Antropologia e comunicação

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ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO: PRINCÍPIOS RADICAIS antropologia.p65 25/3/2008, 13:52 1

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  • ANTROPOLOGIA E COMUNICAO:

    PRINCPIOS RADICAIS

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  • ReitorPe. Jesus Hortal Snchez, S.J.

    Vice-ReitorPe. Josaf Carlos de Siqueira, S.J.

    Vice-Reitor para Assuntos AcadmicosProf. Jos Ricardo Bergmann

    Vice-Reitor para Assuntos AdministrativosProf. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

    Vice-Reitor para Assuntos ComunitriosProf. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio

    Vice-Reitor para Assuntos de DesenvolvimentoPe. Francisco Ivern, S.J.

    DecanosProf Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH)Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC)Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM)

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  • ANTROPOLOGIA E COMUNICAO:

    PRINCPIOS RADICAIS

    Jos Carlos Rodrigues

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  • 4ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    Editora PUC-RioRua Marqus de S. Vicente, 225 Projeto ComunicarPraa Alceu Amoroso Lima, casa EditoraGvea Rio de Janeiro RJ CEP 22453-900Telefax: (21)3527-1838/3527-1760Homepage: www.puc-rio.br/editorapucrioE-mail: [email protected]

    Conselho EditorialAugusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Jos Ricardo Bergmann,Maria Clara Lucchetti Bingemer, Fernando S, Luiz Roberto A. Cunha,Reinaldo Calixto de Campos, Miguel Pereira.

    Capa e Projeto GrficoFlvia da Matta Design

    ISBN: 978-85-87926-30-2

    Rodrigues, Jos Carlos Antropologia e comunicao : princpiosradicais / Jos Carlos Rodrigues. - Rio deJaneiro : Ed. PUC-Rio, 2008. 191p. ; 21cm (Coleo Cincias Sociais ;5) Publicado originalmente: Rio de Janeiro :Espao e Tempo, 1989. Inclui bibliografia. 1.Antropologia. II.Srie. III.Ttulo.

    CDD:301

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  • 5Os outros e os outros

    A meu pai, Joo,e a minha filha, Aline:

    a todos de quem aprendo a aprender.

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  • 7Os outros e os outros

    Apresentao

    CAPTULO I:Homens. Homem?

    Uma pergunta, muitas respostasNeutralidade? Objetividade?

    Mundos. Mundo?Vida e comunicao

    Biologia, sociologia, comunicaoSmbolos e sinaisNem s de mel...

    Smbolos animais? Sinais humanos?Mas, como?

    Concluso

    CAPTULO II: Sobre a necessidade e outros mitos

    S U M R I O

    9

    13

    14161921242630374452

    53

    5457626567697578808688909599

    Da cincia sapinciaMecanismo, organismo, informao

    Ecologia social dos chimpanzsUm pressuposto viciado

    Nem s de po...Necessidades orgnicas?

    Sobrevivncia. Qual? De quem?O mito de origem

    A falcia da misria originalNatureza viva

    TrabalhoRazes. Razo?

    Homo oeconomicusConcluso

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    CAPTULO III:Os outros e os outros

    Homens e crocodilosA cultura, as culturasO etnocentrismo e sua lgicaA relativizao do etnocentrismoA cultura da cinciaO etnocentrismo da relativizaoUm conceito e suas armadilhas: culturaDo telescpio ao microscpioEnto, o indivduo?Concluso

    Bibliografia

    112116129137141145147154161175

    181

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  • 9Os outros e os outros

    J h alguns anos vinha alimentando o desejo de escrever umaintroduo antropologia. Talvez at fosse melhor falar de umcapricho: porque no se tratava da aspirao a reproduzir o espritoda maioria dos manuais j existentes, desses nos quais se arrolamdidaticamente nomes e datas, teorias e definies, escolas e autores,apenas para a informao do leitor.

    Meu devaneio: conceber uma obra em que se comeasse, digamosassim, pelo fim. Uma obra que apresentasse diretamente as grandesquestes antropolgicas, isto , que entrasse diretamente nosproblemas mais importantes de que a antropologia trata. Ao mesmotempo, esta obra deveria discutir os problemas da antropologia: tom-la como um dos problemas antropolgicos, ou seja, examinar suasvirtudes e limitaes, sua capacidade de enfrentar as tais grandesquestes. Enfim, sonhava em escrever uma introduo que, aocontrrio de muitas, no infantilizasse o leitor, mas que tambm noo afugentasse logo na primeira pgina por causa da utilizao de umalinguagem acessvel apenas aos iniciados na sociedade secreta dosantroplogos.

    Tendo j passado por quase todos os rituais de incorporao aesta sociedade secreta, permito-me praticar certos sacrilgios e cometeralgumas pequenas traies, sendo antroplogo demais, isto , levandoem alguns momentos o raciocnio antropolgico s ltimasconseqncias: fazendo uma espcie de antropologia da antropologiae arriscando algu-mas teses um tanto quanto perversas sobre o seuobjeto e o seu mtodo. Diga-se de passagem, esta perverso no sefez em favor de nenhuma das chamadas cincias humanas ou sociais,muito pelo contrrio.

    Muito importante esclarecer, a maior parte das idias e sacrilgiosaqui contidos no foi absolutamente gerada na minha cabea. Noadmitindo a propriedade privada das idias, sou obrigado a reconhecerque a minha contribuio no foi mais do que reunir conceitos e

    Apresentao

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    teorias dispersos em funo do meu prprio projeto. Um bricollageintelectual, para falar um pouco de antropologus. Apesar disso, pouco provvel que a maioria de meus colegas venha a estar de acordocom o resultado do meu devaneio. Alguns, dele podero dizer: umdelrio. Tanto melhor: um pouco de efervescncia anda fazendo faltaem nosso ambiente intelectual.

    Uma parte razovel deste trabalho foi organizada durante oprimeiro semestre de 1987, quando estive vinculado IndianaUniversity, na condio de professor-visitante do seu Departamentode Antropologia e de pesquisador-associado do seu Research Centerfor Language and Semiotic Studies. Fiz bons amigos nesta ocasio, queme propiciaram o calor humano to necessrio a que o saber tenha,como dizia Roland Barthes, algum sabor. Fico muito feliz podendolhes agradecer: Wesley e Mary Hurt, Thomas e Jeane Sebeok, AnthonySeeger, Emilio Morn, Carlos Coimbra, Ricardo Ventura Santos...

    Importantes agradecimentos devo tambm aos meus colegas doDepartamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminensee do Departamento de Comunicao Social da PUC-Rio. Alm de aestas instituies, devo agradecer tambm ao Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (Cnpq), Coordenaode Aperfeioamento do Pessoal de Nvel Superior (Capes), AssociaoNacional de Ps-Graduao em Cincias Sociais (Anpocs).

    Minha gratido tambm a meus alunos, pois de muitos delesproveio o estmulo redao deste trabalho: foi pensando neles que oescrevi, quase que linha por linha. A Ivone Barros, que, linha porlinha, heroicamente datilografou o manuscrito. A Jlia Almeida queo revisou misturando carinho e rigor. Tambm queles que se sabemmeus amigos: por vocs a vida vale. Este trabalho dedicado a vocs.

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  • ... a finalidade ltima das cincias humanas no constituir o homem, masdissolv-lo... reintegrar a cultura na natureza e a vida no conjunto de suascondies fsico-quimicas. (Lvi-Strauss, O Pensamento Selvagem, p. 282)

    Contra o positivismo, que pra diante dos fenmenos e diz: H apenas fatos,eu digo: Ao contrrio, fatos o que no h; s h interpretaes. (Nietzsche,de um dos fragmentos pstumos)

    Mente humana, como pra-quedas: funciona melhor aberta. (Charlie Chan)

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    Os outros e os outros

    Homens. Homem?CAPTULO I

    A antropologia, mesmo social, se declara solidria

    da antropologia fsica, cujas descobertas espreita

    com uma espcie de avidez. Pois, mesmo que os

    fenmenos sociais devam ser provisoriamente

    isolados do resto, e tratados como se pertencessem

    a um nvel especfico, bem sabemos que de fato, e

    mesmo de direito, a emergncia da cultura

    permanecer para o homem um mistrio, enquanto

    ele no chegar a determinar, no plano biolgico, as

    modificaes de estrutura e de funcionamento do

    crebro, do qual a cultura foi, simultaneamente, o

    resultado natural e o modo social de apreenso,

    enquanto criava o meio intersubjetivo,

    indispensvel, para que se processem as

    transformaes, anatmicas e fisiolgicas, certo,

    mas que no podem ser, nem definidas nem

    estudadas, com referncia apenas ao indivduo.

    Lvi-Strauss

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    Uma pergunta, muitas respostasO que o homem? A est um enigma angustiante, cujo

    deciframento tem sido tradicionalmente esperado da antropologia.Perguntas conexas de onde vem? para onde vai? so cotidianamenteformuladas aos antroplogos, deles se esperando a capacidadepouqussimo humana de desvendar nossa origem e adivinhar nossofuturo.

    Estas perguntas se incluem certamente entre aquelas que jamaissero respondidas pelo menos enquanto almejarmos que para elasvenha um dia a valer uma soluo nica, universal e absoluta. Noobstante, os homens sempre se formularam essas indagaes e sempreencontraram respostas satisfatrias: respostas mltiplas, diferenciadasno tempo e no espao, mas parecendo sempre, cada uma delas,coerente, lgica e procedente, aos olhos daqueles que as encontrarame nelas acreditaram.

    Situao paradoxal, esta. Estamos diante de uma indagao uni-versal-mente formulada, mas para ela impossvel descobrir respostauniversal. Deparamos com um mistrio geral, cujo desvendamentodeve ser particular e localizado para poder ser satisfatrio. Quando oantroplogo contempla a pergunta o que o Homem? defronta-secom o paradoxo de descobrir que a grande verdade exatamente ono haver verdade sobre o que o Homem . Mais ainda, descobre-se,diante do lugar deixado vazio pela verdade ausente, a conviver commirades de verdades, com infinitos caminhos alternativos, pelos quaisos homens puderam se contemplar a si mesmos e se descobrir serescom identidades prprias.

    Para aumentar a intensidade do paradoxo, verificam osantroplogos que estas verdades mltiplas e localizadas quematerializam a inexistncia de uma verdade geral, que estas respostas,verdadeiras apenas porque soam como tal queles grupos humanosque nelas acreditam, pretendem todas e cada uma delas ser anica resposta. No h verdade sobre o que o Homem , mas cadaresposta parcial se v como total e absoluta. Cada uma renega asoutras, por se querer a exclusivamente verdadeira.

    O crucial do enigma a est: jamais existir uma identidadehumana nica, resultante de uma espcie de consenso universal;encontraremos, porm, ao mesmo tempo, inesgotveis maneiras, todaselas profunda- mente humanas, de compreender o que se deve designar

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    Os outros e os outros

    por humano. A verdade universal sobre um sujeito universal, oHomem, no h; existem, entretanto, pliades de verdades devariadssimos sujeitos, os homens.

