Analise do processo de tombamento da Casa do Sol

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O processo de tombamento da Casa do Sol, 02/2011 inicia-se através do protocolo número 2010/10/14. 373 de 20/04/2010, a pedido da Academia Paulista de Letras, em função da preservação da memória de Hilda Hilst e da importância do local como patrimônio cultural do município de campinas. O bem em questão, tal qual como concebida nos textos de justificativa e legitimação do processo, é um espaço de vida contendo um conjunto de objetos testemunhas exemplares de um passado que não se quer esquecer, sendo um lugar de interação e elaboração de conhecimento, que funciona como um elo entre o material e o imaterial. O exemplo da casa do sol é interessante, pois embora seja um bem edificado, de pedra e cal, fato que sustentou a aplicação do tombamento como elemento jurídico, ela é na verdade muito mais complexa e subjetiva. O cenário da forma como está montado, parece dar veracidade a biografia de sua antiga proprietária, atuando como uma prova, ou um testemunho de uma maneira de viver, cuja função é representar o ambiente onde Hilda Hilst escreveu grande parte de sua obra. Ao ser tombada, agrega-se o valor de patrimônio e de representação cultural, e ela passa a ser marco de uma identidade, parte da memória coletiva do município de campinas, baseando seu discurso num sentimento de pertencimento. Para compreender as práticas patrimoniais, é necessário compreende-las dentro de um sistema de representação que utiliza objetos como signos e sua exposição de diferentes formas, como uma linguagem. (Telles) A Casa do Sol é uma construção de cerca de 700 m2, inspirada em estilo colonial mineiro, rodeada por 12.000 m2 de área verde, localizada na Rua João Caetano Monteiro, s/n, quadra B, no Bairro Xangrilá, município de Campinas. A residência foi construída e batizada por Hilda Hilst, quando decidiu deixar São Paulo, no ano de 1966, para dedicar-se, exclusivamente, ao seu já iniciado projeto literário. Hilda viveu aí por 38 anos e produziu 80% de sua obra, navegando pelos mais diversos estilos 1

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Tombamento pelo CONDEPACC da Casa da escritora Hilda Hilst.

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O processo de tombamento da Casa do Sol, 02/2011 inicia-se através do protocolo número 2010/10/14. 373 de 20/04/2010, a pedido da Academia Paulista de Letras, em função da preservação da memória de Hilda Hilst e da importância do local como patrimônio cultural do município de campinas. O bem em questão, tal qual como concebida nos textos de justificativa e legitimação do processo, é um espaço de vida contendo um conjunto de objetos testemunhas exemplares de um passado que não se quer esquecer, sendo um lugar de interação e elaboração de conhecimento, que funciona como um elo entre o material e o imaterial. O exemplo da casa do sol é interessante, pois embora seja um bem edificado, de pedra e cal, fato que sustentou a aplicação do tombamento como elemento jurídico, ela é na verdade muito mais complexa e subjetiva.

O cenário da forma como está montado, parece dar veracidade a biografia de sua antiga proprietária, atuando como uma prova, ou um testemunho de uma maneira de viver, cuja função é representar o ambiente onde Hilda Hilst escreveu grande parte de sua obra. Ao ser tombada, agrega-se o valor de patrimônio e de representação cultural, e ela passa a ser marco de uma identidade, parte da memória coletiva do município de campinas, baseando seu discurso num sentimento de pertencimento. Para compreender as práticas patrimoniais, é necessário compreende-las dentro de um sistema de representação que utiliza objetos como signos e sua exposição de diferentes formas, como uma linguagem. (Telles)

A Casa do Sol é uma construção de cerca de 700 m2, inspirada em estilo colonial mineiro, rodeada por 12.000 m2 de área verde, localizada na Rua João Caetano Monteiro, s/n, quadra B, no Bairro Xangrilá, município de Campinas. A residência foi construída e batizada por Hilda Hilst, quando decidiu deixar São Paulo, no ano de 1966, para dedicar-se, exclusivamente, ao seu já iniciado projeto literário.  Hilda viveu aí por 38 anos e produziu 80% de sua obra, navegando pelos mais diversos estilos literários, de teatro à poesia, de crônica a novelas, e estabelecendo, consequentemente, relações sociais e profissionais amplas, dentro e fora do país. Um ano após o falecimento da autora, no dia 7 de agosto de 2005, foi fundado o Instituto Hilda Hilst, sediado na Casa do Sol, com CNPJ próprio e formado por 19 sócios- fundadores, com a missão de divulgar o trabalho da Hilda, manter a Casa onde a autora viveu e cuidar dos 56 cães que ainda viviam no terreno. (NOTA)

No dia 19 de abril de 2007 houve um evento que promoveu a transformação da Casa do Sol, num centro cultural, o Instituto Hilda Hilst - Centro de Estudos Casa do Sol. O projeto pretendia buscar patrocinadores e instituições de fomento para a revitalização da propriedade, com eventos culturais gratuitos: “A Casa do Sol já é um espaço que recebe pessoas e que se preocupa com a manutenção do espírito vivo de Hilda, deixado pela sua obra, e isso já acontece desde a sua morte (...) Nós levantamos a instituição de maneira espontânea e afetiva, com nossos próprios recursos, e queremos programar essas ações de uma forma melhor estruturada e que possa atender mais gente.”(nota,70) O novo nome segundo o herdeiro simbolizaria o início do processo de mudanças e reformulações que dariam à Casa do Sol um viés cultural, para receber estudiosos, bolsistas residentes, jovens artistas, grupos de teatro e outros eventos.

O local já se apresentava, portanto, como um espaço institucional de criação literária, e de preservação da memória de Hilda, atuando como centro difusor de produções culturais no interior de São Paulo. Em matéria de 2007, já percebemos a tônica das ações do instituto. “é claro que o programa é uma homenagem à Hilda, já que se trata de levar adiante ideias que ela

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mesma tinha para o futuro da Casa, mas queremos fazer desse espaço vivo, pungente, dinâmico, e não um museu, estático, com espirito de mausoléu. Será um espaço de criar, de viver, de pensar e de festejar, com a alegria que a Hilda tinha, não somente baseado nas memorias ou na sua obra” (jose luis Mora fuentes, 18/04/2007, UOL). O tombamento atribui e reconhece o valor cultural ao bem, alçando-o à categoria oficial de patrimônio cultural do município de Campinas.

1- Casa do Sol e Parte da área externa.

Em Justificativa preliminar sobre a necessidade de tombamento, contida no estudo realizado pela Academia Paulista de Letras, buscou-se o valor do bem, do ponto de vista da Historia, da identidade sociocultural, significação para a memória, para o desenvolvimento do conhecimento e para a preservação da qualidade de vida e da paisagem natural e urbana do município. O fato de o pedido ser feito pela academia, entidade representada no conselho do Conselho de Defesa do patrimônio cultural de Campinas (CONDEPACC) ratifica a legitimação de Hilda Hilst dentro de umas das instituições máximas, produtoras e reguladoras dos valores simbólicos dentro do campo literário e isso irá, de alguma maneira, fundamentar os valores que serão requisitados para justificar o valor da casa como patrimônio cultural. Nota-se a predominância dos valores referente ao campo literário na composição do texto legitimador, na descrição material dos elementos da casa, e inclusive, no que seria a justificativa para a mudança de Hilda para o interior.

A função da Casa do Sol está dada, conforme podemos observar em algumas entrevistas de Hilda, desde a época de sua construção. Aparentemente, Hilda tinha um projeto literário claro, e tinha receio de não conseguir cumpri-lo se continuasse morando em São Paulo, pois dizia ter uma vida maravilhosamente agitada na capital paulista, boemia e com muitas paixões, o que simplesmente, a impedia de escrever. O isolamento permitiria maior dedicação às leituras e aos estudos, tão necessários ao seu trabalho. A imprensa paulista, em pequena nota no Caderno Ilustrada de 1965, avisa: “Hilda Hilst acaba de vender sua casa. Seu novo endereço será uma fazenda no interior de São Paulo.” (nota) A imprensa local não tardou em demonstrar interesse pela nova moradora da região e curiosidade acerca de sua nova rotina, o Jornal Correio Popular, questiona as razões da mudança radical: “Muitos falam dessa escritora loira e misteriosa que se refugiou numa fazenda tipo Convento colonial. Uns contam que ela supervisiona a lavoura na

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fazenda, outros afirmam que ela vive tão feliz que nem pensa mais em vir para São Paulo, há os que juram que essa fuga para o interior é uma atitude” Hilda esclarece: “Eu senti que em São Paulo não iria mais poder trabalhar. Com a vida agitada demais, não iria mais ser possível, pelo menos como eu pretendia trabalhar. Acontece que ao mesmo tempo em que sentia isso, li Carta a El Greco, do escritor grego Kazantzákis e esse homem e esse livro modificaram a minha vida totalmente: Pensei comigo mesma: vou mudar de vida”(nota, 05). Este fato é invocado pelo estudo do tombamento, a leitura da obra do escritor grego Niko Kazantzakis permitiu a Hilda conhecer: “ o homem que decide tornar-se o que é, que sacrifica a vida em função do destino de sua alma; um homem que vislumbra a estrada correta num caminho de estradas paralelas”. e decide segui-la, consciente dos obstáculos, do sangue entre as pedras, das montanhas intermináveis, do labirinto sem saída. (nota, processo)

Outro elemento utilizado são os próprios poemas de Hilda que fazem alguma referencia a casa. E ratificado no final pela relação de cada uma das obras publicadas pela autora: Poesias, Ficção, teatro, traduções, coletâneas, parcerias e claro, os prêmios literários que conquistou:

“ A minha casa é guardiã do meu corpoE protetora de todas as minhas ardências.E transmuta em palavraPaixão e veemência” H.H (nota, p.2)

“Tres luas, dionisio, não te vejoTrês luas percorro a casa, a minha.E entre o pátio e a figueiraConverso e passeio com meus cães. (Ode descontinua e remota para flauta e Oboé. De

Ariana para Dionísio, p.8)

