Ano 1 Nº 1 Nov. Dez. 2015 O arquivo no...

21
memória ativa Ano 1 | Nº 1 | Nov. Dez. 2015 Entrevista EDVALDO RODRIGUES MAR NO SERTÃO ALUÍZIO FALCÃO O MUNDO PÓS 1945 OS 70 ANOS DO APEJE Memórias Registro História

Transcript of Ano 1 Nº 1 Nov. Dez. 2015 O arquivo no...

memória ativaAno 1 | Nº 1 | Nov. Dez. 2015

Entrevista

Edvaldo RodRiguEs

MaR no sERtão

aluízio Falcão

o Mundo pós 1945

os 70 anosdo apEjE

Memórias RegistroHomenagemHistória

O arquivo no futuroO arquivo no futuroO arquivo A humanidade e o desafio de preservar a memória para as próximas gerações

memória ativa2 memória ativa 1

c A r t A A o l e i t o r

Johan Sebastian Bach, diretor musical (Kantor) na catedral de São Thomaz em Leipzig, Alemanha, nasceu em 1685 e morreu em 1750. Quando ele elaborou sua obra

monumental, toda criação musical existia apenas no presente. Não havia nenhum mecanismo capaz de capturar sons para reprodução futura (gravação) e as partituras não possuíam ainda indicações de andamento (lento/rápido) e intensidade (volume), de modo que a música era um fato do domínio exclusivo do aqui e agora.

É difícil para nós, criaturas incapazes de memorizar a placa do próprio carro, imaginar como alguém ouvia duas horas e meia de música tocada por 60 intérpretes — entre cantores e instrumentistas — sabendo que aquela seria a primeira e única apresentação, por exemplo, da “Paixão segundo São Mateus”.

Lembrar é a essência da condição humana. Memória nada mais é do que o conjunto de operações que nos permitem recuperar, no momento necessário, dados, sensações ou imagens visualizadas no passado, próximo ou distante. Quanto mais vivemos, mais dados acumulamos em nosso HD biológico e, como são tantos números, dores, paisagens e melodias, mais difícil vai ficando resgatar com presteza aquilo de que precisamos na hora exata do milagre da (re)criação.

Por isso inventamos HDs externos, como a escrita na parede da caverna, o LP e o touch screen. O livro, de argila, pele ou celulose, permanece indispensável. Vieram a biblioteca, o museu, os arquivos públicos – as instituições de memória – que criam pontes entre o passado e o presente, com o olhar no futuro. Memória transformadora. Viva.

Uma ação de resgate e preservação da memória trouxe até nós as partitas, oratórios e concertos de Bach, completamente esquecidos desde a morte do último que teve a ventura de ouvi-los. Estima-se que 70% dos seus manuscritos foram vendidos no peso, para

reciclagem. O Bach que conhecemos foi recriado a partir de pesquisas conduzidas por Felix Mendelssohn (1809–1847). Recriado porque era difícil interpretar as velhas partituras, mas também porque os instrumentos para os quais foram escritas não mais existiam. Maestro e compositor consagrado aos 20 anos, Mendelssohn localizou fragmentos de partituras até em enchimento de encadernação de livros centenários.

Com a linguagem e técnicas do jornalismo, a revista Memória Ativa vem para contar histórias como esta e fazer alertas. Editada pelo septuagenário Arquivo Público de Pernambuco, busca dialogar de forma aberta com a sociedade — academia, poderes públicos, instituições de memória — e qualquer um que compreenda a importância da preservação da memória.

Nesta primeira edição, Memória Ativa traz uma reportagem que procura desvendar como serão guardados e protegidos, no futuro, os registros da atividade humana. Ou seja: qual o futuro das instituições guardiãs da memória.

Em inspiradora entrevista, o repórter fotográfico Edvaldo Rodrigues resumiu, em palavras e imagens, seus cinquenta anos de profissão. A transposição do Rio São Francisco começou há um século e meio, sabia? Como cereja do bolo, uma crônica do jornalista e escritor pernambucano Aluísio Falcão.

Por fim, fica o convite: faça como Mendelsohnn, seja um ativista da memória.

Ative a sua memória

outdoor de uma campanha de divulgação da Universidade de Amsterdam (Holanda), vinculada em 1998 : “informação é a única matéria prima da natureza que se multiplica quando é distribuída”

google images

Evaldo Costa | Editor-chefe

memória ativa4

Andei escrevendo sobre o estranho nome de uma locutora de rádio e fazendo gracejos com a hipótese de conhecê-la para decifrar os seus

mistérios. Garibaldi Otávio, que é poeta, leu a crônica e me relatou o triste desfecho de uma fantasia que teve, anos atrás, em suas vigílias de descasado. “Foi uma terrível frustação”, dramatizou Gari, assim chamado entre os amigos. E passou a contar os lances do infausto sucedido.

Disse-me que, saindo tarde do jornal, sem ânimo para esticadas boêmias, costumava recolher-se ao seu apartamento em Interlagos. Para chamar o sono, ficava corujando TV. Assistia ao Jornal da Globo inteirinho, vejam os senhores, que suplício. Naquele tempo ainda não havia para nós a Lilian Witte Fibe e sim uma dupla de apresentadores. No fim da edição corriam na telinha os letreiros identificando a equipe de redação. Abrindo a listagem, um nome estrangeiro que de imediato acendeu a imaginação do poeta: Pola Galé! Garibaldi começou a fantasiar. Que tipo de mulher seria esta Pola Galé, talvez assim chamada em homenagem a Pola Negri, a estrela do cinema mudo? Alta, pele de pêssego, esguia, olhos ciganos? Uma condessa exilada nos trópicos? Depois de outras cogitações intensas e impublicáveis, foi para a máquina de escrever e teclou o título do poema que comporia no dia seguinte: Pola Galé.

Veio o dia seguinte, vieram outros dias, e o poeta sem tempo de iniciar a louvação da musa desconhecida. Aliás, mesmo que fosse tão desocupado quanto o príncipe Charles, tão cedo escreveria o poema. Gari é um perfeccionista, da mesma linhagem do seu conterrâneo João Cabral de Melo Neto.

Trabalha incansavelmente com as palavras até achar a justa medida para cada verso. Lembro-me que no suicídio de Hemingway, enquanto abundavam chorosas elegias nos suplementos, o seu verso enxuto crescia, entre todos, pela beleza da concisão: “Que fera de ti mesmo mataste?”... De modo, senhores, que talvez muitas luas ainda tivessem de passar no céu de Interlagos até que Pola Galé ganhasse o seu poema.

Bem, o tempo foi andando e certa noite, em animado coquetel de coleguinhas, Garibaldi ouviu gritarem perto dele o nome fatal: “Alô Pola Galé!” Voltou-se imediatamente para o círculo de onde viera a saudação. Ali estavam as belas Mônica Soutello, Lúcia Helena Gazzola, Rosângela Petta, Lu Fernandes, e alguns cavalheiros. Nenhuma outra mulher. Abraçado com Lu, seu maridão, também competente jornalista, que se chama... Pola Galé! Parece que Pola no idioma dos antepassados dele, tanto é nome de homem como de mulher. Do mesmo jeito que Íris Resende em português. Apresentado ao Galé, nosso poeta Garibaldi Otávio deu uma sonora gargalhada. Chorando por dentro a ilusão perdida. (extraído do livro Crônicas da vida boêmia, ateliê editorial, 1998)

n e U r ô n i o

Ilusão perdidaaluízio Falcão

hallina beltrão

memória ativa 3

s U m á r i o

n E u R ô n i O A ilusão perdida por conta de um nome

cA pA O arquivo no futuro

H O M E nAg E M Os 70 anos do Arquivo Público

R E p O RtAg E M 1945 O ano em que a esperança venceu

H i stó R i A A transposição do S. Francisco começou há 150 anos

d O c u M E n tO O primeiro jornal de Pernambuco

E n t R E v i stA Edvaldo Rodrigues

A l M A nAq u E Notícias, frases e afins

M i l pA l Av R A s A construção da Av. Guararapes

c o l A b o r A d o r e s

Uma publicação do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano

Governador do Estado de Pernambuco Paulo Henrique Saraiva Câmara

Secretário da Casa CivilAntônio Carlos Figueira

Gestor do Arquivo Público Evaldo Costa

Presidente da CepeRicardo Leitão

Revista memória ativa:Editor-ChefeEvaldo Costa (DRT/PE 1147)

EditorSérgio Miguel Buarque (DRT/PE 23xx)

Projeto Gráfico/ArteLuiz Arrais (DRT/PE 3054)

RevisãoAdelaide Ribeiro

Arquivo PúblicoR. Imperador Pedro Segundo, 371 S. Antônio, Recife/PE, CEP 50010-240 Telefone:(81) 3224-0620

ImpressãoCia Editora de Pernambuco – CEPERua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro Recife/PE – CEP 50100–140Fone: 0800 081 1201 – Ligação gratuita

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da revista.

e x p e d i e n t e

aluísio Falcão Jornalista e escritor. Trabalhou na Rádio Eldorado e principais jornais do Recife e São Paulo

inácio França Jornalista e escritor, faz parte do coletivo de jornalismo Marco Zero Conteúdo e atua como consultor de comunicação do UNICEF

Hallina Beltrão Designer e ilustradora, colabora com várias publicações, como a Rascunho, de Curitiba e Que leer, da Espanha

2

4

12

18

26

31

32

32

36

12fotos: divulgação

memória ativa

memória ativa6

c A p A

Os arquivos em um mundo cada vez mais virtual, um dilema de ordem prática se impõe para a humanidade: como as informações serão armazenadas e preservadas no futuro? sérgio Miguel Buarque

go

og

le im

ages

memória ativa 7

no século 22

memória ativa6

“imprimam suas fotos”. O alerta foi dado recentemente pelo matemático e enge-nheiro de sistemas norte-americano, Vinton Cerf, durante o encontro anual

da Associação Americana para o Avanço das Ciên-cias, em San Jose, na Califórnia. No encontro, que aconteceu no dia 13 de fevereiro deste ano, Vint (como é conhecido) chamou atenção para um problema prático e bem contemporâneo: a preser-vação das imagens e documentos que hoje estão salvos apenas em formato digital. Ele acredita que esses arquivos possam ser perdidos em algum mo-mento da história, à medida que hardware e soft-ware se tornem obsoletos.