    Embora os sistemas organizados de explicao do Universo sempretivessem tido o problema do lugar do Homem na existncia como objetocentral e inabstravel de suas curiosidades, para bem compreendermos anatureza da indagao o que o Homem? e bem situarmos a perplexidadedos antroplogos diante dela, lembremos que no foram necessrios demodo algum os filsofos, os cientistas ou os telogos nenhuma reflexoespecializada, em suma para que as questes relativas ao ser prprio doHomem fossem levantadas e as respostas fornecidas.

    Muito menos foram necessrios os antroplogos. A ansiedade huma-na em torno desse tema no dependeu jamais do esforo de sbios quefizessem pelos homens comuns o trabalho intelectual da pergunta eque dessem a estes, como ddiva, um sistema de respostas organizadas.Nada disso: a prpria existncia cotidiana pontilhada de ocasies emque a definio de o que ser humano se apresenta como indispensvel.A vida material e pulsante dos homens requer esta determinao, poissem ela gesto humano algum pode significar. Mais do que simplescuriosidade antropolgica, o conceito de homem constitui umprincpio lgico e semntico fundamental, na ausncia da qual todaorganizao humana de idias, comportamentos e sentimentos setornaria invivel.

    Cada um de ns pode verificar, em nossas existncias individuais, aintensidade e a veracidade dessa importncia. necessrio, por exemplo,que definamos algum como humano ou no, para que possamos lhe dirigira palavra, oferecer roupas ou determinados alimentos, aproximar a certadistncia, tocar determinadas partes do corpo, abordar sexual-mente... preciso que eu me veja como humano, obedecendo a um conceitodefinido de o que seja homem, para praticar com sentido atos to mnimoscomo escovar os dentes e limpar as unhas (e no me sinta conseqentementeum porco), para procurar originalidade em meus atos (e no deixe queme considerem um macaco). Para no ser considerado um papagaio, necessrio encadear as palavras com certa conseqncia, assim como precisomanejar com percia o raciocnio, para no ser rotulado de burro. Cadaum de ns espera que os outros tenham uma certa vivacidade, que sejamde alguma forma animados e no vegetem; do mesmo modo que osoutros esperam de cada um de ns que seja submisso a certas regras de

    Homens. Homem?

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    etiqueta, no se comportando, conseqentemente, como um animal.Torcemos para que ningum seja cruel e desumano, curvando-nos todosdiante de alguns valores que dizem respeito bondade. E esperamos denossos iguais que no sejam altivos, pretendendo-se divinos, e que admitampadecer de certas limitaes tpicas de homens...

    Como vemos, no se trata de problema meramente especulativo,entregue a alguns ociosos do pensamento. No! O que o Homem? uma interrogao latente e constante, continuamente respondida emestado prtico na vida de cada um nos gestos e hbitos, nos usos ecostumes, nos mitos e rituais, nas estruturas de pensamentos, nasrelaes com os outros. Um problema concreto, a exigir solues aquie agora.

    As solues so sempre dadas, em cada movimento da facehumana. E so verdadeiras por definio para aqueles que nelasacreditam, como so verdadeiras para ns as caractersticas que nsmesmos utilizamos para definir nossa humanidade e para estabelecer,por extenso, aquilo que achamos que o Homem . Assim dandorespostas especficas, encontrando verdades especficas, dandomltiplas respostas, encontran-do verdades mltiplas os diferenteshomens tm vivido semelhan-temente como homens.

    Neutralidade? Objetividade? possvel que se objete que as idias at aqui expostas pequem por

    ignorar o trabalho de cientistas, em busca de conhecimentos neutros eobjetivos sobre a histria humana. possvel que se argumente, contrao nosso raciocnio, que a cincia, fornecendo-nos conhecimentosbaseados em documentos insofismveis e construdos de maneirametdica e rigorosa, poder um dia colocar entre nossas mos a palavraverdadeira (e derradeira) sobre o lugar do Homem na existncia. possvel que se estranhe que exatamente de um antroplogo provenhaa afirmativa de que o enigma do Homem indecifrvel.

    As pginas seguintes trataro de derreter essas objees. No ob-stante, preciso reconhecer que os conhecimentos cientficos sobre otema o que o Homem?, por mais objetivos e neutros, sero apenasmais uma resposta dentre as multiplssimas formuladas por homens.Como todas as outras, reconheamos humildemente, a respostacientfica ser perfeitamente vlida para aqueles que nela tiverem f,pois a legitimidade dos conhecimentos racionais depende

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    Os outros e os outros

    previamente de uma espcie de f nos poderes especiais da razo.Esta crena, sabemos, no , absolutamente, universal: osconhecimentos objetivos, neutros, rigorosos sero insuficientese irrelevantes para homens que resolverem continuar definindo suashumanidades a partir de outros critrios.

    Ainda mais: os conhecimentos cientficos s podero atuar comorespostas efetivas na medida em que transpirem dos laboratrios egabinetes de pesquisa, na medida em que invadam e impregnem asvidas cotidianas e concretas de homens palpveis, que resolvam aceit-las e absorv-las profundamente como suas verdades. Acontece,entretanto, que neste ponto os conhecimentos cientficos estarodiludos entre as mitologias, as opinies, os sensos comuns, os rituais,as ideologias... Conseqncia: no sero mais (se algum dia o tiveremsido), nem objetivos nem neutros. Sero apenas mais uma crena, ase arvorar nica, verdadeira e definitiva como pretendem todas asideologias, alis.

    Os prprios cientistas talvez se surpreendam pouco com as idiasem questo, uma vez que eles mesmos tm sido os primeiros areconhecer as limitaes e a relatividade dos chamados conhecimentosobjetivos e neutros, das verdades absolutas e definitivas, dasteorias que se crem apoiadas na essncia das coisas. Afinal, oscientistas se tm aproximado cada vez mais da convico de que emcincia no se devem admitir proposies definitivas e derradeiras,aceitando-se as teorias apenas na condio de serem as melhoresdisponveis em um determinado momento e sob o vis dedeterminadas preocupaes intelectuais. Tais teorias melhores,segundo este novo credo, esto fatalmente destinadas superao,to logo surjam outras que sejam ainda melhores ou que possamresponder a solicitaes formuladas por novos prismas intelectuais.

    Colocando o problema de maneira radical, diramos que o quefaz do cientista um cientista sobretudo a conscincia que tem docarter fundamentalmente acientfico da cincia. Ele no acredita nomito da cincia, em neutralidade e objetividade e exatamente essadesconfiana o que lhe permite exigir mtodos cada vez mais rigorosos,teorias crescentemente explicativas e bem formuladas, pontos de vistaintelectuais sempre mais flexveis, diversificados e abrangentes.

    Mais que um dogma que lhe permita esmurrar a mesa e bradaristo uma verdade cientfica!, os cnones da cincia funcionam

    Homens. Homem?

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    para o cientista como uma espcie de utopia. Verdade, objetividade,neutralidade, rigor... fazem parte dessa utopia. E, como todas, esse um lugar onde no se chegar jamais, um inexistente que se torna decerta forma existente e real atravs dos caminhos que nos prope paraatingi-lo: no seremos neutros jamais, mas faremos esforo nestadireo; nunca seremos objetivos, mas faremos fora para tal...Criticando-se continuamente, utilizando a prpria debilidade comofora maior, a cincia se faz. E se distingue dos outros sistemas depensamento.

    Nada h de estranho em que essas palavras surjam da pena deum antroplogo. Pelo contrrio, perfeitamente compreensvel quehaja lugar para a considerao, no mesmo plano, da cincia e dasoutras sabedorias humanas, no interior de uma cincia aantropologia que se tem dedicado a demonstrar como at mesmodetalhes da vida individual dos homens podem realizar e ilustrarpossibilidades gerais da espcie; no interior de uma cincia que setem dedicado tambm a descobrir como caractersticas gerais dahumanidade adquirem concretamente fisionomias to dspares ediferenciadas, segundo os tempos e lugares, que pareceriam, aoobservador no-treinado, fenmenos essencialmente diferentes.

    No estranho que um antroplogo, mesmo querendo-secientista, duvide da superioridade da cincia em relao aos outrossistemas de pensamento. No estranho que reconhea que a soluoantropolgica ao enigma o que o Homem? resposta parcial, poisacessvel apenas aos povos que dispem de cincia e antropologia no melhor que as outras e no ser universalmente satisfatria.

    No h paradoxo algum nisso. Pelo contrrio, descobrindo osseus limites e fraquezas em relao a esta questo que a antropologiapoder imbuir-se de fora e nimo para atac-la. Reconhecendo seuslimites, poder buscar nova maneira de colocar a questo, eliminandodificuldades que so menos funo da natureza do problema que damaneira de o colocar.

    No sentido desse novo modo de colocar a questo, onde seimpunha artificialmente uma resposta exterior e parcial, por serantropocntrica e etnocntrica, sobre o que seria o Homem, deve-seagora conseguir conciliar, descobrindo entre eles a coerncia, trsvetores aparentemente contraditrios: a) a universalidade da perguntao que o Homem?, per-gunta que, alis, somente homens podem

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    Os outros e os outros

    formular; b) a multiplicidade e diversidade das respostas que a elaso fornecidas; e c) a impossibilidade de lhe oferecer soluo nica ecabal, ainda que cientfica.

    A hiptese fundamental dessa nova maneira de colocar a questocaracteriza-se mais por respeito pela diferena que amor semelhana.Ela privilegia a diferena, vendo nela um dado positivo. Fecha portass semelhanas superficiais e fceis de encontrar, mas em geraletnocntricas e artificiais. Levando ao extremo a atitude antropolgica,a hiptese nos levaria a procurar a semelhana entre os homens emlugar insuspeito, no qual o olhar anterior jamais a poderia surpreender:na prpria diferena. Em outras palavras, ampliando o raciocnio demodo a incluir nele no apenas os homens e suas sociedades, mastambm os animais e suas sociedades, procurando diferenas dentrodesse conjunto alargado de observao procedendo, portanto,verdadeiramente como antroplogo poder-se- perceber que aquiloque de mais semelhante existe entre os homens exatamente adiferena.

    Essa hiptese permitir-nos- compreender, ento, que a multipli-cidade e a diversidade de concepes que os homens tm sobre o que o Homem, no fazem mais que expressar cristalinamente uma dasmais marcantes e universais caractersticas do humano: a diferena aose definirem diferentemente como Homem, os homens manifestama natureza profundamente semelhante que os une: poder diferir. Aest a razo pela qual resposta nica pergunta o que o Homem?jamais ser possvel, mesmo que cientfica. E tambm o porqu de sero respeito pela diferena entre os homens, fundamentalmente respeitopela semelhana entre eles. Assim, dizer a semelhana que nos separaou a diferena que nos une no constitui paradoxo algum no terrenodo humano. Pelo menos enquanto os homens forem homens.

