Antologia de Contos · 2016. 1. 28. · Ah, sim, que eu não queria parecer vaidosa. Mas não pude...

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Antologia de Contos Programa Instucional de Bolsa de Iniciação à Docência Subprojeto Português/Literaturas 2015

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Antologia de ContosPrograma Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência

Subprojeto Português/Literaturas2015

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ANTOLOGIA DE CONTOSPrograma Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência

Subprojeto Português/Literaturas

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

POLICIAL MISS MARPLE CONTA UMA HISTORIA 11OS CRIMES DA RUA MORGUE 21OS IDOS DE MARÇO 35O ENIGMA DO GALINHEIRO 41O ÚLTIMO CUBA-LIBRE 45SE EU FOSSE SHERLOCK HOLMES 53SHERLOCK HOLMES À BEIRA DA MORTE 59

FANTÁSTICO FLOR, TELEFONE, MOÇA 79SUA EXCELÊNCIA 85

SUSPENSE A SEDE 91A DANÇA DOS OSSOS 93BERENICE 111PASSEIO NOTURNO – parte 1 121

TERROR A CAUSA SECRETA 127CORAÇÃO DELATOR 137CRIANÇAS À VENDA. TRATAR AQUI. 143MORTE NA ESTRADA 151O ELEVADOR 157O FRUTO DA FIGUEIRA VELHA 163O TRAVESSEIRO DE PENAS 171

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O Pibid Português Literaturas confirmou, em 2015, sua proposta de incursão no universo literário, do ponto de vista da formação do leitor. Para dar continuidade a essa proposta, nesse ano, optamos pelo gênero narrativo conto, por se tratar de um texto mais curto, que pudesse ser lido na íntegra na sala de aula, a fim de que a experiência com o texto fosse viabilizada.

Para o primeiro momento foi escolhido o conto policial, por se tratar de uma estrutura similar à das formas simples, tão próximas do leitor por meio principalmente das narrativas da tradição oral, isto é, textos que apresentam basicamente situação inicial, conflito e resolução desse conflito. O intuito dessa opção foi o de facilitar a iniciação literária dos alunos da escola dentro da proposta do projeto, entendendo que os universos de intimidade com a literatura são diferentes e por vezes ainda muito iniciais.

Propusemos aos grupos que os trabalhos fossem iniciados a partir do mesmo conto: “Se eu fosse Sherlock Holmes”, de Medeiros e Albuquerque, a fim de que, em momento posterior a esse da primeira oficina, todos discutis-sem as leituras feitas a partir do mesmo texto e trocassem experiências entre si. Assim foi feito.

Entretanto, depois de ler algumas narrativas policiais, os grupos aca-baram enveredando-se por caminhos indicados pela experiência da leitura compartilhada com os alunos da escola e pelo desejo que estes foram indican-do. Assim, ampliaram-se as fronteiras do gênero conto, e ao policial seguiu-se o fantástico, o de suspense, o de terror.

O percurso dessa viagem em torno do conto está em pleno desenvolvi-mento. Esta antologia reúne textos lidos e trabalhados nas oficinas até o mês de setembro. Indicamos um mergulho sem restrições nesse recorte, construí-do a partir da pesquisa inicial das coordenadoras e amplamente acrescido pelos bolsistas e supervisoras, a partir das experiências vivenciadas com os alunos na escola.

APRESENTAÇÃO

Ana Crelia DiasCoordenadora do subprojeto PIBID – UFRJ - Português/Literaturas

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POLICIAL

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Acho que nunca lhes contei, meus queridos, nem a você, Raymond, e nem a você, Jean, sobre o pequeno caso bastante curioso que aconteceu al-guns anos atrás. Não quero parecer vaidosa, de modo algum. Sei, claro, que comparada a vocês, jovens, não sou nem um pouco inteligente. Raymond es-creve aqueles livros muito modernos, tudo sobre garotos e garotas bastante desagradáveis. E Joan pinta aqueles quadros muito impressionantes de pes-soas quadradas que têm saliências curiosas. Muito inteligente da sua parte, meu querido, mas como Raymond sempre fala (de um jeito muito respeitoso, porque ele é o mais amável dos sobrinhos), eu sou uma antiquada incorrigível. Admiro o Sr. Alma-Tadema e o Sr. FredericLeighton, mas suspeito que para vocês eles pareçam bastante vieuxjeu*. Agora, deixe-me ver, o que eu estava falando? Ah, sim, que eu não queria parecer vaidosa. Mas não pude evitar de me sentir um tantinho satisfeita comigo mesma, porque apenas utilizando um pouco o senso comum, acredito que de fato solucionei um problema que havia confundido mentes mais espertas do que a minha. Embora, sem dúvida, devia ter imaginado que a coisa toda era óbvia desde o começo...

Bem, vou contar-lhes minha historinha, e se acharem que estou tentan-do ser convencida em relação a isso, devem lembrar-se de que pelo menos ajudei um ser humano que estava numa situação muito angustiante.

A primeira vez que soube desse caso foi numa noite, cerca de nove horas, quando Gwen (lembram-se de Gwen, minha criada ruiva?), bem, Gwen apareceu e me disse que o Sr. Petherick e um cavalheiro tinham vindo me ver. Gwen, de modo adequado, tinha acomodado os dois na sala de visitas.

MISS MARPLE CONTA UMA HISTORIAAgatha Christie

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Eu estava sentada na sala de jantar, porque, no início da primavera, acho um desperdício e tanto ter duas lareiras acesas.

Pedi a Gwen para trazer o licor de cereja e umas taças, e passei de-pressa para a sala de visitas. Não sei se vocês se lembram do Sr. Petherick? Morreu há dois anos, mas foi meu amigo durante muito tempo e também tomava conta de toda minha vida burocrática. Um homem muito astuto e um advogado muito inteligente. O filho dele cuida dos meus documentos agora, um rapaz muito bom e muito atualizado, mas de algum modo não tenho a mesma confiança que tinha com o Sr. Petherick.

Expliquei ao Sr. Petherick sobre as lareiras, e ele disse, sem pestanejar, que iria para a sala de jantar junto com seu amigo. E então apresentou-me o amigo, o Sr. Rhodes. Era um homem bastante jovem, não mais que quarenta anos, e eu sabia, desde o início, que havia algo muito errado. O jeito dele era muito peculiar. Diria até que era rude, caso não soubesse que o pobre homem estava sob pressão.

Quando sentamos na sala de jantar e Gwen trouxe o licor de cereja, o Sr. Petherick explicou o motivo da visita.

— Miss Marple — disse —, perdoe um velho amigo por tomar essa liber-dade. Vim aqui para uma consulta.

Não consegui entender o que ele queria, e ele continuou: —No caso de uma doença, uma pessoa tem dois pontos de vista, o

do especialista e o do médico de família. É de praxe considerar o primeiro como o mais correto, mas não tenho certeza se concordo. O especialista tem experiência apenas na sua própria especialidade. O médico de família tem, talvez, menos conhecimento, mas uma vasta experiência.

Sabia bem o que ele queria dizer, porque, não muito antes, uma de minhas jovens sobrinhas tinha corrido para levar o filho a um especialista mui-to indicado para doenças de pele, sem consultar o médico da família, que ela considerava um velho decrépito, e o especialista tinha indicado um tratamento muito caro. E aí mais tarde descobriu-se que tudo que a criança tinha era uma forma pouco comum de sarampo.

Apenas mencionei isso, embora tenha pavor a desviar do assunto, para mostrar que eu entendia o ponto de vista do Sr. Petherick, mas eu continuava sem nenhuma ideia do que ele estava tentando dizer.

— Se o Sr. Rhodes está doente... — disse e parei, porque o pobre homem deu urna risada horrenda.

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Ele falou: — Acho que vou morrer por enforcamento dentro de poucos meses.

Em seguida tudo veio à tona. Havia ocorrido um caso de assassinato recente em Barnchester, uma cidade a cerca de trinta quilômetros de distân-cia. Receio que não dei muita atenção a isso na época, porque havia bastante agitação na vila em função da nossa enfermeira domiciliar, e eventos externos como um terremoto na Índia ou um assassinato em Barnchester, embora, cla-ro, fossem de fato muito mais importantes, foram deixados de lado pelos nos-sos pequenos acontecimentos locais. Receio que as vilas sejam assim. Apesar disso, me lembrava de ter lido sobre uma mulher que havia sido apunhalada num hotel, embora não recordasse o nome dela. Mas, então, parecia que essa mulher era a esposa do Sr. Rhodes, e como não bastasse ele estava sob sus-peita de tê-la assassinado.

Tudo isso foi explicado para mim pelo Sr. Petherick, de modo bastante claro, dizendo que, embora o júri tenha chegado ao veredito de assassina-to por uma ou mais pessoas desconhecidas, o Sr. Rhodes tinha razões pra acreditar na probabilidade de ser preso dentro de poucos dias, e tinha ido ao Sr. Pethericke se colocado nas mãos dele. O Sr. Petherick prosseguiu, dizendo que naquela tarde eles consultaram Sir Malcolm Olde, conselheiro real, e na hipótese de o caso ir a julgamento Sir Malcolm defenderia o Sr. Rhodes.

Sir Malcolm era um homem jovem, disse o Sr. Petherick, tinha métodos muito modernos e havia recomendado certa linha de defesa. Mas essa linha de defesa não deixou o Sr. Petherick satisfeito por completo.

— Veja, minha querida senhora — ele disse —, isso tem a ver com o que eu chamo de o ponto de vista do especialista. Dê a Sir Malcolm um caso e ele verá apenas um aspecto, a linha de defesa mais plausível. Porém, mesmo a melhor linha de defesa pode ignorar por completo o que, para mim, é o ponto crucial. Ela não leva em consideração o que aconteceu de fato.

Em seguida ele continuou dizendo umas coisas muito queridas e lison-jeiras sobre a minha perspicácia, o meu discernimento e o meu conhecimento da natureza humana, e pediu permissão para me contar a história do caso, na esperança de que eu pudesse indicar alguma solução.

Pude perceber que o Sr. Rhodes estava bastante cético quanto a minha ajuda e estava aborrecido por ter sido trazido aqui. No entanto, o Sr. Petherick não se deu conta disso e prosseguiu relatando os fatos que se sucederam na noite de 8 de março.

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O Sr. e a Sra. Rhodes haviam se hospedado no Crown Hotel, em Barnchester. A Sra. Rhodes, que era, talvez, apenas um pouco hipocondría-ca (assim deduzi pela fala cuidadosa do Sr. Petherick), havia ido dormir logo após o jantar. Ela e o marido ocupavam quartos adjacentes com uma porta que os interligava. O Sr. Rhodes, que estava escrevendo um livro sobre ro-chas pré-históricas, acomodou-se para trabalhar no quarto adjacente. Às onze horas da noite ele juntou seus papéis e preparou-se para ir deitar. Além disso, foi só dar uma olhada no quarto da esposa para saber se ela não queria al-guma coisa. Encontrou a luz acesa e a esposa estirada na cama, apunhalada na altura do coração. Ela estava morta há pelo menos uma hora, talvez mais. O que se segue foram os fatos depreendidos. Havia outra porta no quarto da Sra. Rhodes que dava para o corredor. Essa porta estava fechada e trancada por dentro. A única janela do quarto estava fechada com um trinco. De acordo com o Sr. Rhodes, ninguém havia entrado no quarto em que ele estava, exceto uma camareira com as garrafas de água quente. A arma encontrada na ferida foi um estilete, que estava sobre a penteadeira da Sra. Rhodes. Ela tinha o costume de usá-lo para cortar o papel. Não havia impressões digitais nele.

A situação resumia-se a isso: ninguém além do Sr. Rhodes e da cama-reira entraram no quarto da vítima.

Perguntei sobre a camareira. — Essa foi a nossa primeira linha de inves-tigação — respondeu o Sr. Petherick. — Mary Hill é uma nativa. É camareira do Crown há dez anos. Parece não haver razão alguma para que ela cometesse um ataque repentino contra uma hóspede. De todo jeito, ela é muito bobinha, quase idiota. A versão dela nunca mudou. Ela trouxe a garrafa de água quente para a Sra. Rhodes e disse que a hóspede estava sonolenta, quase caindo de sono. Para ser franco, não acredito que ela tenha cometido o crime, e tenho certeza de que nenhum júri acreditaria.

O Sr. Petherick mencionou ainda uns poucos detalhes adicio-nais. No topo da escadaria do Crown Hotel há uma espécie de sale-ta, onde as pessoas sentam para tomar um café de vez em quan-do. Um corredor segue para a direita, e a última porta desse corre dor é a mesma que dá acesso ao quarto ocupado pelo Sr. Rhodes. O corredor em seguida vira de repente para a direita outra vez e a primeira porta, do-brando, é a porta do quarto da Sra. Rhodes. Sendo assim, essas duas portas poderiam ser vistas por testemunhas. A primeira porta, aquela do quarto do Sr. Rhodes, que vou chamar de A, poderia ser vista por quatro pessoas: dois

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caixeiros viajantes e um casal de velhinhos que estava tomando café. De acordo com eles ninguém entrou nem saiu pela porta A, exceto o Sr. Rhodes e a camareira. Quanto à outra porta no corredor B, havia um eletricista tra-balhando lá e ele também jura que ninguém entrou nem saiu pela porta B, a não ser a camareira.

Era sem dúvida um caso interessante e curioso. À primeira vista parece que o Sr. Rhodes poderia ter matado a esposa. No entanto, pude perceber que o Sr. Petherick estava bastante convencido da inocência de seu cliente, e Petherick era um homem muito astuto.

Durante o inquérito, o Sr. Rhodes contou uma história hesitante e vaga sobre uma mulher que tinha escrito cartas ameaçadoras para sua esposa. A história dele, deduzi, não foi nada convincente. Ao ser solicitado pelo Sr. Peth-erick, explicou-se: — Na verdade — ele disse —, nunca acreditei nisso. Pensei que Amy tivesse inventado aquilo.

A Sra. Rhodes, inferi, era uma dessas mentirosas sonhadoras que pas-sam a vida fantasiando tudo que lhes acontece. Conforme seu próprio cálculo, a quantidade de histórias que acontecia com ela em um ano era simplesmente inacreditável. Se ela desse um leve escorregão em uma casca de banana, era quase como ter escapado da morte por um triz. Se um abajur pegasse fogo, era resgatada de um prédio em chamas na situação de maior perigo da sua vida. Seu marido acostumou-se a dar um desconto nas suas declarações. A história que ela contou era de uma mulher cuja filha ela havia ferido num acidente de carro e que tinha jurado vingança contra ela. Bem, o Sr. Rhodes havia ignorado isso. O incidente havia acontecido antes de ele se casar com a mulher, e, embora ela tivesse lido para ele cartas escritas numa linguagem estranha, ele suspeitava de que ela própria as tivesse escrito. Ela já havia feito coisa semelhante uma ou duas vezes antes. Era uma mulher de tendências histéricas, que sempre precisava de uma agitação.

Agora tudo isso me parece muito natural. Na verdade, temos uma jovem na vila que faz exatamente a mesma coisa. O perigo de pessoas assim é que, quando algo extraordinário realmente acontece com elas, ninguém acredita que estão sendo sinceras. Tenho a impressão de que foi isso o que aconteceu nesse caso. Desconfiei que a polícia apenas achasse que o Sr. Rhodes es-tivesse inventando aquela história inverossímil a fim de afastar as suspeitas dele.

Perguntei se havia mais alguma mulher hospedada por conta própria

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no hotel. Parecia haver duas: a Sra. Granby, uma viúva meio inglesa meio indiana, e a Srta. Carruthers, uma solteirona com estilo caipira que não pro-nunciava os “g”. O Sr. Petherick acrescentou que os interrogatórios não conse-guiram apontar ninguém que tivesse visto uma delas perto da cena do crime, e não havia nada que as conectasse de alguma maneira com o ocorrido. Pe-di-lhe que descrevesse a aparência física delas. Ele disse que a Sra. Granby tinha o cabelo ruivo e desarrumado, o rosto amarelado e cerca de cinquenta anos. As roupas dela eram bastante pitorescas, feitas basicamente de seda natural, etc. A Srta. Carruthers tinha por volta de quarenta anos, usava um pincenê, tinha cabelos bem curtos como os de um homem e vestia casacos masculinos e saias.

— Meu Deus — eu disse —, isso torna as coisas muito difíceis. O Sr. Petherick olhou para mim com ar interrogativo, mas eu não quis

dizer nada além disso. Depois perguntei o que Sir Malcolm Olde tinha dito. Sir Malcolm estava confiante sobre a possibilidade de alegar insanidade

mental e sugerir algum jeito de lidar com o problema da impressão digital. Perguntei ao Sr. Rhodes o que ele achava e ele respondeu que todos os médi-cos eram trouxas, mas ele próprio não podia de modo algum acreditar que sua esposa havia cometido suicídio.

— Ela não era esse tipo de mulher — disse de modo simples.E eu acreditei nele. Pessoas histéricas não costumam cometer suicídio.Pensei por uns instantes, e então perguntei se a porta do quarto da Sra.

Rhodes dava direto no corredor. O Sr. Rhodes respondeu que não, havia um pequeno saguão com um banheiro e um lavabo. Era a porta do quarto para o saguão que estava fechada e trancada por dentro.

— Nesse caso — disse —, a coisa toda parece bastante simples. E era mesmo, sabe... a coisa mais simples do mundo. Ainda assim nin-

guém parecia enxergar isso. Tanto o Sr. Petherick quanto o Sr. Rhodes estavam me encarando com

olhos tão arregalados que me senti um tanto desconcertada.— Talvez — disse o Sr. Rhodes — Miss Marple não tenha percebido as

dificuldades. — Sim — disse —, acho que percebi. Há quatro possibilidades. Ou a Sra.

Rhodes foi assassinada pelo marido, ou pela camareira, ou cometeu suicídio, ou foi morta por um estranho que ninguém viu entrar nem sair.

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— E isso é impossível — o Sr. Rhodes interrompeu. — Ninguém poderia entrar nem sair do meu quarto sem que eu visse,

e ainda que alguém conseguisse entrar no quarto da minha esposa sem que o eletricista visse, que diabo essa pessoa fez para conseguir sair outra vez deixando a porta fechada e trancada por dentro?

O Sr. Petherick olhou para mim e falou de forma encorajadora: — E ai, Miss Marple?— Gostaria — disse — de fazer uma pergunta. Sr. Rhodes, qual era o

aspecto da camareira?Ele respondeu que não tinha certeza: achava que era meio alta, não

lembrava se tinha pele clara ou escura. Olhei para o Sr. Petherick e fiz a mes-ma pergunta.

Ele disse que ela tinha altura mediana, cabelos louros, olhos azuis e a pele um tanto rosada.

O Sr. Rhodes falou: — É um observador melhor do que eu, Pether-ick. Atrevi-me a discordar. Então perguntei ao Sr. Rhodes se poderia descrever a criada da minha casa. Nem ele nem o Sr. Petherick souberam responder. — Não veem o que isso significa? — perguntei. — Os senhores vieram aqui chei-os de seus problemas particulares e a pessoa que os recebeu era apenas uma criada. O mesmo aconteceu com o Sr. Rhodes no hotel. Ele viu o uniforme dela e o avental. Estava com a atenção toda voltada para o trabalho dele. No entanto, o Sr. Petherick interrogou a mesma mulher numa situação diferente. Olhou para ela como uma pessoa. Foi com isso que a mulher que cometeu o assassinato contou.

Como eles continuavam sem entender, tive que explicar. — Acho — disse — que foi assim que aconteceu. A camareira entrou pela porta A, pas-sou pelo quarto do Sr. Rhodes em direção ao quatro da Sra. Rhodes com a garrafa de água quente, e saiu para o corredor B através do saguão. X, assim vou chamar nossa assassina, entrou pela porta B para o pequeno saguão, escondeu-se ali... bem, em um certo compartimento... e esperou até a cama-reira passar. Então ela entrou no quarto da Sra. Rhodes, pegou o estilete na penteadeira... sem dúvida ela havia examinado o quarto mais cedo naquele dia... caminhouaté a cama, perfurou a mulher sonolenta, limpou a lâmina do estilete, fechou e trancou a porta pela qual havia entrado e, depois, saiu pelo quarto onde o Sr. Rhodes estava trabalhando.

O Sr. Rhodes gritou: — Mas eu a teria visto. O eletricista a teria visto

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entrar.—Não — rebati. — É ai que o senhor se engana. O senhor não a veria...

não se ela estivesse vestida como uma camareira.Deixei aquilo assentar e em seguida continuei: — O senhor estava con-

centrado no seu trabalho... com o canto do olho o senhor viu uma camareira entrar, ir para o quarto da sua esposa, voltar e sair. Era o mesmo uniforme, mas não a mesma mulher. Isso foi o que o pessoal que tomava café viu, uma camareira entrar e uma camareira sair. Foi o mesmo que o eletricista viu. Ouso dizer que se a camareira fosse muito bonita, um cavalheiro teria notado seu rosto, a natureza humana é assim, mas se ela era apenas uma simples mulher de meia-idade, bem... era o uniforme de camareira o que seria visto, não a mulher em si.

O Sr. Rhodes gritou: — Quem era ela?— Bem — disse — isso vai ser um pouco difícil. Pode ter sido tanto a

Sra. Granby quanto a Srta. Carruthers. A Sra. Granby dá a impressão de usar sempre uma peruca, então ela pode ter usado o próprio cabelo para se passar de camareira. Por outro lado, a Srta. Carruthers, com seu corte masculino de cabelos curtos, poderia sem dificuldade colocar uma peruca para cumprir seu papel. Arrisco dizer que os senhores vão descobrir qual delas foi de uma for-ma bastante fácil. Em minha opinião, estou inclinada a pensar que foi a Srta. Carruthers.

E de fato, meus queridos, esse é o final da história. Carruthers era um nome falso, mas era ela a mulher que procuravam. Havia desequilibrados na sua família. A Sra. Rhodes, que era uma motorista muito imprudente e perigo-sa, havia atropelado a garotinha dela, e isso tinha deixado a mulher fora de controle. Ela disfarçava sua loucura muito bem, exceto quando escrevia cartas claramente insanas para sua pretensa vítima. Ela vinha perseguindo a Sra. Rhodes há algum tempo, e traçou seus planos de forma muito inteligente. A primeira coisa que fez na manhã seguinte foi despachar a peruca e o uniforme de criada. Quando confrontada com a verdade, ela sucumbiu e confessou de uma vez. A pobre coitada está agora em Broadmoor. Nem um pouco equilibra-da, claro, mas um crime arquitetado de forma muito inteligente.

O Sr. Petherick veio me visitar depois e me trouxe uma carta muito querida do Sr. Rhodes; na verdade a carta me fez enrubescer. Em seguida meu velho amigo me disse:

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— Só uma coisa, por que a senhora achou que estava mais para ser Carruthers do que Granby? A senhora nunca viu nenhuma das duas.

— Bem — respondi —, foi por causados “g”. O senhor disse que ela engolia os “g”. Sei que isso é feito por muitos caçadores nos livros, mas não conheço muitas pessoas que façam isso na vida real... com certeza nenhuma com menos de sessenta anos. O senhor disse que essa mulher tinha quarenta anos. Aqueles “g” não pronunciados pareciam coisa de uma mulher que es-tava atuando e fingindo aquilo.

Não vou contar a vocês o que o Sr. Petherick disse sobre isso, mas ele foi muito lisonjeiro e não pude evitar sentir-me um tantinho satisfeita comigo mesma.

E é impressionante como as coisas sempre acabam da melhor forma neste mundo. O Sr. Rhodes casou-se outra vez... uma garota tão legal e sen-sata... e eles tiveram um bebezinho lindo e, adivinhem só, me chantaram para ser a madrinha. Não foi carinhoso da parte deles?

Bem, espero que vocês não pensem que me alonguei demais...

CHRISTIE, Agatha. Miss Marple Conta uma História. In: Os Últimos Casos de Miss Marple. Porto Alegre: L&PM, 2011.

Conto trabalhado na Escola Estadual Ayrton Senna, com alunos do 1º ano e 2° ano do Ensino Médio.

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Todos nós sabemos que os indivíduos dotados de boas qualidades men-tais são dotados também de um espírito fascinado pela análise. Assim como o homem fisicamente forte se delicia com exercícios que põem seus músculos em ação, o homem bem-dotado de inteligência gosta da atividade mental. Esta lhe traz um prazer imenso. Analisa, soluciona problemas, resolve enig-mas. Decifra mistérios. Sabe encontrar o prazer nas ocupações mais comuns, desde que ponham em jogo seu talento. Gosta, como se diz, de dar “tratos à bola”.

Ninguém vá pensar que estou aqui escrevendo um tratado ou elaboran-do um ensaio. Nada disso.

Estou apenas prefaciando uma narrativa um tanto fora do comum.Lembrei-me de dizer-lhes aquelas coisas porque o tal caso era um caso

de mistério. Sua solução parecia exigir o que já lhes disse: inteligência, cál-culo, espírito de análise. E sobretudo atenção. Sim, porque em todos os jogos intricados e difíceis são requeridas vivacidade, perspicácia mas também muita atenção. No caso do xadrez, por exemplo, nem sempre vence o mais perspi-caz. E sim o mais concentrado, mais atento. Observar atentamente é recordar com clareza. Dessa forma ter memória retentiva e conhecer as regras (o me-canismo do jogo) são requisitos considerados comumente indispensáveis a uma partida satisfatória. Mas é nas questões que ultrapassam os limites da simples regra que se comprova a perícia do bom jogador.

É essencial saber o que se deve observar.O jogador de verdade não se limita ao jogo. Examina bem a fisionomia

do parceiro. Compara-a cuidadosamente com a de cada um dos adversários.

OS CRIMES DA RUA MORGUEEdgar Alan Poe

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Considera a maneira como são repartidas as cartas. Conta trunfo por trunfo, figura por figura, vigiando o olhar dos demais. Nota todas as modificações fi-sionômicas no decorrer da partida. Expressão por expressão vai ficando guar-dada na memória. É a alegria, a surpresa, o triunfo, o pesar. Reconhece o blefe pelo jeito com que a carta é lançada na mesa. Uma palavra casual, a contagem, a arrumação, o embaraço, a dúvida. O tremor das mãos, a im-paciência, uma carta que cai, tudo lhe oferece à percepção indicação do ver-dadeiro estado das coisas.

Eu lhes expus tudo isso para que possam entender melhor a narrativa que se vai seguir.

No ano de mil oitocentos e tanto, durante a primavera, eu estava re-sidindo em Paris. Sozinho e em situação financeira não muito boa.

Foi nessa época, justamente, que conheci e fiquei amigo de um tal Sen-hor C. Auguste Dupin.

Era jovem e simpático cavalheiro. De excelente – ilustre mesmo – família.Por uma série de maus acontecimentos, ficara como eu, reduzido à

miséria. Uma miséria que nos matara a energia do caráter e não nos deixara nem ânimo para cuidar da recuperação dos bens.

Muito pouca coisa do antigo patrimônio ficara em seu poder. Mera gen-tileza ou piedade dos credores. A pequenina renda que lhe restara daí ia dan-do para prover as necessidades, sem nada de supérfluo.

Seu único luxo era, em verdade, os livros, que em Paris não custam muito caro.

Pois foi justamente numa livraria que teve lugar nosso primeiro encon-tro. Por uma coincidência, procurávamos o mesmo volume. Raro e notável. Isso nos aproximou. Passamos a ver-nos com frequência.

Contou-me sua vida, a história de sua família. Eu estava assombrado com a extensão de suas leituras. Encantou-me também o poder de sua imag-inação. Vi que a companhia daquele homem, naquela cidade, seria preciosa para a experiência. Ele era um tesouro para a minha inexperiência.

Revelei-lhe francamente esse meu sentimento.Combinamos, então, morar juntos, enquanto eu estivesse por ali, em

Paris.Alugamos uma casa no subúrbio de St. Germain. Mobiliamos a casa,

deserta e afastada de acordo como nosso temperamento comum. A velha mansão, já devastada pela ação do tempo, uma ruína quase, ganhou feição

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grotesca com a decoração que fizemos. Estava desabitada há muito, devido às superstições que não nos demos o trabalho de investigar.

Nosso isolamento era total. Quem chegasse a conhecer a vida que levá-vamos ali teria, sem dúvida, nos considerados loucos. Nem visita nós admitía-mos. E ninguém conhecia a localização de nosso retiro. Nem os amigos mais íntimos. Existíamos apenas dentro de nós mesmos.

Meu amigo era cheio de caprichos e fantasias. E Eu me divertia com isso. Na verdade, adotei todas as suas esquisitices. Entreguei-me a um mundo de manias. Por exemplo: quando amanhecia, fechávamos a casa toda. Dentro do casarão escuro acendíamos velas perfumadas que davam em tudo um re-flexo bem estranho.

Nesse ambiente, estimulados pela semi-escuridade, passávamos o dia lendo, escrevendo, conversando até que o relógio nos avisasse a chegada da verdadeira Treva. Assim, dentro da noite, saíamos, então, de braços dados. Rua afora, mergulhados nos mesmos sonhos durante o dia. Errávamos, sem destino até altas horas, procurando, por entre as desertas escuridões da ci-dade populosa, aquele infinito de emoção espiritual que só a silenciosa con-templação pode proporcionar.

Foi nessas andanças que comecei a notar em Dupin uma poderosa ca-pacidade de análise. Ele se divertia, exercitando-se cada vez mais. Chegava a dizer que, para seus olhos, a maioria dos homens trazia, no peito, janelas ab-ertas, através das quais podia ver-lhes o íntimo. E provava isso. Fazia espan-tosas revelações a respeito de mim mesmo. É. Ele parecia ver-me por dentro.

Pelo jeito como estou contando tudo isso, pode parecer que lhes estou preparando uma história de mistério sobre mim mesmo. Ou algum romance.

Não. O meu amigo francês era uma inteligência agitada. Analista. Para lhes dar ideia da natureza de suas observações, vou lhes contar um exemplo.

Certa noite, vagávamos os dois pela rua longa e suja. Íamos em silên-cio, cada um com o seu próprio pensamento. Já havia bem uns quinze minutos que não dizíamos uma única palavra. De repente, Dupin rompeu o silêncio, como se continuasse uma conversa:

— Ele é, de fato, muito pequeno. É um sujeito pequenino demais, e es-taria muito melhor no teatro de variedades.

— Não resta a menor dúvida – respondi, continuando uma conversa que não havíamos começado. Para ser mais exato, fora apanhada no meio. Sim, porque eu estava assombrado com o fato de suas palavras combinarem com

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o meu pensamento.— Dupin – disse-lhe preocupado -, isto está além da minha compreensão.

Mal posso crer no que estou assistindo. Como lhe foi possível saber que eu estava pensando em...? – Interrompi, de propósito, aqui, para me certificar, definitivamente, de que ele de fato sabia em quem pensava eu.

—... em Chantilly, o sapateiro – disse ele. – Por que parou? Você estava pensando que a pequena estatura dele o tornava incapaz parar representar o papel na tragédia.

Exato. Fora isso mesmo.Chantilly era um antigo sapateiro, meu conhecido, fanático pelo teatro.

Representava um papel numa tragédia e fora vaiado violentamente.— Diga-me, pelo amor de Deus – exclamei -, qual o método, se é que

existe algum método, pelo qual você conseguiu penetrar em minha alma, neste caso.

Na verdade, eu estava mais espantado do que desejava estar.— Foi o vendedor de frutas – respondeu o meu amigo, - Foi ele que fez

com que eu chegasse à conclusão de que o sapateiro não tinha estatura sufi-ciente para representar o papel de Xerxes...

— Mas não conheço nenhum vendedor de frutas!— O homem em que você esbarrou ao entrar nesta rua, há uns quinze

minutos, mais ou menos.Lembrei-me. Era verdade. Um vendedor carregando, à cabeça, um

enorme cesto de maças quase me atira ao chão, esbarrando em mim. Agora, o que eu não podia entender era o que isso tinha a ver com Chantilly.

A meu pedido, Dupin explicou-me tudo. Seguiu comigo todo o trajeto de meu pensamento até aquele momento. E tudo certíssimo, eu conferia. Passo por passo, reconstituiu meu pensamento, que ele lia através de minhas pos-turas e das expressões do meu rosto.

Um pouco depois dessa conversa, folheávamos uma edição da Gazeta dos Tribunais. Nossa atenção foi despertada pela seguinte notícia.

Crimes ExtraordináriosEm diversos parágrafos, a notícia narrava a história do que parecia ser

um crime bárbaro. Contava que, dentro da madrugada, às três horas, mais ou menos, os moradores haviam sido despertados por gritos espantosos. Pareci-am vir do quarto andar de uma casa da Rua Morgue. A casa era ocupada por uma senhora e sua filha, Madame L´Espanaye e sua filha Camille. Correram

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todos para lá, uns dez vizinhos e dois policiais. Não foi fácil abrir a porta. Só o conseguiram arrombando-a com uma alavanca, mais propriamente um pé-de-cabra. A essa altura não havia mais grito. Enquanto subia a escada, o grupo ouvia vozes ásperas, em tom de violenta discussão. O grupo dividiu-se. Isto facilitaria o exame dos aposentos em menos tempo. Nos fundos havia um quarto fechado a chave, por dentro. Foi arrombado também. Aí um espetáculo de horror paralisou todos os presentes.