“Formatos antigos de documentos que cria-mos ou apresentações podem não ser compatí-veis com a última versão de um software porque a compatibilidade retroativa não é sempre con-fiável”, argumentou Vint Cerf para uma plateia atônita. Para dar ainda mais dramaticidade à cena, Cerf sentenciou: “o mundo pode entrar em uma “Idade das Trevas Digital” e as gerações futuras podem vir a ter poucos ou mesmo ne-nhum registro do século 21”.

Não que a preocupação com a preservação de arquivos digitais seja exatamente uma novidade. Mas vinda de uma pessoa como Cerf, a história ganha um tom de profecia. Isso porque, ele é uma espécie de lenda viva dentro do mundo da ciência e da inovação. Tanto prestígio vem do fato de Cerf (junto com Robert Kahn) ter criado, no início da década de 1970, nada mais nada menos, do que a internet. Para dar mais força às credenciais de Cerf, aos 72 anos de idade ele é um dos vice-pre-sidentes do Google. Ou seja, continua na crista da onda tecnológica.

A repercussão alcançada pela declaração do “pai da internet” trouxe luz a um tema que vem sendo tratado por especialistas já a um bom tem-po. Enquanto os cientistas da informação buscam uma solução para a possibilidade de perda de ar-quivos atuais, cabe uma reflexão mais ampla. No futuro, no século 22 por exemplo, como será a atividade de produzir, distribuir, acolher, con-

servar e disponibilizar ao público todo o material avaliado como histórico produzido pelo Estado? Isso levando em conta que essa é uma atividade relevante tanto do ponto de vista administrativo quanto social.

A preocupação com a preservação digital é le-gítima e a solução desta questão tem que ser leva-da em conta quando se tenta imaginar como serão os arquivos, museus, bibliotecas ou qualquer ou-tro tipo de instituição responsável pela custódia de documentos. Mas, na velocidade com que a tec-nologia está avançando, imaginar o futuro não é um exercício fácil. A boa notícia é que tem muita gente competente fazendo isso. Muitos também são os caminhos apresentados. O próprio Vint Cerf tem o seu.

Por conta da sua formação, o vice-presidente do Google tem uma visão de futuro muito mais vinculada à tecnologia. Em uma reportagem pu-blicada pelo site da BBC de Londres, Vint propõe a criação de um museu “na nuvem” que preserve digitalmente as características de cada software e hardware, para que mesmo que uma tecnolo-gia se torne obsoleta, seus arquivos ainda possam ser acessados. O conceito, segundo a reportagem, foi batizado de “pergaminho digital” e a ideia está sendo desenvolvida pelo pesquisador Maha-dev Satyanarayanan, da Universidade Carnegie Mellon, nos EUA.

A proposta defendida por Cerf traz, claro, al-gumas polêmicas e tem gerado questionamentos

fotos: divulgação

Armazenamento de dados em fita magnética é uma imagem, em preto e branco, do passado

“A internet é uma coisa estranha: ela lembra-se de coisas que não queremos lembrar e

esquece-se das coisas que queremos lembrar.”Vint Cerf, um dos criadores da internet

memória ativa 7

de uma parcela significativa de especialistas. A primeira delas, e mais óbvia, diz respeito aos inte-resses estratégicos do Google. A ideia de um “mu-seu nas nuvens” sugere a possibilidade de um novo modelo de negócio para a empresa na qual o autor é vice-presidente. Seria seguro e correto entregar todo esse “patrimônio” a uma grande corporação?

Mesmo as questões mais sutis relacionadas com a proposta de Cerf são potencialmente po-lêmicas. Dentre elas, a principal parece ser a que diz respeito à diminuição da privacidade. O pró-prio Cerf alerta para a possibilidade. “Precisamos concordar que alguma instituição ou autoridade terá acesso aos softwares, com o compromisso de preservá-los juntamente com as informações. De-vemos estar prontos para desistir de certa quanti-dade de liberdade em troca da preservação”.

Seria esse o preço que a sociedade deveria pa-gar para ter a memória digital preservada para as futuras gerações? Ou ainda, seria esse o único ca-minho a seguir?

Para o professor do Programa de Pós-gradu-ação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos Galindo, a res-posta é não. Coordenador científico do Laborató-rio de Tecnologia do Conhecimento (Liber), Galin-do compartilha da preocupação de Vint Cerf com a preservação dos registros digitais mas tem uma visão bem diferente dos caminhos para solucio-nar o problema. Uma visão, diga-se de passagem, bem mais otimista do que a do “pai da internet”.

O professor da UFPE, por exemplo, descarta o temor da humanidade mergulhar em um “período de trevas” por conta de alguma incompatibilida-de tecnológica. “A lógica de achar que pode haver uma ‘Idade das Trevas Digital’ é a mesma dos que acham que o incêndio na Biblioteca de Alexandria foi o causador da Idade Média (que ficou conheci-da como Idade das Trevas)”. Para ele, o conheci-mento é muito mais do que sua representação es-crita ou digital. Do que o documento em si. “Mais importante do que o objeto é o processo”.

Por isso, ele argumenta que a questão não é se os arquivos serão perdidos. A pergunta, segundo ele, é se a humanidade vai continuar produzindo informação. Como, obviamente, a humanidade continuará produzindo muita informação, e de forma cada vez mais conectada, as instituições

A diminuição daliberdade seria opreço que asociedade deveriapagar para ter amemória digitalpreservada no futuro?

Vint cerf, o “pai da internet”, e marcos Galindo, da UFpe, imaginam modelos diferentes para os arquivos do futuro

memória ativa8

responsáveis pela guarda, preservação e aces-so ao patrimônio memorial e cultural da socie-dade devem também se organizar de maneira mais conectada, formando uma rede colabo-rativa, descentralizada e democrática.

PARECE FICçãO CIENTíFICADar mais valor ao “processo” do que ao “ob-jeto” não significa, para os defensores de uma “rede de memória colaborativa”, que a tec-nologia deva ser colocada de lado. Muito pelo contrário. Serão os avanços tecnológicos que garantirão a segurança, a capacidade e a agi-lidade do sistema. Como se dará isso? Difícil dizer, principalmente na velocidade como as coisas avançam neste campo do conhecimen-to humano.

servidores da internet Archive guardam quantidade gigantesca de arquivos

Arquivos do século 22O futuro na nuvem:• Dados e metadados guardados na “nuvem”• Existência de grandes corporações para manter as “nuvens”• Modelo mais centralizado• Conceito de Arqueologia Digital• Menos privacidade em troca de mais preservação (mudança no conceito de direito autoral)

O futuro na rede:• Acervos conectados em rede• Muitas instituições trabalhando de forma colaborativa• Modelo descentralizado e democrático• Conceito baseado na teoria dos sistemas• Possibilidade de uso partilhado de recursos de inteligência e tecnologia

memória ativa 9

Alguns experimentos que estão sendo desen-volvidos sinalizam para qual direção caminham as redes de memória. Conheça algumas soluções:

Computadores neuromórficos: Cientistas es-tão desenvolvendo processadores que simulam a arquitetura cerebral, funcionando como uma rede de neurônios e aumentando, de forma exponen-cial, a capacidade de processar a informação. As-sim, seria possível se trabalhar com uma quanti-dade quase ilimitada de dados.

Modem quântico: Tecnologia capaz de gerar e receber fótons individuais. Isso permitiria — em tese e aqui explicado de forma simplificada — o envio de dados através da luz.

Armazenamento de dados em DNA: Técnica pode ser solução para armazenamento de longo prazo, já que o DNA suporta a passagem do tem-po. Segundo matéria publicada no jornal O Globo, cada grama do material é capaz de guardar 455 exabytes de informações (cada exabyte equivale a cerca de 1 bilhão de gigabytes), espaço suficiente para os dados mantidos por Google, Facebook e todas as grandes companhias de tecnologia.

