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1 “DEGRADADOS FILHOS DAS EVAS”: A QUESTÃO DA ILEGITIMIDADE NA PARÓQUIA DE SÃO VICENTE FERRER (1876- 1912) HERMES GILBER UBERTI Doutorando UNISINOS/Docente IF Farroupilha [email protected] Primeiras palavras Este texto intenta discorrer sobre a ilegitimidade junto à paróquia de São Vicente Ferrer entre 1876 a 1912. Ao longo desse período esteve à frente da paróquia Boaventura Garcia religioso que batizou 6.527 neófitos, dos quais 50,42% eram frutos de relações ilícitas aos olhos da Igreja Católica. Entre os “degradados filhos das Evas” trataremos da prole de Maria dos Santos Figueiredo que era “serventa” do vigário. Nesse sentido nos enredaremos nas teias familiares tecidas pelo sacerdote destacando que ao legar suas últimas vontades o mesmo converteu seus familiares de sangue em herdeiros legatários enquanto que sua “criada” e os três filhos dela assumiram a condição de herdeiros universais. Antes de adentrarmos no “mundo” da ilegitimidade junto à paróquia de São Vicente Ferrer, fazem-se necessárias algumas rápidas considerações no que tange o aporte teórico-metodológico, bem como explicitar as categorias que se constituem nas vigas mestras deste texto. Em relação ao primeiro ponto iremos nos valer da micro- história social italiana que tem propiciado a muitos historiadores “outra leitura do social” na medida em que permite tratar dos “temas mais diversos de investigação a partir de uma perspectiva sintética e integradora, ao mesmo tempo em que atenta para a densidade e singularidade dos seus objetos” (GRENDI apud LIMA, 2006, p. 158). Ainda no que toca a micro-análise intentamos utilizar o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989), buscando pequenos detalhes e indícios, juntando peças e “costurando-as” durante o processo de construção da trama. As fontes manuscritas que serão utilizadas foram garimpadas junto ao Arquivo da Arquidiocese de Santa Maria (AASM), Arquivo do Judiciário Centralizado (AJC) e Arquivo Público do Estado do

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“DEGRADADOS FILHOS DAS EVAS”: A QUESTÃO DA ILEGITIMIDADE

NA PARÓQUIA DE SÃO VICENTE FERRER (1876- 1912)

HERMES GILBER UBERTI

Doutorando UNISINOS/Docente IF Farroupilha

[email protected]

Primeiras palavras

Este texto intenta discorrer sobre a ilegitimidade junto à paróquia de São Vicente

Ferrer entre 1876 a 1912. Ao longo desse período esteve à frente da paróquia

Boaventura Garcia religioso que batizou 6.527 neófitos, dos quais 50,42% eram frutos

de relações ilícitas aos olhos da Igreja Católica. Entre os “degradados filhos das Evas”

trataremos da prole de Maria dos Santos Figueiredo que era “serventa” do vigário.

Nesse sentido nos enredaremos nas teias familiares tecidas pelo sacerdote destacando

que ao legar suas últimas vontades o mesmo converteu seus familiares de sangue em

herdeiros legatários enquanto que sua “criada” e os três filhos dela assumiram a

condição de herdeiros universais.

Antes de adentrarmos no “mundo” da ilegitimidade junto à paróquia de São

Vicente Ferrer, fazem-se necessárias algumas rápidas considerações no que tange o

aporte teórico-metodológico, bem como explicitar as categorias que se constituem nas

vigas mestras deste texto. Em relação ao primeiro ponto iremos nos valer da micro-

história social italiana que tem propiciado a muitos historiadores “outra leitura do

social” na medida em que permite tratar dos “temas mais diversos de investigação a

partir de uma perspectiva sintética e integradora, ao mesmo tempo em que atenta para a

densidade e singularidade dos seus objetos” (GRENDI apud LIMA, 2006, p. 158).