Reinava a maior confusão. Móveis quebrados, jogados, em desordem, por todos os cantos. Sobre uma cadeira havia uma navalha manchada de sangue. Na lareira, duas longas e grossas tranças de cabelo humano, grisal-ho. Tudo empapado de sangue. Gavetas abertas, objetos de prata, em grande quantidade, jogados espalhados pelo chão. Duas bolsas abandonadas com cerca de quatro mil francos de ouro. Um cofre de ferro, papéis velhos, cartas, joias, tudo misturado, largado de qualquer maneira.

E das pessoas da casa, nenhum vestígio. Notaram, então, uma quan-tidade enorme de fuligem na estufa. Deram uma busca na chaminé. Dali foi retirar o cadáver da filha, de cabeça para baixo. Fora introduzido a força. O corpo, ainda quente, estava todo arranhado, cheio de hematomas e fundas marcas de unha. Parecia ter sido mortalmente estrangulado. Continuaram a investigação por toda a casa. Num pequeno pátio, espécie de um quintal cimentado, estava o cadáver da velha. A garganta profundamente cortada. Tanto que, ao tentarem levantar o corpo, a cabeça desprendeu. Tudo estava horrivelmente mutilado, mal conservando qualquer aparência humana.

A nota dizia que, até aquela hora, não havia nenhum indício que es-clarecesse alguma coisa sobre o horrendo crime. Era o mais denso mistério envolvendo tudo.

No dia seguinte, procuramos saber mais a respeito. E, de fato, haviam publicado alguns novos pormenores, sob o título:

A tragédia da Rua MorgueA notícia vinha contando que muitas pessoas foram interrogadas.

Aquelas que pareciam mais ligadas às duas assassinadas.Vou resumir os depoimentos de cada uma. Será muito longo e cansa-

tivo contar tudo como foi lançado nos autos. Mesmo porque, apesar de as declarações haverem sido longas, não trouxeram nada novo que lançasse al-guma luz sobre o caso. Foram interrogados, por exemplo:

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Pauline Duborg, a lavadeira das vítimas. Trabalhava para elas há três anos. Dique que a mãe e filha viviam bem. Em paz. De maneira afetuosa, no trato uma com a outra. Não sabia dos seus meios de vida. Achava que a velha senhora era cartomante. Diziam todos que guardava dinheiro. Nunca encon-trara pessoa estranha na casa. Só as duas, sempre. Não tinham empregada. Só havia móveis no quarto andar, estava certa disso.

Pierre moreau, vendedor de fumo. Vendia há quatro anos a Madame L´Espanaya.Nascera e crescera por ali. Disse que as duas ocupavam a casa há seis anos. Achava que a velha era um tanto caduca. Deviam ter dinheiro. Achava também que Madame lia a sorte. E achava muita coisa mais que nada adiantava para elucidar o crime. Outras pessoas todas vizinhas prestaram depoimentos. Quase todos iguais. E pouco interessavam ao esclarecimento do mistério. Um acrescentava uma coisa. Outro supunha algo mais e alguém trazia uma informação precisa. Mas nada de muito valor para a solução.

Isidore Muser, policial, tinha mais a dizer. Fazia ronda por ali. Fora chamado. Ajudara a arrombar a porta e fora dos primeiros a penetrar na casa. Ouviu os gritos e , o que é mais valioso: ouviu as vozes em discussão.

Nesse ponto, todos os que entraram estavam de acordo em certos de-talhes. Por exemplo, foram ouvidas as palavras: “sagrado” e “diabo”. Quanto ao timbre da voz, as opiniões variavam.

Isidore Muset, o policial, disse ser voz de espanhol. Para ele, discutiam em espanhol.

Já Henrique Duval concorda com os outros depoimentos em tudo, menos no sotaque da voz. Era pronúncia de italiano, dizia ele. Conhecia as vítimas e sabia que as vozes não eram delas.

E Odenheimer, dono de restaurante. Holandês. Passava pela casa na hora dos gritos. Depusera espontaneamente. Confirma os depoimentos, mas a voz era de homem e francês.

E o banqueiro Julio Mignaud, a mesma coisa. Declarou que Madame fa-zia depósitos e retirara uma boa soma em outro três dias antes da tragédia.

E Adolfo Le Bon, era empregado do banqueiro, levou a quantia, em duas bolsas, até a casa da velha. Não viu ninguém no caminho.

E outros, mais outros! Uma meia dúzia mais de depoimentos. Sempre coincidindo tudo, acrescentando pouco, mas discordando sempre no caso da voz. Para o espanhol Afonso Gercía, agente funerário, era um inglês falando e um francês. Alberto Montani dizia, entre muitas outras coisas, que era a voz

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grossa de um francês. E a voz mais aguda era de um russo.O médico Paulo Dumas foi chamado para ver os cadáveres. Descreveu

tudo com técnica e precisão, inclusive o estado dos corpos. As arranhaduras. A moça bem mais ferida que a mãe. Manchas. Pressão de dedos. Rosto ex-angue. Olhos saltados. Língua quase totalmente cortada. Equimose em cima do estômago feita por pressão de joelho. O médico achava que a jovem fora estrangulada por várias pessoas desconhecidas. As pernas da mãe estavam esmagadas. Os ossos das costelas, lascados. Lesões por toda parte. Se fora um homem, dizia ele, tinha que ser um homem terrivelmente forte. O pescoço da velha fora cortado com uma navalha.

E vem o depoimento de outro médico, o cirurgião:Alexandre Etienne. Mesma opinião em tudo.A notícia é encerrada com a afirmação de que nada mais importante

fora conseguido. Não existe, pois, ao que parece, menor pista.Em sua edição da tarde o mesmo jornal falava da grande confusão que

reinava em torno do caso.Muitas testemunhas ouvidas, muitos dados, muita informação examina-

da e reexaminada. Tudo não levando a nada de positivo.Uma nota de última hora informava que havia sido preso Adolfo Le Bon.

O que levara os francos de outro à casa da velha.Enquanto tudo isso acontecia, meu amigo Dupin mostrava-se particular-

mente interessado no andamento do caso. Sem comentários, mas deixando ver a satisfação que o enigma lhe trazia.

Depois da notícia da prisão do empregado do banco, resolveu pedir minha opinião a respeito do crime.

Minha opinião era a mesma da cidade inteira. O mistério era insolúvel. Tive que confessar.

Dupin, então, comentou:— Será difícil descobrir qualquer coisa com esses interrogatórios super-

ficiais. A polícia trabalha sem método, sem lógica. Ou é superficial ou profunda demais. Olhar de muito perto o objeto, prejudica a visão. E a verdade nem sempre se encontra no fundo do poço. Com uma profundidade indevida, per-turbamos e debilitamos os nossos pensamentos.

— E você tem alguma opinião formada sobre esse crime? – perguntei.— Bem, acho que devemos fazer alguns exames por conta própria, an-

tes de formar uma opinião a respeito. Será uma boa distração. Além disso,

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devo um favor a Le Bon e não gosto de vê-lo preso, creio que sem culpa.Assim, arranjamos permissão e visitamos o local da tragédia.Lá – uma casa parisiense comum – meu amigo fez um exame minucioso

de tudo. Os corpos ainda se encontravam no mesmo lugar e foi possível inves-tigar com maior eficiência.

Um policial nos acompanhava na visita. Nesse trabalho ficamos ocupa-dos até o anoitecer. Voltamos, então, para um merecido descanso em nossa casa. Antes, meu companheiro entrou por um momento na redação de um dos diários.

Chegou calado e saiu calado. Meu companheiro era cheio de manias. Eu as respeitava. Deixei-o ficar em silêncio, até quando se resolveu manifestar. E veio com uma pergunta:

— Que observou você de particular, lá, no local da tragédia?— Nada de particular – respondi. – Pelo menos, nada que já não houvesse

lido nos jornais.Não sei por quê, mas a maneira como pronunciou a palavra “particular”

me fez estremecer. E meu amigo comentou:— Receio que os jornais não tenham penetrado no extraordinário horror

da coisa. Mas vamos nós ao exame e à opinião nossa a respeito desse caso misterioso que todos já consideram insolúvel. Vamos para o lado em que a polícia não foi.

— Como assim? Então, todos os ângulos já não foram vistos através de vários depoimentos?

— Você ainda não notou que a polícia está confusa, justamente por cau-sa de tantos depoimentos. Até agora não conseguiu achar o “motivo”.

— Motivo para o crime?— Não, meu caro. Para tanta atrocidade por parte do assassino.— Você fala “o assassino”. Não lhe parece tudo muito para ser trabalho

de um?— Justamente isso também confunde a polícia. Há aquela dificuldade de

conciliar as vozes ouvidas na discussão com o fato de não se ter encontrado ninguém lá em cima, além da Senhoria L’Espanaye, assassinada. Acontece que a casa não tem outra saída além daquela por onde o grupo entrou ao ou-vir os gritos.

— Mas, repito, não houve ação demais para ser executada por uma só pessoa?

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— É o que parece. Daí a confusão da polícia. Veja bem se não é para embaraçar qualquer um. A selvagem desordem do quarto. O cadáver metido, de cabeça para baixo, na chaminé. As mutilações no corpo da senhora idosa – essas e mais outras coisas foram suficientes para desorientar o raciocínio dos agentes do governo, reduzindo a zero aquela vivacidade e esperteza de que tanto se o am. Caíram no erro de confundir o incomum, o inusitado com o desconhecido. Mas é por esses desvios do plano comum que se chega à verdade.

— Começo a entender.— Pois é, nas investigações como a que iniciamos não se deve perguntar

muito: o que aconteceu?“Mas, sim, procurar saber se o que aconteceu jamais aconteceu antes.

De fato, a facilidade com que chegarei, ou já cheguei, à solução desse mistério está na razão direta de sua aparente insolubilidade aos olhos da polícia.”

Olhei para ele, mudo de assombro.— Estou à espera – continuou ele, olhando a porta do nosso aposento –,

estou à espera de uma pessoa que deve me procurar. Pode ser que não seja o autor dessa carnificina, mas é certo que esteja intimamente ligada a ela. É bem provável que esteja inocente da parte mais grave dos crimes cometidos. Suponho que minha idéia seja certa. Pelo menos, se baseia nela toda a minha esperança de decifrar o enigma.

— E quem supõe que seja?— Aguardo o homem aqui, nesta sala, a qualquer momento.— E se não aparecer?— É verdade que ele pode não vir. Mas é quase certo que venha. Se

vier, será necessário detê-lo. Aqui estão duas pistolas. Nós as saberemos usar quando chegar a hora.

Apanhei uma das armas, mal acreditando no que ouvia. É que Dupin continuava falando como um monólogo. E falava alto como se eu me encon-trasse muito distante dali:

— As vozes que discutiam eram de homens. As pessoas ouviram, en-quanto subiam a escada. Então não se pode dizer que a velha matou a filha e se suicidou. Isso é simplesmente absurdo. Nem a velha senhora teria tido força para colocar o corpo da moça na chaminé. E a natureza dos ferimentos em seu próprio corpo exclui a ideia de suicídio. O crime foi, portanto, cometi-do por terceiros. E eram destes as vozes que se ouviam na discussão. Agora,

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deixe-me mostrar-lhe uma coisa de peculiar que existe nos depoimentos. Não notou neles nada de particular?

— Parece que todos são de acordo em que a voz grave pertence a um francês. E quanto à voz mais estridente há um completo desencontro. Nin-guém chega a nada.

— Isso é pura evidência. Mas não é particularidade. Como você disse, todos concordam quanto à voz grave. Mas, no que se refere à voz aguda, a peculiaridade está, não em terem discordado, mas no fato de que ao tentarem descrevê-la um italiano, um inglês, um espanhol, um holandês e um francês, todos se referem a ela como sendo de um estrangeiro. Notou isso?

— Sim, é verdade. O francês julga trata-se de um espanhol. O holandês afirma que é de um francês...

— O inglês acha que é de um alemão, o espanhol jura que é de inglês. Já o italiano acredita que seja de um russo, apesar de nunca ter conversado com um russo. Vem um segundo francês e discorda do primeiro, dizendo que a voz era de um italiano. Já viu, meu caro, que muito estranha para todos devia ser essa voz. Não houve palavras, nem sons que se assemelhassem a palavras... Isto leva a uma conclusão quase exata. Sem margem de erro.

— É mesmo. Pelo menos, cidadãos de cinco grandes divisões da Europa não conseguiram ouvir nada familiar.

— Não sei como você entende isso. Eu, porém, já tirei minhas con-clusões. São deduções legítimas. Agora tudo já está, de certa maneira, claro, definido. Está visto que não há nada de sobrenatural nesse caso. Os autores eram antes materiais e como tal escaparam.

— Como, então?— Vejamos os meios de fuga. É claro que o criminoso estava no quarto

onde a senhorita foi encontrada. Ou, pelo menos, no quarto ao lado. É daí que temos de procurar as saídas.

— Mas não cabe nem o corpo de um gato grande! Você viu como ficou o corpo da pobre moça...

— Estou apenas citando, meu amigo, para fazermos as eliminações. Você me ajuda. Pelas chaminés, impossível. Então, resta-nos as janela. Há duas delas no quarto. Uma está obstruída por móveis. A outra está com a parte inferior coberta pela cabeceira da cama. Nessa aí há uma mola oculta. É sair por ela e, por si mesma, volta à posição anterior: fechada. Isto enganou a polícia.

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— Mas como conseguiu o assassino descer da janela? — Bem, você viu que eu dei a volta em torno da casa. E esse passeio

valeu. Descobri que, por fora, um pouco afastado da janela, mas na mesma direção, há um cano. De um pára-raios, creio eu. O postigo da janela de que falo, perto da cama, quando aberto, aproxima-se do cano. Portanto, bastava um pulo para chegar até o cano e descer por ele. Também, usando do mesmo processo, uma pessoa poderia subir e com agilidade puxar a janela, entrando facilmente no quarto. Claro que aí precisaria de um impulso bastante ousado. E muito menos se imaginarmos que a janela já se encontrava aberta... Pense bem...

— Sim, estou vendo com clareza. Mas imagino que seria necessário uma agilidade extraordinária para realizar essa façanha.

— Não nego isso. Não só agilidade, mas energia mesmo. Meu objetivo é a verdade. Quero levá-lo a ligar essa agilidade e energia pouco comuns às vozes. Uma comum, em que todos reconheceram o sotaque francês. Outra inteiramente fora do comum. Ninguém conseguiu “pescar” nem uma sílaba.

Depois dessas palavras, comecei a ver claro o que Dupin queria dizer. Eu estava à beira da compreensão do mistério todo.

E Dupin continuou:— Vamos ao interior do quarto. As peças dos móveis estavam fora do

lugar. Mas nada fora roubado. Roupas, jóias, dinheiro. O ouro estava intacto. Os saquinhos estavam sobre o assoalho. Tire da cabeça a ideia de motivo. A entrega do dinheiro e o assassinato, logo depois, são só coincidências. Acon-tece muito disso. Sempre. E essas coincidências atrapalham o andamento das investigações. Se o ouro houvesse desaparecido, teríamos talvez uma coin-cidência. Mas haveria um motivo. E não há. E a carnificina. Assassinos comuns não matam dessa maneira. O modo violento como foi praticado tudo foi ex-cessivamente exagerado. Algo em desacordo com as ações humanas. Mesmo quando se tratam de criaturas depravadas. E os cabelos arrancados com raiz e até pedaços de couro cabeludo. Que força prodigiosa é necesária para se fazer isso! Tudo foi executado com ferocidade brutal. Agora, raciocine: a desordem no quarto, a força sobre-humana, de ferocidade brutal, a carnificina sem mo-tivo, a voz de acento desconhecido... Que se deduz de tudo isso?

— Esse crime foi cometido por um louco. Algum lunático furioso...— Sua ideia não é de todo descabida. Embora a fala dos loucos seja

mais ou menos comum. Mas pode um louco ter um cabelo desses? Diga-me.

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— Dupin! – exclamei. – Mas isso não é cabelo humano!— Não disse que era, meu amigo. E olhe aqui. São marcas de dedos. Ex-

perimente colocar seus dedos nessa marca. Estas são as marcas que ficaram na carne da Senhorita L’Espanaye...

Experimentei inutilmente.— Esta não é marca de mão humana. Em seguida, meu amigo me deu para ler um estudo, uma descrição

anatômica do grande orangotango das Ilhas das Índias Orientais. A força, a agilidade, a estatura, a ferocidade e a faculdade de imitação desses mamíferos! Compreendi, de repente, todo o horror daqueles crimes! Foram cometidos por um orangotango. Meu amigo acrescentou, por fim:

— Há um francês que está perfeitamente a par desses crimes. Lem-bra-se das expressões: “Mon Dieu”, “Sacré”, “Diable”? Talvez o animal es-tivesse sob sua guarda e haja fugido. Deve ter seguido o rastro até o quarto e nada pode fazer para recapturar o animal. Talvez o francês esteja inocente. Se estiver, como suponho, virá até aqui.

— Por que diz isso? — Ontem à noite, deixei na redação do Le Monde (jornal muito lido por

marinheiros) o seguinte anúncio. – Mostrou-me um jornal, onde li:

CapturadoNo Bois de Bologne, nas primeiras horas da manhã do dia... do corrente

(a manhã do crime) um enorme orangotango fulvo, da espécie de Bornéu. O seu dono (que se sabe ser um marinheiro da tripulação de um navio maltês) poderá recuperar o animal, após identificá-lo devidamente e pagar alguns pequenos gastos causados pela sua captura e manutenção. Dirigir-se ao nº...... Rua.......... Bairro St. Germain, 3º andar.

— Como sabe que homem é marujo e da tripulação de um navio maltês?— Eu não sei. Não estou certo disso. Mas tenho aqui um lacinho de

fita que os marujos usam para amarrar um rabicho de cabelo. Este nó só os marinheiros sabem fazer. Principalmente os maltases. Estava junto do cano do pára-raios. Se estiver errado, não farei mal a ninguém com o anúncio. Mas se eu estiver certo, terei dado um grande passo.

Nesse momento, ouvimos passos na escada.— Fique preparado – disse Dupin. – Apanhe as pistolas e espere meu

sinal.

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A porta estava aberta. O visitante entrou sem bater. Era um marinheiro, realmente. Alto, forte, musculoso. Arrogante, mas simpático. Queimado pelo sol.

Um grosso cacete na mão. Parecia sua única arma.—Boa tarde – Disse. — Sente-se, amigo – disse Dupin. – Veio reclamar seu orangotango. É

um belíssimo animal. Que idade julga que tem?— Não sei dizer. Quatro ou cinco anos. Está aqui? — Oh, não! Não temos condições para isso! Está perto. Poderá apan-

há-lo amanhã cedo. Está preparado para provar que é seu? — Sem dúvida, senhor. — Sentirei falta dele.— Estou disposto a recompensá-lo.— Bem, é justo. Mas para mim basta que me diga tudo o que sabe sobre

os crimes da Rua Morgue. Nesse momento, Dupin fechou a porta e colocou a chave no bolso. De-

positou a pistola em cima da mesa. E eu tomei posição.O marinheiro ficou vermelho. Levantou-se de um salto. Apanhou o ca-

cete. Logo depois, empalideceu, e caiu sobre a cadeira, mudo. Tive pena dele.— Meu amigo – disse Dupin --, não se alarme. Não lhe farei mal algum.

Dou-lhe minha palavra. Sei que é inocente das atrocidades cometidas na Rua Morgue. Mas, reconheça, está muito envolvido no caso. A questão é essa: o senhor não fez nada que tivesse podido evitar. Nada que o torne culpado. Não é culpado de roubo, quando poderia ter furtado impunemente. Portanto, nada tem a ocultar. Um inocente está preso. Acusado de um crime cujo autor só o senhor pode indicar.

O marinheiro mostrou-se aliviado. E humilde. — Vou contar-lhes tudo. Mas não sou tolo de esperar que acreditem.

Sou inocente, no entanto.O que disse, já lhes contei. Tudo o que Dupin dissera. Trouxera o oran-

gotango de uma viagem. Ficara com ele. Alojado em sua própria casa em Par-is. Cuidadosamente preso. No dia do crime havia fugido de madrugada. Todo lambuzado de espuma, com uma navalha na mão. Tentou acalmá-lo. Mos-trou-se feroz. Saiu do quarto e, pela janela aberta, fugiu para a rua. O francês seguiu-o. Percorreu parte da Rua Morgue. Fora atraído pela janela aberta e luz

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acesa do quarto andar de casa de Madame L’ Espanaye. Tudo durou muito pouco tempo. Subiu ainda pelo cano do pára-raios.

Mas não pode fazer nada Despencou lá de cima, ouvindo os gritos das duas mulheres. E a correria pela rua. Parece que as duas estavam ocupadas em arrumar uma arca de ferro, de costas para a janela. Tudo foi muito rápido. Viu ainda quando a fera introduziu o corpo da moça na chaminé e atirou a velha pela janela.

Fugiu correndo para casa. Apavorado.Pouco mais teve a dizer. Acha que o animal também desceu pelo cano do

pára-raios, pouco antes de arrombarem a porta de entrada. Deve ter fechado a janela depois de passar por ela.

O orangotango foi capturado. Pelo próprio dono, que o vendeu ao Jar-dim, obtendo uma ótima quantia. Le Bon foi posto em liberdade, depois que narramos nossa história na polícia. Claro que a polícia não gostou da maneira como o caso se solucionou. A polícia gosta de resolver, e não resolveu coisa alguma. Gosta de prender, e ninguém ficou preso.

Quanto a Dupin, estava satisfeito. Achou muito bem ter derrotado o chefe de Polícia em seu próprio terreno. Também, achava ele que o chefe era astuto demais para ser profundo. Mas que era boa pessoa não restava dúvi-da. Dupin o apreciava. Principalmente porque era um mestre no seu assunto. Estava até ficando famoso pela sua mania, sábia mania de “negar o que é e explicar o que não é”.

Em seguida..., bem, este foi outro crime. Outro mistério na já famosa Rua Morgue. Outro desafio para o meu amigo Dupin, agora familiar entre os policiais. Mas isso já é outra história que lhes contarei um dia.

POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe. Trad. De Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995.

Conto trabalhado na Escola Técnica Estadual Adolpho

Bloch, com alunos do 2° ano do Ensino Médio.

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Nome: Jaime Bonifacio Morelli. Idade: 37 anos. Estado civil: viúvo. Na-cionalidade: brasileira. Profissão: bancário. Histórico do crime.

Às quatro horas da tarde do dia 16 de março de 1945, domingo, acabara Morelli de comprar um maço de cigarros e achava-se parado à porta do “Bar e Confeitaria Carioca”, à rua dos Jasmineiros n° 428, bairro de Vila Regina, quando estacionou junto ao passeio, quase em frente ao referido bar, o carro “Oldsmobile” 1941, chapa n° … conduzido pelo seu proprietário, Dr. Paulo Julio Fontana, advogado, de 40 anos, casado e domiciliado à rua Professor Leite So-brinho, n° 325, apartamento 64, subdistrito do Jardim Oceania, nesta capital.

Desligando o motor e fechando o carro, dirigia-se o Dr. Fontana apar-entemente em direção à porta do bar, quando Morelli, que estivera olhando atentamente a placa do automóvel estacionado, sacou um revólver “Smith & Wesson”, calibre 32, que carregava no bolso traseiro das calças e, sem pro-nunciar uma só palavra, desfechou à queima- roupa cinco tiros no advogado, atingindo-o todos no ventre e no tórax, antes que a vítima pudesse esboçar um gesto de defesa.

Atraídos pelos estampidos, acorreram populares que se achavam no bar, os quais procuraram prestar os primeiros socorros à vítima (inúteis, todavia, pois sua morte foi quase instantânea) enquanto outros imobilizavam e desar-mavam o criminoso, que não ofereceu a menor resistência.

O proprietário do bar telefonou à Rádio Patrulha, que enviou prontam-ente uma viatura ao local da ocorrência. Preso em flagrante, foi Morelli con-duzido à Delegacia de Homicídios, onde prestou as seguintes declarações:

Não conhecia a vítima. Ignorava completamente tratar-se do Dr. Fon-

OS IDOS DE MARÇOLuís Martins

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tana, em quem nunca ouvira falar. Interrogado sobre os motivos que o tinham levado a matar um desconhecido, que não o provocara e que provavelmente nem repara nele, respondeu que não sabia. Sentira uma súbita e incontrolável vontade de atirar – e atirara. Eis tudo.

Durante o interrogatório, que durou cerca de três horas, o criminoso mostrou-se estranhamente calmo, quase impassível. Respondia dócil e polida-mente às perguntas que lhe faziam. Entretanto, por mais que se esforçassem, não conseguiram as autoridades arranca-lhe qualquer informação que eluci-dasse o móbil de tão misterioso e inexplicável crime.

Viu-se a polícia, portanto, às voltas com um verdadeiro enigma. In-vestigações posteriores confirmaram as declarações do assassino: não havia relações, nem de ordem comercial, nem profissional, nem social, entre ele e a vítima, tanto quanto se podia concluir dos depoimentos dos amigos e par-entes de ambos. Aventou-se a hipótese de se tratar de um desequilibrado, paranoico ou maníaco sujeito a alucinações. Mas os exames psiquiátricos a que se submeteu demonstraram uma perfeita sanidade mental, confirmada aliás pelo estabelecimento bancário em que trabalhava, cujas informações eram as melhores: tratava-se de excelente funcionário, competente, assíduo e disciplinado. Sua folha de serviço era exemplar.

A polícia ficou num beco sem saída. Bem. Os leitores de novelas policiais acreditam sempre que a polícia é sempre um fracasso. Na realidade, não é. Só na ficção, o detetive amador – em geral um mocinho bacaníssimo, inteligentís-simo e tudo mais – passa a perna nos técnicos da Delegacia de Homicídios, deslindando os casos obscuros que aqueles não conseguem resolver. Mas isto na literatura de mistério e crime. Na vida real é diferente. Se a polícia oficial, com os múltiplos recursos de que dispõe, não é capaz de seguir a pista certa, não será nenhum descendente de Sherlock Holmes, em seu gabinete, que o fará.

Como não há regra sem exceção, entretanto, posso agora revelar que nesse caso da rua dos Jasmineiros, no bairro de Vila Regina, havia uma pes-soa que sabia muito mais do que a polícia. Na verdade, sabia tudo, ou quase tudo, sobre o crime. Sabia a razão pela qual Morelli se calara. Sabia que ele estava dizendo a verdade, ao afirmar que não conhecia a vítima; e que men-tia, quando negava a existência de um motivo, para a prática do crime. E sabia mais. Sabia uma coisa que nem o próprio criminoso podia saber: que o homem que matara era inocente da culpa que lhe atribuía. Sim. Uma pessoa

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sabia tudo isso. E modéstia à parte, essa pessoa era eu.Por que me calei, então? Por que não elucidei o mistério? Por que não

pus tudo em pratos limpos? Pela simples razão de que ninguém me perguntou nada, ninguém me chamou, ninguém pediu o meu depoimento. Nem durante o inquérito policial, nem por ocasião do julgamento do assassino no Tribunal do Júri, eu fui arrolado como testemunha. Aliás, não havia razão alguma para que o fosse. Eu não conhecia nenhuma das duas personagens da tragédia; e, quanto este ocorreu, eu me achava a uns dez ou quinze quilômetros distante do local. Entretanto, eu sabia. E continuo sabendo.

Não vou revelar o seu nome verdadeiro, porque isto não vem ao caso. Digamos Sonia, para facilitar. Conheci-a por acaso, numa viagem de ônibus. Era morena, olhos imensos, pernas esguias, sorriso tímido, fala mansa e que-brada de nortista. Aproximava-se dos trintas anos, idade em que as mulheres atingem a plena feminilidade e se tornam verdadeiramente perigosas. Entrei com o meu jogo. Nesse tempo, eu me dedicava com grande empenho e práti-ca, à arte guerreira de sitiar cidades solitárias e aparentemente inexpugnáveis e, nesse caso, como em muitos outros, o prêmio da minha superioridade tática e estratégica foi uma rendição incondicional. Não entrarei em detalhes. A luta foi árdua, mas não muito prolongada. Não seria propriamente o caso do “veni, vidi, vinci”, mas duas ou três semanas bastaram para que Cesar atravessasse o Rubicão… Os idos de março ainda estavam distantes, e quis a fatalidade que o outro fosse escolhido.

É difícil discernir, nesse confuso mosaico de aventuras avulsas, que é o “background” da minha vida pregressa, o verdadeiro trigo entre o joio, mas, tanto quanto me é possível ressuscitar sensações extintas, creio que a amei.

Amei-a sim. Aquela sede persistente, torturante, insaciável do seu cor-po, não era só magia sexual, mas paixão verdadeira. Encontrávamo-nos, quando Deus era servido e ela tinha as tardes livres, numa casinha de aparên-cia discreta e decentíssima, no bairro… Não. Não vou dizer o nome do bairro. Contarei o caso direitinho, mas quanto menos indicações precisas fornecer, melhor. A antiga dona da casa já morreu – e para que envolver a sua memória nessas coisas? Se ela se prestava ao papel de alcoviteira, não era por prazer, ou vocação, mas por necessidade.

Direi apenas que era uma casa assobradada, de esquina. A entrada principal, servida por uma escadinha de quatro ou cinco degraus, dava para uma rua de grande trânsito; mas na outra, transversal, havia uma saída tér-

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rea, de serviço. Isto é importante saber, para o perfeito entendimento do que se contará a seguir.

Uma tarde, mal acabáramos de entrar no “nosso” quarto, cujas janelas davam para a rua principal, quando Sonia, por curiosidade olhou através das persianas – e tornou-se lívida.

— Meu marido! – sussurrou, a ponto de desfalecer. – Ele está tocando a campainha…

Devo ter empalidecido também. Não havia tempo de me olhar ao es-pelho para me ver, mas senti as mãos e os pés gelados. E a minha reação, puramente instintiva, foi determinada por uma sorte de energia nervosa, que me levou a agir com fulminante rapidez. Nunca fui um herói mas, como disse, amava Sonia. Naquele instante de perigo, sinceramente, não pensei em mim; o meu único objetivo era salvá-la.

Ela parecia uma massa inerte, inteiramente entregue aos desígnios da fatalidade. Agarrei-a violentamente pelos pulsos, abri a porta do quarto e ar-rastei-a – literalmente arrastei-a – pelo longo corredor que ia dar na saída de serviço.

A rua estava deserta, tranquila. Apenas, uns dez metros adiante, en-costado à calçada oposta, achava-se um “Oldsmobile” cinza; um homem saiu de uma casa, dirigiu-se a ele, abriu a porta da direção...

— Corra! – disse à Sonia – Peça àquele cara que a leve daqui. Diga que está se sentindo mal, pergunte se ele pode conduzi-la a uma farmácia… In-vente qualquer coisa! Vá! Depressa!

— E você? – sussurrou, hesitante.— Deixe que eu me arranjo…— Mas...— Não há perigo… Ele não me conhece. Corra logo, que o carro vai sair.Ela correu. Vi-a, de longe, falando qualquer coisa ao motorista. Depois,

deu a volta e entrou pelo outro lado…Neste instante preciso, o marido surgiu à porta de serviço. Aparente-

mente, não trazia arma nenhuma. Não prestou a menor atenção em mim: era evidente que não me conhecia. Seus olhos cravaram-se, como hipnotizados, no “Oldsmobile” cinza, que partia… Se ele estivesse armado, com certeza ati-raria. Chegou a correr alguns passos atrás do carro. Depois, vendo que não poderia alcançá-lo, parou, tirou um lápis e um caderninho do bolso, e rabiscou qualquer coisa. Compreendi que anotava o número de placa.

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Nunca mais vi mais Sonia, dela nunca mais tive qualquer notícia. E só vim a saber que tinha morrido (de quê?), oito meses depois desses dramáti-cos acontecimentos, quando o crime de Vila Regina abalou a opinião pública – e eu li nos jornais que Morelli, o criminoso, era viúvo…

Nunca soube também como chegaram ao acontecimento de Morelli os nossos amores ilícitos. Sei, porém, porque ele matou Fontana: era o homem que dirigia o “Oldsmobile” cinza. Sei também porque nunca revelou a causa do crime: porque amava Sonia.

E eu, a única pessoa neste mundo, além dele, que possuía a chave do mistério, eu também me calei – pelo mesmo motivo.

MARTINS, Luis. Os idos de março. S.l., s.d. 6 fls.

Conto trabalhado na Escola Municipal Lavínia Dória, com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental

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Isso aconteceu numa época em que o grande detetive Sherlock Holmes estava aposentado e um pouco esquecido. Em Londres, onde morava, nin-guém mais o chamava para elucidar mistérios. Conformava-se, dizendo: não se fazem mais bandidos como antigamente.

Meu tio Clarimundo, leitor das aventuras de Sherlock, foi quem decidiu contratá-lo. Mas que não trouxesse seu secretário, Dr. Watson, que só servia para ouvir no final de cada caso a mesma frase: Elementar Watson.

