Andre_A._M._Estevez(1)
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO INSTITUTO DE ARTES
As Bodas de Fígaro: um estudo prático da busca pelo
equilíbrio entre canto e encenação
André Azevedo Marques Estevez
São Paulo
2012
2
André Azevedo Marques Estevez
As Bodas de Fígaro: um estudo prático da busca pelo
equilíbrio entre canto e encenação
Monografia apresentada ao Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista para obtenção do título de Bacharel em Música, com habilitação em Canto Lírico.
Orientador: Prof. Dr. Abel Rocha
São Paulo
2012
3
4
Agradecimentos
Aos meus pais e avós, que sempre apoiaram e incentivaram os meus estudos musicais, o
meu ingresso na faculdade e minha vinda para São Paulo.
Às professoras Martha Herr e Márcia Guimarães, por tudo que ensinaram e pelo
incentivo e ajuda com a minha transferência de curso.
Ao Paulo Maron e à Marilia Velardi, por serem meus mestres e amigos e por toda a
influência que tiveram no meu projeto.
Aos colegas do NUO, por tornarem a experiência de fazer ópera ainda mais prazerosa e
instigante.
Aos amigos Teo e Fabi, por toda ajuda e carinho dedicados a mim durante todo o
processo de escrita do trabalho.
Aos irmãos Pedro Ometto e Felipe Faglioni, por me aguentarem todos os dias, nos bons
e maus momentos.
Ao Prof. Dr. Abel, pelos ensinamentos e por ter aceitado orientar este trabalho.
Aos amigos Guilherme Prioli e Gabriela Striani, que aceitaram assumir a empreitada
maluca de montar junto comigo As Bodas de Fígaro.
E por fim, mas não menos importante, a todos os cantores e equipe que participaram da
montagem de As Bodas de Fígaro, sem os quais esse trabalho não existiria.
5
Resumo
Buscando investigar o aspecto cênico do espetáculo operístico, o presente trabalho tem
o intuito de discutir a preparação corporal como ferramenta de construção da encenação
e investigar como os cantores se relacionam com ela. O trabalho propõe um estudo
auto-etnográfico: trata-se de um estudo de caso de uma produção de As Bodas de Fígaro
(ópera em 4 atos de W. A. Mozart e libreto de Lorenzo da Ponte), cujo elenco foi
composto por jovens em formação - com pouca ou nenhuma experiência prévia em
ópera - e uma direção igualmente jovem e pouco experiente.
6
Sumário
Projeto de pesquisa 08
Introdução 10
Metodologia 13
Pré-produção 16
Escolhendo a obra 16
A equipe 16
Escolhendo o elenco 17
O Processo 18
1ª. Parte: As oficinas 18
2ª. Parte: Os ensaios 21
3ª. Parte: Os ensaios-gerais 24
4ª. Parte: As récitas 25
O Resultado 27
Considerações Finais 28
Bibliografia 30
Para a realização do espetáculo 30
Para a realização do trabalho 30
Referências Bibliográficas 31
Anexos 32
Anexo 1: Entrevista com colaborador 1 32
Anexo 2: Entrevista com colaborador 2 35
Anexo 3: Entrevista com colaborador 3 37
Anexo 4: Entrevista com colaborador 4 39
7
Tornar o impossível possível, o possível fácil e o fácil elegante.
Moshe Feldenkrais
8
Projeto de pesquisa
Desde uma das grandes modificações na preparação do ator, que teve início em
meados do século XX (CESAROLLI JR.,2011), a questão do corpo no teatro é bastante
recorrente e, ainda hoje, é comum encontrarmos reflexões sobre qual deve ser o
treinamento do ator para que ele esteja disponível e preparado para a
encenação (VELARDI, 2011). Mas será que o treinamento proposto para os atores se
aplica também à ópera? Os cantores envolvidos na produção de um espetáculo
operístico acreditam que o treinamento corporal próprio dos atores é importante para a
sua atuação?
Velardi aponta que, “no caso da ópera o corpo parece ainda obedecer à ideia de
corpo instrumental: o corpo que produz a voz. O corpo que, tal qual um instrumento,
deve estar estável para a produção do que é esperado em relação à técnica vocal”.
(VELARDI, 2011). Essa ideia deve-se, possivelmente, à crença de que a movimentação
cênica desestabiliza o corpo, dificultando ou impossibilitando a emissão vocal. O que
muitas vezes é verdade, pois
em alguns casos, alunos (...) ao tentarem enfatizar os pontos mais dramáticos da peça caem na superatuação, contorcendo-se e comprometendo o aspecto vocal e musical com uma tensão corporal excessiva e completamente desnecessária. (GUSE, 2009, p. 11).
Ao mesmo tempo, sabe-se que para uma atuação cênica consistente, o corpo
deverá estar disponível. Como conciliar, então, essa questão? As ações físicas,
fundamentais para a constituição da cena e para a composição das personagens, podem
realmente dificultar o canto? E, ainda que um cantor acredite na necessidade de uma
boa performance cênica, ele está preparado para tal?
Este trabalho parte do pressuposto de que é possível para o cantor preparar-se
cenicamente, de modo que as ações físicas requeridas para a encenação não
prejudiquem, ou prejudiquem pouco, a qualidade vocal. Limites existem, mas talvez
eles estejam muito mais distantes do que se pode supor.
Com o intuito de discutir a preparação corporal como ferramenta de construção
da encenação do espetáculo operístico e investigar como os cantores se relacionam com
ela, o presente trabalho propõe um estudo auto-etnográfico. Farei um estudo de caso de
uma produção de As Bodas de Fígaro (ópera em 4 atos de W. A. Mozart e libreto de
Lorenzo da Ponte), cujo elenco foi composto por jovens em formação - com pouca ou
nenhuma experiência prévia em ópera – e com uma direção igualmente jovem e pouco
9
experiente. O processo inteiro foi uma grande busca coletiva de aprendizado. Essa
montagem foi dirigida por três pessoas, sendo eu uma delas – por isso, auto-etnografia.
A auto-etnografia (...) se caracteriza por uma escrita do “eu” que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. (FORTIN, 2009)
O elenco começou os ensaios em março, passou por 4 oficinas de técnicas corporais diferentes, além de preparação corporal guiada pela direção do espetáculo em todos os ensaios cênicos
Objetivos
Compreender como os integrantes do elenco de As Bodas de Fígaro fazem uso das técnicas corporais apresentadas a eles como ferramentas para a construção de suas personagens e da atuação cênica, além de investigar como eles conciliam canto e encenação.
Metodologia
Além da revisão bibliográfica sobre a preparação corporal do ator, este trabalho se utilizará de instrumentos de pesquisa qualitativa, como entrevistas semiestruturadas e diários de campo. As entrevistas foram realizadas com alguns dos integrantes do elenco após as datas de apresentação do espetáculo e os diários de campo foram utilizados durante o período de ensaios.
Referências Bibliográficas
CESAROLI JÚNIOR, Umberto. O contexto europeu de formação e atuação na passagem do século XIX para o XX. AspaS, São Paulo, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.pos.eca.usp.br/sites/default/files/Image/ppgac/umbertocerasoli.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2012.
FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a pesquisa na prática artística. Cena, Porto Alegre, n. 7, 2009. Tradução: Helena Mello. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961>. Acesso em: 27 ago. 2012.
GUSE, Cristine Bello. O cantor-ator: um estudo sobre a atuação cênica do cantor de ópera. 2009. 262f. Dissertação (mestrado e música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2009.
OLIVEIRA, M. Marly. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2007.
VELARDI, Marília. O corpo na ópera: alguns apontamentos. Sala Preta, São Paulo, v. 11, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/361>. Acesso em: 5 jan. 2011.
10
Introdução
(...) a ópera trabalha com duas modalidades artísticas que se mostram fundamentais para sua existência - a musical e a teatral – e é a partir dessa constatação, a princípio óbvia, que surge uma eterna polêmica: a ópera deveria ser considerada uma obra musical ou teatral? Ou melhor, qual seria a prioridade em um espetáculo de ópera: a música ou a cena? (GUSE, 2009, p. 21).
Há alguns artistas que acreditam que a ópera é um espetáculo musical antes de
tudo e, portanto, aceitam que a cena pode ser comprometida em prol de uma boa
execução vocal-musical. Outros enxergam o espetáculo cênico como primordial e,
assim, preferem comprometer a música. Independente de para qual lado da balança
esteja pesando o pensamento de um artista da ópera, não se pode esquecer, como afirma
Guse, que a ópera é composta por essas duas modalidades artísticas, e que nenhuma
delas pode ser desconsiderada. “O que se faz necessário, na ópera, não é apenas um bom
cantor, mas também um bom ator. Deve haver uma correspondência harmoniosa entre
arte dramática e arte vocal-musical.” (STANISLAVSKI, 1997, p. 31). Além disso,
cada vez mais são valorizados pelo público, cantores que além de terem excelentes vozes e uma sensibilidade musical significativa, também conseguem representar crivelmente suas personagens, que não demonstrem apresentar dificuldades em cantar e movimentar-se ao mesmo tempo, e que se envolvam profundamente com a representação da situação dramática retratada no palco. (GUSE, 2009, p. 10).