Ainda no que toca a micro-análise intentamos utilizar o paradigma indiciário

proposto por Ginzburg (1989), buscando pequenos detalhes e indícios, juntando peças e

“costurando-as” durante o processo de construção da trama. As fontes manuscritas que

serão utilizadas foram garimpadas junto ao Arquivo da Arquidiocese de Santa Maria

(AASM), Arquivo do Judiciário Centralizado (AJC) e Arquivo Público do Estado do

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Rio Grande do Sul (APERS). Entre a documentação cotejada destacamos os registros de

batismo, testamento, escrituras públicas e inventários post-mortem.

Entre as categorias que alicerçam nossa análise destacamos a de prole ilegítima.

No que concerne a esses “frutos” de relações moralmente desviantes, segundo os

preceitos da igreja católica, podemos classificá-los nas seguintes condições; “naturales:

descendientes ilegítimos de padres solteros; adulterinos: hijos ilegítimos con al menos

un padre casado” e aqueles que estavam no estrato mais inferior, “sacrílegos: hijos de

sacerdotes - obviamente concebidos después de la ordenación” (MATEO, 1996, p. 12).

Acrescentam-se ainda na condição de espúrios1 os incestuosos, aqueles que foram

gerados a partir de relações de pessoas que possuíam algum tipo de afinidade sanguínea.

Outra categoria a qual iremos recorrer é a de família, temos presente que se

constitui num conceito polissêmico e os estudiosos do tema apontam às dificuldades

para analisar essa “instituição praticamente universal em todas as sociedades [...] que no

senso comum, significa ser amado e amparado” (SCOTT, 2008a, p. 2). Juan Garavaglia

(1999, p. 71) a entende como uma organização alicerçada “en los vínculos de

parentesco – sean éstos originarios en la consanguinidad o en la alianza”. Quanto às

funções atribuídas a ela destaca-se como um lócus de reprodução biológica, um lugar de

reprodução social e uma unidade de produção que em seus liames “con el mundo

exterior y a su evolución en los distintos contextos geográficos e históricos, constituyó y

constituye una de las instituciones sociales más dinámicas y cambiantes del mundo

occidental” (MORENO, 2004, p. 13).

Entre as formas de estruturação as mais frequentes foram a patriarcal,

fracionada, simples (completa e incompleta) nuclear (simples e complexa) e extensa. Já

no que tange a gama de possibilidades de estudos destacamos os vieses demográfico,

genealógico, sócio-econômico e o antropológico. Neste trabalho daremos maior atenção

à abordagem antropológica a partir da qual iremos discorrer sobre situações que

envolveram os frutos de relações não sancionadas pela Igreja Católica. Para tanto

iremos nos valer dos registros de batismos, produzidos junto á paróquia de São Vicente

Ferrer, que serão cruzados com fontes nominativas de natureza não religiosa buscando

1 Segundo as Ordenações Filipinas espúrios eram todos aqueles que "não é confessável ou perante a

sociedade ou perante a lei, pela ilegalidade ou reprovação do coito de que procedem. Assim são os

sacrílegos, os incestuosos, e os adulterinos". ORDENAÇÕES FILIPINAS no livro 4º, Tít. 93: Como os

irmãos de danado coito sucedem uns a outros, p. 943.

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rastrear as relações entre o pároco Boaventura Garcia junto ao ramo familiar de Maria

dos Santos Figueiredo. O suposto “trato” que havia entre eles nos servirá de pretexto

para adentrarmos no mundo da ilegitimidade sistematizando, na forma de tabela, as

categorias de filho natural, exposto, pais incógnitos, adulterinos e batizandos cujos pais

eram unidos só civilmente. Tendo presente que o estabelecimento de médias se

constituiu num mecanismo revelador de comportamentos (BURGUIÈRE, 1995).