— Mas se tratava de um caso tão insignificante – protestou mamãe.— Insignificante? Esse enigma está nos pondo malucos.Alguém andava assaltando nosso galinheiro. A cada dia sumia uma

galinha. Quem faria isso, estando a casa cercada por paredes de imensos edifícios? Não havia muros para saltar e nem grades para pular. E na casa só morávamos eu, meus pais, tio Clarimundo e Noca, a velha empregada. Um enigma muito enigmático, sim.

Sherlock Holmes chegou e hospedou-se no quarto dos fundos. Ele, seu boné xadrez, seu cachimbo, lógico e mais, logicamente, sua lupa, que aumen-tava tudo. Chegou anunciando:

Chamarei esta aventura de “O caso das galinhas desaparecidas”. Ou fi-caria melhor “O incrível enigma do galinheiro”?

Ambos são bons, mas...— Na maior parte o culpado é o mordomo. – informou Sherlock – Onde

está o sujeito?

O ENIGMA DO GALINHEIROMarcos Rey

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— Não temos mordomo – lamentou tio Clarimundo.— Então, leve-me à cena do crime.Levamos Sherlock ao quintal, pequeno e espremido entre os prédios. Ele

tirou a lupa do bolso. Um palito ou folha de árvores examinava concentrada-mente. Depois, tomava notas num caderno. Mas como a viagem o cansara, foi dormir cedo. Na manhã seguinte, minha mãe acordou com uma informação:

— Sumiu outra galinha. — Esta noite dormirei no galinheiro.E dormiu mesmo, sentado numa poltrona. Desta vez eu que o acordei.— Mister Holmes, roubaram mais uma galinha.A notícia fez com que se decidisse:— A história se chamará mesmo “O incrível enigma do galinheiro”.— Não estamos preocupados com títulos – rebateu meu tio.— Mas meu editor está.Neste dia, consegui ler o caderno de anotações do detetive. Li: nada,

nada, nada. Um nada em cada página. Organizado, não? Também, nesse dia, Sherlock telefonou para Londres para trocar impressões com o fiel Dr. Watson. Uma fortuninha em chamadas internacionais.

E as galinhas continuavam desaparecendo, apesar de Sherlock Holmes dormir no galinheiro. Ele já andava falando sozinho.

— Nem sinal de gato, cachorro, raposa, gambá. Todo meu prestígio está em jogo.

Por fim, restou apenas uma galinha.À hora do almoço o famoso detetive, sentindo-se velho e fracassado,

sofreu uma crise, chorando na frente de todos. Nós nos comovemos muito com a situação. Um homem daqueles derramar lágrimas... Noca, então, deu um passo à frente e confessou:

— Eu que roubava as galinhas. Dava às famílias pobres de uma favela.Sherlock enxugou imediatamente as lágrimas na manga do paletó.— Já sabia. Fingi chorar para que ela confessasse.— Então, desconfiava de Noca? – perguntou tio Clarimundo.— Encontrei penas de galinha no quarto dela. Elementar, Clarimundo. E

o que dizem de comermos a penosa que resta no galinheiro?Não sei se foi escrito “o incrível enigma do galinheiro”. Se foi, pobres

leitores. Na verdade eu que roubava as galinhas para dar aos favelados. In-clusive quando o detetive dormia no galinheiro. Noca sabia disso e assumiu a

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culpa em meu lugar.Elementar, Mister Sherlock Holmes.

REY, Marcos. O Enigma do Galinheiro.

Conto trabalhado na Escola Municipal Lavínia Dória, com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental.

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Durante o dia, Adão Flores era um gordo como qualquer outro. Sua ativ-idade e seu charme começavam depois das 22 horas e às vezes até mais tar-de. Então era visto levando seus 120 quilos às boates, bistrôs e inferninhos da cidade, profissionalmente, pois não só gostava da noite como também vivia dela. Empresário de modestos espetáculos, era a salvação, a última esperança de cantores, mágicos, humoristas decadentes. Dizia que se dedicava a esses náufragos por puro espírito de solidariedade, pilhéria capaz de comover até os que não tivessem espírito boêmio. Alguns desses artistas haviam tido a sua vez no passado, pouco ou muito prestígio, até serem abandonados pelo pú-blico. Adão não abandonava ninguém, talvez devido à tão propalada bondade dos obesos.

Com o tempo, Adão Flores adquiriu outra profissão, paralela à de em-presário da noite, a de detetive particular, mas sem placa na porta e mesmo sem porta, atividade restrita apenas a cenários noturnos e pessoas conhe-cidas. Apesar de agir esporadicamente e circunscrito a poucos quarteirões, Adão Flores começou a ganhar certa fama graças a um jornalista, Lauro de Freitas, que começava a fazer dele personagem frequente em sua coluna, a ponto de muita gente supor tratar-se de ficção e mais nada.

Adão Flores apareceu no “Yes-Club”, cumprindo seu itinerário habitu-al. Rara era a noite em que não comparecia ao tradicional estabelecimento da Bianca, onde seus casos tinham grande repercussão,e onde a seu ver se reuniam as mais prestativas ninfetas. Mas nem teve tempo de sentar-se. Uma mulher, nervosíssima, que já o aguardava, aproximou-se dele um tanto ofegante.

O ÚLTIMO CUBA-LIBREMarcus Rey

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— Lembra-se de mim, Adão?— Estela Lins?! Como vai o malandro do seu marido? Anda sumido!— É por causa dele que estou aqui. Adão, você pode me acompanhar?

Meu carro está na porta. É um caso grave.— O que aconteceu?— Direi tudo no carro.Júlio Barrios, mexicano, cantor de boleros, fora um dos contratados de

Adão que mais lhe deram dinheiro nos quase dez anos que estivera sob con-trato. Seu valor era contestado por muitos, mas até esses concordavam que o bigodudo era o mais personalíssimo intérprete de “Perfume de Gardênia”, “Total”, “Hoy” e “Somos”. Quando o público se cansou dele, Flores levou-o às churrascarias, salões da periferia e cidades do interior, etapas do declínio de qualquer cantor. Júlio não se abateu totalmente, pois, enquanto tivesse uma mulher apaixonada a seu lado, podia levar a vida.

Estela dirigia atabalhoadamente um fusca em estado de desmaterial-ização.

— Disse que Júlio está assustado?— Disse apavorado.— Por quê?— Telefonemas ameaçadores.— Quem seria a pessoa?— Ele diz que não sabe.— Mas você acha que sim.— Pode ser algum traficante de drogas.— Ora, Júlio nunca mexeu com isso. Trabalhamos juntos anos a fio e

nunca o vi cheirar nada suspeito. Sua obsessão sempre foi outra…O que o empresário-detetive imaginava era a ameaça de algum marido

ou amante ciumento, daí Júlio não revelar nada a Estela, sua terceira ou quar-ta mulher desde que chegara ao Brasil. Apesar da decadência artística Júlio continuava bem-sucedido nessa modalidade esportiva. Adão conhecera diver-sas favoritas do sultão mexicano, todas apaixonadas e dispostas a dividir com ele o que faturassem. Aliás, odiava mulheres ociosas e sempre lhes permitia a liberdade de ir e vir – ao trabalho. Assim, Estela era esteticista com boa cli-entela; Glória, a antecessora, possuía um sebo de livros espíritas; e Marusca, massagista, com técnica própria, cuidava da coluna de uma legião de velhos generosos.

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— Júlio sabe que veio me buscar?— Sabe. Disse que quer tomar um cuba-libre com você, como nos vel-

hos tempos.— Espero que ele não acredite muito na coluna do Lauro de Freitas. Não

sou tão bom detetive assim.— Estamos chegando.Estela estacionou o carro diante de um pequeno edifício de três andares.

O casal morava no primeiro, cujas luzes estavam acesas. Passaram por um portão de ferro, atravessaram um pequeno corredor e chegaram à porta do apartamento. A mulher abriu a porta, acendeu a luz e indicou um velho divã ao empresário. Foi se dirigindo ao interior do apartamento, anunciando:

— Adão está aqui, querido! O empresário-detetive largou todo o seu peso numa mirrada poltrona,

que protestou, rangendo. Não conhecia aquele apartamento. Júlio, sempre que mudava de mulher, mudava também de endereço. Glória, por exemplo, fora ao supermercado e ao chegar em casa não o encontrara mais. Marusca não vira mais nem a sombra dele ao voltar do cabeleireiro. Julio explicava aos amigos que seu coração sensível não suportava despedidas. Alguns o elogia-vam por isso.

— Quem é o senhor? – Adão ouviu de repente a voz de Estela, vinda do quarto, em tom de pavor.

— O que faz aqui?Adão levantou-se: algo de anormal acontecia.Novamente a voz de Estela, agora num grito:— Juuuulio!Adão deu uns passos enquanto Estela aparecia à porta do quarto,

tentando dizer alguma coisa. O detetive entrou precipitadamente. A primeira imagem que viu foi Júlio sobre a cama, ensanguentado.

Estela apontou para a janela aberta.— Ele fugiu!Adão correu para sala e Estela abriu a porta do apartamento. Os dois

precipitaram-se para a rua, ela na frente. Logo adiante havia uma esquina, que o criminoso já devia ter dobrado. Estela segurou Adão pelo braço.

— Vamos socorrer Júlio.Regressaram ao apartamento. A lâmina toda de uma tesoura compri-

da estava enterrada nas costas de Júlio. O detetive apalpou-lhe o peito. O

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coração já não batia nem no ritmo lento do bolero. Enquanto a polícia não chegava, Adão dava uma olhada no quar-

to. Estela, em prantos, aguardava a presença do cunhado, um de seus únicos parentes. Flores notou que algumas gavetas de uma cômoda estavam aber-tas. O criminoso estivera procurando alguma coisa. No peitoril da janela, um pouco de terra, certamente deixada pelos sapatos do homem que saltara. E sobre o criado-mudo um copo, o último cuba-libre que Júlio não terminara de beber. Sem gelo. Quem tomaria um cuba sem gelo num calor daquele? Foi ao encontro de Estela, na sala, e a achou dobrada sobre o divã.

— Gostaria de conversar com o zelador.— O prédio não tem zelador, apenas uma faxineira no período da man-

hã.— Acha que poderia reconhecer o homem?— Nunca mais o esquecerei – garantiu Estela. – Era baixo, troncudo e

tinha os olhos puxados.— Já o vira antes?— Não.Adão retornou ao quarto, para dar mais uma espiada. Dali a instantes a

polícia chegou: um delegado e dois tiras.— Não mexi em nada – disse Flores. – E cuidado com o peitoril da jane-

la. Há terra de sapato nele. Foi por onde o criminoso fugiu.— O senhor o viu?— Não, mas dona Estela poderá ajudar a fazer o retrato falado dele. Ela

o encontrou no quarto de Júlio.O delegado encarou o detetive.— Você não é um tal Adão Flores, metido a Sherlock?— Sou esse tal, mas vim aqui como amigo, chamado por Estela. Julio

tinha recebido uns telefonemas ameaçadores.Adão deixou os tiras trabalharem e saiu do quarto. O criminoso saltara

da janela para um corredor cimentado que rodeava o edifício. Para baixo o santo tinha ajudado, mas subir pela janela teria sido difícil. Certamente ele to-cara a campainha e entrara pela porta. Antes, porém, pisara em algum jardim, como atestava a terra do peitoril. Havia jardim à entrada do edifício?

Um dos tiras apareceu à porta com uma pergunta.— O senhor deixou uma ponta de cigarro no cinzeiro? Há duas lá, mas

só uma é da marca que Julio fumava.

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— Só fumo em reuniões ecológicas. O criminoso deve ter tido tempo para fumar um cigarro. Só pode ter sido ele, pois Estela não fuma.

Adão permaneceu no apartamento até a chegada da Polícia Técnica, quando Estela Lins, no bagaço, foi levada pelo cunhado, que, antes de sair, declarou com todas as letras:

— Julio bem que mereceu isso. Um vagabundo, um explorador de mul-heres! A polícia não devia perder tempo procurando o assassino.

Já era madrugada quando Flores retornou ao “Yes-Club”. Estava cansa-do, que ninguém é de ferro. Contou a todos o que sucedera, recebendo em troca uma informação. Julio Barrios aparecera por lá, naquela semana, mui-to feliz. Uma gravadora resolvera lançar um elepê com seus maiores suces-sos,Recuerdos, no qual depositava muitas esperanças. Planejava inclusive pintar os cabelos para renovar o visual. Estava animadíssimo.No dia seguinte, Adão Flores compareceu à polícia para prestar depoimento. Estela, por sua vez, estava cooperando. O retrato falado do criminoso já estava pronto e sair-ia em todos os jornais. O delegado, porém, já manifestava uma suspeita.

— Não gostei da cara daquele cunhado. Estela pode até estar tentando protegê-lo.

— Não creio – replicou Adão. – Era apaixonada pelo cantor.— Mas amores passam – comentou o delegado. – Como certas modas

musicais…Adão Flores foi ao jornal onde trabalhava Lauro de Freitas.— Quantos quilos você pesa, Lauro?— Acha que estou engordando?— Que mal há nisso? Os gordos são belos.— Setenta quilos.— Então, venha.— Onde?— Você tem o mesmo peso do homem que matou Barrios, segundo

declaração de Estela na delegacia.— E isso me torna um suspeito?— Vamos ao apartamento.À porta do edifício, Adão identificou-se a um guarda, que vigiava o lugar

desde o assassinato. Não foi fácil convencê-lo a deixar que o detetive e o jor-nalista entrassem no apartamento.

— Estamos aqui. E agora, Adão?

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— Você vai fazer uma coisa, Lauro: saltar do peitoril da janela para o corredor.

Abriram a janela e o jornalista espiou.— Altinho. Posso sentar no peitoril?— Não, suba nele e salte.— E se o paraquedas não abrir?— Não salte ainda. Vou para a sala. Aguarde minhas ordens, então salte

e corra até a entrada do edifício.Adão voltou para a sala, deu as instruções e ficou atento. Ouviu o baque

dos pés de Lauro no cimento e, em seguida, seus passos rumo ao portão. Pouco depois, Lauro voltou à sala.

— O que quer mais? Sei plantar bananeira.— Como atleta amador você não pode ser pago. Mas vou lhe fornecer

uma bela história para sua indigna coluna. Nãotire os olhos de mim. Agora vamos à gravadora Metrópole.

— Por quê?— Porque quero pôr na cadeia a pessoa que matou o melhor intérprete

de “Perfume de Gardênia”. Quem fez isso é meu inimigo pessoal. Não se apa-ga assim um parágrafo da História.

Adão e Lauro foram à gravadora, onde o detetive conversou com o di-retor-artístico. Sim, Barrios ia gravar mesmo um elepê. Esperavam vendê-lo para uns cem mil saudosistas. E o homem fez mais, forneceu certo endereço que Flores considerou importantíssimo.

Quando os jornais revelaram o assassino de Julio Barrios, a melhor re-portagem certamente foi a de Lauro de Freitas, por dentro de tudo. Adão, claro, ficou muito orgulhoso com a literatura que o amigo deitou sobre ele. O gordo era um saco de vaidade. Naquele dia saiu cedo à rua para receber os louros. O porteiro do seu hotel de duas estrelas foi o primeiro a cumpri-mentá-lo com uma reverência. Logo depois gravava uma entrevista para o rádio e uma declaração para a tevê.

Mas o local onde seus casos mais repercutiam era mesmo o “Yes-Club”, sempre ouvidos com degustada atenção por aquela senhora de cabelos pratea-dos e piteira longa, a Bianca, e pelo grupo de frequentadores mais íntimos. Aí, sim, Adão assumia por inteiro o physiquedurôle de detetive internacional. Na véspera, antes de que os jornais publicassem a solução do enigma, Adão esteve lá para contar tudo em primeira mão.

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— Em que momento você começou a puxar o fio da meada? – perguntou a dona da casa.

— Sou um homem do visual, da imagem – disse Flores. – Aquele cu-ba-libre sem gelo me chamou logo a atenção. Julio gostava de colocar verda-deiros icebergs nas suas bebidas. Como não havia mais gelo e o copo voltara à temperatura ambiente, deduzi que o crime tinha acontecido há algum tempo. Uma hora, talvez…

— Não me parece argumento suficiente para levar a conclusões – disse um homem, provavelmente um desses invejosos que estão em toda parte.

— Certamente não foi minha única dedução. Havia aquela tesoura, arma ocasional demais para servir a um criminoso determinado, que fazia ameaças telefônicas.

O mesmo freguês, que se recusava a bater palmas para Adão, voltou a obstar:

— Usar armas da casa é um meio para implicar inocentes. Os romances policiais sempre relatam coisas assim.

— Uma tesoura não oferece segurança – replicou Flores. – A não ser que o criminoso tivesse sido um alfaiate…

Bianca tinha outra pergunta a fazer:— Houve roubo? As gavetas estavam todas abertas, não?— Elas não foram simplesmente abertas, algumas estavam vazias. E

sabem quem as esvaziara? O próprio Julio.— O que havia nessas gavetas? – perguntaram. – Tóxico?— Roupas, simplesmente roupas. Encontrei-as em uma pequena mala.

Mas me deixem prosseguir. O que consolidou minhas suspeitas foi uma questão de acústica.

— Disse acústica?— Disse. Aí o nosso Lauro ajudou muito. Seu peso equivale ao do homem

visto por Estela. Fui com o Lauro ao apartamento do Julio e pedi que saltasse da janela e depois corresse até o portão. Eu me plantei na sala, como na noite do crime. E ouvi perfeitamente o baque e depois os passos de seus pés no cimento. Como naquela noite eu não ouvira nada?

— Então você teve a certeza – adiantou-se Bianca.— Faltavam ainda os motivos. Na gravadora fiquei sabendo que Barri-

os andava aparecendo na companhia de uma jovem, seu novo amor. E ob-tive o endereço dela, pois era para ela que telefonavam quando precisavam

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contatá-lo. Fui procurá-la. Estava muito assustada com tudo, mas acabou se abrindo. Ela e Barrios iam viver juntos. Apenas faltava-lhe fazer a mala.

— E a confissão, veio fácil? – perguntou Bianca, equilibrada em sua piteira.

— Aconteceu na própria polícia onde fora olhar alguns suspeitos na pas-sarela. Pretexto. O delegado já aceitara meu ponto de vista. Eu próprio lhe contei minha versão: Estela surpreendera Julio quando jogava roupas na mala para sumir. Espremeu-o. Ele confessou. Ia deixá-la por outra mulher. O amor é algo inesperado e o coração é fraco. Ela não gostou da letra desse bolero. Julio vivia praticamente à custa dela. Viu a tesoura sobre a mesa. Golpeou-o pelas costas. Depois do choque, pensou em livrar a cara. Havia terra numa floreira. Levou um pouco para o peitoril da janela. Deixou as gavetas abertas como estavam. E serviu um cuba-libre ao defunto. Antes ou depois, lembrou-se de Adão das Flores. Ele tinha mania de bancar o detetive. Julio sempre ria disso. Decidiu ir buscá-lo. Se o encontrasse, a encenação seria perfeita. Quanto à segunda ponta de cigarro, ela mesma esclareceu que a apanhara no “Yes”, enquanto esperava o detetive. Queria que ficasse bem claro que outra pessoa estivera com Julio. Enquanto isso o gelo do último cuba-libre derretia, pois o cadáver não podia renová-lo.

— Ela agiu como uma perfeita atriz – comentou Bianca. – E que grande talento!

Adão concordou:— Apenas participei como ator convidado.

REY, Marcos. “O último cuba-libre”. In: COSTA, Flávio Moreira da. Crime feito em casa: contos policiais brasileiros. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 2005.

Conto trabalhado na Escola Estadual Ayrton Senna e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro,

com alunos do 1º ano e 2° ano do Ensino Médio.

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Os romances de Conan Doyle me deram o desejo de empreender algu-ma façanha no gênero das de Sherlock Holmes. Pareceu-me que deles se con-cluía que tudo estava em prestar atenção aos fatos mínimos. Destes, por uma série de raciocínios lógicos, era sempre possível subir até o autor do crime.

Quando acabara a leitura do último dos livros do Conan Doyle, meu amigo Alves Calado teve a oportuna nomeação de delegado auxiliar. Íntimos, como éramos, vivendo juntos, como vivíamos na mesma pensão, tendo até escritório comum de advocacia, eu lhe tinha várias vezes exposto minhas ide-ias de “detetive”. Assim, no próprio dia de sua nomeação ele me disse:

— Eras tu que devias ser nomeado! Mas acrescentou, desdenhoso das minhas habilidades:— Não apanhavas nem o ladrão que roubasse o obelisco da avenida!Fi-lo, porém, prometer que, quando houvesse algum crime, eu o acom-

panharia a todas as diligências. Por outro lado levei-o a chamar a atenção do seu pessoal para que, tendo notícia de qualquer roubo ou assassinato, não invadisse nem deixasse ninguém invadir o lugar do crime.

— Alta polícia científica – disse ele, gracejando.Passei dias esperando por algum acontecimento trágico, em que pu-

desse revelar minha sagacidade. Creio que fiz mais do que esperar: cheguei a desejar.

Uma noite, fui convidado por Madame Guimarães para uma pequena reunião familiar. Em geral, o que ela chamava “pequenas reuniões” eram re-uniões de vinte a trinta pessoas, da melhor sociedade. Dançava-se, ouvia-se boa música e quase sempre ela exibia algum “número” curioso: artistas de

SE EU FOSSE SHERLOCK HOLMESMedeiros e Albuquerque

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teatro, de music-hall ou de circo, que contratava para esse fim. O melhor, porém, era talvez a palestra que então se fazia, porque era mulher muito in-teligente e só convidava gente de espírito. Fazia disso questão.

A noite em que lá estive entrou bem nessa regra.Em certo momento, quando ela estava cercada por uma boa roda, apa-

receu Sinhazinha Ramos. Sinhazinha era sobrinha de Madame Guimarães; casara-se pouco antes com um médico de grande clínica. Vindo só, todos lhe perguntaram:

— Como vai seu marido?— Tem trabalhado por toda a noite, com uma cliente.— É admirável como os médicos casados têm sempre clientes noturnas…— Má língua! ‒ replicou ela. Ele sempre os teve.Outra senhora, Madame Caldas, acudiu:— Os maridos, quando querem passar a noite fora de casa, acham sem-

pre pretextos.Voltei-me para o dr. Caldas, que era advogado, e interpelei-o: — Tem palavra o acusado!O dr. Caldas não gostou da afirmação da mulher. Resmungou apenas:— Tolices de Adélia…O embaraço dele se dissipou, porque Madame Guimarães perguntou à

sobrinha:— Onde deixastes tua capa?— No meu automóvel. Não quis ter a maçada de subir.A casa era de dois andares e Madame Guimarães, nos dias de festas,

tomava a si arrumar capas e chapéus femininos no seu quarto:— Serviço de vestiário é exclusivamente comigo. Não quero confusões.Fechado esse parêntesis, a conversa voltou ao ponto em que estava.

Declarei, então, que tinha pensado em casar-me. Antes, porém, procurava obter um lugar na Inspetoria de Iluminação. Mesmo de graça, me servia.

— Nunca a iluminação, se veria tão bem fiscalizada… Pelo menos seria isso que teria sempre para dizer para minha mulher.

Concluí melancolicamente:— Não arranjei o lugar, não me casei.Houve quem sorrisse. Sempre se encontram, felizmente, pessoas poli-

das, que fingem achar espirituosas mesmo as coisas mais insípidas.Nisto, uma das senhores presentes veio despedir-se de Madame Guim-

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arães. Precisava de seu chapéu. A dona da casa, que, para evitar trocas e de-sarrumações, era a única a penetrar no quarto que transformara em vestiário, levantou-se e subiu para ir buscar o chapéu da visita, que desejava partir.

Não se demorou muito tempo. Voltou com a fisionomia transtornada:— Roubaram-me. Roubaram o meu anel de brilhantes…Todos se reuniram em torno dela. Como era? Como não era? Não havia,

aliás, nenhuma senhora que não o conhecesse: um anel com três grandes brilhantes de um certo mau gosto espetaculoso, mas que valia de sessenta a oitenta contos.

Sherlock Holmes gritou dentro de mim: “Mostra o teu talento, rapaz!”. Sugeri logo que ninguém entrasse no quarto. Ninguém! Era preciso que

a Polícia pudesse tomar as marcas digitais que por acaso houvesse na mesa de cabeceira de Madame Guimarães. Porque era lá que tinha estado a jóia.

Saltei ao telefone, toquei para o Alves Calado, que se achava de serviço nessa noite, e preveni-o do que havia, recomendando-lhe que trouxesse al-guém, perito em datiloscopia.

Ele respondeu de lá com a sua força habitual:— Vais afinal entrar em cena com a tua alta polícia científica? Objetou-me, porém, que a essa hora não podia achar nenhum perito.

Aprovou, entretanto, que eu não consentisse ninguém entrar no quarto. Subi então com todo o grupo para fecharmos a porta a chave. Antes de se fechar, era, porém, necessário que Madame Guimarães tirasse as capas que estavam no seu leito. Todos ficaram no corredor, mirando, comentando. Eu fui o único que entrei, mas com cuidado extremo, um cuidado um tanto cômico de não tocar em coisa alguma. Como olhasse para o teto e para o assoalho, uma das senhoras me perguntou se estava jogando “ o carneirinho-carneirão, olhai p’ra o céu, olhai p’ra o chão”.

Retiradas as capas, o zunzum das conversas continuava. Ninguém tinha entrado no quarto fatídico. Todos o diziam e repetiam.

Foi no meio dessas conversas que Sherlock Holmes cresceu dentro de mim. Anunciei:

— Já sei quem furtou o anel.De todos os lados surgiam exclamações. Algumas pessoas se limitavam

a interjeições: “Ah!”, “Oh!”. Outras perguntavam quem tinha sido. Sherlock Holmes disse o que ia fazer, indicando um gabinete próximo:— Eu vou para aquele gabinete. Cada uma das senhoras aqui presentes

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fecha-se ali em minha companhia por cinco minutos.— Por cinco minutos? ‒ indagou dr. Caldas.— Porque eu quero estar o mesmo tempo com cada uma, para não se

poder concluir da maior demora com qualquer delas que essa foi a culpada. Serão para cada uma cinco minutos cronométricos.

O dr. Caldas voltou, gracejando:— Mas V. veja o que faz. Não procure namorar minha mulher, senão eu

lhe dou um tiro.Houve uma hesitação. Algumas diziam estar acima de qualquer suspeita,

outras que não se submetiam a nenhum inquérito policial. Venceu, porém, o partido das que diziam “quem não deve não teme”. Eu esperava, paciente. Por fim, quando vi que todas estavam resolvidas, lembrei que seria melhor quem fosse saindo despedir-se e partir.

E a cerimônia começou. Cada uma das senhoras esteve trancada comi-go justamente os cinco minutos que eu marcara.

Quando a última partiu, saiu do gabinete, achei à porta ansiosa, Ma-dame Guimarães:

— Venha comigo ‒ disse-lhe eu.Aproximei-me do telefone, chamei Alves Calado e disse-lhe que não

precisava mais tomar providência alguma, porque o anel fora achado.Voltando-me para Madame Guimarães entreguei-o então. Ela estava tão

nervosa que me abraçou e até beijou freneticamente. Quando, porém, quis saber quem fora a ladra, não me arrancou nem uma palavra.

No quarto, ao ver Sinhazinha Ramos entrar, tínhamos tido, mais ou menos, a seguinte conversa:

— Eu não vou deitar verdes para colher maduros, não vou armar cilada alguma. Sei que foi a senhora que tirou a jóia de sua tia.

Ela ficou lívida. Podia ser de medo. Podia ser cólera. Mas respondeu firmemente:

— Insolente! É assim que o senhor está fazendo com todas, para desco-brir a culpada?

— Está enganada. Com as outras converso apenas, conto-lhes anedo-tas. Com a senhora, não; exijo que me entregue o anel.

Mostrei-lhe o relógio para que visse que o tempo estava passado.— Note ‒ disse eu ‒ que tenho uma prova, posso fazer ver a todos.Ela se traiu, pedindo:

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— Dê sua palavra de honra que tem essa prova!Dei. Mas o seu sorriso lhe mostrou que ela, sem dar por isso, confessara

indiretamente o fato.— E já agora ‒ acrescentei ‒ dou-lhe também a minha palavra de honra

que nunca ninguém saberá por mim o que fez.Ela tremia toda.— Veja que falta um minuto. Não chore. Lembre-se de que precisa sair

daqui com uma fisionomia jovial. Diga que estivemos falando de modas.Ela tirou a jóia do seio, deu-ma e perguntou:— Qual é a prova?— Esta ‒ disse-lhe eu apontando para uma esplêndida rosa-chá que ela

trazia. ‒ É a única pessoa, esta noite, que tem aqui uma rosa amarela. Quan-do foi ao quarto de sua tia, teve a infelicidade de deixar cair duas pétalas dela. Estão junto da mesa de cabeceira.

Abri a porta. Sinhazinha compôs magnificamente, imediatamente, o mais encantador, o mais natural dos sorrisos e saiu dizendo:

— Se este Sherlock fez com todas o mesmo o que fez comigo vai ser um fiasco.

Não foi fiasco, mas foi pior.Quando Sinhazinha chegara, subira, logo. Graças à intimidade que tinha

na casa, onde vivera até a data do casamento, podia fazer isso naturalmente. Ia só para deixar a sua capa dentro do armário. Mas, à procura de um al-finete, abriu a mesinha de cabeceira, viu o anel, sentiu a tentação de roubá-lo e assim fez. Lembrou-se de que tinha de ir para a Europa daí a um mês. Lá venderia a jóia. Desceu então novamente com a capa e mandou pô-la no automóvel. E como ninguém a tinha visto subir, pôde afirmar que não fora ao andar superior.

Eu estraguei tudo.Mas a mulherzinha se vingou: a todos insinuou que provavelmente o

ladrão tinha sido eu mesmo, e, vendo o caso descoberto antes da minha reti-rada, armara aquela encenação para atribuir a outrem o meu crime.

O que sei é que Madame Guimarães, que sempre me convidava para as suas recepções, não me convidou para a de ontem… Terá talvez sido a primei-ra a acreditar na sobrinha.

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ALBUQUERQUE, Medeiros. Se eu fosse Sherlock Holmes. In: Para gostar de ler – Histórias de detetive. São Paulo: Ática, 1998.

Conto trabalhado na Escola Estadual Ayrton Senna, Escola Mu-

nicipal Lavínia Dória e Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch,

com alunos do 1º ano e 2° ano do Ensino Médio e 6° ano do

Ensino Fundamental.

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A sra. Hudson, senhoria de Sherlock Holmes, era uma criatura dotada de paciência infinita. Não só seu apartamento do primeiro andar era continu-amente invadido por legiões de pessoas de aspecto estranho e muitas vezes indesejáveis, mas seu extraordinário inquilino mostrava uma extravagância e uma irregularidade de vida capazes de pôr à prova sua resignação. O incrível desmazelo, a paixão pela música nas horas mais insólitas, os exercícios oca-sionais de tiro ao alvo no interior do apartamento, as fantásticas e geralmente malcheirosas experiências científicas, e a atmosfera de violência e perigo que o rodeava, faziam de Sherlock Holmes o pior pensionista de Londres. Por out-ro lado, no entanto, ele pagava um aluguel principesco, e não tenho dúvidas de que todo o prédio poderia ser comprado com o dinheiro que Holmes pagou por seu apartamento durante o tempo em que vivi com ele.

A pobre mulher tratava-o com a mais profunda reverência, e jamais ousava interferir em sua conduta, por mais descabida que fosse. Dedicava-lhe também grande estima, pois Holmes usava, no trato com as senhoras, de gentileza e atenção fora do comum. Embora detestasse o sexo oposto e não tivesse a menor confiança nele, fora sempre um adversário cavalheiresco. Sa-bendo como era sincera a amizade que esta senhora lhe dedicava, ouvi atenta e ansiosamente a narrativa que ela veio fazer-me em meu apartamento, no segundo ano de minha vida de homem casado, e com a qual me pôs a par do triste estado a que meu amigo estava reduzido.

— Ele está à morte, dr. Watson — disse-me. — Há três dias que piora a olhos vistos, e não sei se conseguirá resistir até a noite. Não quis deixar-me chamar um médico. Hoje de manhã, quando lhe vi o rosto encovado e aqueles

SHERLOCK HOLMES À BEIRA DA MORTEArthur Conan Doyle

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enormes olhos brilhantes fitando-me, não pude resistir mais. “Com sua licença ou sem ela, sr. Holmes, vou chamar um médico imediatamente”, disse-lhe eu. “Se é assim, chame Watson”, respondeu. Se estivesse em seu lugar, doutor, não perderia tempo, caso queira encontrá-lo com vida.

Fiquei horrorizado, pois nada sabia de sua doença. É inútil dizer que me apressei a pôr o sobretudo e o chapéu, e, enquanto íamos no carro, pedi à boa criatura outros pormenores.

— Pouco lhe posso dizer, doutor. Ele andava ocupado num caso lá para as bandas de Rotherhithe, numa viela junto ao rio, e voltou com essa molés-tia. Caiu de cama na quarta-feira à tarde, e desde então tem permanecido deitado. Há três dias que não prova líquido ou alimento algum.

