Antiguidade Oriental Politica e Religiao

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REPENSANDO A HISTÓRIA tem por objetivodesenvolvera visão críticaatravés da discussão, análise e refonnulação constante dos temas históricos. Pretende, também,estimulara participação de todos no processo de elaboração do saber histórico, tanto através do tratamento desmistificadorde visões consagradas, como pela abordagem de questões que fazem parte do dla-a-dla das pessoas "comuns", sistematicamente postas à margemda história. Políticae religião.Estes dois conceitos, claramente distintos para nós do século XX,constitufam-se numasó realidadepara as civilizaçõesdo AntigoOriente.É este o fenômeno sócio-mental que Ciro AamarionS. Cardoso, professor da UniversidadeFederalFluminense,estuda nos egípcios, mesopotâmios, hititas e hebreus. ANTIGUIDADE ORIENTAL: POLíTICA E RELIGIÃO é obra fundamentalpara estudantes e professores de história do 22grau e da universidadepor possibilitarcomparações ricas e importantes com a nossa própria sociedade, tão diferente e ao mesmo tempo tão próximadaquelas.

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REPENSANDO A HISTÓRIAtem por objetivodesenvolvera visão

críticaatravés da discussão, análise e refonnulaçãoconstante dos temas históricos.

Pretende, também,estimulara participaçãode todosno processo de elaboração do saber histórico,

tanto através do tratamento desmistificadorde visõesconsagradas, como pela abordagem de questões

que fazemparte do dla-a-dla das pessoas "comuns",sistematicamente postas à margemda história.

Políticae religião.Estes dois conceitos, claramentedistintos para nós do século XX,constitufam-se numa sórealidadepara as civilizaçõesdo AntigoOriente.É este o

fenômenosócio-mental que CiroAamarionS. Cardoso, professorda UniversidadeFederalFluminense,estuda nos egípcios,

mesopotâmios, hititas e hebreus.ANTIGUIDADE ORIENTAL: POLíTICA E RELIGIÃO é obrafundamentalpara estudantes e professores de históriado

22grau e da universidadepor possibilitarcomparações ricas eimportantescom a nossa própriasociedade, tão diferente e ao

mesmo tempo tão próximadaquelas.

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o AUTOR NO CONTEXTO

Ciro Flamarion Santana Cardoso nasceu em Goiânia, em 1942. Viveu

grande parte de sua vida no que é hoje o Estado do Rio de Janeiro, e tambémno exterior - França, Costa Rica e México.:... entre 1967 e 1978. Professor deHistória Antiga na Universidade Federal Fluminense, é autor de numerosos li-vros e artigos publicados no Brasil e no exterior, nas áreas de metodologia dahistória, história da américa e história antiga.

Cpnsidera-se muito mais um professor do que um pesquisador.

Eis suas respostas a um conjunto de perguntas que lhe fizemos:

1. Como começou o seu interesse pela História Antiga?R. Começou quando, na adolescência, ganhei de meus pais três livros: HistóriaAntiga do Oriente Próximo. <:teH. R. .Hall, numa tríidução brasileira publicadapela Casa do Estudante do Brasil; Deuses. Túmulos e Sábios. de C. W. Ceram;e o romance O Egípcio. de Mika Waltari. Desde então, nunca mais deixei deampliar a minha biblioteca de história antiga. Ao ingressar na Faculdade de Filo-sofia da Universidade do Brasil; onde estudei história entre 1962 e 1965, meufirme propósito era dedicar-me à egiptologia, mas as circunstâncias não o permi-tiram naquela ocasião. Ao preparar, em Paris, um doutorado na área de históriada América, a partir de 1967, aproveitei para, ao mesmo tempo, estudar língua earqueologia egípcias na École ou Louvre, com os professores Barguet e Desro-ches-Noblecourt. Mas só em 1982 publiquei o meu primeiro livro de história an-tiga, sobre o Egito. Desde então, venho dedicando boa parte de meu tel'!1Poe demeus esforços a este setor dos estudos históricos, inclusive como professor depós-graduação, já que o mestrado da UFF conta, desde 1988, com um setor de

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história antiga e medieval. Em 1989 pude ensinar língua egípcia a uma primeiraturma de oito alunos.

2. Não serão excessivamente distantes da atualidade e da realidade brasileirasos temas tratados no seu livro?

R. Eu sei que vocês não pensam realmente isto, ou não me teriam encarrega-do de escrevê-Ia! O tema do poder é atualíssimo em nosso país. Quanto a mim,nunca aceitei a posição imediatista de que o historiador, para ter alguma utilida-de ou relevância social, devesse se dedicar de preferência a temas próximosde nós no tempo, embora saiba que esta é uma tendência que se pode ler naconcentração crescente das teses e dissertações dos cursos de pós-gradua-ção em história do Brasil nos temas do século XX (depois de Cristo, claro...).Acho que a finalidade última das ciências sociais é descobrir como funcionam emudam as sociedades humanas: por que, então, deixar de aproveitar o vastís-simo laboratório de milênios de história, ou mesmo o de milhões de anos de pré-história?! Acontece, também, que ao escrever história, nós o fazemos - e não éuma escolha, simplesmente não pode ser de outro jeito - como pessoas denossa época, cujos problemas, preocupações e prioridades aparecem na formaem que interrogamos o passado recente ou distante.

3. Por que, em seu livro, você escolheu referir-se somente a algumas dasmuitas sociedades do antigo Oriente Próximo para a análise da relação reli-gião/política?R. Porque o tema era incrivelmente vasto, e as sociedades, variadíssimas. Operigo de um pequeno manual ou livro didático é, não sabendo ou ousando es-colher, cair na excessiva superficialidade, em lugar de tentar esclarece~ o temaa partir de certo número de casos, depois das necessárias considerações ge-rais. Neste livro, optei por concentrar-me nas monarquias (pois também houvedesde a falta de Estado até formas não-monárquicas de governo na história doantigo Oriente: mas a monarquia foi, de longe, a forma predominante nas re-giões que contavam com agricultura estável, cidades e escrita). Egito e Meso-potâmia não poderiam faltar: são os carros-chefes! Quanto à escolha de anali-sá-Ios no início de sua trajetória estatal, parece-me adequada, já que foram asprimeiras regiões do mundo a contar com cidades e Estados organizados, e portal razão influíram muito sobre outras regiões (orientais ou não) - além de quesão os casos mais bem estudados e que contam com mais documentação dis-ponível. O império hitita foi tratado porque, entre os Estados federais, além derelativamente bem documentado, tinha governantes que manifestaram umapreocupação obsessiva com os deuses, a religião - tão obsessiva que chega,às vezes, a parecer neurótica! Por fim, Israel não só é um caso à parte quantotem óbvias repercussões no mundo moderno (penso nas tradições judaica ecristã). Teria sido ótimo incluir também um dos grandes impérios - o assírio ouo persa, talvez - isto é, um dos impérios "universais" do 112milênio a.C., mas fi-ca para outra vez! Em todos os casos escolhidos, usei ao máximo os textos de

época, que permitem o único "mergulho" que nos é possível naquelas socieda-des tão diferentes das de hoje em dia, mas que conhecemos cada vez melhor.

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os DADOS1

DA QUESTÃO

ANTIGÜiDADE ORIENTAL:UMA DELIMITAÇÃO NO TEMPO E NO ESPAÇO

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o título deste livro inclui a expressão "Antigüidade Oriental". Se,do ponto de vista cronológico, a entendermos como a fase que se ini-cia com o surgimento dos primeiros documentos escritos inteligíveis ese estende até as campanhas militares de Alexandre,o Grande, rei daMacedônia e da Grécia e conquistadordo Oriente, teremos um períodoenorme a considerar: desde aproximadamente 3000 antes de Cristo(a.C.)até 334 a.C., ou seja, uns 2700 anos.

Do ponto de vista geográfico, limitar-nos-emos ao chamadoOriente Próximo. Trata-se de região muito vasta, a qual, no períodoconsiderado,estendia-se do litoral meridional do mar Negro, das mon-tanhas do Cáucaso, da costa meridional do mar Cáspio e das monta-nhas a leste deste (montes do Gulistã, Paropamisadese Hindu-Kush),indo em direção ao sul, até a primeira catarata do rio Nilo, o mar Ver-melho, os desertos da Arábia, o golfo Pérsico e o mar de Omã; e, deoeste para leste, do Mediterrâneo Oriental e do Egito até o rio In.OO,.Assim compreendida, tal região inclui no essencial nove países atdaisda África - o Egito - e sobretudo da Ásia: Turquia, Síria, Líbano, Israel, .Jordânia, Iraque,Irã e Afeganistão.. .

A vastidão geográfica e a longa duração do tempo implicam, deper si, consideráveis obstáculos a uma 'abordagem resumida como aque queremos empreender.É possível, porém, que a dificuldade maior

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fique por conta das diferenças profundas que separam do nosso omundo próximo-oriental antigo no tocante às concepções.

É LíCITA A SEPARAÇÃO ENTREPOUTICA E REUGIÃO?

Estamos acostumados a considerar certas dimensões ou setoresdas sociedades de hoje - por exemplo, o Estado e a atividade políticaa ele vinculada, a economia e a religião - como coisas sem dúvida li-gadas entre si de muitos modos, mas nem por isto passíveisde confu-são ou indiferenciadas. Por tal motivo, temos disciplinas que se ocu-pam em separado dessas diferentes esferas, quais sejam a ciênciapolítica, a economià e a teologia - ou, num nível diferente, a disciplinachamada "Religiões Comparadas", existente em muitas universidadeseuropéias e norte-americanas.

Ao recuarmos no tempo até a Baixa Idade Média européia (sé-culos XI a XV depois de Cristo), de um lado continuaria impossíveldescobrir entre os homens uma noção da existência de fenômenos es-pecificamente econômicos, e de outro veríamos a presença de confli-tos que opunham o imperador do Sacro Império Romano-Germânicoeeventualmente os reis ao papa. Isto supõe, já então, a noção de umaseparação percebidaentre a idéia de "Estado" e a de "Igreja".Mais per-to de nós, no século passado, ao se tratar do período imperial brasilei-ro, 'apesar da união então existente institucionalmente entre o Estadoe a Igreja Católica, é válido buscar a prova de que ambas as entidadespodiam ser percebidas como coisas distintas, por exemplo na chama-da "questao religiosa" (1872-1875).

Ora, no antigo Oriente Próximo só artificialmente podemos sepa-rar "política", "economia" e "religião". Os templos eram parte integrantedo aparelho de Estado, tanto quanto o palácio real; templos e palácioseram elementos centrais na organização das atividades que hoje con-sideramos "econômicas" (as de produção,distribuição e circulação debens e serviços).Eis aqui como um especialista se refere a este fato:

...no antigo Oriente existiram, certamente, um ordenamento e uma ativi-dade políticos. Sem eles não teria sido possível o desenvolvimento da

cultura, já que esta deve ter como sujeito histórico uma sociedade politi-

camente organizada. Mas não é menos certo que a política não formavauma realidade clara e distinta, isto é, não estava rigorosamente delimitada

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diante de outras realidades nem era concebida como se estivesse. Só

com os gregos começou-se a percebê-Ia como realidade autônoma, e sóno mundo moderno e por obra da cultura ocidental se levará a cabo suaradical secularização: em todas as culturas restantes a política, a religiãoe, em geral, os empreendimentos econômicos aparecem como três di-mensões de uma mesma realidade. (García Pelayo)

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Note-se que esta verdade não impede que nós, pessoasde hoje,possamos perceber no antigo Oriente realidades especificamente polí-ticas, econômicas e religiosas onde os homens daquela época não aspercebiam, para finalidades analíticas ou de simplificação didática.Mas devemos levar em conta, o-!empo todo, que se trata de um modode ver nosso, que não é lícito atribuir aos homens antigos. A falta detal precauçãopode implicar erros tremendos de interpretação.

Assim, por exemplo, a historiografia de há algumas décadas cos-tumava explicar a reforma religiosa empreendida pelo soberano egíp-cio Akhenaten (1353-1335a.C.) como algo análogo à luta entre impe-radores e papas na Idade Média, com motivações mais políticas eeconômicas do que religiosas. O culto de um novo deus solar - Aten-,surgido na corte já antes de Akhenaten, e posteriormente sua imposi-ção como deus único do Egito, seriam formas de reação dos faraós(faraó é título atribuído ao rei do antigo Egito) contra o incrementoexagerado do poder político e da riqueza do clero das divindades tradi-cionais, em especial o do deus Amon-Ra - incremento que teria ocor-rido em detrimento do poder e da riqueza do próprio rei.

Uma tal visão se esquece de que os templos eram parte inte-grante e inseparável do aparelho de Estado. Ao entregar terras, reba-nhos, barcos, homens e outros elementos produtivos à gestão dostemplos e suas burocracias, o rei tomava uma.medida administrativa,uma decisão ou escolha acerca do que lhe parecia ser a melhor ma-neira, na ocasião, de gerir tais riquezas: não renunciava nem um pou-co, porém, a usufruir desses bens.

É verdade que deles sairiam oferendas aos deuses e pagamen-tos aos sacerdotes e aos trabalhadores ligados aos santuários. No en-tanto, num regime em que os templos integravam o Estado, a alterna-tiva seria que tais desembolsos - com toda a atividade contábil qlJeenvolviam - fossem feitos em forma direta pelo palácio real. Outros-sim, os templos estavam obrigados a contribuir muito substancialmen-te para a manutenção da família real e da corte, e o produto de suasterras era usado pelo governo também para cobrir despesas estataisque nada tinham de religiosas. A administração dos bens dos temploscom freqüência era confiada pelo rei a funcionários que não eram

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sacerdotes; aliás, no Estado egípcio inexistiam barreiras entre empre-gos de diversos tipos: o general de hoje podia ser amanhã burocrata,ou sacerdote.

O faraó Akhenaten, como senhor supremo dos bens do Estado,fechou os templos e confiscou os seus bens, em seu próprio proveito eno dos santuários do seu deus Aten, sem encontrar qualquer resistên-cia, já que a concepção e a tradição da monarquia egípcia lhe davampleno direito de o fazer. Mais tarde, morto Akhenaten, outro rei rever-

. .teu tais medidas e restaurou os deuses e suas propriedades:mas nãocomo efeito de uma luta ou resistência do "clero de Amon", ou dequalquer outro corpo sacerdotal. A impopularidade da reforma tentadadeve ter influído na decisão'de encerrar a experiência; mas foi só de-pois de encerrada que se geraram, por determinação monárquica, tex-tos e outras reações desfavoráveis à mesma e ao rei já falecido que aa empreendera.

MONARQUIA ORIENTAL E RELIGIÃO:A TEORIA DE HENRI FRANKFORT

Já se pretendeu demonstrar que a história política do OrientePróximo antigo esteve caracterizada, em suas linhas mais gerais, pelosurgimento, primeiro, e depois pela consolidação do conceito de "impé-rio universal". O domínio de um único monarca estendido à totalidadedaquela região do mundo seria, então, um objetivo sempre perseguido,embora só atingido, já no primeiro milênio a.C., pelo Império Assírio esobretudo pelo Império Persa. Este último teria realizado a ambiçãoexpressa,já no terceiro milênio a.C., pelo rei mesopotâmio Naram-Sinde Akkad (2254-2218a.C.) ao denominar-se"rei das quatro regiõesdouniverso".

Temos aí, na verdade, uma visão em que o resultado final - oenorme Império Persa - é arbitrariamente projetado sobre o 'passado,colorindo a' interpretação de realidades muito diferentes. Assim, porexemplo, não há dúvida de que, para Naram-Sin,as "quatro regiões douniverso" se limitavam ao sul da Mesopotâmia (os países de Sumer eAkkad), bem como ao norte da mesma região e à S,iriasetentrional(paí~es de Subarru - a futura Assíria - e Amurru) - zonas sobre asquais ele exerceu um efetivo domínio.

Se o "império universal" não é conceito realmente útil para todosos períodos,não há dúvida, no entanto, de que a monarquia - o gover-

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no chefiado por um rei em cuja pessoa se encamae sintetiza o Estado- foi encarada, durante toda a longa fase cronológica que considera-mos, como o regime político normal dos povos civilizados, isto é, dota-dos de escrita, cidades e templos. É igualmente indubitável que, dadaa presença central da religião no pensamento oriental antigo, todas asmonarquias do Oriente Próximo nela tiveram seu fundamento e justifi-cação ideológica, embora em escala variável e segundo modalidadestambém diferentes.

No tocante à relação entre monarquia e religião, uma teoria for-mou-se há meio século, propondo interpretação de grande influência.Retomando certas idéias já presentes desde fins do século passadoe inícios deste, em obras de autores como James G. Frazer e E. A.Wallis Budge, que se basearam na comparação das sociedades próxi-.mo-orientais com outras, incluindo, proeminentemente, povos tribaisafricanos e de outras partes do mundo, Henri Frankfort e sua escolaquiseram ver nas principais monarquias orientais um elemento media-dor entre a esfera humana e a divina, entre a sociedade, a natureza eo sobrenatural. Propuseram, ainda, que se distinguissem, no antigoOriente, duas grandes modalidades de soberanos.A primeira seria ca-racterizada, precisamente, pelo papel mediador dos reis, e se localiza-ria nas duas regiões nuclearesda civilização próximo-oriental:Mesopo-tâmia e Egito. Entre as monarquias destas duas regiões haveria, noentanto, uma diferença essencial quanto às concepções: Os reis doEgito, ou faraós, eram considerados como deuses encarnados, en-quanto os monarcasmesopotâmicos não passavam de servosou repre-sentantes dos deuses, por estes escolhidos. A segunda modalidademonárquica, típica das partes periféricas do Oriente Próximo - ÁsiaMénor, Síria-Palestina, Irã -, seria a do rei que é somente um líder he-reditário, de origem tribal, forma política que Frankfort consideracomobastante primitiva: uma monarquia fundamentada na consangüinidademais do que em determinada concepção do lugar ocupado pelo ho-mem no cosmo.

Uma tal dicotomia não se sustenta bem nos termos em que foiproposta, já que também na Ásia Menor, na Síria-Palestina e no Irã ovínculo entre monarquia e religião era .patente, assim como a funçãode mediador entre o humano e o divino também ali se atribuía aosreis. Entre os hititas da Ásia Menor, por exemplo, tal como na Mesopo-tâmia de mais de um milênio antes, o rei era sumo sacerdote consa-grado ao culto dos deuses masculinos, e sua esposa, a sacerdotisaprincipal das deusas. Num hino da rainha Puduhepa,esposa de Hattu-shilish 11I(1289-1265a.C.),dirigidoà deusasolardeArinna,estaúltimaé chamada de "soberana do país dos hititas, rainha dos céus e da

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terra, rainha de todos os países", ao passo que a soberana qualifica asi mesma de "novilha do estábulo" da deusa. Uma doença que afligiao rei e as dificuldades do reino hitita são atribuídas à negligenciadosmonarcasprecedentesno serviço aos deuses:

QIVERSIDADE NO ESPAÇO

Como os reis de outrora o desatenderam, é coisa que tu conheces, ódeusa solar de Arinna, minha senhora. Os reis de outrora deixaram,

mesmo, que se arruinassem as regiõe~ que tu, Ó deusa solar de Arinna,minha senhora, Ihes deste.

Para que o rei e o país prosperem, eis o que promete a rainha,em seu nome e no do marido:

V0SS0S festivais, ó deuses, que deixaram de celebrar-se, os anuais e osmensais, celebrar-se-ão em honra vossa, ó deuses. Vossos festivais, Ódeuses, meus senhores, nunca voltarão a deixar de celebrar-se. Em to-dos os dias de nossa vida nós, teu servo e tua serva, vos honraremos.

(Alberto Bernabé, org.)

Apesar do que afirmamos há pouco, parece-nos possível e útilopor, quanto ao nosso tema, de um lado, Egito e Mesopotâmia,do ou-tro, Irã, Síria-Palestina, Ásia Menor. Mas, para o fazer, é preciso com-plicar um pouco o quadro, saindo do terreno restrito das concepçõespolítico-religiosas para aquele, mais amplo, das realidades. Pareceób-vio que as concepç~s são parte integrante de tais realidades; longeestão, porém, de esgotá-Ias. O contraste mencionado só pode ser efe-tuado em forma adequada se introduzirmos dois aspectos que aindanão foram tratados: as diferenças econômico-sociais,que tinham tam-bém bases ecológicas, entre as diversas regiões do Oriente Próximoantigo; e a realização diferencial daquilo que se pode expressarcom oconceito de etnia.