“E recriaste a poesiana minha casa” (Cantares de pedra e predileção, p.8)

O texto produzido pela Academia Paulista de Letras, base para o estudo do tombamento, pauta-se na relação intrínseca entre o escritor e sua casa. Cita Gaston Bachelard, “ A poética do espaço”, que desenvolveu uma filosofia poética através do espaço de criação: A casa é, segundo o filosófo, uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos dos homens “A casa é utilizada como uma metáfora do sentido de subjetivação: A casa é o único lugar de intimidade real para o sujeito social(...) Só é possível criar quando somos instigados para isso, e a casa é o baluarte para todos os mundos possíveis, para a imaginação, para a chama da criatividade: O principio da poesia, e da imaginação poética, está na casa. (processo, p.3)Gaston Bachelard, faz em sua obra um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço interior, numa dialética do interno e do externo. O autor vê na casa um lugar privilegiado por reunir simultaneamente uma unidade e uma complexidade, possibilitando

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a integração dos seus valores particulares num valor fundamental. Não bastaria considerar a casa um “ objeto”, não se trata de uma descrição objetiva ou subjetiva, é a busca por: “ atingir as virtudes primeiras, aquelas em que se revela uma adesão, de qualquer forma, inerente a função primeira de habitar. (Bachelard, p. 335)

As relações sociais vivenciadas dentro do ambiente intimo, entre Hilda e os demais agentes, teriam deixado para a história da literatura brasileira uma obra produzida numa única casa e uma casa construída para receber uma obra. Os dois organismos OBRA e CASA, estão postos numa relação sinergética, que teria sido capaz de promover uma nova percepção poética e literária, com fortes influencia de James Joyce, Samuel Becket e Guimarães Rosa.

Hilda é considerada pela crítica especializada, dona de uma linguagem inovadora, e de um projeto consistente. Na construção do discurso sobre a literata, vão buscar na sua trajetória os traços de sua genialidade: “Conservava desde muito jovem, o espirito ousado e vanguardista, antecipando alguns significados do feminismo e realizando muitos deles. Hilda mantinha em si todos os valores da genialidade, a coragem, a liberdade, ousadia, talento de observação, percepção visionária, compreensão sagrada do mundo e do humano, generosidade para suavizar as fronteiras entre si e os demais, e um olhar alquímico e espetacular para a existência de todas as coisas”. (proc, p.5) O texto cita ainda, que Hilda foi a primeira mulher, junto com Lygia Fagundes Telles, a ingressar na turma de direito da Faculdade do Largo São Francisco, e que mantinha em São Paulo uma vida Glamorosa, vivia numa bela casa no Pacaembu, onde promovia festas e saraus protagonizados pelos maiores intelectuais e artistas de São Paulo na década de sessenta. Charme e beleza eram suas características mais marcantes nesse momento, as paixões que despertava nos rapazes e senhores mais cortejados eram assuntos constantes das colunas socias. Hilda tinha uma personalidade considerada a frente de seu tempo, pois flertava com todos os assuntos na roda dos homens mais eloquentes, onde se locomovia com toda destreza e sensualidade. (processo, p5)

Suas atitudes eram inimagináveis para a maioria das moças da época, em conversa no ano de 1989 entre Nelly Novaes Coelho e estudantes, a autora fala sobre a época: “Quando era jovem, eu tinha uma vida muito tumultuada, turbulenta. Gostava muito das emoções. Gostava de me apaixonar muitas vezes. (...) Mas aí, a vida foi ficando tão emotiva o tempo todo, aconteciam tantos dramas pessoais. Porque eu me apaixonava muito, e depois me desapaixonava.” (nota, 20) Até mudar-se para a Casa do Sol, Hilda frequentou um ambiente de boemia intelectual e proximidade com a alta sociedade paulista, ainda sobre essa época ela lembra: “Depois de passar pela livraria Jaraguá, onde os intelectuais passavam no final de tarde, eu geralmente ia para a boate acompanhada de pessoas, humm...vamos dizer, estranhas.” Em outro trecho, confessa: “Não gostavam de mim. Eu fui esnobada por muitas pessoas da sociedade. Eu era considerada uma...pequena puta.” .(nota, 21).

Sua beleza e atitude despertaram grandes paixões, a liberdade com que agia e pensava, lhe marcaram para sempre, até seus últimos dias de vida. A fama de namoradeira não parecia lhe incomodar, envolveu-se com alguns dos homens mais desejados da sociedade. Numa de suas aventuras, ainda na época da Faculdade de direito, conheceu Drummond, na mesma livraria Jaraguá, pertencente a Alfredo Mesquita (Grupo Estado):  Não foi nada sério ou importante para nós dois. Foi uma brincadeira. A gente riu muito.” (22) Anos depois, em outra entrevista volta a comentar o caso: “ Durou pouco. Um dia ele me enviou um presente pelo Roberto

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Assunção, que foi embaixador do Brasil no Sri Lanka. Era um perfume. Mas daí eu achei o Roberto muito mais interessante e tivemos um affair.”(23) A própria autora reconheceu o impacto de seu comportamento: “ Eu tinha vinte anos. E sem duvida meu comportamento pareceu completamente extravagante. Eu estudava direito, pertencia àquele meio que você conhece bem. E do meu jeito muito independente de ir e vir com eu gostava, de existir, criou dificuldades terríveis no início...quase humilhações. As pessoas não me aceitavam, as meninas da minha idade me ignoravam. Eu escapava das normas”(24)

Deixar esse ambiente efervescente, surpreendeu não só pela mudança geográfica, mas pelas mudanças na sua aparência, segundo Cristiano Diniz, um especialista em seu acervo pessoal: “Hilda trocou a alta costura de Denner, Maria Augusta e Clodovil, e os jantares em refinados restaurantes da capital paulista , no Largo do Arouche, por rústicas túnicas, chapéus de palha e pratos de barro. Em uma síntese do despojamento pretendido, a autora afirmou: “Puxei os cabelos para trás, comecei a usar batas e a me enfear.” (27) No final da década de 80 se queixava ao grande amigo Caio Fernando Abreu: “As pessoas dizem que eu me encastelei e tal, e não é nada disso. Eu tinha que escrever, e se ficasse lá em São Paulo fazendo caras, eu não ia fazer nada. Agora, eu saio, e venho morar aqui na fazenda e as pessoas ficam irritadas, dizem: “claro, não se comunica, não sai, depois se queixa que não é lida, bem feito.” (28)

A Hilda que se muda para a casa é naquele momento uma jovem poeta; a Hilda que morre em 2004 é uma grande escritora, completa, densa e com mais de quarenta livros a serem descobertos. Há uma transformação nas representações sobre a autora nesses quarenta anos em que viveu no interior, e o papel que a casa desempenha nessas mudanças, para o bem ou para o mal, é significativo. Seja para condensar uma imagem de loucura, excentricidade e marginalidade que sempre cercou Hilda, ou para qualificar sua produção, e elevar o caráter inovador e consistente de sua literatura.

Para dar conta de produzir, a rotina de Hilda na Casa do Sol era severa, diariamente, havia os horários reservados para ler, escrever e conversar. Ao que tudo indica Hilda levava a sério, o caminho que tinha escolhido como profissão, desde a década setenta até o fim da vida, assim narrava seus dias: “Acordo às seis da manhã, mas só me levanto as 7h30. Depois do café trabalho no escritório até às 11h, mais ou menos. Depois do almoço leio, converso, e volto à tardinha para o escritório e para a máquina de escrever. Janto cedo, leio a luz de um lampeãozinho de querosene (não há luz elétrica nem telefone) e vou dormir antes das dez da noite” (nota, 12) Se a angústia da vida acelerada da cidade grande se apresentou como empecilho para que Hilda escreve-se, na Casa do Sol ela pode consolidar sua obra. Tanto é que se deu por satisfeita, e quando achou não tinha mais nada a dizer, simplesmente, parou de escrever. Tomada essa decisão no final da década de noventa, explicou em uma entrevista: “Minha rotina mudou bastante nos últimos meses. Venho muito a São Paulo, que é onde estou agora, às vezes fico quase um mês. Revejo alguns amigos. Mas a rotina em casa tem sido quase a mesma de sempre. Desde que parei de escrever costumo acordar lá pelas 10h, tomo o café vendo o noticiário na televisão, fico com o cabelo em pé com tudo o que está acontecendo no mundo, depois assisto a um documentário ou um filme. Vou para o escritório, leio os jornais e mergulho nos livros que estou relendo. Almoço por volta das 15 h, vejo mais televisão, volto para o escritório. Durmo cedo” (nota, 13)

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Muito se fala das reuniões que aconteciam na Casa do Sol, e principalmente das experiências vivenciadas, o que nos mostram que Hilda se relacionou muito a partir da Casa. Já no fim da vida, ela confidenciou: “Eu tinha mais tempo para ler e pensar. Também fiz amizades muito importantes. Eram, e ainda são pessoas ligadas a trabalhos criativos, e isso foi muito estimulante. (..) É onde eu convivi e ainda convivo com meus melhores amigos”(37) Anos antes contou em outra entrevista: “Se eu ficasse conversando muito não trabalharia. É uma vida muito isolada. Há um, dois amigos que estão sempre lá, mas não tenho muitas visitas todos os dias. É mais no fim de semana. Aí, há sempre uma reunião gostosa, para que as pessoas fiquem alegres. Então é aquela mascara que todos põem. Estamos todos ótimos. Vamos comer. vamos beber. E ninguém fala em problemas, literatura, nada”(38). Seu amigo e editor Massao Ohno disse certa vez: “Numa determinada época, alguns OVNIS pousaram nas cercanias da sua chácara em Campinas. Seus amigos, incluindo Leo Gilson Ribeiro, são testemunhas disso”. (39). Ligia Fagundes Telles, outra grande amiga, também falou sobre os fatos: “Tantos acontecimentos na Casa do Sol sob o vasto céu das estrelas. Disco  Voadores. Não sei mais quem viu em certa noite uma frota desses discos.” (40) A própria Hilda comentava: “Eu mesma já vi milagres aqui. Mas eu quase não falo, só comento com meus amigos sobre as coisas que eu vi nessa casa . E narra sua experiência: “ Vi primeiro como se fosse uma lua, uma lua alaranjada com umas luzes amarelas e vermelhas. Era a lua e não era. Andei uns seis metros (naquela época não havia nada além dessa casa e da casa da minha mãe a uns quinhentos metros) e aquela coisa que parecia a lua se metamorfoseou num disco voador. Eu não bebia nessa época, durante os primeiros sete anos em que vivemos aqui, eu e Dante não bebemos nada, se fosse agora vocês poderiam achar que é coisa de bêbada.” (nota, 41)