    Mundos. Mundo?Esta nova colocao do problema o que o Homem? corresponde a

    uma nova perspectiva cientfica. Preside-a a tentativa de compreendera diferena como caracterizadora da semelhana dos homens entre si,assumindo a diferena como um dado positivo, que no deve serdiludo e dissipado sob a semelhana. Procura evitar o etnocentrismo,que superestima as verdades desta ou daquela frao da humanidade,mas procura tambm neutralizar o antropocentrismo, que imagina

    Homens. Homem?

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    um mundo em que o Homem pairaria soberano sobre a natureza.Desse modo, as semelhanas e diferenas entre os homens devem serpensadas em funo das semelhanas e diferenas entre os seres vivos.

    De um ponto de vista substantivo, o princpio axiomtico estaria naconsiderao dos fatos da vida como fenmenos comunicacionais. Em umagrande diversidade de organismos, a comunicao aparececomprovadamente de modo que a hiptese de que no existe ser vivo quede algum modo no emita ou receba mensagens nada tem de absurdo.To presente na natureza a comunicao, que poderia ser inclusiveconsiderada uma das propriedades fundamentais da vida. E mais: no seriailcito supor a existncia de tantos sistemas de intercmbio e processamentode informaes quantas forem as espcies sobre o globo.

    Cada organismo em si mesmo um desses sistemas. Nos maiscomplexos, bilhes e bilhes de clulas devem-se organizar em relaesrecprocas. preciso controlar as reaes bioqumicas no interior dasparedes celulares, de modo a reter as substncias teis e eliminar asindesejveis. necessrio, alm disso, que o organismo disponha dergos aptos a recolher informaes sobre o mundo exterior, confron-tando-as com dados disponveis sobre os estados do prprio corpo.Mesmo nas formas de vida que os bilogos consideram menos evoludas,pode-se constatar a existncia das bases de um sistema de comunicao:emisso de sinais interna e externamente, recepo, tratamento eavaliao de informaes, transformao de informao em ao...

    Sabe-se que os organismos percebem seus meios interno e externoapenas mediante seus aparelhos especficos, de maneira que cada umvive em um meio prprio, que mais ou menos (s vezescompletamente) diferente do dos outros organismos e dos homens.Tais variaes esto parcialmente baseadas na arquitetura particulardos rgos sensoriais, mas esto marcadas tambm pelo modo econdies de vida das diferentes espcies. Voadores, nadadores,insetos, plantas, animais noturnos... se deparam com condies deexistncia bem diferentes das do Homem. Assim, os cetceos, quepassam quase toda a vida na gua, tm o ouvido como um dos seussentidos principais, possuindo viso reduzida e atribuindo poucaimportncia aos sinais mmicos. Os carnvoros, ao contrrio, vivemem um universo em grande parte visual, situando-se as informaesrecebidas por esse intermdio entre as mais decisivas para as relaescom o meio e os semelhantes.

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    Os outros e os outros

    Cada espcie de organismo, em suma, pe em ao um aparato par-ticular de informao. Os sentidos no so sempre os mesmos, pois algunsse fazem ausentes em certas espcies. Mesmo quando coincidem, os sentidosesto longe de operar da mesma maneira, j que a viso pode no serigualmente sensvel, segundo as espcies, s cores e dimenses, o olfatopode no captar os mesmos estmulos, o tato registrar as mesmas sensaesou o ouvido as mesmas freqncias sonoras... Cada espcie habita umuniverso informacional que lhe prprio. E este o que lhe convm.

    Em relao a estes universos informacionais que as espcies devemser estudadas, pois cada uma est adaptada a este ou quele seu meio.Conseqentemente, ingnuo, deslocado e absurdo hierarquizarinteligncias de seres diferentes, por meio de experincias, testes eoutras parafernlias artificiais: que s tomando arbitrariamente oHomem como eixo de referncia antropocentricamente, portanto se poderia cometer a tolice de comparar a inteligncia (por nsconsiderada um dos atributos mximos da humanidade) de seres todiversos entre si como o morcego, o macaco, as plantas, os papagaios...e os homens.

    Seguindo esta tica comunicacional, verificamos tambm que,para sobreviver, o organismo obrigado a obter muito mais do que assubstncias necessrias ao seu metabolismo o que em si j seria umfenmeno comunicacional, pois supe reconhecimento ediscriminao dessas substncias, ou seja, identificao de informao.E obrigado tambm a receber e recolher informaes adequadas sobreo meio circundante: presena de inimigos, disponibilidade sexualdos parceiros, temperaturas do ambiente e assim por diante. Assim,contnuas e complexas interaes se devem estabelecer tambm entreele e o meio, com outros da mesma ou de diferentes espcies.Comunicao e existncia constituem idias inseparveis: bomcaminho para refletir sobre a vida.

    Vida e comunicaoSustentar que todos os seres vivos comunicam pode parecer bvio,

    e o ser certamente. Mas preciso considerar que apesar de bvia essaperspectiva nem sempre foi tida como relevante para pensar a questodos atributos distintivos do Homem. Alm disso, mesmo queadmitamos a obviedade da colocao, somos obrigados a reconhecerque ela volta nosso pensamento para determinado lado e impulsiona

    Homens. Homem?

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    o raciocnio nesta direo. Que os seres vivos comunicam hoje algomais ou menos bvio, mas admiti-lo como princpio significa colocara questo da semelhana e da diferena entre eles de um modo novo.Um novo panorama se descortina diante de nossos olhos, convidando-nos a trilhar os caminhos que o recortam. Poderemos assim perguntar: evidente que os seres vivos comunicam, mas o fazem todosigualmente? Haver, quanto ao Homem, especificidadecomunicacional que o distinga?

    Um olhar panormico poderia ajudar a comear a caminhada.Poderemos pousar nossa ateno sobre algumas relaes nitidamentecomunicacionais que a natureza oferece. Encontraremos flores a trocarpolens entre si, sob a ao do vento. Veremos outras, cuja polinizaono se pode fazer sem ajuda de pssaros ou insetos, assumindo corese odores a que estes polinizadores so sensveis, para melhor seadaptarem necessidade de os atrair. Um pouco adiante, deparamo-nos com plantas capazes de crescer na direo de algum objeto, umgalho ou arame em que possam se enroscar, para da continuarcrescendo rumo a novo objeto que possa servir de apoio. Comocompreender estes fenmenos, seno supondo neles a existncia dealguma forma de captao e processamento de informao?

    Que dizer, ento, de formigas, capazes de assinalar s suascongneres o local exato onde encontraram alimentos, valendo-se paraisto de uma substncia qumica que segregam no percurso de retornoao formigueiro, cujo odor pode ser seguido pelas outras como sefosse um rastro? De aranhas, habilitadas a perceber a presena deanimais e objetos que porventura toquem um fio das teias que armam?E de morcegos, que podem perceber objetos pelo ouvido, e deles sedesviar em vos velocssimos? Que pensar de alguns peixes que emitemdbeis impulsos eltricos continuamente, criando ao redor de si umcampo, do qual a mnima perturbao imediatamente percebida,como acontece quando invadido por uma presa, cujo corpo conduza eletricidade melhor do que a gua em que vive?

    Perceberemos patos selvagens, por meio de piados especiais,avisando seus companheiros da presena de um inimigo nasimediaes. E aprenderemos que esses sinais so s vezes percebidospor membros de outras espcies. Notaremos que galinhas, que corremem auxlio de seus pintinhos que piam, passam indiferentes por outrosque podem ver mas no ouvir, pois estes foram colocados sob uma

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    Os outros e os outros

    campana de vidro. Pelo canal auditivo se d tambm o essencial dacomunicao entre a perua e seus filhotes, pois as que so surdasmatam seus pequenos logo que saem dos ovos, considerando-osinimigos porque esto mudos. Nesses casos todos, aprenderemosque o instinto depende da evocao de uma mensagem sonora.

    Existem canes de amor, por meio das quais os pssaros seatraem reproduo. Encontram-se fragrncias do amor, por cujoinstrumento entre as borboletas noturnas os machos voam procurade uma parceira, guiados nessas viagens pelo odor caracterstico dasfmeas virgens. Quando no cio, cadelas, gatas e muitos outrosmamferos atraem os machos emitindo particulares emanaes olfativas.

    O carapau macho assume cores nupciais mais brilhantes quandoo ninho est terminado. O vermelho de seu ventre se torna mais vivoe a sombra escura que cobria suas costas at a nidificao se transformaem uma espcie de branco azulado e fosforescente. Seucomportamento muda, ao mesmo tempo: ao invs de se deslocarlentamente como antes, no cessa agora de percorrer o territrio commanobras bruscas que o tornam ainda mais visvel. De novo, oinstinto depende de mensagens.

    O olhar inspirado pela perspectiva informacional descobre novosfenmenos de comunicao. Em muitas ocasies, dejetos deixam deser restos orgnicos: o que nos fazem ver os rinocerontes, entre osquais vrios defecam no mesmo lugar fazendo das fezes uma espciede ponto de atrao e de encontro para o grupo. Hipoptamos usamas suas para marcar o territrio, servindo-se da cauda como uma espciede ventoinha que as espalha por uma rea. Ces domsticos servem-se do odor da urina para demarcar o seu, aumentando inclusive afreqncia da atividade de urinar quando se vem na circunstncia deconviver no territrio com ces rivais. Muitas outras espciesapresentam comportamento semelhante sob esse aspecto, s vezesdispondo mesmo de glndulas especiais, cujas secrees depositamno solo, em arbustos ou pedras.

    Aprendemos assim a descobrir funes comunicacionais ondeanteriormente se procuravam apenas funes orgnicas. Poderemostambm descobrir funes comunicacionais desempenhando, imediataou indiretamente, tarefas orgnicas. Veremos que a relao entre osdois domnios estreita e recproca. Enfim, todo um novo universose revela ao olhar informacionalmente inspirado.

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    Biologia, sociologia, comunicaoAdmirando a natureza por este vis, no nos surpreenderemos

    com o fato de a biologia que na teoria da evoluo sempre sugeriuque os seres vivos se adaptam a condies especficas de seus ambientese que sempre se consagrou ao estudo mais e mais detalhado daestrutura de organismos particulares comece a perceber comacuidade cada vez maior que o mecanismo pelo qual o organismo seinsere e se adapta ao ambiente precisamente o comportamento. Aetologia, uma recente cincia, traz exatamente essa dimenso que faziafalta biologia, obrigando-a agora a considerar, quando tratar darelao do indivduo com o ambiente, que grande parte do problemareside na relao do organismo com outros da mesma ou de outrasespcies no ambiente social e comunicacional, portanto.