Figura 1 (ao lado): Este mapa do antigo Oriente Próximo permite verificar certas característicasbásicas da região; as maiores elevações se encontram ao norte e a leste, enquanto a metademeridional contém a maior parte das te"as baixas (vales fluviais, desertos).

FONTE: McNeill, William H. e Sedlar, Jean W., compiladores. The ancient Near East. Nova10rquelLondres, Oxtord University Press, 1968. pp. X-Xl.

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o Egito antigo, em sua parte habitada densamente,correspondiaà planície aluvional formada pelo rio Nilo em se,ubaixo curso, ao longode quase mil quilômetros. Nela podemos distinguir ao sul o Vale, es-treita faixa de terra fértil apertada entre desertos, e ao norte o Delta,mais vasto, abrindo-se em leque para o Mediterrâneo.A Baixa Meso-potâmia, imediatamente ao norte do golfo Pérsico, é também uma ex-tensa planície aluvional, formada por dois rios: o Eufrates a oeste, oTigre a leste. Em ambos os casos,ocorre anualmente uma fertiiizaçâonatural dos terrenos ribeirinhos. A partir de um longo investimento co-letivo de trabalho, adaptando e modificando os dado~ naturais atravésda construção de diques, barragens,canais, reservatórios,formaralTl-senos vales fluviais em questão, sociedades complexas e urbanizadas,baseadasna irrigação.A agricultura irrigadaé muito produtiva,e por is-to o Egito e a Mesopotâmia tinham populações muito mais densasdoque as de regiões como a Ásia Menor, a Síria-Palestinae o Irã,onde airrigação, pelas condições naturais, só podia ter um papel muito limita-do, e onde a agricultura - quase sempre dependente da água de chu-va, às vezes retida em cisternas - era no conjunto menos produtiva.Este contraste ajuda a entender certas diferenças importantes na or-ganização política e econômica.

O sistema predominante utilizado no ar:]tigoOriente Próximo paragarantir a sobrevivência das cidades - muitos habitantes não planta-vam nem colhiam - e, nelas, dos grupos dominantes e seus depen-dentes (família real, burocratas, chefes militares e depois um exércitoprofissional, sacerdotes, artesãos altamente qualificados) foi baseadona imposição de tributos em trabalho (a "corvéiareal") e em produtosàs aldeias, onde viviam camponeses que constituíam a maioria absolu-ta da população. No Egito e na Mesopotâmia, a grande densidadedemográfica e a fantástica produtividade agrícola permitiram que, atra-vés de um tal sistema,' se formassem enormes e estáveis complexos

político-econômicos em torno, por um lado, do palácio real, e, por ou-tro, dos templos. O palácio e os templos devem ser entendidos comovastas organizações que cobriam o conjunto do território, cada umadelas controlando terras, rebanhos,barcos, oficinas artesanais,depósi-tos de bens diversos, trabalhadores dependentes (escravos,campone-ses cuja situação era 'variada, grupos temporariamente chamados aprestar a "corvéia real"). Nas duas grandes planícies aluvionais, taisorganizações se mantiveram por milênios, mesmo conhecendo perío-dos de relativo declínio e mudanças no peso relativo do palácio e dostemplos - todos dependentes do rei e compreendidos no Estado -quanto ao éontrole econpmico.

o Sistema

O sistema, em si, não era, no essencial, diferente nas outrasáreas urbanizadasdo Oriente Próximo. Mas havia algumas diferençasbásicas. A menor densidade demográfica e agrícolanão permitiu, ali, osurgimento de complexos templários. Havia templos: diversamente doque ocorria no Egito e no sul da Mesopotâmia, no entanto, raramentechegaram a controlar vastas riquezas em homens, terras e rebanhos.Atributação funcionava sobretudo em proveito do palácio real, compará-vel em sua natureza e organização aos complexos palaciais presentesnos vales do Nilo e do Tigre e Eufrates, se bem que muito menor. Opalácio devia, entre muitas outras atribuições suas, garantir em formadireta a sobrevivência dos cultos e dos sacerdotes. Isto levava a for-mular em termos diferentes a relaçãoentre poder político e religião,-aocomparar a Ásia Menor oua Síria-Palestina,por exemplo, ao Egito e àMesopotâmia. Outrossim, nas áreas próximo-orientais periféricas, me-nos povoadas e produtivas, o complexo palacial e os gastos que impli-cava - para garantir a burocracia,o luxo da corte, o culto, as guerras,oartesanato de alta qualidade reservado aos grupos dominantes -,mesmo funéionando em escala menor do que a egípcia ou mesopotâ-mica, pesavam proporcionalmentemuito mais, exaurindo por vezes osrecursos sociais disponíveis. Por isto mesmo, os complexos palaciaisforam, nas regiões não-nucleares do Oriente Próximo, mais instáveis,menos duráveis do que nos vales fluviais irrigados: a sua duração seconta, em cada caso, em algumas centenas de anos, não em milênios.

Note-se que, numa análise geral como a nossa, estamos apon-tando somente os fatores maiores, em forma simplificada. Na rea-lidade, outros dados podiam vir a modificar a questão: por exem-plo os relativos a migrações, invasões, rebeliões, guerras. No en-tanto, o pano de fundo apresentado ajuda a entender porque dadoscomo os mencionados, ao incidirem em certas regiões, destruíam ossistemas palacianos locais - embora eventualmente surgissem outros,diferentes, depois -, enquanto no Egito e na Mesopotâmia eles resisti-ram, reconhecivelmente os mesmos, à sua incidência, permanecendopor milhares de anos e transformando-se sobretudo por sua própriadinâmica interna.

O outro fator que queremos abordar, no tocante à diferenciaçãoespacial das questões que nos interessam, é o das etnias. No iníciodeste século, muitos especialistas achavam que podiam correlacionarem forma simples a "raça" - conjunto estável de traços físicos transmi-tidos geneticamente - e a cultura. A cada raça corresponderiam,por-

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tanto, características específica~ '-Ie tipo IIngUlstlco, religioso, inte-lectual e mesmo quanto aos estilos artísticos. Afastada a noção de ra-ça, termo impossível de definir séria e cientificamente, e ao qual nãocorresponde qualquer realidade. palpável, prefere-se trabalhar agoracom a noção de "etnia". Uma etnia se identifica como um grupo depessoasque apresenta as seguintes características:

1. estar estabelecido em caráter durável num território deter-minado;

2. ter 'im comum especificidades relativamente estáveis de lín-gua e cultura;

3. reconhecera diferença com relação a outras etnias ou grupos,bem como sua própria unidade (autoconsciência);

4. expressar tal unidade reconhecida por meio de uma autode-signaçãoou "etnônimo".

Aplicando esta noção ao antigo Oriente Próximo, achamos que,apesar de estar dividido em diversas cidades-Estadose de apresentar,de início, duas línguas diferentes (o sumério e o acádio),os habitantessedentários da Baixa Mesopotâmia, região urbanizada desde fins doquarto milênio a.C., perceberam-se no conjunto, desde muito cedo,como uma única coletividade étnica delimitada, por contraste, com ospovos nômades pastores dos desertos e montanhas circunvizinhos.Sublinhavam para si mesmos o fato de terem escrita, templos, reis ecidades, que os vizinhos imediatos não tinham. Analogamente,o Egitotambém muito cedo se percebeu como coletividade à parte:em formaainda mais excludente que os mesopotâmicos (cujos reis se viam co-m.o"irmãos" ou iguais dos reis de outras regiões civilizadas), os egíp-cios se consideravam como a única humanidade cabal, e os outros p0-vos subumanos, naturalmente inferiores e destinados à subjugaçãopelo faraó divino.

diferente, teorizada em bases religiosas e amplamente difundida, àsmonarquias locais, independentemente do território variável que con-seguissem controlar. Em contraste, as regiões periféricas próximo-orientais só conheceram Estados meramente territoriais - baseadosem federações frouxas e relativamente efêmeras de cidades, conse-guidas pela guerra, por tratados e juramentos - ao longo do terceiro edo segundo milênios a.C. O surgimento de Estados nos quais se mani-festasse uma autoconsciência étnica foi, nessas áreas periféricas, umfato tardio, que se manifestou somente na Idade do Ferro, iniciada naÁsia Ocidental por volta de 1200 a.C. Daí uma fragilidade maior dasmonarquias em tais áreas nos dois milênios iniciais da história antigado Oriente Próximo, apesar de que também seus reis buscassema.le-gitimação religiosa.

DIVERSIDADE NO TEMPO

A Formação das Etnias

Em meados do terceiro milênio a.C., quando começamos a con-tar com fontes mais numerosasdo que as procedentesdos séculos an-teriores, tanto no Egito quanto na Mesopotâmia já aparecem com cla-reza o complexo palacial e os complexos templários como base de umsistema econômico-social,político'e religioso.

Localizados no interior do Estado, palácio e templos repartem en-tre si as atividades básicas. Veremos no capítulo seguinte que tal sis-tema foi alcançado por caminhos diferentes e mesmo inversos e teve,por muito tempo, evoluções divergentes nas duas regiões nucleares.Seja como for, o sistema em questão dominou todo o conjunto próxi-mo-oriental durante um longo período, até pelo menos 1200 a.C.aproximadamente, adotado que foi - pelo menos no seu aspecto pa-lacial - em outras regiões daquela parte do mundo. Em ambas aszonas nucleares, segundo já foi mencionado, e em outras mais tar-de, ele fundamentava o regime que pode ser chamado genericamentede "monarquia teocrática" (isto é, de base divina ou religiosa), sebem que suas modalidades fossem bastante distintas no caso egípcioe no mesopotâmico. Na parte final do terceiro milênio a.C. também naMesopotâmia assistimos à divinização dos governantes supremos. In-dependentemente das diferenças, porém, naquelas zonas e em todasas outras o monarca era sempre responsável pela construçãoe manu-tenção dos santuários, e pelo bom andamento dos cultos divinos emseu território.

Em contraste, verdadeiras etnias demoraram muito mais a for-mar-se na Síria-Palestina, na Ásia Menor, no Irã, onde as condiçõesecológicas, a baixa densidade demográfica, as comunicações difíceis,impuseram sérios limites a uma centralização efetiva e durável do po-der - presente, pelo contrário, no Egito desde o início da vida civilizadae tentada com sucesso variável desde cedo na Mesopotâmia. Emboraos impérios mesopotâmicos tenham sido efêmeros por muito tempo,mantinha-se a noção de uma unidade étnica, dando uma natureza

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Se o embasamento religioso do poder foi uma tendência univer-sal desde o início no Oriente Próximo, também o foi o aspecto mi-litar do poder monárquico. Na prática, nem todos os reis foram guerrei-ros, mas sempre se manteve a noção do monarca ideal como chefemilitar vitorioso, não somente com a finalidade de defender o seu rei-no, mas também de ampliar-lhe as riquezas por meio das armas atra-vés do saque, do tributo imposto aos vencidos, dos prisioneiros deguerra escravizados.

Por fim, a imagem real formada no primeiro milênio da longa his-tória próximo-oriental, e mantida depois nos seus traços básicos,incluía ainda, entre as atribuições centrais do rei, a administraçãoe a justiça em seu nível mais alto. Como administradore juiz, era fun-ção do monarca fazer reinar no mundo dos homens uma ordem (queantes de ser humana, era divina e natural - já que os deuses coman-davam o cosmo), que se opunha às forças sempre ameaçadoras dadesordem,do caos.

No terceiro milênio a.C., além do Egito e da Mesopotâmia, so-mente duas outras áreas aparecem iluminadas pelas fontes escritasem suas estruturas sociais e políticas: o reino constituído em torno dacidade de Ebla (cujos arquivos começaram a ser descobertos e deci-frados em 1975), na Síria setentrional, e o Elam, região de transiçãoentre o sul da Mesopotâmia e o planalto iraniano.

No milênio seguinte, porém, os documentos disponíveis nos per-mitem conhecer um panorama bem mais amplo e diversificado.A AsiaMenor e a Síria-Palestina passam então a integrar o quadro, de iníciodivididas numa multidão de cidades-Estados independentes.Da uniãodinástica (isto é, sob uma mesma família reinante) ou da unificaçãopela força das armas de diversas cidades-Estados, nasceu uma novaestruturação política: a dos Estados monárquicos federais. Tambémeles tinham à frente um soberano que, de algum modo, buscava legi-timação divina para o seu poder. No entanto, tratava-sede um "rei dosreis", já que sob sua suserania reinavam numerosos reis ou príncipesmenos importantes, os quais, por sua vez, subordinavam cidades me-nores. Tais Estados federais apresentavam um aspecto muito movedi-ço, ao sabor das guerras e dos jogos dinásticos. Outrossim, eram Es-tados exclusivamente territoriais e não entidades de fundo étnico claro.

O apogeu do sistema palaciaJtradicional (e por vezes também dotemplário), nas mais antigas regiões urbanizadascomo ainda no casodos dois mais importantes Estados federais - o reino hitita, centradona Ásia Menor, e o reino do Mitanni, na Síria setentrional e no norte daMesopotâmia - foi alcançado a partir de meados do segundo milênioa.C., quando se difundiu no Oriente Próximo uma nova forma de guer-

rear, baseada em carros leves puxados por cavalos. Não somente sur-giram grandes exércitos profissionais,como também se constituiu umaburocraciaestatal bem mais numerosa e complexa do que no passado.Em função das guerras e alianças, o Oriente Próximo viu-se divididoem grandes blocos político::;- sendo-os mais importantes os impériosegípcio e hitita -, comandados por monarcas que, sem prejuízo de re-soiverem os seus conflitos no campo de batalha em certas ocasiões,trocavam habitualmente entre si embaixadas,cartas e presentes.Cadaum destes reis controlava em grau maior ou menor diversos pequenosreinos ou principados dependentes. Tanto ideologicamente quanto defato, as atividades privadas, mesmo quando muito importantes - comona Mesopotâmia -, viam-sesubordinadasao Estado,ou seja,aossis-temas palaciais (em certos casos também aos complexos templários).

Por volta de 1200 a.C. - quando, na Ásia Ocidental mas não ain-da no Egito, teve início a Idade do Ferro.-, abriu-se um período detransformações essenciais. Esse período foi marcado por muitos mo-vimentos de povos, mudanças na tecnologia dos transportes (expan-são do uso do dromedário,permitindo atravessarhabitualmente os de-sertos em lugar de contomá-Ios, e especialização de povos nômadesno comércio de caravanas; além da ampliação da navegaçãode longocurso e de alto mar, em contraste com a tímida cabotagem anterior),generalização das ferramentas de metal, novas técnicas de combate,mudanças na distribuição dos assentamentos humanos e às vezes emsua forma. Na nova fase, muitos dos complexos palaciais desaparece-ram; mas, mesmo nos casos em que se mantiveram, já não podiammonopolizar, como no passado, uma parcela tão importante das ativi-dades sociais. O comércio privado se tomou mais presente e variado,além de mais autônomo; suas rotas e seu raio de operações se fize-ram mais extensos por terra e por mar. As relações entre palácio etemplos foram em certos casos (o Império Neobabilônico,por exemplo)radicalmente redefinidas.

Num primeiro momento, o vazio de poder deixado pela retração(é o caso do Egito) ou o desaparecimento (é o caso do reino hitita) deEstados que mantinham antes grandes impérios conduziuà multiplica-ção e a um breve florescim~nto de Estados independentesde pequenoou médio porte. Exemplo disso foram as cidades-Estadofenicias e fi-listéias, Israel, os reinos aramaicos da Siria (em especial o de Damas-co), que já não eram meras expressões territoriais, e sim algo etnica-mente consistente. Passados alguns séculos, no entanto, a crescenteintegração próximo-oriental foi sancionada pela formação de impériosbem mais extensos mas, ao mesmo tempo, bem mais sofisticados,sistemáticos e coerentes em sua organização do que os que haviam

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.marcado a Idade do Bronze - mesmo se sua forma conti.nuavare-cordando a dos velhos Estados federais, com um Grande Rei su-bordinando soberanos e potentados menores. A legitimação do p0-der monárquico continuava a passar, como antes, pela religião,mas em alguns casos - como no reino de Israel e nos dois Estadosmenores em que. depois veio a dividir-se- segundo formas inéditas.O surgimento de imensos impérios levou, ainda, à necessidade de de-finira atitude dos Grandes Reis em relação aos deuses e cultos dasdiversas partes de seus territórios. Por estas é outras razões, o pri-meiro milênio a.C. apresenta forte originalidadequando o comparamosàs épocas precedentes.

2BAIXA MESOPOTÂMIANO MilÊNIO INICIAL DA VIDA

E EGITOCIViliZADA

o NOSSO TEMA

Não é nosso objetivo descrever a história política do anti-go Oriente Próximo, e ainda menos a sua história religiosa. Este livrose destina a esclarecer as relações entre política e religião, no âmbitoda teoria, das concepções, mas também naquele, mais concreto, decomo lidavam os reis com os santuários e seus sacerdotes. É óbvio,entretanto, que não o poderemos fazer sem fornecer algum esboçodas estruturas político-institucionais e religiosas vistas em seu contex-to histórico.

- Acabamos de focalizar a grande diversidade que marca a nossatemática no espaço e no tempo. Ela nos força, sob pena de excessiva

superficialidade, a algum tipo de escolha, não sendo possível queabordemos todos os casos de todos os períodos.Sendo assim, os pró-ximos capítulos se ocuparão- no tocante às relações entre o poder po-lítico e a religião - do Egito e da Baixa Mesopotâmia no terceiro milê-nio a.C., tomando portanto as regiões nuclearesdo antigo Oriente emsua primeira fase urbana e estatal; do reino hitita, que servirá deexemplo dos Estados federais do segundo milênio a.C., de Israel,casomuito especial no que se refere ao nosso tema, exemplificando aindaos pequenos e médios Estados independentesda fase inicial da Idadedo Ferro (passagem do segundo para o primeiro milênio a.C.).

Posto que todas as datas de que falaremos são anteriores à eracristã, eliminaremos doravante a expressão "antes de Cristo" (a.C.).

O lONGO CAMINHO EM DIREÇÃO ÀURBANIZAÇÃO NA ÁSIA OCIDENTAL

O OrientePróximo asiático já conhecia, por volta de 7000, al-deias neolíticas plenamente sedentárias, ou seja, comunidades quebaseavam sua subsistência numa agropecuáriaestável e não mais nacaça, na pesca e na coleta de plantas selvagens. Quatro mil anos de-pois, por volta de.3100-2900, a Baixa Mesopotâmia estava já urbani-zada, apresentandoquatorze cidades mais importantes que subordina-vam outras menores.e numerosas aldeias. Trata-se, de fato, da maisartiga região do planeta a urbanizar-se. Por isto mesmo, no VelhoMundo, constituiu-se na única área que efetuou por si só tal processo,sem dispor de modelos externos a que se pudesse referir. Foi preciso,ao longo de quatro milênios, ir ,achandosoluções para os problemasnovos que fossem surgindo, enquanto o modo de vida urbano ia seconsolidando. Por essa' razão o processo foi tão longo. No Egito, doNeolítico pleno às cidades, passaram-se dois milênios e meio, bemmenos tempo do que na Mesopotâmia. No entanto, supõe-se q~e osegípcios puderam aprender com o processo mesopotâmico de criaçãode cidades, iniciado antes.

Note-se que as primeiras etapas do longo caminho que conduziuao modo urbano de vida estão apresentadasna Alta mas não na BaixaMesopotâmia. Esta última região, planície aluvial do Tigre e do Eufra-tes, só foi ocupada permanentemen.tea partir do quinto milênio. Entre5000 e 3500, conheceu uma fase, a de Ubaid,em que o modo de vida

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era neolítico; a partir de 4500 já se fabricavam objetos de cobre. Osinícios da urbanizaçãoe da escrita caracterizaram a etapa seguinte, ade Uruk, de 3500 a 3100, completando-sea transição à civilização ur-bana no período de Jemdet-Nasr - 3100 a 2900 -, com o qual come-çou a Época Inicial do Bronze.

As cidades nascentes da Baixa Mesopotãmia tiveram de enfren-tar dificuldades consideráveis. A agricultura de chuva não é praticávelna região, cujo povoamento depende dos rios. Tais rios se acham emvazante na parte do ano em que é preciso semear. A cheia tem efeitofertilizador; mas dá-se numa época em que os cereais cultivados estãojá crescidos e, em sua violência, ameaça levá-Iosde roldão juntamentecom rebanhos e casas. Devia-se, portanto, dispor de reservasde águapara irrigação nos meses mais secos,e de obras de proteção contra ospiores efeitos das enchentes fluviais. Estas necessidades levaram aum sistema complexo de barragens, diques, canais de irrigação e ca-nais de drenagem, cuja manutenção e extensão exigiram enorme econstante esforço.