Desde uma das grandes modificações na preparação do ator, que teve início em
meados do século XX (CESAROLLI JR.,2011), a questão do corpo no teatro é bastante
recorrente e, ainda hoje, é comum encontrarmos reflexões sobre qual deve ser o
treinamento do ator para que ele esteja disponível e preparado para a
encenação (VELARDI, 2011). Mas será que o treinamento proposto para os atores se
aplica também à ópera? Os cantores envolvidos na produção de um espetáculo
operístico acreditam que o treinamento corporal próprio dos atores é importante para a
sua atuação?
Velardi aponta que, “no caso da ópera o corpo parece ainda obedecer à ideia de
corpo instrumental: o corpo que produz a voz. O corpo que, tal qual um instrumento,
deve estar estável para a produção do que é esperado em relação à técnica vocal”.
(VELARDI, 2011). Essa ideia deve-se, possivelmente, à crença de que a movimentação
cênica desestabiliza o corpo, dificultando ou impossibilitando a emissão vocal. O que
muitas vezes é verdade, pois
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em alguns casos, alunos (...) ao tentarem enfatizar os pontos mais dramáticos da peça caem na superatuação, contorcendo-se e comprometendo o aspecto vocal e musical com uma tensão corporal excessiva e completamente desnecessária. (GUSE, 2009, p. 11).
Ao mesmo tempo, sabe-se que para uma atuação cênica consistente, o corpo
deverá estar disponível. Como conciliar, então, essa questão? As ações físicas,
fundamentais para a constituição da cena e para a composição das personagens, podem
realmente dificultar o canto? E, ainda que um cantor acredite na necessidade de uma
boa performance cênica, ele está preparado para tal?
A formação do cantor lírico nas universidades é vista como essencialmente
musical. São poucas as escolas que disponibilizam para a formação do cantor
disciplinas que buscam o desenvolvimento cênico. “Estas habilidades cênicas
necessárias à ópera são desenvolvidas em geral pela maioria dos cantores profissionais
através da própria experiência, onde estes intuitivamente encontram seus próprios
métodos de estudo.” (GUSE, 2009, p. 11).
Como a ópera trabalha com dois polos – o cênico e o musical –, cabe ao diretor
fazer a escolha de como pesa a balança cena/música no espetáculo. No entanto, cabe ao
cantor-ator estar preparado para o que o diretor propuser.
Este trabalho parte do pressuposto de que é possível para o cantor preparar-se
cenicamente, de modo que as ações físicas requeridas para a encenação não
prejudiquem, ou prejudiquem pouco, a qualidade vocal. Limites existem, mas talvez
eles estejam muito mais distantes do que se pode supor.
Uma vez que a maior parte da bibliografia sobre ópera trata do aspecto musical e
muito ainda precisa-se discutir sobre a preparação cênica do cantor, esse trabalho
pretende focar a sua investigação nesse lado da balança, o aspecto cênico. Mais
precisamente, o trabalho pretende descrever a preparação corporal, seus usos, e os
resultados obtidos com ela na produção do espetáculo que serviu como fonte de estudo.
Com o intuito de discutir a preparação corporal como ferramenta de construção
da encenação do espetáculo operístico e investigar como os cantores se relacionam com
ela, o presente trabalho propõe um estudo auto-etnográfico. Farei um estudo de caso de
uma produção de As Bodas de Fígaro (ópera em 4 atos de W. A. Mozart e libreto de
Lorenzo da Ponte), cujo elenco foi composto por jovens em formação - com pouca ou
nenhuma experiência prévia em ópera - e com uma direção igualmente jovem e pouco
12
experiente. O processo inteiro foi uma grande busca coletiva de aprendizado. Essa
montagem foi dirigida por três pessoas, sendo eu uma delas – por isso, auto-etnografia.
A auto-etnografia (...) se caracteriza por uma escrita do “eu” que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais sensível de si. (FORTIN, 2009)
O elenco começou os ensaios em março, passou por 4 oficinas de técnicas
corporais diferentes, além de preparação corporal guiada pela direção do espetáculo em
todos os ensaios cênicos e apresentou-se nos dias 8 e 9 de setembro.
Por meio de observação participante e entrevistas, busca-se perceber como essas
técnicas afetaram a atuação dos cantores-atores, como fizeram uso das técnicas
corporais apresentadas a eles como ferramentas para a construção de suas personagens e
da atuação cênica, além de investigar como eles conciliam canto e encenação. “Um
estudo prático repousa sobre a premissa de que a prática artística será melhor
compreendida se colocada em relação ao pensamento e ao agir dos praticantes.”
(FORTIN, 2009).
Por fim, esse trabalho surge de uma inquietação por entender o fazer artístico do
cantor lírico.
A coleta dos dados sobre o processo criador permite ver a parte visível da prática efetivamente, mas, também, ver a parte invisível, as intuições, os pensamentos, os valores, as emoções que afloram na prática artística e que nascem do relato simples aos gestos. (FORTIN, 2009).
Faz-se necessário, ainda, esclarecer que, como o trabalho pretendia fazer um
estudo de caso, foi da observação do processo de produção de As Bodas de Fígaro que
surgiu o desenvolvimento desse estudo e, portanto, as escolhas metodológicas da
produção do espetáculo foram feitas antes de serem descritas e estudadas no presente
trabalho e toda a pesquisa bibliográfica e escrita da monografia aconteceu após a estreia.
13
Metodologia
Por se tratar de um estudo auto-etnográfico, me insiro no projeto não só como
observador/descritor, mas também como participante. O caso estudado é de um grupo
que se preparou para a montagem de uma ópera da qual fui um dos diretores, tendo eu,
assim, participado ativamente de todo o processo de realização do espetáculo.
Com o objetivo de preparar os cantores-atores para a encenação, foi
proporcionada a eles, como experiência prática, uma série de quatro oficinas corporais
que visavam o aprimoramento técnico-expressivo de suas capacidades cênicas.
(...) o trabalho corporal trata diretamente do que é visto, mas, ao fazê-lo, tem o poder de penetrar igualmente no mundo das coisas apenas perceptíveis, das coisas sonhadas, esperadas, perseguidas imaginariamente. Se há um canal que viabiliza o intencionado, esse canal possui mão dupla e pode ser estimulado a partir do exterior, provocando reações e a vivência concreta de impulsos corporificados. (AZEVEDO, 2012, p. 278)
Com isso, buscou-se prepará-los no sentido de construir a encenação de fora para
dentro. A partir do trabalho corporal, do gesto, da postura, acreditamos que é possível
chegar à caracterização da personagem. Com base nisso, propusemos as oficinas a
seguir:
Fundamentos da técnica de Martha Graham:
Martha Graham criou a única técnica de dança moderna completamente
codificada. Sua técnica centra-se no movimento pélvico como precursor do movimento
do resto do corpo. Através de exercícios de contraction, release, high release e spiral
dessa técnica, buscou-se sensibilizar os cantores-atores para o movimento pélvico e do
tronco, e introduzir o conceito de que toda ação corporal começa no tronco,
importantíssimo para a concepção cênica da direção do espetáculo.
Fundamentos da técnica de Rudolf Laban:
Essa técnica trabalha com as qualidades do movimento (peso, fluência, tensão e
ritmo), que foram usadas como ferramentas na construção do corpo do personagem e de
suas ações físicas. Além disso, buscou-se com esse trabalho um aprimoramento da
ocupação do espaço cênico pelos cantores-atores, já que a técnica de Laban pensa o
movimento como algo que deve preencher o espaço ao seu redor, principalmente através
14
do uso da imagem da Kinesfera (conceito que será aprofundado na primeira parte do
capítulo “O Processo”, que trará a descrição das oficinas).
Fundamentos da prática de Klaus Vianna:
Klaus Vianna, bailarino por formação, foi um dos precursores da preparação
corporal no Brasil e seu trabalho é voltado para a corporeidade expressiva de atores e
bailarinos. A oficina abordou elementos de ampliação da consciência corporal,
facilitando, assim, os movimentos, bem como ampliando a capacidade expressiva do
gesto. Nessa oficina, também foram introduzidos os conceitos de plano alto, médio e
baixo, que juntamente com o trabalho realizado na oficina de Laban, ampliam as
capacidades de ocupação do espaço.
Contato Improvisação:
Essa técnica foi criada pelo dançarino e coreógrafo experimental Steve Paxton.
Trata-se de uma técnica que propõe um diálogo físico por meio da troca de peso e do
contato, que possibilita uma profunda percepção de si mesmo e do outro. Os
movimentos que surgem da técnica lidam com a inércia, o momento, o desequilíbrio e o
inesperado. E dentre os principais conteúdos estudados estão o domínio e compreensão
do peso, pressão e tração, fricção, o toque e a condução, além de quedas e suspensões.
Por implicar num contato próximo e uma quebra das barreiras do tato, esperava-se,
portanto, gerar cumplicidade entre os cantores-atores e um maior grau de conforto ao
contracenarem uns com os outros.