— Santo Deus! Por que não chamou um médico?— Ele não o permitiu, já lhe disse. O senhor sabe como ele é autoritário!

Mas não lhe resta muito tempo de vida, como verá logo que lhe puser os olhos em cima.

Holmes oferecia realmente um espetáculo confrangedor. Na luz incerta daquele dia nevoento de novembro, o quarto do doente era um lugar triste, mas foi principalmente seu rosto lívido e descarnado, fitando-me do leito, que me gelou o coração. Os olhos luziam devido à febre, havia no rubor das faces sinais de exaustão progressiva do organismo, e crostas escuras denegriam-lhe os lábios; as mãos exangues contraíam-se incessantemente sobre o cobertor, e a voz era áspera e entrecortada. Jazia inerte na cama quando entrei; contu-do, minha presença fez emanar de seus olhos um brilho de lucidez.

— Olá, Watson! Parece que a coisa vai mal — disse-me num fio de voz, na qual se percebiam ainda traços do antigo tom despreocupado.

— Meu caro amigo! — exclamei, dirigindo-me a ele.— Não se aproxime! Não se aproxime! — bradou, na voz cortante e im-

periosa que só lhe ouvira em ocasiões de grande perigo. — Se chegar perto de mim, Watson, serei constrangido a fazer com que se retire desta casa.

— Mas por quê?— Porque assim o desejo. Não lhe basta isso?Sim, a sra. Hudson tinha razão. Estava mais autoritário que nunca; to-

davia, era triste vê-lo naquele estado.— Desejava apenas ajudá-lo — murmurei.— Exatamente! Você me será muito mais útil se fizer o que estou dizen-

do.

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— É claro, Holmes.A rispidez de suas maneiras abrandou.— Você não ficou aborrecido? — perguntou ofegante.Pobre amigo, como poderia ficar aborrecido, vendo-o reduzido àquela

situação?— É para seu próprio bem, Watson — rouquejou.— Para meu próprio bem?— Sei o que tenho. É a chamada moléstia dos cules de Sumatra, mal

que os holandeses conhecem melhor do que nós, apesar de não terem con-seguido remédio contra ele. Só uma coisa é certa: é mortal e terrivelmente contagioso.

Falava com uma energia febril, enquanto suas longas mãos se agitavam e torciam na ânsia de me afastar.

— Transmite-se pelo simples contato, Watson… pelo simples contato. Conserve-se à distância e tudo estará bem.

— Por Deus, Holmes! Você julga que eu posso tomar isso em consider-ação? Não o faria nem mesmo no caso de um estranho, quanto mais quando se trata de cumprir meu dever para com um velho amigo.

Fiz de novo menção de me avizinhar, mas ele repeliu-me com um olhar furioso de cólera.

— Se você ficar onde está, falarei. Caso contrário, terá de sair deste quarto.

Tenho um respeito tão profundo pêlos dotes extraordinários de Holmes, que costumo sempre ceder a seus desejos, ainda quando não os compreendo. Nesse momento, porém, todo o meu instinto profissional se insurgia. Podia aceitar suas ordens em qualquer outro lugar, mas, num quarto de doente, quem mandava era eu.

— Holmes — disse-lhe —, você está fora de si. Um homem enfermo é como uma criança, e eu o tratarei como tal. Queira ou não queira, vou exam-inar seus sintomas e tratar de curá-lo.

Meu amigo lançou-me um olhar irritado:— Já que preciso dos serviços de um médico, ainda que contra minha

vontade, permita-me ao menos chamar um no qual eu deposite confiança.— Então você não confia em mim?— Em sua amizade, certamente; contudo, fatos são fatos, Watson, e,

afinal de contas, você não passa de um simples clínico com experiência muito

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limitada e dotes medíocres. É doloroso ter de lhe dizer estas coisas, mas você não me dá outra alternativa.

Senti-me profundamente magoado.— Tal observação é indigna de você, Holmes. Ela revela claramente o

estado de seus nervos. Todavia, se não tem confiança em mim, não lhe impo-rei meus serviços. Deixe-me então chamar Sir Jasper Meek ou Penrose Fisher, ou outro qualquer dos melhores médicos de Londres. Mas alguém precisa ser chamado; quanto a isso, não há dúvida. Se pensa que vou ficar aqui vendo-o morrer, sem cuidar de você ou trazer alguém que o faça, engana-se redonda-mente.

— Acredito em suas boas intenções, Watson — disse o enfermo, entre um soluço e um gemido. — Quer que lhe demonstre sua ignorância? O que sabe você, por exemplo, a respeito da febre de Tapanuli? Que noções tem da putrefação negra de Formosa?

— Nunca ouvi falar nelas.— Existem muitas doenças desconhecidas, e ignoram-se muitos prob-

lemas patológicos com relação ao Oriente, Watson.Interrompia-se a cada frase, a fim de recobrar as poucas forças que lhe

restavam.— Aprendi tudo no decurso de recentes pesquisas de caráter médico-le-

gal. Contraí esta infecção quando me encontrava empenhado nelas. Você não poderá fazer nada.

— Talvez não; mas sei que o dr. Ainstree, a maior autoridade viva em doenças tropicais, está atualmente em Londres. Qualquer objeção de sua par-te será inútil, Holmes. Vou buscá-lo imediatamente — retorqui-lhe, dirigin-do-me, resoluto, para a porta.

Jamais experimentei tamanho choque. Num abrir e fechar de olhos, o moribundo, com um salto tigrino, tinha- me interceptado o caminho. Ouvi o estalido de uma chave girando na fechadura. Um momento depois, ele tinha regressado cambaleante à cama, exausto e arquejante, após tão violento des-perdício de energia.

— Não me tirará esta chave nem à força, Watson. Tenho-o em meu poder, caro amigo, e aqui ficará até eu resolver o contrário. No entanto, com-preendo sua atitude para comigo. — Tudo isso foi dito aos arrancos, entre esforços terríveis para tomar fôlego, — Sei que deseja unicamente meu bem. Percebo-o com clareza. Poderá fazer o que quiser depois; antes, porém, dê-

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me tempo para recuperar as forças. Agora não, Watson, agora não. São qua-tro horas. Às seis poderá ir.

— Mas isso é uma loucura, Holmes.— Somente duas horas, Watson. Prometo deixá-lo partir às seis. Quer

esperar?— Parece não haver outra alternativa.— Nenhuma outra, Watson. Obrigado, não precisa me ajudar a arranjar

as cobertas. Por favor, mantenha-se à distância. E agora, devo impor-lhe out-ra condição. Você procurará auxílio, não o do homem a que se referiu, mas do que eu escolher.

— Perfeitamente.— É a primeira palavra sensata que pronuncia desde sua entrada neste

quarto, Watson. Há alguns livros naquela estante. Sinto-me um pouco es-gotado. Será esta a sensação de uma bateria ao verter eletricidade num mau condutor? Às seis retomaremos nossa conversação.

Isso, porém, devia suceder muito antes da hora aprazada, e em circun-stâncias que me causaram uma emoção quase tão grande como a motivada pelo pulo em direção à porta. Permaneci alguns minutos olhando para aquele vulto silencioso estirado sobre a cama. Tinha o rosto quase oculto pelas co-bertas e parecia dormir. Incapaz de me sentar para ler, pus-me a vaguear lentamente pelo quarto, examinando os retratos de criminosos célebres com os quais as paredes estavam guarnecidas. Afinal, em meu deambular sem destino, cheguei diante do consolo da lareira. Sobre ele viam-se, espalhados em desordem, cachimbos, bolsas de tabaco, seringas, canivetes, cartuchos de revólver e diversos outros objetos. Entre estes, uma caixinha de marfim branco e preto, de tampa móvel. Atraído pela sua beleza, já tinha estendido a mão para examiná-la mais de perto, quando…

Que grito medonho ele soltou… grito que ao certo deveria ter sido ouvi-do da rua. Fiquei gelado de susto, e meus cabelos se arrepiaram. Voltando-me rapidamente, vislumbrei um rosto convulso e dois olhos alucinados. Perman-eci tolhido, com a caixinha na mão.

— Ponha isso aí! Depressa, Watson… já lhe disse!Voltou a reclinar a cabeça no travesseiro e emitiu um profundo suspiro

de alívio, ao ver-me pôr de novo a caixa sobre a prateleira.— Não gosto que mexam em minhas coisas, Watson. Você bem sabe

disso. E pare de me atormentar. Você, médico… é suficiente para levar um

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paciente ao hospício. Sente-se, homem, e deixe-me repousar em paz!Esse incidente produziu uma desagradável impressão em meu espírito.

A irritação, violenta e infundada, acompanhada de palavras tão rudes, de tal modo diferente de sua habitual gentileza, revelavam-me como era intensa a desorganização de sua mente. De todas as ruínas, a de um cérebro esclare-cido é a mais deplorável. Sentei-me numa cadeira, terrivelmente abatido, e esperei que o tempo passasse. Ele devia estar consultando o relógio como eu, pois, mal haviam soado as seis horas, começou a falar com a mesma an-imação febril.

— Ouça, Watson — disse-me —, tem dinheiro trocado no bolso?— Tenho.— Moedas de prata?— Uma boa quantidade.— Quantas meias-coroas?— Cinco.— Ah! Muito poucas! Muito poucas! Que infelicidade a minha, Watson!

Apesar de tudo, é melhor pô-las no bolsinho do colete, e o resto de dinheiro no bolso esquerdo das calças. Obrigado. Isso manterá melhor seu equilíbrio.

Era puro delírio. Estremeceu e deixou escapar novamente dos lábios aquele ruído, misto de tosse e soluço.

— Agora acenda o gás, Watson, mas tenha muito cuidado em não le-vantar a chama, nem por um instante, acima da metade normal. Peço-lhe para agir com cautela. Obrigado, assim está ótimo. Não, não precisa fechar as cortinas. Faça o favor de colocar algumas cartas e jornais sobre esta mesa, a meu alcance. Obrigado. Agora um pouco daquelas quinquilharias que estão no consolo da lareira. Ótimo, Watson! Encontrará aí uma pinça para cubinhos de açúcar.

“Queira pegar com ela essa caixinha de marfim. Ponha-a aqui entre os jornais. Muito bem! Agora pode ir buscar, no número 13 da Lower Burke Street, o sr. Culverton Smith.”

Para dizer a verdade, meu desejo de chamar um médico diminuíra, pois meu amigo estava num estado visível de delírio, e me parecia perigoso aban-doná-lo naquele instante. Todavia, mostrava-se agora ansioso por consultar a pessoa indicada, sem embargo de sua relutância anterior.

— Nunca ouvi tal nome — respondi.— É provável, meu bom Watson. Talvez fique surpreendido ao saber

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que a pessoa mais versada nesta moléstia, no mundo, não é um médico, mas um lavrador. O sr. Culverton Smith é um ilustre fazendeiro de Sumatra, atualmente de visita a Londres. Um surto epidêmico da doença em sua pro-priedade, distante de qualquer auxílio médico, forçou-o a estudá-la por conta própria, com resultados notáveis. Como é criatura muito metódica, não queria que você fosse procurá-lo antes das seis, pois tinha a certeza de que não o encontraria em casa. Se conseguir convencê-lo a vir aqui e conceder-nos o benefício de sua experiência, única no campo desta doença, cujo estudo tem sido seu passatempo favorito, estou certo de que ele poderá curar-me.

Reproduzi as palavras de Holmes como se tivessem sido pronunciadas consecutivamente, sem explicar que eram interrompidas por súbitas faltas de ar e pelo contínuo contrair das mãos, que indicavam o sofrimento pelo qual estava passando. Naquelas poucas horas, seu aspecto piorara bastante. A vermelhidão do rosto era ainda mais pronunciada, os olhos luziam com maior brilho na concavidade das órbitas escuras, e um suor gélido cobria-lhe a fron-te. Ainda conservava, contudo, o tom imperioso da voz que havia de acom-panhá-lo até o último alento.

— Conte-lhe exatamente como me deixou — disse.— Transmita-lhe com fidelidade a impressão produzida por mim em seu

espírito… a de um moribundo… um moribundo delirante. Francamente, não consigo compreender por que razão todo o leito do oceano não se tornou uma única massa compacta de ostras, tão prolíferas me parecem essas criaturas. Oh! Estou divagando. É estranho como o cérebro controla o cérebro. Que dizia eu, Watson?

— Dava-me instruções para falar com o sr. Culverton Smith.— Ah! Sim; lembro-me agora. Minha vida depende disso. Insista com

ele. Não estamos em muito boas relações. O sobrinho dele… eu suspeitava de algo criminoso e contei-lhe isso. O rapaz morreu em condições horríveis. Ele nutre certo rancor por mim. Procure abrandá-lo, Watson. Sei que não falhará, pois jamais me desiludiu. Existem, sem dúvida, inimigos naturais que limitam o aumento desses moluscos. Você e eu, Watson, fizemos nossa obrigação. Será, então, o universo submergido pelas ostras? Não, não; seria monstruoso! Você transmitirá fielmente a impressão que produzi em seu espírito.

Deixei-o com a dolorosa impressão daquele esplêndido cérebro profer-indo disparates como uma criança. Tinha-me entregado a chave, e apressei-me a guardá-la comigo, receoso de que ele se trancasse por dentro. A sra.

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Hudson esperava no corredor, trêmula e chorosa. Ao descer as escadas, ainda ouvi a voz aguda e penetrante de Holmes a expandir-se numa canção de-sconexa. Na rua, enquanto chamava um carro, um homem dirigiu-se a mim através do nevoeiro.

— Como passa o sr. Holmes, doutor? — indagou.Era um velho conhecido, o inspetor Morton, da Scotland Yard, vestido à

paisana.— Muito mal — respondi.E le fitou-me de maneira tão singular que, se não fosse demasiado

perverso, diria ter-lhe obrigado no rosto, à luz tênue do lampião, um lampejo de alegria.

— Ouvi falar nisso — observou.Entretanto, o carro chegou e nós nos separamos.A Lower Burke Street era um conjunto de lindas casas residenciais situ-

adas no vago limite entre Notting Hill e Kensington. O carro parou em frente a uma casa que apresentava um aspecto sóbrio e uma delicada imponência, com suas grades de ferro antiquadas, sua porta maciça e seus luzentes or-natos de bronze. Tudo isso condizia com o solene mordomo que surgiu, en-quadrado na rósea claridade de uma lâmpada colorida pendente do vestíbulo.

— O sr. Culverton está, sim, senhor. Dr. Watson? Muito bem. Levar-lhe-ei seu cartão.

Meu humilde nome e meu título não pareceram impressionar o sr. Cul-verton Smith. Através da porta entreaberta, ouvi uma voz aguda e petulante:

— Quem é esse sujeito? O que ele quer? Com mil demônios, Staples, quantas vezes já lhe disse que não desejo ser perturbado nas minhas horas de estudo?

Percebi a voz do mordomo, submissa, gaguejando desculpas e expli-cações.

— Não importa, não posso recebê-lo, Staples. Não admito que meu tra-balho seja interrompido desta maneira. Diga-lhe que não estou em casa. Que volte amanhã de manhã, se deseja de fato falar comigo.

Novamente o mesmo murmúrio respeitoso.— Está bem, está bem, dê-lhe meu recado. Pode vir amanhã de manhã,

se quiser. Meu trabalho não pode ser retardado.Pensei em Holmes, debatendo-se em seu leito de enfermo e talvez con-

tando inquieto os minutos, na expectativa de que eu pudesse levar-lhe socor-

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ro. A ocasião não era para cerimônias. Sua vida dependia de minha presteza de ação. Antes que o mordomo me tivesse transmitido o recado, eu o empur-rara para o lado e irrompera na sala.

Com um grito estridente de cólera, um homem levantou-se de uma poltrona, ao pé da lareira. Vi à minha frente um enorme rosto queimado de sol, com uma pele grosseira e untuosa, vasto queixo duplo e olhos cinzentos, sombrios e ameaçadores, fitando-me sob as espessas sobrancelhas grisalhas. O largo crânio estava coberto por um barrete de veludo, posto elegantemente de lado sobre a superfície rosada e luzidia. A cabeça era descomunalmente grande, e todavia, baixando o olhar, vi, para minha surpresa, que a figura do homem era pequena e frágil, de ombros e costas torcidos como os de alguém que na infância tivesse sofrido de raquitismo.

— Que história é essa? — bradou em voz estentórea.— Que significa essa intrusão? Não lhe tinha mandado dizer que só

poderia recebê-lo amanhã?— Sinto muito — respondi —, trata-se, porém, de um assunto inadiável.

O sr. Sherlock Holmes…A simples menção do nome de meu amigo produziu extraordinário efeito

no homenzinho. A expressão de cólera desapareceu-lhe imediatamente do rosto. Sua fisionomia tornou-se tensa e vigilante.

— Vem da parte de Holmes? — indagou.— Acabo de deixá-lo.— Que aconteceu? Como está ele?— Acha-se gravemente enfermo, em estado desesperador. Eis por que

vim procurá-lo.O homem fez sinal para que me sentasse e voltou a acomodar-se na

poltrona. Nesse momento vislumbrei-lhe o rosto, refletido no espelho que se encontrava sobre o consolo da lareira. Teria jurado ler nele um sorriso maligno, odioso. Todavia, convenci-me de que fora apenas o efeito de algu-ma contração nervosa, pois logo em seguida encarou-me com ar de sincera preocupação.

— Lamento-o muito — disse ele. — Conheço o sr. Holmes apenas at-ravés de certos negócios em que estivemos empenhados, mas nutro o máx-imo respeito por seu talento e caráter. Ele é um curioso do crime, como eu o sou das moléstias. Para ele, o delinqüente, para mim, o micróbio. Eis minhas prisões — continuou, indicando-me uma fileira de frascos e tubos que se en-

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contravam sobre uma mesinha. — Nesses meios de cultura cumprem pena alguns dos piores malfeitores do mundo.

— É exatamente por causa de seus conhecimentos especializados que Holmes deseja vê-lo. Ele o tem em alto conceito, e julga ser o senhor o único homem em Londres que pode salvá-lo.

O homenzinho estremeceu, e seu elegante barrete escorregou para o chão.

— Como? — perguntou. — Por que acredita o sr. Holmes que eu o possa socorrer na contingência em que se encontra?

— Por causa de sua experiência no tocante a doenças tropicais.— Mas por que ele julga que a moléstia que contraiu é de origem trop-

ical?— Porque no decurso de certa investigação profissional recente, esteve

trabalhando nas docas entre marinheiros malaios.O sr. Culverton Smith sorriu benevolamente e apanhou o barrete do

chão.— Ah? É isso? Vai ver que a coisa não é tão grave como pensa. Há quan-

to tempo está doente? — indagou.— Há cerca de três dias.— Tem sido acometido de delírios?— De vez em quando.— Hum! Isso me parece grave. Seria desumano não atender a seu pedi-

do. Não tolero que ninguém me interrompa nas horas de trabalho, dr. Watson, mas este é, sem dúvida, um caso excepcional. Num minuto estarei pronto para acompanhá-lo.

Lembrei-me de uma recomendação de Holmes.— Neste momento tenho outro compromisso — repliquei.— Está bem; irei sozinho. Sei o endereço de Holmes. Pode ficar certo de

que estarei lá dentro de meia hora no máximo.Regressei ao quarto de Holmes com o coração apertado no peito. Por

tudo quanto me era dado saber, receava que durante minha ausência tivesse sobrevindo algum acesso fatal; no entanto, para meu grande alívio, ele mel-horara sensivelmente durante esse intervalo. Seu aspecto ainda era impres-sionante, mas já não delirava e podia falar, com voz fraca, é verdade, mas com uma lucidez e uma presença de espírito maiores que de costume.

— Então, Watson, falou com ele?

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— Falei; já deve estar a caminho.— Magnífico, Watson! Magnífico! Você é o melhor dos mensageiros.— Ele queria vir comigo.— Isso não seria possível, Watson. Seria preciso impedi-lo a todo custo.

Ele perguntou o que eu tinha?— Sim; falei-lhe a respeito dos marinheiros malaios do East End.— Muito bem! Fez tudo o que um bom amigo poderia fazer. Agora pode

desaparecer de cena.— Mas devo esperar para ouvir a opinião dele, Holmes!— Está certo; contudo, tenho motivos para supor que sua opinião será

mais franca e valiosa se ele se julgar a sós comigo. Há espaço suficiente para se esconder atrás da cabeceira da cama.

— Meu caro Holmes!— Creio não haver outro remédio, Watson. O quarto não se presta para

alguém se esconder, e por isso mesmo não dá margem a suspeitas. Contudo, aí atrás, Watson, ficará bem.

Subitamente, sentou-se na cama, demonstrando uma viva atenção na fisionomia descarnada.

— Ouço o barulho de rodas de carro. Depressa, homem, se me quer bem! E não se mexa, aconteça o que acontecer… aconteça o que acontecer, ouviu? Não fale! Não faça o menor gesto! Limite-se a escutar com toda a atenção.

Num instante, todo aquele inesperado acesso de energia o abandonou como por encanto, e suas palavras dominadoras e autoritárias perderam-se nos murmúrios desconexos e ininteligíveis do delírio.

Do esconderijo para onde eu fora empurrado com tanta pressa, ouvi o soar de passos na escada e, em seguida, o abrir e fechar da porta do quarto. Depois, para minha surpresa, seguiu-se longo silêncio, interrompido apenas pela respiração irregular e ofegante do enfermo. Imaginei que nosso visitante estivesse de pé, ao lado do leito, olhando para a figura sofredora de meu ami-go. Finalmente, quebrou-se o estranho silêncio.

— Holmes! — exclamou o recém-chegado, no tom peremptório de quem procura acordar alguém. — Holmes! Não está me ouvindo, Holmes?

Ouviu-se um roçar de panos, como se ele o houvesse sacudido rude-mente pêlos ombros.

— É o sr. Smith? — sussurrou Holmes. — Quase não ousava esperar que

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viesse.O outro riu.— Nem eu teria imaginado — redargüiu. — No entanto, como vê, estou

aqui. Deve estar sentindo remorso, Holmes…— É muita bondade de sua parte… muita nobreza, Prezo muito o valor

de seus conhecimentos especializados.Nosso visitante deu uma risadinha sarcástica.— Bem sei. Felizmente, você é o único homem em Londres que tem

conhecimento deles. Já sabe o que tem?— A mesma coisa — respondeu Holmes.— Ah! Reconhece os sintomas?— Sem dúvida.— Ora, isso não me surpreende, Holmes. Não me espantaria se se tra-

tasse da mesma moléstia. Se for esse o caso, os prognósticos são péssimos. O pobre Victor já era um cadáver no quarto dia… rapaz forte e cheio de vida como era. Foi de fato uma coisa extraordinária, como você disse, ele ter con-traído, no coração de Londres, essa invulgar doença asiática… doença sobre a qual, além disso, eu tinha feito tão acurados estudos. Singular coincidência, Holmes. Houve grande habilidade de sua parte em notá-la, mas muita falta de caridade em sugerir que, entre esses dois fatos, existia relação de causa e efeito.

— Sabia que o senhor era o culpado.— Ah! Sabia então? Bem, seja como for, não pôde prová-lo. Mas que

história é essa de andar me difamando daquela maneira e depois vir ajoel-har-se diante de mim a pedir auxílio, mal se encontra em dificuldades? Que espécie de brincadeira é essa, hein?

Ouvi a respiração áspera e difícil do enfermo.— Dê-me um pouco de água — balbuciou.— Está muito próximo do fim, meu caro, mas não quero que se vá antes

de lhe dizer uma palavra. Eis por que lhe dou água. Cuidado, não a entorne! Muito bem. Compreende o que estou dizendo?

Holmes gemeu.— Faça tudo o que puder por mim. Esqueçamos o passado — murmur-

ou. — Esquecerei tudo o que disse…. Juro-lhe que o farei. Cure-me e esquec-erei tudo.

— Esquecerá o quê?

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— Ora, a morte de Victor Savage. O senhor acabou por admitir que foi o autor dela. Esquecerei isso.

— Poderá esquecer ou lembrar-se, como melhor lhe aprouver. Não o verei no banco das testemunhas, meu caro Holmes, mas num lugar muito dif-erente, onde não se diz nada, garanto-lhe. Pouco me importa que saiba como meu sobrinho morreu. Não é nele que estamos falando, mas no senhor.

— Eu sei.— O sujeito que me procurou… esqueci o nome dele… disse-me que

você contraíra essa doença quando trabalhava no East End, entre um grupo de marinheiros.

— Não há outra explicação.— Você se orgulha de sua inteligência, Holmes, não é verdade? Julga-se

muito esperto, não é? Pois agora encontrou outro mais esperto ainda. Reflita um instante, meu caro. Não se recorda de outra maneira pela qual pudesse ter apanhado isso?

— Não sei dizer. Minha memória esvaiu-se. Pelo amor de Deus, auxi-lie-me.

— Pois bem, vou ajudá-lo. Ajudá-lo a compreender o estado em que se encontra, e como chegou a ele. Quero que o saiba antes de morrer.

— Dê-me qualquer coisa que me acalme esta dor!— Ah! Dói muito, não é? Sim, os cules costumam berrar ao aproximar-se

o fim. Suponho que seja uma espécie de cãibra.— Sim; sinto cãibras.— Bem; mesmo assim poderá ouvir o que vou lhe dizer. Ouça, então!

Não se lembra de nenhum incidente estranho que lhe tivesse acontecido pou-co antes de aparecerem os primeiros sintomas?

— Não; não consigo lembrar-me de nada.— Pense bem.— Estou muito mal para poder pensar.— Pois bem, eu o ajudarei. Não chegou nada pelo correio?— Pelo correio?— Uma caixinha, por exemplo.— Estou desfalecendo… vou morrer!— Escute, Holmes!Tive a impressão de que ele sacudia o moribundo, e foi a custo que me

contive em meu esconderijo.

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— Precisa me ouvir. Precisa me ouvir, entendeu? Recorda-se de uma caixinha… uma caixinha de marfim? Chegou na quarta-feira. Você a abriu… lembra-se?

— Sim, eu a abri. Havia dentro uma agulha movida por uma mola forte. Algum jogo…

— Não era jogo, como verá à sua própria custa. Idiota, procurou sua própria ruína. Quem o mandou atravessar-se em roeu caminho? Se me tivesse deixado em paz, não lhe teria feito mal algum.

— Lembro-me agora — articulou Holmes com dificuldade. — A agulha! Saiu sangue. Essa caixinha… aí em cima da mesa.

— Exatamente essa, com os diabos! E será melhor que eu a leve comi-go. Assim se vai sua última esperança de prova. E agora que já sabe da ver-dade, Holmes, pode morrer ciente de que eu o matei. Você sabia demasiado a respeito do destino de Victor Savage, e por isso resolvi mandá-lo fazer-lhe companhia. Seu fim está muito próximo. Vou sentar-me aqui para vê-lo mor-rer.

A voz de Holmes se transformara num sussurro quase inaudível.— Que quer? — perguntou Smith. — Que aumente a chama do gás?

Ah! As sombras já começam a cair, não é? Sim, vou aumentá-la, pois assim poderei vê-lo melhor. Atravessou o quarto, e a luz, de súbito, tornou-se mais viva.

— Mais alguma coisa, meu amigo?— Um cigarro e fósforos.Por verdadeiro milagre não gritei de alegria, tal foi meu assombro.

Holmes falava em sua voz natural, um pouco fraca, talvez, porém a mesma que eu tão bem conhecia. Seguiu-se uma longa pausa, e tive a sensação de que Culverton Smith fitava meu companheiro, imobilizado de espanto.

— Que significa isso? — ouvi-o dizer por fim, em tom seco e rouco.— O melhor meio de representar com êxito um papel é identificar-se

com ele — disse Holmes. — Dou-lhe minha palavra de honra que há três dias não provava nem comida nem bebida, até o momento em que teve a gentileza de me dar aquele copo de água. Entretanto, foi do fumo que senti mais falta! Ah! Cá estão os cigarros!

Ouvi o ruído de um fósforo sendo riscado.— Assim está muito melhor. Parece-me distinguir os passos de um ami-

go.

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De fato, ouviu-se um rumor de passos do lado de fora; a porta abriu-se e o vulto do inspetor Morton surgiu no limiar.

— Está tudo em ordem, e aí tem seu homem… — disse Holmes.O policial fez os avisos de costume e concluiu:— O senhor está preso sob a acusação de homicídio de Victor Savage.— E poderá acrescentar: de tentativa de morte de Sherlock Holmes —

observou meu amigo com uma risadinha. — A fim de evitar trabalho a um inválido, o sr. Culverton Smith teve a bondade de dar nosso sinal convencio-nado, aumentando a chama do gás. A propósito, o prisioneiro tem uma caix-inha no bolso direito do casaco, a qual seria melhor retirar. Obrigado. Se eu fosse o senhor, teria mais cuidado ao pegá-la. Ponha-a aqui. Poderá ser útil no processo.

Houve um rumor súbito de luta, acompanhado de um tilintar de metais e de um grito de dor.

— O senhor quer se machucar? — perguntou o inspetor. — Faça o favor de ficar quieto.

Chegou a meus ouvidos o estalido das algemas que se fechavam.— Bela armadilha! — gritou a voz aguda e zombeteira de Smith. — Isso

o levará à cadeia, Holmes, não a mim. Ele pediu-me que viesse aqui para tratar dele. Compadeci-me dele e vim. Agora, certamente, irá afirmar que eu disse alguma coisa inventada por ele, a fim de corroborar suas suspeitas insensatas. Pode mentir quanto quiser, Holmes. Minha palavra vale o mesmo que a sua.

— Santo Deus! — exclamou Holmes. — Tinha-o esquecido completa-mente. Meu caro Watson, devo-lhe mil desculpas. E pensar que pude esquec-er-me dele! Não tenho necessidade de apresentá-lo ao sr. Culverton Smith, pois já se encontraram há algumas horas. Há um carro à espera lá embaixo? Eu o acompanharei assim que me vestir, pois talvez minha presença seja necessária no posto policial.

— Jamais senti tanta falta disto — continuou Holmes, enquanto se re-confortava, nos intervalos de sua toalete, com um copo de clarete e alguns biscoitos. — Todavia, como sabe, meus hábitos são irregulares, e esse acon-tecimento significa muito menos para mim do que para a maioria dos homens. Era-me essencial impressionar a sra. Hudson, dando a meu estado imaginário uma aparência efetiva de realidade, a fim de que você, por sua vez, o trans-mitisse a Smith. Não ficou ofendido, não é mesmo, Watson? Deve reconhecer

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perfeitamente que, entre seus numerosos dotes, não se encontra a dissimu-lação, e que, se lhe revelasse meu segredo, jamais seria capaz de convencer Smith da urgente necessidade de sua presença aqui, circunstância de vital importância para meu plano. Sabendo de sua natureza vingativa, tinha plena certeza de que viria, a fim de verificar pessoalmente o êxito de sua obra.

— Mas seu aspecto, Holmes… aquele rosto espectral?— Três dias de jejum absoluto não melhoram a beleza de ninguém, Wat-

son. Quanto ao resto, não há nada que uma boa esponja não possa limpar. Com um pouco de vaselina na testa, beladona nos olhos, carmim nas faces e crostas de cera nos lábios obtêm-se efeitos satisfatórios. A simulação de doenças é assunto a respeito do qual, mais de uma vez, já pensei em escrever uma monografia. E certas divagações ocasionais a propósito de meias-coroas, ostras ou outra coisa qualquer produzem uma aceitável aparência de delírio.

— Mas por que não deixou que eu me aproximasse de você, quando na realidade não havia perigo de infecção?

— Ainda o pergunta, Watson? Imagina que não tenho respeito pelo seu talento médico? Acha que você, com seu astuto raciocínio, se deixaria enga-nar por um moribundo que, apesar de fraco, não apresenta alteração alguma no pulso ou na temperatura? A três metros de distância, era-me fácil iludi-lo. Se não o conseguisse, quem iria fazer com que meu Smith caísse na armadil-ha? Não, Watson, eu não tocaria nessa caixinha. Poderá ver, se a observar de lado, o ponto em que a agulha se projeta para fora, como um dente de víbora. Creio que foi por meio de um estratagema análogo que o pobre Savage, único obstáculo entre esse monstro e uma herança, encontrou a morte. Minha cor-respondência, porém, como sabe, é muito variada, e estou sempre em guarda contra todos os pacotes que me vêm ter às mãos. Compreendi, todavia, que se fingisse que ele obtivera êxito em seu intento poderia talvez obter uma confissão dele. Minha simulação foi realizada com a perícia de um verdadeiro artista. Obrigado, Watson, ajude-me a vestir o casaco. Depois de cumprida nossa missão no posto policial, creio que qualquer coisa nutritiva no Simpson não seria verdadeiramente fora de propósito.

DOYLE, Conan. Sherlock Holmes à beira da morte. In: Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2006.

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Conto trabalhado na Escola Estadual Ayrton Senna e Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, com alunos do 1º ano e 2° ano

do Ensino Médio.

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FANTÁSTICO

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Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vez-es, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava. É doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos...