A Mesopotãmia tinha à sua volta estepes habitadas por nômadescriadores a oeste, e a leste montanhas, povoadas analogamente porpastores nômades. A planície fértil do Eufrates e do Tigre tinha deser-Ihesdisputada com armas na mão, já que em muitas ocasiões ten-tavam nela estabelecer-seou, simplesmente, pilhar os assentamentossedentários. Estes últimos, aliás, também competiam entre si pelos re-cursos naturais: águas, campos, bosq'uesde tamareiras. A metalurgianascente não seria possível sem a organização de trocas regularescom o exterior, sendo a Baixa Mesopotãmia desprovida de minérios.Outras matérias-primas ainda - pedra, madeira - só poderiam ser ob-tidas fora da região. As escavações arqueológicas comprovam que,desde a Pré-História, tais trocas foram efetuadas, às vezes a distân-cias muito consideráveis.

A pergunta pertinente para a história político-institucional da re-gião é: quem tinha a responsabilidade de procurar soluções para osproblemas que acabamos de resumir? Uma resposta com plena com-provação documental é impossível, posto que a escrita só apareceuquando a urbanização se estava completando, e a arqueologia nãoilumina facilmente os aspectos institucionais. Assim, o que vamosapresentaragora não passa de uma hipótese.

É nossa opinião que três instituições, sucessivamente mais re-centes, encarregaram-sede enfrentar as dificuldades que apareceramao longo do processo de urbanização e, depois, no período inicial davida já totalmente urbana:órgãos colegiados derivados inicialmente daorganização tribal, mas que sobreviveram à destribalização - já com-

pleta na Baixa Mesopotãmia do terceiro milênio, embora devessemreaparecer as tribos no futuro, em função de imigrações como a dosamoritas e a dos ca/deus;os templos, entendidos também como com-plexos econômicos e administrativos, além de terem funções religio-sas; e o palácio real, igualmente um complexocom múltiplas funções.

O fato de que, no quarto milênio, os edifícios maiores em cadaaglomeração baixo-mesopotãmicafossem invariavelmente templos in-duziu a que diversos especialistas pensassem ser aqueles, desde ocomeço do processo de urbanização,os órgãos institucionais encarre-gados de administrar as comunidades que se urbanizavam.São coisasdistintas, porém, o templo considerado como edifício de culto e comocomplexo econômico e político-administrativo. A primeira coisa nãoimplica necessariamente a outra. Achamos que, embora nas aglome-rações que se transformavam em cidades aos poucos houvesse san-tuários, não existiam ainda os complexos templários; e que naquelafase as decisões mais importantes eram tomadas por dois órgãos quesão atestados em épocas posteriores, embora com funções diminuí-das: o conselho de anciãos (notáveis locais mais do que necessaria-mente pessoas idosas) e a assembléia dos homens livres (não sabe-mos se de todos eles, já que as cidades em formação certamente jánão eram igualitárias). De início, é possível que também mulheres fos-sem admitidas a esses órgãos colegiados, embora tal não ocorresseem períodos posteriores. O surgimento dos templos como complexospolítico-econômicos com controle sobre a administração ocorreu aindano quarto milênio, como se depreende das primeiras fontes escritasdecifráveis. Mas o palácio real como entidade diferente dos templos,deles separada no espaço, só apareceu,segundodados arqueológicos,em pleno terceiro milênio.

Parece-nos necessário postular a seqüência acima para explicardois fatos que diferenciam a Baixa Mesopotãmia do início dos temposhistóricos - isto é, dos primeiros séculos suficientemente iluminadospor fontes escritas - do Egito da mesma época. Primeiro, estar o sulda Mesopotãmia dividido, então, em uma dúzia de cidades-Estadosbem consolidadas e ciosas de sua independência,em contraste com aemergência do Egito histórico já como um reino centralizado. Em se-gundo lugar, existia, ao longo de milênios em cada cidade baixo-me-sopotãmica, privilégios fiscais, legais e de jurisdição reconhecidos aoshomens livres proprietários, vistos como um corpo de cidadãos dota-dos de direitos bem estabelecidos - coisa desconhecida no Egito.Ambos os traços distintivos do sul mesopotãmico se tornam compre-ensíveis se se admitir a origem tribal - e portanto local e dispersa _dos primeiros órgãos colegiados de poder que existiram nas cidades

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DAS CIDADES-ESTADOS AOSPRIMEIROS IMPÉRIOS MESOPOTÂMICOS

viviam mercadores estrangeiros, proibidos de instalar-se na cida-de amuralhada. O setor urbano servia de núcleo a um território deextensão variável, mas nunca muito grande, que continha cidades me-nores, povoados, aldeias numerosas, campos, pastagens, bosques detamareiras.

Antes de meados do terceiro milênio, as instituições políticas p0-dem ser imperfeitamente vislumbradas através de poemas épicos, tex-tos religiosos e alguns outros tipos de escritos; as fontes literárias sãoquase sempre tardias mas referidas àquele remoto passado. Em certoscasos também são utilizáveis dados arqueológicos. Estes últimas de-monstram que no início da vida urbana não existiam palácios reais se-parados dos templos. Era no interior destes que, numa parte especialdo santuário, residia um funcionário chamadoen ("senhor'), espécie desumo sacerdote e, nos casos em que fosse do sexo masculino (poisem certas cidades tratava-sede uma mulher), ao mesmo tempo encar-regado da chefia militar e de tarefas administrativas, como aconteciaespecialmente em Uruk.

Alguns autores acham que o en era eleito pela assembléia doshomens livres da cidade-Estado,que em certas ocasiões também p0-dia eleger - temporariamente, em situações de grave perigo externopara a cidade - uni verdadeiromonarca.A monarquia teria sido, então,ocasional, e eletiva em seus primeiros tempos. Outrossim, o ~eideviaconsultar o conselho e a assembléia antes de empreendercampanhasmilitares. Há, pouco antes da metade do terceiro milênio, sinais quealguns interpretam como indicadores da existência de uma "realezasagrada". Nas tumbas reais da cidade meridional de Ur, indivíduos,em certos casos identificados positivamente como reis, foram naquelaépoca enterrados com rica dotação funerária, acompanhados de con-cubinas e serviçais mortos ritualmente, costume que não se manteveem fases posteriores. Estas diversas indicações esparsas sobre asmodalidades de governantes.supremosna Baixa Mesopotâmia são di-fíceis de conciliar e parecem até certo ponto contraditórias. Nãoestá excluído que houvesse então considerável heterogeneidade deuma cidade-Estado a outra, além de evoluções no tempo que mal p0-demos adivinhar.

Na segunda metade do terceiro milênio, o título en tomara-sesomente sacerdotal. O rei, desde havia alguns séculos, passaraa resi-dir em um palácio completamente separado do templo e já não erasumo sacerdote, embora desempenhasse ainda funções religiosas im-portantes, como depois veremos. Os títulos que comumente aparecemna documentação da época são: ensi, "governador', atribuído ao chefede uma única cidade-Estado; e fugaf, "rei" (literalmente: "grande ho-

nascentes,bem como o surgimento relativamente tardio de instituiçõescentralizadoras e subordinadoras como os complexos temporários e amonarquia.

Do ponto de vista lingüístico, a Baixa Mesopotâmia do terceiromilênio dividia-se em duas partes: a Suméria, ao sul, onde predomina-va o sumério, língua sem vínculos conhecidosque deixaria de ser fala-da por volta de 1900; e o país de Ak~ad,ao norte, onde se concentra-vam na sua maioria os que falavam o acádio, língua pertencente aogrupo semita e que viria a prevalecer em toda a região. No passado,acreditava-se terem "sumério" e "acádio" conotações não apenas lin-güísticas: tais categorias eram vistas como reunindo característicasra-ciais, lingüísticas e culturais ao mesmo tempo. Assim, opunha-seumapropensão (supostamente semítica) à propriedadeprivada à propensão(que seria suméria) à economia dominada pelo palácio real ou pelostemplos; ou se pretendia que os sumérios adoravam personificaçõeslocais de forças da natureza,enquanto os semitas tendiam a relacionaros deuses com o direito, a moral e a ordem social. Tudo isto não pas-sa de rematada tolice. As eventuais variações culturais que venham aser percebidas no tempo e no espaço, no tocante à civilização meso-potâmica, deverãoexplicar-se historicamente e não atravésdo pseudo-conceito de "raça". E, na verdade, o que chama a atenção na épocaque abordamos é sobretudo a homogeneidadecultural mesopotâmica,apesar dos dois domínios lingüísticos existentes - aliás, difíceis de cir-cunscrever.

Em toda a Baixa Mesopotâmia, quando, por volta de meados doterceiro milênio, as fontes mais abundantes permitem-nos enxergarcom maior çlareza a situação, encontramos cidades-Estados indepen-dentes. Cada uma delas, em seu setor urbano, compreendia três par-tes: a cidade stricto sensu, amuralhada; o que os sumérios chamavamde "cidade externa", situada fora dos muros, que entremeava zonas re-sidenciais, terras cultivadas e estábulos que, ao que parece, perten-ciam aos residentes das cidades (o que explicaria o aparecimento tar-dio, nestas últimas, dos mercados de víveres); e o porto-fluvial quasesempre, ainda que freqüentado por barcosque também navegavam nogolpo Pérsico -, onde se concentrava o comércio exterior e onde

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mem"), reservado ao líder que conseguisse estender sua autoridade avárias cidades-Estados,cujos ens; passavam a ser subordinadosseus.A verdadeira monarquia (nam-Iugal) exigia o controle da cidade deNippur, cujo santuário era o centro religioso da Suméria, e era sacra-mentada pelo título de "rei de Kish" (cidade que, segundo parece,exercera a hegemonia no período iniciado por volta de 2900 ou, comodiriam, os sumérios, "depois do dilúvio"). O comando militar, necessá-rio à defesa do território e das rotas comerciais bem como à conquistae ao saque, foi fator essencial no surgimento.de uma monarquia per-manente hereditária e separada dos templos. As funções político-ad-ministrativas destes últimos, como também. as do conselho e da as-sembléia, diminuíram à medida que se consolidava o poder monárqui-co. O título de ens; ligava-se estreitamente às atividades administrati-vas e especialmente à supervisão das obras de irrigação.

A partir de meados do terceiro milênio, o particularismo das cida-des-Estados dá a impressão de chocar-secom uma consciência étnicaunitária na Baixa Mesopotâmia, servindo esta de base a hegemoniascada vez mais extensas, que acabaram desembocando em impériosefêmeros, mas crescentemente coerentes em sua organização.O pri-meiro de tais impérios foi criado por Sargão I, de Akkad (2334-2279),que unificou a Mesopotâmia e seus arredores imediatos, fundandouma capital, Akkad ou Agadé. Exerceuum domínio menos direto sobreregiões mais distantes, sobretudo para manter e ampliar as rotas queabasteciam a Baixa Mesopotâmia em minérios, pedra e madeira, alémde artigos de luxo. A nomeação - ainda que não em todas as cidadesdominadas _de govemadores acadianos, em muitos casos parentesdo rei, pretendia diminuir a autonomia das cidades-Estados.O exércitofoi ampliado, assim como o palácio real como máquina burocrática:Sargão se gabava de que mais de cinco mil homens comessem à suamesa todos os dias. Mesmo assim, o império acádio não durou muito,em função das revoltas internas e dos ataques externos,desaparecen-do de vez, depois de um longo declínio,em 2154.

. Outro império efêmero sucedeu a um período de descentraliza-ção e de domínio de estrangeiros - os gútios provenientes do leste,dos montes Zagros - sobre parte da Baixa Mesopotâmia. O novo im-pério, tendo à frente a terceira dinastia da cidade de Ur, existiu entre2112 e 2004. Foi notável por seu marcante controle econômico. De iní-cio compreendeu a Mesopotâmia inteira e algumas regiões exteriores.Cedo, porém, começou a desintegrar-se. Isto ocorreu apesar de pre-cauções como a separação entre o poder civil e o militar nas cidadesdominadas, um sistema de guamições possibilitado por um grandeexército (caracterizado, em especial, por numerosos mercenários pro-

venientes do Elam, região que faz a transição geográfica entre a planí-cie baixo-mesopotâmica e o montanhoso Irã), um bem organizado cor-reio real, um sistema de remuneração dos burocratas através de ra-ções e de terras dadas em usufruto, esforços em direção a certa unifi-cação da legislação que incluíram a promulgaçãoda primeira compila-ção importante de precedentes judiciários ou "julgamentos típicos" fei-ta na Mesopotâmia: as leis de Urnammu, fundador do império. Tam-bém neste caso, o império sucumbiu às rebeliões internas e aos ata-ques vindos do exterior. as campanhas e imigrações dos amoritas(nômades semitas provenientes do oeste) e os ataques dos elamitas,que destruíram e saquearama cidade de Ur em 2004.

Não obstante o caráter efêmero destes impérios, ao terminar oterceiro milênio o regime monárquico, centrado no palácio real, estavabem consolidado e apresentavacontornos institucionais nítidos na Me-sopotâmia. No interior do Estado, o palácio se tornara econômica epoliticamente muito mais importante do que os templos. No entanto,ainda durante os períodos de apogeu imperial, o poder monárquiconunca se aproximou do modelo autocrático egípcio. Mesmo reis queousaram intitular-se "deuses" reconheciam sua dependência para comas grandes divindades sumero-acadianas. E os homens livres maisimportantes constituíam, em cada cidade, um corpo de cidadãos comdireitos reconhecidos.O papel legislador do rei mesopotâmico, inaugu-rado em escala maior por Urnammu, supunha, aliás, como destinatá-rios dos códigos legais promulgados (ou, mais exatamente, das cole-ções de jurisprudência),cidadãos que tivessem existência própria, nãosendo exclusivamente súditos e dependentes do rei. O objeto da pro-mulgação era, de fato, tentar regular as relaçõesdos cidadãos entre sie com o Estado, além de demonstrar que o monarca cumpria sua fun-ção de promover a justiça nos territórios sob sua administração. Umdos sinais de que a autonomia dos cidadãos era reconhecidafoi a ma-nutenção da assembléia e do conselho nas diversas cidades, mesmo'quando seus poderes foram drasticamente reduzidos.

OS DEUSES E O CULTO

Alguns elementos da evolução das crenças mesopotâmicas notempo podem ser detectados. Enquanto alguns deuses estão compro-vados desde 'muito cedo - Anu, Enlil, Enki... -, outros foram adotadosmais tardiamente na região, como Dagan ou Annunítum. Há exemplos,

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'ainda, de personagens hoje consideradas históricas divinizadas pos-tumamente, como o en Gilgamesh de Uruk. E podem ser percebidasmudanças na forma de encarar e conceber as divindades. Inanna, deinício muito próxima da Grande Mãe pré-históricaem sua qualidade dedeusa do amor e da fertilidade, adquiriu posteriormente também ummarcado caráter militar. O surgimento da monarquia estável e heredi-tária, de hegemonias e impérios, foi projetado no mundo dos deuses,imaginados a partir de meados do terceiro milênio como membros deum Estado organizado e hierárquico em que Anu - ou, em certos ca-sos, Ehlil- presidia o conselho e a assembléia divinos. Em especial, astransformações polfticas humanas influenciaram o mito do deus Ninur-ta, guerreirodescrito como comandante de um exército permanente.

Uma história suficientemente completa da religião mesopotâmicano terceiro milênio, sobretudo em sua primeira metade, não poderia,porém, ser escrita, dado o estado fragmentário das fontes, muitas dasquais, aliás, foram-nos transmitidas em versões bem tardias. Tratare-mos de fazer uma curta descriçãoque se aplica especialmente à partefinal do milênio, quando os cultos locais já haviam sido reunidos numavisão de conjunto - não de todo coerente, porém, para nosso modo mo-demo de ver, pois a religião sumero-acadiana,como todas as religiõesnão-reveladas,evoluía em forma mais livre e complexa do que as reli-giões reveladas posteriorescomo o cristianismo, o islamismo, etc.:

Desenvolvimentos locais sob pressão polftica. crescimentos inacabadose mutações de origem incerta fornecem, em qualquer momento dado dotempo, o que pode ser considerado um conglomerado elástico, para usarum termo geológico. Numa visão diacrõnica, tais transformações são decomplexidade multiforme, nunca vista, desafiando a análise e mesmo aidentificação de seus componentes. (A. Leó 'Oppenheim)

Uma das explicações de tamanha complexidade é que, mais doque de "religião", deveríamos falar de "religiões". Por um lado, o cará-ter localmente variável das crenças e cultos nunca se perdeu de todo.Por outro lado, há três níveis a considerar: a religião sacerdotal dostemplos, centrada no serviço à imagem divina em seu santuário, es-tando este fechado, na sua maior parte, à imensa maioria das pes-soas; a religião monárquica,que se referia às funções religiosas reser-vadas ao soberano e dependia também das preferências de cada reiem matéria de cultos; e a religião dos homens comuns, que só partici-pavam de longe ou como espectadores da maioria das grandes ceri-mônias religiosas oficiais e freqüentavam usualmente pequenas ca-pelas situadas em zonas residenciais. Quase nada se sabe da religião

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-popular, bastante mais acerca da religião dos templos, ainda mais dareligião monárquica,bem servida de fontes.

As maiores dentre as numerosas divindades sumero-acadianaseram Anu {em acádio An), senhor da abóbada celeste, Enlil, senhor doar que separa o céu da terra, Enki (em acádio Ea), senhor das águas euma espécie de herói cultural encarregado de ordenar a natureza e omundo dos homens, a deusa Ninhursag ou Nintu, mãe cósmica, alémde três deuses identificados com astros: o deus da Lua, Nanna ou Sin;o Sol, Utu (em acádio Shamash), filho de Enlil; e a deusa do planetaVênus, Inanna (em acádio IShtar),senhora da fertilidade que se tomouesposa de Anu mas também estava associada a Dumuzi ou Tammuz,que alguns crêem ser um mortal divinizado e que, como deus, repre-sentava a m'orte e ressurreição anuais da natureza. Estas sete divin-dades (não incluído Dumuzi) constituíam o equivalente divino do con-selho de anciãos e presidiam a assembléia dos cinqüenta deusesmaiores, ou Anunnaki ("filhos de Anu").

Cada grande deus ou deusa, embora fosse objeto de culto emtoda a Mesopotâmia, "residia" no seu santuário principal,situado emuma só das cidades-Estados: assim, o Eanna era a casa de Inanna,em Uruk; o Ekur, a de Enlil, em Nippur; o Ekishnugal, a de Nanna emUr, etc. Habitualmente com seu cônjuge, filhos e outras divindades as-sociadas, o deus ou deusa principal da cidade tinha no grande templolocal o seu palácio, e ali a sua imagem - sendo os deuses mesopotâ-micos sempre representados em forma humana - recebia duas refei-ções diárias, roupas, adereços e outras oferendas, juntamente com asimagens dos membros divinos de sua família e de sua corte.

Os cidadãos comuns não tinham acesso às partes lTIaisíntimasdos templos, consideradas,como os aposentos do deus da cidade. Asestátuas divinas eram visíveis para a massa do.povo unicamente nasfestas em que saíam em procissão. O fiel pOdiaser autorizado, entre-tanto, a.dedicar sua própria estátua na postura de alguém que reza, aqual era então posta na presençadivina.

Os melhores animais sacrificados, as melhores comidas e bebi-das encaminhadas ao templo, destinavam-se à mesa portátil pos-ta diante das imagens divinas duas vezes por dia; mas uma quantida-de muito maior de vitualhas ganhava diariamente os santuários, paraalimentação dos sacerdotes e outros dependentes dos deuses (arte-sãos, músicos, trabalhadorese serviçais diversos, etc.). O culto diário,com seu acompanhamento de orações, não esgotava as obrigaçõessacerdotais maiores: havia numerosos festivais religiosos ao longo doano; em alguns dos quais o rei devia participar pessoalmente. Os sa-cerdotes organizavam-sehierarquicamente e segundo uma estrita divi-são do trabalho. '

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Ao lado dos aspectoscentraisda religião- culto diário, festivais -,outros existiam. O domínio dos mortos, visto pelos habitantes da Me-sopotãmia como lugar atroz, era governado pelo deus Nergal e suaesposa Ereshkigal, também associados, ao lado de numerosos dem~nios e de almas não apaziguadas por oferendas dos parentes sobrevi-ventes, às pestes e doenças.Aplacá-Ios,afastando-osdos afligidos porenfermidades ou possessões,propiciar o bom andamento da naturezae da vida social ou individual apelando aos deuses, procurarauscultara vontade divina, eram tarefas que os sacerdotes executavam tantopara reis quanto para plebeus através da magia, de exorcismos,de sa-crifícios propiciatórios, de técnicas diversas de adivinhação e de inter-pretação dos sonhos.