Essas oficinas foram oferecidas no início do processo, antes de as cenas
começarem a ser trabalhadas. Ao longo dos ensaios, alguns conceitos foram retomados
para ajudá-los na concepção de suas personagens e num aprimoramento de sua ação
cênica. Ao longo do texto, explanarei sobre a eficácia e o recebimento dessas oficinas
pelos integrantes do elenco, conforme relato deles e minha própria percepção.
Além das oficinas, eles assistiram ainda a uma palestra sobre a história da
encenação, onde foi evidenciada a importância do trabalho corporal no pensamento de
alguns teóricos do teatro e da música, tais como Delsarte, Dalcroze, Meyerhold, Artaud,
Lecoq, Grotóvski, Appia e Brook.
O trabalho trará um relato da experiência vivida na produção do espetáculo como
um todo, desde a escolha da peça até a sua apresentação, e se utiliza de instrumentos de
pesquisa qualitativa, como entrevistas semiestruturadas e diários de campo. As
15
entrevistas foram realizadas com os integrantes do elenco que se voluntariaram a
responder, e concentram-se em tentar entender a percepção do entrevistado sobre a
interferência das técnicas corporais oferecidas a eles na sua performance cênica e vocal.
Tendo a primeira entrevista sido feita pessoalmente, gravada e transcrita, e as demais
feitas por escrito. Os diários de campo foram utilizados durante o período de ensaios.
Neles, tomei nota das minhas impressões com relação ao andamento do grupo, seu
aproveitamento, apropriação das técnicas e resultados.
16
Pré-produção
Escolhendo a obra
O libreto de As Bodas de Fígaro trabalha com elementos farsescos e é repleto de
acontecimentos inusitados e quiproquós. Por isso, se revelou um farto celeiro de
possibilidades cênicas que gerariam desafios interessantes para os envolvidos no
projeto. Por se tratar de uma ópera bastante longa e complexa, no entanto, adaptações
foram necessárias para adequar o projeto às condições da equipe envolvida.
A primeira medida foi realizar cortes. A escolha de quais números deveriam ser
retirados foi feita pelo contexto. Os números musicais que interferiam pouco ou nada na
história foram priorizados como possíveis cortes. Os números excluídos foram: Se a
caso madama la notte ti chiama, La vendeta, Non più andrai, Venite, inginocchiatevi,
Aprite, presto, aprite, Ricevete, o padroncina, Il capro e la capretta e In quegli anni.
Além disso, os recitativos secos foram transformados em diálogos. A ideia era
dinamizar o espetáculo, aproximá-lo do público, além de facilitar adaptações e emendar
os cortes.
Como a intenção era realizar um espetáculo que tivesse autonomia, que não
necessitasse de um narrador ou qualquer elemento externo para fazer a história ser
entendida, foi necessário adaptar o texto para que os números se conectassem e fizessem
sentido sem os números cortados.
Além disso, o texto de Lorenzo da Ponte, assim como o de Beaumarchais, é de
uma época em que o teatro era um espetáculo muito focado na palavra. Para tornar o
espetáculo mais próximo de uma linguagem mais atual de encenação, e da estética
proposta pela direção, bastante preocupada com a ação dramática, alguns textos foram
cortados e simplesmente substituídos por ações físicas, o que corrobora com um
trabalho que investiga a preparação corporal do cantor-ator de ópera.
A equipe
Para um trabalho desse porte, foi necessário formar uma equipe. Além de mim, a
equipe contou com a participação de Guilherme Prioli, estudante de regência do
Instituto de Artes da UNESP, como colaborador na direção musical; Gabriela Striani,
estudante de licenciatura em arte-teatro do Instituto de Artes da UNESP, como
17
colaboradora na direção cênica; e Maria Medeiros e Natalia Capucim, bacharéis em
canto pela UNESP, como colaboradoras na equipe de produção. As decisões foram
tomadas, na maioria, em conjunto. E as tarefas foram distribuídas entre todos.
Escolhendo o elenco
Para buscar uma experiência mais próxima do mundo profissional, optamos por
realizar audições. Foi divulgado, por meio da internet, um edital de convocação dos
cantores. Nesse edital, constavam as informações de que seria uma produção estudantil,
que serviria como material de pesquisa para um trabalho de conclusão de curso. Para
isso os cantores deveriam participar como colaboradores, sem qualquer forma de
pagamento. Como contrapartida, foi dito que para o andamento da pesquisa, eles
passariam por algumas oficinas, que também serviriam para seu desenvolvimento
profissional.
Inscreveram-se 26 cantores, sendo 13 sopranos, 4 mezzos-sopranos, 5 tenores e
5 barítonos. Para a seleção, a banca, composta pelos três diretores, observou não só o
desempenho vocal, mas também o cênico. O objetivo era selecionar cantores que
estariam disponíveis para o trabalho corporal proposto.
Desses 26 cantores, foram selecionados: 3 sopranos, para os papéis de Susana, A
Condessa e Barbarina; 2 tenores, para os papéis de Dom Curzio e Dom Basílio; 3
barítonos, para os papéis de Fígaro, O Conde e Antônio; 2 mezzos-sopranos, para os
papéis de Marcelina e Querubino.
Como não foi possível preencher o papel de Bartolo com as audições, um cantor
não inscrito foi convidado. Além disso, o barítono que realizaria o papel de Fígaro teve
de se afastar do projeto no meio do processo, tendo sido necessário convidar outro
cantor.
18
O processo
1ª parte: As oficinas
A escolha das oficinas a serem aplicadas partiu da própria experiência prática dos
diretores cênicos. Tanto eu quanto a outra diretora temos uma formação cênica focada
no trabalho corporal e que acredita que a construção da personagem e da encenação se
dá majoritariamente no corpo. “Para Meierhold, o movimento cênico é o mais
importante dos elementos da cena, e o ator há que se apropriar de um código baseado
em princípios técnicos muito bem determinados para atuar no palco.” (AZEVEDO,
2012, p. 15, grifo nosso). Por isso, partimos de nossas experiências pessoais e
escolhemos aquilo que acreditamos ser mais proveitoso para o desenvolvimento das
capacidades cênicas do nosso elenco.
Após alguns ensaios em que conversamos sobre o enredo, as personagens e
fizemos alguns jogos de improvisação (utilizamos os jogos de Viola Splin, 2001), o
elenco assistiu a uma palestra ministrada pelo maestro Paulo Maron, diretor do Núcleo
Universitário de Ópera (NUO), sobre a história da encenação e um pouco de teoria do
teatro contemporâneo, onde foi evidenciada a importância do trabalho corporal no
pensamento de alguns teóricos do teatro e da música, tais como Delsarte, Dalcroze,
Meyerhold, Artaud, Lecoq, Grotóvski, Appia e Brook. Afinal, esses pensadores e
artistas do teatro se dedicam ao corpo do ator como prática e como concepção teórica.
(AZEVEDO, 2012, p. 4).
Essa palestra foi escolhida, pois o maestro Paulo Maron vem desenvolvendo um
trabalho bastante importante de formação cênica dos jovens cantores em seu grupo. Eu,
como integrante do NUO, vejo muitos resultados positivos no trabalho proposto. A ideia
dessa palestra era que os cantores-atores entendessem mais do processo que viveriam
nas oficinas e nos ensaios.
A primeira oficina de prática corporal que eles tiveram foi Fundamentos da
técnica de Martha Graham, ministrada pela Profª Drª Marília Velardi, preparadora
corporal do NUO, professora da USP no curso de Ciências da Atividade Física, doutora
em pedagogia do movimento. Tendo eu próprio experimentado essa técnica como
integrante do NUO - em diversas montagens, e mais acentuadamente na produção da
ópera Prométhée, de Gabriel Fauré, realizada em 2011 - acreditei que ela proporcionaria
um entendimento de um conceito chave no teatro contemporâneo: toda ação corporal
19
começa no tronco. Esse conceito foi primeiramente desenvolvido por François Delsarte
e depois se tornou ponto pacífico na dança moderna, onde o tronco passa a mobilizar
todo o corpo e liderar o desenvolvimento de cada gesto. (AZEVEDO, 2012, p. 55). Para
Martha Graham, “É no tronco que tudo tem início. Nele se alojam as forças vitais
manifestas em contínua pulsação.” (AZEVEDO, 2012, p. 75).
Toda a técnica da Martha Graham (para mais informações sobre essa técnica, ver
BLUM apud Suite101, 2009) tem uma forte ligação com o movimento pélvico e suas
coreografias constituem-se de intensa movimentação do tronco. “O torso é a origem do
movimento em seu constante pulsar, inspiração e expiração, contração e relaxamento.”
(AZEVEDO, 2012, p. 74). Seu trabalho na dança desenvolve e amplia toda a pesquisa
sobre a ação corporal iniciada por François Delsarte, ainda no século XIX. Graham
trabalha com as posições básicas contraction, release, high release e spiral, que têm um
potencial cênico bastante evidente. Esses conceitos foram retomados algumas vezes
durante os ensaios cênicos, como elementos que pudessem auxiliar a construção da ação
física.
