aquela que

retrata “as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade”

(DUARTE,2003,p.35). Neste sentido, necessariamente deverá garantir o grau mais alto de

desenvolvimento do gênero humano e que garantirá formas mais desenvolvidas na

continuidade da complexidade até o momento atingida.

A universalidade do conhecimento apresenta algumas características. Por ora,

considerando os limites de apresentação deste trabalho, consideremos sua qualidade de

representar um conceito cuja gênese resulta da atividade humana realizada em contextos

sociais diversos.

A citação abaixo é ilustrativa para as considerações a seguir:

Outro fato interessante da aldeia tapirapé ocorreu no dia em que um dos índios resolveu me

ensinar a pescar com arco e flecha. Evidentemente que não aprendi. Mas, ele de pé no barco

lançou a flecha na metade da distância entre onde víamos o peixe e a proa do barco e

conseguiu pescá-lo. Minha primeira reação foi de espanto: como ele podia conhecer a lei da

refração? Perguntei como ele sabia que deveria atirar a flecha não no ponto onde víamos o

peixe e sua resposta foi ainda mais intrigante: “O peixe não estava lá, os olhos da gente estão

errados.”

Quando voltei a Campinas, trouxe este fato para o grupo que tínhamos na época no Instituto

de Artes da Unicamp, onde discutíamos cultura popular, e a análise que fizemos para mim foi

conclusiva. Somos de uma cultura judaico-cristã, na qual existe a crença de que fomos feito à

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imagem e semelhança de Deus – ser perfeito-, portanto não admitimos que podemos ter algo

errado no nosso corpo. Para responder ao fenômeno da refração inventamos uma lei física, e

com este pressuposto criamos toda a nossa ciência. Para o índio, como não existe essa crença

de ele ser imagem e semelhança de um ser perfeito, é possível explicar o fenômeno atribuindo

um defeito aos olhos, e assim compreender algo que lhe foi passado pelos antepassados, ou

aprendido por experiência própria. (FERREIRA,s/d,p.92)

Sem entrar no questionamento quanto aos argumentos apresentados pelo autor em que

ele faz referências a “nossa” cultura ser judaico-cristã, a citação apresenta elementos para

entendermos uma especificidade da universalidade do conhecimento matemático.

Um dos pressupostos norteadores deste trabalho afirma que o saber escolar representa

as “formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber objetivo produzido

historicamente” (SAVIANI,2003,p.09). Diante deste posicionamento, não é possível admitir

que os índios acima referidos tenham o domínio conceitual da universal “Lei da Refração”, na

sua expressão mais complexa. Os índios lidam com tal conhecimento, na sua manifestação

prática, no decorrer da atividade da pesca. Portanto, os índios não conhecem tal “Lei”

considerando a perspectiva de forma mais desenvolvida aqui utilizada, um conhecimento

sistematizado possível de ser apropriado, por todos, nas aulas de Física. E não “inventamos”

tal lei, “nós” a sistematizamos. E isso foi possível pela perspectiva de totalidade utilizada

como instrumento de investigação sobre práticas comuns em contextos sociais diversos: a

atividade da pesca (quer seja entre índios, entre africanos, entre europeus, entre maias etc.).

Importante ressaltar que através da apropriação da denominada “Lei da Refração”, via

atividade escolar, cada indivíduo tem acesso a algo oriundo de uma atividade específica em

contextos que não são necessariamente o do indivíduo/aluno. Os conteúdos escolares

propiciam o acesso àquilo que é decorrente de práticas sociais diversas, práticas até mesmo

não vividas, não demandadas, pela vida cotidiana possível de cada aluno (o que legitima ainda

mais a crítica à propostas pedagógicas no ensino da Matemática que defendem o cotidiano

como parâmetro para o ensino de Matemática. O cotidiano não é parâmetro, é apenas ponto de

partida, quando possível, para introdução dos conceitos escolares). Não é o contexto de vida

do indivíduo a condição de acesso a tal conhecimento. Ele não precisa exercer a atividade

humana específica que resulta em tal conhecimento, para que ele possa ter acesso a ele. Uns

dos méritos da atividade escolar, é a democratização, via apropriação dos conhecimentos

sistematizados, daquilo que são resultantes de práticas em contextos sociais diversos. A

universalidade “garante” o acesso a este conhecimento de forma independente aos contextos

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sociais geradores. O aluno pode ter acesso a aquilo que o índio da aldeia tapirapé pratica, mas

não sabe. E o aluno pode saber, mesmo sem praticar.

O conhecimento sistematizado na forma da “Lei da Refração” é um “clássico” da

Física, no dizer de Saviani(2003). Por isso faz parte do conteúdo da Física em nossas escolas.

Diferentes contextos sociais propiciaram, através de atividades similares, a obtenção de um

conhecimento de grande utilidade para o gênero humano. Daí sua incorporação como

conhecimento “clássico”. Pode hoje haver conhecimentos no âmbito da produção (não da

sistematização) que não se fazem presentes como legado universal ao gênero humano (item

específico já abordado neste trabalho). Mas isso revela uma remota possibilidade. E mesmo

assim, só terá legitimidade se esse conhecimento fosse um elemento a mais a ser incorporado

ao processo de desenvolvimento da matemática para além do estágio atual atingido, isto é, se

retratasse aspectos que somassem, agregassem à dinâmica universal em processo, passando

assim a ser efetivamente incorporado ao já constituído pelo gênero humano. Não sendo este o

caso, restringe-se, mesmo, a exemplos peculiares do desenvolvimento histórico da

matemática, aspectos secundários da gênese hoje atingida.

Por fim, cumpre ainda registrar a defesa por uma didática de ensino que relacione,

quando efetivamente for possível, a apropriação do saber sistematizado com a sua produção

de origem, realizada em contextos sociais. Isso quer dizer que as práticas sociais são

elementos possíveis de serem incorporados à sistematização do conhecimento garantindo a

apropriação das formas mais complexas de conhecimento, através de sua contextualização.

Não se trata de uma contextualização “refém” daquilo que é próprio da vida cotidiano do

aluno, mas uma contextualização que revela práticas universais que podem até ser vivida pelo

aluno ou não. No caso da “Lei da Refração” é salutar que sua apropriação parta da

apresentação de atividades que lhe originam, formas de produção no decorrer da execução da

diversidade de atividades, como a da pesca, mas com o objetivo de chegar aos níveis da

sistematização do conceito (SAVIANI,2003,p.77).

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