Antígona Entre Os Franceses

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Sobre a situação do texto e sua tradução O texto Antigone chez les Français, escrito por Artaud em 1944, enquanto ainda era interno do Hospital de Rodez, foi publicado primeiramente em 1977 em Nouveaux écrits de Rodez, com prefácio de seu psiquiatra Gaston Ferdière – ver adiante, nota 2 da tradução – e integra o volume IX de suas Oeuvres complètes, editadas pela Gallimard (páginas 124 a 126), e o volume intitulado Oeuvres, publicado pela mesma editora, coleção Quarto (páginas 939 a 941) – ambos nos serviram de base para a tradução. As notas das Oeuvres completes são assinaladas [O.C.]; as da coleção Quarto, [Q.]. As notas não assinaladas são nossas.Não há notícia da publicação da tradução desse texto para outras línguas, o que o torna, evidentemente, um texto muito pouco conhecido. Como a maior parte dos textos de Artaud, Antigone chez les Français carrega consigo as marcas de uma linguagem torturada: na polissemia mística dos termos escolhidos, na repetição ritual desses mesmos termos, mas, sobretudo no aspecto oral. A escrita de Artaud é exemplar nesse sentido, ela é um grito e um grunhido – mas não gritos e grunhidos quaisquer: fazem parte de uma arquitetura mágica do texto em que sua leitura se apresenta como encantação – deve-se ler Artaud não apenas em voz alta, mas em plenos pulmões, nas dinâmicas possíveis de uma respiração. Em nossa tradução pretendemos nos aproximar sempre dessa característica elíptica e vitalista do texto de Artaud. Por isso, adotamos a literalidade em detrimento de uma tradução mais poética, com cuidados especiais quanto às polissemias ao longo do texto, mantendo as repetições, as construções sintáticas nem sempre convencionais, a maneira de grafar as palavras. Contudo, há uma exceção no que diz respeito à sua pontuação, e, portanto, ao seu ritmo: o texto original tornar-se-ia incompreensível para o leitor brasileiro caso modificações nesse sentido não fossem feitas. Temos consciência de que, com isso, uma parte importante do texto se perde. Mas essa perda é intrínseca às opções que fizemos quanto ao sentido de uma tradução. Resta-nos apenas remeter o leitor à fonte primeira do trabalho que empreendemos aqui: este, apenas como uma via de acesso provisória a um pensamento que não se deixa emaranhar nas sinuosidades da linguagem, mas faz dela a matéria de uma impossível e rara luminescência.

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Antígona Entre Os Franceses

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Antgona entre os franceses

Sobre a situao do texto e sua traduo

O texto Antigone chez les Franais, escrito por Artaud em 1944, enquanto ainda era interno do Hospital de Rodez, foi publicado primeiramente em 1977 em Nouveaux crits de Rodez, com prefcio de seu psiquiatra Gaston Ferdire ver adiante, nota 2 da traduo e integra o volume IX de suas Oeuvres compltes, editadas pela Gallimard (pginas 124 a 126), e o volume intitulado Oeuvres, publicado pela mesma editora, coleo Quarto (pginas 939 a 941) ambos nos serviram de base para a traduo. As notas das Oeuvres completes so assinaladas [O.C.]; as da coleo Quarto, [Q.]. As notas no assinaladas so nossas.No h notcia da publicao da traduo desse texto para outras lnguas, o que o torna, evidentemente, um texto muito pouco conhecido.

Como a maior parte dos textos de Artaud, Antigone chez les Franais carrega consigo as marcas de uma linguagem torturada: na polissemia mstica dos termos escolhidos, na repetio ritual desses mesmos termos, mas, sobretudo no aspecto oral. A escrita de Artaud exemplar nesse sentido, ela um grito e um grunhido mas no gritos e grunhidos quaisquer: fazem parte de uma arquitetura mgica do texto em que sua leitura se apresenta como encantao deve-se ler Artaud no apenas em voz alta, mas em plenos pulmes, nas dinmicas possveis de uma respirao.