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – fi-cou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

— Sei de um caso de flor que é tão triste!E sorrindo:— Mas você não vai acreditar, juro.Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de con-

tar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

— Era uma moça que morava na Rua General Polidoro, começou ela. Perto do Cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arran-jada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de gen-

FLOR, TELEFONE, MOÇACarlos Drummond de Andrade

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eral, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desa-companhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

— No interior isso não é raro…— Mas a moça era de Botafogo.— Ela trabalhava?— Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de

idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruínas brancas do cemitério, mergulhada em cisma… Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.

— Que flor?— Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi

margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, es-tava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou,

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ela atendeu.— Aloooô…— Quede a flor que você tirou de minha sepultura?A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem com-

preender:— O quê?Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos

depois, o telefone chamava de novo.— Alô.— Quede a flor que você tirou de minha sepultura?Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um

trote. A moça riu de novo, mas preparada.— Está aqui comigo, vem buscar.No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:— Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não

se identificava. A moça topou a conversa:— Vem buscar, estou te dizendo.— Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha.

Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.— Mas quem está falando aí?— Me dá minha flor, eu estou te suplicando.— Diga o nome, senão eu não dou.— Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha

flor, que nasceu na minha sepultura.O trote era estúpido, não variava, e moça, enjoando logo, desligou.

Naquele dia não houve mais nada.Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, ino-

cente, foi atender.— Alô!— Quede a flor…Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira

é essa! Irritada voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:

— Olhe, vire a chapa, já está pau.— Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra

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que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.

— Essa é fraquinha. Não sabe de outra?E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia

daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo que a moça começou a ter medo.

— E eu também.— Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí

por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não para-va. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mund que seu sossego eterno – admitindo que se tra-tasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.

A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.

— A voz chamou hoje? Indagava o pai, chegando da cidade.— Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cére-

bro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares.

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Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?O rapaz começou a tocar para todos os telefones da Rua General Po-

lidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas in-frutíferas.

Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem com as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem que restituir”, etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava expli-cações.

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica…

— Mas é a tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de tele-fone?

Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo: volte para sua casa, tranquilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre men-digando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando? Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraí-da – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…

O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a

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moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas. A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, com-prou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propici-atório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.

Mas a “voz” não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adi-antava?

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortís-simo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a co-operar, ou eles mesmos são impotentes, quando alguém quer alguma coisa até sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer expli-cação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continu-amente uma certa flor, e esta flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?

— Mas, e a moça?— Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça mor-

reu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Flor, Telefone, Moça, 1951. Disponível em: <http://issuu.com/suplemtentopernambuco/docs/flor_telefone_moca>. Acesso em: 03 set. 2015.Conto trabalhado na Escola Estadual Amaro Cavalcanti, com alunos do 1º ano do Ensino Médio.

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O ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Des-de duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes.

Por isso entrara no coupé depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgul-ho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encar-nação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acer-tadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escri-ta em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lem-brou-se do seu discurso de ainda agora.

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos...”Que maravilha! Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso

daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justinia-

no, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis

SUA EXCELÊNCIALima Barreto

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devem se basear nos costumes...”O olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do líder da oposição

– foi o mais seguro penhor do efeito da frase...E quando terminou! Oh!“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele:

reformemos!”A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse

final foi recebido.O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão

iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um

só traço de fogo; depois sumiram-se.O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosfores-

cente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.

— Cocheiro, onde vamos?Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao co-

cheiro:— Onde vamos? Miserável, onde me levas?Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia

um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas.

Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o lingão da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.

— Cocheiro, onde me levas?Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz

adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.— Canalha para, para, senão caro me pagarás!O carro voava e o ministro continuava a vociferar:— Miserável! Traidor! Para! Para!Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia,

aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe

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que estava a rir-se.O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo supor-

tar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças...

Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um Coupé estacionava.Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem

(pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:

— V. Exa. quer o carro?

BARRETO, Lima. A nova Califórnia e outros contos. São Paulo: Unesp, 2012.

Conto trabalhado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, com alunos do 2° ano do Ensino

Médio.

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SUSPENSE

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Eu salvo vidas. De segunda a sábado observo criancinhas desfilando suas cândidas figuras ao descerem a pequena escada que leva à piscina. Estão bem arrumadas, com boias envolvendo seus braços gorduchos, trazidas por pais que fingem sofrimento diante da despedida, mas que não veem a hora de estarem com suas perversões.

É um trabalho tranquilo. Muito tranquilo. Raramente o professor se distrai e alguma criança se afoga. Essa falta de acontecimentos torna a minha rotina mais tediosa que contar os pelos de um gato felpudo. Dos poucos afogamen-tos ocorridos, todos foram com crianças que, de alguma forma, se perderam dos pais e correram para a área da piscina. É claro que cumpri meu trabalho e todas foram salvas, mas não pude conter a adrenalina que borbotava quase viciosa por todo o corpo ao ver aqueles rostinhos angelicais serem tragados pela água. Sempre admirava essa cena secretamente, mas não podia demorar e logo as retirava da água exercendo o meu papel de herói.

Hoje é o dia mais cheio da semana. O colorido dos maiôs e sungas borra a visão, mas não consegue nublar a minha curiosidade de saber qual será a tonalidade desses trajes quando estiverem no fundo da piscina. É uma quar-ta-feira de sol escaldante, deixo minha camiseta colar no corpo e o suor lavar meu rosto, mas não me atrevo a sair da cadeira. É melhor deixar calada a intenção.

Durante duas horas fiquei observando os corpos se esticarem e desliza-rem pela extensa superfície azul. Nadavam graciosos, exibindo formas e sor-risos, brincando de fazer ondinhas e sacudir a lisura da água. Até que o ouvir do último sino anunciou que já era hora. Os pequeninos saíram da piscina,

A SEDEFernando Ananias

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levando as cores que me despertavam. O professor, aliviado pelo fim de mais um dia daquele trabalho insosso, partiu atrás, distraído pela própria exaustão, se esquecendo de fazer a checagem rotineira.

Seria agora, No meio da multidão uma menina voltava, com a expressão de alguém que procura um objeto perdido. Sentou na borda, com os olhos atentos a investigar a água. O vermelho do maiô refletia, tremulando como a chama da vela diante do sopro do vento. Meu instinto sorria, era minha cor preferida.

Aproximei-me e perguntei se precisava de algo, fez um gesto afirmativo e me deu a mão pra que eu a levasse. Seus olhos infantis me penetravam, dizendo quão plenamente ela confiava em mim. Era melhor que assim fosse.

Sem deixar tempo para gestos desastrados ou fuga, pus minhas mãos sobre sua boca, com um braço envolvi seu pescoço e arremessei-a na água. Contemplei por um momento sua figura vibrando por baixo do azul. Cada mínima partícula do meu corpo sacolejava, e uma febre corria, me encerrando em um incêndio.

Pulei, a água me acolhia. Uni as duas mãos em volta do frágil pescoço, pressionei os dedos na sua carne fria, os olhos orbitavam, nariz expelindo sangue, boca esbranquiçada, eu sentindo um sabor, mais sabor, agora já.

O sangue eram dois raios rubros rasgando a densidade. Delícia, morte, delícia. O sabor do finalmente me embebedava. Estava sentindo, enfim, o gosto que mataria, naquele dia, a minha sede.

ANANIAS, Fernando. “A Sede”. In: BRASIL, Janaina (org). Por encomen-da: contos e outras histórias. Rio de Janeiro: Imprimatur, 2012.

Conto trabalhado na Escola Estadual Amaro Cavalcanti, com

alunos do 1º ano do Ensino Médio.

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A noite, límpida e calma, tinha sucedido a uma tarde de pavorosa tor-menta, nas profundas e vastas florestas que bordam as margens do Parnaíba, nos limites entre as províncias de Minas e de Goiás.

Eu viajava por esses lugares, e acabava de chegar ao porto, ou recebe-doria, que há entre as duas províncias. Antes de entrar na mata, a tempestade tinha-me surpreendido nas vastas e risonhas campinas, que se estendem até a pequena cidade de Catalão, donde eu havia partido.

Seriam nove a dez horas da noite; junto a um fogo aceso defronte da porta da pequena casa da recebedoria, estava eu, com mais algumas pes-soas, aquecendo os membros resfriados pelo terrível banho que a meu pesar tomara. A alguns passos de nós se desdobrava o largo veio do rio, refletindo em uma chispa retorcida, como uma serpente de fogo, o clarão avermelhado da fogueira. Por trás de nós estavam os cercados e as casinhas dos poucos habitantes desse lugar, e, por trás dessas casinhas, estendiam-se as florestas sem fim.

No meio do silêncio geral e profundo sobressaía o rugido monótono de uma cachoeira próxima, que ora estrugia como se estivesse a alguns passos de distância, ora quase se esvaecia em abafados murmúrios, conforme o cor-rer da viração.

No sertão, ao cair da noite, todos tratam de dormir, como os passarin-hos. As trevas e o silêncio são sagrados ao sono, que é o silêncio da alma.

Só o homem nas grandes cidades, o tigre nas florestas e o mocho nas ruínas, as estrelas no céu e o gênio na solidão do gabinete, costumam velar nessas horas que a natureza consagra ao repouso.

A DANÇA DOS OSSOSBernardo Guimarães

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Entretanto, eu e meus companheiros, sem pertencermos a nenhuma dessas classes, por uma exceção de regra estávamos acordados a essas horas.

Meus companheiros eram bons e robustos caboclos, dessa raça semi-selvática e nômade, de origem dúbia entre o indígena e o africano, que vagueia pelas infindas florestas que correm ao longo do Parnaíba, e cujos nomes, decerto, não se acham inscritos nos assentos das freguesias e nem figuram nas estatísticas que dão ao império ... não sei quantos milhões de habitantes.

O mais velho deles, de nome Cirino, era o mestre da barca que dava passagem aos viandantes.

De bom grado eu o compararia a Caronte, barqueiro do Averno, se as ondas turbulentas e ruidosas do Parnaíba, que vão quebrando o silêncio des-sas risonhas solidões cobertas da mais vigorosa e luxuriante vegetação, pu-dessem ser comparadas às águas silenciosas e letárgicas do Aqueronte.

— Meu amo decerto saiu hoje muito tarde da cidade, perguntou-me ele.— Não, era apenas meio-dia. O que me atrasou foi o aguaceiro, que

me pilhou em caminho. A chuva era tanta e tão forte o vento que meu cavalo quase não podia andar. Se não fosse isso, ao por do sol eu estava aqui.

— Então, quando entrou na mata, já era noite?...— Oh!... se era!... já tinha anoitecido havia mais de uma hora.— E Vm. não viu aí, no caminho, nada que o incomodasse?...— Nada, Cirino, a não ser às vezes o mau caminho, e o frio, pois eu

vinha ensopado da cabeça aos pés.— Deveras, não viu nada, nada? é o primeiro!... pois hoje que dia é?...— Hoje é sábado.— Sábado!... que me diz? E eu, na mente que hoje era sexta-feira!...

oh! Senhorinha!... eu tinha precisão de ir hoje ao campo buscar umas linhas que encomendei para meus anzóis, e não fui, porque esta minha gentinha de casa me disse que hoje era sexta-feira... e esta! E hoje, com esta chuva, era dia de pegar muito peixe... Oh! Senhorinha!... gritou o velho com mais força.

A este grito apareceu, saindo de um casebre vizinho, uma menina de oito a dez anos, fusca e bronzeada, quase nua, bocejando e esfregando os olhos; mas que me mostrava ser uma criaturinha esperta e viva como uma capivara.

— Então, senhorinha, como é que tu vais-me dizer que hoje era sexta- feira?... ah! cachorrinha! deixa-te estar, que amanhã tu me pagas... então

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hoje que dia é?...— Eu também não sei, papai, foi a mamãe que me mandou que falasse

que hoje era sexta...— É o que tua mãe sabe ensinar-te; é a mentir!... deixa, que vocês out-

ra vez não me enganam mais. Sai daqui: vai-te embora dormir, velhaquinha!Depois que a menina, assim enxotada, se retirou, lançando um olhar

cobiçoso sobre umas espigas de milho verde que os caboclos estavam a assar, o velho continuou:

— Veja o que são artes de mulher! A minha velha é muito ciumenta, e inventa todos os modos de não me deixar um passo fora daqui. Agora não me resta um só anzol com linha, o último lá se foi esta noite, na boca de um dourado; e, por culpa dessa gente, não tenho maneiras de ir matar um peixe para meu amo almoçar a amanhã!...

— Não te dê isso cuidado, Cirino; mas conta-me que te importava que hoje fosse sexta ou sábado, para ires ao campo buscar as tuas linhas?...

— O quê!... meu amo? Eu atravessar o caminho dessa mata em dia de sexta-feira?!... é mais fácil eu descer por esse rio abaixo em uma canoa sem remo!... não era à toa que eu estava perguntando se não lhe aconteceu nada no caminho.

— Mas o que há nesse caminho?... conta-me, eu não vi nada.— Vm. não viu, daqui a obra de três quartos de légua, à mão direita de

quem vem, um meio claro na beirada do caminho, e uma cova meio aberta com uma cruz de pau?

— Não reparei; mas sei que há por aí uma sepultura de que se contam muitas histórias.

— Pois muito bem! Aí nessa cova é que foi enterrado o defunto Joaquim Paulista. Mas é a alma dele só que mora aí: o corpo mesmo, esse anda espat-ifado aí por essas matas, que ninguém mais sabe dele.

— Ora valha-te Deus, Cirino! Não te posso entender. Até aqui eu acred-itava que, quando se morre, o corpo vai para a sepultura, e a alma para o céu, ou para o inferno, conforme as suas boas ou más obras. Mas, com o teu defunto, vejo agora, pela primeira vez, que se trocaram os papéis: a alma fica enterrada e o corpo vai passear.

— Vm. não quer acreditar!... pois é coisa sabida aqui, em toda esta re-dondeza, que os ossos de Joaquim paulista não estão dentro dessa cova e que só vão lá nas sextas-feiras para assombrar os viventes; e desgraçado daquele

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que passar aí em noite de sexta-feira!...— Que acontece?...— Aconteceu o que já me aconteceu, como vou lhe contar.Um dia, há de haver coisa de dez anos, eu tinha ido ao campo, à casa de

um meu compadre que nora da aqui a três léguas. Era uma sexta-feira, ainda me lembro, como se fosse hoje.

Quando montei no meu burro para vir-me embora, já o sol estava baix-inho; quando cheguei na mata, já estava escuro; fazia um luar manhoso, que ainda atrapalhava mais a vista da gente.

Já eu ia entrando na mata, quando me lembrei que era sexta-feira. Meu coração deu uma pancada e a modo que estava me pedindo que não fosse para diante. Mas fiquei com vergonha de voltar. Pois um homem, já de idade como eu, que desde criança estou acostumado a varar por esses matos a toda hora do dia ou da noite, hei de agora ter medo? De quê? Encomendei-me de todo o coração à Nossa Senhora da Abadia, tomei um bom trago na guampa que trazia sortida na garupa, joguei uma masca de fumo na boca, e toquei o burro para diante. Fui andando, mas sempre cismado; todas as histórias que eu tinha ouvido contar da cova de Joaquim Paulista estavam-se-me repre-sentando na ideia: e ainda, por meus pecados, o diabo do burro não sei o que tinha nas tripas que estava a refugar e a passarinhar numa toada.

Mas, a poder de esporas, sempre vim varando. À proporção que ia che-gando perto do lugar onde está a sepultura, meu coração ia ficando pequeni-no. Tomei mais um trago, rezei o Creio em Deus Padre, e toquei para diante. No momento mesmo em que eu ia passar pela sepultura, que eu queria pas-sar de galope e voando se fosse possível, aí é que o diabo do burro dos meus pecados empaca de uma vez, que não houve força de esporas que o fizesse mover.

Eu já estava decidido a me apear, largar no meio do caminho burro com sela e tudo, e correr para a casa; mas não tive tempo. O que eu vi, talvez Vm. não acredite; mas eu vi como estou vendo este fogo: vi com estes olhos, que a terra há de comer, como comeu os do pobre Joaquim Paulista... mas os dele nem foi a terra que comeu, coitado! Foram os urubus, e os bichos do mato. Dessa feita acabei de acreditar que ninguém morre de medo; se morresse, eu lá estaria até hoje fazendo companhia ao Joaquim Paulista. Cruz!... Ave Maria!...

Aqui o velho fincou os cotovelos nos nós joelhos, escondeu a cabeça en-

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tre as mãos e pareceu-me que resmungou uma Ave-Maria. Depois, acendeu o cachimbo, e continuou:

— Vm. se reparasse, havia de ver que o mato faz uma pequena aberta da banda, em que está a sepultura do Joaquim Paulista.

A lua batia de chapa na areia branca do meio da estrada. Enquanto eu estou esporeando com toda a força a barriga do burro, salta lá, no meio do caminho, uma cambada de ossinhos brancos, pulando, esbarrando uns nos outros, e estalando numa toada certa, como gente que está dançando ao toque de viola. Depois, de todos os lados, vieram vindo outros ossos maiores, saltando e dançando da mesma maneira.

Por fim de contas, veio vindo lá, de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo; e dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da roda. Dai começaram aqueles ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava quieta no meio, dando de vez em quando pu-los no ar, e caindo no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam num corrupio, estalando uns nos outros, como fogo da queimada, quando pega forte num sapezal.

Eu bem queria fugir, mas não podia; meu corpo estava como estátua, meus olhos estavam pregados naquela dança dos ossos, como sapo quando enxerga cobra; meu cabelo, enroscado como Vm. está vendo, ficou em pé como espetos.

Daí a pouco os ossinhos mais miúdos, dançando, dançando sempre e batendo uns nos outros, foram-se ajuntando e formando dois pés de defunto.

Estes pés não ficam quietos, não; e começam a sapatear com os outros ossos numa roda viva. Agora são os ossos das canelas, que lá vêm saltando atrás dos pés, e de um pulo, trás!... se encaixaram em cima dos pés. Daí a um nada vêm os ossos das coxas, dançando em roda das canelas, até que, também de um pulo, foram-se encaixar direitinho nas juntas dos joelhos. Toca agora as duas pernas que já estão prontas a dançar com os outros ossos.

Os ossos dos quadris, as costelas, os braços, todos esses ossos que ainda agora saltavam espalhados no caminho, a dançar, a dançar, foram pou-co a pouco se ajuntando e embutindo uns nos outros, até que o esqueleto se apresentou inteiro, faltando só a cabeça. Pensei que nada mais teria que ver; mas ainda me faltava o mais feio. O esqueleto pega na caveira e começa a fazê-la rolar pela estrada, e a fazer mil artes e piruetas; depois entra a jogar peteca com ela, e a atirá-la pelos ares mais alto, mais alto, até o ponto de

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fazê-la sumir-se lá pelas nuvens; a caveira gemia zunindo pelos ares, e vinha estalar nos ossos da mão do esqueleto, como uma espoleta que rebenta. Af-inal o esqueleto escachou as pernas e os braços, tomando toda a largura do caminho, e esperou a cabeça, que veio cair direito no meio dos ombros, como uma cabaça oca que se rebenta em uma pedra, e olhando para mim com os olhos de fogo!...

Ah! meu amo!... Eu não sei o que era feito de mim!... Eu estava sem fôlego, com a boca aberta querendo gritar e sem poder, com os cabelos espe-tados; meu coração não batia, meus olhos não pestanejavam. O meu burro mesmo estava tremer e encolhia-se todo, como quem queria sumir-se debaixo da terra. Oh! se eu pudesse... fugir naquela hora, eu fugia ainda que tivesse de entrar pela goela de uma sucuri adentro.

Mas ainda não contei tudo. O maldito esqueleto do inferno — Deus me perdoe! — não tendo mais nem um ossinho com quem dançar, assentou de divertir- se comigo, que ali estava sem pingo de sangue, e mais morto do que vivo, e começa a’ dançar defronte de mim, como essas figurinhas de papelão que as crianças, com uma cordinha, fazem dar de mão e de pernas; vai-se chegando cada vez mais para perto, dá três voltas em roda de mim, dançando e estalando as ossadas; e por fim de contas, de um pulo, encaixa-se na minha garupa...

Eu não vi mais nada depois; fiquei atordoado. Pareceu-me que o burro saiu comigo e como maldito fantasma, zunindo pelos ares, e nos arrebatava por cima das mais altas árvores.

Valha-me Nossa Senhora da Abadia e todos os santos da corte celeste! gritava eu dentro do coração, porque a boca essa nem podia piar. Era à toa; desacorçoei, e pensando que ia por esses ares nas unhas de Satanás, espe-rava a cada instante ir estourar nos infernos. Meus olhos se cobriam de uma nuvem de fogo, minha cabeça andar a roda, e não sei mais o que foi feito de mim.

Quando dei acordo de mim, foi no outro dia, na minha cama, a sol alto. Quando a minha velha, de manhã cedo, foi abrir a porta, me encontrou no terreiro, estendido no chão, desacordado, e o burro selado perto de mim.

A porteira da manga estava fechada; como é que esse burro pôde entrar comigo para dentro, e que não sei. Portanto ninguém me tira da cabeça que o burro veio comigo pelos ares.

Acordei como o corpo todo moído, e com os miolos pesando como se

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fossem de chumbo, e sempre com aquele maldito estalar de ossos nos ouvi-dos, que me perseguiu por mais de um mês.

Mandei dizer duas missas pela alma de Joaquim Paulista, e jurei que nunca mais havia de pôr meus pés fora de casa em dia de sexta-feira.

O velho barqueiro contava esta tremenda história de modo mais tos-co, porém muito mais vivo do que eu acabo de escrevê-lo, e acompanhava a narração de uma gesticulação selvática e expressiva e de sons imitativos que não podem ser representados por sinais escritos. A hora avançada, o silêncio e solidão daqueles sítios, teatro desses assombrosos acontecimentos, contribuíram também grandemente para torná-los quase visíveis e palpáveis. Os caboclos, de boca aberta, o escutavam como olhos e ouvidos transidos de pavor, e de vez em quando, estremecendo, olhavam em derredor pela mata, como que receando ver surgir o temível esqueleto a empolgar e levar pelos ares alguns deles.

— Com efeito, Cirino! disse-lhe eu, foste vítima da mais pavorosa as-sombração de que ha exemplo, desde que andam por este mundo as almas do outro. Mas quem sabe se não foi a força do medo que te fez ver tudo isso? Além disso, tinhas ido muitas vezes à guampa, e talvez ficasse com a vista turva e a cabeça um tanto desarranjada.

— Mas, meu amo, não era a primeira vez que eu tomava o meu gole, nem que andava de noite por esses matos, e como é que eu nunca vi ossos de gente dançando no meio do caminho?

— Os teus miolos é que estavam dançando, Cirino; disso estou eu certo.Tua imaginação, exaltada a um tempo pelo medo e pelos repetidos bei-

jos que davas na tua guampa, é que te fez ir voando pelos ares nas garras de Satanás. Escuta; vou te explicar como tudo isso te aconteceu muito natural-mente. Como tu mesmo disseste, entraste na mata com bastante medo, e, portanto, disposto a transformar em coisas do outro mundo tudo quanto con-fusamente vias no meio de uma floresta frouxamente alumiada por um luar escasso. Acontece ainda para teu mal que, no momento mais crítico, quando ias passando pela sepultura, empaca-te o maldito burro. Faço ideia de como ficaria essa pobre alma, e até me admiro de que não visses coisas piores!

— Mas então que diabo eram aqueles ossos a dançarem, dançarem tão certo, como se fosse a toque de música,— e aquele esqueleto branco, que trepou na garupa, e me levou por esses ares?

— Eu te digo. Os ossinhos que dançavam, não eram mais do que os raios

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da lua, que vinham peneirados por entre os ramos dos arvoredos balançados pela viração, brincar e dançar na areia branca do caminho. Os estalos, que ou-vias, eram sem dúvida de alguns porcos do mato, ou qualquer outro qualquer bicho, que andavam ali por perto a quebrar nos dentes cocos de baguassu, o que, como bem sabes, faz uma estralada dos diabos.

— E a caveira, meu amo?... de certo era alguma cabaça velha que um rato do campo vinha rolando pela estrada...

— Não era preciso tanto; uma grande folha seca, uma pedra, um toco, tudo te podia parecer uma caveira naquela ocasião.

Tudo isto te fez andar à roda a cabeça azoinada, e o mais tudo que viste foi obra de tua imaginação e de teus sentidos perturbados. Depois, qualquer coisa, talvez um maribondo que o picou.

— Maribondo de noite!... ora, meu amo!... exclamou o velho com uma gargalhada.

— Pois bem!... fosse o que fosse; qualquer outra coisa ou capricho de burro, o certo é que o teu macho saiu contigo aos corcovos; ainda que ator-doado, o instinto da conservação fez que te agarrasses bem à sela, e tiveste a felicidade de vir dar contigo em terra mesmo à porta de tua casa, e eis aí tudo.

O velho barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de minhas ex-plicações.

— Qual, meu amo, disse ele, réstia de luar não tem parecença nenhuma com osso de defunto, e bicho do mato, de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo coco.

E pode Vm. ficar certo de que, quando eu tomo um gole, ali é que minha vista fica mais limpa e o ouvido mais afiado.

— É verdade, e, a tal ponto, que até chegas a ver e ouvir o que não existe.

— Meu amo tem razão; eu também, quando era moço, não acreditava em nada disso por mais que me jurassem. Foi-me preciso ver para crer; e Deus o livre a

Vm. de ver o que eu já vi.— Eu já vi, Girino; já vi, mas nem assim acreditei.— Como assim, meu amo?...— É que nesses casos eu não acredito nem nos meus próprios olhos,

senão depois de estar bem convencido, por todos os modos, de que eles não enganam.

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Eu te conto um caso que me aconteceu.Eu ia viajando sozinho — por onde não importa — de noite, por um

caminho estreito, em cerradão fechado, e vejo ir, andando a alguma distância diante de mim, qualquer coisa, que na escuridão não pude distinguir. Aperto um pouco o passo para reconhecer o que era, e vi clara e perfeitamente dois pretos carregando um defunto dentro de uma rede.

Bem poderia ser também qualquer criatura viva, que estivesse doente ou mesmo em perfeita saúde; mas, nessas ocasiões, a imaginação, não sei por quê, não nos representa senão defuntos. Uma aparição daquelas, em lu-gar tão ermo e longe de povoação, não deixou de me causar terror.

Contudo o caso não era extraordinário; carregar um cadáver em rede, para ir

sepultá-lo em algum cemitério vizinho, é coisa que se vê muito nesses sertões, ainda que àquelas horas o negócio não deixasse de tornar bastante suspeito.

Piquei o cavalo para passar adiante daquela sinistra visão que me estava incomodando o espirito, mas os condutores da rede também apressaram o passo, e se conservavam sempre na mesma distância.

Pus o cavalo a trote; os pretos começaram também a correr com a rede. O negócio ia-se tornando mais feio. Retardei o passo para deixá-los adianta-rem-se: também foram indo mais devagar. Parei; também pararam. De novo marchei para eles; também se puseram a caminho.

Assim andei por mais de meia hora, cada vez mais aterrado, tendo sem-pre diante dos olhos aquela sinistra aparição que parecia apostada em não me querer deixar, até que, exasperado, gritei-lhes que me deixassem passar ou ficar atrás, que eu não estava disposto a fazer-lhes companhia. Nada de resposta!... o meu terror subiu de ponto, e confesso que estive por um nada a dar de rédea para trás a bom fugir.

Mas negócios urgentes me chamavam para diante: revesti-me de um pouco de coragem que ainda me restava, cravei as esporas no cavalo e investi para o sinistro vulto a todo galope. Em poucos instantes o alcancei de perto e vi... adivinhem o que era?... nem que deem volta ao miolo um ano inteiro, não são capazes de atinar com o que era. Pois era uma vaca!...

— Uma vaca!... como!...— Sim, senhores, uma vaca malhada, que tinha a barriga toda branca

— era a rede, — e os quartos traseiros e dianteiros inteiramente pretos; era

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os dois negros que a carregavam. Pilhada por mim naquela caminho estreito, sem poder desviar nem para uma banda nem para outra, porque o mato era um cerradão tapado o pobre animal ia fugindo diante de mim, se eu parava, também parava, porque não tinha necessidade de viajar; se eu apertava o passo lá ia ela também para diante, fugindo de mim. Entretanto se eu não fosse reconhecer de perto o que era aquilo, ainda hoje havia de jurar que tinha visto naquela noite dois pretos carregando um defunto em uma rede, tão completa era a ilusão. E depois se quisesse indagar mais do negócio, como era natural, sabendo que nenhum cadáver se tinha enterrado em toda aquela redondeza, havia de ficar acreditando de duas uma: ou que aquilo era coisa do outro mundo, ou, o que era mais natural, que algum assassinato horrível e misterioso tinha sido cometido por aquelas criaturas.

A minha história nem de leve abalou as crenças do velho barqueiro que abanou a cabeça, e disse-me, chasqueando:

— A sua história está muito bonita; mas, perdoe que lhe diga, eu por mais escuro que estivesse a noite e por mais que eu tivesse entrado no gole, não podia ver uma rede onde havia uma vaca; só pelo faro eu conhecia. Meu amo decerto tinha poeira nos olhos.

Mas vamos que Vm., quando investiu para os vultos, em vez de esbarrar com uma vaca, topasse mesmo uma rede carregando um defunto, que este defunto saltando fora da rede lhe pulasse na garupa e o levasse pelos ares com cavalo e tudo, de modo que Vm., não desse acordo de si, senão no out-ro dia em sua casa e sem saber como?... havia de pensar, ainda, que eram abusões? — Esse não era o meu medo: o que eu temia, era que aqueles ne-gros acabassem ali comigo, e, em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos para a mesma cova!

O que dizes era impossível.— Esse não era o meu medo: o que eu temia, era que aqueles negros

acabassem ali comigo, e, em vez de um, carregassem na mesma rede dois defuntos para a mesma cova!

O que dizes era impossível.— lmpossível!... e como é que me aconteceu?... Se não fosse tão tarde,

para Vm. acabar de crer, eu lhe contava por que motivo a sepultura de Joa-quim Paulista ficou sendo assim mal-assombrada. Mas meu amo viajou; há de estar cansado da jornada e com sono.

— Qual sono!... conta-me; vamos a isso. Pois vá escutando.

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O tal Joaquim Paulista era um cabo do destacamento que naquele tem-po havia aqui no Porto. Era bom rapaz e ninguém tinha queixa dele.

Havia aqui, também, por este tempo, uma rapariga, por nome Carolina, que era o desassossego de toda a rapaziada.

Era uma caboclinha escura, mas bonita e sacudida, como ela aqui ainda não pisou outra; com uma viola na mão, a rapariga tocava e cantava que dava gosto; quando saia para o meio de uma sala, tudo ficava de queixo caído; a rapariga sabia fazer requebrados e sapateados, que era um feitiço. Em casa dela, que era um ranchinho ali da outra banda, era súcias todos os dias; tam-bém todos os dias havia solados de castigo por amor de barulhos e desordens.

Joaquim Paulista tinha uma paixão louca pela Carolina; mas ela anda de amizade com um outro camarada, de nome Timóteo, que a tinha traz do de Goiás, ao qual queria muito bem. Vai um dia, não sei que diabo de dúvida tiveram os dois, que a Carolina se desapartou do Timóteo e fugiu para a casa, de uma amiga, aqui no campo Joaquim Paulista, que há muito tempo bebia os ares por ela, achou que a ocasião era boa, e tais artes armou, tais agrados fez à rapariga, que tomou conta dela. Ali! pobre rapaz!... se ele adivinhasse nem nunca teria olhado para aquela rapariga. O Timóteo, quando soube do caso, urrou de raiva e de ciúme; ele estava esperando que, passados os primeiros arrufos da briga, ela o viria procurar se ele não fosse buscá-la, como já de outras vezes tinha acontecido. Mas desta vez tinha- se enganado.

A rapariga estava por tal sorte embeiçada com o Joaquim Paulista, que de modo nenhum quis saber do outro, por mais que esse rogasse, teimasse, chorasse e ameaçasse mesmo de matar uma ou outro. O Timóteo desenga-nou-se, mas ficou calado e guardou seu ódio no coração.

Estava esperando uma ocasião.Assim passaram-se meses, sem que houvesse novidade. O Timóteo viv-

ia em muito boa paz com o Joaquim Paulista, que, tendo muito bom coração, nem de leve cismava que seu camarada lhe guardasse ódio.

Um dia, porém, Joaquim Paulista teve ordem do comandante do desta-camento para marchar para a cidade de Goiás. Carolina, que era capaz do dar a vida por ele, jurou que havia de acompanhá-lo. O Timóteo danou. Viu que não era possível guardar para mais tarde o cumprimento de sua tenção danada, jurou que ele havia de acabar desgraçado, mas que Joaquim Paulista e Carolina não haviam de ir viver sossegados longe dele, e assim combinou, com outro camarada, tão bom ou pior do que ele, para dar cabo do pobre

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rapaz.Nas vésperas da partida, os dois convidaram ao Joaquim para irem ao

mato caçar. Joaquim Paulista, que não maliciava nada, aceitou o convite, e no outro dia, de manhã, saíram os três a caçar pelo mato. Só voltaram no outro dia de manhã, mais dois somente; Joaquim Paulista, esse tinha ficado, Deus sabe aonde.