Quando a ilegitimidade frequentava a casa do pároco

A paróquia de São Vicente Ferrer foi instituída em 1876, tendo na figura de

Boaventura Garcia seu primeiro pároco. No que toca a vida pregressa ao sacerdócio do

referido personagem não dispomos de muitas informações, haja vista que não

conseguimos localizar junto a Cúria Metropolitana de Porto Alegre sua habilitação

sacerdotal (genere, patrimônio e moribus). O pouco que apuramos foi obtido através da

cópia de seu testamento anexada junto ao seu inventário post-mortem, onde declarou

que era natural da parochya de Val de Rey na província de Leon no Reino da Hespanha.

Havia nascido em 1840 sendo filho legítimo de Nicolau Garcia e Maria Josefa Prieto2.

Entre o momento de sua chegada até o princípio da década de 1890 encontramos

seu nome trinta e uma vezes citado na condição de padrinho, deste total em dezessete

oportunidades foram batizados de neófitos descritos como naturais. Coincidentemente a

partir do momento em que seu nome começou a figurar junto ao notário realizando uma

série negócios ele deixou de ser convidado para se tornar o “pai espiritual” dos neófitos

que ele batizava. Na busca de uma possível explicação para tal fato sistematizamos

alguns desses negócios.

Em maio de 1890 foi lavrada uma escritura pública de dívida e hipoteca em

nome de Francisco Pereira Fortes e Generoza d’ Avila Pereira na condição de devedores

na importância de 5:000$000 de réis (£ 461,04). Dinheiro em espécie que receberam das

mãos de Boaventura Garcia “cuja quantia e divida elles devedores se obrigam a pagar

ao mesmo credor no prazo de um anno [...] obrigando-se a pagar ao mesmo credor, no

dia em que terminar o referido prazo de um anno, o juro de doze por cento”. Como

2 AJC, Inventário post-mortem de Boaventura Garcia. São Vicente, a. 1912, n.° 184, cx. 915, ff. 03.

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garantia o casal apresentou uma escritura de dezoito quadras de campo3. Pois bem,

passados três anos a viúva Generoza saldou o débito entregando a propriedade no rincão

da Timbauva no valor de 7:000$000 réis (£ 385,83)4. No mesmo dia em foi feita a

escritura em seu nome o vigário arrendou o campo para Severino Pires d’ Oliveira pelo

preço de 500$000 réis por ano (£ 25,41) e por um prazo de três anos5. Pouco depois o

arrendatário faleceu o que abriu a possibilidade de rescisão do contrato6. Diante disso o

padre não perdeu tempo e vendeu as terras pela importância de 9:000$000 réis (£ 351)7.

Por fim a viúva Anna Maria Collares Pires saldou o débito que havia ficado do

arrendamento entregando um terreno e duas chácaras com arvoredo avaliados pela

quantia de 500$000 réis (£ 24,66)8. Os negócios do vigário nos revelam um indivíduo

que articulava diferentes tipos de atividades, entre elas, a prestamista, arrendamento e a

especulação no mercado de terras, mediante a compra e venda de estabelecimentos

situados, em sua maior parte, no interior de São Vicente.

Em agosto de 1893 Boaventura Garcia legou suas últimas vontades para o

Antonio de Vasconcelos, o qual ele definiu como pessoa instruída nas leis e que

dispunha da sua mais absoluta confiança. Em relação ao advogado Vasconcelos

estiveram juntos em várias demandas, entre elas, na reforma da igreja na qual ele fez

parte da comissão de paroquianos que auxiliou o sacerdote na empreitada.

Particularmente, entre as vontades testadas, nos interessam neste texto, aquelas que

tratavam do modo como seria repartido o patrimônio deixado pelo cura. No que diz

respeito às de ordem material destacamos o fato de que destinou a seus irmãos de

sangue (Gabriel, Felippa e Maria) o valor de cinco contos de réis enquanto que a maior

parte dos bens deveriam ser repassados para “Julia, Pedro e Fulgencio filhos de Maria

dos Santos Figueiredo que tem sido minha “serventa, me servindo satisfatoriamente”9.