Em nossa traduo pretendemos nos aproximar sempre dessa caracterstica elptica e vitalista do texto de Artaud. Por isso, adotamos a literalidade em detrimento de uma traduo mais potica, com cuidados especiais quanto s polissemias ao longo do texto, mantendo as repeties, as construes sintticas nem sempre convencionais, a maneira de grafar as palavras. Contudo, h uma exceo no que diz respeito sua pontuao, e, portanto, ao seu ritmo: o texto original tornar-se-ia incompreensvel para o leitor brasileiro caso modificaes nesse sentido no fossem feitas. Temos conscincia de que, com isso, uma parte importante do texto se perde. Mas essa perda intrnseca s opes que fizemos quanto ao sentido de uma traduo. Resta-nos apenas remeter o leitor fonte primeira do trabalho que empreendemos aqui: este, apenas como uma via de acesso provisria a um pensamento que no se deixa emaranhar nas sinuosidades da linguagem, mas faz dela a matria de uma impossvel e rara luminescncia.

Antgona entre os franceses 1Antonin Artaud

a Gaston Ferdire 2

O nome da Antgona real, que caminhou para o suplcio na Grcia 400 anos antes de Cristo, um nome de alma 3 que no se pronuncia mais em mim seno como um remorso e como um canto. Caminhei bastante para o suplcio para ter o direito de enterrar meu irmo, o eu 4 que Deus me deu, e do qual eu nunca pude fazer o que queria porque todos os eus diferentes de mim mesmo 5, insinuados no meu prprio, como no sei quais parasitas, desde meu nascimento me impedem disso.

Que me restituir tambm minha Antgona para me ajudar nesse ltimo combate. O nome de Antgona um segredo e um mistrio, e para chegar a ter piedade de seu irmo a ponto de se arriscar morte e de caminhar para o suplcio por ele, foi preciso que Antgona trouxesse nela um combate que ningum nunca disse 6. Os nomes no vm do acaso nem do nada, e todo belo nome uma vitria que nossa alma alcanou contra ela no absoluto imediato e sensvel do tempo.

Para que esse nome indescritvel de vitria volte a mim na encarnao pessoal e formal de uma mulher e de uma irm, preciso que eu o tenha merecido como ela, e que ela o tenha merecido como eu.

No se irmo e irm sem se ter trazido esse supremo combate contra seus inimigos, de onde o eu pessoal saiu como uma prxima e familiar vitria sobre as foras de no sei que abominvel infinito.

O irmo de Antgona morreu na guerra, se debatendo contra seus inimigos, e mereceu que Antgona se aproximasse dele na hora de enterr-lo, mas ela mesma no pde merecer enterr-lo sem um combate familiar quele de seu irmo, no sobre o plano da vida real, mas sobre aquele do eterno infinito.

Ora, o infinito no nada seno esse alm que quer sempre ultrapassar nossa alma, e nos faz crer que est em outro lugar fora de nossa alma, quando o inconsciente de nossa alma que esse alm do infinito.

Antgona o nome dessa vitria terrvel que o eu herico do ser alcanou sobre as foras obtusas e fugidias de tudo o que em ns no nem ser nem eu, mas se obstina em querer se fazer tomar como o ser de nosso eu.

Ningum nunca pde ser Antgona sem ter sabido desde o incio dissociar de sua alma a fora que a compelia a existir, e ter sabido encontrar a fora contrria, de se reconhecer 7 como diferente do ser que ela vivia e que a vivia 8.

O ser que eu vivo no se apossar de mim, e eu no me apossarei desse ser para morrer e para sumir; mas para conseguir me desatar e no me obscurecer na iluso ltima, que consiste em crer que eu no sou seno o corpo onde a vida me manteve enterrado, necessria essa mo de piedade que a fora Antgona do ser soubera desatar de seu ser contra o ser onde ela se via.

Pois ningum pde chorar sobre um morto se ele no foi primeiramente chorado sobre si mesmo, e se ele no soube enterrar seu si mesmo 9 como o outro de seu eu: o morto.

