Angela

5

Click here to load reader

Transcript of Angela

Page 1: Angela

Resenha

O espelho do outro: As cruzadas vistas pelos Árabes

Angela Zatta1

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução Editora Brasiliense

S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. 253 p.

Trazendo de forma pioneira a “versão dos vencedores”, o escritor nascido no Líbano em

1949, Amin Maalouf, choca o leitor ocidental com seu livro As Cruzadas Vistas pelos

Árabes, relato épico sobre a defesa dos muçulmanos em relação aos ataques das

Cruzadas publicado originalmente em 1983. A obra chegou ao cenário acadêmico cinco

anos após a publicação e extraordinária disseminação da obra do palestino Edward W.

Said Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente – traduzido para o francês em

1980 - em que são analisados os vínculos entre as relações de produção dos

conhecimentos acerca da representação do Oriente e do Ocidente, e pôde aproveitar a

onda de novos estudos acerca do “orientalismo” trazida com a obra de Said. Partindo da

prerrogativa de contar a história das cruzadas como foram vistas, vividas e relatadas

pela perspectiva árabe, o libanês faz uso do romance histórico para reunir testemunhos

de historiadores e cronistas árabes da época. Amin Maalouf, que em 1976 mudou-se

para a França, trabalhou como jornalista e romancista. Foi chefe de redação do Jeune

Afrique, do qual posteriormente tornou-se editor. Durante 12 anos foi repórter e realizou

missões em mais de 60 países. De suas obras, três lhe renderam prêmios, sendo que “As

cruzadas vistas pelos Árabes” lhe garantiu o Prix dês Maisons de la Press.

Publicado quase dois séculos depois da publicação do relato da viagem de

Chateaubriand ao Oriente, o qual argumentava que as Cruzadas não se deram como uma

agressão, mas sim, como uma resposta cristã à altura da chegada de Omar à Europa,

Maalouf trata da visão oposta, trazendo os relatos islâmicos das invasões francas.

Enquanto o Cheteaubriand defendia que o movimento cruzadista não consistia apenas

1 Angela Zatta é acadêmica da 5ª fase da graduação em História pela Universidade do Oeste de Santa

Catarina – Unoesc campus Videira

Page 2: Angela

em libertar o Santo Sepulcro, mas em definir quem venceria sobre a Terra, colocando

desta forma o Islã como um culto inimigo da civilização e sistematicamente favorável à

ignorância, ao despotismo e à escravidão diametralmente oposta à civilização ocidental

– a qual o autor pertence- cujo culto propiciou o renascimento da antiguidade sábia e a

abolição da escravidão servil, o autor do século XX tem como objetivo trazer uma nova

visão à sociedade européia, que não é mais aquela imagem “orientalizada” do Oriental e

do movimento cruzadista.

Iniciando com um prólogo emocionante, o livro relata o luto e a revolta dos

muçulmanos, evidenciados na figura do venerável cádi Abu-Saad al-Harawi, contra a

carnificina promovida pelos franj a caminho e na tomada de Jerusalém. Aqui pode-se

estabelecer uma relação com Walter Benjamin, ao defender que “nenhum fato,

meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato

histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por

milênios”2. Segundo Maalouf, a ação do cádi de Damasco marca a tomada de

consciência da parte dos crentes com relação às invasões francas e, consequentemente, o

início da reação, mesmo que os contemporâneos de al-Harawi não tenham uma noção

tão clara da ameaça vindoura como ele. “Foi preciso esperar cerca de meio século antes

que o Oriente árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lançada

pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como primeiro ato solene de

resistência.”3

A primeira parte do relato, denominada “A Invasão (1096-1100)”, trata da chegada das

primeiras tropas armadas aos territórios islâmicos. Aqui é possível conferir o

testemunho da empresa fracassada de Pedro, o Ermitão, e da primeira cruzada oficial

que retira Nicéia das mãos do sultão seljúcida Kilij Arslan e chega às portas da mais

importante das cidades Sírias, Antioquia, que capitula após um dramático cerco de mais

de cem dias. Ao longo do caminho de Jerusalém, várias outras cidades enfrentam a

barbárie dos franj, como é o caso de Maara. Fica evidente, porém, a fragmentação

política dentro do Islã.

2 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São

Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p.232. 3 MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1988, p.14.

Page 3: Angela

A segunda parte, “A Ocupação (1100-1128)”, retrata a consolidação dos domínios dos

franj com o Reino de Jerusalém, o Condado de Edessa e o Principado de Antioquia,

bem como a preparação para a criação de um novo estado franco; o Condado de Trípoli.

Os muçulmanos percebem que ninguém, nem mesmo o imperador bizantino Aléxis

Comneno4, é capaz de deter o avanço dos franj. Após ater-se na séria ameaça dos

Assassinos para a ordem interna do Islã e união dos crentes em função da jihad,

Maalouf apresenta algumas vitórias de destaque para o Islã, lideradas pela figura do

emir turco Ilghazi.

Em um terceiro momento, denominado “A Resposta (1128-1146)” vemos surgir

respostas efetivas à ocupação, iniciadas com Buri e sequenciadas por Zinki, senhor de

Alepo e Mossul. Esta parte da narrativa apresenta ao leitor uma nova geração de franj,

que não se assemelham com os primeiros. Estes novos franj, em geral, não conheceram

o Ocidente, pensam e agem como orientais5. As divisões começam a ficar mais intensas

entre os franj.