Por fim manifestou que estava deixando uma carta a seu testamenteiro na qual lhe

3 APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente, 1º tabelionato, a. 1890, liv. 4, ff. 84v.

86r. 4 APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente, 1º tabelionato, a. 1893, liv.8, ff. 28v.

31v. 5 Idem, ff. 31v. a 32v.

6 Idem, ff. 34r. a 35r.

7 APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente, 1º tabelionato, a. 1894, liv.9A, ff. 06r.

a 06v. 8 APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente, 1º tabelionato, a. 1895, liv.10A, ff.

33r. a 36v. 9 AJC, Inventário post-mortem de Boaventura Garcia ... op. cit. ff.. 04 r .

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passava recomendações em segredo que só deveriam vir a público caso suas vontades

fossem contestadas.

Em relação ao ramo familiar de Maria não conseguimos apurar muitas

informações, sendo que a primeira vez que eles “cruzaram” nosso caminho foi no ano

de 1886 quando por ocasião do assento batismal de Fulgencio descrito como filho

natural10

. Passados onze anos Maria reapareceu junto aos registros notariais

substabelecendo uma procuração onde conferia plenos poderes a Carlos Augusto de

Lima Pinto para que procedesse uma retirada na Caixa Econômica na cidade de Porto

Alegre”11

. Algum tempo depois a mesma personagem retornaria ao 1º tabelionato de

São Vicente com o intuito de escriturar uma casa “situada na Rua Vinte de Setembro”

tendo como vizinhos confinantes Antonio de Vasconcellos e Boaventura Garcia12

.

Em relação à condição de ilegítimo de Fulgencio é difícil precisar se foi gerado a

partir de uma união consensual, de uma aventura amorosa de sua mãe no estado de

solteira e, por que não especular, poderia ainda se tratar de uma relação sacrílega. Que

segredos teria Boaventura a esconder? Por que privilegiou os filhos de sua criada? Não

temos repostas definitivas para tais questões, mas pode-se pensar na possibilidade de

amancebamento e de prole espúria. Entre as razões apresentasse o motivo que ao

atingirem a maioridade os três filhos incorporaram o sobrenome Garcia, o mesmo do

religioso. Além disso, em uma das visitas que realizou a paróquia de São Vicente Ferrer

o bispo diocesano não deixou de chamar a atenção do vigário sobre “as contas que há de

prestar no tribunal divino” onde não deixarão de “repercutir os gemidos de tantos

abusos [...] de suas faltas e graves omissões”13

. Especula-se que as duras críticas ao

comportamento do pároco, feitas pela autoridade religiosa, referiam-se aos empréstimos

e a usura, a cobrança de hipotecas junto a viúvas, ao “confisco” de bens de paroquianos

que não conseguiam pagar seus empréstimos e/ou estavam relacionadas aos “tratos” que

o religioso tinha com Maria e seus filhos.

Fernando Torres Lodoño (1999) arrazoou sobre as diferentes formas que o

concubinato possuía no Brasil a época colonial. Asseverou que a mancebia se constituía

10

AASM. Registro de batismo de Fulgencio. São Vicente, a. 1886, Liv. 03, ff. 46 v., n° 104. 11

APERS, Livros notariais de transmissões e notas. São Vicente, 1º tabelionato, a. 1897, liv. 15, ff.

09r. e v. 12

Idem, ff. 65v. a 66v. 13

AASM, Livro de casamentos. São Vicente, a. 1908, liv. 02 ff. 16v.

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numa forma alternativa de relação conjugal e organização familiar. Do ponto de vista da

igreja se constituiu num dos principais desafios enfrentados por essa instituição, pois

passava por uma questão de moralidade da população e dessa forma era apresentado

como algo escandaloso sujeito há diferentes tipos de recriminações sociais. No caso dos

religiosos os impedimentos derivados do voto de castidade, “la total abstinencia sexual

constituía un pesado lastre para el clero, hombres de carne y hueso” (LÓPEZ, 2011, p.

84), não impediram que muitos vivessem maritalmente com mulheres com as quais

tiveram filhos.