    A etologia descobriu que os comportamentos no eramcomandados por um instinto cego e mecnico. Pelo contrrio,aprende-se continua-mente que esto submetidos a regras decomunicao e que o universo vivo est submerso em um enormerumor de mensagens. Aquilo que durante muito tempo pareceuestritamente reservado ao homem revela-se como o que h de maisuniversal.

    Assim, alargando suas perspectivas intelectuais, a abordagem etol-gica tem permitido compreender, ao lado da ecologia e submetendo-se noo de ecossistema, que fenmenos aparentemente cegos edesorde-nados (lei da selva, por exemplo) ou processos unicamenteeliminatrios (seleo natural, sobrevivncia do mais apto, etc.)devem ser consi-derados como elementos de complexa organizaoem sistema, envol-vendo todas as espcies que vivem no seio de ummesmo nicho ecolgico e, de modo mais amplo ainda, no conjuntoda biosfera [Morin: 1974, pp. 272-273].

    No se trata de perspectivas antagnicas. A ecologia e a etologiatentam apenas responder certas perguntas que escapam perspectivabiolgica estreita, pois dizem respeito mais relao dos organismosentre si que estrutura particular de organismos individuais. Umasimples ilustrao esclarecer a questo: entre as formigas h processosque se sabem de tipo olfativo, pois, em vrias espcies, o cheirodetermina se uma operria pode ou no ser admitida na colnia,uma vez que se colocando um cheiro diferente em um membro dacolnia este atacado e morto pelos outros, o que no acontece a uma

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    estranha, que no molestada quando apresenta o mesmo odor dasque integram o grupo [Penna: 1976, p. 209]. Relaes entreorganismos, portanto.

    Um problema de sociologia animal? Certamente: pois no para esta direo que conduzem nosso pensamento fenmenoscomunica-cionais que so tambm fisiolgicos [Chauchard: 1960, p.32], como pombas que s ovulam na presena de um semelhante,mesmo que este seja do mesmo sexo e mesmo que seja apenas suaprpria imagem em um espelho? Ou seus machos, que s conseguemproduzir alimentos para os filhotes vendo a fmea empolhando emostrando-se ostentosa?

    Quando se vem nas tardes de inverno os estorninhos executaremsuas fascinantes manobras areas, reagindo uns aos outros, seguindo-seuns aos outros em uma ordem to incrivelmente perfeita; quando sevem hierarquias nas quais cada indivduo do grupo conhece perfei-tamente o seu lugar, como se tem observado entre inmeros pssaros,mamferos e peixes e como se pode facilmente verificar em um galinheiro quando estas coisas so constatadas, no na direo dessa sociologiaanimal que nosso pensamento convidado a caminhar?

    No estaria nesse tipo de conhecimento, que pe em evidncia acomunicao entre os organismos, a chave para compreender como queem algumas espcies os sinais mantm contato entre os membros de umgrupo [Tinbergen: 1979, p. 96], evitando a disperso de, s vezes,milhares de pssaros, milhes de peixes ou insetos? No deve necessaria-mente haver uma rede de relaes sociais a reunir, em um todo compacto,organismos que individualmente puderam parecer autnomos?

    Esta sociologia animal nos ensinaria que comunicao e sociedadeesto presentes na natureza e que esto ambas presentes no Homemporque ele parte da natureza. Aprenderamos com ela que estasduas coisas so na realidade uma mesma coisa, pois no possvelimaginar sociedade sem comunicao, sistema social em que osmembros no estejam em contato dinmico. Os chamados processossociais bsicos cooperao, competio, conflito, imitao,associao, etc. so fundamentalmente processos comunicacionais.

    possvel imaginar sociedade sem comunicao? Claro que no,pois at mesmo o isolamento social, a ausncia de comunicao,pode ser considerado, sob outro aspecto, uma forma particular decomunicao: entre os animais considerados solitrios, no haveria,

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    por hiptese, uma partilha de territrios, de modo a garantir a cadaum as condies coletivas de sobrevivncia?

    Smbolos e sinaisNesse territrio comum a todos os seres vivos relaes sociais e

    comunicao quais seriam as caractersticas mais gerais e abrangentesda comunicao social? Que linhas demarcatrias definiriam o terrenoprprio aos animais e plantas? Em relao a estas linhas fronteirias,onde estaria situado o domnio prprio do Homem, tambm servivo, social e comunicante?

    Uma primeira observao, j h muito registrada e reafirmada(mas merecendo as ponderaes que adiante formularemos), emerge:os animais, e talvez as plantas, se comunicam por sinais organicamenteprogramados. Dito de outro modo, faz parte da constituio biolgicade determinados organismos que se comuniquem exatamente damaneira como o fazem, sendo a atividade comunicacional meramanifestao ou atualizao do funcionamento fisiolgico de umorganismo particular.

    Essa primeira observao poderia ser ilustrada por um mecanismoconhecido como impregnao, mediante o qual [Cuisin: 1973, p.45] patos, gansos, cisnes, cordeiros etc. seguem o primeiro sersemovente que vem ao nascer por exemplo, um homem como sefosse a me (que, pelas probabilidades naturais, seria normalmente aprimeira a ser vista). Antes de nascer, estes animais esto, por assimdizer, programados a apreender certas informaes, que em grandemedida comandaro seu comportamento futuro. Em muitas ocasies,pode-se comprovar em laboratrio a programao orgnica: porexemplo, criando separadamente certo nmero de animais e verificandoque ainda assim estes animais se entregam a comportamentosespecficos extraordinariamente complexos (nidificao, corte fmea,resistncia a adversrios...), como os congneres criados em liberdade.

    Nenhum de ns, homens, est assim organicamente programadopara a comunicao. No est absolutamente dado por nossa estruturaorgnica que usemos o preto como expresso de luto, pois h congneresnossos que preferem o branco para este fim. Que descubramos a cabeaao entrar em um templo, nada tem de orgnico, pois faremos exatamenteo contrrio disso se formos mulheres catlicas ou judeus do sexomasculino. Nada existe em nossa estrutura biolgica que nos obrigue a

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    evadir quando ouvirmos a palavra fuja, pois se formos chinesescertamente permaneceremos no mesmo lugar ao ouvi-la.

    Nossos smbolos, a cruz, a foice-e-o-martelo, a sustica, a rosa, amo-fechada-com-o-polegar-levantado, o piscar-de-um-olho, abalana, o vermelho-verde-e-amarelo, as palavras... so socialmenteprogramados, dependem de convenes estabelecidas entre osindivduos que constituem o grupo. Ser humano algum est apto aparticipar da rede de comunicao formada por seus semelhantes pelosimples fato de ter nascido: ser-lhe- necessrio conviver com o grupo,introduzindo-se nele, embebendo-se dele.

    A banal observao de recm-nascidos, de crianas em crescimentoe de estrangeiros, suficiente para nos certificar dessas constataes.Embora raros, existem ainda os casos de seres humanos queconseguiram sobreviver ao isolamento em relao sociedade osmeninos-lobos, os meninos-selvagens e indivduos que forammantidos em cativeiro desde tenra idade: quase como em umlaboratrio natural, todos evidenciam o quanto de humanoindepende de programao orgnica, devendo-se estrutura socialmais que constituio fsico-qumica dos indivduos, a smbolosconvencionais mais que a sinais organicamente programados.

    *Alm de organicamente programado, o comportamento baseado

    em sinais geneticamente transmitido. Depende de uma espcie deprograma gentico, cuja execuo dever se desdobrar durante a vidado organismo, estabelecendo-se completamente quando o organismoestiver maduro e esgotando-se paulatinamente, medida que oorganismo v vivendo (isto , morrendo). Desse modo, o desempenhocomunicacional de um animal dependeria de sua constituio gentica,em primeiro lugar, e, em seguida, do estgio de maturao orgnicaem que se encontre. Para emitir o seu piado de alarme, seria necessrioao pato selvagem uma certa herana gentica que lhe oferecesse estapossibilidade, mas tambm um certo grau de maturao orgnicaque lhe permitisse exercer esta possibilidade grau este diferentedaquele que simplesmente lhe consentiria receber os sinais.

    Percebe-se de imediato que estes princpios, de um modo geral,no so os que vigoram no que respeita comunicao humana. Utilizoa caveira para transmitir a idia de perigo ou morte, o raio para mereferir energia eltrica, o sino para evocar a companhia telefnica, a

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    lmpada vermelha para evocar prostbulos ou necessidade de me deterem um cruzamento, garfo e faca cruzados para sugerir restaurante,lgrimas para indicar tristeza todos os smbolos, enfim, porque osadquiri de pessoas com quem convivo. Os smbolos (com as ressalvasadiante explicitadas) no dependem de minha constituio genticaou de minha maturao orgnica particular: a possibilidade de utiliz-los est submetida, antes, ao amadurecimento social dos indivduos,a um adequado grau e tipo de socializao.

    *Uma terceira observao, tambm decorrente da primeira e funda-

    mental: as secrees exsudadas pelas formigas e que servem para assinalaro caminho para o alimento ou a pertinncia ao grupo, os odoresindicativos de que as cadelas esto no cio, os pisca-piscas dos pirilampos procura de parceiras sexuais, o aumentar de tamanho dos gatos diantede presas e adversrios, o urinar dos candeos demarcando seusterritrios, as modificaes de coloraes dos pssaros e peixes associadasao comportamento reprodutivo, os pavoneios de certas aves quandocortejam suas fmeas... todos esses complexos sinais residem em cadaorganismo particular da espcie respectiva. Cada organismo estisoladamente apto a emitir ou receber os sinais peculiares de sua espcie.E por isso, porque existem em cada um dos indivduos, que os sinaisse fazem presentes no grupo que esses organismos constituem.

    Coisa diferente ocorre entre os homens. Que ma representeten-tao, lbios entreabertos evoquem erotismo, braosescancarados insinuem boa acolhida; que se deva mastigar com aboca fechada, lavar as mos antes das refeies ou trafegar pela direita;que dentro de um elevador apinhado olhe para o cho ou para o teto,dentro de um nibus lotado finja no perceber o cidado cujo corpocomprime o meu; que parea no estar sendo incomodado pelo mauhlito do meu interlocutor ou pelos perdigotos que continuamentelana sobre o meu rosto tudo isso so convenes que j existiamantes de cada um de ns vir ao mundo. Enquanto seres individuais,j as encontramos prontas fora de ns, na sociedade a que devemosaderir. Somente aps t-las aprendido passaro a existir em ns. E necessrio que o faamos, pois esta a nica maneira de viver nasociedade que estas convenes presidem. Assim, as convenes e ossmbolos figuram primeiro no grupo. E apenas porque a esto podemestar tambm nos indivduos que o compem.

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    *Quarta observao: o sinal tem a caracterstica de ser intransformvel.