Essas três novas tecnologias, só para citar al-gumas das tantas que estão sendo pesquisadas, resolveria de forma eficiente e com um custo cada vez mais baixo os problemas de processamento, transmissão e armazenamento de uma grande quantidade de informação. Isso, claro, contribui-ria também para a segurança e preservação dessa

informações.

REDE MEMORIALUma experiência em âmbito local, vem testando na prá-tica estes conceitos. Desde 2009, a Rede de Cooperação Interinstitucional Memo-rial Pernambuco (RMP). A rede tem o objetivo de pro-mover cooperação através da realização de programas estratégicos, de preserva-ção e acesso ao patrimônio memorial e informação de interesse histórico, custo-diados por instituições de missão memorial.

Segundo o psicólogo francês Paul Fraisse (foto), conhecido pelo seu trabalho sobre a percepção do tempo, após três segundos todas as informações que circulam ao nosso redor e são processadas saem da consciência e são arquivadas nos sistemas de memória do cérebro. Ou seja, toda informação captada pelos seres humanos leva pouco mais que o tempo de uma respiração para se tornar passado. Isso, segundo ele, significa que nós enxergamos a própria vida, fundamentalmente, através de registros de memória.

A vida vista pelo espelho retrovisor

fotos: divulgação

memória ativa12

de

A expressão “Idade das Trevas Digital” (que remete ao período da Idade Média europeia conhecido como

“Idade das Trevas”) não é novidade e, muito menos, foi criada por Vint Cerf. Ela consta na Carta da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Preservação do Patrimônio Digital, elaborada em 2003, e adotada pelos 188 Estados membros

da organização. A carta, bem como os diversos eventos e programas desenvolvido ao longo das duas últimas décadas, mostra a preocupação da Unesco com o tema. A professora Gilda Verri participou de um destes projetos ao integrar o comitê brasileiro do “Memória do Mundo”. Ela compartilha a preocupação de Cerf mas não necessariamente da solução proposta para o problema. Em entrevista à revista Memória Ativa, ela fala um pouco sobre o futuro da memória no Brasil.

MeMória ativa O engenheiro norte-americano vint Cerf, considerado um dos pais da internet e, atualmente, vice-presidente do Google, disse recentemente se preocupar

gilda verri“Documentos em meios eletrônicos talvez não cheguem ao próximo século”

com uma “idade das trevas Digital”. O que a senhora acha disso?GilDa verri Se uma das maiores autoridades da informação virtual duvida da preservação dos meios e suportes da informação que, por si só, é intangível, ambígua e volátil, imagine nós outros que não lidamos

com essas tecnologias... Quanto aos documentos institucionais, registrados em meios eletrônicos, talvez não cheguem ao próximo século. Diferentemente do papel, do pergaminho. As tecnologias têm avançado muito na reprodução dos meios impressos mas, penso, não termos ainda comprovações da verdadeira preservação e permanência documental. Vejo este país mergulhado nas maravilhas virtuais sem valorizar os registros históricos. Quase sem memória. Imagine em alguns anos futuros. Seria preciso uma reviravolta de 180 graus para que se pudesse enxergar e valorizar a preservação da memória (aqui entendida como registro preservado da história de um povo, comunidade, grupos). Precisaria uma escala de valores éticos e econômicos que dessem à memória um lugar de destaque entre os vários níveis de compreensão do papel, do lugar do homem na vida das cidades e dos campos. Portanto, a questão é mais complicada do que se imagina. Basta ver como o Estado trata suas instituições ou lugares de memória.

M.a. Como serão instituições como arquivos públicos, bibliotecas ou museus no futuro? a senhora consegue imaginar?G. v. Os lugares do futuro provavelmente serão equipados mecanicamente. Feios robôs ocuparão os espaços que poucos humanos irão/estarão. As falas e os pensamentos

e n t r e V i s t A

foto

s: d

ivu

lgaç

ão

memória ativa 11

de

Princípios da memóriaInformação é a única matéria-prima da natureza que se multiplica quando é distribuída

• A tarefa da memória reside no resgate, no tratamento, na preservação e na promoção do acesso aos registros de inteligência;

• A memória é uma representação ou projeção da inteligência, e como tal sempre será fragmentar, linear e temporal;

• Inteligência é um processo social operado pelos indivíduos, e a memória é seu destino final;

• Para se expressar como interface, em alguma instância, a memória necessita do aporte da tecnologia, para materializar-se (documento) e permitir a formação de estoques (acervos);

• A memória destina-se ao acesso. Memória e acesso são partes de um mesmo processo, sem o acesso a função social da memória é nula;

• São os excedentes da economia que remuneram a ação das instituições de memória e viabiliza a circulação da memória;

• O senso de valor dos bens da memória é variável e as organizações que se desdobram da tarefa da memória, paradoxalmente, podem ser entendidos como sistemas socialmente secundários, principalmente nas sociedades que ainda não alcançaram a condição de desenvolvimento;

• Para os interesses da Ciência da Informação memória não é lembrança (biológica) nem história (rememoração);

• Memória é registro. Esta definição se faz para se evitar as armadilhas da polissemia e a confusão terminológica;

• Na perspectiva da Ciência da Informação (conhecimento registrado), a memória e a informação podem ser compreendidos como sendo a mesma coisa;

• Somente a memória registrada é gerenciável.

Fonte: Marcos Galindo em “A redescoberta do trabalho coletivo.”

serão apresentados mecanicamente, as músicas já são pancadões... Mas ainda restarão alguns a buscar as melodias... Sugiro ler de Júlio Verne: “Paris no século XX”.

M.a. Como é o trabalho no Programa Memória do Mundo? Poderia falar sobre suas impressões sobre o programa?G.v. O Programa Memória do Mundo do Comitê Brasil / Unesco tem um corpo de especialistas de algumas áreas ligadas à preservação da memória (bibliotecas, arquivos e museus), pessoas que são indicadas para avaliar conjuntos documentais existentes e preservados no Brasil. Durante quatro anos os membros da equipe se reúnem três ou quatro vezes ao ano para analisar e deliberar sobre a validade das propostas, que são examinadas conforme critérios consagrados. A partir da nominação dos documentos, a instituição mantenedora deverá empenhar-se em manter e divulgar o material. Foi uma experiência muito gratificante, enquanto estive na função.Pernambuco foi beneficiado com alguns conjuntos documentais relevantes: o Foral de Olinda, a documentação de Joaquim Nabuco e três importantes manuscritos, pertencentes ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico (o Atlas Vingboons, de 1630, as Atas da Câmara, do século XVIII, e o Livro de Tombo dos Bens dos Jesuítas, de 1762).

Formada inicialmente pelo Arquivo Público Estadual Jor-dão Emerenciano, pelo Museu da Cidade do Recife, pela Bi-blioteca Pública de Pernam-buco e pelo Laboratório Liber da Universidade Federal de Pernambuco, a Rede Memorial nasceu da observação siste-mática de problemas comuns a estas quatro instituições e da proposição de um modelo teó-rico que respondesse à comple-

xidade do problema de gestão e operação destas organizações.

Atualmente, a Rede Memo-rial Pernambuco conta com a participação, além das quatro iniciais, do Museu do Estado, do Memorial da Justiça do Esta-do, do Instituto Ricardo Bren-nand, da Companhia Editora de Pernambuco, da Fundação Joaquim Nabuco, da Fundarpe, da Sudene, do Paço do Frevo e do Instituto Clio.

memória ativa14

n e U r ô n i o

nam idunti oditate ene pro mo omnis id quam quae doles

H o m e n A G e m

O futuro do pretéritoo Arquivo público de pernambuco chega aos 70 anos com o desafio de se inserir em um mundo digitalizado, conectado e veloz sem abrir mão do passado, materializado em um rico e grandioso acervo

ra

fael

go

mes

memória ativa 15

n e U r ô n i o

nam idunti oditate ene pro mo omnis id quam quae doles

nas gavetas do Arquivo público a história é preservada para as futuras gerações

memória ativa14

O mundo mudou muito desde aquele 4 de dezembro de 1945, quando o en-tão interventor federal, o desembar-gador José Neves Filho, assinou o De-

creto-Lei 1.265 criando o Arquivo Público Esta-dual (APE). Naquele ambiente de efervescência e esperança do pós-guerra, em que a vida era totalmente analógica, as primeiras máquinas que podemos chamar de computador começa-vam a ser montadas e a internet não existia nem na ficção científica. Sendo assim, como vinha acontecendo há muito séculos e ainda durou por algumas décadas, as informações e docu-mentos eram registrados quase que exclusiva-mente em papel.

A ideia básica que levou a criação do Ar-quivo Público era centralizar, em um só lugar, esses “papeis” produzidos pelo Poder Público e também os com reconhecido valor histórico. Além disso, cabia à nova repartição, vinculada na época à Secretaria do Interior e Justiça, a se-leção, classificação, catalogação, restauração e conservação deste material.