A base que fundamenta o pedido de tombamento como um espaço de criação está justamente nessa frequência artística da qual a casa teria sido palco. Existe na casa do sol uma dimensão simbólica daquele espaço para seus habitantes, necessariamente plural e diversificada. É necessário apreender em toda a sua complexidade a dinâmica de ocupação e de uso daquele espaço. Para Telles :”trata-se de levar em conta que além da materialidade, o processo cultural , ou seja a maneira como determinados sujeitos ocupam esse solo, utilizam e valorizam os recursos existentes, como constroem sua história, como produzem edificações e objetos, conhecimentos, usos e costumes (nota, tese)

A frequência com que a casa era palco de encontros e reuniões, entre os mais diversos nomes da intelectualidade é bastante ressaltada. A casa deve ser vista nessa suposta interação entre os diversos sujeitos, que ao longo de sua trajetória compartilharam histórias, e vivencias, que também são suas. No processo de tombamento destacam alguns nomes desses frequentadores: “ O Maestro José Antônio de Almeida Prado, os escritores Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, a poeta Olga Savary, os críticos Léo Gilson Ribeiro, Nelly Novaes Coelho, os físicos Mário Schenberg, Cesar Lattes e Newton Bernardes, o diretor de teatro Rofran Fernandes, a pintora e gravurista Maria Bonomi, o diretor de Cinema Walter Hugo Khouri, o cenógrafo italiano Giannni Ratto, o escritor e artista plástico J Toledo, entre outros grandes nomes de todas as artes. (p.7) Muitos artistas moraram na casa por longos períodos, entre eles o escritor Bruno Tolentino, a artista plástica Olga Bilenky(herdeira), o escritor caio Fernando Abreu, que durante o tempo que passou na casa escreveu seu primeiro livro, “inventário do irremediável” , publicado em 1970, ano em que também obteve o prêmio Fernando Chinaglia da UBE (União Brasileiras de escritores). Também na Casa do Sol, o

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escritor José Luis Mora Fuentes (herdeiro) escreveu seus dois maiores livros, “ O Cordeiro da Casa” e “fábula de um Rumo” , recebeu por estes os prêmios “ Governador do estado de São Paulo e “ Associação Paulista dos Criticos de arte-APCA”. Em 1990 o escritor e artista plástico Jurandir Valença (atual diretor do instituto) morou na Casa do Sol, onde concluiu seu livro “ Faca de Vidro”. No tempo em que passou na casa do Sol, o critico literário e especialista na obra de Hilda Hilst, o Dr. Edson Costa Duarte, completou o mestrado na Universidade de Campinas.” (proc, P.7)

Esses elementos que indicam que a casa foi o berço de diversas produções literárias, sustentam a tese de que é necessário preservar o que seria o destino natural da casa do Sol como lugar de criação literária(processo, pag.7) : Nas palavras da Academia Paulista de letras: “(...) foi na Casa do sol que Hilda encontrou o ambiente perfeito para a construção de uma das maiores obras da literatura brasileira. Sua obra, sua casa são elementos interligados, dependentes, que se conectaram por uma veia enigmática e impulsionaram a formação de uma percepção que aumentava os valores da realidade, estreitando a fronteira entre o real e a poesia. (processo, p8)

.Na década de 70, Hilda praticou na Casa do Sol algumas experiências que somado aos discos voadores, compõem alguns dos elementos do imaginário anedótico acerca de sua loucura. Para entender esse momento da vida da autora, precisamos salientar a relevância que a temática da morte teve em sua obra: “Bem, parece-me que o tema mais constante em minha obra é a morte. (…) Eu não estou conformada com esse conceito da maioria das pessoas de que a morte é definitiva, é um acabar completo e portanto é um tema, uma preocupação que sei que irá perdurar em minha obra futura (…) É por isso que agora estou fazendo umas experiências incríveis com vozes de gravadores” (nota, 43). Hilda  foi sempre bastante questionada acerca dessa fase, em outra entrevista explica do que se tratavam as gravações: “Comecei a me interessar por essas descobertas depois de assistir a uma comunicação de Friedrich Jurgenson, um sueco, sobre uma série de experiências que ele tinha realizado ao registrar cantos de pássaros no gravador, perto de sua cabana em Molnbo. Ao reproduzir essas fitas, percebeu que algumas vozes vinham interferir nos cantos dos pássaros. Ele trabalhou oito anos nessa experiência e reuniu vozes de cinquenta amigos seus, amigos mortos que se fizeram reconhecer. Eu me perguntei: Porque não tentar?” (nota, 44) Hilda chegou a obter alguns pequenos resultados, que para ela foram impressionantes, mas como vemos em entrevista a Caio Fernando Abreu, ela sabia bem como repercutiam essas suas experiências:“ Eu dizia, mas porra, eu não ouço vozes, eu gravo possíveis vozes solta no espaço. E todo mundo começou a achar que eu era completamente maluca.” (45) A localização “marginalizada” da residência, distante do centro urbano é uma forte simbologia que pesa sobre a composição do universo da autora. A chácara é um lugar onde se pode esquecer da atribulada vida moderna, dos ruídos ensurdecedores, das grandes construções e das intensas concentrações de pessoas. A acessibilidade à casa do sol é sem sombra de dúvida restringida pela sua localização e distancia de uma área minimamente urbanizada. O terreno da casa está localizado dentro de um condomínio de casas chamado Residencial Shangrilá, na beira da rodovia Adhemar de Barros (Mogi-Campinas) e seu acesso se faz determinantemente via automóvel. Não se pode dizer que o acesso de pedestres seja inviável, mas é penoso chegar do

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ponto de ônibus da rodovia, aonde circulam uma ou duas linhas municipais, até a porta da casa, que fica ainda, há alguns metros da entrada do residencial. Portanto, não é um lugar onde as pessoas passem na frente e resolvam entrar, ou fiquem curiosos para saber o que tem ali. Para se chegar até a Casa do Sol é preciso previamente conhece-la por outros meios, já ter ouvido falar, lido em alguma matéria de jornal ou ter sido convidado para algum evento cultural em suas dependências.

Cristiano Diniz concorda com o impacto que essa escolha teve na vida da autora: “ A ligação de Hilda com a terra, proporcionada pela chácara, a vida rústica e afastada da badalação, suas referencias frequentes a santas e temas espirituais, tudo isso preceitou um retrato quase místico da autora” (nota, 10) Sobre esse suposto isolamento ao qual teria se entregado Hilda comenta em entrevista: “Confirmei minha afinidade com o campo. Mas não sei o quanto ele interferiu no que eu tinha a dizer. Estar no campo me ofereceu uma vida mais calma, com menos interrupções, propícia para fazer meu trabalho. Eu pude ler muito mais, pensar nas coisas com mais profundidade. Esse isolamento foi necessário para que eu pudesse trabalhar. Mas não foi um isolamento absoluto. As pessoas imaginam que entrei em clausura, me vesti de monge e fiquei jogando cinzas na cabeça, mas não foi assim (risos). Eu estava casada com o Dante (Casarini) e, além disso, minha casa era frequentada por vários amigos, escritores, pintores, atores... Gente com quem tinha muita afinidade. Eu me afastei da vida da cidade mas não do mundo e nem das pessoas”(nota, 31)

O fato de ser uma residência, de representar o espaço intimo, uma ambiência privada tem todo um significado enquanto elemento essencial da existência material na nossa sociedade, somando a isso o fato do bem pertencer a um escritor a torna muito mais interessante. No estudo de tombamento percebemos que a Academia Paulista de Letras, para demonstrar sua relevância, ressalta a influência desse espaço na atmosfera que percorre a dimensão de sua inventividade literária. Somados aos elementos simbólicos que pesam sobre o imaginário da casa, notamos na descrição da edificação e da cultura material disposta no ambiente alguns elementos que compõem o universo simbólico da casa e a relação intrínseca com sua dona. As ações de Hilda em vida, refletem-se até hoje no processo de  ressignificação da casa e seus objetos são utilizados na composição de um discurso expo gráfico, que através das lentes do presente, se utiliza da cultura material para construir informações históricas e culturais. A Casa do Sol foi selecionada e identificada como um elemento significativo da memória de Hilda Hilst pelo grupo de intelectuais e amigos que a cercavam, dessa perspectiva fica claro a forte associação da presença do indivíduo nos registros materiais da Casa do Sol.

Embora considerada pelos arquitetos sem nenhum valor arquitetônico,  as características da edificação possuem um caráter de testemunho, pois foram concebidos e planejados pela própria Hilda. Os elementos arquitetônicos, embora sejam considerados  irrelevantes , não deixam de compor o universo da casa, pois  reflete os valores de quem a desenhou e a construiu, como também dos que ali se apropriaram de seus espaços.  Nesse caso específico a intenção da autora era criar um local propicio para reflexão e que lhe desse condições de produzir sua obra, sua concepção levou em conta essa função e o fato de Hilda ter produzido 80% de sua obra aí, indicaria de fato, o quanto a casa contribuiu para o seu processo literário. A partir desse consenso, esse mesmo grupo, apoiado em instituições que lhe conferem base, opera uma

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ressignificação desses elementos, relacionando-os a uma representação coletiva na qual se identifiquem e adequando aos interesses do presente.

A casa e a Cultura Material.

