Análise do filme Hamaca Paraguaya, de Paz Encina [Paraguai, 2006]

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Texto escrito em 2011 para o Bacharelado em Cinema e Audiovisual UFPE. Por Gabriel Muniz.

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Análise do filme Hamaca Paraguaya, de Paz Encina [Paraguai, 2006] por Gabriel Muniz

É interessante notar como o tempo pode ser uma variável determinante

quando trabalhada a partir de recursos sonoros em uma obra audiovisual. O

som é uma dimensão narrativa que pode sugerir diversos caminhos em relação

à orientação que o espectador espera receber de um filme. As informações

sonoras podem nos encaminhar a um passado definido, consolidado, nos

colocar diante de um presente fugaz, sempre apontando para um futuro

imprevisível [ou não], ou para uma idéia de passado nebuloso.

A linearidade da narrativa clássica é bastante presente, de tal forma que

nos habitua a um ritmo, a uma dinâmica de fruição na qual esperamos certa

cadência mais ou menos definida entre as ações, e onde o elemento sonoro é

peça chave na construção fílmica. Juntamente com a montagem ele pode

sugerir acelerações na dinâmica de um filme, fazendo com que uma longa

sequência pareça passageira; ou, pelo contrário, estender a variável temporal

de uma pequena cena até a sua suspensão.

A distensão do tempo é um recurso bastante presente na recente

produção cinematográfica de países asiáticos, há também algumas

experiências nos cinemas africanos. Aqui na América Latina me parece

singular em ficções o caso do qual me dispus a tratar. Hamaca Paraguaya

[Paraguai, 2006] é um curioso e bem sucedido exemplo de como a narração

pode sugerir intersecções temporais, além de diferentes encenações visuais e

sonoras, que ora se desconectam, ora se reencontram.

Com este filme a jovem diretora Paz Encina [Assunção, 1971] quebrou

em 2006 o jejum de 28 anos de produção de longas metragens do Paraguai,

país ao qual obviamente se refere com uma narrativa minimalista, porém

profunda, sobre a situação de paralisia de um país e da inércia de seu povo. A

ousadia formal de Hamaca Paraguaya foi muito bem recebida pela crítica e

chegou a compor a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, um dos

mais prestigiados no mundo.

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Nesta obra o discurso sonoro conduz a narrativa. Quase toda a história é

assimilada a partir dos longuíssimos diálogos entre o casal protagonista e de

suas memórias durante um dia. Ramón e Cándida são idosos que vivem em

um recanto inóspito da região do Chaco, objeto de disputa bélica entre

paraguaios e bolivianos na década de 1930. No entanto essas informações vão

sendo sutil e vagarosamente distribuídas ao longo do filme, onde a

atemporalidade é sempre colocada em meio aos constantes momentos de

ceticismo e esperança diante das incertezas que cercam as expectativas dos

personagens.

Logo na primeira sequência o filme mostra a que se propõe: um longo

plano aberto e estático de aproximadamente 15 minutos no meio da mata

mostra o casal de idosos estendendo uma rede, de manhã bem cedo. Seu

diálogo, todo falado em guarani, é circundado por uma série de sons do

ambiente [revoada de pássaros, galo cantando, latidos de uma cachorra] que

causam a sensação de isolamento dos personagens em relação ao mundo

exterior, onde o filho deles enfrenta os bolivianos, na função de soldado do

exército paraguaio.

A incerteza sobre a sua volta é o que leva o casal a posições distintas

diante da realidade. Ramón é esperançoso, procura levar um pouco de seu

otimismo para a esposa, Cándida, que sempre se mantém cética sobre o

retorno de seu único filho. São bonitos os simbolismos na construção formal do

filme. O som como índice [trovão, revoada de pássaros] de esperança para

Ramón, sempre precede a imagem estática de um céu nublado, que nunca

concretiza a tão esperada chuva, que amenizará o desconforto do calor

excessivo do Chaco.

A narrativa é bastante sensorial. Os longos diálogos acompanhados do

volumoso som ambiente e da agonia de uma cadela [que nunca vemos, mas

ouvimos latindo] leva também àquele que assiste um pouco dos desconforto do

casal. Na Hamaca não apenas os sons, mas os odores e temperaturas [calor

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úmido, vento] também são compartilhados a partir dos diálogos, assim como os

gestos dos personagens, que mostram detalhes de suas características.

Na segunda sequência vemos o trabalho cotidiano dos personagens, o

leve e cadenciado movimento do homem sereno e paciente no corte da cana e

os fortes e repetidos socos com os quais a mulher firme e cética enxágua a

roupa que lava. Neste momento ouvimos a voz over como uma sugestão de

encenação sonora deslocada da encenação visual. Enquanto o casal faz os

trabalhos diários separadamente, são confrontados com a lembrança do

momento de despedida do filho Máximo Caballero, como em um flashback

sonoro.

As memórias de um passado recente são o elo de continuidade cênica

em relação aos momentos individuais do presente [visual] do casal em seus

afazeres. São duas dimensões temporais [flashback / memória presente] que

se interseccionam e dão continuidade narrativa a dois espaços também

distintos, porém com tratamento simétrico. A imagem [na maior parte do filme

em planos abertos] posiciona os dois personagens no mesmo lado em relação

ao quadro, de costas e em planos geral e primeiro plano. Sempre isolados,

mesmo em meio aos companheiros (as) de trabalho.