A segunda oficina foi Fundamentos da técnica de Rudolf Laban, também
ministrada pela Profª Drª Marília Velardi e vivida previamente por mim no NUO.
Na minha experiência anterior como diretor1, observei que os cantores-atores
tinham uma dificuldade de percepção do ambiente e, consequentemente, ocupação do
espaço cênico. Imaginando que essa dificuldade também pudesse estar presente nesse
grupo, acreditei que uma vivência da técnica desenvolvida por Rudolf Laban seria
interessante, uma vez que ele trabalha com o preenchimento do espaço (para um
aprofundamento de sua técnica, ver LABAN, 1978). Laban trabalha o movimento com a
imagem do corpo dentro de um sólido geométrico, ao qual ele dá o nome de Kinesfera,
e o espaço dentro dessa figura deve ser explorado e preenchido. A Kinesfera seria a área
em torno do corpo, tendo o tronco como o centro e delimitada pelos movimentos de
braços e de pernas. Sem qualquer deslocamento, trata-se do espaço ocupado pelo corpo
em sua expansão máxima. Quando dois corpos se encontram, encontram-se também
suas Kinesferas. Dessa maneira, além de seu próprio entorno, o cantor-ator deveria
preocupar-se também em preencher o espaço da Kinesfera do outro.
1 Em 2011 dirigi um pocket da ópera The Pirates of Penzance, de Gilbert & Sullivan, também com estudantes.
20
O estudo das leis da harmonia espacial visa à experimentação das dimensões possíveis ao corpo em sua conexão com a Kinesfera (...). Essa exploração inclui também variações na amplitude do movimento, passos, saltos e gestos que saem e retornam ao centro do corpo. (AZEVEDO, 2012, p. 67).
Além disso, essa técnica trabalha com as qualidades do movimento (peso,
fluência, tensão e ritmo), ferramentas essenciais para a construção do corpo das
personagens e das ações físicas. Esse estudo das qualidades do movimento se tornou
ainda mais importante para cenas de árias, onde o personagem está sozinho no palco,
pois não há nenhuma ação concreta necessária a ser feita, mas cenicamente o cantor-ator
deve demonstrar toda a movimentação interna de sua personagem.
(...) um solilóquio e um solo de dança são, na realidade, um diálogo entre dois polos de uma individualidade mobilizada por reflexões pessoais ou por alterações de humor. A dualidade dos polos se torna visível nos movimentos, os quais exibem as tensões internas. (LABAN, 1978, p. 22).
Em seguida, tivemos a vivência da prática de Klaus Vianna. Essa proposta foi uma
sugestão da outra diretora cênica, Gabriela Striani, que, na época, realizava um curso de
formação nessa prática. A oficina abordou elementos de ampliação da consciência
corporal, facilitando os movimentos, bem como ampliando a capacidade expressiva do
gesto. Klauss Vianna diz que o ator precisa chegar a uma grande soltura física, obtida
por meio de profunda consciência do próprio corpo, sem a qual o ator não faz mais do
que reproduzir formas existentes (SAADI, 2009). Nessa oficina, também foram
introduzidos os conceitos de plano alto, médio e baixo, que tratam da ocupação do
espaço vertical. O plano baixo é aquele mais próximo ao solo e envolve posições
deitada, sentada e de agachamento, com tronco e cabeça direcionados para o solo; o
plano médio pode ser ocupado com um moderado flexionamento de joelhos, ou
agachamento com uma postura de tronco e cabeça mais erguidos; e o plano alto é a
posição em pé, ou o mais distante do solo que for possível. Juntamente com o trabalho
realizado na oficina de Laban, esse conceito explorado na técnica de Vianna ajudou a
ampliar as capacidades de ocupação do espaço dos integrantes do elenco.
A última oficina oferecida a eles foi Contato Improvisação, técnica criada pelo
dançarino e coreógrafo experimental Steve Paxton. Acreditamos que esse trabalho
poderia se mostrar eficaz, pois no nosso trabalho anterior dirigindo jovens estudantes,
21
observamos que os cantores-atores tinham muita dificuldade de interação, seja no olhar
ou no toque. Essa técnica propõe um diálogo físico por meio da troca de peso e do
contato, aumentando a proximidade e quebrando as barreiras do tato. Por essa razão,
acreditamos que ela geraria cumplicidade entre os cantores-atores e um maior conforto
em contracenarem uns com os outros. Para Ray Chung, “Contato Improvisação é uma
exploração sem fim das possibilidades cinestésicas de corpos se movendo através do
contato. Às vezes violento e atlético, às vezes calmo e meditativo, é uma forma aberta a
todos os corpos e mentes questionadoras.” (CHUNG, 2009, tradução nossa).
Todos os que participaram das oficinas responderam bem às atividades propostas,
demonstraram interesse e obtiveram bons resultados em termos de performance. O
único problema é que nem todos puderam participar de todas as oficinas, o que não foi o
ideal para o desenvolvimento do grupo. Para a direção do espetáculo, que presava o
trabalho como algo coletivo, esperava-se que todos estivessem presentes nas atividades,
de forma a fortalecer a identidade do grupo e as relações interpessoais, além do
desenvolvimento individual.
Com o intuito ainda de desenvolver e aprimorar as relações interpessoais, facilitar
a comunicação e fortalecer a identidade do grupo, ao longo do processo todo foi
desenvolvido um trabalho de facilitação de grupo com o psicólogo Renan Vilela; e mais
para o final do trabalho, foram oferecidas algumas oficinas de psicodrama com a
psicóloga Christina Moretti.
2ª parte: Os ensaios
Antes de começarmos a marcar e ensaiar as cenas, tivemos um trabalho para o
desenvolvimento do corpo da personagem, tomando como base o perfil psicológico
traçado nas primeiras reuniões e usando os conceitos trabalhados nas oficinas.
Orientamos a construção do corpo da personagem através do caminhar.
Enquanto os cantores-atores se movimentavam pelo espaço, sugerimos que eles
percebessem seu próprio andar e aos poucos fossem modificando esse padrão e buscasse
um “caminhar neutro”, sem identidade, uma espécie de caminhar padrão da espécie
humana. Após chegarem a essa “neutralidade”, começamos a alterar esse padrão,
pedindo que explorassem pesos diferentes, pisar com partes diferentes dos pés, com
velocidades diferentes, com mais ou menos tensão ou fluência. Também era sugerido
que explorassem seu espaço dentro da Kinesfera, com a intenção de ampliarem seus
22
gestos e ocuparem melhor o espaço cênico. Depois dessas explorações, pedimos que
eles retomassem mentalmente a história de suas personagens e, aos poucos, fossem
achando um caminhar mais apropriado a elas, utilizando as experiências que tiveram.
Retomando essas qualidades do movimento propostas por Laban e experimentadas na
oficina, eles foram compondo o caminhar de suas personagens. Em determinados
momentos, orientávamos que parassem e, “congelados”, sentissem seu corpo e então
aumentassem o peso, a tensão, a forma e, em seguida, voltassem a caminhar. Uma vez
estabelecido esse caminhar, naturalmente o corpo do elenco assumiu um novo padrão,
uma nova forma.
Esse trabalho foi repetido de maneira mais curta na maioria dos ensaios cênicos,
como forma de retomar o corpo da personagem antes de começar a encenação. Esse
processo se mostrou bastante eficaz. Era visível o “nascer” das personagens durante o
trabalho desenvolvido. Alguns eram mais ousados e compunham corpos muito
diferentes dos seus próprios, com uma identidade bem definida, outros se mantinham
dentro de uma zona de conforto, mas ainda sim era visível que assumiam uma nova
figura. Infelizmente, nem todos conseguiam manter esse corpo – e, consequentemente, a
identidade da personagem – até o fim dos ensaios. Muitas vezes eles se
desconcentravam e “desmontavam”. Talvez a falta de experiência e entendimento total
da proposta por parte dos integrantes do elenco contribuísse para isso.
A direção do espetáculo propunha uma estética não realista, com uma
movimentação fora do usual, nada naturalista. Por se tratar de uma linguagem menos
usual, nem todos estavam disponíveis, visivelmente por não comprarem a ideia da
estética proposta. Isso acabou por interferir muito no trabalho, pois o resultado ficou
muito heterogêneo, estando algumas personagens e cenas com uma movimentação mais
dentro da proposta e outras num caminho mais realista.
Outro ponto observado foi que as oficinas foram eficazes, mas foi difícil para
eles retomarem todas as ferramentas. Precisariam experimentar mais no corpo, para se
apropriarem mais da técnica; apenas uma oficina não foi suficiente, mesmo que alguns
conceitos fossem retomados nos ensaios. Talvez ajudasse se eles tivessem sido mais
orientados pela direção no modo como usar essas ferramentas, resgatar no corpo a
sensação da técnica, mas foi difícil, dentro da organização dos ensaios, orientar todas as
cenas de todos os cantores. Por isso, essa orientação acabava sendo pontual. Aqueles
que já tinham uma experiência corporal prévia maior conseguiam utilizar de maneira
mais eficaz os recursos disponibilizados. Acredito que a técnica de Laban tenha sido a
23
melhor absorvida por ter sido mais repetida, principalmente durante as preparações para
se chegar ao corpo da personagem, como descrito acima.