Antes de retornarmos ao processo de tombamento, faço aqui uma breve descrição do bem, com base nas fotos da época e no conhecimento do local, para darmos a dimensão material do ambiente. É necessário fazer uma consideração sobre o Acervo pessoal da autora. Em seus 74 anos de vida, Hilda produziu, selecionou, guardou e negociou centenas de documentos relativos à sua vida pessoal e profissional. Seu arquivo foi comprado pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio(CEDAE), vinculado ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. O primeiro lote foi vendido em 1995 e o segundo em 2003, um ano antes do falecimento de Hilda.

Nesse sentido, é necessário entender a trajetória do arquivo particular da escritora, visualizando-o como um conjunto orgânico, autêntico e único das coisas produzidas em consequência de suas ações cotidianas.  O fato de seus documentos pessoais terem sido separados resulta das próprias condições e, especificidades do contexto social em que ela viveu, das possibilidades estabelecidas e das tomadas de posição em busca de sua consagração no campo literário.  Segundo notamos nas entrevistas, a partir da década de noventa, as lamentações a respeito da falta de dinheiro vão se tornando cada vez mais constantes nas falas da autora ela fala sobre a transação: “Olha, em 1994 eu estava atravessando uma fase de extrema dureza, como todo bom brasileiro, e um amigo meu apareceu por aqui e sugeriu: porque você não vende teu arquivo pessoal? Eu nem levei a sério, achava incrível alguém se interessar pelo meu arquivo a ponto de me pagar algum dinheiro por ele” (nota, 67).

Muito embora, essa documentação pudesse estar toda guardada na Casa do Sol, segundo Britto (2011), essa divisão, longe de significar uma desvalorização, na verdade, amplia e consolida seu legado. Isso, porque, ao ser comprado pelo CEDAE, seu nome é colocado dentre os grandes literatos, ao ser aprovada pela comissão de especialistas da Universidade, retifica-se o interesse histórico que a Unicamp nutriu pela autora. Além do prestigio acadêmico, ao ser comprado por uma instituição especializada na organização e difusão de acervos, aplica-se um tratamento documental que facilita o acesso e a pesquisa pelos profissionais de diferentes áreas. Isso pode ser uma das razões da ampliação do debate em torno do nome de Hilda Hilst, fato que podemos perceber tanto nos meios acadêmicos, como fora deles.

A venda do acervo para Unicamp é importante por dois motivos. Primeiro porque nos permite observar a seleção empreendida pela própria autora na massa de elementos materiais que constituíam sua vivência, para a entrada em uma instituição pública.  Arquivar-se é sempre uma prática que tem por objetivo um futuro leitor, uma intencionalidade implícita, o que o torna um objeto, interessante de análise. Philippe Artière (1998), trabalha com a ideia de que os processos de escritas de si, através da constituição de arquivos particulares, estão diretamente relacionados aos processos de integração e exclusão social. Não sendo uma pratica neutra, na medida em que visa criar identidades que sobrevivam à passagem do tempo, a manipulação desses acervos determina o sentido que querem dar a essas construções. A partir da materialidade dos objetos, se constroem identidades, que por sua vez, legitimam os valores e usos atribuídos a eles. O segundo ponto de interesse da aquisição do acervo pela Unicamp se baseia na dimensão do que não foi selecionado para o espaço publico e que portanto, passou a compor o acervo da casa do sol . Os elementos materiais que permaneceram, hoje, são à  base do discurso expográfico que fundamenta a importância do espaço como a residência de Hilda Hilst.

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Marialia Xavier Cury (nota), discute a partir dos fundamentos da museologia e da expologia, questões relativas à participação da expografia no processo de musealização. Sob o ponto de vista da autora, o objeto museológico é o objeto institucionalizado, portanto ideológico. O espaço institucionalizado que abriga esse objeto, pode se apresentar de diferentes formas, e sua concepção vem sendo ampliada, pela própria revisão dos conceitos de musealidade e musealização (CURY, p. 9) A ampliação do conceito de patrimônio teve influência direta na multiplicação dos espaços museais no Brasil, “ Essas idéias levaram a criação de multiplas formas de instituição: museus da cidade, museus de bairros, novos museus ou ecomuseus, museus tradicionais(...) Musealizamos por que os objetos possuem sua musealidade (qualidade histórica, antropológica, sociológica, , técnica, artistica, economica , etc.). A musealidade é uma qualidade atribuída e pode ocorrer por critérios determinados por especialista e ou pelo publico, por meio de sua participação nos processos de musealização (p.9, cury).

A partir da Casa do Sol, e da disposição do seu acervo, está implícita a relação entre o homem, o objeto e o espaço. A exposição é uma forma particular de comunicação museológica, precedida por uma seleção por valores. Assim como a patrimonialização, são construções a partir de um olhar contemporâneo. Nesse caso a exposição parece favorecer e dar legitimidade a patrimonialização, visto que é a parte que se manifesta visualmente para o público e gera a experiência de contato. Se conceber e montar uma exposição significa: “construir e oferecer uma experiencia para o publico, experiencia completa e consciente, integrada e delimitada de maneira a alcançar a consumação”(Cury,p14) e se o elemento estruturador de uma exposição, é o objeto museológico, seja para quem concebe, seja para quem visita, percebemos na casa do sol o fato museal, identificamos nesse espaço uma relação entre o homem e os objetos e a composição de um cenário, que visa comunicar. (CURY, p.9)

Tendo em vista que o processo museológico se manifesta de diversas formas, a museografia da casa como instituição é frágil. Não há uma intencionalidade por parte dos agentes que a casa seja considerado um museu. Não há até o presente momento inventário da mobilia e das obras de arte, não há preocupação em identificar os elementos dispostos, de informar sua origem e as formas de aquisição dele aos visitantes. A conservação e a acessibilidade ainda são temas fragéis visto que a Casa do Sol, e sua cultura material (casa e acervo), exercerem uma dupla função. A de servir ao cotidiano da residência e a de representar o passado, significar o tempo. Os objetos não perderam totalmente seu aspecto funcional, as pessoas que vivem na casa, sejam os herdeiros, os residentes ou amigos, fazem uso dos objetos do cotidiano que estão dispostos pelo ambiente. Ocupam a sala, cozinham, sentam-se nas escrivaninhas, nos sofás, dispõe dos livros da biblioteca. Não são semióforos em pleno sentido, mas sem sombra de duvida compõem um discurso expográfico intencional que tem por objetivo representar o modo como Hilda vivia e manter o ambiente “ inspirador” que a cercava. O fato do discurso expografico estar baseado na forma como ela teria deixado o ambiente, pode dar um caráter de naturalidade, que esconde o processo de musealização do conhecimento, a partir da disposição da cultura material. Esse processo de musealização, não se dá no deslocamento do objeto para o espaço museal, no caso específico, a valorização se da a partir do deslocamento de função e sentido, pelo qual passou a Casa do Sol, na transformação de residência em patrimônio cultural.

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A materialidade faz a ponte entre o visível e o invisível, na transformação da casa residência em uma casa memória, a ressignificação de seus espaços tem a capacidade de estabilizar o tempo e despertar emoções. Os objetos passam a ser portadores de significados nos quais baseiam seu valor. Os recursos denominados expográficos da casa do sol, são variados (cury) textos, ilustrações, fotografias, cenários, mobiliários, sons, texturas, cheiros, elementos que potencializam a interação entre o publico e o patrimonio cultural, a casa. Embora, os objetos não estejam tombados, eles funcionam como legitimador do valor primordial do bem, legitimam aquele espaço como a casa de Hilda Hilst.

Do ponto de vista da analise histórica, Ulpiano Meneses (nota, docs pessoais espaço publico) se perguntou qual a natureza do objeto material como documento, em que reside sua capacidade documental, que tipo de informação intrínseca poderia os artefatos conter, especialmente de conteúdo histórico. Nas palavras do autor: “Os atributos intrínsecos dos artefatos, é bom que se lembre, incluem apenas propriedades de natureza físico-química: forma geométrica, peso, cor, textura, dureza etc. etc. Nenhum atributo de sentido é imanente. O fetichismo consiste, precisamente, no deslocamento de sentidos das relações sociais – onde eles são efetivamente gerados – para os artefatos, criando-se a ilusão de sua autonomia e naturalidade. Por certo, tais atibutos são historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e grupos nas operações de produção, circulação e consumo de sentido. Por isso, seria vão buscar nos objetos o sentido dos objetos.(nota)

Scarpelinni(nota) analisa mais profundamente a transformação de casas moradas em casas museu, e evidencia os processos de constituição de patrimônios através da interpretação,

ordenação e exposição de alguns fragmentos da cultura material: “o mito de seu personagem (proprietário da casa)  só se sustenta quando há  uma tradição que o mantenha, quando a preocupação de uma comunidade ou um  grupo social de relembrá-lo  e repassá-lo para a próxima geração. O espaço social da casa morada, transformada em casa museu, procurará despertar  no visitante a memória involuntária, usando  como suporte os objetos testemunhas, aliados a cheiros, sons e imagens, re-significando  os espaços, hoje encenados. Essas representações darão vida aos espaços marcando assim  suas funções e ordenando suas vivências. A  história cotidiana do personagem e da sua família desperta o encantamento e reforçam  ou criam o mito de seu proprietário.(nota)

Feitas essas considerações, aqueles que queiram ir até a Casa do Sol e travarem contato visual com seu acervo, devem portanto, deslocar-se para esse fim até o km (?) da rodovia Adhemar de Barros. Uma vez que o visitante se identifica na guarita de controle do residencial, logo ao entrar, há uma estradada de terra à direita, com uma placa pequena e colorida que indica: “Casa do Sol.” Seguindo uns 300 metros entre mato alto, depara-se com o muro e em frente a ele um descampado, onde os moradores e visitantes deixam seus automóveis. A primeira coisa que chama atenção é o grande portão estilizado em metal, entre duas colunas altas, com um sol no meio. Deste ponto um longo caminho por entre o jardim, revela partes da construção bem ao fundo. Leva-se um tempo caminhando até que se possa entrar na residência.