    Se o combate dos antlopes se constitui de sinais determinados organi-camente, se os odores que decidem quem poder ser aceito em umacolmia fazem parte da estrutura biolgica de abelhas particulares, se adelimitao eltrica do territrio se faz por peixes de constituio fisiolgicaespecial, se a confisso de derrota diante de um rival se exprime pelaadoo de posturas especiais que inibem o ataque do vitorioso em funode certa estrutura nervosa e anatmica geneti-camente programada... seo orgnico determinante, em suma, ento, cada indivduo pertencentea certa categoria biolgica estar definitivamente constrangido a sesubmeter aos sinais caractersticos dessa classe.

    Esta uma constatao quase evidente, cujas conseqncias,entretanto, so inestimveis: assim como os joes-de-barro do mesmotipo esto fadados a construir suas casas repetindo sempre o mesmopadro e borboletas noturnas destinadas a reproduzir o mesmo modelode comunicao olfativa da espcie, assim tambm as sociedades quese baseiam na comunicao por sinais estaro obrigadas a repetir portoda parte a mesma estrutura ditada pela natureza dos organismosque as compem. Trmitas de tal tipo, tal tipo de sociedade; abelhasorgani-camente de tipo y, tipo y de organizao social... Resultado:atreladas fixidez no tempo e no espao, tais sociedades no poderoapresentar histria ou diversidade cultural.

    As conseqncias sociolgicas da comunicao apoiada emsmbolos so inteiramente distintas. Que o casamento sejamonogmico ou poligmico; que o beijo na boca seja emblemapadronizado de erotismo, falta de higiene ou manifestaoantropofgica; que homens se olhem reciprocamente nos olhos porvrios segundos ou o evitem para no passarem por homossexuais;que se use ou no a mo esquerda para manipular alimentos; queformas rolias se afastem do ideal de beleza feminina; que homenssejam proibidos de usar xampus ou brincos; que mulheres possamdirigir maridos, empresas e at automveis; que homens possamconseguir liberar seus lados femininos e mulheres conseguir atingiro orgasmo... tudo isso depende de convenes que variam de sociedadepara sociedade, de tempo para tempo.

    Isso possvel porque o smbolo eminentemente transformvel. No dependediretamente da natureza orgnica, pois feito de outra matria. Assim, associedades humanas se habilitam no somente a inventar suas prprias

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    convenes, como tambm a substitu-las por outras, convencionando que asantigas convenes no valem mais: abrem-se desse modo histria. Maisainda, os homens podem diferir de seus semelhantes, convencionando outrasconvenes, abrindo-se alteridade e diversidade cultural.

    Nem s de mel...As abelhas talvez proporcionem a melhor oportunidade de ilustrar

    essas observaes. Sabe-se j h algum tempo que possuem umaorganizao social das mais interessantes e que esta organizao seapia em um sistema de comunicao complexo, cujo desvendamento,sobretudo a partir dos trabalhos de Karl von Frisch [1976], no temcessado de causar espanto em meios leigos e cientficos, pelo que temrevelado de refinamento e preciso.

    As abelhas de uma colmia devem cumprir, a partir de estritaprogramao orgnica, uma srie de tarefas ou funes sociais, que sesucedem uma aps a outra, em uma ordem definida e invarivel, namedida em que vo vivendo as suas vidas. At onde se sabe, as passagensentre as diferentes fases so determinadas por mudanas qumicasocorridas no corpo das abelhas.

    Cada abelha [Fox: 1940, pp. 107-109] comea a vida com um ovoposto pela rainha em lugar apropriado. Do ovo, vem uma larva, que setransforma em crislida, de cuja casca uma abelha surge em seguida. Tologo sada da casca, a abelha se limpa e enxuga, fazendo o mesmo com oalvolo onde passou sua juventude como larva e crislida: somente depois delimpo, a rainha botar outro ovo neste local. Ao final de trs dias, a operriacomear tarefa diferente, passando a alimentar larvas em suas clulas: recolhemel e polen, dando este alimento s larvas. Aps alguns dias neste trabalho,muda de novo de ocupao: agora suga nctar das bocas de trabalhadorasmais idosas, que retornam de suas excurses fora da colmia para coletar estelquido doce e traz-lo para casa. Dentro do corpo de nossa abelha, o nctarse transforma em mel, sendo ento expelido para dentro de clulas especiais,nas quais estocado. Alm disso, recebe o plen que as mais velhas trazempara a colmia, guardando-o em outras clulas de estocagem.

    Depois de um ou dois dias nesta funo, a abelha passa alguns diascarregando lixo para fora da colmia. Em seguida, transforma-se emprodutora de cera, construindo com esta secreo de seu corpo novas clulaspara a habitao. Terminada a tarefa, uma outra ainda: ser guardi, barrandoa entrada de qualquer congnere que no pertena comuni-dade. Enfim,

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    altura do vigsimo dia, comea a voar para o exterior, coletando nctar eplen das flores, trazendo alimento para as companheiras.

    Assim, em vez de uma, a abelha tem vrias ocupaes em suavida, uma aps a outra, todas em obedincia a um programa genticofixo, que se realiza em cada uma das diversas fases da maturaoorgnica da abelha individual. Todas as abelhas executam essas mesmasdiferentes tarefas na mesma ordem de sucesso. Estas funes esto,portanto, organicamente programadas e so intransformveis: cadaabelha individualmente faz as coisas exatamente como as outras.

    No lhe absolutamente necessrio aprender seu trabalho. Na medidaem que vai ficando mais velha, mudanas qumicas ocorrem dentro deseu corpo, com o resultado de que a abelha seja obrigada a assumir suassucessivas funes. Tal organizao social independe tambm de tempo eespao, o que se pode supor, embora precariamente, a partir de amostrasdisponveis de abelhas petrificadas: velhos de trinta milhes de anos,esses fsseis mostram j todas as caractersticas fsicas das abelhas hodiernas[Frisch: 1976, p. 149]. Seria necessrio que elas se modificassemorganicamente para apresentar uma organizao social diferente.

    Elementos de complexo sistema social, inebriadas e felizesfreqentadoras de flores, previdentes acumuladoras de melperfumado, admirveis construtoras, guardis severas, merecedorasenfim de tantos elogios antropocntricos, as abelhas operrias nopodem, entretanto, se reproduzir: seu desenvolvimento ovariano inibido por um cido secretado pela rainha da colmia, o mesmo quedurante o vo nupcial serve para assinalar aos zanges a presena e atrajetria dela, nica responsvel pela reproduo, estimulando-os aproximao. Idntica determinao orgnica comanda o fascinantesistema de comunicao das abelhas.

    Von Frisch iniciou o estudo desse sistema de comunicao pelomecanismo perceptual das abelhas operrias, partindo da observao,j formulada anteriormente por diversos bilogos, de que as flores socoloridas e perfumadas para atrair os insetos que as visitam: cores eperfumes facilitariam aos insetos encontrar seus alimentos, assegurandoem troca a polinizao das flores. Admitindo este ponto de partida,sua curiosidade se agua: como isso acontece efetivamente? Sero asabelhas dotadas de percepo de cores? Que cores?

    Tratou ento de responder experimentalmente essas perguntas.Com ajuda do perfume de um pouco de mel possvel atrair abelhas

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    para uma mesa, onde se lhes pode oferecer alimento sobre um cartode cor azul. As abelhas sugam este mel que, depois de transportadopara a colmia, ser passado s companheiras. Diversas vezes as abelhasretornam fonte de alimento que acabaram de descobrir. Aps algumtempo, entretanto, Von Frisch retirou o carto azul perfumado commel, introduzindo dois novos cartes, sem perfume ou alimento, namesma posio da primitiva fonte nutritiva. Um carto azul esquerdae um vermelho direita: se as abelhas forem capazes de recordar queo alimento estava sobre o carto azul e de distinguir o vermelho doazul, ento, lgico que pousaro sobre o azul.

    Foi isto exatamente o que verificou. No somente em relao aoazul, mas tambm ao alaranjado, amarelo, verde, violeta e prpura.Contudo as abelhas foram incapazes de distinguir o preto do vermelho.Ficou provado que possuem percepo cromtica, mas tambm queesta no idntica do ser humano, uma vez que so cegas no quediz respeito ao vermelho, confundem amarelo com alaranjado e verde,e azul com violeta. Em compensao, so capazes de perceber oultravioleta, cor a que os homens no tm acesso. Verificou-se tambmque estas caractersticas so inatas e presentes em cada abelhaindividual, mesmo nas descendentes de abelhas que foram isoladasexperimentalmente por diversos anos, impedidas de contato comoutras abelhas e com o ambiente natural.

    Von Frisch dedicou-se tambm ao estudo da percepo qumicadas abelhas. Seriam capazes de distinguir os perfumes das flores?Tambm atravs de procedimentos experimentais, foi possveldemonstrar que as abelhas poderiam ingressar em caixas marcadaspor um perfume especial, reconhecendo este perfume e podendodistingui-lo de numerosos outros aromas, fazendo uso de suas antenas,seu principal rgo de olfato. Descobriu-se ainda que, apesar desensvel, o olfato da abelha no pode perceber de longe o odor damaior parte das flores, funcionando mais como um instrumento decurta distncia e de certificao, complementar percepo de cores,capacidade utilizada para a percepo de objetos a longa distncia.Tais descobertas foram de extraordinria importncia para odesenvolvimento ulterior da pesquisa.

    Esses mecanismos perceptivos esto na raiz daquilo que Von Frischchamou de linguagem das abelhas. Observou, quando fazia expe-rimentos sobre percepo, que s vezes era obrigado a esperar muitashoras e mesmo vrios dias at que uma abelha descobrisse a fonte de

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    alimento. Mas, to logo uma abelha tivesse descoberto o mel que oferecia,muitas outras, s vezes centenas, apareciam, provenientes todas da colmiadaquela que primeiro encontrara o alimento. Evidentemente, ela deveter comunicado sua descoberta s companheiras. Mas, como?

    Colocando-se perto da fonte de alimentos, Von Frisch passou amarcar as abelhas que o descobriam, a fim de estudar o comportamentodelas quando de retorno colmia. Pde, assim, testemunhar que,chegando casa, em primeirssimo lugar a abelha assinalada entregavao material coletado a suas companheiras. Feito isso, comeava a executaraquilo que Von Frisch chamou de dana circular, movimento queconsiste em dar uma volta para a direita e outra para a esquerda, refazendoesta circunferncia vrias vezes. Verificou tambm que s vezes a abelhainterrompia a dana, voltando fonte para colher outra amostra doalimento e recomear tudo de novo.

    Durante a dana, as abelhas prximas danarina mostravamuma enorme agitao, amontoando-se atrs dela, aproximando suasantenas do seu corpo. De repente, uma destas abelhas deixava acolmia. Outras faziam a mesma coisa, de modo que algumas dasabelhas excitadas logo atingiam o lugar da fonte alimentar. Retornando colmia, estas tambm danavam, de forma que quanto maisdanarinas havia tanto mais abelhas compareciam fonte. Ficava, assim,bastante claro que a dana dentro da colmia comunicava a presenade alimento. Mas, como explicar que as abelhas excitadas pela danafossem capazes de atingir a fonte?