Essa fora de piedade francesa. uma fora de honestidade interna que nos incita a 10 nos mantermos francos conosco, e a nunca nos mentirmos na tormenta do inconsciente e dos corpos.

Vrios corpos estrangeiros montam em ns a toda hora, querendo tomar o lugar intocado de nossa alma, e o Francs esse eu eterno que nunca abandonou sua alma, e como So Lus, considerou melhor morrer da peste que ceder aos seus inimigos 11.

E ns no temos maior inimigo no mundo que nosso corpo no momento da morte.

Ningum pde ser francs e nascer na Frana se no soube um dia se dissociar deste corpo que nos prende como um inimigo estrangeiro, e contra o qual ele ganhou sua natureza, e tudo o que est na Frana e Francs a conseqncia deste combate; mas que se lembra dele ainda hoje.

A terra da Frana foi o teatro de um estranho e misterioso combate que teve lugar em realidade e que tinha sua data na histria, mas a histria no fala dele. E por qu?

Milhares de homens morreram na Frana em grupo e por suas idias, e a histria no falou jamais disso.

Heris se fizeram queimar um dia como soldados que marcham no fogo, e eles o fizeram para perder seus corpos, e afim de reencontrar neles um outro do qual a Antgona da piedade eterna pudesse se aproximar para enterr-lo, e lhe dar algo para ressucitar.

E isso aconteceu numa poca vizinha a Joana dArc e seu suplcio, pois o suplcio de Joana dArc tudo o que a histria escrita soube guardar e relatar desta vontade de combusto corporal pela qual o eu Francs do homem se desembaraa do inimigo estrangeiro 12.

Eles morreram para superar seus corpos, esses Franceses, mas onde esto e onde esperam agora, que sua irm Antgona retorna, que lhes lembrar do fogo em um corpo, e dar uma terra a esse corpo, reconquistado atravs do fogo, para que sua alma pudesse sempre habit-lo?

Eles esto na Frana, e em corpos de Franceses vivos que eles esperaram at hoje que a Antgona do Eterno volte a ser quem lhes permitir reviver suas mortes.

Isso afim de reencontrar a vida.

A Frana no foi denominada a terra dos heris sem uma razo extraordinria, e porque ela foi a terra daqueles que mais preferiram ir ao fogo, e sob a terra, que consentir com esse corpo estrangeiro que vive sobre nossa alma como um estrangeiro. Desta terra onde eles tombaram, a Antgona da eterna luz descer para reergu-los.NOTAS