Vista hoje, parece óbvia a tarefa que há 70 anos foi atribuída ao APE. Mas não era bem assim no Brasil daquele tempo e, mais especi-ficamente, em Pernambuco. Basta saber que, em 1922, durante uma reforma no Palácio do Campo das Princesas (sede do governo) foram jogados milhares de documentos públicos no rio Capibaribe (“carroças e mais carroças”, se-gundo o editorial da primeira edição da Revista do Arquivo Público, que circulou em setembro de 1946). Os papeis, que pertenciam ao “improvi-sado” acervo histórico do estado, vinham sen-do arquivados desde a administração do Conde da Boa Vista (1837 a 1844).

Desde então, os documentos produzidos pelo estado e milhares de outros com relevância e valor histórico passaram a ser tratados profis-sionalmente e organizados de forma sistemáti-ca. Nestes 70 anos, o acervo do Arquivo Público de Pernambuco cresceu de forma significativa e com conteúdo bem diversificado, incluindo jornais, manuscritos, fotos, livros entre outros (ver quadro à pág. 17).

Mas aquele mundo, que parecia tão sólido em 1945, desmanchou-se no ar. As informa-ções passaram a circular com mais velocidade,

conectadas e integradas. “Multimídia e mul-tiplataforma. On line, on time e full time”, para usar termos do momento. Uma consequência prática disso é que, cada vez mais, os docu-mentos públicos passaram a ser produzidos em formato digital. E, vale ressaltar, em um vo-lume muito maior. Como não poderia ser dife-rente, a maneira de armazenar e preservar todo esse material, claro, também mudou.

Inserir-se neste novo contexto global em que se desenha o futuro, mas sem se descuidar do passado materializado no seu rico acervo é o grande desafio do Arquivo Público de Pernam-buco para os próximos anos.

A tarefa de comandar a instituição na tra-vessia de um mundo analógico para o digital caberá ao novo coordenador do Arquivo, o jor-nalista e ex-secretário de Imprensa do Governo de Pernambuco, Evaldo Costa. Evaldo assume já fazendo um questionamento que, segundo ele mesmo, servirá para orientar sua linha de atuação: Qual será o perfil de um arquivo pú-blico no futuro?

A resposta, que está sendo buscada pelas principais instituições que cuidam da preser-vação da memória no mundo todo, não é fá-cil. Mas, para Evaldo Costa, qualquer que seja o caminho apontado, ele certamente levará em conta algumas premissas. “Com um mundo co-

Em 1922, durante uma reforma noPalácio do Campo das Princesas (sede do governo), foram jogados milhares de documentos norio Capibaribe

memória ativa 17

Jordão emereciano esteve à frente do Arquivo público nos seus primeiros 28 anos

A partir da década de 1970, o Arquivo Público Estadual passou a ser chamado Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), em homenagem ao seu primeiro diretor, cuja gestão se estendeu de 1945 a 1972, ano em que faleceu. Nestes 27 anos, ele foi o responsável direto pela consolidação do Arquivo, direcionando sua política de atuação para três níveis: acessibilidade ao acervo, através de inventários e catálogos; publicação destes catálogos complementados de mostras, cursos e estudos e participação da instituição em diversos eventos culturais expressivos.

Severino Jordão Emerenciano nasceu em Catende (PE), no dia 14 de fevereiro de 1919. Formou-se, em 1944, pela Faculdade de Direito do Recife, sendo o aluno laureado e o orador da turma. Intelectual refinado, foi professor de História da Literatura Portuguesa, na Faculdade de Filosofia da Universidade

do Recife, onde criou, em 1954, o Instituto de Estudos Portugueses. Ainda ocupou uma cadeira na Academia Pernambucana de Letras.

Quem definiu Jordão Emerenciano com fidelidade e poesia foi o cronista Artur Carvalho, em um artigo publicado no Diario de Pernambuco, em 1999, intitulado “O príncipe Jordão”:

... Um metro e noventa, cento e tantos quilos, eciano de primeira, acadêmico, culto, afável, carismático, boêmio, exímio conversador, anfitrião e gastrônomo famoso, Jordão era estimadíssimo no Recife. Os jantares e saraus literários de sua casa, de excelente biblioteca, no Rosarinho, no pé da ponte da Avenida Norte que ele denominou “ponte do jacaré”, marcaram época nesta província, com a presença constante dos inseparáveis Mauro Mota, Paulo do Couto Malta e Marcel Morin, nosso cônsul da França, o popular Marcelo Amorim...

O “príncipe” Jordãoconheça o homem cuja história se confunde com a do Arquivo público de pernambuco

ARQUIvO PúbLICO/PE

memória ativa16

interior do prédio do Arquivo público, que já funcionou como prisão, hoje guarda parte da história de pernambuco

nectado em rede, rápido e onde as informações tendem a ser efêmeras e pulverizadas, a bus-ca por tecnologias inovadoras, que permitam tanto o aumento de capacidade quanto de se-gurança na preservação dos documentos, além de uma maior interação com a sociedade, é uma premissa básica. Mas, além da tecnologia, in-vestir nos processos e nos sistemas também é fundamental. Isso, claro, passa pela capacita-ção do pessoal e pelo estabelecimento de redes colaborativas com outras instituições”.

Apesar de todas as mudanças ocorridas nes-tes 70 anos e as novas necessidades trazidas por ela, na essência o objetivo de instituições como

o Arquivo Público de Pernambuco continua a mesma. Preservar para as gerações que estão por vir as lições aprendidas com a experiência. Garantir o futuro do passado.

O pRédiO HistóRicOAté 1975, o Arquivo Público de Pernambuco funcionou no palácio do Governo. Foi quando, em busca de um espaço físico mais adequado ao tamanho e importância do seu acervo, acabou transferido para sua atual sede, à Rua do Impe-rador. O prédio típico do Brasil Colônia, havia siso construído em 1731, inicialmente, para ser-vir de cadeia pública da capital pernambucana.

ra

fael

go

mes

memória ativa 17

AcervoBibliotecaLivros que remetem à história de Pernambuco, seus aspectos sociais, políticos e culturais, acervo de obras raras e revistas.

HemerotecaPeriódicos (jornais do séc. XIX e XX do estado de Pernambuco, alguns exemplares de jornais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Paraná).

Arquivos IntermediáriosDocumentos de uso não frequente, transferido de arquivos correntes que aguardam destinação final em depósito de armazenamento temporário.

Arquivos Permanentes (Dops, iconografia, manuscritos, impressos)Conjunto de documentos cuja frequência de uso é esporádica e que são conservados em razão do valor histórico, probatório ou informativo. Registra a trajetória, a memória administrativa de instituições públicas ou privadas, ou ainda de pessoas.

Diretores/coordenadoresJordão EmerencianoMauro MotaJoão RomaPaulo CavalcantiPotyguar MatosMarc Jay HoffnagelMarisa GibsonRomildo Maia LeiteHildo Leal da RosaPedro MouraEvaldo Costa

Uma curiosidade histórica: entre 1824 e 1825, o Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo Caneca, mais conhecido como Frei Caneca, fi-cou preso no prédio, saindo para ser executado no Forte das Cinco Pontas por conta da sua par-ticipação da Confederação do Equador.

Da época de sua construção, restam a escada lateral e as paredes, tendo recebido remodela-ções ao longo do século XX, a maior parte delas no estilo neocolonial. Depois, o edifício foi uti-lizado para outros fins. Em 1929, por exemplo, sofreu uma grande reforma e passou a abrigar a Biblioteca Pública Estadual, que funcionou até a transferência do Arquivo Público.

memória ativa20 memória ativa 19

A encomenda não era das mais com-plicadas: sob o olhar retrospectivo e contemporâneo, com acesso a di-versas tecnologias de comunicação e

meios de pesquisa, tentar apreender o que pas-sava pela cabeça e pelo coração de quem viveu o ano de 1945.

Contentar-se com a óbvia pesquisa pela in-ternet seria como viajar para uma cidade es-trangeira e não descer do avião. No máximo, dar uma volta na avenida principal dentro de um táxi com os vidros fechados e sem puxar assun-to com o motorista. Longe do meu lugar, prefiro sempre caminhar, experimentar comida na rua e escutar muita conversa alheia.

Quando se pretende voltar 70 anos no tem-po, talvez o equivalente a isso seja recorrer à memória dos mais velhos. Ou debruçar-se so-bre os jornais da época. Foi o que eu fiz.

De tão longe, aquele parece ter sido um ano em que as pessoas retomaram o cultivo de espe-ranças, construíram novos projetos. O ano em que o mundo voltou à sua rotação normal e o fu-turo entrou de novo em pauta. A história reforça esta sensação: afinal, em 1945 a guerra acabou. Poucos meses depois, o que chegou ao fim foi o Estado Novo, nome chapa-branca da ditadura de Getúlio Vargas e o Brasil voltou a ter eleições presidenciais, aparentemente mais democráti-cas do que aquelas da República Velha. Foi a pri-meira em que as mulheres puderam votar.

Nas últimas semanas do ano, o clima re-almente ficou mais leve, mas durante a maior parte do tempo não foi bem assim.