    Para saber, ento, se a dana circular oferecia informao a respeitoda direo em que se encontrava a fonte, forneceu alimento a diversasabelhas em lugar situado dez metros a oeste da colmia. Nos quatropontos cardeais, disps um recipiente cheio de gua aucarada e umpouco de mel. Minutos depois do incio da dana circular no interiorda colmia, abelhas apareciam simultaneamente perto de todos osrecipientes, sem nenhuma diferena quanto aos deslocamentos destes.A mensagem transmitida pela danarina era, pois, extremamentesimples: voem para o exterior e procurem nas vizinhanas.

    Quando na fonte existia, entretanto, uma indicao precisa (algumtipo de flor, por exemplo) e as descobridoras levavam essa informaopara a colmia, as demais abelhas passavam a voar rumo a um objetivodeterminado, mudando de meta cada vez que uma modificao seestabelecia na fonte de alimento exceto quando nesta se introduzia

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    uma flor completamente desprovida de odor: as abelhas distinguiam,portanto, o cheiro das flores visitadas pela danarina e ao voar seende-reavam a flores da mesma espcie.

    Von Frisch descobriu que este mecanismo de informao olfativatem trs componentes bsicos. Em primeiro lugar, as abelhas que seamontoam sobre a danarina percebem com suas antenas o perfumeque aderiu a seu corpo e que a permaneceu porque a parte superior docorpo da abelha tem a capacidade de conservar perfumes por longosperodos. Em segundo lugar, a danarina nutre as abelhas que a seguem,regorgitando uma gotinha de nctar de sua bolsa melria; este nctar,recolhido na parte mais interna da flor, saturado de seu odorcaracterstico. Enfim, ao atingirem a fonte, as abelhas deixam nela umasubstncia glandular cujo odor extremamente atrativo para: as outrasabelhas o que corresponderia dizer: venham aqui.

    Durante muitos anos, Von Frisch executou os experimentos colocandoalimento nas proximidades imediatas da colmia. Entretanto, observaesocasionais fizeram-no suspeitar de que as abelhas poderiam dar s outrasalguma notcia sobre a distncia entre a colmia e a fonte de alimentos,porque s vezes elas recolhem alimentos a quilmetros de distncia. Comeouento a dispor o alimento a distncias variveis, descobrindo o seguinte: atotalidade das que retornavam de fontes situadas a at cem metros, executavadana circular, exatamente idntica que j conhecia; quando a distncia,entretanto, era maior do que esta, danavam de maneira completamentediversa. Neste ltimo caso, executavam aquilo que Von Frisch chamou dedana do abdmen, percorrendo rapidamente um breve trecho em linhareta, agitando com grande freqncia o abdmen, para a direita e para aesquerda, repetindo tudo isso muitas e muitas vezes. Em suma, dana circulare dana do abdmen significavam coisas inteiramente diferentes: alimentonas imediaes ou a mais de cem metros.

    Essa informao apenas seria muito vaga, contudo, para localizaralimentos distantes a um quilmetro por exemplo. Em tais condies,uma informao que fizesse referncia somente ao fato de o objetivoestar a mais de cem metros teria valor prtico bastante modesto. Narealidade, a dana do abdmen comunica o quanto longe est oalimento, como se pde deduzir observando que o nmero deevolues rotatrias executadas em um dado tempo pelas abelhasvariava com a distncia do alimento: quanto maior a distncia, menoro nmero de evolues. Descobriu-se ainda que esta informao

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    enfatizada e precisada pelos movimentos do abdmen da danarina,acompanhada de um zumbido simultneo; a durao do movimentoabdominal aumenta com a distncia e o zumbido se associa ao ritmode batimento das asas, o que ajuda a definir a distncia a percorrer.

    Mas, como poderiam as abelhas medir a distncia? Von Frischobservou que com vento contrrio as abelhas comunicavam asdistncias como sendo maiores do que seriam em um dia sem vento.Pde, ento, logicamente deduzir que as abelhas no informavampropriamente a distncia em metros, tal como seriamosantropocentricamente inclinados a acreditar. Diferentemente, emitiamum comunicado sobre a distncia, mas baseando-se na energiaconsumida para cobri-la.

    Para distncias curtas, bastaria s abelhas dizer s suas companheiras algocomo voem pelas redondezas. Para distncias maiores, todavia, queimplicariam uma rea muito grande a ser pesquisada, tal informao seriaextremamente pobre. Para que o sistema funcione, necessrio, alm de umainformao precisa sobre a distncia, que se comunique tambm algo sobrea direo que o vo dever tomar. Com a palavra, Von Frisch [1976, pp. 115-161]: a linguagem das abelhas verdadeiramente perfeita e o mtodo adotadopara indicar a direo das fontes alimentares uma das caractersticas maisextraordinrias de sua complexa organizao social. Se observarmos asdanarinas que retornam de uma fonte de alimentos... verificaremos quetodas as abelhas executaro a mesma dana, particularmente orientandosempre na mesma direo o trajeto linear da dana do abdmen. Um casotpico: as abelhas que se juntavam perto de uma fonte a duzentos metros aosul da colmia danavam de modo tal que o trajeto linear estivesse sempreorientado para a esquerda. Se, no mesmo momento, outras abelhas recolhiamalimento em um lugar a duzentos metros ao norte da colmia, podia-seobservar que orientavam para a direita o trajeto linear da dana. Em outraspalavras, a direo da parte linear da dana est de algum modo em relaocom a direo da fonte de alimento.

    Von Frisch observou tambm que a mesma fonte no era assinaladade maneira constante, modificando-se gradualmente at tornar-secompletamente diferente, conforme o experimento se desse pela manhou tarde. Aprofundando o estudo, pde descobrir que a direodas danas variava em relao ao ngulo do movimento do sol atravsdo cu e que este servia, portanto, como ponto de referncia para estetipo de informao. Ainda mais, na medida em que dentro da colmia

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    no h presena da luz solar e em que a posio das abelhas ao danar perpendicular (vertical), enquanto o vo para a fonte de alimento sed na horizontal, alguma forma de transcrio deve estar presente.De fato: as abelhas orientam o trajeto linear da dana de acordo comdeterminado ngulo formado com a direo da fora da gravidade ngulo este que o mesmo obtido entre o percurso feito em vo parair da colmia ao alimento e a posio do sol em relao quela. Assim[p. 117], se uma danarina orienta para o alto o trajeto linear de suadana, isto significa que a fonte de alimento est na mesma direodo sol. Se o trajeto linear se orienta para baixo, quer dizer que asoutras devem voar em direo oposta do sol. Se, durante a faselinear da dana, a abelha se desloca 60 esquerda em relao vertical,ento o lugar do alimento est 60 esquerda do sol...

    Este elaboradssimo sistema de comunicao tem deixado fascinadostodos os que dele se aproximam. Todavia, mesmo perplexos emaravilhados, podemos enxergar nitidamente o quanto ele diversodo sistema de comunicao simblica. Fundamentalmente, o das abelhas organicamente determinado: preciso ser da espcie mellifera, paraque o sistema que descrevemos vigore, pois na espcie Apis florea ele diferente. O sistema das abelhas, ademais, geneticamente transmitido,pois mesmo abelhas criadas em isolamento podem p-lo em funcio-namento. Paralelamente, uma vez atingido certo patamar de maturaoorgnica, cada abelha estar individualmente capacitada a participarda rede de mensagens, sendo o sistema social presidido por estahabilidade orgnica individual o que no acontece com os homens.Disso tudo resulta que o sistema das abelhas intransformvel, umavez que a Apis Mellifera est organicamente constrangida a assim secomunicar, inde-pendentemente de tempo, espao ou circunstncia,enquanto ela for organicamente uma Apis Mellifera.

    Contrariamente ao que acontece nas sociedades humanas, entre asabelhas a inscrio gentica se torna imperativamente dominante sobreo comportamento social: o organismo individual detm todo o patri-mnio dos comportamentos coletivos e constrange a sociedade a s setransformar no ritmo das modificaes paleontolgicas. A comunidadedas abelhas funciona como uma espcie de resultante das propriedadessempre idnticas de seus membros, cada um tendendo a executar osmovimentos-sinais que provocaro nos outros as reaes corretas isto , exatamente o oposto do que acontece entre os homens. Por isso,

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    seu fascinante sistema de comunicao contrasta com o humano: pelafixidez dos contedos das mensagens, pela referncia obrigatria a umas situao, pela transmisso unidirecional da informao, pelaimpossibilidade de decompor elementos com sentido em elementossem sentido pertencentes ao sistema...

    Smbolos animais? Sinais humanos?Faamos um pequeno balano de nossa reflexo. Temos at o

    momento procedido por abstrao, isto , adotado o mtodo deseparar ao nvel do pensamento coisas que se encontram misturadasao nvel da realidade. Quase como se estivssemos em um laboratrio,o mtodo nos propicia a oportunidade de trabalhar com realidadesideais, explicitando o essencial da comunicao animal, ou acomunicao humana em estado puro. O mtodo bom, pois nosd acesso s caractersticas mais demarcadas do fenmeno em estudo,pondo em evidncia as linhas mais expressivas de sua fisionomia.

    No obstante, esse mtodo contm o risco de um desvio grave,pois pode sugerir que no mundo as coisas se passem exatamente domesmo modo que em nossas cabeas. Dito de outra maneira, existe operigo de que consideremos que os fenmenos em si tenham a mesmanitidez, coerncia e sistematicidade que o nosso mtodo, a nvel deintelecto, lhes atribui: que a realidade confusa, mltipla e heterclitaseja substituda pelo pensamento metodicamente conduzido.

    A rigor, no h soluo para este problema epistemolgico. Mas sobretudo necessrio controlar suas conseqncias tericas. No nossoraciocnio, por exemplo, observa-se que o mtodo acabou por conduzir oposio quase antinmica entre sinal e smbolo, ou seja, entrecomunicao animal e comunicao humana. As pginas anterioresno sugerem que sinal e smbolo se opem termo a termo, cada umdeles sendo o exato oposto do outro?

    Acionemos, ento, os freios e faamos ponderaes.Compreendamos que sinal e smbolo so construes abstratas dopensamento e que a oposio frontal entre eles a oposio de conceitos,no de coisas. No mundo, a relao entre as coisas designadas porestes conceitos muito mais complicada, comportando sobreposies,transformaes e coexis-tncias. Assim, a antinomia intelectual queestabelecemos, um pouco para limpar o terreno e para enxergar naneblina, no vigora de maneira to simples ao nvel da realidade:

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    comunicao animal e humana no seriam de fato coisas to diferentes.Por conseguinte, seria til que nos precatssemos contra este risco de

    considerar verdade de fato o que no seria seno verdade de razo. Tomemosa providncia de contextualizar, matizar e atenuar algumas de nossasproposies, confrontando-as com observaes que as desafiam e que, aomenos primeira vista, parecem as desautorizar. Como resistir tentaode evocar o caso dos animais domsticos, capazes, como sabemos, demanifestar diversos comportamentos que a teoria que sustentamosassinalou como atributos genunos e especficos da humanidade?