A virtude, a justiça e a ética, comumente associadas a Utu ouShamash, o deus solar, não podiam garantir uma vida feliz no além-túmulo. A noção de um julgamento dos mortos desenvolveu-sepouco.Era sobretudo nesta vida e neste mundo que a religião buscava fun-damentar os princípios de justiça, eqüidade e piedade. As doenças tra-zidas por demõnios eram vistas como punição de alguma ofensa vo-luntária ou involuntária contra os deuses, ou contra certas regras doconvívio social. Mas a ofensa ao deus tanto podia ser moral quanto ri-tual. Eis aqui algumas das perguntas que constam de um texto quedeveria ser lido pelo exorcista:

Pecou ele contra um deus?

É a sua culpa contra uma deusa?Trata-se de uma má ação para com seu senhor,ou de ódio para com seu irmão mais velho?Desprezou ele o pai ou a mãe? (...)Usou ele pesos falsificados?Fixou ele um falso limite [nos campos] ? (...)Apoderou-se ele da esposa de um vizinho?Derramou ele o sangue de um vizinho? (...)(Jacquetta Hawkes)

Em épocas posteriores, dois milanos depois do período que aquiexaminamos, houve, sem dúvida, um desenvolvimento maior da éticamesopotâmica de base religiosa. Nos mitos sumero-acadianos, no en-tanto, os próprios deuses cometiam atos de estupro, adultério, ciúme,engano, roubo, assassinato, embriaguez, etc., sem que aparentementeisto escandalizasse os fiéis. Afinal,da lista de uma centena de mes -elementos ou leis criados pelos deuses e julgados necessários para aboa ordem e a continuidade do universo - constavam a prostituição,ainimizade, a destruição de cidades, a falsidade, o terror, o combate,tanto quanto o sacerdócio, a bondade, a justiça, a paz ou a sabedoria...

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A MONARQUIA E OS DEUSES NABAIXA MESOPOTÂMIA DO TERCEIRO MILÊNIO

Na concepção mesopotâmica do universo, não há qualquer des-continuidade entre mundo humano, mundo natural e mundo divino.Não há, ainda, oposiçãoentre entes animadose coisas inanimadas,pois tudo é animado,dotado de vontade,portantosuscetívelde res-ponder aos homens de pessoa a pessoa. Isto porque os deuses cria-ram o homem e o universo com tudo que contém, incluindotodas asregras de funcionamento do cosmo e da civilização,e continuam a di-rigire dar coerência à sua criação. Inexistemcortes ou fraturas a sepa-rar o social, o natural e o divino,havendo pelo contráriototal homoge-neidade de princípios e funcionamento entre tais níveis da realidade.

Também a monarquia é uma criação divina.Trata-se do primeiroe mais importante dos elementos ou leis universais (mes). "Arealezadesceu do céu", diz-nosa ListaReal Suméfla; nao uma, mas duasvezes. Com efeito, a primeira humanidadeirritaraos deuses,cujaassembléiadecidiu.eliminá-Iapor meio do dilúvio,uma inundaçãodeque escapou, por ação do deus Enki, o rei Ziusudra (mais tarde, cha-mado Utinapishtim) de Shuruppak, juntamente com sua esposa _constituindoambosa sementede umanovahumanidade. Após o dilú-vio, "a realeza desceu de novo do céu", instalando-se, primeiro,na ci-dade de Kish.

Os homens foram criados para o serviço dos deuses.Já antes dodilúvio, o deus supremo - o texto sumério que se refere ao dilúvio dei-xa nasombrasese tratadeAnuou de Enlil- fundou pessoalmente ascinco primeiras cidades-Estados, deu-Ihes os seus nomes, e atribuiucada uma a uma divindade como centro de seu culto:

A primeira destas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud [Le., EnkiJ, o Ifder;a segunda, Badtibira, ele deu a Latarak;

a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag;a quarta, Sippar, ele deu ao herói Utu;

a quinta, Shuruppak, ele deu a Sud [Le. Ninlil, esposa de Enlil].

(James. B. Pritchard)

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DivindadesLocais

Analogamente, no mundo pós-diluviano, cada cidade-Estado"pertencia" ao deus ou deusa que ali ocupava o templo principal. Osseus habitantes - e em primeiro lugar o principal dentre eles por suaposição, fosse o seu título en, ensiou fugal - existiam para servir à di-vindade local. Os governantes supremos são representados às vezescarregandoà cabeça materiais de construção para elevar ou repararbtemplo maior de sua cidade: um exemplo antigo é o do fugaf Urnanshede Lagash (2494-2465).

Em troca, a divindade concedia ao rei o ofício monárquico.Mes-mo os conquistadores.e fundadoresde impérios reconheciama origemdivina do seu poder. Sargão de Akkad (2334-2279) declarou, em umainscrição de Nippur de que temos a cópia em uma tabuinha de barro,

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~UI:'''J>ÚM;';~/~'~~N~";';,""'~;~1.~~~~~~Figura 2: RELEVO DE ANUBANlNI: Este bai)(()-relevo vem dos limites orientais da Mesopotâ-mia (montes Zagros), mas está dentro da tradição mesopotâmica: o monarca vitorioso do povomontanhês dos lullubi atribuiu à deusa da fertilidade Inanna (de cujo corpo brotam plantas) asua vitória sobre inimigos aprisionados. Note-se a diferença de escala na representação do reie da deusa, por um lado, e dos vencidos. por outro.FONTE: Wiesner, Joseph. Oriente antigo. Lisboa, Verbo, 1968, p. 48.

ser "rei de Akkad, capatazde Ishtar,rei de Kish,sacerdoteungidodeAnu, rei do país, grande ensi de Enlil", além de afirmar que Enlil lheconcedera todos os territórios entre o Mediterrâneo e o golfo Pérsico.Por sua vez, o primeiro rei da terceira dinastia de Ur, Urnammu (2112-2095), disse no prólogo de suas leis que era rei de Ur, de Sumer e Ak-kad "pelo poder de Nanna", o deus lunar de Ur, e que "de acordo coma verdadeira palavra de Utu" (o deus solar) é que ele "estabeleceu aeqüidade na terra e baniu a maldição, a violência e a luta". O monarcaé um agente da ordem, mas a ordem eacima de tudo cósmica, elavem dos deuses. .

Vínculos Estreitos

Os vínculos entre o'rei e a esfera do divino eram estreitos. O so-berano declarava-se às vezes filho dileto de uma deusa, e que esta oamamentara, sem que isto representasse verdadeira divinização dapessoa real. Urnammu, por exemplo, dizia-se "filho nascido de Ninsun,sua querida mãe que o levou no ventre". Outrossim, o rei tinha direitoàs "sobras" do deus, ou seja, eram-lhe destinadas as refeições postasdLiasvezes por dia diante da principal divindade da cidade,depois queesta as consumia misticamente. Sargão de Akkad inaugurou um outrotraço de união com o mundo divino, a tradição (que durou meio milê-nio) de que a filha do governante supremo se tornasse sacerdotisaprincipal do deus Nanna ou Sin da cidade de Ur.

Vimos anteriormente que as transformações políticas humanas,em especial a consolidação da monarquia e a formação dos primeirosimpérios, tiveram influência na concepção do mundo divino como umEstado cósmico. No entanto, esta maneira de ver, uma vez formada,por sua vez se reflete na teoria ao mesmo tempo religiosa e políticaacerca dos poderes terrestres.Cada deus mais importante foi encara-do como uma espécie de cidadão do Estado cósmico presidido porAnu e Enlil; a "sua" cidade-Estadoera, neste mundo terrestre,o domí-nio de onde retirava comida, roupa e alojamento. Os cidadãos locais,seus servidores, participavam de sua riqueza, ou seja, a prosperidadehumana aparecia como um subprodutoda ab.undãnciaque o deus pro-piciava à sua cidade para seus próprios fins pessoais. O Estado hu-mano funcionava como prolongamento ou setor do Estado cósmico,divino. Em nome do deus da sua cidade - ou, nos períodos imperiais,do deus da cidade capital - o monarca governava,julgava, agia, com-batia. Em outras palavras, teoricamente o rei não passavade capataz,mordomo ou representante da divindade, e assim o reconhecia em

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seus textos.· Isto implicava a necessidade de consulta permanentedos designios supremos do deus. Antes de decidir-se e agir, o rei me-sopotâmico consultava e interpretava, por meio dos sacerdotes, asmensagens divinas que lhe chegavam nos seus próprios sonhos, naforma de acontecimentos portentosos, inscritas nas entranhas dosanimais sacrificados. Com o tempo, verdadeiros catálogos de interpre-tações desses signos da vontade divina foram compilados para servirde base às consultas.

Note-se que pode ser perigoso estender em forma excessiva ateoria, confundindo-a de todo com a realidade social. Pretendeu-seháalgumas décadas, por exemplo, que em meados do terceiro milênio ostemplos - e portantoos deuses- fossemos proprietáriosefetivosdetodas as terras cultivadas de cada cidade-Estado:foi a teoria da "cida-de-templo". Isto demonstrou ser falso, e aliás não é algo necessáriopara que se cumpra a concepção ideológica de uma propriedadeemi-nente suprema da divindade sobre a cidade. Do mesmo modo, o avan-ço progressivo do palácio real sobre as terras e rendas tributárias dostemplos, mesmo se em certas ocasiões foi visto como um abuso a sercorrigido- por exemplo e sobretudo nos textos acerca das reformaspassageirasdo ensi Urukagina de Lagash(2351-2342)- acabou por secumprir irrevogavelmentesem, no entanto, afetar a teoria de serem osdeuses os "donos" do mundo dos homens. Esta não passava de umaconcepção teórica, cujo corolário prático era, simplesmente,que os go-vemantes supremos tivessem sempre o cuidado (como de fato tinham)de agir em nome dos deuses e de garantir adequada e generosamenteos seus santuários e o seu culto.

A continuidade que se pressentiaentre os níveis humano, naturale divino da realidade conduziu a que o rei - como intermediário desig-nado pelos deuses entre eles mesmos e os homens - participasse deum festival, estranho e curioso para nós modemos, destinado a liberaros poderes cósmicos da fertilidade,' isto é, a garantir anualmente acheia dos rios, a germinação dos cereais, a multiplicação dos homense dos rebanhos. Referimo-nos ao matrimônio sagrado, cerimônia emque o monarca,encarnando um deus, unia-se,uma vez por ano, a umasacerdotisa que representava a deusa da fertilidade, Inanna ou Ishtar.O festival em questão só está solidamente atestado a partir do iníciodo segundo milênio, mas a maioria dos especialistas o considera mui-to antigo, ligando-se mesmo, talvez, ao culto pré-históricoda deusa daTerra, a Grande Mãe. Os textos acerca de tal cerimônia não deixamdúvidas sobre as finalidades da mesma. Num deles, diz a oração diri-gida à deusa, referindo-seao rei a quem ela se vai unir ritualmente:

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Possa ele tornar os campos produtivos como o cultivador,Possa ele multiplicaros rebanhos como um pastor de confiança.Sob seu reinado,que hajaplantase grãos,Que, no rio, hajaáguade sobra,

Que no campo possa haver uma segunda colheita [literalmente: grãotardio),

Que no pântanohajapeixes e os pássaros façam muito ruído,Que nos caniçais cresçam, altos, os juncos velhos e novos,Que na estepe cresçam, altas, as árvores,Que nas florestas os cervos e cabras selvagens se multipliquem,Que o jardim irrigadoproduza mel e vinho,Que nos sulcos as alfaces e verduras cresçam altas,Que no paláciohaja longa vida,Que ao Tigre e ao Eufrates a águada cheia seja trazida,Que em suas margens a erva cresça alta, e possam os prados sercobertos,

Que a sagrada rainha da vegetação acumule o grão em altos montese pilhas,

Ó minha rainha, rainhado universo, a rainhaque abarca o universo,Que ele desfrute de longos dias em teu regaço sagrado!(Pritchard)

Num tal contexto, que significou a divinização do próprio rei,qcorrida nos séculos finais do terceiro milênio? Com efeito, Naram-Sin

(2254-2218), neto de Sargão de Akkad, assumiu em suas inscrições otítulo de "deus de Akkad" e o de "espOso de Ishtar-Annunítum". Mais

tarde, o segundo rei da terceira dinastia de Ur, Shulgi (2094-2047),também se divinizou em vida, no que foi imitado por seus sucessores,sendo que, neste caso, organizou-se um verdadeiro culto em que aimagem real recebia oferendas em templos e capelas como qualqueroutra divindade. É possível que a divinização do rei - aliás passageiraem termos do conjunto da história da Mesopotâmia - não manifestas-

se a intenção de apontar uma mudança de natureza do monarca, massim de função: com a construção imperial, o rei passava a desempe-nhar um papel no mundo muito mais amplo e exaltado do que no pas-sado, e por tal razão comparável ao dos deuses. É também razoável

pensar que se visse numa tal decisão a apropriação direta, pelo rei,das funções judiciárias e legislativas divinas, encarregando-se osoberano, pessoalmente, do conjunto de compromissos e oprigaçõesque dava forma à vida social (assim, por ocasião da celebração decontratos, as partes e testemunhas deviam jurar pelos deuses e pelorei divinizado).

Por fim, não se exclui a tentativa de criar um laço direto de leal-dade entre o monarca e os súditos de impérios heterogêneos, nos

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quais eram fortes os elementos dispersivos. Seja como for, mesmo osreis divinizados em vida proclamaram sua submissão e serviço aos

grandes deuses sumero-acadianos,aos quais não buscaram equiparar-se e que certamente não queriam substituir.

Sistemas Locais de Poder

o SURGIMENTO DO ESTADO FARAÔNICO NO EGITO

Existem provas indiretas da presença de sistemas locais de p0-der já consideráveis algumas centenas de anos antes da unificação dopaís: existência de artesãos de alta qualificação produzindo grandesquantidades de objetos cerimoniais e de vasos de pedras duras ou dealabastro; presença de celeiros de grande capacidade; passagem docobre martelado a frio à metalurgia, o que supunha a exploração deminas, o transporte e armazenagemdo minério; construçõescomo asde Hieracômpolis,que exigiram para sua ereção algum sistema de dis-tribuição de rações aos trabalhadores e, portanto, algum sistema detributos que permitisse armazenarexcedentes de cereais.

As obras de irrigação, então incipientes, eram da alçada local eregional, não podendo ser consideradas como causa direta da forma-ção do Estado centralizado. Elas parecem muito ligadas, porém, àformação de cerca de quatro dezenas (um pouco menos no início) deentidades territoriais regionais, os spat Ounomos, que mais tarde fun-cionariam como províncias do reino unificado. É possível imaginar pri-meiro nos nomos o aparecimentodas relações urbano-ruraisnascentese o surgimento em caráter pioneiro de núcleos político-territoriaisdefi-nidos, cujo,conflito deve ter desembocado em confederaçõescrescen-tes e, por fim, no reino do Egito, duplo mas unido sob um único mo-narca. Segundo Jean Vercoutter, desde o Neolítico foi tomando formaa separação entre dois blocos culturais: um deles se situava em voltado Fayum (bacia do lago atualmente chamado Birket Karun, a oestedo ponto em que o Vale e o Delta do Nilo se unem) e nos limites doDelta a noroeste,mas sem chegar até o Mediterrâneo;o outro, no Valedo Nilo entre Assiut e Tebas. A diferenciação cultural cedeu lugar auma fusão, formando-se uma civilização única pouco antes da unifica-ção. Objetos que se estendem no tempo do final do períodoPré-Dinás-tico até a primeira dinastia histórica parecem indicar ligações do Egitocom a Baixa Mesopotâmia na fase de aproximadamente 3100 até2900. Alguns autores, como Walter Emery, não hesitaram em basear-se em tal fato arqueológico para falar em uma "raça diná~tica" que,vinda do país do Eufrates e do Tigre, invadira o Egito, trazendo a civili-zação e mesmo a unidade política. Esta teoria está hoje desacredita-da: a civilização egípcia tem profundas raízes africanas, embora semdúvida também recebesse influências asiáticas em geral e mesopotâ-micas em particular através das trocas de longa distância.

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Entre o Neolítico pleno e o surgimento do reino unificado se pas-saram no Egito dois milêniqs e meio ou mesmo, segundo certos auto-res, dois milênios somente, entre 5000 e 3000. A partir da fase de el-Badari (4500-4000,mas tais datas são muito inseguras),que inaugurao chamado Período Pré-DiQástico,já surgem no registro arqueológicoalguns objetos de cobre martelado, pelo qual fala-se às vezes de Pe-ríodo Eneolítico: a verdade é, porém, que por muito tempo o modo d~vida das aldeias neolíticas permaneceu inalterado por tal inovação. Esobretudo nos últimos séculos do Pré-Dinástico - os quais correspon-dem ao final do quarto milênio - que mudanças sociais maiores pas-sam a ser perceptíveis a partir da arqueologia, caracterizando a fasegerzeense ou de Nagada 11. /

O sítio arqueológico de Hieracômpolis, bem ao sul do Vale doNilo egípcio, ti,nhano final do Pré-Dinástico uma população importanteque se estava concentrando em aglomerações fortificadas, numa re-gião que contava tom um templo prestigioso e com boas condiçõespara a irrigação baseada nos tanques ou bacias formadas e fertilizadasnaturalmente pelo rio. Isto atraía tal população, numa época de dete-rioração climática que fez abandonar cada vez mais as antigas este-pes saarianas que atravessavam radical desertificação. A diversifica-ção dos graus de riqueza das tumbas mostra, na segunda metade doquarto milênio, uma população socialmente estratificada e já não igua-litária. Há sinais, também, de conflitos com a Núbia (que não passa dacontinuação do Vale do Nilo ao sul do Egito), que podem ter favoreci-do localmente a passagem de formas mais difusas de poder a gruposmilitares definidos com numerososdependentes.

Não é somente em Hieracômpolis que a arqueologia demonstraa existência de uma diferenciação social naquela época. De um modogeral, enquanto anteriormente as tumbas maiores e mais ricas seapresentavamespalhadas nos cemitérios, nos últimos séculos do quar-to milênio elas tenderam, pelo contrário, a serem agrupadas além dese tornarem ainda m~is ricas.

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de pedra para construção e outros recursos,em territórios que domina-ram desde muito cedo.

As coisas eram, então, mais fáceis no Egito: mas isto parece terresultado em poderes locais débeis, muito distintos das cidades-Esta-dos dotadas de cidadãos com direitos reconhecidosdo sul da Mesopo-tãmia. O Estado egípcio parece ter precedido a plem~urbanização, odesenvolvimento em escala maior do comércio exterior,o florescimen-to completo da divisão do trabalho. Estas coisas se deram, com todasas suas características,depois da formação de uma monarquia unifi-cada. Como conseqüência,enquanto na Mesopotâmia os frutos da ci-vilização foram aproveitados por maior número de pessoas, no Egitoeles tenderam a uma extrema concentração - acima de tudo na cortereal e, ainda mais visivelmente, na pessoa do rei-deus.