Vieram contando, com lágrimas nos olhos, que uma cascavel tinha mor-dido Joaquim Paulista em duas partes, e que o pobre rapaz, sem que eles pudessem valer-lhe, em poucas horas tinha expirado, no meio do mato; que não podendo carregar o corpo, porque era muito longe, e temendo que o não pudessem encontrar mais, e que os bichos o comessem, o tinham enterrado lá mesmo; e, para prova disso, mostravam a camisa do desgraçado, toda man-chada de sangue preto envenenado.

Mentira tudo!... O caso foi este, como depois se soube.Quando os dois malvados já estavam bem longe por essa mata abaixo,

deitaram a mão no Joaquim Paulista, o agarraram, e amarraram em uma ár-vore. Enquanto estavam nesta lida, o coitado do rapaz, que não podia resistir àqueles dois ursos, pedia por quantos santos há que não judiassem com ele, que não sabia que mal tinha feito a seus camaradas, que se era por causa da Carolina ele jurava nunca mais pôr os olhos nela, e iria embora para Goiás, sem ao menos dizer-lhe adeus. Era à toa. Os dois malvados nem ao menos lhe davam resposta.

O camarada de Timóteo era mandigueiro e curado de cobra, pegava ai no mais grosso jaracuçu ou cascavel, as enrolava no braço, no pescoço, metia a cabeça, delas dentro da boca, brincava e judiava com elas de toda a maneira, sem que lhe fizessem mal algum. Na hora em que ele enxergava uma cobra, bastava pregar os olhos nela, a cobra não se mexia do lugar. Em cima de tudo, o diabo do soldado sabia um assovio com que chamava cobra, quando queria.

A hora que ele dava esse assovio, se havia por ali perto alguma cobra, havia de aparecer por força. Dizem que ele tinha parte com o diabo, e todo mundo tinha medo dele como do próprio capeta.

Depois que amarraram bem amarrado o pobre Joaquim Paulista, o ca-marada do Timóteo desceu pelas furnas de uns grotões abaixo, e andou — por lá muito tempo, assoviando o tal assovio que ele conhecia. O Timóteo ficou de sentinela ao Joaquim Paulista, que estava caladinho, coitado encomendando

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sua alma a Deus. Quando o soldado voltou, trazia em cada uma das ma os, apertado pela garganta, uma cascavel mais grossa do que esta minha perna. Os bichos desesperados batiam e se enrolavam pelo corpo do soldado, que nessa hora devia estar medonho que nem o diabo.

Então Joaquim Paulista compreendeu que qualidade de morte lhe iam dar aqueles dois desalmados. Pediu, rogou, mas debalde, que, se queriam matá-lo, pregassem-lhe uma bala na cabeça, ou enterrassem-lhe uma faca no coração por piedade, mas não o fizeram morrer de um modo tão cruel.

— Isso querias tu, disse o soldado, para nós irmos para à forca! nada! estas duas meninas é que hão de carregar com a culpa de tua morte; para isso é que fui buscá-las; nós não somos carrascos.

— Joaquim, disse o Timóteo, faze teu ato de contrição e deixa-te de histórias.

— Não tenhas medo, rapaz!... continua o outro. Estas meninas são mui-to boazinhas; olha como elas estão me abraçando!.. Faze de conta que são os dois braços da Carolina, que vão te apertar num gostoso abraço...

Aqui o Joaquim põe-se a gritar com quanto força tinha, a ver se alguém, acaso, podia ouvi-lo e acudir-lhe. Mas, sem perder tempo, o Timóteo pega num lenço e atocha-lhe na boca; mais que depressa o outro atira-lhe por cima os dois bichos, que no mesmo instante o picaram por todo o corpo. Imediata-mente mataram as duas cobras, antes que fugissem. Não levou muito tempo, o pobre rapaz estrebuchava, dando gemidos de cortar o coração, e deitava sangue pelo nariz, pelos ouvidos e por todo o corpo.

Quando viram que o Joaquim já quase não podia falar, nem mover-se, e que não tardava a dar o último suspiro, desamarraram-no, tiraram-lhe a camisa, e o deixaram ai perto das duas cobras mortas.

Saíram e andaram todo o dia, dando voltas pelo campo.Quando foi anoitecendo, embocaram pela estrada da mata, e vieram de-

scendo para o porto. Teriam andado obra de uma légua, quando enxergaram um vulto, que ia andando adiante deles, devagarinho, encostado num pau e gemendo.

— É’ ele, disse um deles espantado; não pode ser outro.— Ele!... é impossível... só por um milagre.— Pois eu juro em como não é outro, e nesse caso toca a dar cabo dele

já.— Que dúvida!

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Nisto adiantaram-se e alcançaram o vultoEra o próprio Joaquim Paulista!Sem mais demora — socaram-lhe a faca no coração, e deram-lhe cabo

dele.— Agora como há de ser?, diz um deles não há remédio senão fugir,

senão estamos perdidos...— Qual fugir! o comandante talvez não cisme nada; e no caso que haja

alguma cousa, estas cadeiazinhas desta terra são nada para mim?... Portanto vai tu escondido, lá embaixo no porto, e traz uma enxada; enterremos o corpo ai no mato; e depois diremos que morreu picado de cobra.

Isto dizia o Timóteo, que, com o sentido na Carolina, não queria perder o fruto do sangue que derramou.

Com efeito assim fizeram; levaram toda a noite a abrir a sepultura para o corpo, no meio do mato, de uma banda do caminho que, nesse tempo, não era por ai, passava mais arredado. Por isso não chegaram, senão no outro dia de manhã.

— Mas, Cirino, como é que Joaquim pôde escapar das mordeduras das cobras, e como se veio a saber de tudo isso?...

— Eu já lhe conto, disse o velho.E depois de fazer uma pausa para acender o cachimbo, continuou:— Deus não queria que o crime daqueles amaldiçoados ficasse escon-

dido. Quando os dois soldados deixaram por morto o Joaquim Paulista, anda-va por aquelas alturas um caboclo velho, cortando palmitos. Aconteceu que, passando por ai não muito longe, ouvi voz de gente, e veio vindo com cautela a ver o que era: quando chegou a descobrir o que se estava passando, frio e tremendo de susto, o pobre velho ficou espiando de longe, bem escondido numa mota, e viu tudo, desde a hora em que o soldado veio da furna com as cobras na mão. Se aqueles malditos o tivessem visto ali, tinham dado cabo dele também.

— Quando os dois se foram embora, então o caboclo, com muito cuida-do, saiu da moita, e veio ver o pobre rapaz, que estava morre não morre!... O velho era mesinheiro muito mestre, e benzedor, que tinha fama em toda a redondeza.

Depois que olhou bem o rapaz, que já com a língua perra não podia falar, e já estava cego, andou catando pelo mato umas folhas que ele lá con-hecia, mascou- as bem, cuspiu a saliva nas feridas do rapaz, e depois benzeu

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bem benzidas elas todas, uma por uma.Quando foi daí a uma hora, já o rapaz estava mais aliviado, e foi ficando

cada vez a melhor, até que, enfim, pôde ficar em pé, já enxergando alguma cousa.

Quando se podendo andar um pouco, o caboclo cortou um pau, botou na mão dele, e veio com ele, muito devagar, ajudando-o a caminhar até que, a muito custo, chegaram na estrada.

Ai o velho disse:— Agora você esta na estrada, pode ir indo sozinho com seu vagar, que

daqui a nada você está em casa. Amanhã, querendo Deus, eu lá vou vê-lo outra vez. Adeus, camarada; Nossa Senhora te acompanhe.

O bom velho mal pensava, que, fazendo aquela obra de caridade, ia en-tregar outra vez à morte aquele infeliz a quem acaba de dar a vida. Um quarto de hora, aos que se demorasse, Joaquim Paulista estava escapo. Mas o que tinha de acontecer estava escrito lá em cima.

Não bastava ao coitado do Joaquim Paulista ter sido tão infeliz em vida, a infelicidade o perseguiu até depois de morto.

O comandante do destacamento, que não era nenhum samora, descon-fiou do caso. Mandou prender os dois soldados, e deu parte na vila ao juiz, que daí a dois dias veio com o escrivão para mandar desenterrar o corpo. Vamos agora saber onde é que ele estava enterrado. Os dois soldados, que eram os únicos que podiam saber, andavam guiando a gente para uns rumos muito diferentes, e como nada se achava, fingiam que tinham perdido o lugar.

Bateu-se mato um dia inteiro sem se achar nada.Afinal de contas os urubus é que vieram mostrar onde estava a sepul-

tura. Os dois soldados tinha enterrado mal o corpo. Os urubus pressentiram o fétido da carniça e vieram-se ajuntar nas árvores em redor. Desenterrou-se o corpo, e via-se então uma grande facada no peito, do lado esquerdo. O corpo já estava apodrecendo e com muito mau cheiro. Os que o foram enterrar de novo, aflitos por se verem livres daquela fedentina, mal apenas jogaram à pressa alguns punhados de terra na cova, e deixaram o corpo ainda mais mal enterrado do que estava.

Vieram depois os porcos, os tatus, e outros bichos, cavoucaram a cova, espatifaram o cadáver, e andar espalhando os ossos do defunto ai por toda essa mata.

Só a cabeça é que dizem que ficou na sepultura.

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Uma alma caridosa, que um dia encontrou um braço do defunto no meio da estrada, levou-o para a sepultura, encheu a cova da terra, socou bem, e fincou ai uma cruz. Foi tempo perdido; no outro dia a cova estava aberta tal qual como estava dantes. Ainda outras pessoas depois teimavam em ajuntar os ossos e enterrá-los bem. Mas no outro dia a cova estava aberta, assim como até hoje está.

Diz o povo que enquanto não se ajuntar na sepultura até o último os-sinho do corpo de Joaquim Paulista, essa cova não se fecha. Se é assim, já se sabe que tem de ficar aberta para sempre. Quem é que há de achar esses ossos que, levados pelas enxurradas, já lá foram talvez rodando por esse Par-naíba abaixo?

Outros dizem que, enquanto os matadores de Joaquim Paulista estives-sem vivos neste mundo, a sua sepultura havia de andar sempre aberta, nunca os seus ossos teriam sossego, e haviam de andar sempre assombrando os viventes cá neste mundo.

Mas esses dois malvados já há de muito tempo foram dar contas ao dia-bo do que andavam fazendo por este mundo, e a cousa continua na mesma.

O antigo camarada da Carolina, esse morreu no caminho de Goiás; a escolta que o levava, para cumprir sentença de galés por toda a vida, com medo que ele fugisse, pois o rapaz tinha artes do diabo, assentou de acabar com ele; depois contaram uma história de resistência, e não tiveram nada.

O outro, que era currado de cobra, tinha fugido; mas como ganhava a vida brincando com cobras e matava gente com elas, veio também a morrer na boca de uma delas.

Um dia em que estava brincando com um grande urutu preto, à vista de muita gente que estava a olhar de queixo caído, a bicha perdeu-lhe o respeito, e em tal parte e em tão má hora lhe deu um bote, que o maldito caiu logo estrebuchando, e em poucos instantes deu a alma ao diabo. Deus me perdoe, mas aquela fera não podia ir para o céu. O povo não quis por maneira nen-huma que ele fosse enterrado no sagrado, e mandou atirar o corpo no campo para os urubus.

Enfim eu fui à vila pedir ao vigário velho, que era o defunto padre Car-melo, para vir bendizer a sepultura de Joaquim Paulista, e tirar dela essa as-sombração que aterra todo este povo. Mas o vigário disse que isso não valia de nada; que enquanto não se dissessem pela alma do defunto tantas missas quantos ossos tinha ele no corpo, contando dedos, unhas, dentes e tudo, nem

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os ossos teriam sossego, nem a assombração acabaria, nem a cova se havia de fechar nunca.

Mas se os povos quisessem, e aprontassem as esmolas, que ele dizia as missas, e tudo ficaria acabado. Agora que há de contar quantos ossos a gente tem no corpo, e quando é que esses moradores, que não são todos pobres como eu, hão de aprontar dinheiro para dizer tanta missa?...

Portanto já se vê, meu amo, que o que lhe contei não é nenhum abusão; é cousa certa e sabida em toda esta redondeza. Todo esse povo ai está que não me há de deixar ficar mentiroso.

À vista de tão valentes provas, dei pleno crédito a tudo quanto o barque-iro me contou, e espero que a meus leitores acreditarão comigo, piamente, que o velho barqueiro do Parnaíba, uma bela noite, andou pelos ares montado em um burro, com um esqueleto na garupa.

GUIMARÃES, Bernardo. A Dança dos Ossos. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua000038.pdf. Último acesso em: 21 set. 2015.

Conto trabalhado no Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia do Rio de Janeiro, com alunos do 2° ano do Ensino

Médio.

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A DESGRAÇA É VARIADA. O infortúnio da terra é multiforme. Arquean-do-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris, suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, nitidamente misturadas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris! Como de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? E que, assim como na ética o mal é uma consequência do bem, da mesma realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as amarguras que existem agora têm sua origem nas alegrias que podiam ter existido.

Meu nome de batismo é Egeu. O de minha família não revelarei. Contu-do não há torres no país mais vetustas do que as salas cinzentas e melancóli-cas do solar de meus avós. Nossa estirpe tem sido chamada de uma raça de visionários. Em muitos pormenores notáveis, do caráter da mansão familiar, nas pinturas do salão principal, nas tapeçarias dos dormitórios, nas cinze-laduras de algumas colunas de armas, porém, mais especialmente, na galeria de quadros no estilo da biblioteca e, por fim, na natureza muito peculiar dos livros que ela continha, há mais que suficiente prova a justificar aquela de-

BERENICEEdgar Alan Poe

Dicebantmihisodalez, si sepulchrumamicaevi-sifarem, curas measaliquantulumforelevatas. (Meus companheiros me asseguravam que visita do o túmulo de minha amiga conseguiria, em parte, alívio para as minhas tristezas. (N.T.) Ebn ZAIAT

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nominação. Recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligados àquela

sala e aos seus volumes, dos quais nada mais direi. Ali morreu minha mãe. Ali nasci. Mas é ocioso dizer que não havia vivido antes, que a alma não tem existência prévia. Vós negais isto. Não discutamos o assunto. Convencido eu mesmo, não procuro convencer os demais. Sinto, porém, uma lembrança de formas aéreas, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais, embora tristes; uma lembrança que não consigo anular; uma reminiscência semelhan-te a uma sombra, vaga, variável, indefinida, inconstante; e como uma som-bra, também, na impossibilidade de livrar-me dela, enquanto a luz de minha razão existir.

Foi naquele quarto que nasci. Emergindo assim da longa noite daquilo que parecia, mas não era, o nada, para logo cair nas verdadeiras regiões da terra das fadas, num palácio fantástico, nos estranhos domínios do pensa-mento monástico e da erudição. Não é de admirar que tenha lançado em torno de mim um olhar ardente e espantado, que tenha consumido minha infância nos livros e dissipado minha juventude em devaneios; mas é estranho que ao perpassar dos anos e quando o apogeu da maturidade me encontrou ainda na mansão de meus pais, uma maravilhosa inércia tombado sobre as fontes da minha vida maravilhosa, a total inversão que se operou na natureza de meus pensamentos mais comuns. As realidades do mundo me afetavam como visões, e somente como visões, enquanto que as loucas ideias da terra dos sonhos tornavam-se, por sua vez, não o estofo de minha existência cotidiana, na realidade, a minha absoluta e única existência.

Berenice e eu éramos primos e crescemos juntos, no solar paterno. Mas crescemos diferentemente: eu, de má saúde e mergulhado na minha melan-colia; ela, ágil, graciosa e exuberante de energia. Para ela, os passeios pelas encostas da colina. Para mim, estudos do claustro. Eu, encerrado dentro do meu próprio coração e dedicado, de corpo e alma, à mais intensa e penosa meditação . Ela, divagando descuidosa pela vida, sem pensar em sombras no seu caminho, ou no voo silente das horas de asas lutuosas. Berenice!

Quando lhe invoco o nome... Berenice!, das ruínas sombrias da memória repontam milhares de tumultuosas recordações. Ah, bem viva tenho agora a sua imagem diante de mim, como nos dias de sua jovialidade e alegria! Oh, deslumbrante, porém fantástica beleza! Oh, sílfide entre os arbustos de Arn-heim! Oh, náiade à beira de suas fontes! E depois... depois tudo é mistério e

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uma estória que não deveria ser contada. Uma doença...uma doença - uma fatal doença - soprou como um símum

sobre seu corpo. E precisamente quando a contemplava, o espírito da meta-morfose arrojou-se sobre ela, invadindo-lhe a mente, os hábitos e o caráter e, da maneira mais sutil e terrível, perturbando-lhe a própria personalidade. Ai! O destruidor veio e se foi, e a vítima…onde está ela? Não a conhecia... ou não mais a conhecia como Berenice!

Entre a numerosa série de males acarretados por aquela fatal e primeira doença, que realizou tão horrível revolução no ser moral e físico de minha pri-ma, pode-se mencionar, como o mais aflitivo e o mais obstinado, uma espécie de epilepsia, que não poucas vezes, terminava em catalepsia, muito semel-hante à morte efetiva e da qual despertava ela, quase sempre, duma maneira assustadoramente subitânea.

Entrementes, minha própria doença aumentava, pois fora dito que para ela não havia remédio, e assumiu afinal um caráter de monomania, de forma nova e extraordinária, que, hora em hora, de minuto em minuto, crescia em vigor e por fim veio a adquirir sobre mim a mais incompreensível ascendên-cia. Esta monomania, se assim posso chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito que a ciência metafísica denomina “faculdades da atenção”.

É mais que provável não me entenderem. Mas temo, deveras, que me seja totalmente impossível transmitir à mente do comum dos leitores uma ideia adequada daquela nervosa intensidade da atenção com que, no meu caso, as faculdades meditativas (para evitar a linguagem técnica) se aplicava e absorvia na contemplação dos mais vulgares objetos do mundo.

Meditar infatigavelmente longas horas, com a atenção cravada em al-guma frase frívola, à margem de um livro ou no seu aspecto tipográfico, ficar absorto, durante a melhor parte dum dia de verão em contemplação duma sombra extravagante, projetada obliquamente sobre a tapeçaria, ou sobre o soalho; perder uma noite observar a chama inquieta duma lâmpada, ou as brasas de um fogão; sonhar dias inteiros com o perfume duma flor; repetir monotonamente, alguma palavra comum, até que o som, a repetição fre-quente, cesse de representar ao espírito a menor ideia; perder toda a sen-sação de movimento ou de existência física, em virtude de uma absoluta quietação do corpo, prolongada e obstinadamente mantida, tais eram as mais comuns e menos perniciosas aberrações, provocadas pelo estado de minhas

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faculdades mentais não, de fato, absolutamente sem exemplo, mas certa-mente desafiando qualquer espécie de análise ou explicação.

Sejamos, porém, mais explícitos. A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos de seu natural triviais, não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão à meditação, comum a toda a humanidade e mais especialmente do agrado das pessoas de imaginação ardente. Nem era tampouco, como se poderia a princípio supor, um estado extremo, ou uma exageração de tal propensão, mas primária e essencialmente distinta e diferente dela. Naquele caso, o sonhador, ou entusiasta, estando interessado por um objeto, geralmente não trivial, perde, sem o perceber, de vista este objeto, através duma imensidade de deduções e sugestões deles provindas, até que, chegando ao fim daquele sonho acordado, muitas vezes repletos de voluptuosidade, descobre estar o incitamentum causa primária de suas medi-tações, inteiramente esvanecido e esquecido. No meu caso, o ponto de partida era invariavelmente frívolo, embora assumisse, por intermédio de minha visão doentia, uma importância irreal e refratária. Poucas ou nenhumas reflexões eram feitas e estas poucas voltavam, obstinadamente, ao objeto primitivo como a um centro. As meditações nunca eram agradáveis, e ao fim do deva-neio, a causa primeira, longe de estar fora de vista atingira aquele interesse sobrenaturalmente exagerado que era a característica principal da doença. Em uma palavra: as faculdades da mente mais particularmente exercitadas em mim eram, como já disse antes, as da atenção, ao passo que no sonha-dor-acordado são as especulativas.

Naquela época, os meus livros, se não contribuíam eficazmente para irritar a moléstia, participavam largamente, como é fácil perceber-se, pela sua natureza imaginativa e inconsequente, das qualidades características da própria doença. Bem me lembro, entre outros, do tratado do nobre italiano, CoeliusSecundusCurio de amplitudine beati regni dei; da grande obra de San-to Agostinho, A Cidade de Deus; do De Carne Christí, de Tertuliano, no qual a paradoxal sentença: Mortuus’ est Dei filius; credible est quiaineptum est; et sepultusresurrexít; certum est quiaimpossibíle est, absorveu meu tempo todo, durante semanas de laboriosa e infrutífera investigação.

Dessa forma, minha razão, perturbada, no seu equilíbrio por coisas sim-plesmente triviais, assemelhava-se àquele penhasco marítimo de que fala Ptolomeu Hefestião, o qual resistia inabalável a questão da violência humana e ao furioso ataque das águas e ventos, mas tremia ao simples toque da flor

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chamada asfódelo. E embora a um pensador desatento possa parecer fora de dúvida que a alteração produzida pela lastimável moléstia no estado mor-tal de Berenice fornecesse motivos vários para o exercício daquela intensa e anormal meditação, cuja natureza tive dificuldade em explicar, tal não se deu absolutamente.

Nos intervalos lúcidos de minha enfermidade, a desgraça que a feria me dava realmente pena e me afetava fundamente o coração aquela ruína total de sua vida alegre e doce. Por isso não deixava de refletir muitas vezes, com amargura, nas causas prodigiosas que tinham tão subitamente produzido modificação tão estranha. Mas essas reflexões não participavam da idiossin-crasia de minha doença, tais como teriam ocorrido em idênticas circunstân-cias, à massa ordinária dos homens. Fiel a seu próprio caráter, meu desarran-jo mental preocupava-se com as menos importantes porém mais chocantes mudanças operadas na constituição física de Berenice, na estranha e mais espantosa alteração de sua personalidade.

Posso afirmar que nunca amara minha prima, durante os dias mais brilhantes de sua incomparável beleza. Na estranha anomalia de minha ex-istência, os sentimentos nunca me provinham do coração, e minhas paixões eram sempre do espírito. Através do crepúsculo matutino, entre as sombras estriadas da floresta, ao meio-dia no silêncio de minha biblioteca, à noite, esvoaçara ela diante de meus olhos e eu a contemplara, não como a viva e respirante Berenice, mas como a Berenice de um sonho; não como um ser da terra, um ser carnal, mas como a abstração de tal ser; não como uma coisa para admirar, mas para ser analisada; não como objeto para amar, mas como o tema da mais absoluta, embora inconstante, especulação. E agora.. . agora eu estremecia na sua presença e empalidecia ao vê-la aproximar-se; contudo, lamentando amargamente sua deplorável decadência, lembrei-me de que ela me havia amado muito tempo, e, num momento fatal, falei-lhe em casamen-to.

Aproximava-se, enfim, o período de nossas núpcias quando, numa tar-de de inverno de um daqueles dias intempestivamente cálidos, sossegados e nevoentos, que são a alma do belo Alcíone, me sentei no mais recôndito gabinete da biblioteca. Julgava estar sozinho,mas erguendo a vista divisei Berenice, em pé, à minha frente.Foi a minha própria imaginação excitada, ou a nevoenta influência da atmosfera, ou o crepúsculo impreciso do aposento, ou as cinérias roupagens que lhe caíam em torno do corpo, que lhe deu aquele

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contorno indeciso e trêmulo? Não sei dizê-lo. Ela não disse uma palavra e eu por forma alguma podia emitir uma só sílaba.

Um gélido calafrio correu-me pelo corpo, uma sensação de intolerável ansiedade me oprimia, uma curiosidade devoradora invadiu-me a alma , e recostando-me na cadeira,permaneci por algum tempo imóvel e sem respi-rar, com os olhos fixos no seu vulto. Ai!sua magreza era excessiva e nenhum vestígio da criatura de outrora se vislumbrava numa linha sequer de suas formas. O meu olhar ardente pousou-se afinal em seu rosto.Afronte era alta e muito pálida, e de uma placidez singular. O cabelo, outrora negro, de azev-iche, caía-lhe parcialmente sobre a testa e sombreava as fontes encovadas com numerosos anéis, agora de um amarelo vivo, em chocante discordância, pelo seu caráter fantástico, com a melancolia que lhe dominava o rosto. Os olhos, sem vida e sem brilho,pareciam estar desprovidos de pupilas.

Desviei involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem signifi-cativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus que eu nunca os tivesse visto, tendo-os visto, tivesse mor-rido!

O batido duma porta me assustou e, erguendo a vista, vi que minha prima havia saído do aposento. Mas do aposento desordenado do meu cére-bro não havia saído, ai de mim!, e não queria sair o espectro branco de seus dentes lívidos. Nem uma mancha se via em sua superfície, nem uma pinta no esmalte, nem uma falha nas suas pontas, que aquele breve tempo de seu sorriso não houvesse gravado na minha memória. Via-os agora,mesmo mais distintamente do que os vira antes.

Os dentes!. . . Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, visíveis, palpáveis. Diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior, só pensava naqueles dentes. Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação.

Eles, somente eles estavam presentes aos olhos de meu espírito, e eles, na sua única individualidade, se tornaram a essência de minha vida mental. Via-os sob todos os aspectos. Revolvi-os em todas as direções. Observava-lhes

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as características. Detinha-me em todas as suas peculiaridades. Meditava em sua conformação refletia na alteração de sua natureza. Estremecia ao atribuir-lhe em imaginação, faculdades de sentimento e de sensação, e, do mesmo quando desprovidos dos lábios, capacidade da expressão moral.

Dizia-se com razão, de MademoisselleSallé que: toussespasétaient de sentiments, e deBerenice que: tous ser dentrétaiendesidées! (todos os seus passos eram sentimentos...todos os seus dentes ideias N.T.)

Ah, esse foi o pensamento absurdo que me destruiu, desidées! Ah, essa era a razão pelaqual eu os cobiçava tão loucamente. Sentia que somente a posse deles me poderiarestituir a paz para sempre, fazendo-me voltar a razão.E assim cerrou-se a noite em torno de mim. Vieram as trevas demor-aram-se, foram embora. E o dia raiou mais uma vez e os nevoeiros de uma se-gunda noite de novo se adensaram em torno de mim. E ainda sentado estava, imóvel, naquele quarto solitário ainda mergulhado em minha meditação,ainda com o dentes mantendo sua terrível ascendência sobre mim, a flutuar com a mais viva e hedionda nitidez, entre as luzes mutáveis e as sombras do apo-sento. Afinal,explodiu em meio de meus sonhos um grito de horror e de con-sternação, ao qual se seguiu, depois de uma pausa, o som de vozes aflitas, entremeadas de surdos lamentos de tristeza e pesar.

Levantei-me e, escancarando uma das portas da biblioteca, vi, de pé, na antecâmara,uma criada, toda em lágrimas que me disse que Berenice havia. . . morrido! Sofrera um ataque epiléptico pela manhã e agora, ao cair da noite, a cova estava pronta para receber seu morador e todos os preparativos do enterro terminados.

Com o coração cheio de angústia, oprimido pelo temor, dirigi com re-pugnância, para o quarto de dormir da defunta. Era quarto vasto, muito es-curo, e eu me chocava, a cada passo, com os preparativos do sepultamento. Os cortinados do leito, disse-me um criado,estavam fechados sobre o ataúde e naquele ataúde, acrescentou ele, em voz baixa, jazia tudo quanto restava de Berenice.

Quem, pois, me perguntou se eu não queria ver o corpo? Não vi mover-em-se os lábios de ninguém; entretanto, a pergunta realmente feita e o eco das últimas sílabas ainda se arrastava pelo quarto. Era impossível resistir e, com uma sensação opressiva, dirigi-me a passos tardos para o leito. Ergui de manso as sombrias dobras das cortinas; mas,deixando-as cair de novo, de-sceram sobre meus ombros e, separando-me do mundo dos vivos, me encer-

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raram na mais estreita comunhão com a defunta.Todo o ar do quarto respirava morte; mas o cheiro característico do

ataúde me fazia male imaginava que um odor deletério exalava já do cadáver. Teria dado mundos para escapar, para livrar-me da perniciosa influência mor-tuária, para respirar, uma vez ainda,o ar puro dos céus eternos. Mas, faleci-am-me as forças para mover-me os joelhos tremia me me sentia como que enraizado no solo contemplando fixamente o rígido cadáver,estendido ao com-prido no caixão aberto.

Deus do céu! Seria possível? Ter-se-ia meu cérebro transviado? Ou o dedo da defunta se mexera no sudário que a envolvia? Tremendo de inex-primível terror, ergui lentamente os olhos para ver o cadáver. Haviam-lhe amarrado o queixo com um lenço, o qual não sei como, se desatara. Os lábios lívidos se torciam numa espécie de sorriso, e por entre sua moldura melancóli-ca os dentes de Berenice, brancos, luzentes, terríveis me fixavam ainda, com uma realidade demasiado vivida. Afastei-me convulsivamente, do leito, sem pronunciar uma palavra, como um louco, corri para fora daquele quarto de mistério, de horror e de morte.

Achei-me de novo sentado na biblioteca, e de novo ali estava só.Parecia que havia pouco despertara de um sonho confuso e agitado que era então meia-noite e bem ciente estava de que, desde o pôr do sol, Berenice tinha sido enterrada. Mas, durante esse tétrico intervalo, eu não tinha qualquer percepção positiva, ou definida. Sua recordação, porém,estava repleta de horror, horror mais horrível porque vindo do impreciso, terror mais terrível porque saído da ambiguidade. Era uma página espantosa do registro de minha existência, toda escrita com sombra e com medonhas e ininteligíveis recordações.

Tentava decifrá-la, mas em vão; e de vez em quando, como o espírito de um som evadido,parecia-me retinir nos ouvidos o grito agudo e lancinante de uma voz de mulher. Eu fizera alguma coisa; que era, porém? Fazia a mim mesmo tal pergunta em voz alta, e os ecos do aposento me respondiam: Que era? a mesa, a meu lado, ardia uma lâmpada e perto dela estava uma caix-inha. Não era de forma digna de nota e eu frequentemente a vira antes,pois pertencia ao médico da família; mas, como viera ter ali, sobre minha mesa, e por que estremecia eu ao contemplá-la? Não valia a pena importar-me com tais coisas e meus olhos por fim caíram sobre as páginas abertas de um livro, na sentença nelas sublinhada.

Eram as palavras singulares, simples, do poeta EbnZaiat: Dícebantmíhi-

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sodales, sisepulchrumamicae visitarem, curas meus aliquantulumforelevatas. Porque então, ao lê-las, os cabelos de minha cabeça se eriçaram até a ponta, e o sangue de meu corpo se congelou nas veias?

Uma leve pancada soou na porta da biblioteca. E, pálido como o brilhan-te de um sepulcro, um criado entrou, na ponta dos pés. Sua fisionomia estava transtornada de pavor e ele me falou numa voz trêmula, rouca e muito baixa. Que disse? Ouvi frases truncadas. Falou-me de um grito selvagem que per-turbara o silêncio da noite …todos em casa se reuniram. . . saíram procurando em direção ao som. E depois sua voz se tornou penetrantemente distinta, ao falar-me de um túmulo violado. . . de um corpo desfigurado,desamortalhado, mas que ainda respirava, ainda vivia!

Apontou para minhas roupas; estavam sujas de coágulos de sangue. Eu nada falava e ele pegou-me levemente na mão; gravavam-se nela os sinais de unhas humanas. Chamou-me a atenção para certo objeto encostado à pare-de: era uma pá.

Com um grito, saltei para a mesa e agarrei a caixa que nela se achava. Mas não pude arrombá-la; e, no meu tremor, ela deslizou de minhas mãos e caiu com força, quebrando-se em pedaços. E dela, com um som tintinante, rolaram vários instrumentos de cirurgia dentária, de mistura com trinta e duas coisas pequenas, como que de marfim, que se espalharam por todo o assoal-ho.

POE, Edgar Allan. Berenice. In:_____. Ficção completa: contos de terror, mistério e morte. Disponível em: https://docs.google.com/folderview?id=-0B5yH7ULhcDCFNXlzdUdVTXd1RWc&usp=drive_web. Último acesso em: 21 set. 2015.

Conto trabalhado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, com alunos do 2° ano do Ensino

Médio.

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Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, es-tudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando imposição de voz, a música quadrifônica do quarto do meu fil-ho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar?

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a lín-gua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada me pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher responde.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois , botei na rua, tirei o meu, botei

PASSEIO NOTURNO – parte 1Rubem Fonseca

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na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-cho-ques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmi-co. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nessa cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento.Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de ár-vores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante proble-ma a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desen-gonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos, de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.