Durante as preparações, ainda caminhando pelo espaço, também pedíamos que
retomassem falas de suas personagens, retomassem trechos de cenas e construíssem
partituras corporais. Era do interesse da direção que eles tivessem alguma autonomia
para construírem a ação de suas personagens, mas para que não estivessem sempre
improvisando, sugeríamos que após experimentarem algumas vezes, escolhessem uma
maneira de realizar a cena e a repetissem sempre que elas fossem refeitas. Com algumas
cenas, após ser dada uma direção geral, era proporcionado a eles um tempo para que
tentassem montar sozinhos a movimentação. É claro que os diretores observavam o todo
das cenas e sugeriam mudanças caso fossem necessárias, mas a ideia era que eles
construíssem suas próprias partituras e ocupação do espaço, principalmente nas cenas
em que havia poucas personagens.
A direção, que acredita muito no corpo como alicerce da encenação, também os
orientava no sentido de pensarem as falas como consequência de algo que acontecia
internamente e se manifestava primeiramente no corpo. Por isso, em algumas
preparações corporais, também sugeríamos que escolhessem trechos de cenas com fala,
experimentando-as e observando como a palavra vinha como consequência da ação.
Para explorar a interação, facilitar a comunicação em cena e fortalecer a
identidade de suas personagens, também incluíamos momentos em que eles deveriam se
encontrar e reagir às ações uns dos outros. Também sugeríamos que eles se
apresentassem, falando seu nome, uma qualidade marcante e depois um defeito,
reagindo corporalmente ao que ouvissem, de acordo com a opinião de sua personagem.
Alguns cantores-atores se mostraram resistentes por medo da movimentação
interferir na qualidade vocal. Um caso bastante interessante foi o de uma cantora-atriz
que estava com dificuldades num momento de sua ária, pois ela deveria sentar no chão.
A posição que ela assumia dificultava sua emissão. Os diretores, sabendo que ela seria
plenamente capaz de adaptar-se para tal, não modificaram a cena. No fim, ela conseguiu
manter a cena sem prejuízos para sua performance vocal. Pode-se imaginar que a
consciência dela de seu próprio corpo e do corpo de sua personagem fez com que ela
encontrasse uma maneira eficaz de realizar as duas tarefas, cantar e atuar, sem prejuízo
a nenhuma das duas. Outro exemplo é o de uma cantora-atriz que, em suas árias, foi
orientada que buscasse uma postura próxima do contraction da técnica da Martha
Graham, para demonstrar o sofrimento de sua personagem. Essa postura, que se
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constitui de uma contração dos músculos abdominais e uma báscula da pélvis, em
teoria, dificulta a respiração, mas ela foi capaz de realizá-la sem interferência negativa
ao seu canto, pois esteve aberta para a exploração do seu próprio corpo, sua
personagem, seu canto e sua encenação.
3ª parte: Os ensaios-gerais
Nos últimos momentos antes dos ensaios-gerais marcamos um dia apenas para
realizar trabalho corporal, tentando fazer com que resgatassem as técnicas
desenvolvidas nas oficinas e registrassem ainda mais em seus corpos a sensação da
postura, caminhar e ações de suas personagens. A primeira parte foi orientada por mim,
onde apliquei uma lição do método Consciência pelo Movimento, uma linha de
educação somática desenvolvida por Moshé Feldenkrais. Como Bolsanello descreve,
A educação somática é um campo teórico-prático que se interessa pelas relações entre a motricidade humana, a consciência e o aprendizado. (...) Para os profissionais da área de educação somática, não é o corpo da pessoa que é abordado, mas a sua experiência através do corpo. Para tanto, o professor de educação somática utiliza as seguintes estratégias pedagógicas: a sensibilização da pele, o aprendizado pela vivência e a flexibilidade da percepção. (BOLSANELLO, 2005, p. 1)
Tomei conhecimento do Método Feldenkrais através do NUO e essa técnica
tornou-se uma das ferramentas que utilizo com meus alunos de canto. No caso da
técnica aplicada ao elenco, a ideia era ampliar a percepção de seus corpos e facilitar a
absorção dos conceitos que seriam trabalhados em seguida. “O método de trabalho de
Moshe Feldenkrais tem, como objetivo máximo, tornar o homem consciente de sua
individualidade, ao propor um treinamento auto-educacional.” (AZEVEDO, 2012, p.
106). Nas palavras de um dos integrantes, essa prática foi bastante significativa: “com
ela consegui aprender a manter o corpo do personagem de uma forma não tanto nociva
para o desempenho vocal.” (vide anexo 2)
Em seguida, Gabriela Striani trabalhou mais uma vez com a prática de Klauss
Vianna e os guiou pelo descobrimento do corpo neutro, corpo da personagem e
exercícios de improvisação que envolviam a personalidade de suas personagens. Após
esse dia de práticas corporais, finalmente chegamos aos ensaios-gerais.
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Nossas apresentações aconteceram no Teatro Maria de Lourdes Sekeff, no
Instituto de Artes da UNESP. Por se tratar de um espaço de aulas do instituto e usado
para vários eventos da universidade, não foi possível que todos os ensaios acontecessem
lá, por isso, só foi possível reservar o espaço para quatro ensaios, sendo um no meio do
processo e três ensaios-gerais próximos às datas das récitas. Ao longo do processo, os
ensaios aconteceram em diversas salas.
Como no ensaio do teatro feito no meio do processo poucas pessoas puderam estar
presentes, a primeira vez que eles poderiam sentir o espaço de encenação seria no
primeiro ensaio-geral, seis dias antes da primeira récita. Porém, infelizmente, o espaço
foi requisitado para um evento do instituto e esse ensaio teve de ser feito, mais uma vez,
em outro espaço. Isso acabou atrapalhando bastante, pois o primeiro ensaio feito no
palco onde as récitas aconteceriam só foi possível dois dias antes da estreia. Isso os
deixou bastante preocupados e afetou muito o ensaio, que teve um resultado bastante
insatisfatório devido à falta de concentração deles e dificuldades em adaptar-se ao novo
ambiente – nem foi possível passar o espetáculo inteiro.
No dia seguinte – o dia anterior à estreia – fizemos o segundo e último ensaio no
teatro. Orientamos os cantores-atores a redobrarem sua concentração para que o ensaio
rendesse mais; afinal, essa seria a única oportunidade que eles teriam de fazer o
espetáculo inteiro no palco antes da récita - portanto, única chance de sentirem como
seria o momento da apresentação. Além disso, no ensaio anterior, devido ao fato do
teatro ser um espaço muito maior do que aqueles em que costumavam ensaiar, os gestos
pareceram muito pequenos, principalmente em cenas em que havia poucas pessoas no
palco. Assim, orientamos os cantores-atores a ampliarem seus gestos e ocuparem mais
os espaços, evitando grande proximidade em cenas com duas ou três pessoas. Também
fizemos uma preparação cênica mais intensa, que envolveu retomada do corpo da
personagem pelo caminhar e um trabalho de Contato Improvisação, para aumentarem
sua conexão uns com os outros. Em seguida começamos o ensaio. Com a colaboração
de todos, dessa vez tivemos um bom resultado e pudemos ficar tranquilos de que
teríamos uma boa estreia.
4ª parte: As récitas
Após cerca de cinco meses de ensaio, finalmente estreamos. Devido aos
problemas dos ensaios gerais, não pudemos ensaiar com a maquiagem. Então, o teste de
26
maquiagem foi feito na estreia, não deixando tempo neste dia para a preparação cênica
que havíamos planejado.
Uma vez sabido quanto tempo a maquiagem demorava a ser feita, programamos
melhor o dia seguinte e conseguimos realizar todas as etapas do processo que
gostaríamos. Fizemos uma preparação cênica intensa.
Começamos com a recuperação do corpo da personagem pelo caminhar, com o
processo descrito anteriormente. Uma vez que estabeleceram uma nova identidade, pedi
que escolhessem um trecho da ópera e repassassem mentalmente, e em seguida
executassem essas cenas, retomando suas partituras corporais, em câmera lenta,
acelerada e em tempo real, sempre observando a tensão, peso, fluência e ritmo dos
movimentos e como eles ocupavam o espaço dentro da Kinesfera.
Em seguida, trabalhamos o reconhecimento do espaço cênico, através do olhar e
da ocupação desse espaço. Pedíamos que olhassem algum ponto do palco, caminhassem
até ele, observassem e depois partissem para outro ponto. Depois, fizemos uma
percepção da plateia, direcionando o olhar e os braços ao fundo do teatro, de forma a
sentirem a amplitude que o gesto deveria atingir para poder ser percebido pela pessoa na
última poltrona. Em seguida, pedi que formassem duplas e ficassem de costas um para o
outro. Então, um elemento da dupla deveria se movimentar e outro deveria segui-lo.