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2- Portão

3 –Caminho até a residência

Ao entrarmos na edificação, o primeiro que vemos é uma ampla sala, dividida em dois ambientes. De um lado uma sala de estar, com sofás, poltronas, almofadas, mesa de centro. Do outro lado uma mesa de jantar, cadeiras, ao fundo uma lareira de pedras. Da sala temos três opções, podemos virar a esquerda onde está o escritório, ou a direita onde está um corredor que leva a cozinha, ou podemos seguir em frente, onde passamos por uma porta e chegamos ao pátio interno. Iniciando pela parte, digamos, mais intima da residência, temos o escritório. Uma grande mesa de trabalho, estantes, prateleiras e livros, muitos livros. Do escritório seguindo em frente e passando por um banheiro está o antigo quarto de Hilda Hilst, hoje transformado, segundo o herdeiro Daniel Fuentes (nota), no espaço de conservação do instituto, e é onde está a maior parte da biblioteca da autora, com grandes estantes e armários embutidos, repletos de livros.

Esse cômodo é bastante significativo, pois é central na casa de um escritor o valor de sua sua biblioteca pessoal. Em um inventário realizado em 2010, da qual tive a oportunidade de compor a equipe formada pelas profissionais vinculadas ao próprio CEDAE da Unicamp, constatou-se que a biblioteca abrigada pela casa abriga 2.853 títulos, entre eles enciclopédias, dicionários, coleções de obras completas de escritores contemporâneos. Os documentos

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bibliográficos abrangem as mais diversas áreas do conhecimento, dentre elas a história, artes, filosofia, ocultismo e religião e um grande número de literatura de todos os Gêneros.

Sala de jantar, ao fundo a área intima

- Sala de estar

- Escritório

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Da biblioteca acessamos diretamente o pátio interno. Um pátio espaçoso, em chão de paralelepípedo,  com uma pequena fonte circular no meio feita do mesmo material. Uma grande mesa de madeira e vasos de flores e plantas decoram o ambiente.  Do pátio também tem-se acesso à cozinha, que lembra aquelas de fazenda. Do pátio acessam-se também mais dois dormitórios. Depois do pátio, há um portão, que dá acesso a uma grande aérea onde estão construídos alguns canis, que abrigam parte dos cachorros cuidados pelo instituto. E dessa área é possível acessar todo o jardim que circunscreve a residência.

- Pátio interno

Pelos cômodos da casa, existem diversas imagens dispostas na parede, desenhos, pinturas, e muitas fotos. As imagens que compõem o acervo datam da primeira metade do século XX ao ano de 2002, sendo a grande maioria referente às décadas de 60 a 80. São 1277 (nem todas expostas) registros de diversas épocas e aspectos da vida de Hilda Hilst, retratos, cenas cotidianas, reuniões e premiações. A riqueza se revela através da multiplicidade de registros da casa e de sua vivência. Em relação ao referido inventário, cabe ressaltar que ele não contemplou os móveis da casa, e nem os objetos ou adornos decorativos, limitou-se aos livros e fotografias.

- Detalhe da parede

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Esses elementos são significativos para o processo, tendo em vista que a descrição da cultura material é apresentada no pedido de tombamento. Segundo a documentação: “Hilda idealizou um espaço semelhante à arquitetura convencional dos mosteiros mais despojados conservando o claustro com pátio de pedras e a fonte no centro, dez arcos iluminam amplamente quatro corredores, as paredes caiadas conferem ao ambiente a beleza singela das construções nas aldeias alentejanas e a rusticidade do estilo colonial mineiro. As enormes janelas com abas de madeira, as portas também enormes com suas bandeiras de vidro, projetam para a área interna do ambiente a iluminação intimista, desenhada pela paisagem do jardim que margeia toda a construção. Toda a casa conserva os móveis como deixou a escritora. Na imensa sala encontram-se os dois altares com objetos especiais, sendo um deles em cima de uma lareira de pedras, há também os seus quadros , clássico relógio com a frase ‘é mais tarde do que se supões’ , a reprodução da ilustração do porco que trás escrito a máxima kantiana “o espírito da coisa” ,objetos de decoração, fotografias dos amigos José Luis Mora Fuentes, Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu, Olga Bilenky, Lupe Cotrim, entre outros. No cômodo ao lado, separado por uma estilosa porta em arco, estão escritório onde Hilda passava a maior parte do dia, desde cedo, escrevendo e estudando seus temas preferidos: filosofia, física, literatura e misticismo. No escritório está o pôster com  a foto de Frederico  Garcia Lorca e a poesia que Hilda escreveu em sua homenagem, há também o enorme tecido indiano com tecido indiano com o desenho de uma exuberante manda-la , que faz parte da decoração projetada por Hilda, que tinha interesse especial pelas figuras místicas em geral. Pela casa encontramos diversas mandalas, representadas em materiais diversificados, muitas delas pintadas pela artística plástica Olga Bilenky, outras estampadas em tecidos que servem como toalha de mesa ou decoração para paredes e sofás.

- detalhe da decoração da sala

O quarto da escritora foi transformado em biblioteca, aí se pode encontrar fixado nas paredes retratos emoldurados dos escritores admirados por Hilda, a sua maquina de escrever , estatuetas de premis literários, bibelôs da escritora, marcadores de livros usados por ela, entre outros objetos Analisando o acervo de seus livros. Através de anotações, linhas sublinhadas, é possível mapear as influências de Hilda. Além disso, há livros com dedicatórias de amigos e edições raras, tais como versões de Rilke, Otto Rank, Simone de Beauvoir, Friendrich Dürrenmatt, J.K. Huysmans, T.S Eliot, Aragon, Paul Verlaine, entre muitas outras edições estrangeiras, singulares pelo pequeno numero de exemplares impressos ou por ser uma edição

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especial lançada pelas edições De Cluny, Pierre Seghers, Gallimard, Robert Laffont, entre outras ( Processo. 5-6)

Antigo Quarto de Hilda, hoje biblioteca.

Detalhe da Biblioteca

O processo de tombamento da casa do sol considerou importante a preservação não apenas da edificação, mas também da área a jardinada exterior. A casa toda esta rodeada por um imenso jardim, que apresenta grande variedade de arvores, dentre elas uma destacável, a centenária figueira, a preferida dos frequentadores da Casa do Sol. Hilda sempre deixou clara a importância que ela tinha na sua história. Em uma entrevista conta suas experiências: “Essa figueira acho que tem uns trezentos anos. Ela atende pedidos. Hoje, aliás, é um bom dia por causa da Lua cheia. Tudo o que eu pedi para essa figueira deu certo. O que meus amigos pediram também aconteceu. Por exemplo, o Caio Fernando Abreu pediu que a voz dele engrossasse. Ele tinha uma voz muito fina quase não falava, de medo que os outros rissem. Ele pediu que a voz engrossasse: pediu pra ganhar o prêmio Chinaglia e também para ir à Europa. A figueira deu tudo pra ele. No dia seguinte, ele veio me cumprimentar de manhã e eu não sabia quem é que estava falando. É cada coisa que acontece nessa casa.”  A Figueira para Hilda

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representava a própria conquista de seu retiro: “ Pedi, para figueira, quando eu era mocinha, para construir uma casa nesse lugar. Queria fazer uma casa perto de minha mãe, que não queria me dar o terreno. Minha mãe tinha uma hipoteca sobre toda a fazenda. Daí eu tive que pagar, porque a mamãe estava sem dinheiro na época. Houve até um homem chamado Pedro Romero, que se propôs a pagar a hipoteca em troca da figueira. Propôs na frente dos advogados, todos esperando com a caneta na mão. Eu disse: Não, essa figueira sou eu mesma. . Não posso me vender para o senhor. Todo mundo ficou boquiaberto. Depois de uma meia hora ele topou pagar a dívida sem me tomar a figueira” (42) Abaixo dela foi construída bancos de pedras, que permitem que as pessoas sentem-se sob a sombra da gigantesca arvore, propiciando que o local fosse de interação.

Figueira

Academia Paulista de Letras, destaca-se portanto, a partir da leitura do processo como um dos primeiro agentes atuantes para o sucesso do tombamento. Mas não menos importante está atuação dos herdeiros legais de Hilda na busca pela perpetuação de sua imagem e na transformação da Casa do Sol em um lugar de memória. Ao morrer Hilda Hilst deixou em testamento, a Casa do Sol, com tudo o que tinha dentro e os direitos autorais de suas obras, para o jornalista e escritor José Luis Mora Fuentes, um grande parceiro, com quem conviveu por muitos anos, inclusive na Casa do Sol, e que foi responsável pela criação do Instituto Hilda Hilst, e por uma série de ações relativas a casa.  Em 2009, Mora Fuentes, morre de maneira abrupta e inesperada, mas Olga Bilenky e Daniel Mora Fuentes, mulher e filho, respectivamente, como herdeiros legais, assumem imediatamente as ações do Instituto. Olga, também, viveu por mais de duas décadas na Casa do Sol, ela e Mora Fuentes saíram, justamente, na ocasião do nascimento do único filho. Mesmo assim, as relações mantiveram-se muito estreitas, a convivência e troca de ideias, relativamente cotidianas.