Essa situação, quando o "marido" era padre, foi percebida por Mónica Ghirardi e

Nora Siegrist (2012) ao estudarem as dioceses de Tucumán e Buenos Aires nos séculos

XVIII e XIX. Entre as razões apontadas pelas autoras para que ocorresse a aproximação

e romances iniciassem estava “la creación de lazos de profunda intimidad y estrecho

relacionamiento derivado además del sacramento de la confesión” (IDEM, p. 160). Ao

mesmo tempo muitos clérigos concentravam “poder y prestigio que los diferenciaba de

la gente común”, uma vez que muitos deles também “pertenecían a familias distinguidas

de la comunidad y estaban vinculados al poder político y económico integrando el

entramado de autoridad social” (IBIDEM, p. 200). Havia toda uma áurea construída em

torno desses sujeitos que num universo de analfabetismo estavam entre os poucos

letrados das comunidades. As relações de poder passavam também por se constituírem

em “canais de salvação” e curadores das moléstias do corpo e da alma. Do mesmo modo

o fato de receberem as espórtulas, mesmo que em muitos casos de forma módica,

também se constituíam numa possibilidade de sustento para muitas mulheres oriundas

dos estratos subalternos da sociedade (IBIDEM).

Outra faceta desse tipo de relacionamento estava ligada à exposição, ou seja, a

forma como essas relações eram mantidas, onde o ilícito, teológica e institucionalmente,

poderia ser aceito desde que o caso não causasse escândalos. Desta forma, “la mayoría

procuro guardar silencio también respecto de los frutos de esos vínculos considerados

sacrílegos para la doctrina de la Iglesia y salieron a la luz solo por casualidad porque las

amasias los reconocieron o parientes o vecinos lo comentaron (IBIDEM, p. 80).

Todavia em casos excepcionais os clérigos, “se atrevieron a ventilar sus íntimos

vínculos haciéndolos públicos, exhibiendo a las compañeras de turno y hasta parecen

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haber experimentado satisfacción ostentosa mostrándose abiertamente en pareja,

desafiando incluso a las altas esferas de la autoridad eclesial y secular” (IBIDEM, 81).

Parece que o grande problema era quando isso se tornava explícito, público,

esses episódios poderiam se constituir numa afronta aos ditames da Igreja e em grave

ofensa a moral14

. Contudo havia uma terceira possibilidade que articulava o explícito,

mas sem causar grandes embaraços. Tal como foi percebido por Letícia Guterres em seu

estudo sobre Santa Maria. A autora afiançou que o vigário daquela localidade, Antonio

Gomes Coelho do Vale, era “amásio de uma de suas escravas e ter com a dita cinco

filhos” não lhe trouxe grandes constrangimentos, “mais importante que isso era o grau

de convencimento que exercera naquela sociedade quanto a sua moralidade” (2011, p.

139). Talvez estejamos diante de um jogo onde o mais importante era o que

transparecia, ou seja, havia uma conduta preestabelecida e um nível de tolerância entre

o que acontecia “portas adentro” e aquilo que era demonstrado em público. No caso do

sacerdote Boaventura deve ter pesado também para sua “moral” a atuação em outras

empreitadas, tais como a, já citada, reforma na igreja matriz e a longa atuação na

condição de pároco. Nesse sentido Maria Helena Barral (2007) defendeu que entre

predicativos para ser considerado um bom pároco, nas paróquias rurais da Argentina,

passava pelo tempo de permanência, bem como o envolvimento demonstrado com as

questões da comunidade.

Muitos desses amores sacrílegos deixaram frutos que “lejos de ser ignorados por

sus padres eclesiásticos, algunos recibieron la bendición bautismal de sus propios

progenitores” (GHIRARDI E SIEGRIST, 2012, p. 217) e outros chegaram inclusive ao

ponto de transmitirem seus sobrenomes e bens a seus filhos (IDEM). Talvez esse fosse

o caso de Fulgencio um dos milhares que foi colocado nas teias da ilegitimidade. No

que toca a condição pela qual os rebentos foram descritos nos assentos de São Vicente

elaboramos a tabela que segue, onde apresentamos números absolutos e percentuais no

que dista a condição dos batizandos ao longo de 37 anos.