Após algum momento experimentando essa integração, foi sugerido que as duplas
começassem a se juntar e um grande círculo foi formado com todos influenciando e
sendo influenciados pelo movimento do outro. Ainda no círculo, pedi que as
personagens dissessem o que quisessem para outra personagem, um de cada vez. Todos
executaram essa tarefa. Essa dinâmica serviu para aumentar a consciência de sua
identidade e das suas inter-relações. Depois de todo esse trabalho, orientamos que se
mantivessem concentrados e trabalhassem em conjunto para que obtivéssemos um bom
resultado no que diz respeito à performance cênico-musical.
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O resultado
Como já dito durante o texto, o resultado acabou por ser um pouco heterogêneo no
que diz respeito à atuação dos cantores-atores. Todo o trabalho feito pela direção não é
bem aproveitado se eles não estão disponíveis para a encenação proposta. Ao mesmo
tempo, para eles se apropriarem das técnicas oferecidas é necessário tempo de
amadurecimento, que é diferente de pessoa para pessoa. Além disso, havia muitas faltas
e atrasos pelos motivos mais diversos, o que dificultou o fortalecimento do grupo e o
desenvolvimento linear do trabalho. Uma cobrança mais firme da direção com relação a
isso se fazia necessária, mas devido à nossa inexperiência em cargos de liderança, esse
problema não foi resolvido a contento e teve um impacto grande no processo e
consequentemente no resultado.
Considerando todas as adversidades, alguns assimilaram bastante bem o trabalho,
produzindo uma grande evolução, outros se mantiveram em pontos parecidos aos que
começaram. A cantora-atriz que realizou o papel da Condessa foi a que mais evoluiu
segundo a percepção da direção. Para nós, por ela ter chegado sem nenhuma prévia
experiência, se demonstrou bastante aberta às técnicas oferecidas e esforçou-se para
assimilá-las, o que acabou gerando um melhor resultado. Sua encenação foi consistente,
seus movimentos tinham começo, meio e fim, sua partitura corporal era bem estruturada
e consciente, e ela conseguiu usar a encenação como auxílio na expressão vocal.
O que me chamou muita atenção como evolução coletiva, foi a ocupação do
espaço. Nos últimos ensaios e, principalmente, durante as récitas, eles estavam com uma
percepção bem aguçada para a presença e ausência do outro. Ocupavam bem o palco,
tanto no sentido frente-fundo quanto direito-esquerda, e se movimentavam muito bem,
ocupando os espaços vazios deixados pelo outro, evitando deixar buracos ou
amontoados de pessoas, que desequilibrariam o desenho cênico.
Nas récitas também observei uma boa consciência do tamanho de seus gestos, de
forma que o palco sempre pareceu ocupado, mesmo quando havia apenas uma pessoa
em cena.
Acredito que todos evoluíram bastante também na execução dos diálogos. A
palavra como consequência da ação era perceptível na maior parte do tempo, o que
tornou as falas mais verdadeiras.
28
Considerações finais
Esse trabalho pretendia discutir o equilíbrio entre canto e encenação. E o resultado
foi o esperado: o elenco foi capaz de cantar e executar as cenas sem prejuízos a nenhum
dos dois aspectos.
Quanto à preparação corporal, as técnicas utilizadas se mostraram uma ferramenta
muito eficaz para a preparação do elenco, mas elas poderiam ser mais bem aproveitadas
se feito um trabalho contínuo e uma orientação persistente da direção, guiando mais os
passos dos cantores-atores. Além disso, para uma encenação coerente, seria necessário
que os integrantes do elenco comprassem a proposta da direção artística, ou pelo menos
estivessem disponíveis para tal.
Mas, mais importante, com essa experiência pude observar outra questão: a
formação do cantor lírico. A interpretação teatral é uma lacuna na nossa formação, como
já citado. Os jovens estudantes precisam ter experiência cênica, precisam de um espaço
para experimentar, para errar. Uma direção que orienta, ensina e não apenas exige, se
faz necessária, e isso não é o que se encontrará numa montagem profissional, nem é o
lugar para tal. Esse espaço de aprendizado precisa estar disponível a eles antes de
ingressarem no mercado de trabalho, para que se sintam seguros de pisarem no palco e
atendam às expectativas da direção e do público. Afinal, “a ópera é um espetáculo
híbrido que envolve teatro e música e qualquer tentativa de vê-la unicamente através de
um destes focos pode significar uma simplificação e má compreensão deste gênero
artístico.” (GUSE, 2009, p. 172).
O desenvolvimento das competências cênicas é algo que se faz na prática, é
necessário tempo de amadurecimento e experimentação. A consciência corporal se
adquire em longo prazo e nunca termina. Portanto, o quanto antes essas questões forem
abordadas na formação do cantor lírico, melhor. E o trabalho corporal não é apenas uma
questão de ter força ou flexibilidade,
a flexibilidade de um corpo só tem sentido se, dentro dele, também o
espírito puder estender seus limites, avançar e crescer em busca de sim
mesmo. Todo trabalho de corpo serve ao ator (...), desde que tenha
como característica o desenvolvimento de suas potencialidades”
(AZEVEDO, 2012, p. 256)
29
Talvez seja tempo das grades curriculares das universidades serem revistas e,
quem sabe, reformuladas, para que a formação do cantor, interdisciplinar por natureza,
não se restrinja ao aspecto musical.
30
Bibliografia
Para a realização do espetáculo:
BEAUMARCHAIS, Pierre A. C. de. Le Marriage de Figaro/Le Barbier de Séville. Paris: Classiques Français, 1994.
BEAUMARCHAIS, Pierre A. C. de. O Barbeiro de Sevilha. Porto Alegre: Edição da Livraria do Globo, 1946. Tradução: Mário Quintana.
BEAUMARCHAIS, Pierre A. C. de. The Figaro Trilogy, The Barber of Seville/The Marriage of Figaro/The Guilty Mother. New York: Oxford University Press, 2008.
COLI, Jorge. A Paixão Segundo a Ópera. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2003. (Debates).
GUIMARÃES, Antônio Monteiro (org.). As Bodas de Fígaro, Mozart, Da Ponte, Beaumarchais, o libreto e a peça. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
HUGHES, Spike. Famous Mozart Operas, an analytical guide for the opera-goers and armchair listeners. New York: Dover Publications, 1972.
LEWIN, David. Studies in Music with Text. New York: Oxford University Press, 2006.
SPOLIN, Viola. Jogos Teatrais – o fichário de Viola Spolin. Tradução: Ingrid Dormien Koudela. São Paulo: Perspectiva, 2001.
Para a realização do trabalho:
FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo Movimento. São Paulo: Summus, 1977. Tradução: Daisy A. C. Souza.
OLIVEIRA, M. Marly. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2007.
NEDER, Fernando. Contato Improvisação: origens, influências e evolução. Gens, fluências e tons. Rio de Janeiro: Trabalho desenvolvido para a disciplina Evolução da Dança, UNIRIO-CLA, 2005.01.
PEIXOTO, Fernando. Ópera e encenação. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
PICON-VALLIN, Béatrice. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008. Tradução: Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloísa Araújo Ribeiro. (Estudos).
STANISLAVSKI, C; RUMYANTSEV, P. Stanislavski on opera. New York: Routledge, 1975. Translated by Elizabeth Hapgood.
31
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2012.
BENVEGNU, Marcela. A vez do contato-improvisação. Disponível em: <http://tudoedanca.blogspot.com.br/2008/02/vez-do-contato-improvisao.html>. Acesso em: 4 out. 2012.
BLUM, Elle. Martha Graham Dance Technique: The Innovations of the Mother of Modern Dance. In: Suite101, 2009. Disponível em: <http://suite101.com/article/martha-graham-dance-technique-a127236>. Acesso em: 21 set. 2012.
BOLSANELLO, Débora. Educação somática: o corpo enquanto experiência. Motriz, Rio Claro, v. 11, n.2, p.99-106, mai./ago. 2006. Disponível em: <http://www.rc.unesp.br/ib/efisica/motriz/11n2/11n2_08DBB.pdf>. Acesso em: 13 out. 2012.
CESAROLI JÚNIOR, Umberto. O contexto europeu de formação e atuação na passagem do século XIX para o XX. AspaS, São Paulo, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.pos.eca.usp.br/sites/default/files/Image/ppgac/umbertocerasoli.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2012.
CHUNG, Ray. Workshop announcement. London: 2009. Disponível em: <http://www.contactquarterly.com/contact-improvisation/about/>. Acesso em: 4 out. 2012.
GUSE, Cristine Bello. O cantor-ator: um estudo sobre a atuação cênica do cantor de ópera. 2009. 262f. Dissertação (mestrado em música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2009.
FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a pesquisa na prática artística. Cena, Porto Alegre, n. 7, 2009. Tradução: Helena Mello. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961>. Acesso em: 27 ago. 2012.
LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978. Tradução: Anna Maria Barros De Vecchi e Maria Sílvia Mourão Netto. SAADI, Fátima et al. Vianna, Klauss (1928-1992). In: ______________ Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro (atualizado em 25/03/2009). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biografia&cd_verbete=782&cd_item=20>. Acesso em: 4 out. 2012.
STANISLAVSKI, C. Manual do Ator. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Tradução: Jefferson Luiz Camargo.