Em uma entrevista, Mora Fuentes conta como se fortaleceu uma amizade, que se iniciaria com uma despretensiosa visita a Casa para deixar um cachorro sem lar, viraria uma tórrida e fulminante paixão e terminaria com uma amizade dedicada e leal:“Era o ano de 1967, Hilda estava com 37 anos. Foi assim, numa noite abençoada e cheia de estrelas, que eu entrei pela

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primeira vez na Casa do Sol. Já nesta primeira visita com a minha irmã, a Hilda me convidou para voltar na semana seguinte eu voltei e passei o final de semana. Na época eu estudava- estava concluindo o científico de medicina. Depois disso demorei um ano para voltar a Casa do Sol- foi outra visita de fim de semana. Aos 18 anos saí da casa dos meus pais pensando em ir de carona e mochila para o Rio de Janeiro me encontrar com um amigo, mas resolvi passar antes na Casa do Sol: foi quando conheci o Caio Fernando Abreu, que já estava morando lá há uns dois meses. Eu ia ficar só um fim de semana, mas Hilda me convidou para eu passar uns dias lá, o que, aliás, era típico dela. Foi a partir daí que fomos ficando cada vez mais amigos(...)Não sabia nada dela, não tinha lido nenhum dos seus livros, apenas sabia o que minha irmã me dissera: uma mulher escritora que morava no campo, tinha muitos cachorros e que via discos voadores. A primeira vez que a vi fiquei fascinado. Ela era naturalmente sedutora, encantadora e ficamos conversando a noite toda. (30)

As cartas de apoio anexadas ao texto da Academia Paulista de Letras nos permite identificar outros agentes muito bem posicionados no campo da literatura, que agregaram valor e reconhecimento ao tombamento da casa. A primeira delas é de Alcir Pécora, datada de 06 de abril de 2010, e endereçada ao Daniel Fuentes, diretor do IHH. Como amigo e estudioso de sua obra, reconhece a importância central que tem nela a casa do sol, que foi desde a sua construção projetada para ser a sede de sua produção literária e convívio afetivo e intelectual. Alcir demonstra preocupação com a expansão desordenada da cidade de Campinas e seus possíveis prejuízos e relembra os esforços da autora em vida para manter o terreno amplo que cerca a casa do sol. A destruição da casa do sol, significaria para a cidade, a perda de um patrimônio cultural inestimável, e a derrocada dos esforços de José Luis Mora Fuentes para manter intacta a casa.

Alcir Pécora é professor de teoria literária na Unicamp, crítico literário e não por acaso, um especialista na poética de Hilda. Sua relação com a autora foi estreita e começou a partir de visitas frequentes a Casa do Sol ao longo dos anos oitenta. Era ele o diretor do CEDAE na época da compra do acervo de Hilda , e juntamente com o linguista, poeta e amigo, Carlos Vogt, então reitor da Universidade, permitiu que o processo de venda do acervo pessoal fosse concluído com sucesso. Anos depois em 2001, quando a Editora Globo comprou os direitos da obra de Hilda, ele foi convidado para ser o editor da coleção. Sobre esse momento, conta em uma entrevista : “Para explicar como me tornei editor, organizador e crítico da obra da Hilda, afora a nossa relação, o nome chave aqui é Wagner Carelli. Foi ele que, como diretor da editora Globo, fez com que comprassem os direitos de sua obra. Foi ele também que me fez o convite para ser o organizador da edição. A Hilda precisava do dinheiro e o Wagner Carelli teve a grandeza de visão de perceber o trunfo que isso significaria, a médio prazo, para alavancar a editora Globo, então meio por baixo. De minha parte, exigi apenas duas coisas: que a Hilda me aceitasse como editor e que apenas eu determinasse o que quer que fosse em relação à coleção. Ambas foram aceitas, primeiro pelo Wagner, depois pelo Joaci Pereira Furtado, que sempre me deu o máximo apoio em tudo o que precisei para levar a cabo a tarefa. (Foi uma tremenda sorte contar com editores assim!) A primeira condição era decisiva: se a Hilda preferisse outro, eu cederia imediatamente o meu lugar; mas se ela me aceitasse, como aceitou, a segunda condição era muito importante, pois, como devem saber, havia muita gente passando pela Casa do Sol, e eu não teria paciência para muitos palpites.” (nota, 68).

A segunda carta de apoio é assinada por Mauro Palermo diretor de Globo Livros, no dia cinco de março de 2010. Vale destacar que a distribuição dos livros de Hilda sempre foi uma

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questão recorrente em sua trajetória, e que de alguma maneira foi resolvida com a compra dos direitos autorais pela editora em 2001. Antes disso, boa parte dos títulos da autora se encontravam esgotados há muito tempo, já que publicou quase sempre por pequenas editoras e em tiragens reduzidas. Há o interesse da Editora em que se tombe a casa do sol, pois isso nos nossos dias, agregaria valor não só ao bem em si, mas a própria obra de Hilda. A existência de uma casa e sua cultura material agregada valoriza e pode colaborar para um interesse maior na sua literatura. Ao mesmo tempo em que, com os livros mais acessíveis, seus textos podem ser lidos por um maior numero de pessoas, o que também desperta o interesse pela vida da escritora, encontrando na casa, uma ambiência impactante. Na carta de apoio da Editora, destacam-se os prêmios literários recebidos, a amplitude internacional de Hilda e a sua relação com intelectuais e artistas da âmbito nacional. A editora se diz ciente que disponibiliza em seu catalogo um patrimônio que é da cultura brasileira (A OBRA). Destaca a atuação de Alcir pécora como o organizador da coleção e finalizam com a seguinte frase: “A publicação de toda a obra da autora, será responsável por perpetuar a memoria da escritora que viveu tão intensamente como foi sua obra.” INOTA)

A terceira e última carta é da escritora membro da Academia Brasileira de Letras Lygia Fagundes Telles, datada de cinco de maio de 2010. Nela, Lygia manifesta seu apoio ao pedido de tombamento, sob os argumentos de que além de amiga, Hilda foi poeta, escritora e dramaturga reconhecida pela critica como uma das principais vozes do século XX. Ressalta que grande e valorosa parte da obra hilstiana foi escrita na Casa do Sol, um lugar de inspiração e de reunião de amigos. Lembra que o acervo, e a mobília original compõem o espaço que Hilda fez questão em vida de tornar um loca de difusão e de produções e projetos culturais. Lygia também fala em destino natural da residência.

Em relação à atuação dos agentes dentro do campo literário, percebemos que o pedido de tombamento, respaldado por duas importantes instancias legitimadoras: A Academia Paulista de Letras, como já dissemos, e a tradicional Editora Globo, de alcance nacional e boa distribuição, já consolida a autora como um grande nome da literatura nacional no momento em que se faz o pedido do tombamento. O fato de parte de seu acervo estar abrigado em uma instituição como a Unicamp também retifica esse valor. O passo inicial para a abertura do processo tem como base a importância da autora e a constatação de que a casa do sol já atuava como um centro difusor de praticas culturais, que se preocupava em manter vivo o espirito de Hilda, o que a consolidava como um lugar de memória antes mesmo do tombamento. Ela já estava consolidada no imaginário dos leitores e amigos de Hilda Hilst e foi capaz de gerar ações e reações afetivas, capazes de submetê-la as politicas de preservação.

O destino da Casa do Sol definiu-se em três sessões ordinárias do CONDEPACC. Na primeira delas o Conselho votou a favor do encaminhamento do pedido de Abertura de estudo de Tombamento. Em cumprimento da lei vigente no município de Campinas referente à proteção do patrimônio cultural, uma vez aprovado o estudo, deu-se sequencia aos trâmites estabelecidos pelo decreto municipal no 15.471/06 (nota), e encaminharam-se os autos a manifestação dos órgãos municipais competentes. A coordenadoria do CSPC (Em dezessete de agosto de 2010), envia oficio aos seguintes responsáveis: Antônio Caria Neto, secretário municipal de assuntos jurídicos; Alair Roberto Godoy, secretário municipal de planejamento e desenvolvimento urbano

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e Helio Carlos Jarreta, secretário municipal de urbanismo. Após o parecer favorável dessas instâncias, em uma segunda sessão ordinária, o CONDEPACC aprovou por unanimidade a abertura de processo de estudo de tombamento, a ser realizado pela coordenadoria setorial do patrimônio cultural (CSPC). A exposição do estudo é feita na terceira e ultima reunião, quando o colegiado aprova por unanimidade o tombamento.

Pode ser interessante ressaltar que o município de Campinas viveu entre agosto de 2011 até o fim de 2012 um período conturbado no cenário político. Com a cassação do então prefeito eleito Dr. Hélio(PDT) e na sequencia, a cassação do vice-prefeito Demétrio Villagra (PT), foram realizadas eleições indiretas que colocaram o então presidente da Câmara Pedro Serafim (PDT) como o prefeito da cidade até que se fizessem novo processo eleitoral. Nesse meio tempo, Demétrio Villagra assume novamente a prefeitura e não fica mais que um mês, quando Pedro Serafin volta a assumir o Cargo, dessa vez sem mais interrupções. Esse dado é relevante pois a alternância de poder, gerou a mudança de alguns secretários, como foi o Caso do Secretários da Cultura, que consequentemente dos presidentes do CONDEPACC. Em cada uma das atas, um secretário de cultura diferente está à frente do Conselho. Na primeira era o senhor Arthur Achilles Duarte de Gonçalves, na segunda sessão a presidente é Renata Sunega e na terceira e última reunião do Conselho, o Presidente é Bruno Ribeiro dos Santos. Contudo, percebe-se que a alternância da presidência não interferiu no processo, e que a compreensão deles foi sempre favorável ao tombamento e ao valor da casa como bem.

Uma análise mais aprofundada das reuniões do conselho, trazem alguns elementos importantes para o entendimento do processo e para se compreender a forma como o município de Campinas trabalha as questões do patrimônio cultural. A primeira reunião ocorreu no dia treze de maio de 2010, constatamos através da ata 384 (nota) que o Conselho aprovou, com uma abstenção, e sem grandes discussões o encaminhamento do pedido de abertura de estudo de tombamento da casa do Sol a Coordenadoria Setorial do Patrimônio Cultural (CSPC).Durante a reunião, Daisy Serra Ribeiro( coordenadora do CSPC) explica aos demais conselheiros que recebeu o pedido solicitando o estudo para tombamento da Casa da escritora Hilda Hilst, excetuando-se o Acervo e a Biblioteca que estariam preservados pela UNICAMP. Destaca que a concepção da construção segue conceitos líricos e da poesia da autora: “ o lugar por onde o sol entra” (proc, pag). O conselheiro Welton Nahás Cury(arquiteto,  titular da HABICAMP) comenta que a escritora desejava que a Chácara fosse utilizada para algumas atividades afins e que a sede fosse um Instituto de Arte. Daisy Serra Ribeiro diz que no Inventário a escritora sugere intervenções no espaço delimitado pela Chácara, e que o tombamento se daria somente na Casa e no jardim imediato ao imóvel.