O antropólogo Robert Cameiro desenvolveu uma teoria acercadaorigem do Estado em que concede um papel primordial ao conflito, àguerra. Acredita também que teria sido o crescimento demográfico sobcondições em que a terra disponível era limitada (levando a uma pres-são causadora de conflitos) o fator que favorecera a formação, porconquista, do Estado. Não existem indicações de escassez de terrasno Egito de fins do quarto milênio. Mas a guerra não precisa decorrerde invasão, nem de competição pelos recursos agrícolas.A arqueolo-gia comprova sua importãncia nas origens do Estado egípcio por voltade 3000, mas ao que parece por razões diferentes:

Sugiro que o conflito armado ocorreu, durante o fim dos tempos pré.histó-ricos e o início dos históricos, devido, em boa parte, às ações de chefes ereis locais, que estavam tentando monopolizar os bens armazenados, osserviços de clientelas crescentes e os símbolos de poder pelos quaiseram definidos o seu próprio status e o de seus seguidores. Se a agres-são armada foi um dos instrumentos da extensão do Estado no fim do

Pré-Dinástico e no Proto-Dinástico, então foi simplesmente um aumentodas ambições e da busca do poder pelas elites - suas tentativas no sen-

tido de dominar. sistemas de trocas locais e de longo curso, e de serementerradas em tumbas maiores e melhores - que causou, em última aná-lise, o conflito. (Michael A. Hoffman)

o ESTADO EGíPCIO NO TERCEIRO MilÊNIO

Embora também fosse uma civilização baseada na irrigação flu.vial, as característicase circunstâncias do Egito primitivo diferem mui-to das que mencionamos para a Baixa Mesopotâmia. O Nilo, conve-nientemente, sobe no auge do verão, e ao baixarem as águas é omomento adequado para a semeadura; salvo exceções, suas cheias,altamente fertilizadoras como as do Eufrates e do Tigre, são, porém,muito menos destruidoras. Isto significa que o sistema artificial de irri-gação demorou a se desenvolver e nunca foi tão complexo quanto omesopotâmico. No Egito, o homem só teve de modificar e regularizarum sistema natural de bacias autodrenáveis.Cada grupo de bacias eraindependentedos outros, o que quer dizer que inexistiam conflitos pelocontrole de água entre diferentes regiões. Os desertos protegiam opaís de ameaças extemas importantes - pelo menos até fins do tercei-ro milênio. Por fim, os egípcios dependiam.menos do que os habitan-tes da Baixa Mesopotâmia do comércio exterior para a obtenção dematérias-primas:dispunham de minas de cobre, ouro e algum estanho,

Na teoria político-religiosa da monarquia egípcia, formada muitocedo e mantida por quase três milênios com poucas alterações (e s0-mente algumas nuances),o rei se define literalmente como o centro detodas as coisas, incluindo mesmo os países estrangeiros,destinados àsubordinação por ele. Vamos citar uma passagem longa, mas muitoesclarecedora,em que uma tal concepção de realeza absoluta aparecedefinida na mais antiga literatura religiosa (funerária) da humanidade,os Textos das pirâmides. Note-se que, nesta passagem como em al-gumas outras, o "olho de Hórus" - divindade de que o rei é a encarna-ção - é símbolo da terra do Egito:

Eu sou Hórus, que restaurou o seu olho com ambas as mãos:Eu vos restauro, vós que devíeis ser restaurados;Eu vos ponho em ordem, ó estabelecimentos meus;Eu te construo, ó minha cidade!

Vós fareis para mim todas as boas coisas que eu desejar;Vós agireis em meu proveito onde quer que eu for.

Vós não obedecereis aos ocidentais, vós não obedecereis aos orientais,vós não obedecereis aos setentrionais, vós não ob~decereis aos meri-dionais, vós não obedecereis àqueles que estão no meio da terra - masvós obedecereis a mim.Eu é que vos restaurei,Eu é que vos construí,Eu é que vos pus em ordem,

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E vós fareis por mim tudo o que eu vos disser, onde quer que eu vá.Alcançar-me-eis todas as águas que estão em vós;Alcançar-me-eis todas as águas que estarão em vós;Alcançar-me-eis todas as árvores que estão em vós;Alcançar-me-eis todas as árvores que estarão em vós;Alcançar-me-eis todo o pão e cerveja que estão em vós;Alcançar-me-eis todo o pão e cerveja qu~ estarão em vós;Alcançar-me-eis as oferendas que estão em vós;Alcançar-me-eis as oferendas que estarão em vós;Alcançar-me-eis tudo o que está em vós,O qual vós me trareis a qualquer lugar que meu coração deseje.(The ancient Egyptian pyramid texts)(Doravante citaremos somente a. abreviatura Pir., seguida da indi-cação de parágrafos e páginas, embora em certos casos modificarer:nosa tradução de Faulkner a partir do exame do original egípcio publicado porKurt Sethe).

Este texto divide-se em três partes. Nas quatro primeiras li-'nhas, o rei declara as razões da legitimidade do seu poder.Como res-taurador do Egito (ou seja, unificador do Vale e do Delta), pacificador,construtor, o monarca - que é o deus Hórus encarnado - tem direitosindiscutíveis. Na seção seguinte do texto, o,rei diz ser o único que de-ve ser obedecido (o "vós" deve entender-secomo designandoos "doisEgitos" - o Vale e o Delta - mas também os súditos como pessoas).No final, estabelece o seu direito a todos os bens do país: sendo seu oEgito, os súditos lhe devem entregar, em forma de tributos e oferen-das, as riquezas do país, sempre que o rei assim o exigir, esteja eleonde estiver.

Na prática, o terceiro milênio, a partir das dinastias em que tradi-cionalmente é dividida a história monárquica do Egito, .podeser consi-derado em três etapas: o período formativo da realeza faraônica (di-nastias I a 111,2920-2694); o apogeu do Reino Antigo, ápice do poderreal (dinastias IV a VI, 2575-2150);a decadência do Reino Antigo e ochamado Primeiro Período Intermediário (dinastias VIII a XI - já que aVII não parece ter existido de fato - 2150-2040).Em seguida, a partirde 2040, teve início o Reino Médio, de que não trataremos.

Rei-Deus

~I Durante as três primeiras dinastias, aparece e consolida-se umatradição cultural centrada no rei-deus.As instituições de governo aindaestão sendo formadas, como é demonstrado pelo fato de que os títulos

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dos funcionários surgem uma e outra vez, mas sem continuidade ehierarquia explícita.O palácio real é já o centro da administração.O reidesigna em muitos casos parentes seus para as funções mais altas,entre elas a chefia dos nomos ou províncias.A cobrança dos tributosse faz sob supervisãodireta do soberano,que para isto navega no Niloem companhia de sua corte - os "seguidoresde Hórus".Aparece ates-tada uma importante cerimônia de renovação dos poderes monárqui-cos e retomada de posse do Egito: a festa sed, em que o rei "morre" e"renasce" simbolicamente, voltando a ser coroado, a qual em princípioera realizada pela primeira vez ao se completarem três décadas dereinado. Expedições militares externas são enviadas ao nordeste (Si-nai), a oeste (Líbia), ao sul (Núbia), para garantir as rotas comerciais,o.fluxo de matérias-primas e a obtenção de mão-de-obra adicional naforma de prisioneirosde guerra.

A meados do terceiro milênio abre-se,com a quarta dinastia - ados construtores das grandes pirâmides - um apog~u monárquico quedura quatro séculos: o auge do Reino Antigo. O aparelho de Estado jáestá totalmente organizado, como é indicado pela sistematização hie-rárquica das titulaturas de funcionários e cortesãos.Se ao iniciar esteperíodo a tendência ainda era de entregar os altos cargosaos parentesdo rei, isto em seguida se modificou, e formou-se uma verdadeira bu-rocracia de Estado.

Data dessa época o auge da monarquia, no milênio e talvez emtoda a história egípcia. O rei, como deus, é a origem de todos os pode-res. Os funcionários não passam de delegados seus. O aperfeiçoa-mento da máquina estatal enfeixa em suas mãos os meios de controlenecessários:

O rei concede poderes e retira poderes, ele impõe um obstáculo e remo-ve um obstáculo (...) (Pir., § 311, p. 68).

...cuidado com o Hórus cujo olho é vermelho, violento em seu poder, CLljopoderio ninguém pode resistir! Os seus mensageiros vão, os seus cor-reios se apressam, eles lhe trazem as noticias (...) (Pir., § 253, p. 59).

Os Textos das pirâmides também resumem as funções reais:

O rei dá ordens, o rei concede dignidades, o rei distribui as funções,o rei dá oferendas, o rei dirige as oblaçóes - pois tal é, de fato, o rei:o rei é o único do céu, um poderoso à frente dos céus! (Pir.,§§ 2040-2041,p.292).

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Absolutoem teoria, o rei pode falar em nome dos deuses, mastambém no seu próprio, sendo igualmente divino. Mas ele representaneste mundo a filha de Ra, o Sol (pai do faraó: o título "filho de Ra",antes esporádico, regulariza-se a partir da quinta dinastia), a deusaMaat. Trata-se de uma divindade tardia e artificial, encamação perso-nalizada da verdade e da justiça num único conceito. Como no conjun-to das civilizações orientais, tal verdade-justiçaé ao mesmo tempo di-vina, natural e social. O rei a serve tanto quando age como juiz quantoao oferecer sacrifícios e templos aos deuses, ou ao vencer de armasna mão os inimigos do Egito (vistos como agentes do caos). Aliás, acomplexidade maior do Estado aumentou também a necessidade dematérias-primas e prisioneiros de guerra: intensificaram-se as expedi-ções militares sob o Reino Antigo em seu apogeu, teve início a coloni-zação egípcia no norte da Núbia e o contato marítimo com a Palestinae a Somália-Eritréia ("país de Punt") teve lugar com alguma regulari-dade, sempre sob a égide real; a arqueologia comprova também o c0-mércio com a ilha de Creta desde a sexta dinastia.

Deixaremos para o final do capítulo a discussão das causas dadecadência do poder monárquico a partir de 2150 aproximadamente.

A RELIGIÃO EGíPCIA

As crenças e cultos ,do antigo Egito apresentavam-seainda me-nos unificados e sistematizados do que na Baixa Mesopotâmia. Até oPre-Dinástico, cada nomo tinha o seu próprio deus principal, cultuadonum santuário construído com materiais perecíveis.Já então, porém,Hieracôrnpolisera um centro de peregrinações,e é possívelque outroslocais de culto atraíssem pessoas de regiões distantes. Ainda assim,no período histórico os cultos locais permanecem,e em seu santuárioo deus do nomo é supremo - por mais que na religião monárquica

possam variar as divindades preferidas. Como na Baixa Mesopotâmia,adivinhamos a existência de uma religião popular diferente em muitospontos da dos templos e da dos reis, mas a deficiência da documenta-ção impede que a conheçamos em detalhe.

Se a dispersãodos cultos locais nunca foi de todo eliminada, nãohá dúvida de que, com a unificação política, a reflexão sacerdotal ten-tou pôr alguma ordem no mundo divino. O modo mais simples de fazeristo foi a organizaçãodas divindades em tríades familiares, claramenteartificiais. É assim que o deus tutelar de Mênfis, Ptah, representado

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como um morto mumificado, foi considerado esposo da deusa Sekh-met, de cabeça de leoa, enquanto o filho de ambos, Nefertum, é asso-ciado à flor de lótus. Ou que Osíris, deus dos mortos e da vegetação,tornou-se esposo (e irmão) de ísis, deusa celeste, que deu à luz Ófilhopóstumo de Osíris: H6rus, um deus falcão.

Mais sofisticadas foram as sínteses teológicas que tentaram daruma explicação unificada - até certo ponto - da origem do mundo,dos deuses e dos homens. As mais importantes foram a de Heliópolis,onde o deus solar Ra aparecia como divindade criadora, a de Mênfis,na qual era o deus local Ptah que exercia tal função, e a de Hermópo-lis, que trazia ao proscênio o deusDjehuti (Thot),de cabeça de íbis outambém representado,como um babuíno, ou a este associado. Taissínteses levaram ao surgimento de deuses de novo tipo, não prove-nientes da primitiva religião dos nomos, como a já mencionadajustiça-verdade, Maat, e as águas primordiais, Nun.

No tocante aos deuses locais, alguns chegaram a ser cultuadosem todo o Egito. Um dos mecanismos de promoção de um deus ,re-gional a uma importância religiosa maior foi a sua adoção em posiçãode destaque no culto monárquico.No terceiro milênio, em função distoe do próprió prestígio da teologia da cidade de Heliópolis, próxima àcapital, Mênfis, teve início um longo processode "solarização"de mui-tos deuses e cultos (2700-1800aproximadamente).Sem perda de suaspróprias características,diversas divindades foram identificadas ou as-similadas sincreticamente ao deus solar Ra.

Os templos egípcios tinham similaridades e diferençascom os daMesopotâmia. Num e noutro caso temos edifícios em grande medidafechados à maior parte da população, consideradoscomo a residênciado deus, e onde a imagem divina era alimentada, vestida e objeto deorações e reverência. No templo egípcio - construídode pedra desdemeados do terceiro milênio - o deus ficava ainda mais apartado, numsantuário escuro, secreto e que passava a maior parte do tempo fe-chado. Pela manhã, o sacerdote em serviço abraçavaa estátua, retira-da de seu tabernáculo, para insuflar-lhe parte de seu próprio sopro vi-tal, tomando-a apta a receber uma parcela - mas somente uma par-cela - do enorme, incalculável poder que era a divindad~. Outra par-cela podia animar, por exemplo, um animal sagrado,conservadono in-terior do domínio divino mas fora do edifício principal. O povo tinhaacesso aos animais sagrados dos templos, objeto de sua veneração.Como na Mesopotâmia, o deus saía do templo na ocasião de festivais,carregado dentro de um pequeno barco pelos sacerdotes ou navegan-do no rio numa embarcação imponente.

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.Um aspecto em que os egfpcios parecem ter ido mais longe do

que os mesopotâmicosé o da concepção do templo como uma miniatu- .ra do universo, destinada a operações mágicas de proteção contra asforças da desordem e do caos. Outro setor muito mais elaborado dareligião egfpcia era o culto funerário, que implicava a conservação docorpo - embora no terceiro milênio ainda não existisse a mumificaçãopropriamente dita -, depositadonum túmulocomoferendasàs vezesmuito ricas e recebendo regularmente comida e bebida trazida por sa-cerdotes funerários. No Reino Antigo, unicamente o rei tinha direitoà imortalidade prometida pela religião funerária; mas podia estendertal privilégio aos seus parentes e funcionários preferidos, dando-Ihesos meios de instalar o seu próprio culto funerário.

A existência de sacerdotes ligados aos templos é atestada desdeo infcio do período histórico, mas no Egito o estabelecimento de umahierarquia sacerdotal foi relativamente tardio: na sexta dinastia é queos sacerdotes emergem como um grupo social diferenciado no interiordo aparelho de Estado, enquadrado por chefes.nomeados para cadaprovfncia ou nomo; no final da dinastia em questão, caaa culto passa acontar com um chefe dos sacerdotes que o serviam.

com sua consorte Nut (o céu) quatro deuses, entre eles Osfris e suairmã-esposa ísis, dos quais Hórus - dequeo faraóé a encamação_ éo filho póstumo. Assim, na passagem da página anterior, o rei estabe-lece uma linha direta de sucessão legitima que vai do deus primordialcriador até a sua própria pessoa.

Em certos casos, o rei é identificado com o próprio Osíris, emesmo com o Sol, que a deusa do céu, Nut, dá à luz todas as manhãslembora, em outra versão,Nut seja ela mesma filha do deus solar!):

Este rei é Osfris, que Nut deu à luz, e ela fez com que ele surgisse comoRei do Alto e Baixo Egito em todas as suas dignidades (u.) Sua mãe, océu, faz com que nasça todos os dias como Ra, e ele aparece com ele[ou seja, o rei aparece junto com o Sol] no leste, vai descansar com ele

no oeste, e sua mãe Nut não fica sem ele dia algum. O seu filho [nestecaso, Ra] dã vida a este rei, alegra-o, dã-Ihe prazer, põe em ordem paraele o Alto Egito, põe em ordem para ele o Baixo Egito, destrói para ele asfortalezas da Ásia, abate para ele todas as pessoas hostis sob seus de-dos (Pir., §§ 1833-1837, p.268).

o REI DIVINO E OS DEUSES

Na cerimônia da entronização é que o rei se transforma no Hórusvivo e, sistematicamente a partir da quinta dinastia, no filho do deussolar Ra. Nos casos em que o rei não fosse filho do faraó anterior coma esposa principal (muitas vezes irmã do monarca), e sim com umaconcubina ou esposa menor, era usual que se casasse com uma meio-irmã que fosse herdeira legítima. A mesma precaução servia para legi-timar os soberanos não nascidos na famflia real. Seja como for, embo-ra a hereditariedade fosse de regra e a dinastia reinante carregasseconsigo o sangue divino, não era ao nascer, e sim ao ser coroado, queo rei do Egito assumia o seu caráter divino.

Tomando-se deus, o novo rei assumia de imediato a herança le-gítima dos deuses primordiais, que, acreditava-se, tinham reinado pes-soalmente sobre o ~gito num passado mítico:

Eu sucedi a Ge~, eu sucedi a Geb; eu sucedi a Atum, eu estou no tronode Hórus, o primogênito(...) (Pir., § 301, p. 66).

Atum é uma das formas do deus criador Ra, de que Geb é o filhomais velho (trata-se do deus da Terra); por sua vez, Geb engendrou

Figura 3: Hórus e 5eth unem o Egito sob o nome real: Em Pir., § 514, p. 101, lemos que o rei"tJ o terceiro quando sobe ao trono". A egiptóloga Bemadette Menu interpreta isto no sentidode que o rei elimina as contradiç6es entre o norte e o sul, entre os deuses inimigos Hórus (comcabeça de falcáo) e 5eth, que nesta cena esculpida no segundo mi/énio une as plantas quesimbolizam o Vale e o Delta em tomo do hieróglifo sma (verbo "uniO, sob os signos do nomereal.

FONTE: Jéquier, Gustave. Histoire de Ia civilisation tJgyptienne. Paris, Payol, 1930, p. 45.

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Um rei assim concebido simboliza a união do cósmico e do hu-mano. Os egípcios acreditavam que o Estado faraônico surgira conco-mitantemente com o ato de criação do universo,e duraria tanto quantoo próprio cosmo. A monarquia dual que, na e pela figura do rei, une oVale (Alto Egito) e o Delta (Baixo Egito) e reconcilia os deuses inimi-gos Hórus e Set, significa o esmagamento da oposição tanto intemaquanto extema, garantido pelos deuses ao outro deus que é o rei: aoposição a um monarca como este é identificada com as forças docaos. A criação do mundo e da monarquia foi o estabelecimento deuma ordem imutável, ao mesmo tempo cósmica e soci'al,coisa que sereflete em numerosos ritos e festivais monárquicos.Como filho do Sole Hórus vivo, o faraó é o senhor absoluto do território e dos habitantesdo Egito. Como deus, ele comanda a própria natureza inanimada e vi-vapór igual: ~

...0 rei faz crescer o lápis-Iazúli,o rei faz germinara figueirado Alto Egito(Pir.. § 513,p. 101).

Numa monarquia deste tipo, como aliás já vimos, o rei é a fonteúnica da autoridade - que forade suapessoasó existeporexpressadelegação sua, nos âmbitos administrativo, judiciário, militar, sacerdo-tal. Diante do rei, com exceção da família real, todos são plebeus porigual, o alto funcionário tanto quanto o camponês. O Estado egípciorepresenta o caso histórico mais claro de uma teofania. isto é, da ma-nifestação tangível da divindade, cristalizada na pessoa do faraó, deusencamado e não simplesmente representante'dos deuses. Em virtudeda mediação do rei é que as forças vitais funcionam na natureza. Co-mo ente que participa do divino e do humano, ele é o elo que integraos dois planos. Sua presença no trono garante a cheia do Nilo, assegu-ra as boas colheitas e a fertilidade das mulherese dos rebanhos.

Pelo próprio fato de representar a concepção teórica da realezadivina levada ao seu máximo, existe o perigo de estender demais talteoria, que é sem dúvida parte da realidad~ mas nãc;>a esgota. Umbom exemplo é o de Barbara Bell. Ela afirma que, ao falharem repeti-damente as cheias do Nilo no final do terceiro milênio, os reis foramresponsabilizados e, ou ritualmente assassinados, ou obrigados aosuicídio, o que explicaria a sucessão rápida de reis efêmeros na oitavadinastia. Aqui nos achamos, simplesmente, no domínio do dellrio. Nãosomente a autora não apresenta prova alguma do que diz, mas tam-bém no domínio das concepçõesmonárquicassua tese não se susten-ta. O festival ou jubileu sed provia um substitutivo ritual à execuçãoefetiva do rei - que, como vimos, nele "morria" e tomava a aparecernotrono-, não havendo qualquer exemplo conhecido de um faraó assas-

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sinado ritualmente ou induzido ao suicídio. Outrossim, a divindade dofaraó era uma concepção abstrata, ideal e generalizante: os egípcioscertamente não viam os seus reis. no dia-a-dia, como fazedores demilagres! E ao falhar o rio em sua inundação, existia um ritual oficialprevisto,que não envolvia pessoalmente o soberano.

O rei era o único sacerdote por direito próprio. Só ele podia fun-dar santuários, em cujas paredes unicamente ele era representadorealizando as cerimônias do culto divino. Os outros sacerdotes eramemanações suas, seus delegados. O soberano devia também proverao culto em suas necessidadesmateriais diárias.