VELARDI, Marília. O corpo na ópera: alguns apontamentos. Sala Preta, São Paulo, v. 11, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/361>. Acesso em: 5 jan. 2011.
32
ANEXOS
Anexo 1: Entrevista com colaborador 1
Como começou a estudar canto? Há quanto tempo?
Bem, eu nunca pensei em estudar canto. Eu estudava desenho de moda e uma vez passei em frente uma escola de música e a minha amiga que estava comigo quis entrar. Estava tendo uma aula de canto e eu comentei que achava bonito e aí eu fiz minha primeira aula. Aí tive uma conversa franca com a professora e a gente começou a fazer aulas particulares nessa escola paga. Deu 6 meses e eu prestei para entrar na ULM, atual EMESP.
Aí eu entrei na ULM e comecei a ter aulas com a Profª Regina Elena e comecei a me apaixonar pelo canto erudito e comecei até pensar seriamente que eu tava na profissão errada, coisa que eu acabei chegando à conclusão. Hoje em dia nem tanto, mas na época eu tive bastante certeza de que eu queria ser cantora lírica. No começo tudo foi muito fácil, muito simples, era muito espontâneo. Aí veio aquele monte de técnicas e um monte de conhecimento que a gente adquire que estraga a espontaneidade da voz das pessoas. E acontece com muita gente, isso aconteceu comigo também. Eu estudei cerca de um ano e meio na ulm, a escola não era tão interessada em alunos de canto, então eu prestei para a escola municipal. Na escola municipal eu abri os horizontes, eu fui conhecer outros professores. Conheci o Benito, conheci o Vitor Philomeno que trabalhou comigo por bastante tempo, a Tati Helene. E todos foram muito valorosos durante esse processo de estudo que eu ainda continuo. E a Regina Elena saiu da escola municipal, onde eu ainda estudo e entrou o Carlos Eduardo Marcos.
E ele é o máximo, ele é um ótimo professor. Gosto muito dele, ele faz um trabalho muito legal, tem a ver com aquilo que eu me identifico, que eu acho isso muito importante.
Conte um pouco sobre a sua experiência. Espetáculos que participou etc.
A minha primeira apresentação de fato foi no MASP e foi porque eu me meti no grupo de Prática de conjunto. O prof. Hermes Coelho tava fazendo um grupo prá cantar em homenagem a Chopin no MASP. E lá estava eu, nunca tinha cantado em lugar nenhum, prá cantar no MASP, solo, eu e o piano.
Foi uma experiência muito legal, eu senti coisas muito boas. Eu tive a certeza que era isso que eu queria fazer. Depois eu participei de alguns concertos com um grupo de um colega meu, o Elias, que chama Visita Musical, então a gente apresentou em hospital, apresentou em escola e na universidade. Depois disso eu participei do projeto Laboratório Cênico da Laura de Sousa, um papel de Papagena na Flauta Mágica, que foi apresentado na escola mesmo. E depois eu já caí na ópera do André.
Teve alguma orientação cênica em algum dos trabalhos? Já fez curso de teatro?
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Não, meu personagem não merecia tanto empenho das pessoas para comigo.
Quais das oficinas disponibilizadas por nós você fez (Martha Graham, Laban, Klauss Vianna e Contato Improvisação)?
Todas, exceto Klauss Vianna.
Você acredita que essas oficinas foram úteis? Se sim, como? Que ferramentas apresentadas nas oficinas e nos ensaios você acredita que absorveu e utilizou na encenação das Bodas de Fígaro?
Muito honestamente. Eu acho que foi muito legal ter um repertório, conhecer teoricamente o que é o trabalho corporal, porque para mim é uma coisa nova, ainda é uma coisa nova. Foi muito importante, abriu um horizonte ter esse tipo de conhecimento teórico. Não sei se eu consegui realmente incorporar isso na hora da atuação. Esse repertório tem que ser realmente mais vivido do que aprendido teoricamente, porque como tivemos esse contato, mas não tivemos um trabalho que aprofundasse. Por exemplo, de repente, seria bom trabalhar a técnica pura, sem trabalhar o papel, para aquilo ser parte do meu condicionamento e aí ser usado cenicamente. Mas foi importante sim.
O que eu usei, basicamente, para compor a minha personagem foi um repertório imaginário e corporal que eu tenho já dentro de mim, não que seja meu, mas com certeza coisas que a gente viu eu devo ter lembrado alguma hora, mas não foi algo que foi focado, consciente. Foi uma coisa meio espontânea, meio proposital. Eu procurei ser grande, ocupar espaço.
O que achou do sua performance na ópera? Sentiu alguma evolução na sua performance cênica?
Eu cresci muito em todo o processo, ainda mais porque eu nunca tive uma experiência cênica real na vida, então, tudo que foi passado para mim, até o comportamento dos meus outros colegas de cena sempre acrescentaram. Eu fui uma grande esponja.
Acredita que conseguiu conciliar canto e encenação na mesma medida? Algum foi prejudicado em detrimento do outro?
Eu tentei conciliar, mas não sei se consegui. Acho que teve momentos em que conciliei, outros escapou. E sempre que escapou, acho que o que sobrepujou foi a atuação. Para conseguir equilibrar melhor, falta eu possuir uma técnica vocal mais sólida, uma técnica cênica mais sólida, e experiência cênica de fato como um todo. Tudo o que a gente tem como técnica na hora que você está no palco, ela tem que ser orgânica.
O que pensa da formação do cantor no Brasil?
Não existe um pensamento lógico e nem consistente com relação à formação do cantor no Brasil. Tudo tem que ser revisto. Não só a parte cênica.
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Algo mudou na sua maneira de ver ou entender a ópera depois de participar desse projeto? Ou alguma ideia foi reforçada?
Reforçou o fato de eu saber que é uma arte complexa. Isso porque fizemos numa escala reduzida. Imagino o que é a complexidade de fazer isso num Teatro Municipal, por exemplo, com orquestra, menos ensaios, responsabilidades estratosféricas, um público gigantesco e diversificado. As pessoas que se propõem a realizar esse tipo de arte merecem um prêmio, porque elas são capacitadas de uma maneira sobrenatural. Exige muito mais do que saber cantar bonito, é uma energia, um trabalho psicológico, psíquico e muita segurança.
Além disso, foi muito cansativo, quinta, sexta, sábado e domingo cantando, mas eu percebi que isso é carreira! Se você quer ter uma carreira, esteja preparado para dias seguidos de récitas. A gente não pode se permitir usar algo que não seja técnica. Porque se você não usar algo que não seja técnica, você vai se cansar além do que você consegue recuperar em uma noite.
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Anexo 2: Entrevista com colaborador 2
Como começou a estudar canto? Há quanto tempo?
Comecei a cantar em 2006, um ano antes de entrar para a faculdade. Estudar canto, porém, foi um pouco depois, em abril de 2008.
Conte um pouco sobre a sua experiência. Espetáculos que participou etc.
Comecei como coralista e até o momento é onde mais atuo como cantor. Comecei no coro Fábrica do Som da Comunidade Coral Luther King, passando depois para o King e depois para o Madrigal da mesma comunidade. Cantei por 3 anos no Coro de Câmara da Unesp. Canto há uns 3 anos em grupos corais diversos e há um ano no Coro Jovem do Estado de São Paulo. Em ópera participei de algumas montagens no Theatro São Pedro e também na UNESP (indiretamente) com a direção de André Estevez. Como solista fiz alguns recitais e tive a primeira experiência desse tipo em ópera cantando na montagem de André Estevez das Bodas de Fígaro.
Teve alguma orientação cênica em algum dos trabalhos? Já fez curso de teatro?
Tive orientação cênica sempre que fiz trabalhos com coro de ópera. Nas montagens profissionais o trabalho era mais direto, mais voltado para a cena propriamente dita. Com relação à preparação corporal e trabalho de base, cheguei a fazer um pouco disto no pouco tempo em que participei do NUO e também nos trabalhos com André Estevez. Já fiz cursos livres (incompleto) de teatro.
Quais das oficinas disponibilizadas por nós você fez (Martha Graham, Laban, Klauss Vianna e Contato Improvisação)?
Participei de todas.
Você acredita que essas oficinas foram úteis? Se sim, como? Que ferramentas apresentadas nas oficinas e nos ensaios você acredita que absorveu e utilizou na encenação das Bodas de Fígaro?
Sim, acredito que foram bem úteis, cada qual do seu modo particular. Ainda que não esteja figurando acima, a oficina que mais me chamou a atenção (isso já no NUO) foi a de Feldenkrais – com ela consegui aprender a manter o corpo do personagem de uma forma não tanto nociva para o desempenho vocal. As oficinas de contato improvisação acredito que funcionaram bem, principalmente dentro do grupo e para o grupo, dentro do contexto que estávamos atuando. Martha Graham também foi bem interessante nas questões de respiração e modulações corporais, além do fato de poder trabalhar com uma profissional tão completa e instigante como a Marilia Velardi.
O que achou do sua performance na ópera? Sentiu alguma evolução na sua performance cênica?