Na segunda sessão, realizada dia trinta e um de 2011, o Conselho aprovou por unanimidade a abertura do processo de tombamento, mas dessa vez alguns pontos foram questionados pelos conselheiros, através da ata 396 (nota), podemos ter uma noção das questões que surgem num primeiro momento. O conselho Welton Nahas Cury (arquiteto,  titular da HABICAMP) é o primeiro a se colocar e diz que o bem em si não é patrimônio histórico, a vida da escritora sim. Para ele cabe uma análise literária, mas não tem valor arquitetônico. Ele afirma não ter conhecimento do assunto e acredita que o interesse da família é emocional. A presidente

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do conselho, Renata Sunega (Arquiteta, urbanista, Historiadora da Arte) enfatiza que o pedido feito pela Academia Paulista de Letras, é em cima da memória de Hilda Hilst, essa sim seria muito importante. A conselheira Rosana Bernardo (secretaria municipal de planejamento e desenvolvimento urbano) fala que não se pode induzir o uso, e que pelo bairro ser residencial, não permite utilização pública. A presidente diz que a casa fica em uma chácara e que não cabe ao Conselho determinar o seu uso.

A conselheira e coordenadora do CSPC, Daisy Serra Ribeiro, especifica que para qualquer questionamento é necessário primeiramente o estudo do local para que o conselho defina pelo tombamento ou não. Interessante notar, que ela mesma diz não estar segura de sua posição, e que o levantamento do bem é fundamental para que ela pessoalmente se posicione. Nas primeiras falas dos conselheiros, podemos notar que o valor arquitetônico é o primeiro a ser questionado, em seguida vem à questão da localização e do uso público/particular do bem. Esse será um dos pontos mais discutidos na terceira e ultima reunião, conforme veremos a seguir.

A última e deliberativa sessão do conselho, que definiu pelo tombamento da residência e da área externa, ocorreu no dia vinte e sete de outubro de 2011, é pode ser acessada através da ata 400(nota) .Essa sem dúvida foi a mais demorada e polêmica das sessões, onde os técnicos do CSPC apresentaram aos conselheiros o estudo realizado pelos técnicos do órgão. A responsável Fabíola Rodrigues na sua exposição deixa claro que a justificativa do tombamento se fundamenta na importância que a casa assumiu como espaço de criação literária e também como significante potente na polissêmica poética de Hilda Hilst. Na apresentação são colocadas as atividades de difusão cultural já realizadas pelo IHH ressaltando a importância do local na produção da obra autora. São apresentadas as fotos do local, da edificação e da área externa. As imagens fazem o percurso do visitante ao entrar no espaço, iniciando pelo grande e estilizado portão, e seguindo pelo largo caminho entre as folhas que levam a porta da residência. Nas considerações do CSPC está dada a “irrefutável importância cultural da obra de HH”(nota), mas segundo o texto: “o mérito do pedido de tombamento constante do processo em tela, merece uma reflexão acurada em virtude da complexidade da preservação aqui requerida vias a vis as limitações intrínsecas ao instrumento jurídico do tombamento.” (nota) A justificativa esta fundada na relevância que o bem assumiu como um espaço de criação literária, como lócus da memória de Hilda Hilst ou ainda, como espaço para difusão de produções e projetos culturais. No interior desse quadro de referencia notamos que a justificativa para a preservação não reside em sua significação material, mas sim enquanto lugar do “espirito” de Hilda Hilst.

. Para o CSPC, não se trata de uma situação na qual : “o bem físico, material, funciona como suporte da memória ou de práticas e identidades, pois no caso em apreciação o que deve ser preservado é o espaço de criação artística, o qual independe de qualquer suporte material específico. Isto significa, resta claro, que a edificação residencial e o jardim inscritos na área do imóvel podem ser substituídos por outra configuração espacial e arquitetônica sem que isso implique prejuízo ao espaço de criação literária que se quer preservar.(processo, pag) Em decorrência dessa analise, o órgão se questiona: Trata-se de uma situação na qual a preservação possa se fazer eficientemente por meio do instrumento jurídico do tombamento?

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O estudo cita a definição de tombamento de Diogo de Figueiredo Moreira, na qual “consiste na intervenção ordinatória e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa do exercício de direitos de utilização e de disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial, dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico, turístico e paisagístico.(processo, p169) Por tanto, para a inscrição de um bem de valor cultural no livro do tombo importa a existência de uma materialidade inequívoca (visto que insubstituível), sem o qual o tombamento não pode Subsistir: “ (..) no caso do bem em tela, o que interessa, da perspectiva dos fundamentos para preservação, não é sua imodificabilidade, mas sim a permanência de um lócus de referência no qual se guarde a memória de Hilda Hilst e no interior do qual se garanta a outros sujeitos a fruição dos elementos que inspiraram sua criação literária. Nesse sentido, a proteção mais eficaz que se pode adotar para garantir a duração dessa memória é a sua encampação por uma intervenção museológica, na qual a questão da imutabilidade (definidora do tombamento), não tem caráter obrigatório, priorizando a adequação do espaço para as atividades de produção e difusão cultural que se apresentam como as reais portadoras da memória e do espírito de “criação” de Hilda Hilst. (NOTA)

Mesmo sob essa concepção o CSPC lembra que em outras situações onde não havia elementos que garantissem a proteção de bens culturais cujos valores estavam assentados em sua dimensão imaterial, o mesmo CONDEPACC optou por lançar mão do instrumento do tombamento para legitimar a proteção cultural desses bens. No município de Campinas existem dois exemplos característicos, o processo do Teatro Municipal “José de Castro Mendes ( (Ver Resolução nº 46 de 13/05/2004, PROCESSO 002/97, ANO1998, Publicação DOM de 03/04/2008:04 ) cujo tombamento incidiu sobre o espaço onde estava construído o Teatro no caso à Praça Corrêa de Lemos, e no uso permanente de teatro, por seu valor cultural. O Parágrafo único decreta que “A arquitetura pode ser modificada ou adaptada conforme a evolução tecnológica para teatros e necessidade de melhorias.” Do mesmo modo, o processo relativo à Praça Visconde de Indaiatuba (RESOLUÇÃO numero 023,ANO1996) determina o tombamento do espaço vazio da praça, conhecida popularmente como "Largo do Rosário", localizada no centro da cidade e de valor cultural, social e histórico inestimável. O parágrafo Único, do artigo primeiro, estabelece que: “As marquises existentes atualmente no local poderão ser demolidas, uma vez que não são tombadas.”.

Em ambos os casos, os tombamentos incidiram sobre a imodificabilidade do seu uso, independente da feição físico-arquitetônica que esses bens pudessem assumir no futuro. (tombamento de uso) A limitação ao direito de uso expressa uma limitação real ao direito de propriedade, configurando-se como restrição compatível com as possibilidades jurídicas do tombamento. Observa-se que a imodificabilidade do uso é mais frágil que a imutabilidade estética ou físico - arquitetônica de um bem, uma vez que a materialidade do bem preservado é o que permite, no mais das vezes, seu reconhecimento na paisagem e sua apropriação e fruição coletivas. Se a imodificabilidade material de um bem pode ser claramente definida por meio de restrições edílicas, o mesmo não se pode dizer da imodificabilidade de uso, pois questão muito mais complexa é definir até que ponto o uso tombado foi ou não incorporado nos usos posteriores dados a um bem sobre o qual pesa uma restrição dessa natureza. (processo, p)

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Diante dessa exposição inicial, são propostas duas formas de proteção para que o Conselho decida pela mais efetiva. A primeira seria o arquivamento do processo, em virtude da inadequação do instituto jurídico do tombamento para garantir a proteção a um bem cuja significação cultural reside em sua dimensão imaterial (espaço de criação literária). A segunda proposta seria a de Tombamento de uso do imóvel, com a preservação da área verde projetada existente. Incidiria sobre o bem a restrição de uso do imóvel como espaço de criação literária e artística e manutenção do jardim

Aberta a discussão, a primeira questão que surge é do conselheiro Roberto Simionatto (engenheiro, representante da associação dos arquitetos e Engenheiros de Campinas - AEAC) que indaga sobre quem seria responsável por gerir o bem após o tombamento. Pergunta ainda se o uso institucional é compatível com o zoneamento residencial no qual está inserido. Dayse ( CSPC), diz que que a família, através do Instituto Hilda Hilst será a fundação encarregada da preservação. Quanto ao uso de bem público no espaço residencial, as técnicas explicam que o uso é compatível e no caso, é o próprio proprietário que assim deseja.

A reunião segue e o conselheiro João Manuel Verde dos Santos (arquiteto, titular da associação regional de escritórios de arquitetura) pondera que enquanto bem cultural não da para discutir, mas ressalta que em termos arquitetônicos, não vê nada de específico na construção. Lembra também que a qualquer momento podem querer fazer mais dormitórios, já que é um local que acomoda artistas, que ali passam temporadas. O presidente Bruno Ribeiro dos Santos (jornalista) enfatiza a questão da atmosfera da casa, lembrando que o jardim foi projetado por ela. Daisy diz que análise incide apenas sobre a criação literária, admitindo sua irrelevância arquitetônica. A conselheira Rosana Bernardo (secretaria municipal de planejamento e desenvolvimento urbano) pede para fazer uma pergunta para reflexão: “Este imóvel esta dentro de uma área de loteamento regular? A partir do tombamento como fazer já que a fundação envolve grande visitação? Precisamos pensar coletivamente pois pode trazer problemas para a residência, já que se trata de um condomínio fechado.(nota) Daisy reforça que Fundação já existe e está implantada

Essa é uma questão sempre debatida, uso/propriedade e muito levada em consideração, mesmo sendo aprovado pelas instancias municipais correspondentes, essa é uma preocupação latente dos conselheiros. A procuradora municipal Valeria Murad Birolli vinculada a Coordenadoria Posturas Municipais, enviou em vinte e sete de setembro de 2010 um parecer ao secretario de assuntos jurídicos, onde ressalta que do ponto legal, nada tem a se opor quanto à continuidade dos estudos de tombamento. Observa que caberá ao CSPC trazer aos autos a documentação necessária a tais estudos, preconizado pelo citado decreto municipal no 15.471/06 e em seguida ao CONDEPACC, após relatório de conselheiros especialmente designado, apreciar a questão tanto do tombamento quanto da área envoltória. O oficio numero 16/2010, assinado pelos técnicos do CSPF:/ DEPLAN/ SEPLAN deram o parecer favorável do ponto de vista da ocupação do solo. O órgão não se opôs desde que não houvesse alterações nas exigências relativas ao entorno e ao imóvel propriamente dito. Com base na lei municipal no 6.031/88, referente ao uso e ocupação do solo, a área onde se encontra o terreno da Casa do Sol esta inserida em zona 03, entendida como estritamente residencial, destinada aos usos

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habitacionais unifamiliares e multifamiliares, o comercio, os serviços e as instituições de âmbito local sé são permitidas com restrição quanto as suas localizações. Assinada pelas funcionárias Paula A. L. de Angeli e Elionette Castro Garzoni, no dia quatorze de fevereiro de 2011, o documento dá seu parecer favorável ao tombamento do imóvel. O oficio de Edson Dias Gonçalves, 17 de março de 2011, diretor de planejamento e desenvolvimento urbano DEPLAN/SEPLAN também autoriza o seguimento do processo, propondo que se faça a alteração do zoneamento para o local de zona 03 para a zona 04.