As notícias que chegavam da Europa melho-ravam a cada dia o ânimo dos recifenses e ge-raram um desdobramento prático, com conse-quências positivas para o bolso de boa parte da

1945O ano em que o mundo voltou a girarUm passeio pelo recife do fim da segunda Grande Guerra quando a esperança passou a fazer parte do cotidiano das pessoas | inácio França

r e p o r t A G e m

the kiss of marine (o beijo do marine), foto/ícone do fim da segunda Guerra, de Alfred eisenstaedt

REP

ROD

Uçã

O/C

REA

tIv

E CO

MM

ON

S

memória ativa20

população: o bloqueio aos portos fora suspenso, o que não era pouco para um estado que ainda dependia das exportações de açúcar.

Não demorou para as páginas destinadas ao movimento dos navios começassem a dar si-nal de vida — sim, havia um espaço nobre nos jornais para registrar o entra-e-sai do porto —, depois de tanto tempo esvaziadas por causa dos ataques de submarinos alemães a navios mer-cantes. Manchetes como a chegada do piquete argentino Rio Tunuyan, que seguia de Nova Or-leans para Buenos Aires, sinalizava que as coisas começavam a voltar ao normal já em janeiro.

Hitler estava morto e a Alemanha rendida, esquartejada pelos aliados. Os navios e os ma-rinheiros voltaram ao porto. Depois de ler essas notinhas nas páginas amareladas e cobertas por um pó fino e pegajoso, resolvi dar uma circulada pela zona. Ou onde ela deveria estar em 1945.

Não é difícil imaginar a música, o álcool e o sexo pago retomando seus lugares de sempre na Marquês de Olinda, na Rio Branco, na rua da Guia ou na Tomazina. Calcule quantas orgias devem ter acontecido nas salas cheias de com-

putadores pilotados por jovens ousados e em-preendedores das empresas de tecnologia.

Então, a euforia deu lugar, mais uma vez ao terror. O mesmo porto testemunhou a chega-da de 36 marinheiros esfarrapados, com graves queimaduras de sol, resgatados por um navio mercante inglês. Eram os únicos sobreviventes de uma tragédia surreal, cinematográfica até, caso Hollywood não fosse na Califórnia.

O cruzador Bahia, terceiro maior navio da armada brasileira, explodiu durante exercícios militares perto dos rochedos de São Pedro e São Paulo. A notícia só chegou semanas depois, quando aqueles 36 sobreviventes foram encon-trados em botes à deriva. Ao todo, 339 mari-nheiros morreram, a maioria na explosão, ou-tros de fome, de sede ou devorados por tubarões nos dias que se seguiram.

As informações desencontradas alimenta-ram o pânico: os jornais diziam que o navio teria se chocado com uma mina.

Depois, outras explicações surgiram, como um torpedo desgarrado, disparado original-mente por um destroier americano contra um

em 1945, Getúlio deixava o poder e luiz Gonzaga (ao lado do presidente dutra) gravava sua primeira música como cantor

fotos: divulgação

memória ativa 21

submarino alemão em fuga. Por mais fantasiosa que essa versão possa parecer em 2015, as in-vestigações a apontaram como a mais provável, pois mina alguma faria um cruzador afundar em poucos minutos. E, realmente, na mesma épo-ca o submarino U-977 se tornou famoso por, sem saber da rendição alemã, ter atravessado o Atlântico sendo perseguido por navios america-nos até o porto de Mar Del Plata, na Argentina.

Nas semanas que antecederam ao encontro de cúpula em Yalta entre o presidente norte-a-mericano Franklin Roosevelt, o ditador sovi-ético Josef Stálin e o primeiro-ministro inglês Winston Churchill, o público ocidental acom-panhou os preparativos como se fosse uma no-vela de espionagem internacional.

Ninguém sabia onde e quando seria a reunião, a não ser poucos diplomatas e alguns marechais. O clima era de mistério e suspense. O que se dizia na imprensa brasileira é que Stálin não queria ir para lon-ge de Moscou, provavelmente por causa do eterno medo dos ini-migos internos da revolu-ção, mesmo depois de exe-cutar quase todos e enviar para a Sibéria os que sobra-ram. Yalta é um balneário

na Crimeia, na atual Ucrânia. Daí, podemos de-duzir que o líder comunista não foi contrariado.

A reunião entrou para a história, pois serviu para antecipar quem iria ficar com o quê no fim da guerra. Para os mortais comuns, a maior par-te do que ficou definido só viria a ser conhecido quando Berlim fosse fatiada e os russos herdas-sem o Leste Europeu no atacado.

Pelo que li nos jornais locais, contudo, o inte-resse dos recifenses era outro. A trama que levou milhares às filas de cinema foi o caso de amor en-tre Robert Jordan e Maria, personagens de Gary Cooper e Ingrid Bergman, no filme Por quem os sinos dobram. No Recife, o Art-Palácio mudou sua rotina e adotou a venda antecipada de in-

gressos, abrindo as bilhete-rias a partir das 8h da manhã.

E olhe que a concorrência era grande: em janeiro daquele

ano 22 filmes estavam em cartaz em 13 salas de exibição, contando apenas as que

anunciavam na sessão Cinematografia, do Jornal do Commercio.

No meio do ano, a estreia de Você já foi à Bahia, animação que iria se tor-

nar um clássico da Disney, foi anuncia-da com três semanas de antecedência pelo

mesmo Art-Palácio. Depois de Zé Carioca, as telas brasileiras foram invadidas por uma

A explosão do cruzador Bahia (foto), terceiro maior navio da armada brasileira, com 339 mortos, trouxe à tona a volta do medo

vela de espionagem internacional. Ninguém sabia onde e quando

seria a reunião, a não ser poucos diplomatas e alguns marechais. O clima era de mistério e suspense. O que se dizia na imprensa brasileira é que Stálin não queria ir para lon-ge de Moscou, provavelmente por causa do eterno medo dos ini-

-ram. Yalta é um balneário

gressos, abrindo as bilheterias a partir das 8h da manhã.

E olhe que a concorrência era grande: em janeiro daquele

ano 22 filmes estavam em cartaz em 13 salas de exibição, contando apenas as que

anunciavam na sessão Cinematografia, do Jornal do Commercio

No meio do ano, a estreia de já foi à Bahia,

nar um clássico da Disney, foi anunciada com três semanas de antecedência pelo

mesmo Art-Palácio. Depois de Zé Carioca, as telas brasileiras foram invadidas por uma

em janeiro, 22 filmes estavam em cartaz, contando apenas as salas queanunciavam na sessão cinematografia,do Jornal do commercio

memória ativa22

overdose de dramas de guerra, filão que demo-raria décadas para secar. Naquela época, só o escracho de Grande Otelo, contudo, era capaz de rivalizar com o excesso de lágrimas e ribom-bar de canhões.

Em minha viagem a 1945, dediquei muitas horas aos anúncios classificados e publicitários, não apenas aos das salas de cinema. Foi uma ex-periência interessante: os anúncios nos falam, através dos tempos, das relações cotidianas da sociedade, tanto pessoais quanto comerciais.

Naquela época, comprar um sobrado na rua da Aurora, ali perto dos Coelhos, custava Cr$ 500 mil, bem mais do que os Cr$ 180 mil exi-gidos por 130 hectares em Gravatá, com duas casas — uma delas para o morador — casa de farinha, fruteiras, mata virgem e fontes d’água. Uma mercearia no largo de Campo Grande não deveria ser um grande negócio, pois o anúncio

de venda de uma delas permaneceu meses sen-do republicado. E olhe que o estabelecimento tinha uma cota de leite Ninho garantida.

Por cotas, entenda-se os limites a que os esta-belecimentos tinham direito para evitar desabas-tecimento durante a guerra. As cotas de produtos como leite, gasolina, pneus, querosene e diesel, a que cada estado tinha direito, eram definidas pela Comissão de Controle dos Acordos de Washing-ton, com a participação de ministérios, associa-ções comerciais, federações de indústrias, desti-larias de álcool e empresas “de força e luz”. Em 1945, essa Comissão reuniu-se e, mesmo com o fim da guerra iminente, renovou as quantidades de todas elas. Aos poucos, as regras foram sendo relaxadas. Em julho, foi anunciada a liberação da importação de azeite de oliva.

Uma publicidade da caneta Parker me aju-dou a entender a razão das cotas. O fabrican-

entre pontes e bondes, a vida seguia cheia de esperança no recife de 1945

ACERvO MUSEU DA CIDADE DO RECIFE

memória ativa 23

te da caneta pagou um anúncio imenso, ¼ de página, para convencer os clientes a não com-prarem o modelo Parker 51. Isso mesmo: a não comprarem o produto.

O texto para explicar era longo: a demanda de particulares atrapalhava o atendimento ao exército e à marinha dos Estados Unidos aliado, destino de 60,2% da produção desse modelo de caneta-tinteiro “automática”, mãe das atuais esferográficas.