14

Moraes e Silva a entende como “sciencia de regular os costumes com o respeito ao honesto, virtuoso, e

decoro, segundo a Ethica racional, ou revelada” (1813, p. 96).

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Tabela 1: Condição dos batizandos junto à paróquia de São Vicente Ferrer entre 1876-1912

Biênio Natural Legítimo Exposto Pais

incógnitos

Adulterino Contrato

civil

Total

1876-1877 81 120 00 00 01 00 202

1878-1879 204 253 03 00 00 00 460

1880- 1881 197 230 01 01 01 00 430

1882-1883 115 208 00 00 00 00 323

1884-1885 159 209 02 00 00 00 370

1886-1887 140 172 01 00 00 00 313

1888-1889 112 157 00 00 00 00 269

1890-1891 138 196 01 00 00 00 335

1892-1893 88 138 01 00 00 13 240

1894-1895 299 425 00 00 00 48 772

1896-1897 187 239 01 00 00 45 472

1898-1899 123 190 01 00 00 35 346

1900-1901 55 93 01 00 00 46 195

1902-1903 70 89 00 00 00 60 219

1904-1905 128 157 00 00 00 101 386

1906-1907 106 137 00 02 00 157 402

1908-1909 125 119 01 01 00 137 383

1910-1911 71 50 00 00 00 185 306

1912 31 41 00 00 00 29 101

Total 2.429 3.223 13 04 02 856 6.527

37,22% 49,38% 0,19% 0,06 0,03 13,12 100%

Fonte: AASM, Livros de batismo. São Vicente Ferre, a. 1876-1912, liv.1, 2, 3, 4, 5 e 6.

Um comentário que se impõem está ligado ao fato de termos trabalhado, exceto

na antepenúltima linha da tabela, com biênios. Isso foi feito principalmente com a

finalidade de não deixarmos o recurso metodológico longo demais. Ademais, para o que

pretendemos, ver os números totais e percentuais de cada uma das categorias pela qual

foram descritos os rebentos, não traz qualquer tipo de prejuízo. Mesmo que nosso

interesse seja o universo da ilegitimidade, não podemos deixar de mencionar que dos

6.527 apontamentos lançados pelo pároco Boaventura 3.223, que perfazem um

percentual de 49,38%, adentraram no mundo da cristandade na condição de filhos

legítimos.

Se somarmos todos os registros que foram feitos e agrupados na condição de

ilegítimos (naturais, expostos, adulterinos15

, pais incógnitos e filhos de pais unidos

somente pelo contrato civil), chegamos a 3.304, que em termos de porcentagem

15

Encontramos apenas dois casos em que foram oficializados junto aos registros, outros podem ter sido

encobertos nas outras categorias da ilegitimidade (naturais, pais incógnitos ou até mesmo através da

exposição). Tratava-se de Joaquina filha adulterina de Leopoldina Martins Ribeiro e de Clara filha de

Rafaela Manoela de Almeida que se encontrava separada de seu marido Celestino José Fernandes.

AASM. Registro de batismo de Joaquina. São Vicente, a. 1881, Liv. 2, ff. 49v., n° 225.

AASM. Registro de batismo de Clara. São Vicente, a. 1877, Liv. 1, ff. 22, n° 54.

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significaram 50,62%. Ao compararmos essa cifra com outros espaços16

verificamos que

o nível de ilegitimidade era alto. Mesmo que tivemos trabalhado somente com a

categoria de filhos naturais, os 37,22%, também representariam um percentual elevado.

Na busca de respostas para tentarmos entender esses índices recorremos aos escritos

Silvia Brügger (2007). Ela asseverou que entre os principais motivos que contribuíam

para tal situação estavam à cobrança das espórtulas, o contexto de conflitos, as crises

econômicas e os números tendiam a serem mais elevados naqueles sítios que se

constituíam em locais de passagem.