Já o conselheiro Sérgio Capone (representante da Academia Campineira de Letras) traz para a discussão elementos valoradores do ponto de vista da literatura. Fala que vai ser mais polêmico em seu raciocínio: “Estamos tratando de uma escritora, um dos maiores nomes na metade do século XX. Não temos isso às dúzias. Achar um escritor é muito difícil. Temos nesta cidade a casa de uma pessoa importante. Sua história ainda está sendo escrita e talvez só daqui a cem anos seja totalmente reconhecida. Nós estamos raciocinando não de uma pessoa, mas de uma poetisa. Toda instituição que promove de alguma forma a cultura tem sua importância. Eles pediram o tombamento, mas nós tombarmos quanto ao uso não é possível e o uso é institucional. (proc,pag. 174)

Este momento é muito interessante, pois a fala do conselheiro expressa um sentimento que permeia o universo simbólico de Hilda Hilst. Não foram poucas as vezes que ela disse isso e amigos e critico, que seu reconhecimento se daria no futuro, que nosso tempo mesmo não seria capaz de entendê-la. Essa fala parece compor a construção de um gênio da literatura, processo em andamento, que só se dará efetivamente no futuro, sendo essa uma qualidade dos grandes gênios, sempre incompreendido pelo seu tempo. Diante da incompreensão a que esteve submersa, muitos disseram que sua obra só seria  descoberta pelos leitores no futuro. Carlos Voght foi um dos que argumentaram: “ Vi o trabalho lento da expansão de seu nome e sua introdução em círculos aonde ela não chegava antes e que a transformaram em ícone de uma geração que seguramente a cultuará ao longo do próximo século.” (72)  Na ocasião de sua morte, Jorge Coli escreveu um artigo, onde visionava:  “A  escritora imensa, ainda não foi plenamente avaliada em sua estatura de gigante. Talvez, mesmo, nossos tempos não sejam exatamente os melhores para compreendê-la de fato. Há a posteridade, está claro, essa posteridade que Hilda Hilst via como ingrata, já que o devido reconhecimento que reclamava não chegou, em vida, como ela queria. Esperemos que venha, mais do que agora, em escala ampla. O lema fatídico da escritora: “É mais tarde do que supões” (73) Caio Fernando Abreu, embora tenha morrido jovem, já acalmava a autora em carta de 1969:  “Não te enfosses com os editores. Tem um poema da Florbela Espanca que diz assim: As coisas vem a seu tempo / quando vêm, essa é a verdade. Um dia a coisa sai. E eu acredito no mecanismo do infinito, fazendo com que tudo aconteça na hora exata” (74

A casa, a obra e toda a cultura material associada à Hilda permitiram, de certa forma, que sua biografia não terminasse com a sua morte.  Graças às suas ações no campo literário e no campo da memória, estendeu-se uma possibilidade de seguir viva através de sua obra, de sua casa e de seus objetos pessoais. O tombamento legitima essa versão e busca garantir a estabilidade e a preservação do bem cultural.

Seguindo a ata do processo, o conselheiro Marcelo Juliano (arquiteto, titular dos Instituto dos Arquitetos do Brasil, IAB) coloca que entende a importância de Hilda Hilst, mas reforça a pergunta da conselheira Rosana Bernardo sobre a regulamentação de uso e propõe uma terceira proposta de proteção, sob alegação de que estariam caindo em uma armadilha, já que o ponto de

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vista intangível seria um risco para os interessados. O conselheiro Claudio Orlandi (secretaria municipal de infraestrutura) Se pergunta se o tangível não pode ser discutido: “A casa vai sofrer todas as intervenções necessárias. Que se façam os anexos naquele espaço, mas que se mantenha a casa principal que nos remete a imaterialidade. Pois de fato ela é determinante. Não podemos permitir que a casa sofra uma demolição. Precisamos preservar a atmosfera criada por Hilda Hilst.

Outro ponto interessante da reunião, se dá quando, após ser questionado pelo conselheiro Roberto Simionatto se a reunião não poderia continuar em outro dia, já que estava tarde, o vice-presidente do conselho, Herberto Guimarães (Professor, Advogado, Consultor jurídico, conselheiro emérito do CONDEPACC) é enfático e responde que no momento eles estão entrelaçando emoções, o que se faz urgente. “É o sentimento muito forte. que temos pela escritora e por causa dela, a sua obra é um bem material” (proc, pag) Herberto acha que o local e a obra foram considerado importantes pela sua forma de pensar, acha que um espaço cultural particular tem suas ressalvas. Como a casa é um espaço em um condomínio, o que impediria a visitação publica, recomenda que se faça o registro do bem.

Aqui fica claro que a complexidade da casa enquanto bem cultural, demonstra a formação do próprio processo de políticas publicas em andamento e se adaptando as situações que aparecem. A técnica do SCPC, Fabíola Rodrigues diz que no caso seria necessário criar o registro de produções culturais, e se pergunta no caso de uma obra literária, como se poderia operacionalizar a proteção, já que o inventario municipal não se aplica a obra literária.

A coordenadora do CSPC Daisy, que na reunião de aprovamento do estudo colocou dúvidas quanto a real necessidade do processo, disse que reviu seu posicionamento, e que a casa pode ser tombada sim. Da como exemplo a casa de Guilherme de Almeida, em São Paulo, que apresenta algumas características semelhantes à Casa do Sol. Daisy acredita que se isso não for discutido em profundidade, não por uma questão arquitetônica, mas pela sua importância, seria um ato falho do conselho, e da como exemplo a casa de Carlos Gomes, que foi destruída e é uma grande perda para o município. Ressalta que a artista foi além de sua produção literária, ao deixar uma fundação.

O presidente Bruno Ribeiro dos Santos coloca que se deve achar uma maneira de preservar, diz que a atmosfera que é fundamental, não a casa, mas pelo que ela representa simbolicamente. Coloca que algumas personalidades, só depois de muito tempo tem o reconhecimento, com certeza isso ocorrerá com Hilda Hilst e o conselho não pode deixar a especulação imobiliária acabar com o local. O importante é não demolir, mas é possível permitir interferências para ampliações quando necessárias. O conselho Marcelo Juliano (instituto dos arquitetos do Brasil, IAB) propõe que qualquer intervenção na casa passe pelo conselho, não se colocando nenhuma restrição a priori. A técnica Fabíola diz que talvez não seja o ideal, mas seja o possível. Por fim, a conselheira Rosana Bernardo diz que quanto à questão de uso, é factível ocorrer o uso institucional sem restrição e como fundação não existe restrição.

É colocada em votação, uma terceira proposta de proteção, conforme solicitação dos conselheiros, a saber: “ O tombamento compreendendo a área total do imóvel, com a preservação do jardim e da edificação principal, sendo que qualquer intervenção passe pelo

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CONDEPACC” a proposta foi aprovada por unanimidade. Foi publicado no Diário oficial do município de campinas, no dia nove de novembro de 2011, autorizando a inscrição do bem no livro dos tombos e sujeitando-o as sanções e benefícios previstos na lei 5885 e na lei 12445, 21/12/2005, regulamentada pelo decreto 15358, 28/12/2005.

Casa do Sol

A Casa do sol escolhida como documento para essa pesquisa traz consigo indícios históricos importantes, sobretudo, no que diz respeito a uma configuração social única, uma teia de relações, que sustentam a dimensão material e imaterial de um processo complexo. Mesmo que a justificativa para a preservação não resida em sua significação material e sim enquanto lugar do “espirito” de Hilda Hilst, parece haver Uma dificuldade dos órgãos de preservação em tombar bens pelo seu valor imaterial e/ou intangível, e o reconhecimento por parte do CONDEPACC de suas limitações de atuação na aplicação de medidas de salvaguarda do patrimônio.

Simultaneamente, o tombamento segue sendo, na prática, um instrumento de preservação considerado como mais efetivo. Os técnicos do CSPC mesmo constatando que tombamento não seria adequado para esse tipo de patrimônio, digamos "imaterial, decidem por ele, sob pena de ver aquela memória apagada. Deriva dai, uma ambiguidade própria e necessária ao compreendimento do Patrimônio Cultural nas duas dimensões que lhes são inerentes, a material e a imaterial, já que o lugar do espírito remete à questão da materialidade do espaço. Ainda que a os mecanismos  de proteção do município não deem conta de preservar esse tipo de bem em toda sua complexidade, noção de patrimônio cultural defendida pelo CONDEPACC é historicamente, bastante ampla, e considera a relação intrínseca entre os aspectos materiais e intangíveis. No caso especifico da Casa do Sol sua compreensão como bem cultural engloba além da materialidade da casa, a questão da vivência que lhe é peculiar e lhe confere sentido.

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