Outro anúncio de uma multinacional, já no mês de dezembro, demonstra como os ventos mudaram nos meses que se seguiram ao fim da guerra. A “mensagem” da General Motors in-formava que sua linha de produtos seria comer-cializada no Brasil. O principal argumento para comprar carros da marca? “A contribuição da GM para a vitória: 140 milhões de projéteis para artilharia, 180 mil canhões, nove mil aviões de caça”. Funcionou.

Por vezes, os classificados diziam mais a res-peito da vida dos recifenses do que as notícias. A reportagem, tal como a conhecemos hoje, nos jornais pernambucanos era um artigo impor-tado. Os textos que mesclavam entrevistas de testemunhas, opiniões de especialistas e relato visual dos fatos por algum repórter, eram repu-blicações de jornais do Rio de Janeiro ou chega-vam do exterior pelo telégrafo.

Uma dessas matérias ganhou ares de folhe-tim. Fiz questão de ler a sequência completa para ver como acabaria.

Durante várias semanas, os recifenses acom-panharam tudo que envolvia a cirurgia do apên-dice do senhor André Di Bernardi, na distante Pindamonhangaba, interior paulista. Nada de-mais, a não ser pelo fato da operação ter sido mediúnica, realizada por dois médicos mortos 20 anos antes, os doutores Luiz Gomes do Ama-ral e Francisco Costa, que fizeram o favor de en-carnar, respectivamente, nos médiuns Osvaldo Pereira e Francisco Antunes Belo.

O padre da cidade, o monsenhor Azevedo, chamou a polícia para tentar impedir “a burla” dos espíritas. Não conseguiu. Aliás, foi pior. Sua reação chamou a atenção da imprensa da capi-tal da República, que descreveu até como foi a recuperação do paciente, os resultados dos exa-mes de raio-x feitos por uma junta de radiolo-gistas que garantiram: “O paciente realmente não tem apêndice”. Como também não tinha cicatrizes de cirurgia, a história ficou ainda mais sensacional, melhor que o arrastar de batalhas sem fim da guerra distante.

Um dos títulos dá a dimensão sobre o quanto o caso interessou aos leitores: “Médicos volta-ram do outro mundo e fizeram recomendações sobre o tratamento”.

Era uma época em que médicos operavam direto do mundo dos mortos e — talvez ainda mais estranho — publicavam anúncios nos jor-nais fornecendo até telefone e endereço de suas residências, como o oculista Clóvis Paiva, que vivia no 668 da rua Visconde de Albuquerque, na Madalena, em frente ao atual Hospital De Ávila, ou o “médico de senhoras” Pessoa Gue-des, com consultório na rua Nova e morador da avenida Rui Barbosa, 1061, bem na esquina com a rua Alberto Paiva, perto do Museu do Estado.

Aqui uma curiosidade pessoal, totalmente irrelevante para qualquer leitor, mas adequa-da para manter o tom de uma crônica autoral: quando voltei a morar em Recife, em meados dos anos 1990, fui a uma consulta com um of-talmologista exatamente no endereço de Cló-vis Paiva. Bem, para falar a verdade, não tenho certeza, mas pelo menos sei que era no mesmo quarteirão. Fui lá para conferir.

Não é difícil imaginar a música, o álcool e o sexo pago retomando seus lugares de sempre na Marquês de Olinda, na Rio Branco, na rua da Guia ou na Tomazina

memória ativa24

Faltava pouco para acabar este mundo em que o medo era uma exceção — e essa ex-ceção era a guerra. É legítimo supor que o fim tenha começado no dia 6 de agosto, mas re-cifenses demoraram um pouco mais para entender o tamanho da mudança que o cogumelo de fogo, radioativi-dade e dor havia trazido. Os jornais destacaram as primeiras explosões atômicas, mas trataram a bomba de forma burocrática, algo “2.000 vezes maior que as outras bombas”.

Dias depois, o Vaticano deixou as coisas mais claras ao falar pela primeira vez em uma

arma que poderia pro-vocar “conclusões ca-tastróficas e a guerra do Apocalipse”. Aí sim, os brasileiros — a maioria católica, ainda — devem ter

começado a se preo-cupar. No mesmo dia,

o senhor Gilbert Murray, cujo nome caiu no esqueci-

mento, mas em 1945 carregava o peso de ter sido presidente da Liga

das Nações, sintetizou com amargura e realis-mo: “O homem procura os meios para destruir a si próprio”.

Jornais não publicaram fotos do aconteci-mento. A nova face da morte permaneceu des-

Albert einstein, robert oppenheimer e a bomba atômica: ícones do ano em que a guerra acabou

FOtOS: CREAtIvE COMMONS

memória ativa 25

conhecida por alguns anos. Os números davam ideia do que havia acontecido em Hiroshima e Nagasaki, mas eram frios, não traduziam o significado de quase 200 mil mortos a mais ou a menos.

Entretanto, a era em que o medo pas-sou a ser a rotina, presente a cada es-quina e sobre cada cabeça, pode ter sido antevista numa minúscula nota na pá-gina policial cada vez menos magra: um “chauffer de táxi” foi sequestrado e rou-bado ao levar dois passageiros da praça Chora Menino para Afogados. Reapare-ceu dois dias depois, jogado num mata-gal, sem carro, sem dinheiro e moído da surra desnecessária.

O ano foi chegando ao fim e as no-tícias ajudaram a instalar a esperança. A nova bomba, por exemplo, era feita a partir de um metal com grandes jazidas na Paraíba e Minas Gerais. Melhor ainda: os Estados Unidos já demonstravam in-teresse no nosso “urâneo”. Era indisfar-çável o orgulho do redator diante de mais um produto verde-amarelo.

Getúlio Vargas “renunciou” para dei-xar passar a tão sonhada democracia. Ao menos essa foi a versão que os jornais engoliram e fizeram engolir, explicando o golpe militar do general Goés Monteiro como “um movimento dos militares para garantir a paz e a tranquilidade”. O fato do marechal Dutra ter vencido as eleições presidenciais de 2 de dezembro talvez te-nha sido apenas mera coincidência.

O tribunal de Nuremberg iniciou o julgamento dos nazistas e o mundo também passou a conviver com o sen-timento que a justiça estava sendo feita.

E como já não cabiam ressentimentos entre os aliados, o Brasil e a URSS reesta-beleceram as relações diplomáticas. Pon-tes estavam sendo construídas. Mesmo assim, em sua crônica da cidade, o escri-tor Mário Melo estava mais preocupado a sonhar com o dia em que “a pinguela de madeira” sobre o Capibaribe, ligando a rua Amélia à Real da Torre seria substitu-ída por uma ponte de verdade.

Outra explosão silenciosa e de efeito prolongado seguiu-se às bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. A retomada da vida normal no chamado “mundo ocidental” e a mais prolongada fase de prosperidade e estabilidade econômica vivida pelos Estados Unidos – assumindo o protagonismo político no Ocidente e posto de maior economia do planeta – proporcionaram o maior crescimento populacional da história da humanidade.

Alguns números dão a dimensão dessa explosão: nos anos 40 nasceram nos Estados Unidos 32 milhões de bebês, 33% a mais que na década anterior. Em 1954, nove anos após o fim da guerra e em plena fase áurea da economia mundial, houve mais de quatro milhões de partos, quase 11 mil por dia. Em 1950, o mundo tinha 2,5 bilhões de habitantes. vinte anos mais tarde, já éramos quase 3,7 bilhões de seres humanos.

todos aqueles que nasceram depois de 1946, ou seja, foram concebidos após o fim da guerra, até 1964, fim do período de estabilidade econômica e equilíbrio político, fazem parte da geração conhecida como baby boomer. São essas pessoas que, hoje, estão no poder. Obama nasceu em 1961. Ângela Merkel em 1954. Dilma Roussef é de 1947. Cristina Kirchner, de 1953. Geraldo Alckmin, de 1952.

Essa geração cresceu e iniciou a vida adulta em sociedades onde a televisão formava opiniões e consciências num ambiente de dicotomia entre o bem e o mal, ou o capitalismo e o comunismo, os Estados Unidos e a União Soviética.

A geração baby boomer

na era do “Faça amor, não faça guerra”, a humanidade viveu uma explosão de natalidade

memória ativa28

H i s t ó r i A

A profecia do beato, a promessa do imperador e o futuro que não chegaAntônio conselheiro teve a visão do sertão tomado pelas águas, d. pedro ii elaborou projetos, mas só 150 anos depois a transposição do rio são Francisco começa, lentamente, a sair do papel

memória ativa 27

“o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A frase atribuída ao fundador de canudos, por enquanto, segue apenas como uma metáfora sobre o fim da seca no nordeste

divulgaç

ão

As obras da Transposição do Rio São Francisco estão atrasadas. Aqui não se trata do atraso no cronograma de execução que, por sinal, segue a pas-

sos de tartaruga. Iniciada em 2007, a conclusão da transposição estava originalmente planejada para 2012, mas uma série de imprevistos muda-ram a data — até o momento — para 2017. Essa reportagem tratará de outro tipo de atraso: o his-tórico. E neste caso, a defasagem é secular.