De início, as terras administradas diretamente pelo palácio realforam a maneira de garantir a subsistência dos grupos dominantes: osfuncionários de todos os tipos e os sacerdotes eram diretamente ali-mentados, vestidos e alojados pelo governo faraônico, que tambémasseguravao culto funerário real e de particularesem forma direta. Foia partir da quinta dinastia que, através de doações e isenções de im-postos, os templos adquiriram terras, mão-de-obra e outros recursospróprios - mas sempre dentro do aparelho de Estado. Como desde an-tes os soberanos haviam começado a doar terras e rendas aos cultosfunerários dos cortesãos, vemos que no terceiro milênio se passou deum sistema palacial exclusivo a uma maior diversificação das formasde gestão.

A DECADÊNCIA DO PODER MONÁRQUICOE O COLAPSO DO REINO ANTIGO

I

I

Por volta de 2150, iniciou-se um processode declínio monárquicoque conduziria à divisão temporária do país e à ocorrênciade invasõesasiáticas do Delta, até uma reunificaçãocompletada em 2040, quandose iniciou o Reino Médio.

É tradicipnal na historiografia dar respostas à pergunta sobre ascausas desse decllnio através de fatores como: a excessiva importân-cia. e influência dos sacerdotes desde a quinta dinastia, recebendodoações e isenções fiscais que enfraqueceramo patrimônio estatal; afraqueza pessoal de certos reis; o avanço do poder e da hereditarieda-de de funções dos dirigentes dos nomos, preparando o desmembra-mento temporário do Egito; uma grande revolta popular (de que efeti-vamente há algumas provas) e a invasão (também comprovada)de tri-bos asiáticas no Baixo Egito.

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II

Hoje em dia, há tentativas diferentes de explicação. Os temploseram parte integrante do Estado, e como já se viu, o rei.não deixavade usufruir ou controlar os bens que Ihes entregava.Naguib Kanawati,a partir de um estudo das tumbas de funcionários e de uma análise.das reformas administrativas empreendidas com alguma freqüênciapelos reis, chegou à conclusão oposta à tradicional: houve um reforçoprogressivo, e não a deterioração do aparelho de Estado ao longo daquinta e da sexta dinastias. Por que, então, o declínio posterior? Sabe-se hoje ter ocorrido, no final do terceiro milênio, uma fase de diminui-ção drásticá, durante muito tempo, do nível médio das inundaçõesanuais do Nilo, trazendo a multiplicação dos anos de fome, a diminui-ção da população e por conseguinte da riqueza do país que o Estadopodia tributar para financiar-se. Ora, isto ocorreu exatamente no mo-mento em que o reforço do aparelho de Estado multiplicava os buro-cratas. Por conseguinte,os rendimentosper capita de cada funcionáriograduado, no governo central e nos nomos, declinaram muito, levandoa uma queda na qualidade da administração, à insatisfação latente, aum regime trabalhado por desiquilíbrios intemos graves - e que, por talrazão, não conseguiu fazer frente aos problemas internos e externosque se avblumaram e agiram conjuntamente a partir de aproximada-mente 2150.

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3PÉHIOSTADO

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A ÁSIA MENOR E OS HITITAS

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A Ásia Menor é uma grande península do extremo noroeste doOriente Próximo, banhada pelo Mediterrâneo oriental e pelo mar Ne-gro. Apresenta um relevo acidentado, dividindo-a a montanha emgrande número de compartimentos, vales e bacias mais ou menosisolados. A oeste e ao norte, as regiões costeirassão férteis e bem re-gadas pelas chuvas e por pequenos rios. O interior é caracterizadoporcordilheiras - montes Pônticos, Taurus e Anti-Taurus -, que enqua-dram o planalto da Anatólia, no centro do qual ficam um deserto e umlago salgado. O planalto é atravessado pelo rio Hális (hoje chamadoKizilirmak). As condições de fertilidade e a qualidade das pastagensvariam extremamente de uma a outra parte da península, mas noconjunto a região apresentavana Antigüidade uma população rarefeitae dispersa em núcleos apartados uns dos outros e uma agropecuáriamenos produtiva em média do que os vales fluviais irrigadosdo Nilo edo Tigre e Eufrates. A Ásia Menor ligava-se às correntes de trocas doOriente Próximo na qualidade de fornecedorade madeira, pedra paraconstrução,obsidiana e minérios, tendo sido, no segundo milênio, cen-tro pioneiro da metalurgia do ferro.

Situada no ponto de encontro da Ásia e da Europa, o seu p0-voamento e o seu quadro político e cultural sempre foram complexos e

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muito mesclados. Uma nova teoria acerca da difusão das línguas indo-européias, exposta por Colin Renfrew em 1987, vê na grande penín-sula o foco inicial de onde elas teriam iniciado a sua dispersãopor vol-ta de 6000: isto eliminaria a necessidadede qualquer hipótese sobre achegada de povos que falavam idiomas indo-europeusà região a partirde fins do terceiro milênio, embora esta última opinião ainda predomi-ne. Seja como for, no inicio do segundo milênio, quando, com a insta-lação de colônias mesopotãmicas (assírias) na Anatólia por volta de1900, começamos a ter mais informaçôes, o quadro lingüístico era jádos mais complicados. Ele ainda se tornaria mais complexo nos sécu-los seguintes. Falavam-se:uma língua sem vínculos conhecidos,o pro-to-hitita; três línguas do grupo indo-europeu- o nesita ou hitita, o pa-laico e o luvita; além destas, uma língua originária ao que parece doCáucaso, o hurrita, chegara pela rota da Alta Mesopotâmia e do norteda Slria; por fim, além dos asslrios,outros grupos de Hpguasemltica seinstalaram também: os amoritas primeiro, mais tarde os arameus.Grandes movimentos de povos agitariam todo o Oriente Próximo porvolta de 1200-1100, afetando igualmente a Ásia Menor, onde viriama instalar-se novos grupos que falavam línguas indo-européias:os lí-dios, os frígios, na costa oeste os gregos.

Nesta região geográfica e culturalmente.complexae fragmentadaé que emergiu aos poucos, partindo da Anatólia central, o chamadoAntigo Império Hitita. Este só começou de fato a aparecerà luz da his-tória por volta de 1650,quando o rei Hattushilish I destruiu a cidade sí-ria de Alalakh. Outro soberano tomou e saqueou a famosa cidade deBabilônia, na Baixa Mesopotâmia, em 1595,sem que tivesse ocorridoentão uma instalação durável dos hititas naquela longínqua região. Averdade é que o reino hitita enfrentava dificuldades internasconsiderá-veis e devia defrontar-se com numerosos adversários na própria ÁsiaMenor, pelo qual foram fugazes as primeiras tentativas de expediçõesa palses distantes. Depois de várias décadas obscuras, marcadas porlutas dinásticas em que monarquia e aristocracia se enfrentaram edois reis foram assassinados, o rei Telepinush, que chegou ao tronopor volta de 1525, tratou de estabelecer regras precisas para a suces-são dinástica (coisa que conseguiu duravelmente) e de consolidar amonarquia e seu poder efetivo (no que teve menos sucesso).

O texto da proclamação de Telepinush nos permite entrever umanobreza turbulenta e poderosa. Uma assembléia chamada pankush émencionada no documento, a qual desapareceriaposteriormente. Go-zava, ao que parece de poderes judiciários mesmo em relação ao pr(rprio monarca. À falta de dados adicionais, os historiadores não se pu-seram de acordo a respeito. Uns vêem no pankush um órgão tradi-

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cional, que talvez primitivamente elegesse o rei e limitasse o seu p0-der, composto por todo o povo segundo alguns (seria uma "assembléiageral dos homens livres"), ou somente pelos "guerreiros e servidoresdo rei" - portanto, por uma aristocracia militar e de corte -, segundooutros. Há autores, porém, que crêem ser o pankush uma criação deTelepinush, e salientam o seu caráter passivo, com exceção talvez desuas funções de justiça: no mais, a assembléia era unicamente infor-mada daquilo que o rei já decidira.

Após Telepinush, um perlodo pouco iluminado pelas fontes, emque os hititas combateram longamente os hurritas, em especial oemergente reino do Mitanni (Alta Mesopotâmia e norte da Slria), échamado às vezes de Médio Império Hitita.

A MONARQUIA HITITA NOPERíODO DA EXPANSÃO IMPERIAL

O Novo Império Hitita pode ter tido início por volta de meados doséculo XV; mas a verdadeira expansão imperial se deu com o reinadode Shuppiluliumash I (aproximadamente 1380-1346). Foi a partir daique o reino hitita, até então um pequeno Estado cercado de inimigos,transformou-se em núcleo de um vasto império governadoa partir desua capital, Hattusha (atual Boghazkõy). Não nos interessa, aqui, se-guir o longo e complicado jogo de guerras e manobras diplomáticasatravés do qual, além de consolidar sua posição na Ásia Menor, Shup-piluliumash dominou o enfraquecido reino .do Mitanni e avançouna SI-ria-Palestina, de fato quase abandonada pelos egípcios (que ali ha-viam formado um império em meados do segundo milênio) durante atentativa de reforma religiosa do faraó Akhenaten (1353-1335).Que-remos, isto sim, dar uma idéia da organizaçãodo Estado hitita em seuapogeu,e das característicase funções do rei.

Mesmo sob Shuppiluliumash e os outros grandes soberanos im-periais, a Ásia Menor não se unificou politicamente. O reino hitita c0e-xistia, ali, com outros reinos, a ele subordinados mas gozando de con-siderável autonomia interna, o Kizzuwatna hurrita a sudoeste e o Ar-zawa luvita a oeste; e com povos não-estatais,como os kashka ao nor-te e os asi e kayasa a leste. O império hitita, dentro e fora da ÁsiaMenor, era um Estado federal. Tratados e juramentos solenes, além decasamentos dinásticos, alternavam-se com guerras punitivas paramanter o fluxo dos tributos e o envio de tropas auxiliares. Em certas

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cidades estrategicamente situadas - como Alepo e Karkemish,na Sí-ria setentrional -, o monarca hitita instalava como reis parentes seus,com eles estabelecendo tratados de aliança. No interior do reino hititapropriamente dito, porém, e nas províncias externas menos importan-tes, a centralização era de regra. Os govemadoreseram nomeados eretirados à vJntade pelo rei hitita, embora concentrassemmuitos pode-res: cobrar,ça de impostos, organizaçãodas corvéias para as obras pú-blicas, collando militar, funções de superintendênciados cultos, admi-nistração e justiça. O exército tinha como núcleo principal os comba-tentesenI carrosde guerraspuxadosporcavalos,guerreirosquerece-biam terras públicas em usufruto.

Para além das fronteiras do império, o rei hitita mantinha ativadiplomacia, trocando cartas e presentes com seus "in11ãos"do Egito eda Mesopotâmia.Na épocados reis egípciosda XIX!! dinastia,sobofaraó Ramsés 11(1290-1224)do Egito e sob os reis hititas que reina-ram entre 1306 e 1250 aproximadamente - Muwatallish, Murshilish 11Ie Hattushi'Ish 111-, travou-se um grande duelo egípcio-hitita pelocontrole dei Síria-Palestina. Em 1286 deu-se a batalha principal emKadesh, jlmto ao rir Orontes. Embora os hititas pretendessemter obti-do naquela ocasiãc uma grande vitória - e sem dúvida recuperaramterritórios perdidos ,nteriormente para os egípcios -, a pressãoassíriaforçou-os à conclusão de um tratado de limites, ajuda mútua e não-agressão com o Egito (1270), seguido mais tarde (1257) por umaaliança matrimonial, casando-se Ramsés 11com uma filha de Hattushi-lish 111.Poucas décadas depois, o poderio hitita se desvaneceriasob osgolpes concomitantes dos migrantes chamados "povos do mar", a par-tir do oeste, e dos assírios, do leste. A cultura hitita se manteria ainda,porém, por vários séculos, em cidades-Estados da Síria como, porexemplo, Karkemish.

A monarquia hitita do período imperial é muito diferente da queentrevemos em documentos mais antigos, como o de Telepinush. Ossoberanos vitoriosos adotaram o Sol alado como emblema - por in-fluência tanto egípcia quanto babilônica - e referiam-se a si mesmoscom a expressão"meu Sol". O rei era acima de tudo sumo sacerdote esupremo general; desempenhava ainda as funções de legisladore juizde última instância. Em contraste com o Egito e a Mesopotâmia, asinscrições reais hititas não salientavam o papel do monarca comoconstrutor, ou as suas proezas como caçador e atleta. A rainha tinhauma posição própria no Estado e na religião, e uma sucessão separa-da (ou seja, só ao morrer a rainha anterior a esposa do soberanoatualse tornava rainha). Ela recebia cartas e intervinha na diplomacia para-lelamente ao rei.

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UMA RELIGIÃO COMPLEXA

A complexidade da religião hitita provém,primeiramente,do cará-ter federal do império e do povoamentocompósito da Ásia Menor, quealém do mais sofreu profunda influência religiosa da Mes~potâmia.EmHattusha, a capital, numerosostemplos reuniam as imagens de muitosdeuses de diversas partes da Ásia Menor e da Síria, trazidas pelosmonarcas vitoriosos de suas campanhas. Uma atitude conservadoraem matéria de cultos fazia com que o serviço dos deuses fosse manti-do estritamente na fOn11atradicional, mesmo quando isto obrigasse aouso de línguas mortas e outros arcaísmos. Não se favorecia o sincre-tismo, predominando a simples justaposição de deuses e cultos. Estaera, no entanto, sobretudo a posição sacerdotal:'na religião da corte épossível que se tenha tentado dar uma coerência maior ao mundo di-vino. É assim que, na decoração do santuário rupestre de Yazilikaya,perto da capital, ligado à religião da dinastia imperial (que pareceter sido de origem hurrita), os relevos cortados na pedra mostramuma tentativa de hierarquização,reservandoos lugares centrais às di-vindades preferidas pelos monarcas, o deus da tempestade (que co-nhecia muitos nomes em outras tantas línguas e numerosas varianteslocais) e a deusa solar Wurusemuda cidade sagrada de Arinna, com

.seus associados.Em todo o Oriente Próximo antigo, o fOn11alismo,o ritualismo e o

medo da impureza e da ofensa aos deuses eram tendências religiosasde peso. Entre os hititas, elas atingiram o seu auge. Tinha-se uma vi-são pessimista da natureza humana: os homens são pecadores.Note-se que a noção de pecado não era interior, ligada às intenções, e simexterior, vinculada a ações (negligência na celebração de cerimônias,quebrar proibições rituais e tornar-se impuro, desrespeitar regras doconvívio social - regrasque eram consideradasde origemdivina-,etc.). Eis aqui, a respeito, uma passagem da oração de Murshilish 11(século XIV) para terminar com a peste que assolavao país:

Deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor, e vós, deuses,meus ~enhores. Assim acontece: peca-se. Meu pai pecou e transgrediu apalavra do deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor. Mas eunão pequei de modo algum. Mas assim acontece: o pecado do pai cai so-bre o filho. Assim, o pecado de meu pai caiu sobre mim. Agora eu con-fessei ante o deus da tempestade do pais dos hititas, meu senhor, ediante dos deuses, meus senhores: É verdade, nós o fizemos. E postoque confessei o pecado de meu pai, que a alma do deus da tempestade

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do país dos hititas, meu senhor, e a dos deuses, meus senhores, seaquiete. Apiedai-vos de mim e apartai a peste do país dos hititas! Nãopermitais que morram os poucos que ainda continuam fazendo oferendasde pão grosso e libações! (Bernabé).

o descontentamento divino era visto como causa de todos osmales. No mito de Telepinush, filho do deus supremo da tempestade edivindade da vegetação, a sua ira e sua conseqüentepartida do paíshitita tiveram terríveis conseqüências:

A vegetação secou, as árvores secaram e já não deram brotos. As pas-tagens secaram, as correntezas secaram. A faltade alimentossurgiunaterra, de modoque o homeme os deuses morriamde fome(...)

Ele se entureceu ainda mais. Ele fez cessar os riachos murmurantes,desviou os rios que fluíame os fez transbordar sobre suas margens. Elebloqueouos poços de argila [para fabricação de tijolos),estilhaçou as ja-nelas e as casas.

Ele fez com que os homens perecessem, ele fez com que as ovelhas e ogado perecessem (no)(Pritchard).

Para pacificar o deus, para que ele voltasse ao convívio das de-mais divindades e dos fiéis, uma vez descobertaa razão de sua ira, foipreciso orar, fazer-lhe oferendas e sacrifíciose efetuar um ritual de pu-rificação. Só então as coisas retomaram à normalidade.

Assim sendo, tomava-se essencial tentar conhecer a vontade eas intenções dos deuses caprichosos,averiguarse estavam ofendidos,e por quê. Daí que os sacerdotes praticassem diversas formas de adi-vinhação e o exame de signos e portentos: incubação (dormir em san-tuários, esperando receber avisos divinos nos sonhos), profecia inspi-rada,.exame do vôo dospássaros, exame do fígado das vítimas sacrifi-cadas aos deuses.

A negligência dos fiéis para com os deuses, os seus pecados, asua impureza, tais seriam as causas principais da ira divina e,por con-seguinte, das desgraças humanas. Estas também podiam decorrer deatos de feitiçaria. Para remédio dos males, o ritual e a magia eram osrecursosdisponíveis. '

Ao se dirigir aos deuses era preciso, antes de mais nada, atraí-los, trazendo-os de volta ao país caso estivessem vagando por outrasterras. Havia, para isto, um ritual especial de invocação,que incluía es-tas palavras:

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Voltai as costas ao país inimigo e às pessoas malvadas; voltai vossosolhos para o rei e a rainha! Eles vos darão oferendas sagradas. Portanto,vinde aqui favoravelmente e recebei vossas oferendas com ambas asmãos! (...) Saí do país inimigo e da perversa impureza!

Vinde à bendita, santa, boa e magnífica terra hitita! Trazei convosco vi-da, boa saúde, longos anos, poder de procriação, filhos e filhas, netose bisnetos, o amor divino, a bondade divina, a coragem e a obediência!Retirai do rei e da rainha as suas mil imperfeições! Olhai com favor o reie a rainha!

Voltai a vossos excelentes e magníficos santuários! Sentai-vos outra vezem vossos tronos e cadeiras! Sentai-vos de novo em,vossos santos, ex-celentes e magníficos tronos! (Pritchard).

Sabemos que os santuários hititas podiam possuir terras, reba-nhos.e trabalhadoresdependentes.Nada indica,porém,que existis-sem vigorosos sistemas econômico-administrativostemplários, compa-ráveis aos do Egito'e da Me'sopotâmia.

A REALEZA E OS DEUSES

o rei hitita era, acima de tudo, um sumo sacerdote,divinizado aomorrer. Mediador por excelência entre os homens e o mundo divino,era sempre representadonos monumentos em vestes sacerdotais.Via-se submetido a rigorosa etiqueta, a regras de comportamento estritas,

Figura 4: COMBA TE CONTRA A SERPENTE ILUJANKA: Neste baixo-relevo da localidade deMaldija, o deus da tempestade e seu filho - representando as forças da fertilidade e da chuva~ combatem uma serpente gigantesca que simboliza a esterilidade, a aridez. Na Festa do AnoNovo, o rei hitita participava de uma encenação do mito, segundo se crfJ.FONTE: Delaporte, Louis. Les hittites. Paris, La Renaissance du Livre, 1936, p. 250.

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destinadas a evitar-lhe a impureza ritual - que contaminaria o país in-teiro, com conseqüênciasterríveis -, e passavaboa parte do tempo vi-sitando os santuários de diversas cidades para presidir os numerososfestivais sagrados. Há casos mencionados nas fontes em que a obri-gação de chefiar em pessoa alguma cerimônia religiosa importanteforçou o monarca a ausentar-se do mando das tropas. Faziam-se ima-gens dos reis mortos, que recebiam culto e sacrifícios.Também a rai-nha tinha funções religiosas copiosas e bem definidas.

É curioso notar que, em um mito sobre a realezaceleste, os hiti-tas transferiram para o mundo dos deuses a luta pela supremacia tãocomum no passado da monarquia hitita: cada deus supremo teve devencer em combate o seu antecessor antes de suplantá-Io.