Na quarta parte, “A Vitória (1146-1187)”, é possível analisar duas das principais figuras

islâmicas de todo o período cruzadista: Nureddin e Saladino. O primeiro cujas virtudes

e justiça assemelham-se aos primeiros califas6, tem sua expansão freada pela ameaça

dos rum, entretanto consegue barrar as investidas dos franj. Aqui percebemos a

mudança do eixo dos conflitos, que saem da Síria para travar uma corrida em direção ao

Egito, a mais rica e frutífera colônia oriental. No país do Nilo, Saladino ascende ao

cargo de vizir e, com o apoio de seu mestre Nureddin, derruba a dinastia Fatímida do

poder. As relações entre Saladino e seu mestre se tornam cada vez mais tensas, mas com

a morte do segundo torna-se possível que o senhor do Cairo se torne sultão. Saladino

consegue recuperar Jerusalém sem batalhas.

A quinta parte, “Os Sursis (1187-1244)”, mostra claramente que os interesses dos franj

já não estão mais ligados à religião. Vemos surgir no cenário cruzadista personagens

como Frederico Barbaroxa, Filipe Augusto da França e Ricardo Coração de Leão. Antes

da morte de Saladino, e mesmo depois quando seu irmão al-Adel está no poder, crentes

4 “O rei dos rum é mais muçulmano que o príncipe dos crentes” apud MAALOUF, Amin. As Cruzadas

Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.86. 5 MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1988, p.112. 6MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes.Tradução Editora Brasiliense S.A. São Paulo:

Editora Brasiliense, 1988, p.137.

Page 4: Angela

e franjs conhecem períodos de trégua. Apesar disso, recuperam a fortaleza de Acre e

Jerusalém.

Já a sexta parte do livro, denominada “A Expulsão (1244-1291)”, retrata o avanço

mongol e o enfraquecimento do poder dos herdeiros de Saladino. A impressão deixada

pela invasão mongol foi, para a época, uma espécie de guerra santa contra o Islã capaz

de corresponder simetricamente às invasões francas. Um golpe de estado no Cairo

coloca os antigos escravos mamelucos no poder. Autoritários e sem escrúpulos, os

novos lideres do Islã expulsam mongóis e francos de seus territórios para sempre.

Encerrando a narrativa com um Epílogo bastante crítico, Maalouf vê o movimento das

Cruzadas como um – senão o - dos responsáveis pela hostilidade entre Oriente e

Ocidente, em que os povos árabes vêem os ocidentais como inimigos naturais.

Analisando a obra, vemos que Maalouf cai na armadilha das representações ao aglutinar

povos de diferentes etnias em dois conceitos “árabes” e “franj”. Ao identificar dois

personagens antagônicos, o autor faz uso do recurso linguístico de alteridade, impelindo

o leitor a estabelecer a identificação de um grupo “nós” – civilizado e árabe – em

comparação ao grupo “eles” – bárbaro e franj. Os conceitos citados não possuem, como

afirma Said, “estabilidade ontológica”, pois “ambos são constituídos de esforço humano

– parte afirmação, parte identificação do outro”7.

Embora seja possível identificar consequencias advindas das Cruzadas na cultura de

todos os povos envolvidos, sejam eles árabes, turcos, curdos, mongóis, egípcios,

francos, germânicos, venezianos, normandos, bizantinos, é preciso considerar que as

relações de dominação – em que há vencedores e vencidos – implicam em momentos de

barbárie. “Assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo

de transmissão da cultura”8. O movimento cruzadista proporcionou o florescimento de

uma “cultura orientalista” nos reinos ocidentais, com a disseminação do que se esperava

dos padrões de vida tipicamente orientais e o interesse pelas línguas árabe e persa.

As Cruzadas, em todas as suas três frentes - Drang Nach Östen, Reconquista da

Península Ibérica e Cruzadas do Oriente – como uma ação de união da cristandade

7 SAID, Edward W. Orientalismo: oriente como invenção do ocidente. Cia das Letras. São Paulo,2007,

p.13. 8 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São

Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.225.

Page 5: Angela

latina contra um inimigo comum (o bárbaro, o islâmico) de forma poderosa e totalitária

entravou, em certa medida, a formação de pátrias nacionais sólidas9. Ao mesmo tempo,

trouxe relativa unidade dos povos islâmicos do Oriente Próximo, seguindo o mesmo

conceito de combate ao inimigo – desta vez franco - nas figuras de Nureddin, Saladino,

e dos sultões mamelucos, seguidos pelos otomanos que representam o ultimo suspiro de

unidade conhecido pelo Islã até os dias atuais. Tratar as Cruzadas do ponto de vista

islâmico é, portanto, lutar contra o conformismo e o esquecimento, buscando a

compreensão dos fatos sob uma perspectiva mais ampla, na tentativa de cessar as

manipulações da historiografia.

Referencias Bibliograficas:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p.225.

FEBVRE, Lucien. A Europa – Gênese de uma civilização. Bauru: Editora Edusc,

2004, p.33.

MAALOUF, Amin. As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Tradução Editora Brasiliense

S.A. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. 253 p.

SAID, Edward W. Orientalismo: oriente como invenção do ocidente. Cia das Letras.

São Paulo,2007, p.13.

9 FEBVRE, Lucien. A Europa – Gênese de uma civilização. Bauru: Editora Edusc, 2004, p.33.