A ansiedade pela conclusão da obra, além de antiga, é muito grande. Isso porque, quando a água saída do Rio São Francisco chegar ao Ser-tão do Ceará e do Rio Grande do Norte, cortando

mais de 600 km de terras áridas de Pernambuco e da Paraíba, a vida de mais de 12 milhões de nor-destinos que vivem na região conhecida como Polígono da Seca terá mudado. Além da preciosa água, a Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (o nome técnico da obra) levará a esperança de um futuro melhor para estas pessoas. Mais do que um gigantesco feito da engenharia humana, a Transposição do São Francisco é o símbolo con-creto de um sonho que alimenta o imaginário de gerações de sertanejos: o fim da seca e de suas consequências devastadoras.

Mas voltemos no tempo. A ideia de acabar com a seca transpondo a água do Rio São Fran-cisco para os locais mais áridos da região não é nova. Projetos com essa finalidade começaram a ser elaborados ainda no século XIX, com a chancela de D. Pedro II que, em sua viagem pelo Nordeste do país em 1859, conheceu de perto o problema da estiagem. Já naquela época, a ideia básica era ligar o São Francisco ao Rio Jaguaribe, no Sertão do Ceará, semelhante ao que faz o Eixo Norte do projeto atual.

As semelhanças entre os projetos não é coin-cidência. Na verdade, eles foram baseados no mesmo raciocínio lógico: levar a água de onde ela é abundante para onde é escassa. Tanto os engenheiros do imperador quanto os atuais sa-biam exatamente onde estavam estes extremos. Para se ter uma ideia do problema da distribui-ção de água no Nordeste (que possui apenas 3% de toda água doce do país), a bacia do São Fran-cisco concentra 63% de toda disponibilidade da região. Levando em conta que outros 15% estão concentrados na bacia do Parnaíba (Piauí/Ma-ranhão) sobram apenas 22% para o restante do Nordeste, onde estão 2/3 da população.

Quando o cálculo é feito levando em conta a proporção de água por habitante, a disparidade entre o São Francisco e o Nordeste Setentrional, onde está localizado o Polígono da Seca, é mais gritante. Enquanto nas margens do “Velho Chi-co” a disponibilidade hídrica é de 2.000m3 por habitante ao ano, na região que será beneficiada com a transposição esse índice é inferior a 1.000 m3/habitante/ano, valor indicado pelas Nações Unidas como o mínimo para garantir a vida hu-mana e a preservação ambiental. Para piorar, a

memória ativa28

no século XvIII já se falava em levar as águas do Rio São Francisco para o Jaguaribe, no Ceará, porém, o primeiro estudo técnico só foi feito em 1847. Segundo o historiador da Universidade Federal do Ceará Gabriel Pereira de Oliveira, o estudo foi feito por Marcos Antônio de Macedo, na época deputado provincial pelo Crato (CE). O objetivo era tornar o Rio Jaguaribe perene.

Com a grande estiagem de 1877, a “canalização” do São Francisco, como era chamada a transposição na época, passa a ter pela primeira vez como argumento o combate à seca no Nordeste. Até então, os argumentos para uma transposição eram de ordem econômica e de integração nacional.

Só que, ao contrário de agora, a transposição não conseguiu viabilidade técnica, financeira e política para sair do papel. Adormecida nas gavetas dos gabinetes do Império e, posteriormente da República, passou a vir a público apenas nos períodos eleitorais ou de grandes estiagens.

nem o poder imperial de pedro ii conseguiu tirar a transposição do papel

tendência, caso não fosse feita a transposição, seria de se chegar ao índice de 500 m3/habitantes/ano em 2025.

No papel há mais de 150 anos, quem sabe agora a profecia do beato Antônio Conselheiro — herói e líder da Guerra de Canudos — feita ainda no século XIX, possa ser finalmente concretizada: “O Sertão vai virar mar”. Só que agora, um mar de água doce e de esperança.

discurso do ex-presidente lula em Missão velha/cE em 13 de dezembro de 2010

“A transposição das águas do Rio São Francisco era um desejo do imperador D. Pedro II, era um de-sejo. Em 1847, ele já sabia da seca no Nordeste, e ele já imaginava que era necessário trazer água de outro lugar para banhar os estados do Ceará, do Rio Grande do Norte, uma parte de Pernambuco e da Paraíba; para banhar o semiárido nordesti-no, a região onde menos chove neste país. E nem D. Pedro conseguiu fazer; nem D. Pedro, que era imperador, filho de rei, conseguiu fazer. Precisou vir o Lulinha, filho de Aristedes, para fazer; Preci-sou vir um cara de Garanhuns, filho de dona Lin-du, casado com dona Marisa para fazer. É por que eu sentia o drama? É porque esse pescocinho, que vocês percebem que é pequeno, é de carregar lata d’água na cabeça, é de carregar pote com sete anos de idade... Pois bem, eu assumi o compromisso de fazer a transposição das águas.”

fotos: divulgação

Nas gavetas do Império e da República

d o c U m e n t o

O primeiro jornal de PernambucoNo dia 27 de março de 1821 começou a circular o Aurora Pernambucana, que entrou para a história como o primeiro jornal do estado. As quatro páginas, impressas em papel de linho na Oficina do Trem Nacional e que mediam 25 cm x 17cm, deixaram de ser publicadas no dia 10 de setembro do mesmo ano, após 30 edições. Aqui, a reprodução da capa da histórica primeira edição.

Aurora ernambucana

foi o terceiro periódico impresso no

rasil e faz parte do acervo do Arquivo público de pernambuco

opernambucanafoi o terceiro periódico impresso no brasil e faz parte do acervo do Arquivo de

divulgaç

ão

memória ativa32

e n t r e V i s t A

nas últimas cinco décadas, Edvaldo Rodrigues usou a lente de sua máquina fotográfica para documentar muitos dos fatos

que marcaram a nossa história recente. Misturando competência, intuição e, como ele modestamente costuma dizer, um pouco de sorte, o fotógrafo pernambucano desenvolveu o dom de sempre estar no lugar certo e na hora certa. Vadinho, como ele é chamado pelos amigos, nasceu no Recife, no bairro do Jequiá. Cresceu

brincando e jogando bola perto da Torre do Zeppelin (uma torre de atracação que funcionou na época dos dirigíveis). A carreira de repórter fotográfico começou cedo, mas de forma despretensiosa, quase por acaso, fotografando as festas e os eventos do bairro. Em 1962 entrou no Jornal do Commercio, mas foi no Diario de Pernambuco que construiu a carreira. Cinquenta anos depois, Edvaldo Rodrigues se orgulha do caminho que percorreu. “Tenho que agradecer a Deus por tudo. Um menino pobre que conheceu o mundo por conta da fotografia. Visitei 12 países. Aprendi inglês, espanhol e italiano. A fotografia abriu as portas para mim”.No momento em que está envolvido no projeto multimídia (livro, vídeo, site e exposição) que fará uma retrospectiva dessas cinco décadas dedicadas ao fotojornalismo, Edvaldo conversou com a reportagem da revista Memória Ativa e relembrou alguns momentos marcantes de sua carreira.

Edvaldo Rodrigues

“A fotografia abriu as portas para mim”

Há cinco décadas a história é captada pelas lentes do fotógrafo pernambucano edvaldo rodrigues

no lugar certo, na hora certa

divulgação

memória ativa 33

o inícioFoi um amigo, um irmão por afinidade, lá do Jequiá, quem me chamou para fazer um curso de fotografia. Nessa época (início dos anos 1960) eu trabalhava como apontador em uma construtora e ele em uma empresa alemã. Nós compramos os equipamentos, livros especializados e montamos um laboratório para revelar filmes no fundo de casa. Começamos a ganhar dinheiro fotografando festas e eventos do bairro. Foi quando eu vi um anúncio no Jornal do Commercio oferecendo emprego no departamento de fotografia. Resolvi me apresentar. Eles me deram um equipamento e mandaram fazer um teste de rua. Minha primeira foto foi de um acidente entre um caminhão e um ciclista, que morreu preso embaixo do veículo. Fiz a foto e fui contratado. Tinha 20 anos. Gostava de farra e, quatro anos depois fui demitido porque cheguei atrasado e não fiz a pauta que estava reservada para mim. Acabei, um tempo depois, indo para o Diario de Pernambuco, trabalhar na Coluna Social com João Alberto. Ainda voltei para uma passagem rápida pelo Jornal do Commercio até retornar, em 1969, para o Diario. Só saí de lá em março deste ano.

tecnologiaAntes das máquinas digitais era muito mais difícil trabalhar. Principalmente quando viajávamos e tínhamos que transmitir as fotos. No Interior do estado, você tinha que arrumar um jeito de mandar o filme. Às vezes, por exemplo, a solução era o motorista do ônibus. A gente dava o dinheiro a ele e torcia para o material chegar no jornal. Quando a cobertura era em outro estado, ou mesmo no exterior, íamos ao aeroporto e mandávamos as fotos por algum passageiro. Avisávamos e o jornal mandava alguém ir esperar o avião. Mas não são apenas as máquinas, mas as facilidades que vieram junto com elas. Hoje é mais fácil fazer ajustes nas fotos...