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FONSECA, Rubem. “Passeio noturno - Parte I” In: MORICONI, Ítalo (org.) Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

Conto trabalhado na Escola Estadual Amaro Cavalcanti, com alunos do 1º ano do Ensino Médio.

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TERROR

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Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em ver-dade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo en-contro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele re-canto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A CAUSA SECRETAMachado de Assis

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A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances doloro-sos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não es-perou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotove-lo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganin-do e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

— Já aí vem um, acudiu alguém. Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou

que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atraves-sava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

— Conhecia-o antes? perguntou Garcia. — Não, nunca o vi. Quem é? — É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gou-

vêa.

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— Não sei quem é. Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-

se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranqüilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tin-ham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ou-viu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastia-da e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se. O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo

o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no

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coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressen-timento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a fac-uldade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lem-brou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pre-texto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a freqüência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convi-dou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.

— Sabe que estou casado? — Não sabia. — Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conos-

co domingo. — Domingo? — Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos

e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, ai-rosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, per-guntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

— Não, respondeu a moça.

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— Vai ouvir uma ação bonita. — Não vale a pena, interrompeu Fortunato. — A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico. Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insen-

sivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradeci-da, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os om-bros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.

“ Singular homem!” pensou Garcia. Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médi-

co restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

— Valeu? perguntou Fortunato. — Valeu o quê? — Vamos fundar uma casa de saúde? — Não valeu nada; estou brincando. — Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica,

acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a idéia tinha-se metido

na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estréia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou fi-nalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a idéia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio admin-istrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato

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estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. — Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tor-

nou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pes-soa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que en-tre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anato-mia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o lab-oratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

— Mas a senhora mesma... Maria Luísa acudiu, sorrindo: — Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o

senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos.

Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha al-guma coisa, ela respondeu que nada.

— Deixe ver o pulso. — Não tenho nada. Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao con-

trário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, - exatamente o dia em que os vemos agora, - Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía

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aflita. — Que é? perguntou-lhe. — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se. Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de

um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No mo-mento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

— Mate-o logo! disse-lhe. — Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que

traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a tercei-ra pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não aca-bava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e es-tendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela sereni-dade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto praz-er, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente es-quecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si

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toda essa mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mos-

trou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

“Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem”.

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, per-da de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

— Fracalhona! E voltando-se para o médico: — Há de crer que quase desmaiou? Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; de-

pois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmu-los, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em cer-teza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não ti-rasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a ín-dole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de

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febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, públi-ca ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensa-tivos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repou-sasse um pouco.

— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu

logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritual-izasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, po-dia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a nature-za compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.

Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver;

mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não pud-eram conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Vol. II

Conto trabalhado na Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, com alunos do 2° ano do Ensino Médio.

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É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sen-tidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição. Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal. Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso! Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra! Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a sem-ana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza! E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que ha-bilidade eu a passava. Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não

CORAÇÃO DELATOREdgar Allan Poe

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perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto? E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre. E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno. E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e per-guntando como tinha passado a noite. Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus própri-os poderes, de minha sagacidade. Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele se-quer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos. Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não. Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo,

e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos reló-gios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! Era o som

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fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som. Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele bro-tara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro. Eu sabia que ele estivera desper-to, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira. Dissera consigo mesmo: “Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão”, ou “É só um grilo cricrilando um pouco”. É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão. Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da ara-nha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza – todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão. Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respira-va. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto. O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! —

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está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo. E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel. Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir. E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Cheg-ara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só. Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou. O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a man-tive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas. Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue. Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo – ha! Ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.

Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia. Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no cam-po. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele. Mostrei-lhes seus tesouros,

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seguro, imperturbável. No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadei-ra exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e dese-jei que se fossem. Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia – e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão. Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levant-ei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer. Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei! Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam. Seria possível que não ouvis-sem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! – Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora —

eráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! Levan-tem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!

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POE, Edgar Allan. Coração Delator. Disponível em: < http://www.relei-turas.com/eapoe_coracao.asp>. Acesso em: 18 set. 2015.

Conto trabalhado na Escola Estadual Amaro Cavalcanti, com alunos do 1º ano do Ensino Médio.

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Todos disseram que Marialva era louca e desalmada quando ela pôs os filhos à venda. Até o padre tentou demovê-la de ideia tão cruel. Mas nada adiantou. A mulher era obstinada.

“Quero que eles tenham um futuro melhor que o meu”, ela repetia.Olhando bem para o lugar, quem poderia condená-la? Um casebre

miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem din-heiro, sem remédio, sem nada por perto. Tinha parido nove filhos. Só restavam cinco quando decidiu vendê-los. Não queria mais ver criança morrendo de fome e doença em seus braços sem que pudesse fazer nada para impedir.

O primeiro a partir foi Tião, levado por uma família americana. Um mês depois da viagem, chegou carta com foto do menino, limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais. Marialva enxugou as lágrimas e teve certeza de que fazia a coisa certa.

Em seguida, foram Francineide, para o Rio de Janeiro, e Ronivon, para Curitiba.

Com o dinheiro da venda dos três, Marialva comprou uma cabra, três galinhas, um cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma pan-ela nova.

O seguinte seria Fabiojunio, que já estava encomendado por uma família que vivia em Cruz Alta, uma cidade próxima. O casal chegaria dali a dois dias e Marialva se esforçava para dar banho no menino e torná-lo mais apresentável.

— Vê se não chora quando eles chegarem, senão eu te mato, viu? E nada de se sujar porque o sabão já está acabando. Tem que ficar limpo até

CRIANÇAS À VENDA. TRATAR AQUIRosa Amanda Strausz

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depois de amanhã. Melhor nem se mexer muito, fique quieto dentro de casa.Fabiojunio olhava os preparativos meio assustado. Mas as fotos dos

irmãos cercados de conforto, carinho e comida já o tinham convencido. Tanto Tião quanto Francineide e Ronivon pareciam muito felizes. Assim, quando che-gou o casal, despediu-se da mãe e de Simara — a irmã mais velha —, engoliu o choro e entrou no carro de seus novos pais.

— Mãe, a senhora não achou esses dois aí meio esquisitos, não? — per-guntou a menina assim que o carro sumiu na estrada.

— Bobagem, menina. Rico é tudo esquisito mesmo. Mas, no fundo, achou que a filha tinha razão. Não sabia dizer direito o

que era — se a expressão meio vazia do casal, o jeito que eles tinham de ol-har, meio fixo, sempre para frente, a maneira de se moverem, lenta demais.

Bobagem, repetiu mentalmente. Eram os mais ricos, os que tinham pago mais caro. Olhou para as notas em cima da mesa. Dava para comprar um monte de sabão e botar Simara para lavar roupa para fora.

O problema era justamente a filha, que não parava de tagarelar. Menina inconveniente. Tinha dez anos, só por isso não dava mais para vendê-la. Nin-guém queria criança grande assim. Pois que ficasse quieta e ajudasse a fazer o dinheiro render — porque aquele era o último.

* * *

Isso era o que Marialva pensava. Menos de um mês depois da partida de Fabiojunio chegou uma carta. Trazia uma foto do menino e mais dinheiro ainda. A mulher ficou radiante.

— Eles devem estar mesmo muito encantados com Fabinho para man-darem essa dinheirama toda — disse ela arre¬galando os olhos.

Simara, sempre desconfiada, examinava a fotografia.— Mãe, olha só…Mas a mulher arrancou a foto de sua mão.— Olha só digo eu, Simara! Sempre foi lindinho, o seu ir¬mão. Mas com

essas roupas… Benza Deus! Parece um príncipe.Na foto, o menino estava de pé, em meio a um imenso jardim sem

flores, mas com o gramado muito bem cuidado, ao fundo do qual se via um casarão com a fachada ornamentada. Vestia sapatos pretos de verniz, meias brancas, terninho azul-marinho combinando com a bermuda, camisa branca

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de colarinho e gravata de cetim cinza-claro. O cabelo estava penteado para trás, cheio de goma.

Simara não se convencia. Todos os outros irmãos enviavam fotos em que apareciam cercados de brinquedos, em parques, comendo doces, rindo, abraçados com a nova família. Fabiojunio não. Estava sozinho, de pé, com os braços estendidos ao longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia triste.

Simara insistiu no assunto, mas Marialva proibiu a filha de prosseguir.— Gente chique é assim. Não fica pulando e gritando. Ele está é ficando

educado — encerrou a conversa.

* * *

No mês seguinte, a mesma coisa. Mais um envelope entregue pelo cor-reio. Dentro, nem um bilhete. Só mais dinheiro e outra foto.

Agora, Fabiojunio aparecia de pé em um quarto amplo e ricamente mo-biliado. Estava diante de uma cama alta, de dossel talhado em madeira es-cura, e ao lado de uma escrivaninha cuidadosamente arrumada. Não havia brinquedos à vista. A roupa não era a mesma da foto anterior, mas muito parecida. E a expressão do menino também, embora parecesse ainda mais pálido e tristonho.

— Ele não está feliz — constatou Simara em voz alta, sabendo que a mãe não a ouviria. Estava ocupada demais fazendo planos para o dinheiro que chegara. Já dava até para pensar em comprar um fogão de verdade, com bujão de gás e tudo. E teria comida para fazer todos os dias.

Na verdade, teve muito mais do que isso. Todo mês chegava novo enve-lope com uma foto e mais dinheiro. Cega pela boa sorte repentina, mal olhava para o filho impresso no papel. Ia direto para o maço de notas, contava-as avidamente, sorria e fazia mais planos.

Apenas Simara estava cada vez mais intrigada. A cada foto que chegava, parecia-lhe mais evidente que havia algo muito estranho ocorrendo ao irmão. Sempre o mesmo tipo de roupa, os ambientes luxuosos — mas antiquados e soturnos —, e a expressão ausente, o olhar mortiço, a postura imóvel.

A última foto era ainda mais impressionante. Solitário, sentado à cabec-eira de uma mesa imensa, de madeira escura e polida, Fabiojunio não olhava para a baixela de prata à sua frente, nem para a louça filetada de ouro, nem

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para os talheres de cabo de madrepérola. Seu olhar tampouco se dirigia para o fotógrafo. Parecia fixar-se num ponto impossível, distante, muito além da realidade.

Intrigada com aquilo, Simara foi até a casa do padre e pediu-lhe em-prestada sua lente de aumento. Já tinha visto o objeto algumas vezes depois das aulas de catecismo. Parecia mágico, com seu poder de ampliar pequenos detalhes. Quando era menor, adorava pegar a lente e observar a ponta de seu polegar, descobrindo as finas linhas que desenhavam rede¬moinhos em seus dedos.

Mas, agora, não havia tempo para brincar. Botou a foto sob o vidro da lente e examinou-a detidamente. Nem precisou procurar muito. Bastou-lhe focalizar os olhos do irmão para encontrar a explicação de sua expressão vazia: estavam furados. No lugar das córneas, havia apenas dois buracos ne-gros, redondos e perfeitos.

Com um grito apavorado, Simara chamou o padre. O homem fez o sinal-da-cruz e prontificou-se a acompanhar a menina até a residência do casal que tinha levado Fabiojunio embora. Foi só o tempo de pegar uma pesada cruz de prata, um vidro de água benta e o dinheiro da passagem de ônibus. Com o envelope nas mãos, a menina o seguiu até a rodoviária.

Cruz Alta ficava a apenas sessenta quilômetros de distância. Duas horas de viagem na condução velha e malcuidada. Simara sacolejava pela estrada, impaciente. O padre, no entanto, ignorava a ansiedade da menina e traçava cuidadosamente seu roteiro. Iriam primeiro à igreja local buscar informações sobre a família. Se possível, levariam o pároco junto com eles até a casa. As fotos diziam claramente que se tratava de um caso de bruxaria e não queria enfrentar uma novidade daquelas sozinho.

Chamava-se padre André, era jovem e destemido. Mas também inexpe-riente e humilde o suficiente para admitir que não tinha a menor ideia do que fazer quando encontrasse o estranho casal.

Não custaram a encontrar a igreja nem a conseguir falar com o padre Leal, um velhinho simpático, que cuidava da paróquia havia mais de trinta anos.

— Estamos com sorte — confidenciou o padre André a Simara. — Há tanto tempo aqui, ele deve conhecer a família.

O padre Leal, no entanto, ficou perplexo ao ver o endereço que Simara

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lhe mostrava.— Deve haver algum engano, meus filhos. Esse endereço não existe.Com um pressentimento ruim, Simara insistiu:— É muito importante, padre. Por favor, nos ajude a encontrar essa

família.— Mas estou lhe dizendo, filha. Conheço o lugar, não exis¬te casa nen-

huma nesse endereço. Essa rua não passa de uma velha estrada abandonada. Nem carroça passa mais por lá.

Até então, o padre André só observava a conversa. Mas decidiu intervir:— Padre Leal, temos motivos muito sérios para procurar essa casa —

disse, enquanto abria o envelope e espalhava as fotos sobre a mesa.— Veja isso.O velho pároco examinou as fotos com as mãos trêmulas enquanto

ouvia o relato da história feito por Simara. Por fim, deteve-se na que mostra-va Fabiojunio no jardim. Após observá-la por alguns instantes, mergulhou a cabeça entre as mãos, murmurando:

— Não consigo acreditar…Simara não se conteve e perguntou:— O senhor conhece essa casa?O religioso deu um profundo suspiro. Estava pálido e limitou-se a acenar

afirmativamente com a cabeça. Mal conseguia falar.Mas a menina era determinada. E não queria perder mais tempo.— Então, nos leve até lá. Acho que meu irmão está correndo perigo.O religioso limitou-se a balbuciar:— Seu irmão está morto.Padre André não se deu por vencido.— Precisamos da sua ajuda. Talvez ainda possamos salvá-lo. Tenho cer-

teza de que se trata de um caso de bruxaria.O velho o interrompeu:— Vou levá-los até o local.Assim que entraram no velho Dodge Dart do pároco, este olhou para o

padre André e disse:— Preparem-se para ver uma coisa terrível.Com o rosto amargurado, o religioso deu a partida no carro e recusou-se

a responder a qualquer pergunta durante o trajeto. Cerca de vinte minutos depois, saiu da estrada principal e tomou um caminho abandonado e coberto

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de mato pelo qual o veículo avançava com dificuldade crescente. Quanto mais andavam, mais ermo tornava-se o local. Estava claro que havia muito tempo que ninguém passava por ali.

Finalmente, pararam num ponto a partir do qual seria impossível prosse-guir com o carro. O mato era tão alto que batia no peito dos dois homens e cobria a cabeça de Simara. Saltaram, e o religioso suspirou:

— A partir daqui, teremos que seguir a pé.Nem Simara nem padre André ousaram abrir a boca. Apesar do sol

quente da tarde, a luminosidade do lugar tinha um toque pouco natural. E um silêncio sepulcral envolvia o caminho, como se ali não houvesse vida: nem insetos, nem animais, nem mesmo vento.

Depois de uns dez minutos de caminhada, uma clareira abriu-se abrupta-mente. À frente do grupo, surgiu um imenso terreno abandonado. Nem mes-mo mato crescia ali, como se a terra tivesse sido amaldiçoada.

Ao olhar para a cena, Simara deu um grito. Reconheceu, ao longe, o casarão ornamentado. No entanto, à sua frente, erguia-se uma ruína, aban-donada havia muitos anos em meio ao terreno desolado.

Não havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a casa como teria sido muitas décadas atrás.

— Vamos até lá — disse Simara energicamente. Ainda não conseguia acreditar no que via.

Partiu na frente, seguida pelos dois religiosos, ambos empunhando suas cruzes.

Não tinha medo. Não sentia nada além de uma urgência imensa e de uma esperança meio improvável de ainda encontrar o irmão. Abriu o pesado portão com um safanão e foi entrando. Deparou-se com o saguão de entrada, o mesmo que já tinha visto nas fotos. No entanto, agora, as paredes estavam descascadas, as vidraças das janelas, quebradas, a bela escadaria de madeira que conduzia ao segundo andar, destruída. E não existia mais nenhum dos móveis luxuosos que serviam de cenário para as poses de Fabiojunio.

Viu, logo à esquerda, o que deveria ter sido a sala de jantar. A mesa, a mesma onde o irmão aparecera na última foto, ainda estava lá. Comida por cupins, não passava de um monte de madeira podre, coberta por uma espessa camada de poeira e fungos.

Cada vez mais transtornada, percorreu todos os cômodos do térreo até sair no pátio dos fundos, de onde podia se ver um antigo cemitério familiar e

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nove tumbas.Correu para lá.Não teve dificuldade em reconhecer o estranho casal que levara seu

irmão nas fotografias amareladas que decoravam as duas primeiras sepul-turas. Ali, estava a data da morte deles, ocorrida cerca de cinqüenta anos antes. Próximos das tumbas principais — as mais ricas e enfeitadas — havia sete pequenos jazigos. O último era evidentemente recente e foi para ali que Simara correu. Sobre o túmulo, um nome: Fabiojunio, a última foto que tinha sido enviada à família e a data: apenas uma semana atrás.

Não tinha mais nada para ser visto ali. Tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que tinha descoberto. Deu meia-volta e saiu enxugando as lágrimas enquanto andava cada vez mais rápido, seguida pelos dois religiosos que ainda empunhavam suas cruzes, sem saber muito bem o que fazer com elas.

A viagem de volta foi lenta e silenciosa. O ônibus quebrou duas vezes e Simara só chegou em casa no dia seguinte. Achava que encontraria a mãe preocupada, mas a velha senhora estava radiante quando abriu a porta para a filha.

— Por que você não disse que ia visitar seu irmão? — perguntou a mul-her com um sorriso.

Antes que a menina pudesse responder, a mãe mostrou-lhe um novo envelope.

— Olha só, acabou de chegar! Veio com uma carta. E com ótimas notí-cias.

Simara avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto dela, vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o ce-mitério, embora a foto não mostrasse cemitério algum. Só um bonito jardim, com o gramado muito bem cuidado e árvores frondosas ao fundo.

Antes que pudesse se recuperar do susto, a mãe perguntou:— Leu a carta? Eles ficaram encantados com você!E completou, sorridente:— E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me

pagaram bem!Diante do olhar apavorado da menina, Marialva franziu o cenho e en-

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grossou a voz:— Já para o banho. Está na hora de você também aprender a ser chique.

STRAUZ, Rosa Amanda. Crianças À Venda, Tratar Aqui. In: STRAUZ, Rosa Amanda. Sete Ossos e Uma Maldição. Editora Rocco, 1a.ed., 2006.

Conto trabalhado na Escola Estadual Amaro Cavalcanti, Escola Estadual Ayrton Senna, Escola Municipal Lavínia Dória e Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, com alunos do 1º ano e 2° ano

do Ensino Médio e 6° ano do Ensino Fundamental.

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Por favor, não me entenda mal. Mas não gosto de meninas. Acho es-quisito o jeito delas, sempre gritando demais, rindo demais, olhando a gente e cochichando. Sempre acho que estão rindo de mim. Tenho alguns colegas que já beijaram. Eu tenho nojo. E também tenho medo de que a menina ria de mim.

Mas esse medo foi a minha perdição. Vou contar o que aconteceu. Imagino que todo mundo conheça a história da assombração na estra-

da. Eu conhecia desde pequeno. Meus pais também. Era assim: uma família viajava de carro quando surgia uma mulher desesperada à beira da estrada. Pedia socorro, dizia que tinha um carro caído na ribanceira próxima dali com três crianças feridas dentro dele. A família parava e ia até o local. Ao chegar lá, descobria um carro acidentado. De fato, havia três crianças feridas, mas vivas. Ao volante, estava a mãe delas, morta – era a mesma mulher que tinha pedido socorro na estrada.

O fato de já ter escutado a história inúmeras vezes não livrou nem a mim nem a minha família de passarem por uma situação muito parecida.

Voltávamos de viagem. Uns dias muito divertidos no sítio de um amigo de meu pai. Vínhamos, no carro, ainda relaxados, brincando e ainda fazendo planos para o próximo feriado. Estávamos a pouca distância de casa quando vimos uma mulher na beira da estrada. Era bonita, bem vestida, do jeito como se arrumam as mulheres elegantes mesmo quando estão de férias. Calça jeans, camisa branca, cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo, poucas jóias. Mas não foi nada disso que nos chamou atenção. Foi o desespero dela.

A mulher gesticulava, chorava, gritava, tudo ao mesmo tempo.

MORTE NA ESTRADARosa Amanda Strausz

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Meu pai quase passou por ela sem parar, mas minha mãe gritou:— Pelo amor de Deus, Luís! Vamos socorrer a mulher!Ele nunca contrariava a minha mãe.Assim que parou o carro, uns dez metros adiante, a mulher veio corren-

do até nós. Chegou com os olhos arregalados, sem fôlego. — Um acidente! Um acidente terrível! – dizia ela enquanto apontava pra

baixo de um barranco que margeava a estrada.Antes que ela completasse o que queria dizer, minha mãe saltou do car-

ro e correu na direção em que a mulher indicava.— Corre, Luís! Tem mesmo um carro lá embaixo! – gritou minha mãe,

aflita. — As crianças, Três crianças lá dentro... – completou a mulher, ainda

arquejando. Meu pai largou o volante e dirigiu-se para o local, seguido de perto

por minha mãe e por mim. Não olhamos para trás, para ver se a mulher nos acompanhava.

Não acompanhava. Ao chegar lá, o rosto angustiado, com rabo-de-cavalo desfeito pelo im-

pacto, mas os olhos tão arregalados de pavor como tínhamos visto na estrada, era o da mulher ao volante.

Morta. E, de fato, no banco de trás, três crianças choravam. Estavam machu-

cadas, mas vivas. Nem vou me dar o trabalho de descrever como foram as horas se-

guintes. Telefonemas, ambulância, hospital, uma confusão terrível. Só muito tempo depois, chegaram os avós dos meninos – que aliás, eram dois meninos e uma menina da minha idade – e tomaram conta de tudo, assim pudemos voltar para casa.

Levou um bom tempo para que as imagens dos acidente e da mulher assombrada saíssem da minha cabeça. Uns três anos, acho. Não que eu tenha esquecido a história, mas parei de ter pesadelos, o que já era alguma coisa.

Um dos mais frequentes era uma cena que acontecera no hospital. A situação já estava sob controle, os médicos começaram a chegar e a levar as crianças para a enfermaria. Foi quando a menina, cujo rosto eu não con-seguia ver direito, porque estava muito machucado, agarrou-se a mim. Ela me abraçou, agarrou meu pescoço. Estava muito assustada. Eu também. Mas

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achei que ela queria me beijar. O rosto ensanguentado dela me deu um nojo tamanho que a empurrei

com força. Ela acabou caindo no chão, de onde foi levada, aos berros, pelos médicos.

A cena ficou gravada na minha memória. E voltava sempre em forma de pesadelo, cada vez mais agoniado.

Num dos primeiros dias em que eu consegui relaxar, e vinha andando pela rua calmamente, a caminhos de casa, vi uma menina parada na calçada, perto da minha casa. Estava de calça jeans, blusa branca e com o cabelo preso num rabo-de-cavalo.

Mesmo com uma roupa tão simples, ela chamava atenção. Tem gente que é assim, parece que tem um ímã que atrai a gente. Dá vontade de ficar olhando.

Só quando cheguei bem perto, notei que havia alguma coisa errada com ela. Acho que era a expressão do rosto, bonita, mas estranhamente vazia. Só bem mais tarde, notei seus dedos, longos e trêmulos como as antenas de um inseto. Mas, aí, já foi tarde demais.

Eu disse “oi” e sorri. Não sabia por que, mas a desconhecida me dava vontade de ser gentil. Queria me aproximar dela.

— Estava esperando você chegar, Tico – disse ela em resposta ao meu cumprimento.

Disse assim, sem mais nem menos. Como se eu a conhecesse há muito tempo.

— Você sabe meu nome? – perguntei, meio espantado.— Claro.— A gente se conhece?— Não tenho tempo para perguntas. Preciso que você venha comigo.Ela não parecia aflita. Mais por curiosidade do que por outro motivo,

resolvi segui-la. Andamos em silêncio por um tempo. Até que não resisti e perguntei o

nome dela.— É Dolores, não lembra? Mas pode me chamar de Dodô. Todo mundo

chama. Eu não lembrava. E comecei a ficar preocupado. Já estávamos quase

saindo da cidade, e Dodô não dizia nada. Só caminhava, sem olhar para os lados e sem prestar atenção em mim.

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Aquilo foi me deixando aflito. Tentei puxar assunto.— Não me lembro de onde conheço você... – gaguejei.Dolores se limitou a dar uma risadinha seca, que logo desapareceu de

seu rosto. — Não lembra mesmo? – Um leve tom de deboche ao fundo.Nunca fui bom em manter o autocontrole. Não sabia por que, mas a

situação me dava calafrios. Engrossei a voz. — Se você não me explicar direitinho o que está acontecendo, paro por

aqui mesmo.Ela não pareceu abalada com minha voz alta e quase esganiçada, voz

de quem está assustado.— Não seja idiota. Já estamos chegando. Aquilo mexeu com o meu orgulho. Decidi ser firme e prosseguir sem

demonstrar maiores medos.O problema é que há uma grande distância entre o que a gente pre-

tende demonstrar e o que realmente acontece com nossos nervos. Quer saber o que acontecia com os meus? Basta imaginar um minhocário

lotado. Milhões de minhocas rebolando ao mesmo tempo, umas esbarrando nas outras, umas se enroscando nas outras. Talvez isso dê uma imagem mais exata do que ocorria com meus nervos.

Mas resolvi contrariar a multidão de vermes molengos na qual se trans-formara meu sistema nervoso. Firmei a voz e disse:

— Tá bom. Vamos lá. A voz saiu mais fina do que eu gostaria. Mas não tremeu.

Depois da uma caminhada mais longa do que eu imaginava que pudesse suportar, finalmente Dodô parou. Parou à beira da estrada, a cerca de dois quilômetros de onde eu tinha visto o acidente que matara a mãe das três cri-anças.

Foi só então que me lembrei nitidamente de onde a conhecia. Era a menina que chorava no banco de trás do carro, a mesma que tínhamos levado para o hospital. Olhando bem para seu rosto, ainda se podiam ver algumas cicatrizes. Mas era difícil reconhecer. A menina à minha frente não dava nojo, não tinha o rosto deformado, não estava em pânico. Era bonita, tranquila e ligeiramente perturbadora.

Dodô parou à beira da estrada e ficou olhando para um ponto lá em-

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baixo, no barranco. — O que tem ali? – perguntei.— Porque não vai até lá e vê? – sugeriu ela, as mãos ainda mais nervo-

sas, como se fossem estrangular alguém. Um pavor medonho, o sangue gelado, mas eu tinha que ir. E fui. Desci

com cuidado a ribanceira e consegui vislumbrar algumas ferragens retorcidas lá embaixo.

Não era hora de fugir. Obriguei minhas pernas a descerem mais um pou-co, meus olhos a não se fecharem e minha garganta a não berrar de pavor.

Havia uma motocicleta lá embaixo. O corpo de um rapaz, ainda de ca-pacete, jogado no meio do mato. Pela posição das pernas dobradas para trás, e pelo peito que não se mexia, dava pra adivinhar que estava morto.

Uma menina estava enroscada no banco do carona. E parecia ainda viva. Ao me aproximar, percebi a calça jeans e o cabelo preso no rabo-de-cavalo. Era a menina da estrada, eu tinha certeza. Mas não fugi, decidido a salvá-la.

Cheguei perto dela, vi que respirava, passei os braços em torno de seu corpo e levantei-a. Assim que comecei a subir a ribanceira, senti que os seus dedos envolviam meu pescoço como uma planta que cresce rápido demais.

— Calma, já vamos chegar – tentei falar. Mas era cada vez mais difícil. Seus dedos, nervosos como as antenas de um inseto, apertavam cada vez mais minha garganta.

Antes que eu pudesse tentar me desvencilhar, vi seus olhos muito aber-tos. E um sorriso, que se abria à medida que suas mãos se fechavam.

STRAUZ, Rosa Amanda. Morte na Estrada. In: STRAUZ, Rosa Amanda. Sete Ossos e Uma Maldição. Editora Rocco, 1a.ed., 2006.

Conto trabalhado na Escola Municipal Lavínia Dória, com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental

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O prédio era bem antigo. Oito andares. Na época da construção, foi con-siderado um dos mais luxuosos da cidade. Em 1930, nenhum edifício tinha oito antes, porque ninguém queria subir tanta escada, e elevador custava muito caro. Além disso, as pessoas tinham medo de subir tão alto naquela caixa de madeira – que, ainda por cima, nos primeiros tempos, vivia enguiçando. Por isso, além de elevador, o prédio também possuía um ascensorista, que tra-balhava uniformizado, vestido com se fosse um general em dia de festa.

Isso tudo meu pai me explicou assim que entramos na lata velha, que subiu rangendo os sete andares que nos levariam ao nosso apartamento. Novo é modo de dizer. Estava caindo de podre. Desde que ficara desempre-gado, meu pai morava mal. Cada casa dele durava pouco tempo, porque logo era despejado por falta de pagamento do aluguel. Ali, não ia ser diferente. Ainda bem. De todos os lugares esquisitos que ele tinha se enfiado, aquele era disparado o pior. Não era só por causa do cheiro – um cheiro de mofo e poe-ira. Nem por causa das lâmpadas fracas dos corredores. Nem por causa dos muitos apartamentos vazios. Mas a combinação de tudo isso dava ao prédio um ar meio lúgubre.

Logo na primeira noite, fui despertado por um barulho terrível. Parecia que uma máquina muito velha tinha sido posta em movimento. A coisa rangia, trincava, estalava. De repente, um ruído forte de pancada e o silêncio voltou. Mas foi por pouco tempo. Uns vinte minutos depois, a barulheira recomeçou.

Só podia ser o elevador. E pilotado por algum vizinho bêbado ou maluco, porque a coisa não parava. Subia, descia, bufava, estalava. Dava uns minu-tos de pausa e começava tudo de novo. Não dava para dormir daquele jeito.

O ELEVADORRosa Amanda Strausz

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E foi me dando um mau humor. Um mau humor que só crescia. Quando isso acontece, eu esqueço tudo: prudência, cuidado, educação. A raiva sobe até minha cabeça como um elevador de última geração: direto, sem paradas e sem interrupções.

Por isso, pulei da cama e fui direto para o corredor mal iluminado. O elevador estava parado no meu andar. Vazio, quietinho e silencioso. Xinguei meia dúzia de palavrões e voltei para a cama.

Mal senti o lençol cobrir os meus ombros e o barulho recomeçou. Desta vez, movido por uma raiva mais racional, abri a porta bem devagar e espiei pela fresta. O elevador continuava lá, no meu andar, tão parado quanto antes. Parecia que estava me provocando.

Quando o dia amanheceu, eu era só nervos. Nenhuma capacidade de raciocínio, nenhuma ideia brilhante, nenhum sono. Só uma irritação medonha. Resolvi fazer uma inspeção mais cuidadosa no prédio. Vistoriei todos os corre-dores, o que tinha sido a recepção – e agora não passava de um hall aban-donado –, as entradas de serviço, o compartilhamento da lixeira. Não havia nada que pudesse fazer um barulho daqueles durante a noite. Já estava quase desistindo quando vi um homenzinho entrar no prédio. Muito velho, encurva-do e mal vestido, não deu pela minha presença e dirigiu-se diretamente ao pequeno pátio que ficava atrás do prédio. Ia andando e resmungando, como fazem as pessoas já meio sem juízo. Resolvi segui-lo.

Vi quando abriu uma portinha ao lado da lixeira – cuja existência eu não tinha percebido – e tirou dali uma vassoura, um esfregão, um balde e alguns panos sujos. Droga. Era só o faxineiro. Pelo estado dos corredores e da esca-da, sempre imundos e encardidos, eu nunca imaginaria que o prédio tivesse um.

A falta de sono estava me deixando tonto. Achei que era melhor deixar minhas investigações para mais tarde e fui para casa tentar dormir.

Já era quase noite quando acordei. Meu pai chegava de mais um dia sem trabalho e sem vontade de conversar. Me deu cinco reais e pediu para que eu fosse ao mercado comprar dois pacotes de sopa instantânea e uns pães. Seria o nosso jantar.

Pelo menos, os corredores estariam limpos e sem aquele cheiro horrível de poeira e mofo. Mas, ao sair de casa, percebi que o faxineiro não tinha se-quer passado por ali. O chão continuava encardido e fedorento; os degraus da escada, cobertos por uma camada de décadas de sujeira.

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Além de intrigado, fiquei mais irritado ainda. Fiz as compras, jantei com meu pai, nós dois em silêncio. Ele foi dormir e fiquei zanzando pela sala sem sono. Às onze e meia, tudo permanecia em silêncio. Mas, para ter certeza de que a noite seria mesmo tranquila, fui vistoriar o prédio mais uma vez. Subi as escadas até o oitavo andar, espiei todas as saídas para o telhado. Então me dirigi ao térreo, bati nas paredes em busca de portas falsas, fui para o pátio escuro, verifiquei que a porta da lixeira estava bem trancada. Olhei melhor para a portinhola do quarto de limpeza. A construção era mais recente do que o prédio. Como se fosse um puxadinho. A porta não era tão velha como as outras. Forcei um pouco a fechadura e, para a minha surpresa, ela se abriu.