    Antes de mais nada, preciso considerar que estes animais esto,por assim dizer, deslocados de seus ambientes originais. So animaisde certo modo humanizados, que perderam parte de seus hbitosselvagens e adotaram alguns usos humanos, adaptando-se vida doshomens. Este o caso do co de guarda, cuja proteo territorial apropriada por muitos povos. E o caso do Falco, cuja inimizade acertas aves utilizada como arma de caa em algumas sociedadeshumanas. Os pombos tambm so ilustrao disso, pois sua capacidadede retornar ao ponto de origem pde fazer deles espcie demensageiros para os gregos antigos, assim como sua capacidade dereconhecer figuras pde ser utilizada por americanos durante a Guerrado Vietn para detectar em fotografias a presena de inimigos.

    Alm disso, devemos considerar que com freqncia se superestimamas habilidades no obstante existentes de certos animais domsticos.O co que se aproxima de mim quando grito Rex! aproximar-se-iatambm se meu grito fosse Lex! Ele no aprende a linguagem humana,limitando-se habitualmente a responder ao tom de voz do dono tantoque balanar alegremente a cauda, quando algum em tom carinhosoe alegre lhe disser: vou te quebrar a cara! A domesticao um apren-dizado de costumes humanos, mas em termos.

    Do mesmo modo, no significam aprendizado da linguagemhumana os resultados das experincias interessantssimas feitas por B. eA. Gardner, que ensinaram a um macaco, Washoe, a utilizao decerca de quinhentos e cinqenta smbolos, com os quais podia inclusiveformar frases: porque evidente que esta comunicao se estabeleceude maneira artificial, a partir da linguagem humana. Experimentoscomo este provam somente que os primatas, como diversos outrosanimais, so dotados da possibilidade de se adaptar linguagemconvencional, sobretudo se forados a isto. Washoe pde comunicar-se

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    simbolicamente com os Gardner ou foi obrigado a isto? Poderia faz-locom seus congneres natural e espontaneamente?

    Um caso famoso [Fox: 1940, pp. 89-91] bastante esclarecedorquanto a este ponto: o de um cavalo ao qual se atribua na Alemanhado incio do sculo a capacidade extraordinria de fazer contas ecomplexas operaes aritmticas. Seu dono acreditava que os animaispodiam pensar e raciocinar como os seres humanos, desde quedevidamente treinados para isto. Preparou ento seu cavalo com esteobjetivo, ensinando-o a bater com as patas um nmero de vezescorrespondente ao resultado correto do problema que lhe era proposto:marcava as unidades com uma pata e as dezenas com a outra. Dava asrespostas certas, no apenas para as questes que lhe eram ditadas,mas tambm s que lhe eram exibidas em uma folha de papel.

    O caso repercutiu to intensamente na imprensa e na opiniopblica, que um comit cientfico foi formado para investigar ossurpreendentes poderes do animal. Aps cuidadoso exame, os cientistasconcluram apenas que o dono do cavalo era uma pessoa honesta eque no o havia treinado para dar batidas com as patas e cessar debater para dizer a resposta correta, como faziam treinadores deanimais de circo. No havia truques o que poderia ser confirmadopelo fato de os membros do comit conseguirem as respostas corretasmesmo quando o proprietrio no estivesse presente.

    Tudo fazia crer que o cavalo realmente pudesse raciocinar e fazercontas. No entanto, algum tempo depois o mistrio foi desvendado,quando se observou que o animal no era capaz de responder se apergunta fosse formulada por pessoa que desconhecesse a resposta: nestascondies, ele era totalmente incompetente. Descobriu-se, ento, queo cavalo respondia a movimentos quase imperceptveis da cabea e docorpo, executados pelo perguntador que soubesse a resposta, porqueeste no podia evitar, por ser inconsciente, o alvio de tenso queexperimentava quando as batidas da pata do cavalo alcanavam o nmerocorrespondente ao da resposta certa. Era a estes movimentos, inexistentesnaqueles que ignoravam a resposta, que o cavalo respondia, cessandode bater. Foi isto que aprendeu. Apenas isto.

    Os casos de animais domsticos ou treinados tm quase sempre umcarter peculiar, pois expressam em geral um condicionamento orgnicoou psicolgico, por meio do qual algo que uma conveno para oshomens chamar os cachorros com assobios em determinadas culturas,

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    pelo nome, estalando os dedos ou batendo palmas, em outras setransforma em determinao orgnica: algo que um smbolo para oshomens acolhido por animais, transformando-se em (quase) sinais.

    Tal condicionamento orgnico foi inclusive comprovado algumasvezes por experincias de laboratrio [Watzlawick: 1973, p. 96]. Umco treinado, por exemplo, a fazer distino entre crculo e elipse.Ampliando-se grandemente a elipse, ela se parecer cada vez maiscom um crculo, de modo que, a partir de certo ponto, o animal serincapaz de decidir. Como esta distino foi artificialmente atrelada aalguma coisa importante da sobrevivncia do co (alimentao, porexemplo), a impossibilidade de decidir comea a provocar no animaldistrbios tpicos de comportamento: estado comatoso, agressividadeextrema, concomi-tantes fisiolgicos de grave ansiedade...

    Lembremos ainda que os animais domados ou domesticados noso os mesmos, segundo as diferentes culturas. H entre a natureza dosanimais e o saber dos homens de cada sociedade uma espcie de jogode aproximao e afastamento: existem animais mais difceis ou fceisde domesticar (o gato e o cachorro so bons exemplos), mas existemtambm culturas que conhecem melhor ou pior os meios de se relacionarcom determinados animais, de modo que um animal domstico parauma sociedade pode no o ser para outra (o elefante, selvagem na frica,mas domesticado na India, no seria uma ilustrao disso?).

    Assim, a domesticao fundamentalmente um problema departilha de cdigos, em que os animais so forados a abolir algunsde seus sinais originais, assumindo quase como sinais algumasconvenes simblicas. Os ces, por exemplo, devem deixar dedemarcar o territrio com urina dentro de um apartamento, aprenderos horrios e locais apropriados...

    Domesticar um animal sobretudo submet-lo a algumas restriesem seu comportamento espacial. preciso neutralizar tanto quantopossvel sua distncia de fuga, fazendo com que suporte, sem se afastar,a presena de seres humanos ou de animais. necessrio anular ou, pelomenos, canalizar, sua distncia de ataque, de modo a impedir que oanimal agrida aqueles com quem deve compartilhar o territrio. Enfim, imprescindvel que aprenda a respeitar uma nova distncia social,atribuindo-lhe limites dentro do novo territrio. Nem todos os animaistm seus padres espaciais igualmente flexveis; mas nem todas as culturas,por outro lado, possuem o saber necessrio manipulao desses padres.

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    Trata-se, em suma, de uma troca, envolvendo substituio e partilha decdigos espaciais e especiais.

    Nesses casos ambguos, no h smbolos que se transmitam entregeraes pela educao; nem sinais condicionados que passemgeneticamente aos descendentes dos animais domsticos. Noobstante, tais casos evidenciam a capacidade do animal de aprenderquando se defronta com situaes novas capacidade, entretanto,limitada pelos determinantes orgnicos do animal e existente demaneira notvel apenas naquelas espcies que j apresentam umdesenvolvimento maior da sociabilidade. Somente nestes ltimos ainformao aprendida tem alguma chance de ser transmitida aoscongneres e, assim mesmo, em situaes relativamente simples.

    *E quanto presena de sinais no comportamento humano? Alm

    de smbolos convencionais, estaria a comunicao humana submetidaa fatores organicamente programados e geneticamente transmitidos ?

    Eis uma preocupao cuja procedncia se justifica amplamente primeira vista, pois h numerosssimos aspectos de nossas vidas queencontram fcil correspondncia em outros animais. No esto a aalimentao, a toilette, o sono, a amamentao, a excreo de dejetos,o parto, as relaes sexuais, a assistncia aos filhotes? Quem no capaz de observar que crianas recm-nascidas choram e que, apenasum pouquinho mais velhas, so capazes de sorrir? Manifestaes toespontneas de seres to pouco socializados no seriam sinais?

    Tomemos o choro como exemplo. certamente nossa primeiraexpresso de um estado de nimo, partilhada provavelmente pormuitas outras espcies animais, pois quase todos os mamferos e muitasaves emitem guinchos, piados, grunhidos, berros, etc., informandoaos adultos sobre seu estado orgnico ou psicolgico. Os bebshumanos tambm choram por motivos semelhantes, expressando dor,fome, frustrao, insegurana... Mas a semelhana cessa quando seobservam as reaes dos adultos humanos, pois nesse ponto comeama vigorar os ditames de cada cultura particular.

    Correr assustada e urgentemente para acudir, embalar, acariciar ouafagar a criana; reagir com energia para que a criana aprenda desde cedoa ser estica; ouvir com tranqilidade e indiferena, apoiando-se na convicode que toda criana chora... tudo isso depende de convenes particulares.H, pois, uma vastssima gama de compor-tamentos possveis dos adultos

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    em relao s crianas, que em absoluto no so programados organicamente.Por conseguinte, somos levados a admitir que, mesmo que crianas muitopequenas emitam sinais, os adultos lhes retribuem smbolos, fazendo comque para satisfazer seus desejos sejam obrigadas desde cedo e progressivamentea se enquadrar no universo adulto: chorar s por determinados motivos,obedecer certos horrios para sentir fome, sede ou sono...

    Sobre o sorriso se pode dizer quase o mesmo. Inicialmente um vnculoentre a criana e o adulto que dela se ocupa, progressivamente vai osorriso se atrelando a certos motivos culturalmente eleitos, pois segundoos tempos e lugares no se sorri para as mesmas pessoas, pelas mesmasrazes, nem significam os sorrisos as mesmas coisas. Em algumas regiesda China, por exemplo, se sorri por constrangimento: um empregadopode ouvir sorrindo o que para ns seria absurdo o pito que lhe passao patro. Certa vez, assisti, estarrecido, pela televiso ao relato feito poruma japonesa, testemunha ocular dos horrores de Hiroxima. Razo deminha perplexidade etnocntrica: ela terminou sua narrativa dos pavoresque acompanharam a exploso da bomba, com um simptico sorrisoestampado nos lbios. Muitas vezes encontrei dificuldades norelacionamento com membros de nacionalidade indiana, porque seussorrisos com freqncia me pareciam deslocados, a expresso facialambgua, ou simplesmente no apareciam em momentos fundamentais.Sorrir, ento, um gesto convencional: os sinais-sorrisos emitidos pelascrianas so progressivamente tragados pelas convenes culturais.