1. Esse texto, no assinado, est escrito com tinta azul escuro sobre uma folha dupla, de papel branco, de 19,9 x 30,9 cm. Alm das correes feitas com a mesma tinta, efetuadas no correr da redao, recebeu, posteriormente, correes a lpis, e, depois, com tinta preta. O sr. Chaleix, que garantiu a publicao de Nouveaux crits de Rodez, lanou a hiptese de que esse texto poderia ser datado dos dias que seguem uma carta escrita ao doutor Ferdire, prxima a 9 de maro de 1945, argumentando a partir do fato de que carta e texto so escritos com a mesma tinta e a mesma pena. De nossa parte, tnhamos notado que Antigone chez les Franais tinha sido escrita com uma tinta mais azul escuro, ainda que, para a carta, a tinta utilizada fosse claramente o azul. Por outro lado, a grafia de Antonin Artaud nesse texto est tambm completamente prxima daquela da carta escrita ao doutor Ferdire em 2 de abril de 1944, por exemplo, carta escrita tambm com tinta azul. verdade que sua escrita [criture] variou muito pouco de 1943 a 1945, e apenas no comeo de 1946, quando suas relaes com o exterior so precisadas, que a esperana de sua sada tomou corpo, que ela se transformou, e como que se liberou, verdadeiramente. A nica coisa que est certa a que esse texto posterior a 5 de fevereiro de 1944, j que, na dedicatria, o patrnimo Ferdire, que Antonin Artaud, desde sua chegada em Rodez, escrevia Ferdires, est ortografado corretamente. Ora, a ltima carta datada onde se observa a ortografia errnea a de 5 de fevereiro de 1944. Teramos, contudo, tendncia a pensar que o texto foi escrito em 1944, isso em razo mesmo do material: a folha dupla descrita acima. Com efeito, todos os textos escritos em 1943 e 1944 que pudemos ter em mos tinham como material folhas soltas, simples ou duplas, de diversos formatos, enquanto que, a partir de fevereiro de 1945, quando realmente voltou a escrever, Antonin Artaud utilizou pequenos cadernos escolares, dos quais destacava folhas quando queria passar um texto a limpo. Foi o caso, entre outros, das Mres ltable eCentre-Noeuds (Cf. Oeuvres completes, t. XIV, I, pp.28-31 e pp. 25-27). [O.C.]2. Gaston Ferdire (19071990) era diretor do hospital psiquitrico de Rodez quando aceitou em seu estabelecimento, por intermdio do poeta surrealista Robert Desnos, a internao de Antonin Artaud, que a chega no dia 11 de fevereiro de 1943. Amigo dos surrealistas, e ele mesmo com intenes poticas, o doutor Ferdire acompanhou atentamente o caso, conseguindo no apenas obter uma melhora geral de seu quadro, como tambm conquistar embora no de forma constante ou regular a prpria afeio de Artaud. A oscilao dos afetos de Artaud em relao ao diretor de Rodez comeou a se dar principalmente a partir de junho de 1943, quando o mdico inicia as sesses de eletrochoques tratamento ainda em fase experimental, inventado apenas cinco anos antes pelo psiquiatra italiano Ugo Cerletti que se estendero at a sada de Artaud do hospital, em 25 de maio de 1946. De todo modo, Gaston Ferdire incentivava irrestritamente a produo textual de Artaud, e foi responsvel, inclusive, pelo prefcio e pela organizao, em 1977, dos Nouveaux crits de Rodez.

3. Embora no seja possvel precisar quais so as referncias de Artaud nesse sentido, ou mesmo se h alguma referncia, o nome de alma [nom dme] entendido por diversas religies no ocidentais (especialmente entre as tribos indgenas ou africanas, como o caso dos Akan) como o nome que se ope ao nome dado a algum por ocasio de seu nascimento, que seria, assim, um nome provisrio, ou fictcio. O nome de alma, sendo o mais verdadeiro, se deixaria revelar, atravs de uma comunicao espiritual direta, como uma espcie de nome celeste, onde a misso ou o destino de cada um durante sua vida estaria registrada. Cf.. RADCLIFFE-BROWN, A.R. e FORDE, D. Sistemas Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 1981.

4. Ao longo do texto traduzimos ambas as palavras moi e je como eu, colocando o termo em itlico quando se trata do primeiro caso. S marcamos o vocbulo com a inicial maiscula quando o prprio Artaud assim procede.

5. No original, tout les moi autres que moi-mme.

6. Todo o incio do texto de Artaud est fundado sobre o jogo sonoro que ele ouve entre o nome de Antgona e o grego agn (luta, combate). [Q.]7. Antonin Artaud escreveu originalmente: que a compelia a existir, e se reconhecer..... Em um primeiro momento, adicionou a lpis na entrelinha superior o seguinte: e sem ter sabido encontrar a fora. Essa adio foi riscada com tinta preta e substituda pela seguinte: e ter sabido encontrar a fora contrria; da mesma forma de foi escrito em negrito com tinta preta sobre e. [O.C.]8. No original, ltre quelle vivait et qui la vivait, construo atpica de Artaud que se repetir em seguida.

9. [Originalmente], ...enterrar este si mesmo...[O.C.]

10. [Originalmente], segue riscado: saber. [O.C.]

11. Saint Louis, ou Louis IX, rei da Frana a partir de 1226, at sua morte, em 1270, durante uma epidemia de peste que dizimou o exrcito da oitava cruzada, organizada por ele. Louis IX ficou conhecido pela maneira como agregou s exigncias de seu governo a exaltao de sua f crist.12. [Originalmente], ...se desembaraa do estrangeiro.[O.C.]