Havia ali um interruptor e acendi aluz. Era um pequeno quarto, com as paredes cobertas por estantes de tábua cheias de produtos de limpeza. Óleos de vários tipos, graxa, lustradores, polidores de metal, cera, diversos tipos de esponjas, estopas e flanelas, ferramentas. Ao contrário do que se podia imag-inar, ali dentro estava tudo impecavelmente limpo e arrumado.

Fiquei intrigado. Onde o faxineiro usaria todos aqueles produtos? Evi-dentemente, não era no prédio. Peguei uma lata de polidor de metais e sacu-di. Estava quase vazia, o que indicava que seu conteúdo tinha sido gasto em algum lugar. A mesma coisa aconteceu com quase todas as outras latas e os vidros.

Eu estava tão entretido na inspeção que não percebi logo uma caixinha atrás de uma das latas. Era pequena, de madeira, com algumas flores pinta-das na tampa. Não combinava com o lugar. Tentei abrir. Estava trancada. Tive que forçar a madeira com uma chave de fenda que se encontrava na parede e ela cedeu.

Decididamente, o velho faxineiro era biruta. Era uma caixinha de costu-ra, com linhas, agulhas, dedais, também muito bem organizada como todo o resto. Num dos compartimentos, havia vários botões dourados, desses que se usavam antigamente em uniformes militares.

Distraído, não percebi o tempo passar. Só me dei conta da hora quando um relógio, desses com som de carrilhão, começou a badalar. Na quinta batida do gongo, ouvi o primeiro estalo. Era a máquina. E dali, do quarto de limpe-za, dava para ouvir muito mais nitidamente de onde vinha o barulho. Logo começou a movimentar-se com seu rangido característico. Muito mais alto. Quase ensurdecedor. Parecia que eu estava dentro da engrenagem.

Comecei a tatear as paredes em busca da origem do som. Uma delas, a

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que ficava encostada na construção antiga, vibrava mais do que as outras. O ruído seco das pancadas que dei indicava que era uma parede falsa. Mas não descobria como abri-la.

Foi quando vi, no meio das ferramentas, uma chave de fenda do taman-ho fora do comum. Parecia mais um pé-de-cabra. Achei que seria boa para forçar os cantos da parede e tentei tirá-la do lugar.

A chave resistiu. Não estava pendurada, como parecia estar. Puxei com mais força e ela se levantou, permanecendo presa por uma das pontas, como se fosse uma alavanca. E era mesmo. Assim que consegui levantá-la comple-tamente, o barulho das engrenagens parou subitamente e foi substituído por outro, semelhante ao de uma grade se abrindo. Em seguida, a parede falsa deslizou suavemente para o lado, deixando à mostra o interior de uma cabine de elevador com as luzes apagadas.

Mesmo no escuro, dava para perceber que o elevador era magnífico. A caixa toda revestida de tecido adamascado; um tapete de veludo no chão; o painel, de madeira trabalhada pintada de dourado. Devia ser o elevador orig-inal, do tempo que o prédio era o mais luxuoso da cidade.

Apesar do medo que começava a se infiltrar sob minha pele, não resisti e resolvi olhar de perto. Queria ver se a máquina funcionava mesmo – e aonde ia dar. Entrei e comecei a procurar o botão da luz. Não se se apertei o botão errado ou se alguma força sobrenatural agia sobre o mecanismo. Mas, subita-mente, as luzes se acenderam, a grade dourada se fechou com um estrondo e a cabine começou a subir, fazendo o barulho que eu ouvia todas as noites.

Embora o edifício tivesse apenas oito pavimentos, o elevador passou do último andar e subiu mais um pouco, passando por um longo vão fechado. De repente, parou. Parou diante de uma parede branca, sem porta e sem saída. E as luzes se apagaram, deixando tudo numa escuridão medonha.

Estendi os braços, tentando alcançar o painel e apertar algum botão que acendesse a luz ou fizesse a máquina andar novamente, mas minhas mãos es-barraram em um obstáculo. Parecia uma pessoa. Um homem, possivelmente. Eu tinha tocado seu ombro direito, que estava vestido numa espécie de casaco de lã áspera, mas de boa qualidade, provavelmente bordada com fios metáli-cos. Apertei o ombro e senti apenas ossos. Se fosse mesmo um homem, seria muito magro. Apertei novamente. Magro demais. Não havia sinal de carne, só ossos duros e rígidos.

Com o ar já começando a me faltar, decidi tirar a criatura do caminho

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e empurrei-a com força. Mas o único resultado foi ficar com a minha mão esquerda presa entre seus dedos. Dedos sem carne. Só ossos. Finos, duros, pontudos, que entravam sem dificuldade no meu pulso e quase me faziam gritar de dor.

Consegui reunir alguma coragem para dizer:— Me deixe sair daqui.Mas a criatura não se movia nem permitia que eu me mexesse. Dei-lhe

mais um safanão e senti seus dedos cravados na minha garganta. Agora eu sabia: ia morrer ali. Sem ajuda, sem socorro, e ninguém jamais descobriria meu corpo.

Tudo o que eu lembro vai até aí. Acredito que tenha desmaiado. Quando dei por mim, estava do lado de fora do quarto de limpeza, caído no chão do pátio sujo. Já amanhecia. Levantei e olhei para meu pulso, que exibia as mar-cas de cinco dedos num vermelho quase roxo. Nem precisei de espelho para adivinhar que meu pescoço devia estar na mesma situação. Tomado de raiva, fui para a porta do quartinho e forcei a fechadura. Nada. Parecia colada com cimento. Bati, soquei, esmurrei. Estava assim, no meio da minha luta contra a portinhola, quando percebi alguém às minhas costas. Era o faxineiro que, zangado, perguntava o que eu queria ali.

Quase avancei no homem. Aos berros, exigi que ele me contasse o que havia ali dentro, que tipo de assombração criava ali. Como o velho só res-mungasse, sem dizer coisa com coisa, agarrei-o pelo pescoço e mandei que abrisse a portinhola.

Com um olhar de puro ódio, ele obedeceu. Abriu a porta com uma pequena chave e afastou-se para que eu pudesse entrar. Para minha surpresa, era um quartinho imundo, com vassouras e panos sujos jogados de qualquer jeito dentro de baldes encardidos.

— Já viu tudo o que queria? Então, suma daqui e me deixe fazer meu trabalho – rosnou o velho.

Ainda quis lhe fazer algumas perguntas, mas sabia que ele não respon-deria a nenhuma delas. Fui para casa, exausto, fazer um curativo no pulso e no pescoço. Tomei uma xícara de chá e caí na cama. Devo ter dormido o dia inteiro e parte da noite porque, quando acordei, tudo estava escuro e silenci-oso. Só meu pai roncava alto em seu quarto. Levantei, bebi um copo d’água e voltei para a cama.

Comecei a dormir novamente, mas um barulho terrível me acordou. Es-

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talos e rangidos. Olhei para o relógio. Meia-noite em ponto. Não conseguiria mais dormir. Quando Sinhazinha chegara, subira, logo. Graças à intimidade que tinha

na casa, onde vivera até a data do casamento, podia fazer isso naturalmente. Ia só para deixar a sua capa dentro do armário. Mas, à procura de um al-finete, abriu a mesinha de cabeceira, viu o anel, sentiu a tentação de roubá-lo e assim fez. Lembrou-se de que tinha de ir para a Europa daí a um mês. Lá venderia a jóia. Desceu então novamente com a capa e mandou pô-la no automóvel. E como ninguém a tinha visto subir, pôde afirmar que não fora ao andar superior.

Eu estraguei tudo.Mas a mulherzinha se vingou: a todos insinuou que provavelmente o

ladrão tinha sido eu mesmo, e, vendo o caso descoberto antes da minha reti-rada, armara aquela encenação para atribuir a outrem o meu crime.

O que sei é que Madame Guimarães, que sempre me convidava para as suas recepções, não me convidou para a de ontem… Terá talvez sido a primei-ra a acreditar na sobrinha.

STRAUZ, Rosa Amanda. O Elevador. In: STRAUZ, Rosa Amanda. Sete Ossos e Uma Maldição. Editora Rocco, 1a.ed., 2006.

Conto trabalhado na Escola Municipal Lavínia Dória, com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental

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Denise não acreditava em casa mal-assombrada. Não há nada que dez baldes de tinta fresca não resolvam, costumava dizer. Além disso, ficou louca quando viu o casarão à venda. Era simplesmente espetacular. Tinha um ex-celente terreno para fazer jardim e quintal, três salas imensas, cinco quartos, três banheiros e vários cômodos que poderiam ser adaptados. O lugar per-feito para uma recém-casada que pretendia ter muitos filhos. Velha era, até demais. Exigiria um bocado de reformas. Mas o preço era incrivelmente baixo. Jamais conseguiria comprar uma casa daquelas tão barato.

Não foi difícil convencer o noivo a trocar o sonho de um pequeno apar-tamento de sala e quarto por uma mansão maravilhosa. Compraram o imóvel e levaram um ano inteiro fazendo obras. Ao fim do período, tinham uma casa simplesmente deslumbrante. A antiga faixada descascada agora exibia uma alegre pintura amarela. Portas, janelas e pisos tinham sido recuperados. Cô-modos que antes cheiravam a mofo, deixavam passar fartas lufadas de ar fresco. Canteiros de flores e ervas aromáticas substituíam o terreno baldio que antes rodeava a casa. Tinham capinado e replantado tudo.

Denise só manteve uma antiga figueira. Era simplesmente magnífica com seu tronco forte e uma profusão de galhos. Quem chegasse à casa, veria, em primeiro lugar, a figueira, que reinava, soberana, na entrada. Em segui-da, prestaria atenção à moradia impecavelmente reformada. Agora ali, tudo era calmo, colorido e cheirava bem. Verdade que a vizinhança ainda evitava o lugar. Até mesmo o carteiro relutava em se aproximar. Mas nada impediu o jovem casal de mudar-se para lá logo após a lua-de-mel.

Denise ainda se lembrava bem do dia da mudança, os dois pegando

O FRUTO DA FIGUEIRA VELHARosa Amanda Strausz

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carona no caminhão e olhando as ruas com uma curiosidade infantil. Foi nessa ocasião que ela reparou na igrejinha que ficava a poucos quarteirões da casa. Uma graça. Apesar de sua arquitetura antiguinha, era obviamente nova, com a pintura ainda fresca e um sino que ainda reluzia.

Denise e Tiago capricharam na primeira noite que passaram na nova residência. Montaram uma bela mesa no jardim e serviram ali um jantar es-pecial, com toalhas bordadas, talheres novos, flores e velas.

Apaixonados, o casal tomou uma taça de champanhe enquanto admira-va a propriedade e engolia a comida feita por eles mesmos — que nem estava tão boa assim, mas nem ligaram.

Nenhum dos dois era bom cozinheiro. O romantismo era suficiente para ignorarem o bife duro e o arroz mal cozido. Mas, na hora da sobremesa, foi impossível engolir o pudim. Feito com todo o amor do mundo — mas nenhu-ma técnica culinária —, foi deixado de lado logo depois da primeira colherada. Estava intragável.

O jeito era rir do desastre. Rir muito, jogando a cabeça para trás, olhan-do a lua e dando muitos beijos.

Foi assim, com a cabeça jogada para trás e plena felicidade, que Denise percebeu que a figueira estava repleta de frutos. À luz do luar, os figos brilha-vam, cintilantes e convidativos.

Nem pestanejou. Correu para a árvore e colheu o mais bonito. Seria a sobremesa certa para aquela noite perfeita — só estragada por um errinho de nada na receita do pudim. Voltou para a mesa rindo e mordendo a fruta. Estava deliciosa. Madura, carnuda e doce como a melhor das sobremesas. Comeu uma metade, deu a outra ao marido, e foram dormir.

Nada explicaria o terrível pesadelo daquela noite. A brisa estava fresca, o quarto arejado, os lençóis eram novos e macios, o jantar tinha sido leve e ela estava muito feliz. Tratava-se de uma realidade tão perfeita que era con-sigo mesma que Denise sonhava. Sonhava que estava dormindo em sua casa nova, ao lado de seu marido, depois de um alegre jantar no jardim.

No sonho, experimentava passar o peito do pé de leve sobre o lençól. Ia sentindo a maciez do tecido como um carinho, até que seu pé tocasse o corpo de Tiago. Então, voltava para a posição inicial e começava tudo de novo. Deslizar a pele pelo algodão fresco, tocar a perna do marido, recolher o pé.

No entanto, num desses movimentos, esbarrou numa coisa diferente. Em vez da suavidade do tecido ou do calor do corpo de Tiago, seu pé tocou

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numa superfície áspera e úmida, como um osso recoberto por escamas gela-das. Abriu os olhos, sobressaltada, e viu uma criatura sentada em sua cama, entre ela e o marido.

Não dava para saber ao certo do que se tratava, se era bicho ou assom-bração. O corpo, muito magro, era recoberto de couro rugoso. A coisa estava sentada de cócoras, com os joelhos dobrados, mas não da maneira como uma pessoa encolhe as pernas. E os pés e mãos, mais parecidos com garras, lhe diziam que aquilo, decididamente, não era humano.

Nem precisaria dizer, bastava olhar o rosto. A cabeça pendia do pescoço e girava em todas as direções como a de uma galinha. Mas os olhos estavam cravados nela. Miúdos, brilhantes, tão estúpidos quanto cruéis.

Embora a coisa não a tocasse com as mãos, Denise sentia sua garganta comprimida de tal modo que não conseguia gritar. Tampouco podia mover o corpo. Muda e paralisada, viu quando a criatura abriu a boca _ seria aquilo um sorriso? _ e lhe disse:

— Gostaria de saber quem a autorizou a roubar minhas frutas.Denise queria se defender. Não tinha roubado nada. Mas a voz não saía.

A criatura, no entanto, pareceu ler seus pensamentos.— A casa é sua? — Uma risada debochada ecoou pelo quarto. — Quem

lhe contou um absurdo desses? Esta casa me pertence. Ela e tudo que está dentro dela.

Antes que Denise pudesse retrucar, o estranho ser pulou para o chão e completou, sibilando:

— Inclusive você.Dizem que quando uma pessoa morre, vê toda sua vida se passar diante

diante dos olhos numa fração de segundos. Coisa parecida aconteceu com Denise. De repente, tudo o que já tinha ouvido falar a respeito de fenômenos sobrenaturais passou por sua mente ao mesmo tempo. Informações às quais jamais dera nenhuma importância. Histórias que sempre julgara pertencerem ao folclore e às crendices populares. Subitamente, tudo fazia sentido, tudo parecia absolutamente real.

Figueiras são as casas do diabo, sempre lhe dizia sua avó. O tinhoso es-colhe essas árvores como moradia porque elas foram amaldiçoadas por Jesus.

Denise nunca dera muito crédito às histórias da avó. Tivesse prestado atenção nelas, teria desconfiado do casarão tão barato, do pavor que a vizin-hança manifestava do local. Mas nunca tinha sido supersticiosa.

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— Superstição? — debochou o diabo, lendo seus pensamentos. — Ora, minha querida, você é minha propriedade e está em meus domínios. E roubou uma fruta da minha árvore. Vai ter que devolvê-la.

Sentada na cama, quase sufocando de pavor, Denise não conseguia re-sponder, nem se mover, nem sequer respirar direito.

Quando o grito se soltou de sua garganta, Tiago deu um pulo. Já era manhã alta. Sentada na cama, Denise uivava como um bicho selvagem, na mesma posição em que estivera enquanto o demônio lhe falava as coisas hor-ríveis que escutara. Teria dormido daquele jeito? Sentada? Não era possível. A impressão era de que foi tirada dali, inconsciente, e acabara de ser devolvida a seu quarto.

Tiago tentava acalmá-la. Dizia mil vezes que tudo não passara de um pesadelo. Mas nada adiantava. Denise ainda sentia inteiro o horror da pre-sença, como se a besta apenas tivesse se tornado invisível, mas continuasse ali.

Desde essa noite, não conseguiu mais dormir direito. Mal anoitecia, seu coração ficava pesado, cheio de pressentimentos. O sono era interrompido a toda hora por sustos que a faziam abrir os olhos na escuridão. Não via nada diferente no quarto, mas tinha certeza de que o demônio estava ali, com seus olhos estúpidos e cruéis fixados nela.

E foi assim, noite após noite. Denise emagreceu, ganhou olheiras pro-fundas, tornou-se frágil e nervosa. Nada lembrava a jovem apaixonada e cheia de vida que se casara tão pouco tempo atrás.

Dois meses mais tarde teve uma notícia. Estava grávida. Em vez de fi-car feliz, como era de se esperar, caiu no choro. Não sabia por que, mas tudo que aquela gravidez lhe dava era um medo imenso. Como para confirmar seus piores presságios, naquela noite, o bicho medonho voltou.

Estava quase adormecendo quando sentiu que garras ásperas e frias tocavam seu rosto. Mesmo sem abrir os olhos, sabia quem estava a seu lado. Podia sentir seu hálito metálico e ouvir seus passos cambaleantes.

— Não adianta fingir que está dormindo. Sei que você me escuta — disse a coisa, com sua voz falsamente meiga.

Não era faz-de-conta. Denise não conseguia se mexer, nem falar, nem gritar. E foi assim, paralisada, que escutou a voz do demônio pela última vez.

— Não quero perturbá-la demais, minha menina — começou ele, pigar-reando. — Mulheres grávidas devem ser deixadas em paz. A última coisa que

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eu desejaria era que esse doce fruto que você carrega no ventre azedasse por conta de seu nervosismo.

O peçonhento pulou para o chão, e continuou falando enquanto andava de um lado para o outro, balançando a cabeça, mas sem jamais tirar os olhos de sua presa.

— Mas, pense bem, minha linda. Agora, você terá uma chance de ouro de pagar a dívida que tem comigo. Você ficou com meu fruto. Eu fico com o seu. Tudo muito justo. Basta que você me entregue a criança e prometo não voltar a perturbar seu sono.

Mesmo impossibilitada de mover-se ou gritar, Denise agitou-se de tal maneira que seu interlocutor começou a rir.

— Ora, ora, não entendo por que tamanha indignação. Estou lhe pro-pondo um pagamento absolutamente justo pelo roubo que você cometeu. E, na verdade, não é bem uma proposta. Estou apenas lhe dando a chance de comportar-se com dignidade e de corrigir seu erro. Se você não me entregar essa criança por bem, farei exatamente o que você fez comigo: invadirei seus domínios e a tirarei de você como quem arranca uma fruta do galho.

Dado o recado, o demônio desapareceu. E cumpriu sua promessa. Não apareceu mais nos meses seguintes.

A ausência do tinhoso não acalmou Denise. Quanto mais se aproximava a data do parto, mais tudo lhe parecia um pesadelo real.

Um dia, Tiago passava pela rua, preocupado com o estado da esposa, quando viu a igrejinha. Era a mesma que tinham avistado no dia da mudança. Estava aberta. Da rua, era possível perceber que não havia ninguém ali den-tro. Assim mesmo, resolveu entrar e rezar um pouco.

O interior da pequena igreja era mal iluminado. Mal dava para perceber direito os detalhes da construção. Mas era evidentemente nova ou tinha sido recém-reformada porque, em vez do aroma adocicado de incenso que costu-ma impregnar as igrejas, ali o que predominava era o cheiro de tinta fresca.

Tiago aproximou-se do altar, ajoelhou-se, e antes mesmo de fazer o sinal da cruz e começar a rezar, viu que um homem se aproximava. Era o pa-dre. Parecia bastante jovem.

— Posso ajudá-lo? — perguntou o pároco. Sua voz era suave e inspirava confiança.

O rosto de Tiago iluminou-se. Sim, se havia alguém que pudesse ajudar naquela situação, era um padre. Contou-lhe tudo que acontecera, sem omitir

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nenhum detalhe. Por fim, foi tranquilizado pelo jovem religioso.— Meu filho, não se preocupe com mais nada. Agora esse assunto está

em minhas mãos. Hoje à noite, farei uma visita a sua esposa e conversarei com ela.

À noite, conforme prometido, o pároco lhes fez uma visita. Novamente, ouviu toda a história, agora contada por Denise. E repetiu as mesmas palavras que já tinha dito a Tiago.

— Não se preocupe mais com isso, minha filha. O poder que eu repre-sento é muito forte. Ninguém roubará aquilo que só pertence a Meu Senhor. Assim que a criança nascer, virei buscá-la. Ela ficará comigo na igreja. Lá, ela estará a salvo.

Embora jovem, o padre transmitia imensa segurança e fé. A voz era um puro conforto; os olhos só doçura. Denise sentiu imediatamente que podia confiar nele. A partir daquele dia, não teve mais medo de nada. O demônio não perturbava mais seu sono, ela se alimentava bem e chegava té mesmo a cantarolar enquanto comprava as roupinhas para o bebê e decorava seu quarto.

Ao fim do nono mês, teve seu filho, um menino forte e saudável. Nem chegou a levá-lo para casa. Embrulhou-o numa manta de lã azul-clarinha, como o céu, e saiu diretamente do hospital para a igreja, onde o padre já es-perava.

— O senhor acha que ele vai precisar ficar muito tempo aqui? — pergun-tou, aflita por ter que se separar do bebezinho.

— Não, minha filha. Basta que ele durma aqui esta noite. Amanhã cedo, iremos batizá-lo. Depois disso, já estará consagrado e intruso nenhum conse-guirá aproximar-se dele.

Aliviada, Denise deu um beijo na testa do menino e foi para casa, se-guida de Tiago.

Na manhã seguinte, bem cedo, foram para a igreja, acompanhados dos padrinhos. Denise estava ansiosa, mas feliz. Tiago torcia para que o pesadelo tivesse logo um fim. Já estavam decididos a mudar de casa e começar uma vida nova bem longe dali.

Era esse o assunto dentro do carro, onde os dois casais riam para tentar disfarçar a tensão. Denise já estava até pensando que talvez pudessem se mudar para outra casa antiga.

— Desde que tenha uma boa igreja por perto — completava o padrinho,

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que nunca tinha levado aquela história de figueira muito a sério.—A verdade é que sempre ficamos impressionados demais com as forças

do mal — dizia a madrinha. — Acho que o maior poder que elas têm vem do nosso próprio medo. Quando decidimos enfrentá-las, não resistem.

— Bem, talvez não seja bem assim _ ponderou Tiago, que ainda guar-dava bem vivos os gritos apavorados da mulher nas piores noites.

Mas o padrinho interveio:— Ora, Tiago, se não fosse assim o tal demônio teria aparecido nesta

noite mesmo para buscar a criança. Ele apareceu?Denise admitiu que não. Nada lhe pertubara o sono.— Pois então — teimou o padrinho. — Vocês ficaram impressionados

demais com essa história.A conversa seguiu tão animada, que o grupo chegou ao fim da rua sem

ter parado na porta da igreja.— Passamos do ponto — disse Tiago, ainda rindo. — Vamos ter que vol-

tar. Fizeram a manobra de carro e retornaram, desta vez prestando atenção, mas não viram igreja nenhuma.

— Tem certeza de que é aqui? — perguntou a madrinha.— Claro! — respondeu Tiago, já apreensivo.Passaram novamente pela rua toda. Não havia sinal de igreja por ali.Toda a tranquilidade de Denise tinha desaparecido. Sem dar ouvidos às

ponderações dos padrinhos, saltou do carro e começou a correr a calçada de cima para baixo como uma louca.

Finalmente parou, com os olhos arregalados, fixos num ponto de um terreno baldio. Todos a seguiram.

No centro do terreno, imaculadamente limpo, só havia uma pequena planta. Uma muda de figueira com cerca de cinquenta centímetros de altura.

Ao lado da muda, um fiapo de lã azul misturado com a terra denunciava que alguma coisa tinha sido enterrada ali.

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QUIROGA, Horacio. O travesseiro de penas. In: ______. A Galinha Dego-la e Outros Contos, seguido de Heroísmos: biografias exemplares. Tradução: Sergio Faraco. São Paulo: L&PM POCKET, 2002. p.114-116.

Conto trabalhado na Escola Estadual Ayrton Senna, com alunos do 1º ano e 2° ano do Ensino Médio.

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Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o caráter duro de seu marido gelou suas sonhadas fantasias de noiva. Entretanto ela gostava muito dele, mesmo que, às vezes, com um leve estremecimento quando, voltando juntos à noite pela rua, ela lançava algum olhar furtivo à alta estatura de Jordán, mudo já há uma hora. Ele, por sua vez, amava-a pro-fundamente sem, no entanto, dar disso qualquer mostra.

Durante três meses – casaram-se em abril – viveram uma felicidade es-pecial. Sem dúvida ela houvera desejado menos severidade nesse rígido céu de amor; mais expansiva e descuidada ternura; mas o impassível semblante de seu marido sempre a detinha.

A casa em que viviam influenciava não pouco em seus estremecimen-tos. A brancura do quintal silencioso – frisos, colunas e estátuas de mármore – produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem o mais leve arranhão nas altas paredes, acentuava aquela sensação de desagradável frio. Ao passar de um cômodo a outro, os passos encontravam eco por toda a casa, como se um profundo abandono houvesse sensibilizado sua ressonância.

Nesse estranho ninho de amor, Alice passou todo o outono. Havia ter-minado, não obstante, por lançar um véu sobre seus antigos sonhos, e ainda vivia adormecida na casa hostil sem querer pensar em nada até chegar seu marido.

Não é de se estranhar que emagrecesse. Sofreu um ligeiro ataque de influenza que se arrastou insidiosamente por dias e dias; Alice não se restabe-lecia nunca. Ao fim de uma tarde pôde sair ao jardim apoiada ao braço de seu

O TRAVESSEIRO DE PENASHoracio Quiroga

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marido. Olhava com indiferença a um e outro lado. De repente, Jordán, com profunda ternura, passou-lhe lentamente a mão pela cabeça, e Alice desfez-se em lágrimas, lançando-lhe os braços ao pescoço. Chorou longamente todo seu espanto calado, aumentando o pranto à mais leve carícia de Jordán. Logo os soluços foram diminuindo, e ela ainda ficou alguns instantes escondida em seu peito sem mover-se ou pronunciar palavra. Foi esse o último dia em que Alice esteve em pé. No dia seguinte amanheceu desvanecida. O médico de Jordán examinou-a com extrema atenção, ordenando-lhe calma e repouso absolutos.

— Não sei – disse a Jordán na porta da rua. Ela tem uma fraqueza tão grande que não entendo. E sem vômitos, nada… Se amanhã ela despertar como hoje, telefone imediatamente.

No dia seguinte, Alice amanheceu pior. Houve consulta. Foi constatada uma anemia crescente e agudíssima, completamente inexplicável. Alice não teve mais desmaios, mas rumava visivelmente à morte. Durante todo o dia o quarto ficou com as luzes acesas e em total silêncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alice permanecia meio adormecida. Jordán quase vivia na sala, com todas as luzes também acesas. Caminhava sem parar de um lado para o outro, com incansável obstinação. O tapete silenciava seus passos. De tempos em tempos entrava no dormitório e prosseguia seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um instante em cada extremo para ob-servar sua mulher.

Logo Alice começou a ter alucinações, confusas e flutuantes a princípio, mas que logo desceram rente ao chão. A jovem, com os olhos desmesurada-mente abertos, não fazia senão olhar a um e outro lado do tapete sob a cabe-ceira da cama. Numa noite ficou de repente com o olhar fixo. Depois abriu a boca para gritar, e seu nariz e lábios brilharam de suor.

— Jordán! Jordán! – gritou, rígida de espanto, sem deixar de olhar para o tapete.

Jordán correu para o quarto e, ao vê- lo aparecer, Alice lançou um alar-ido de horror.

— Sou eu, Alice, sou eu! Alice contemplou-o, ausente, olhou para o tapete, voltou a olhá-lo, e depois de um longo tempo de entorpecida confron-tação voltou a si. Sorriu e tomou entre as suas a mão do marido, acarician-do-a por meia hora, tremendo.

Entre suas alucinações mais recorrentes, houve um antropóide apoiado no tapete sobre os dedos, que tinha fixos nela os olhos.

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Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali diante deles uma vida que se acabava, sangrando-se dia a dia, hora a hora, sem que soubessem realmente como. Na última consulta, Alice jazia em estupor enquanto lhe tomavam o pulso, passando de um a outro o seu braço inerte. Observaram-na longa-mente em silêncio e foram para a sala de jantar.

— Pst… – Deu de ombros o desalentado médico. É um caso inexplicável… Não há quase nada a ser feito…

— Só me faltava essa! – suspirou Jordán. E tamborilou bruscamente na mesa.

Alice foi se extinguindo em subdelírio de anemia que se agravava du-rante a tarde, mas que melhorava às primeiras horas. Durante o dia sua en-fermidade não avançava, mas a cada manhã amanhecia pálida, quase em sín-cope. Parecia que unicamente à noite a vida lhe escapava em novas ondas de sangue. Tinha sempre ao despertar a sensação de estar esmagada na cama com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia, esse aniquilamento não a abandonou mais. Mal podia mover a cabeça. Não quis que tocassem na sua cama, nem que lhe arrumassem o travesseiro. Seus terrores crepuscu-lares avançavam agora em forma de monstros que se arrastavam até a cama, e subiam com dificuldade pela colcha.

Logo perdeu a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar, a meia-voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, não se ouvia mais que o delírio monó- tono que vinha da cama, e o surdo retumbar dos eternos passos de Jordán.

Alice morreu, por fim. A empregada, quando entrou depois para desfaz-er a cama, já sozinha, olhou com espanto o travesseiro.

— Senhor! – chamou Jordán em voz baixa. O travesseiro tem umas manchas que parecem de sangue.

Jordán aproximou-se rapidamente e inclinou-se sobre o travesseiro. De fato, sobre a fronha, de ambos os lados da marca que havia deixado a cabeça de Alice, viam-se pequenas manchas escuras.

— Parecem picadas – murmurou a empregada depois de um instante de imóvel observação.

— Coloque-o na luz – disse a ela Jordán. A empregada levantou o traves-seiro; mas em seguida deixou-o cair, e ficou olhando, pálida e tremendo. Sem saber por quê, Jordán sentiu seus cabelos se arrepiarem.

— Que foi? – murmurou com a voz rouca.

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— Pesa muito – balbuciou a empregada, sem parar de tremer. Jordán levantou o travesseiro; pesava extraordinariamente. Saíram com

ele e, sobre a mesa da sala de jantar, Jordán cortou a fronha e a capa com um só golpe. As penas de cima voaram, e a empregada deu um grito de horror com a boca totalmente aberta, levando as mãos crispadas à cabeça. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal mon-struoso, uma bola viva e viscosa. Estava tão inchado que só se notava a boca.

Noite após noite, desde que Alice havia caído de cama, aplicara sua boca – sua tromba, melhor dizendo – às têmporas de Alice, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A remoção diária do travesseiro teria, sem dúvida, impedido a princípio seu desenvolvimento; mas a partir do momento em que a jovem já não conseguia se mover, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, o monstro havia esvaziado Alice.

Esses parasitas de aves, diminutos em seu meio habitual, chegam a adquirir em certas condições proporções enormes. O sangue humano parece ser-lhes particularmente favorável, e não é raro encontrá-los nos travesseiros de pena.

QUIROGA, Horacio. O travesseiro de penas. In: ______. A Galinha Dego-la e Outros Contos, seguido de Heroísmos: biografias exemplares. Tradução: Sergio Faraco. São Paulo: L&PM POCKET, 2002. p.114-116.

Conto trabalhado na Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, com alunos do 2° ano do Ensino Médio.

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PIBID -UFRJSubprojeto Português/Literaturas

Coordenação:

Profa. Ana Crelia Penha Dias dos Santos Profa. Maria Fernanda A. P. de Souza Oliveira

Por instituição:

Escola Estadual Amaro CavalcantiSupervisão: Profa. Isa Ferreira MartinsLicenciando(a)s:Bárbara Lemos Nascimento Laranja Daniele FerreiraEvelin Cecilia Trajano Borges da SilvaGiuliana Muniz Cabral da Silva Lays França Oliveira Lucas Gabriel de Freitas

Escola Estadual Ayrton SennaSupervisão: Fabiana MatosLicenciando(a)s:Alessandra Zager Ariadne Maia Felipe Andrade Grazielle Corapi Luana Marques

Paula LimaThaís VinhasVictoria Dantas

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Escola Escola Municipal Professora Lavínia de Oliveira Escragnolle Dória

Supervisão: Profa. Vanessa Mattos Licenciando(a)s:Janaína Smith Joaquim Mamede Juliana PereiraThiago Lucius Karina Nunes Karine Rocha

Escola Técnica Estadual Adolpho BlochSupervisão: Profa. Rosângela BoydLicenciando(a)s:David Novaes CidadeLydia Cryns Maia Maria Rocha de Souza Priscila Vieira DuarteSamara Fentanes Alves Vanessa Amaral Vanderlei

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro

Supervisão: Profa. Luciana Reis Licenciando(a)s:Carolina Rodrigues Vítor Lima de Oliveira Mariana Fortes Marise Lourenço Liane Scribelk Thaís AndradeDiego Mesquita

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