    H manifestaes orgnicas: certa sensao na boca do estmagome diz que tenho fome; certas coloraes do rosto expressam susto ouvergonha; certos odores esto ligados excitao sexual ou presenade excrementos... H manifestaes de que o Homem um ser vivo,um animal. Mas como no ver que aquilo que mais biolgico osexo, a morte, a alimentao, a sade, etc. tambm aquilo queest, por toda parte, mais embebido de smbolos e de cultura? Nossasatividades biolgicas fundamentais comer, beber, defecar, copular,morrer no esto estreitissimamente ligadas a tabus, valores, mitose rituais? Pois : jamais existem como sinais em estado puro. Soimediata e definitiva-mente enredados pelas malhas das convenes.

    *H, ainda, a desafiar a oposio sinal/smbolo, uma outra classe

    de fenmenos esta muito mais significativa do ponto de vistaantropolgico. Trata-se de ocasies em que certos animais do

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    Os outros e os outros

    demonstrao de algo muito parecido com cultura, quando a relaoinato-aprendido se verifica de modo especial, pois a plenitude dacapacidade de sinalizao depende, nestes casos, da convivncia dosindivduos com seus congneres.

    O estudo do canto dos pssaros fornece um bom exemplo dessasituao, em que o comportamento uma mistura do inato e doaprendido. A estrutura desses experimentos basicamente a mesmados estudos gerais sobre o tema, apenas introduzindo a utilizao deinstrumentos de preciso: considerando como inato aquilo que umpssaro pode fazer sem se referir a um modelo exterior, pode-se criarem isolamento um tentilho desde seu nascimento, sem lhe permitir aoportunidade de ouvir o canto de seus congneres. O interessante nessesestudos que se pode verificar que o pssaro que cresce nessas condiesdifere de um pssaro normal pelo fato de em seu canto faltar a partefinal e por no ser este nitidamente dividido em frases. Seu canto separece, a grosso modo, a ouvido nu, com o adulto, mas detalhescomplicados lhe fazem falta. Essa experincia pode ser desdobrada,criando-se juntos, desde o nascimento, diversos tentilhes, tambmimpedindo-os de ouvir cantos de adultos. Poder-se- verificar nestecaso que emitiro canto mais elaborado que os dos indivduos criadosem isolamento. Para cantar corretamente deve, portanto, o pssaro ouvira voz de indivduos adultos que vivem em sociedade.

    Constatamos a uma forma de comunicao, cuja aquisiodepende em parte da convivncia do indivduo com o grupo, nosendo apenas hereditria. Mais do que isto, pde-se observar [Werden:1976] tambm que em alguns pssaros (joo-de-barro, por exemplo)a frao aprendida do canto passvel de variar segundo as comunidadesdiferentes da mesma espcie funcionando o conhecimento destafrao do canto como uma maneira de apontar que pssaro pertence comunidade e quais devem ser repelidos como estranhos a ela. Existea, pois, algo muitssimo semelhante conveno simblica:transformvel, existente no grupo antes de no indivduo, socialmentetransmitido... Existe a algo de cultura.

    *A observao atenta do comportamento de animais domsticos e em

    estado selvagem, aliada comparao com casos de laboratrio, ensinaque a clssica oposio entre comportamentos animais baseados eminstintos e determinaes orgnicas, por um lado, e comportamentos

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    baseados na aprendizagem e transmisso de conhecimentos, por outro, sobretudo terica e conceitual. Na prtica, h animais (isto , algunsanimais, em algumas circunstncias) que podem exibir algo comocomunicao simblica, algo como cultura. Sinal e smbolo, inato eaprendido, podem conviver. E o fazem freqentemente, de modos eintensidades diferentes, segundo as vrias espcies.

    Tal convivncia no implica destruio do esquema conceitualerigido sobre a oposio sinal/smbolo: pelo contrrio, mostra que aoposio no nem total nem absoluta. E sugere apenas, enriquecendoa teoria, que na natureza no existe vazio entre cultura e no-cultura,que na passagem da animalidade humanidade no deve ter havidosaltos e que, muito provavelmente, devem ter existido transformaesem continuum, no sentido de um mximo de determinao genticapara um mximo de indeterminao desse tipo. Situado nesta ltimaposio, o Homem a estaria por obra de processos puramente naturais:tanto quanto o sinal, o smbolo teria razes firmes na mais concreta ematerial natureza. O uso de smbolos decorreria de uma propriedadehumana natural e universal, existente de modo semelhante em todosos indivduos semelhana que possibilitaria a diferena, diferenaque ilustraria a semelhana natural... Mas, como?

    A perspectiva comunicacional nos leva compreenso de que nemcomunicao nem a sociedade nem os smbolos caram prontos docu: para eles no h qualquer explicao metafsica. Aprendemosque, no plano dos fenmenos, no so rigorosamente umaexclusividade humana e que suas razes alcanam pontos profundosna cronologia da evoluo das espcies pois na interioridade decada ser h um sistema micro-molecular de comunicao, maior oumenor segundo o nvel de orga-nizao de cada um.

    A comunicao comea entre as partculas constituintes do prprioser. Mas a relao das partculas nucleares que se atraem e repelem naintimidade da estrutura atmica de uma rocha no da mesma inten-sidade que a existente em um vegetal, animal, ou Homem. Nessesltimos, coexistem vrios nveis de comunicao, caracterizados poruma srie de mltiplas atividades e funes, bem alm do nvelmicromolecular em que permanece o mineral. H graus decomplexidade comunicacional, portanto.

    No difcil perceber isto no que diz respeito s relaes sociais. Hvnculos de ordem puramente biolgica e material, manifestando-se em

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    seres, como as plantas, dotados de um psiquismo ainda elementar,desprovidos de sistema nervoso e de verdadeiro comportamento. H ascomunidades animais, nas quais os vnculos, afetados por fatoresbioqumicos, biolgicos ou psicobiolgicos, so muitas vezes de teor afetivo.H sistemas nos quais a afinidade social no aproxima apenas seres damesma espcie, pois animais, plantas e bactrias podem serinterdependentes em suas vidas concretas, abastecendo-se uns aos outroscomo alimentos e transmitindo mutuamente informaes... Haveria, pois,lugar para toda uma sociologia da natureza, que pretendesse demonstrarque as tendncias agregao e associao so universais entre os seresvivos, que estas tendncias podem ser organizadas e classificadas e que asexpresses mais altas da vida social tm uma longa histria natural.

    Vimos que na linha dessas constataes surgiu uma nova biologia.Uma biologia que no concebe mais a vida como uma qualidade restritaaos organismos, uma biologia que no se encerra mais nos processosfsico-qumicos. Agora, abre-se ao fenmeno social que, emboralargamente presente entre os animais e mesmo entre os vegetais, noera apreendido, por ausncia de princpios tericos e de conceitos. Oponto de vista terico vigorante atualmente outro: o organismo contex-tualizado em seu meio, mas a prpria idia de meio tambmse transformou. Meio no mais um pano de fundo fsico-qumico,passivo e contextual. , antes, um sistema global de interinflunciasbiopsicossociais: ecolgico e tambm etolgico. Com essa novabiologia, morre o biologismo, nascem novos conceitos de naturezae de animal [Morin: 1975].

    possvel que uma nova antropologia surja tambm. A concepode um Homem fechado em si, do lado de c da fictcia linha deseparao entre natureza e cultura dever ceder, dando lugar a umaoutra, capaz de abolir o antropocentrismo e de integrar o Homem nanatureza de onde sua especialidade provm. Abrindo-se novabiologia, talvez os antroplogos se reequipem do nimo de encararfrontalmente o problema da origem da cultura, desenvolvendo osmeios tericos de o fazer. Com uma nova antropologia, uma novaconcepo de Homem poder surgir.

    Sem o antropologismo, a fronteira entre a antropologia culturale/ou biolgica, que os antroplogos sempre souberam artificial, deverser redefinida, deixando de ser o lugar onde os respectivosconhecimentos cessam, para assumir carter de questo efervescente

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    ANTROPOLOGIA E COMUNICAO

    e construtiva. A transposio desses sagrados limites deixar de sertabu entre os antroplogos e sobre aqueles que praticarem o gesto,hoje sacrlego, de freqentar o outro lado antroplogos fsicosfreqentando a cultura, antroplogos culturais freqentando anatureza dever deixar de recair o estigma de fascistas,reacionrios, racistas...

    Compreender-se-, ento, que, embora estas categorias acusatrias sejustifiquem luz de recentes acontecimentos de nossa histria, elas nadatm de cientficas. E que o velho perigo do determinismo biolgico deverdesaparecer junto velha biologia. A nova antropologia far-se- realidade,com a profecia que Marx formulou no terceiro manuscrito de Paris:

    A prpria histria uma parte real da histria natural, do desenvolvimento danatureza para o homem. A cincia natural incorporar um dia a cincia doomem, do mesmo modo que a cincia do homem incorporar a cincia natural.Haver apenas uma cincia.

    *A grande interrogao antropolgica, por conseguinte, : qual a

    origem da Cultura? A indagao crucial, porque remeteimediatamente o pensamento para o problema da relao genticaque a Cultura tem com a Natureza, incidindo sobre o fato de o Homemser ao mesmo tempo um animal e algo diferente de um animal.Relacionando Natureza e Cultura, a pergunta coloca em evidncia oproblema essencial da antropologia, preocupao sem a qual ela poucose distinguiria da sociologia e das outras cincia sociais.

    A tarefa que se apresenta aos antroplogos rdua. Sabendo queesto condenados eterna impossibilidade de desvendar o mistrio ]enquanto no for possvel determinar, por um lado, as modificaes deestrutura e funcionamento das organizaes sociais naturais e, por outro,estabelecer seus correlativos no plano biolgico individual, osantroplogos reconhecem ao mesmo tempo que esto desprovidos dosindispensveis documentos sobre a histria dessas organizaes sociais.

    Os fsseis, que nos dizem o que sabemos sobre os organismos dopassado, pouqussimo esclarecem infelizmente sobre o comportamentosocial dos animais a que se referem. No podendo estudar diretamente asvidas sociais que estariam na base da vida social humana, a antropologiase v, desse modo, obrigada a recorrer s nicas fontes disposio, isto, comparao com organizaes sociais de espcies atuais, analogia e

    antropologia.p65 25/3/2008, 13:5246

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    Os outros e os outros

    ao raciocnio hipottico. Conseqentemente, sobre esta questo, comosobre o problema da origem do Universo, tudo o que se disser dever serconsiderado como pertencendo ao domnio das hipteses.

    No obstante, sabemos hoje com razovel segurana que a espciehumana no inventou uma srie de comportamentos sociais, como acorte, a submisso, a estruturao hierrquica e a noo de territrio.A prpria sociedade seguramente no um fenmeno apenas humanoe h aspectos da cultura que encontram evidente correspondncia emanimais no-humanos. O raciocnio se ampa