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Senti uma grande evolução cênica. Acredito que, dadas as condições (estava cantando fora da minha classificação – prestei como barítono e fui reclassificado de tenor no meio do processo da ópera, sendo o meu papel um papel para barítono grave ou baixo) o que pude fazer melhor foi mesmo a parte cênica.
E o grupo, como você vê o desenvolvimento dele ao longo do processo?
Com idas e vindas acho que conseguimos manter uma regularidade média. A inconstância de algumas pessoas dentro do trabalho me incomodou demais, mas acho que na nossa profissão se o resultado é bom, significa que o processo foi bom também no geral, e acredito que a apresentação foi um sucesso dadas as nossas condições.
Acredita que conseguiu conciliar canto e encenação na mesma medida? Algum foi prejudicado em detrimento do outro?
Se seguisse minha intuição diria que a encenação e o corpo do personagem que construí atrapalhou um pouco a performance vocal (embora mantenha tudo que disse acima). Mas há de se levar em conta também que estava cantando fora da minha tessitura de brilho então sinceramente não saberia dizer ao certo.
O que pensa da formação do cantor no Brasil?
Resumindo acho que o trabalho de formação técnica vocal básica é muito ruim. E acho que em geral as pessoas começam a cantar muito cedo um repertório de que ainda não dão conta.
Algo mudou na sua maneira de ver ou entender a ópera depois de participar desse projeto? Ou alguma ideia foi reforçada?
Ambas as coisas. Mudou na medida em que pude ver que mesmo algo desorganizado pode acabar resultando em algo muito bom. Por outro lado, senti que realmente o fato de perceber a diferença de dedicação de cada um é algo que pessoalmente me incomoda demais, ainda que isso muitas vezes não interfira diretamente com o resultado final.
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Anexo 3: Entrevista com colaborador 3
Como começou a estudar canto? Há quanto tempo?
Estudar de forma pragmática, com vários obstáculos, há 7 anos. Cantar comecei com 17 anos em oficina cultural, depois disso estudei coral 1 ano na ULM do Brooklin e depois na Luz.
Iniciei meus estudos de canto lírico quando inicie como coralista no Coral Jovem do Estado há exatamente 7 anos.
Conte um pouco sobre a sua experiência. Espetáculos que participou etc.
O coral jovem foi um experiência ambígua, porque entrei muito crua de tudo, inclusive de como agir em situações de extrema concorrência. A experiência mais marcante depois disso foi o NUO, onde tive oportunidade da minha primeira ópera como solista, foi incrível ter feito, aquilo me deu um pouco de paz.
Teve alguma orientação cênica em algum dos trabalhos? Já fez curso de teatro?
Sim, no Núcleo. E foi fundamental. Fiz um curso de teatro de 1 semestre neste ano.
Quais das oficinas disponibilizadas por nós você fez (Martha Graham, Laban, Klauss Vianna e Contato Improvisação)?
Todas.
Você acredita que essas oficinas foram úteis? Se sim, como? Que ferramentas apresentadas nas oficinas e nos ensaios você acredita que absorveu e utilizou na encenação das Bodas de Fígaro?
Fundamentais para minha vida. A questão do espaço do corpo, do andar, da memória afetiva, da projeção do peito, Klauss Viana com a questão da fala do corpo da mímica, saber responder cênica e enviar a energia cênica. Foram fundamentais para minha vida como cantora em uma somatória não apenas para esta encenação.
O que achou do sua performance na ópera? Sentiu alguma evolução na sua performance cênica?
Fiquei imensamente satisfeita com o resultado, senti pela primeira vez que correspondi tanto cênica como vocalmente, o fato de ter tido isso como reforço positivo aumentou minha autoconfiança, e isso foi muito importante pra mim.
E o grupo, como você vê o desenvolvimento dele ao longo do processo?
Muito bom, passamos por muitos percalços, porém superamos todos, porque houve muito diálogo e mantivemos este diálogo o tempo todo. Além de uma hierarquia coletiva ou horizontal (que dificilmente acontece em um grupo artísticos aqui no Brasil), onde existe liderança e não um chefe, deste modo existiu orientadores que por
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se disporem a estar abertos a ouvir e depois opinar, conseguiram compromissar o grupo a ter um resultado positivo
Acredita que conseguiu conciliar canto e encenação na mesma medida? Algum foi prejudicado em detrimento do outro?
Acredito que com a preparação e o apoio dos psicólogos consegui conciliar ambas as artes.
O que pensa da formação do cantor no Brasil?
Muito ruim, porque a maioria dos professores que temos não está preparada para dar aula, sua formação vislumbra apenas o performer e geralmente se baseia unicamente em sua experiência pessoal e, sendo assim, sempre deixa lacunas de aprendizado.
Algo mudou na sua maneira de ver ou entender a ópera depois de participar desse projeto? Ou alguma ideia foi reforçada?
Muitas ideias foram reforçadas, como por exemplo a vanguarda deste tipo de trabalho, onde em outros países já é praticado há muito tempo, inclusive com este foco de reforçar a concepção do corpo do cantor e criar o ator, formando assim o cantor-ator.
Se quiser falar mais alguma coisa sobre o projeto, sobre ópera, canto ou encenação, fique à vontade:
Agradecer muito pela oportunidade e desejar que tenha mais oficinas no futuro
Obrigado
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Anexo 4: Entrevista com colaborador 4
Como começou a estudar canto? Há quanto tempo?
Entrei em contato com o Conservatório Musical Souza Lima, onde conheci minha primeira professora de canto, em 2005.
Conte um pouco sobre a sua experiência. Espetáculos que participou etc.
Antes de entrar na faculdade, participei em alguns recitais organizados pela minha professora de canto. Depois de ingressar na faculdade, participei da ópera ‘Patience’, junto ao NUO, em 2007. Junto ao Coral Jovem do Estado, fiz parte da ópera ‘Der Freischütz’ (Weber), em 2008 e ‘Le domino noir’ (Auber), em 2009. Em 2010, novamente junto ao NUO, participei das óperas ‘A jornada do Pelegrino’ (Williams) e ‘Iolanthe’ (Gilbert & Sullivan). Em 2011, participei da ópera ‘Os piratas de Penzance’ (Gilbert & Sullivan), montada na Unesp. Já m 2012, participei das óperas ‘O Elixir do Amor’ (Donizetti) e ‘As bodas de Figaro’
Teve alguma orientação cênica em algum dos trabalhos? Já fez curso de teatro?
Sim, junto ao NUO, tive orientação cênica em todas as montagens com eles realizadas, bem como nas montagens de ‘Os piratas de Penzance’ e ‘As bodas de Figaro’. Sim, já fiz cursos de teatro.
Quais das oficinas disponibilizadas por nós você fez (Martha Graham, Laban, Klauss Vianna e Contato Improvisação)?
Todas, exceto Martha Graham.
Você acredita que essas oficinas foram úteis? Se sim, como? Que ferramentas apresentadas nas oficinas e nos ensaios você acredita que absorveu e utilizou na encenação das Bodas de Fígaro?
Sim. Creio que as oficinas contribuíram para uma maior interação do grupo e para nossa consciência corporal. Em muitos casos, a improvisação se fez necessária (especialmente, em se tratando do espaço utilizado, tendo em vista que ensaiamos em espaços diversos daquele utilizado na apresentação da ópera) e, por isso, se fez necessário utilizar o que aprendemos nas oficinas de Laban e Contato Improvisação para que o espeço fosse melhor aproveitado.
O que achou do sua performance na ópera? Sentiu alguma evolução na sua performance cênica?
Achei que foi uma boa performance, mas que ainda poderia ter sido melhor (tendo em vista que, o aproveitamento e concentração nos ensaios nunca são os mesmos da apresentação), entretanto, senti bastante evolução na performance cênica.
E o grupo, como você vê o desenvolvimento dele ao longo do processo?
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O grupo, de maneira geral, evoluiu muito.
Acredita que conseguiu conciliar canto e encenação na mesma medida? Algum foi prejudicado em detrimento do outro?
Consegui conciliar, mas não na mesma medida. A encenação foi prejudicada em detrimento do canto e das preocupações com as questões técnicas.
O que pensa da formação do cantor no Brasil?
A formação do cantor no Brasil ainda é muito voltada ao aperfeiçoamento da técnica vocal e pouco à formação do performer em si. É, portanto, uma formação incompleta.
Algo mudou na sua maneira de ver ou entender a ópera depois de participar desse projeto? Ou alguma ideia foi reforçada?
Não. O que mudou foi minha visão quanto à ópera que produzimos em específico (a qual creio que foi um pouco “subestimada”, no sentido de que, pensei que ela era mais simples do que, de fato, era)
Se quiser falar mais alguma coisa sobre o projeto, sobre ópera, canto ou encenação, fique à vontade:
Como já foi dito anteriormente em nossos encontros, creio que a iniciativa de fazermos ópera por conta própria é ótima, tendo em vista que demonstra que não dependemos de patrocínio para realizarmos uma obra de arte. Ao mesmo tempo, foi necessário tempo e bastante empenho de todos para que a realização fosse possível. Foi, portanto, uma experiência enriquecedora e desafiadora, ao mesmo tempo e estou grata por ter tido esta oportunidade.