copas do MundoForam três Copas do Mundo que cobri pelo Diario de Pernambuco. A Copa da Espanha, em 1982, a do México, em 1986, e a da Itália, em 1990. Além disso, trabalhei em uma Copa América e acompanhei a Seleção Brasileira em algumas excursões pelo exterior. Em 82, a Seleção chegou como favorita. Era comandada pelo técnico Telê Santana e tinha ótimos jogadores. Mas aí veio a decepção... Naquele jogo (contra a Itália, no estádio Sarriá, quando o Brasil perdeu por 3 x 2) o meu chefe ficou do lado do ataque da Seleção e eu no da Itália. Acabei tendo mais sorte do que ele. Estava no local certo e na hora certa. Peguei o lance do gol de pênalti de Paolo Rossi e a foto foi publicada no mundo todo.

edvaldo rodrigues

memória ativa34

arraes chegando do exílio

Foi um trabalho muito difícil. Havia uma multidão esperando o retorno de Miguel Arraes do exílio, em 1972. Mas tive sorte. Pouco antes de começar a ser carregado nos braços do povo, ele saudou a todos com a mão levantada. As pessoas em volta também ergueram as mãos. Eu estava bem posicionado e consegui registrar a cena. Essa imagem foi muito usada em campanhas eleitorais e foi publicada em livros. Mas eu nunca ganhei nada com isso.

o papa e dom Helder

Era 1968, ainda estávamos sob a influência da ditadura e como cheguei atrasado na base área os militares não me deixaram entrar na área reservada à imprensa. Argumentei com um coronel, disse que poderia perder meu emprego e o máximo que consegui foi ficar no telhado da sala VIP que, em princípio, seria ruim. Quando subi lá, vi um tapete vermelho e me posicionei imaginando que o papa João Paulo II passaria por lá. Deu certo. O avião parou bem onde eu pensei. Comecei a fotografar assim que ele apareceu até o momento do encontro e do abraço com Dom Helder. Antes de entrar na sala VIP, o papa acenou para mim. Do teto, respondi ao aceno com uma mão e fotografei com a outra.

fotos: edvaldo rodrigues

memória ativa 35

edvaldo, já veterano, também acompanhou o jogo político recente pelos seus mais variados ângulos

Rainha Elizabeth ii no Recife

Em 1968 eu levei um grande susto. Havia sido escalado para acompanhar a visita da Rainha Elizabeth II ao Recife. Fiz várias fotos dela ao lado do Príncipe Phillip e do então governador de Pernambuco, Nilo Coelho. Só que, em determinado momento, o filme se desprendeu da máquina e corria o risco de ser todo arruinado. Tive a ideia de usar o paletó que estava vestindo e improvisar uma câmara escura. Deu certo. Consegui salvar o filme já utilizado e ainda colocar um novo. As fotos daquele dia estão aí para contar a história.

memória ativa34

A l m A n A q U e

A tropa de choque da AboliçãoUm clube com o objetivo de libertar os escravos

Entre outubro de 1884 e novembro de 1885, uma sociedade secreta formada inicialmente por doze abolicionistas dedicados e dispostos a quase tudo pela causa (depois cresceu e chegou a ter 20 sócios) infernizou a vida dos senhores de escravos pernambucanos nos anos que antecederam a Abolição. O Clube do Cupim tinha um único objetivo: a libertação dos escravos por todos os meios. Principalmente articulando e executando fugas dos cativos. Como cada membro tinha sob suas ordens um capitão, este um sub-capitão que, por sua vez, comandava vinte auxiliares, o clube chegou a contar com cerca de 300 pessoas envolvidas.

O idealizador da sociedade foi João Ramos, que tornou-se presidente da entidade e usava o codinome “Ceará”, uma homenagem ao local que, em 24 de março de 1884, decretou a libertação de todos os escravos. Seguindo o exemplo do presidente e com o objetivo de confundir a repressão, cada sócio tinha como codinome uma província brasileira. Mesmo depois de dissolvido formalmente por conta da

charles darwin e a escravidãoEsqueça aquela imagem de um senhor de barba branca e casaco preto, tipo um Papai Noel sóbrio e à paisana. Quando desembar-cou no Brasil, recém-formado em Cambridge e com apenas 22 anos de idade (contando idas e vindas, esteve no país entre 1831 e 1836, inclusive no Recife), o naturalista britânico Charles Darwin tinha cara de menino. Maravilhado com a exuberância do que mais tarde seria chamado de biodiversidade, Darwin ficou choca-do com a escravidão, que recriminou reiteradas vezes. Morreu em 19 de abril de 1882, portanto, sem ver o fim dessa aberração no Brasil. O diário de bordo e as notas de viagem de Darwin foram reunidas anos mais tarde em livro: A viagem do Beagle.

intensa perseguição a seus membros, o Clube do Cupim continuou a atuar informalmente. Segundo a bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco, Lúcia Gaspar, a última façanha da organização foi o embarque de 119 escravos, realizado no dia 23 de abril de 1888. “Desceram à noite, do Poço da Panela, da casa de José Mariano em uma canoa de capim até a Capunga, sendo depois rebocados por dois botes que fundearam em frente à casa de banhos, passando daí para o barco Flor de Liz e, na manhã seguinte, para um rebocador que os levou para a liberdade”.

o clube do cupim, chegou a ter mais de 300 pessoas envolvidas, entre elas Fernando de castro paes barreto, seu orador

fotos: divulgação

memória ativa 35

e meio, o que o Padre Carapuceiro falou sobre o jornal serviria para descrever o site e vice-versa. Mas, no caso, qualquer semelhança não terá sido mera coincidência. O site — obviamente o nome, mas também um pouco da “pegada” — foi assumidamente inspirado no “avô” do século 19.

A grande família Filippo Cavalcanti era um jovem florentino que desembarcou no Brasil por volta da década de 1560 para operar engenhos de açúcar em Pernambuco. Esperto, casou-se logo com Catarina de Albuquerque, a jovem e rica sobrinha do donatário da capitania hereditária, Duarte Coelho, e filha do português Jerônimo de Albuquerque. Tiveram 12 filhos, que deram netos, bisnetos e a família continuou crescendo exponencialmente. Foram tantos, e alguns tão “importantes”, que surgiu a frase: “Em Pernambuco, quem não for Cavalcanti, há de ser cavalgado”.

separados por 150 anos

Os mitos e a guerra que não aconteceuPadre Cícero Romão Batista (foto), o Padim Ciço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e Luiz Carlos Prestes, o Cavalei-ro da Esperança, estiveram juntos em uma mesma história. As biografias dos três mitos se cruzaram, entre 1925 e 1926, quando a lendária Coluna Prestes rompeu o Sertão nordes-tino. Nesse episódio, o Padre Cícero, inimigo declarado da Coluna, encontrou-se com Lampião, em Juazeiro (CE), e ofe-receu ao líder dos cangaceiros armas, fardamento, munição e uma patente de capitão para combater os revoltosos. Lampião aceitou a oferta, mas a história ficou por aí mesmo. O que se sabe é que a patente era falsa e que Lampião e Prestes nunca entraram em combate.

O Carapuceiro foi um periódico (um dos pioneiros) que circulou no Recife entre 7 de abril de 1832 e 28 de setembro de 1847, editado pelo Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama.

O Carapuceiro também foi um site (um dos pioneiros) que entrou no ar, a partir do Recife, entre 1998 e 2005, criado por Xico Sá, H.D. Mabuse e Adriana Vaz.

Sobre o seu jornal, o Padre Carapuceiro dizia: “Façam de

o carapuceiro foi o segundo jornal pernambucano a exibir ilustração em sua primeira página

conta que, assim como há lojas de chapéus, o meu periódico é fábrica de carapuças. As cabeças em que elas assentarem bem, fiquem-se com elas, se quiserem; ou rejeitem-nas, e andarão com a calva às moscas.”

Sobre o site, Xico Sá dizia: “A ideia era fazer uma crítica de costumes, com um olho no satírico”.

Mesmo as duas publicações estando separadas por um século

memória ativa36

m i l p A l A V r A s

Assim nascia a Avenida GuararapesO Recife crescia na velocidade dos automóveis que começavam a ganhar as ruas da cidade no segundo quarto do século 20. A nova ordem se materializava na imponente Avenida 10 de Novembro, atual Guararapes, ligando a Praça da Independência à ponte Duarte Coelho. Para dar espaço à grandiosa obra, vários casarios e locais históricos da área sumiram do mapa. No lugar, dando forma lentamente à via projetada pelos engenheiros José Estelita e Domingos Ferreira e o arquiteto Nestor de Figueiredo, altos edifícios que passaram a abrigar escritórios sofisticados, repartições públicas, cinemas e bancos. Aquele final da década de 1930 e início da década de 1940 marcava o início da verticalização na capital pernambucana.

ALEXANDRE bERzIN/ACERvO MUSEU DA CIDADE DO RECIFE

memória ativa 39

memória ativa40