Desde os documentos mais antigos, o rei sempre declarava agirem nome e sob a tutela das divindades. O nebuloso príncipe Anitta(século XVIII), que precedeu mesmo a formação do Antigo Império,considerava-se "amado pelo deus da tempestade do céu", cujo temploergueu - bem como outros santuários, que enumera num texto, alémde especificar o sacrifíciode enorme quantidade de animais selvagens,num único dia, aos deuses de sua capital, Nesha. Shuppiluliumash I,em suas inscrições, apresentava-secomo "o favorito do deus da tem-pestade"; algumas das cidades capturadas em suas batalhas forampresenteadas aos deuses. No período imperial, os reis legislaram de-talhadamente: para que o pessoal do palácio real não infringisse,comsuas ações, a pureza ritual da pessoado monarca;para que o pessoaldos templos fosse diligente, limpo e reverente;para que os comandan-tes das guarnições fronteiriças garantissem, mesmo nas zonas distan-tes, o bom andamento dos cultos. Eis aqui uma das recomendaçõesaos comandantes, incríveisno grau de detalhe a que descem:

Outrossim, dever-se-á mostrar a devida reverência aos deuses, mas ao

deus da tempestade mostrar-se-á especial reverência. Se algum templotiver um telhado com goteira, o comandante dos guardas de fronteira e ocomandante da cidade o consertarão. Se qualquer vaso ritual do deus datempestade ou qualquer implemento de qualquer deus estiver em mauestado, os sacerdotes, os ungidos e as mães-do-deus [sacerdotisas] osrestaurarão (Pritchard).

Quando uma desgraça afetava o país hitita - como por exemploa peste que o assolou intermitentemente porvárias décadas,desde ascampanhas militares de Shuppiluliumash I -, era responsabilidadeso-bretudo do rei e da rainha interceder junto aos deuses para que ces-sasse a calamidade, prometendo-Ihes sacrifícios, expiações e o cum-

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primento rigoroso dos ritos e dos festivais religiosos. Uma das petiçõesera, nestas ocasiões, que a divindade desviasse para os inimigos doshititas a calamidade em questão! Eis aqui, por exemplo, uma passa-gem de uma das oraçõesde Murshilish " (século XIV) à deusa solar deArinna:

Quanto aos países inimigos que cobiçam e tentam continuamente arre-batar-te os jarros, as taças, os utensnios de prata e ouro, e que tentamdevastar os teus campos, jardins, árvores, e tentam arrebatar-te lavrado-res, jardineiros e moendeiras, agora, 6 deusa solar de Arinna, minha se-nhora, envia a febre maligna, a peste e a falta de alimento a estes paísesinimigos! (...)E a Murshilish e ao país dos hititas, devolve-Ihes a felicidade. E ao rei e

ao país dos hititas, assegura-Ihes a vida, a saúde, a virilidade, a alegriafutura e longos anos. (...) Assegura a f14ura abundância do grão, do vi-nho, (...) das vacas, das cabras, das ovelhas, dos cavalos (...) (Bernabé).

II

j

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DASA O

4TRIBOS DE

REINO DEIAHWEH

ISRAEL

A FORMAÇÃO DO POVO D.EISRAEL

A tradição acerca dos antepassados do povo de Israel, reunidas. na Bíblia,referem-se,noscapítulos12a 50 do livrode Gênesis,a che-fes de famílias extensas:os patriarcas.Os mais antigos dentre eles te-riam vindo para a Palestina do norte da Mesopotâmia (Harran), sendoprovenientes, ainda antes, da velha cidade de Ur, na Baixa Mesopotâ-mia. Chegados à Palestina, vagaram, como seminômadesvivendo emtendas, entre as cadeias centrais de montanhas e o sul, até o Negebe mesmo até o Egito, movendo-se a leste do rio Jordão. Não fre-qüentavam o norte palestino, o vale do Jordão, a planície de Esdre-lon e (salvo bem ao sul) a planície costeira. Ou seja, evitavam asconcentrações demográficas maiores e as cidades, mas também osdesertos, freqüentando regiões relativamente pouco povoadas masprovidas de pastagens. Sua economia era sobretudo baseada na cria-ção de gado menor - ovelhas, cabras -, e viajavam com burros decarga: a referência ocasional a camelos não passa de um claro ana-cronismo. Raramente eram agricultores, mas compravam terras paraenterrar os seus mortos.

Alguns dados levam certos autores a fixar o início da época aque se referem tais relatos por volta de 1800, fase em que o Negebestava intensamente ocupado, sendo abandonado depois; período,

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também, em que as cidades mencionadas no Gênesis - Siquém,Dothan, Betel, Jerusalém - estão comprovadas arqueologicamente,na Época Média do Bronze.

Até que ponto é possível acreditar nesses relatos bíblicos?Deveser recordadoque nenhum dos textos da Bíblia se fixou por escrito an-tes do século X ou mesmo IX: as narrativas, na forma em que as te-mos, são em muitos séculos posteriores àquilo que pretendem relatar.No entanto, vimos que a arqueologia traz algumas comprovaçõeses-pecíficas. Outrossim, fontes escritas do segundo milênio, provenientesde diversos povos e regiões do Oriente Próximo, comprovam a histori-cidade de numerosos costumes que constam no Gênesis e mostramtambém a origem mesopotâmica de certos mitos incluídos no livro,como por exemplo o do dilúvio "universal". Podemos acreditar, então,no modo de vida descrito e no quadro institucional que transparecenotexto: mas deve ficar claro que nenhum dos patriarcas - Abraão, Isaac,Jacó, etc. - está mencionadoem qualquer outro documento que não olivro de Gênesis.

Em época tão remota, ainda não existia na Palestina um "povode Israel", e sim, tribos diversas que posteriormente os israelitas reco-nheceram entre seus antepassados.A tradição posterior aceitava o pa-rentesco dos israelitas com os semitas amoritas e arameus.

Uma firme tradição se referia ao fato de terem sido os filhos de Is-rael obrigadosa trabalhos forçadosno Egito, construindocidades;e que,chefiados pelo líder carismático MOisés,saíram daquele país, vagarampelo deserto por algumas décadas e por fim, já sob outros líderes,Conquistarama Palestina, terra que Ihes fora prometida pela divindadeque os escolherae se aliara a eles, lahweh, o 'inspiradorde Moisés.

As indicações da Bíblia a respeito da cronologia do "cativeirono Egito" e da saída de lá - o Êxodo - são contraditórias. Segundouma delas (Êxodo, 12:40), Israel teria permanecido no Egito durante430 anos; mas Êxodo,6:14-25 só menciona quatro gerações para talpermanência. Segundo outra indicação (1 Reis, 6:1), o rei Salomão te-ria construídoo templo de Jerusalém 480 anos depois da saída do Egi-to: o cálculo a partir da construção do santuário de lahweh colocaria oÊxodo em plena XVIII~dinastia egípcia, e há razões que se opõem aisto. Por outro lado, numa esteIa de pedra do faraó Memeptah,em seuquinto ano de reinado (aproximadamente 1219 a.C), Israel já é men-cionado como um povo instalado na Palestina e vencido pelo monarcaegípcio. Uma das cidades citadas na Bíblia como aquelas em cujaconstrução prestaram serviço forçado os israelitas pode ser identifica-da com Per-Ramsés, capital construída pelo pai de Memeptah, Ram-sés 11(1290-1224).

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A tendência predominante hoje em dia é datar de Ramsés 11aopressão de Israel - de fato, somente de uma porção do que viria aconstituir o povo israelita - no Egito. Ao contrário do que reza a tradi-ção bíblica, a permanênciaem território egípcio, nos séculos XIV e XIII,parece ter sido bastante curta. A arqueologia comprovaa destruição decidades da Palestina no final do século XIII (Betel, Láquis, Eglon, Ha-zor, etc.), sendo nelas a cultura urbana anterior substituída por outramais rude, como se nota na cerâmica: isto parece marcar o início daconquista da Palestina. Assim, o Êxodo se teria dado sob Ramsés 11ou sob o próprio Merneptah.

A partir daí é que podemos afirmar com alguma convicção tersurgido a religião de lahweh (em português às vezes chamado Jeová),o javismo. Nas fases anteriores, não haviã na verdade uma entidadeque pudesse ser chamada de Israel, inexistindo qualquer provado cul-to javista na era dos patriarcas.

A chegada à Palestina de grupos vindos do Egito e que, prova-velmente em mistura com outros, resultariam nos israelitas históricos,ocorreu num momento muito especial da História do Oriente Próximo,o da transição à Época do Ferro. Foi uma fase de vazio de poder naSíria-Palestina,com a progressiva retração do império egípcio e a des-truição do império hitita, numa época de grandes migrações dos "po-vos do mar'. Os assírios, num dado momento, sob Tiglatfalasar I(1115-1077),pareceram querer preencher tal vazio: suas tropas avan-çaram até o Mediterrâneo; mas a pressão sobre a própria Assíria dos

. arameuslogointerrompeuo expansionismoassírio,quetardariaalguns$éculos a reaparecer. Esta situação, como explicáramos no primeirocapítulo, permitiu, durante algumas centenas de anos, o florescimentode diversos Estados de pequeno e médio porte: as cidades-Estadoscosteiras ou próximas à costa dos filisteus (um dos "povos do mar') edos.fenícios, os reinos arameus da Síria (em especial o de Damasco),. .diversos reinos dos cananeus ou canaanitas (povo semita da Palesti-na) e, em fins do século XI, o reino de Israel.

No entanto, o povo israelita em formação, na fase de sua con-quista - parcial - da Palestina, entre fins do século XIII e fins do sé-culo XI, não constituía um Estado. Suas tribos, cujo número tradicionalé limitado um tanto arbitrariamente a doze, formavam, desde o séculoXII, uma frouxa liga. Cada uma das tribos pareceter-se formado a par-tir de elementos heterogêneos: seminômades e sedentários; gruposvindos do Egito e outros já anteriormente assentadosna Palestina. Asguerras de conquista e outros conflitos devem ter ajudado a formar amencionada liga ou confederação tribal, que não tinha capital, funcio-ilários ou exército permanente. Representantes das tribos reuniam-se

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em santuários como Gilgal ou Silo para consultar a divindade, lahweh,por ocasião de certas festas anuais. Em épocasde grande perigo, sur-giram líderes carismáticos chamados "juízes" (shofet), que em algunscasos alegavam uma inspiração divina. Em cada tribo, a justiça eraadministrada pelos anciãos. Os juízes tinham uma autoridade maior, eàs vezes chamavam a combater diversas tribos ao mesmo tempo.Eram, entretanto, heróis locais ou regionais cuja autoridade não foiglobal, permanente, absoluta ou transmissível. Estes juízes - Débora,Jefté, Sansão, Gedeão e outros - não conduziram à unificação tribal.

A evolução - completada por volta de 1020 - em direção a umverdadeiro Estado deve ter ocorrido devido à sedentarização e àcrescente complexidade social, por um lado; por outro, pela ameaçacrescente representada pelos filisteus. Estes, repelidos no Egito,instalaram-se na Palestina, formando uma federação de cidades-Esta-dos, cada uma com seu rei ou tirano - Gaza, Askhelon, Asdod, Ecrone Gat -, nas quais constituíam ur:nabem organizada minoria guerreiraquedominavaa maioriacanaanita. .

O símbolo máximo da liga tribal israelita, a Arca da Aliança, caiupassageiramente nas mãos dos filisteus vitoriosos por volta de 1050.Estes submeteram Israel ao pagamento de tributos. Suas guamiçõesmilitares ocuparam pontos estratégicos da Palestina. Os filisteus re-servaram-se o monopólio da metalurgia, proibindo-a aos israelitas. Osantuário mais importante destes últimos, Silo (sede da Arca), foi des-truído. Como poderiam os israelitas, seminômades ainda tribais emprocesso de sedentarização, vencer rivais fortemente militarizados eapoiados em organizações estatais? A solução foi a formação do reinode Israel. A monarquia já havia ocorrido antes entre os israelitas, massomente num.nível local. Com efeito, ao juiz Gedeão fora oferecida acoroa pela tribo de Manassés,e ele a recusou;seu filho Abimelec acei-tou-a em Siquém, tomando-se rei de uma cidade-Estado.

A MONARQUIA: SAUL, DAVI E SALOMÃO

Samuel foi um vidente de prestígio e, segundo alguns, sucessordos juízes de Israel,numa época que já não contava com um santuárioisraelita central após a destruição de Silo. Este foi um períodode exal~tação religiosa, de profecia extática (ou seja, de pessoas que entravamem transe ou êxtase e davam oráculos ou predições),forma talvez de

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As vitórias militares de Davi levaram à extensão do seu reino,que reuniu em forma direta a maior parte da Palestina, cuja conquistapelos israelitas só então se completou. As cidades dos filisteus não fo-ram todas anexadas, mas tomaram-se tributárias e dependentes, omesmo acontecendo com o reino de Moab e, em forma mais frouxa,com boa parte da Síria. O reino de Amon foi conquistado e Davi as-sumiu a sua coroa. Já o reino de Edom transformou-se em simplesprovíncia. Quanto à Fenícia, estabeleceu-se um tratado com o rei Hi-ram de Tiro, e foi grande o seu ascendente tecnológicoe comercial en-tre os israelitas. Israel era agora um Estado de porte médio. O númerode cananeus sob seu governo aumentou muito.

A Bíblia não informa detalhes sobre as instituições da época deDavi. É evidente, porém, um grande avanço na constituição do apare-lho de Estado em comparação com o reinado de Saul. Davi construiuem Jerusalém um palácio real, sede do poder central. Entre os princi-pais funcionários estavam o supremo comandante militar, o coman-dante dos mercenários (muitos deles cretenses e filisteus), o arautoreal, o secretário real, dois sacerdotessupremos,um diretor da corvéiapara o Estado (exigida dos povos vencidos). Um censo foi ordenado,com o intuito aparente de submeter os próprios israelitas ao paga-

compensar a ameaça ao javismo que representava a perda de umcentro do culto. A Bíblia, neste ponto, fala-nos de videntes que an-dam em grupos:

...profetas que vêm descendo do lugar alto, precedidos de harpas, tambo-rins, flautas, cftaras, e estarão em delírio. (1 Samuel, A Blblia de Jerusa-lém).

Samuel aparece no relato bíblico intimamente vinculado ao pro-cesso de criação da monarquia israelita, já que ungiu com azeite oprimeiro e o segundo dos reis, Saul e Davi, designando-osdeste modocomo os escolhidos de lahweh.

Na época de Saul (datas pouco seguras: 1020-1000?)não houvesenão um esboço de instituições estatais e de exército permanente.Oprimeiro monarca de Israel foi acima de tudo um chefe militar carismá-tico, espécie de novo juiz, mas em escala muito ampliada. De início,colecionou vitórias contra povos inimigos: filisteus, moavitas,amonitas,amalecitas, edomitas. Mas acabou por desentender-secom Samuel ecom os sacerdotes,e morreu derrotadopelos filisteus.

No caso de Saul, a ruptura com a situação institucional anterior àmonarquia foi somente relativa. O mesmo não ocorreucom o segundorei, Davi (aprox. 1000-961). Este se destacara entre os guerreiros deSaul, chegando a tomar-se seu genro; mas depois suas relações sedeterioraram. Davi fugiu com seiscentos fiéis, pondo-sea serviço do reida cidade-Estado filistéia de Gat. Ainda nesta posição foi feito rei deJudá em Hebron, e posteriormente, ao desaparecer Isbaal, um preten-dente ao trono, que era filho de Saul, tomou-se rei de todo Israel:

Então todas as tribos de Israel vieram têr com Davi em Hebron e disse-

ram: Vê! N6s somos dos teus ossos e da tua carne. JA antes, quandoSaul reinava sobre n6s, eras tu que saías e entravas com Israel, e lah-weh te disse: És tu que apascentarAs o meu povo Israel e és tu quem se-rAs chefe de Israel. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, emHebron, e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebron, na presençade lahweh, e eles ungiram Davi como rei em Israel (2 Samuel, 5:1-3).

Tratava-se, na verdade,de uma uniãopessoaldo sul e do nortedo território dos israelitas, situação de certa fragilidade. A capital foitransferida de Hebron para Jerusalém, que Davi tomou ~os jebuseus,não com as tropas das tribos, mas com as suas próprias:ela era a "ci-dade de Davi", possessãopessoal sua. Na aparência,Davi, como Saul,foi um líder carismático ungido por Deus e aclamado pelo povo: mas oseu poder não se assentava na confederaçãotribal.

Figura 5: RECONSTlTUIÇÃO HIPOTÉTICA DO TEMPLO DE JERUSALÉM: Planejado por umarquiteto tenfcio de Tiro, o templo de lahweh era ao mesmo tempo santuário dinástico e étnico.

Ao chamar a si a sua construção, com o beneplácito divino a tal empreendimento garantido porum oráculo, o rei Salomão legitimava religiosamente o seu poder.FONTE: Gómez- Tabanera, José Manuel. Breviario de Historia Antigua. Madri, Ediciones Ist-mo, 1973, p. 374.

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mento de impostos e a uma regularização do recrutamento militar,provocando a indignação dos profetas e outros tradicionalistas. É pos-sível que o território de Judá haja sido já então dividido em distritosadministrativos. Em matéria de justiça, admitia-se o apelo ao rei dassentenças dadas localmente pelos anciãos.

As resistências às mudanças desembocaram em uma grave re-belião chefiada por um dos filhos do rei, Absalão, e em seguida numatentativa da parte norte do reino de separar-se.Ambas as revoltas fo-ram esmagadasmanu militari:

O sucessor de Davi foi seu filho Salomão (aprox. 961-922), es-colhido pelo pai, em vida do qual foi ungido e aclamado. A hereditarie-dade da função monárquica tomara, pois, a dianteira sobre as formastradicionais de designação religiosa e popular de um juiz e líder caris-mático militar: a unção e a aclamação popular foram, desta vez, merasformalidades.

Sem ser um conquistador,Salomão reforçou no entanto as forçasarmadas, especialment~ com carros e cavalos de guerra, e construiufortificações. Depois de uma campanha militar egípcia no sul da Pales-tina, estabeleceu-se uma aliança entre o decadente Egito e o reino deIsrael, casando-se Salomão com uma filha do faraó Siamon. A aliançacomTiro fE)irenovada, e a presença fenícia se fazia sentir mais do quenunca em Israel. O comércio, sob estreito controle real, tomou-se flo-rescente, por mar, com Ofir (talvez a costa da Somália), através de ro-tas de caravanas com a Arábia, o Egito, a Fenícia e Tadmor (Palmira,na Síria). A metalurgia do cobre e do ferro desenvolveram-semuito naPalestina.

As grandes construções do rei - sendo a mais importante o tem-plo de lahweh em Jerusalém, erigido sob direção dos fenícios -, bemcomo o reforço burocrático e das forças armadas, levaram ao endivi-damento do Estado. Para financiar-se,Salomão chegou a ceder territó-rios aos fenícios. Os impostos aumentaram, bem como as corvéias,atingindo agora também os israelitas (discute-se se houve exceção nocaso de Judá, berço da dinastia e objeto de grandes vantagens, porexemplo no tocante à escolha dos funcionários mais importantes). Al-tas funções de Estado vieram juntar-se às já existentes; sendo umadelas a de um "vizir" ou chefe geral da administração, é de se suporque Salomão se ocupava desta em forma menos direta que o pai. Oreino foi dividido em doze distritos administrativos que, apesarde man-terem o número tradicional, na prática rompiam com a tradição tribal,n~o respeitando mesmo, em diversos casos, as fronteiras tradicionais

entre os territórios das tribos. Na nova organização, os canaanitasintegraram-se mais estreitamente ao Estado israelita, o que provocoudescontentamento.

A ruptura completa com a confederaçãotribal, agora anulada,deu-se em circunstâncias históricas adversas para boa parte da popu-lação. A aceleração da sedentarização dissolvia as solidariedades tri-bais numa sociedade mais urbana e mercantil, na qual o abismo entrericos e pobres aumentava. Outrossim, a união das partes norte e suldo reino era precária, e já fora am~açada em vida de Davi. Morto Sa-lomão, a separação consumou-se, formando-se dois Estados de me-díocre extensão e importância - Judá e Israel -, enquanto perdiam-seas provínciasperiféricas.

UMA RELIGIÃO PECULIAR

As religiões vistas até agora, apesar de apresentaremdiferençasentre si, também manifestavam um parentesco indubitável. Eram reli-giões não-reveladas,constituídas a partir de cultos locais, firmementeancoradas na noção da continuidade e homogeneidade (unidade desubstância)entre as esferas do humano, do natural e do divino.

Ora, o javismo foge radicalmente de tal modelo de religião. Ba-seia-se na crença em uma revelação direta, pessoal, de Deus aos ho-mens de uma nação - Israel. Mas a divindade que se revela, emborapessoal, não pode ser representada nem descrita. Ela se manifesta nasua própria existência e em seus atos, mas não tem atributos conheci-dos que possam ser reunidos numa efígie - coisa que, aliás, proíbe emforma expressa. Quando Moisés tenta, indiretamente, perguntaro no-me de Deus - sendo que, no modo de ver oriental, o nome íntimo,"verdadeiro",dá acesso mágico àquilo que designa -, a resposta é:

Disse Deus a Moisés: "Eu sou aquele que é". Disse mais: "Assim dirásaos filhos de Israel: EU SOU me enviou até vós" (Êxodo, 3:14).