Essa dualidade entre som e imagem é bastante interessante na medida

em que o elemento sonoro carrega as sensações e os sentimentos, o que

demarca um nítido contraste em relação às imagens desdramatizadas. Nas

sequências na rede, a imagem está distante a ponto de não se perceber as

expressões faciais. Nos planos mais fechados [PG e PP] os personagens estão

de costas e raramente se vê seus rostos. A ênfase expressiva reside no

diálogo, mas também nos tons graves das vozes dos idosos, que em certos

momentos se confundem; e nos latidos da cadela, agonia que ora surge, ora se

cala.

A terceira sequência é ainda mais arrojada: de volta à mata fechada – a

luz mais forte sugere o meio dia – a imagem do pai se aproximando sozinho da

rede é acompanhada por um diálogo do casal, onde não se distingue tão

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facilmente quem fala o que. As duas vozes sugerem um diálogo em outro

tempo, que se contrapõe ao presente da imagem. Há um descontexto e, assim

como os personagens, o espectador pode experimentar uma incerteza

narrativa entre o antes, o durante e o depois. No entanto, o tempo sonoro

inicialmente deslocado do tempo visual, vai aos poucos se reconectando à

encenação que é vista no quadro, e esse redimensionamento temporal é uma

das maiores virtudes da direção do filme.

Novamente o discurso sonoro encadeia as ações do enredo. Ramón

ouve sempre os pássaros em revoada, mas não consegue vê-los, uma bela

metáfora. Cándida define ainda mais o contraponto quando afirma que

“memórias não trazem pessoas à vida”, reforçando a dualidade entre o que se

ouve, índice que aponta para uma possibilidade de esperança e o que [não] se

vê, a [não] concretização do esperado. Também a cadela, personagem nunca

vista, mas sempre ouvida, em dado momento para de latir, sinal de

esmaecimento do otimismo, o que, aliás, Ramón já começa a perder.

As notícias sobre a guerra são o mote principal da quarta sequência do

filme. Mais uma vez o casal está em locais distintos, mas simetricamente

dispostos. O velho leva a cachorra a um veterinário no povoado [indefinido] e

fica sabendo notícias sobre o fim da guerra, momento no qual também o

espectador tem uma pista sobre o tempo diegético, a guerra contra os

bolivianos vencida pelos paraguaios permite situar os anos 1930 no Chaco. A

velha ainda está no sítio do casal quando recebe a visita de um mensageiro

incubido de comunicar a morte de Máximo Ramón Caballero, umas das cenas

mais bonitas de Hamaca Paraguaya.

É relevante também destacar o interessante jogo entre voz over / voz off

no filme. Em nenhum dos dois casos os personagens do veterinário e do

mensageiro são vistos. Os diálogos, como na sequência que a precede,

parecem inicialmente pertencer a outro tempo, anterior, posterior; ou à

memória, pela inatividade dos personagens que são vistos e a não sincronia

entre a imagem e som. Em dado momento a partir do conteúdo do diálogo e

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dos gestos dos idosos é possível reconectar as diferentes temporalidades em

um contexto comum, anacrônico.

Temos aí o jogo: não se sabe se os personagens visualmente ocultos

estão no extra campo [voz off] ou se constituem apenas uma lembrança no

momento presente da encenação visual, fora de campo [voz over]. No caso do

Pai, inicialmente tende-se a pensar primeiro em over [ele está do lado de fora

da pequena casa, como que em uma espera solitária] para depois em off,

quando ele entra na casa, como que ao encontro do veterinário, o que

colocaria esse personagem em campo.

Já com a Mãe imagina-se a chegada do mensageiro, o que consistiria

numa voz off, com o personagem oculto extra campo. No entanto a resposta

sonora de Cándida não é acompanhada por uma resposta visual, de onde se

imagina que seja uma memória, não estando ali presente em campo o viajante

que comunica a queda no front de Máximo Ramón Caballero, o que

caracterizaria uma voz over. É interessante como o ceticismo da idosa resiste

em acreditar que o falecido não seja o seu filho, que ela afirma se chamar

Máximo Caballero.

Nesse momento de inversões é possível também observar como a

imagem começa a se permitir dramaticamente. Podemos ver melhor, ainda que

de perfil, os rostos dos protagonistas, e em planos mais fechados. A inversão é

o raccord narrativo para a quinta e última sequência, de volta à rede na mata

fechada e sempre pontuada por trovões cada vez mais frequentes. Enquanto o

ceticismo da Mãe, que se recusa a acreditar na morte do filho, se converte em

possibilidade de esperança, o velho Ramón se desespera ao saber pelo

veterinário que a guerra tinha acabado dois dias antes sem o regresso de seu

filho, e torna-se cético em relação à realidade da guerra e à sua própria vida.

Em mais um longo plano [aproximadamente 15 minutos] a mata vai

escurecendo, e o som do ambiente [cigarras, trovões, vento] predomina,

enquanto os personagens que tanto falavam, optam pelo silêncio. É tocante ver

como Cándida se transforma, a senhora que antes era fechada

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emocionalmente se coloca na função que até então exercida pelo marido, a de

tentar confortar o companheiro. O isolamento se converte em união.

A cena tem seu desfecho na escuridão quase total. A Mãe tenta

direcionar os olhos do Pai ao céu, ao ver uma estrela cadente – esperança. E

procura fazer com que o velho marido mantenha acesa a pequena chama do

lampião, enquanto o convida para deitar-se nem sua cama confortável de

casal. Há um corte para o fundo preto, a cadela volta a latir, apenas os sons

ambientes, trovões. Só que dessa vez acompanhados pelo som da tão

aguardada chuva, concretização da esperança, não pelo discurso visual, pelo

contraponto, mas sim pela inversão da lógica narrativa e conceitual criada pelo

próprio filme, enfim pelo discurso sonoro. Os créditos finais são acompanhados

de uma bela música instrumental.

Recife, 19 abril de 2011.