Note-se que isto não impede que os textos da Bíblia caiam combastante freqüência na atribuição ingênua e até grosseira de caracte-rísticas humanas a lahweh. Mas deixam também claro que os teólogosisraelitas o viam como entidade radicalmente heterogênea, descontí-nua, em relação aos homens e ao universo que criara. Deus garante afertilidade e a abundância,mas não é um deus da fertilidade; comanda

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os astros e cavalga a tempestade, sem poder ser, em si, na suanatureza, associado a qualquer destas coisas. Uma religião deste tiponecessariamente coíbe o pensamento mitico. O texto bíblico abundaem mitos. Ao contrário do que ocorria no Egito, na Mesopotâmia ouentre os hititas, porém, a natureza não é, no pensamento bíblico,animada e personificada, e portanto também não pode ser explicadapor relatos nos quais intervenham deuses que encamam forças cósmi-cas, num longínquo passado mitico fundador (o que abriria o caminhopara que se pudesse obrigar o universo a se comportar de certos mo-dos desejados, já que o mito informa um conjunto de gestos e pala-vras - o ritual -, bem como determinadas operações mágicas). ODeus de Israel não se associa aos acontecimentos repetitivos e atécerto ponto previsíveis da natureza, mas à história, que ele comandanuma forma em geral inescrutável. Ao contrário das outras civilizaçõesorientais, a israelita era dotada de um firme sentido de finalidade his-tórica, garantido pela crença na providência divina e na aliança com oDeusnacional. .

Note-se que a natureza de nossa documentação só nos permiteacesso detalhado à concepção religiosa sacerdotal.Visões desviantesem relação à mesma existem em grande quantidade no próprio textobiblico, mas só aparecem condenadas,passadas pelo crivo da religiãooficial. O exclusivismo monoteísta do javismo, como os demais aspec-tos dessa religião, evoluiu: houve uma época em que outras divinda-des da Palestina foram consideradas legítimas para seus respectivospovos. Uma das razõesque, ao longo dos séculos,multiplicou entre ospróprios israelitas as infrações ao monoteísmo deve ter sido o caráteraltamente abstrato e intelectual de uma tal concepção.A arqueologiademonstra que as massas popularescultuaram Dagan,o deus do trigo,a deusa Ishtar e outras divindades, em muitas ocasiões. A religião ca-naanita influiu na corte de SalÇJmão.O egiptólogo Donald Redford,analisando as razões do fracasso da reforma religiosa do faraó Akhe-naten, no Egito, que tentou impor, mais do que um verdadeiro mono-teismo solar, um dualismo baseado no deus celeste (simbolizado pelodisco solar) e no deus terrestre seu filho (o rei do Egito), opina que osmitos são um elemento essencial para o sucesso de uma religião. Aoafastá-Ios decididamente do lugar central que, nas outras civilizaçõesorientais, eles tinham na visão de mundo e na integração do humanocom o natural e o divino, o javismo tornou-se, quiçá, uma religião deelite, de ditrcil apreensão para a maioria dos israelitas, mesmo se ad-mitirmos que eles aceitavam a idéia de um Deus supremo e cósmico aque estavam ligados por uma aliança.

. Se no terreno teológico o que chama a atenção na comparaçãodo javismo com outras religiões antigas são as diferenças, no planodo culto há muitas semelhanças. Embora não houvesse imagens delahweh, existia um símbolo tangivel, concreto, de sua aliança com osisraelitas: uma arca, primeiro guardada numa tenda, posteriormentedepositada no templo construido por Salomão. Mesmo antes do tem-plo de Jerusalém, o javismo conheceu santuários: Silo, sede da Arcada Aliança por muito tempo, Gilgal, Siquém, Betel. Desde a época daconfederação tribal, havia sacerdotes hierarquizados e um sumo sa-cerdote que os dirigia. Com o tempo, estabeleceram-se os membrosda tribo de Levi como candidatos naturais ao sacerdócio, mas isto não

era verdade de inicio. Aparentemente houve, no entanto, uma prefe-rência pelos levitas - termo que, por outro lado, adquiriu uma designa-ção funcional, referindo-se a pessoas que se obrigavam a obedecer vo-tos que haviam assumido.

O culto incluía sacritrcios semelhantes aos feitos pelos canaani-tas. Concentrava-se em certo número de festas anuais:

Três vezes ao ano me celebrarás festa. Guardarás a festa dos Ázimos.Durante sete dias comerás ázimos, como te ordenei, no tempo marcadodo mês de Abib, porque foi nesse mês que saíste do Egito. Ninguémcompareça de mãos vazias perante mim. Guardarás a festa da Messe,das primícias dos teus trabalhos de semeaduranos campos, e a festa daColheita, no fim do ano, quando recolheres dos campos o fruto dos teustrabalhos. Três vezes no ano, toda a populaçãomasculina compareceráperanteo Senhor lahweh (Êxodo, 23:14).

RELIGIÃO E PODER

No centro das concepções político-religiosas israelitas estavamas noções de escolha e aliança: o povo de Israel fora escolhido porlahweh, que com ele pactuara uma aliança:

Pois tu és um povo consagrado a lahweh teu Deus; foi a ti que lahwehteu Deus escolheu para que pertencesses a ele como seu povo pró-prio, dentre todos os povos que existem sobre a face da terra (Deutero-nômio, 7:6).

Moisés convocou todo Israel e disse: "Ouve, ó Israel, os estatutos e asnormas que hoje proclamo aos vossos ouvidos~Vós os aprendereis ecuidareis de pô-Ios em prática. lahweh nosso Deus concluiu conosco

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uma Aliança no Horeb. lahweh não concluiu esta Aliança com nos-sos pais, mas conosco, nós que estamos hoje aqui, todos vivos. lahwehfalou convosco face a face, do meio do fogo, sobre a montanha" (Deute-ronômio, 5:1-4).

sacerdotais (1 Samuel, 13:7-15). A disputa se acirrou em função doapoio dos líderes relig-iososa Davi contra Saul, chegando ao massacrede oitenta e cinco homensdas famílias sacerdotaisde Silo que, após aqueda daquele santuário em mãos dos filisteus, estavam refugiadosna cidade de Nob - cuja população e mesmo o gado foram passadospelo fio da espada por ordem do rei. O único sacerdote que escapounaquela ocasião - Abiatar -, fiel a Davi, foi mais tarde sumo sacerdote(1 Samuel, 22:9-23).

Davi organizou melhor suas relações com a religião tradicional,mas em seus próprios termos. Os dois sacerdotes supremos forammembros de seu conselho privado, tratados como ministros de Estado.O monarca transladou a Arca-da Aliança à sua cidade de Jerusalém,instalando-a numa luxuosa tenda, mais tarde substituída pelo templode seu filho Salo"mão.Na festa da instalação da arca, agiu ele mesmocomo sacerdote: dançou envergando vestimenta sacerdotal, ofereceuholocaustos e sacrifícios de comunhão, abençoou o povo (2 Samuel,6:14, 17).

A designação do próprio Davi seguiu as formas tradicionais, em-bora ocorresse em três etapas (ungido por Samuel privadamente, foieleito e aclamado primeiro por Judá, mais tarde pela parte norte doreino). Já Salomão subiu ao trono sobretudoatravés de uma sucessãodinástica, hereditária, só a posteriori consagrada, na maneira tradicio-nal, em cerimônias puramente formais. Para que isto fosse possível,foi necessário desenvolver a teoria político-religiosa de uma novaaliança: lahweh se ligava, agora, a Jerusalém e à casa de Davi. O tex-to que melhor expressa esta noção (que teve mais sucesso no sul doreino, fiel à dinastia nascente; do que no norte, que se manteve fiel àconcepção anterior do poder) é a parte final de um oráculo em quelahweh ordena que o vidente Natã diga o seguinte a Davi:

A aliança era, portanto, considerada histórica, conhecendo-seolugar e a data de seu início: no Horeb (Sinai), durante os anos em queIsrael esteve no deserto após sair do Egito. Ela implicava a aceitaçãoda legislação sagrada que consta dos livros bíblicos, não somente dofamoso decálogo ou "dez mandamentos" (Êxodo, 20:2,-17 Deuteronô-mio, 5:6-21),mas de todas as leis sagradas(que, na realidade,não sãotodas da mesma época). A contrapartida é a promessa da posse deCanaã, a Palestina ou "terra prometida", e uma espécie de otimismohistórico garantiqo ao povo eleito - sempre que se conformar aos ter-mos da aliança divina.

Com base nessa aliança é que se formalizou, em Siquém, a con-federação das doze tribos, na fase de conquista da Palestina (Josué,24, pp. 255-256).Em teoria pelo menos, o regime pOlíticoque decorreda aliança é a teocracia: o verdadeiro soberano aceito por Israel é oseu Deus, cujo trono é a Arca da Aliança. Em seu nome é que os juí-zes exigiam a mobilização militar das tribos, e que as autoridades reli-giosas pediam o tributo (o fiel não devia, como vimos numa das pas-sagens citadas, comparecer de mãos vazias ante seu Deus). Os líde-res carismáticos do povo, juízes e generais ao mesmo tempo, deviamter sanção divina e humana (eleição, aclamação).

Uma tal concepção opôs considerável dificuldade "à monarquianascente. A diversidade ou ambigüidade das reaçõesà realeza foi pre-servada, na Bíblia, em duas versões bastante diferentes de como Saulchegou a ser rei. Numa delas, os anciãos de Israel solicitaram a Sa-muel que constituísse um rei, como acontecia nas outras nações. lah-weh ordenou que o profeta atendesse ao pedido do povo, declarando,entretanto, que tal pedido constituía uma rejeição do reinado de Deussobre Israel. Instado pela divindade, Samuel explicou então ao povo osmales da realeza, sua opressão, seu peso fiscal. O povo manteve asua exigência, e Deus mandou que Samuel entronizasse um rei (1Samuel, 8:1-22). Na outra versão, mais favorável à instituição monár-quica, Saul foi primeiro ungido rei por Samuel em Rama, privadamen-te, e só depois eleito pelo povo num sorteio e posteriormenteaclama-do em Gilgal, após uma vitória (1 Samuel, 9:1 até 11:15).

Como era talvez previsível, a legitimidade tradicional, representa-da por SamueJe pelos sacerdotes, fogo se chocou com a nova ordempolítica. Saul foi censurado por Samuel por usurpar as funções

E quando os teus dias estiverem completos e vieres a dormir com teuspais, então farei permanecer a tua linhagem, gerada das tuas entranhas efirmarei a sua realeza. Será ele que construirá uma casa para o meu No-me, e estabelecerei para sempre o seu trono. Eu serei para ele um pai eele será para mim um filho: se ele fizer o mal, castigá-Io-ei com vara dehomem e com açoites de homens. Mas a minha proteção não se afastarádele, como a tirei de Saul, que afastei de diante de ti. A tua casa e a tuarealeza subsistirão para sempre diante de mim, e o teu trono se estabele-cerá para sempre (2 Samuel, 7:12-16).

Quando Deus declara que o rei será seu filho, trata-se da noçãode uma adoção do rei, em sua entronização,pelo Deus de Israel.Nota-se, também, que a aliança especial com a casa de Davi não exclui o

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eventual castigo do rei que cafsse em erro (sendo o monarca também,e freqüentemente, censurado pelos profetas de lahweh). Adotado porDeus, que lhe concede a vitória militar, o rei é, entretanto, o servidorde lahweh, verdadeirosoberanode Israel:

Vou proclamar o decretó de lahweh:

Ele me disse: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei.Pede, e eu te darei as nações como herança, os confins da terra comopropriedade.Tu as quebrarás com um cetro de ferro, como um vaso de oleiro as des-pedaçarás.

E agora, 6 reis, sede prudentes, deixai-vos corrigir, jufzes da terra.Servi a lahweh com temor, beijai seus pés com tremor para que nãose irrite e pereçais no caminho, pois sua ira se acende depressa"(Salmos, 2:7-12).

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c à oo cN L u sf

Em sua longa inscrição da rocha de Behistun, Dario I (521-486),soberano persa que foi um dos fundadores do maior império que oOriente Próximo conheceu antes de Alexandre, o Grande, apresenta asua linhagem familiar e as suas vitórias contra usurpadorese revolto-sos. Deixa claro, a cada momento, ser rei por graça do deus supremo,Ahuramazda. Na coluna 4 da inscrição Iê-seem uma das linhas:

Assim diz Dario, o rei: foi por isto que Ahuramazda me trouxe ajuda, e to-dos os outros deuses que existem, .porque eu não era mau, nem ummentiroso, nem um tirano: nem eu, nem qualquer outro de minha linha-gem. Eu governei de acordo com o que é certo (...) (Extrafdo de The an-cient Near East).

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Quase dois milênios depois de Sargão de Akkad, o Grande Reiiraniano afirmava, como aquele o fizera antes, reinar e agir por graça ecom apoio dos deuses. Note-se que também dos deuses que Sargãovenerara, já que os soberanos persas se faziam adotar pelas divinda-des das regiões dominadas, e o velho panteão sumero-acadianoaindaera cultuado na Mesopotâmia sob Dario.

Isto vem comprovar que, ao longo de toda a história do antigoOriente Próximo, polftica e religião andaram de mãos dadas. Forammesmo para as pessoas da época, como explicamos logo de início,dois aspectos inseparáveis de uma só realidade. Soberania celeste emonarquia terrestre se refletiam e se ligavam harmoniosamente,

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ambas necessárias à boa marcha do cosmo - entenda-se: dos munodos divino, natural e humano, que afinal de contas formavam um to-do homogêneo.

Ao ilustrarmos com exemplos esta concepçãotão durável,esbar-ramos numa única exceção, numa única rupturadrástica, representadapela ideologia político-religiosa de Israel. Não que ela negasse ser ne-cessária uma base religiosa à monarquia, mas por sua originalidade nomodo de encarar a questão, sua dificuldade em assimilar a própria ins-tituição monárquica, e sua radical separação entre a divindade e osdemais planos da realidade - único exemplo disto na Antiguidadeoriental. Note-se que o contraste talvez parecessemenor se conhecês-semos a visão da monarquia israelita por ela mesma, isto é, através daideologia de corte.

Há indícios de que, em Israel, o palácio e os sacerdotes não viamas coisas exatamente do mesr:nomodo, mas não temos fontes queesclareçam o lado palacial da questão:

A natureza do culto real e da ideologia da realeza em Israel provocou in-findáveis debates. Nada mais podemos fazer além de simplesmente ex-pressar uma opinião a respeito. Somos impedidos de fazê-Io pelo fato daBíblia não fornecer nenhuma informação direta sobre o assunto, deixan-do-nos fazer deduções por nós mesmos, baseados em passagens isola-das, particularmente dos S<:<1'1'"IOS,a respeito de uma interpretação sobre aqual não há nenhuma unanimidade (~right).

Não podemos descartar a possibilidade de que algum dia os his-toriadores que apresentam o rei de Israel, como os demais reis doOriente Próximo, na qualidade de agente sagradoda fertilidade naturalvenham a provar o seu ponto de vista. Até agora, no entanto, sua ver-são, diante da documentação disponível, é muito improvável,e parecemais sensato aceitar o caso israelita como suigeneris.

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SUGESTÕES D E LEITURA

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Faltando, em português, bibliografia específica suficiente sobrenosso tema, estas sugestões incluem alguns títulos em espanhol.Achamos importante mencionar também dois atlas históricos.

Devido às características da coleção, as citações no texto fo-ram referenciadas resumidamente. A referência completa encontra-senesta seção.

BERNABÉ, Alberto, org. Textos literários hititas. Madri, Editora Nacio-nal, 1979.

BRIGHT, John. História de Israel. Trad. de Euclides C. da Silva. SãoPaulo,EdiçõesPaulinas,1985(3!!ed.). .Boa obra de conjunto, que resume as principais controvérsias his-toriográficas sobre os aspectos políticos e religiosos de Israel, en-tre outros.

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. ''Tudo é História", nQ36.SãoPaulo,Brasiliense,1989 (8!!ed.).Breve introdução à história do Egito faraônico, incluindo as ques-tões do poder e da religião.

DRANE, John W.et alii. Atlas da Bíblia. Trad. de Edwino A. Royer.SãoPaulo, Edições Paulinas, 1987.Atlas pequeno mas muito útil.

FAULKNER, R. O., tradutor. The Ancient Egyptian Pyramid Texts.Warminster,Aris & Phillips, S. d. - fac-símile da edição de 1969.

FRANKFORT,Henri. Reyes y Dioses. Trad. de Belén Garrigues Car-nicer. Madri, Revista de Occidente, 1976.

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Frankfort é um dos mais prestigiosos teóricos do Estado próximo-oriental antigo, e este livro sintetiza as suas idéias acerca doscasos egípcio e mesopotâmico.

. et alii. EI Pensamiento Prefilosófico. 1. Egito yMesopotamia. "Breviarios", n<1"97.México, Fondo de Cultura Eco-nómica, 1974 (3!! reimpressão).Neste volume, John A. Wilson se ocupa do caso egípcio e Thor-kild Jacobsen da Mesopotâmia, com grande atenção às ligaçõesentre política e religião.

GARCíA PELAYO, Manuel. Las Formas Po/íticasen el Antiguo Orien-te. Caracas,Monte Ávila Editores,'1978. .Manual universitáriode bom nível.

GARELLI, Paul e NIKIPROWETZKY,V. O Oriente Próximo Asiático.São Paulo, Pioneira/EDUSP, 1982,2 vols.Cobre toda a parte asiática do Oriente Próximo antes dos persas.Os temas deste nosso livro recebem muita atenção, com inclu-são de debates historiográficos.

HAWKES,Jacquetta. The first great civilizations. Nova lorque, Alfred A.Knopf, 1973.

HOFFMAN, Michael A. Egypt before the Pharaohs. Londres, Routledge& Kegan Paul, 1980.

KRAMER, Samuel Noah. Os Sumérios. Trad. de Salvato T. de Mena-zes. Lisboa, Livraria Bertrand, 1977.Excelente sumário de todos os aspectos da civilização suméria.Ver os capítulos 2 a 4.

McEVEDY, Colin. Atlas da História Antiga. Trad. de Antônio G. Matto-so. São Paulo, Verbo/EDUSP, 1979.Atlas cômodo e provido de textos úteis que completam o enten-dimento dos mapas.

McNEILL, William H. e SEDLAR, Jean W., compiladores.The AncientNear East. Nova lorque/Londres,Oxford University Press, 1968.

MOKHTAR, G., organizador.A Africa Antiga. "História Geral da África",vol. 2. São Paulo, Ática, 1984.Ver o capítulo 2, resumo bem elaborado da história política doEgito faraônico, com ênfase na monarquia.

OPPENHEIM, A. Leo. Ancient Mesopotamia:portrait of a dead civiliza-tion. Chicago, The University of Chicago Press, 1977.

PRITCHARD, James B., compilador.Ancient Near Eastem text relatingto the Old Testament. Princeton, Princeton University Press,1969.

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas, 1981.

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o LEITOR NO CONTEXTO

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Sugerimos algumas atividades que podem ser inspiradas pela lei-tura deste livro - e, espera-se,de parte da curta bibliografia sugerida.

1. Convidamos o leitor a completar o quadro traçado no livro, es-tendendo o tipo de análise aplicado no mesmo aos casos que esco-lhemos - Egito e Mesopotâmia no 111<1milênio a.C., império hitita, reinode Israel antes do cisma - a outros casos e períodos,com ajuda da bi-bliografia. Egito e Mesopotâmia nos últimos dois milênios a.C., os rei-nos de Judá e Israel depois do cisma, a Fenícia, os imperios assírio epersa... .

2. Tema de reflexão: Na sua maior parte, as.monarquias, tantoantigas quanto modernas, apresentam vínculos com a religião. Que di-ferenças podemos constatar nasmodalidades de tais vínculos entre oscasos orientais tratados neste livro e as monarquias modernas,ou se-ja, a partir do Renascimento europeu?

3. Tema de pesquisà: Como se apresentam hoje, no Brasil, asrelações entre política e religião: na Constituição de 1988? na visão dachamada Teologia da Libertação? na opinião dos setores mais conser-vadores da Igreja Católica? segundo grupos de evangélicos que seorientam para a participação política direta e as eleições? Que tipo desubsídios.pode oferecer a história ao debate de questões como estas?

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