Não sabemos precisar quantos réis eram necessários para poder contar com os

préstimos espirituais do religioso a única situação de cobrança de valores constatada

ficou por conta dos serviços fúnebres pagos por ocasião da encomendação da alma de

Ozório Machado d’ Avila que ficaram em 300$000 réis17

. Possivelmente de todos os

elementos apresentados pela historiadora o último deles tenha sido aquele que mais

pesou para o grande número de ilegítimos. Em função de sua posição estratégica, quase

no centro do Rio Grande do Sul e margeado por dois rios o território se constituiu num

ponto de passagem, de mercadorias, que vinham ou eram enviadas para todos os

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Tivemos o cuidado de selecionar somente aqueles trabalhos que “tocaram” pelo menos uma das

“margens do século XIX. Além disso, temos presente que mesmo paróquias vizinhas possuíam suas

especificidades e que elas poderiam apresentavam taxas com grande variação. Entre os estudos que

tivemos acesso, menciona-se: Na Argentina destacamos Roberto Schmit (2000) que encontrou para a

diocese de Concepción del Uruguay, no período de 1820 – 1850, o índice de 41,1, José Mateo (1996)

apurou para Tandil por volta de 1860 em torno de 35%, no período de 1810-1839 para Córdoba 31,3% e

em Lobos 23,3%. Para a cidade de Guimarães em Portugal Maria N. Amorin (1987) obteve para o recorte

1810-1819 à percentagem de 25,2%. Ainda “na margem de lá” Ana Scott (1999) apurou para a

comunidade de São Tiago de Ronfe, no período de (1730-1825), uma média de 11,7%. No Brasil entre

aqueles que se debruçaram sobre a temática destacamos Maria Luiz Marcílio (1986) que ao estudar

Ubatuba na província de São Paulo constatou um percentual de 17% no período de 1785 a 1830, ainda

naquelas paragens Carlos Bacellar (1995) direcionou seu olhar para Sorocaba (1679-1845) constando 9,5.

Para o Paraná Myriam Sbravati verificou para a freguesia de São Jose dos Pinhais, no recorte temporal de

1776-1852, índices 25,2%, números muito parecidos aos obtidos Elvira kube para a freguesia de Curitiba

entre 1801-1850 que apresentou 27,4. Nas Minas Gerais Iraci del Nero da Costa (1981) para Vila Rica no

ano de 1804 chegou a 36,7% e para Mariana, 38%. Elizabeth Kusnesof (1990) ao estudar a paróquia de

São Cristovão no Rio de Janeiro (1858-1867) averiguou 33,95%. Mas o índice mais elevados sem dúvida

foram os encontrados por Maria Peraro na paróquia Senhor Bom Jesus de Cuiabá no Mato Grosso entre

1853-1890 que perfizeram 43,5%. Outro espaço que apresentou taxas elevadas foi Belém, na capital

paraense, no intervalo de 1870 para 1920, os índices de ilegitimidade oscilaram entre 57% para 33%

(CANCELA, 2011). Para o Rio Grande do Sul destacamos os dados da Madre de Deus em Porto Alegre

os quais foram obtidos por Ana Scott (2008b) para o período de 1779-1829 e os índices de ilegitimidade

ficaram em torno dos 29,1%. Por último os obtidos por Jonas Vargas (2013) para Pelotas no recorte de

1812 - 1825 que chegou ao percentual de 21,5%. 17

AJC, Inventário post-mortem de Ozório Machado d’Avila. São Vicente, a. 1906, cx. 738, n.° 63.

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quadrantes do Rio Grande do Sul (UBERTI, 2012). Assim como o deslocamento de

tropas, mobilizadas tanto nas guerras fronteiriças, quanto nos conflitos internos.

No que dista a exposição, não foram muitas crianças sujeitas a essa situação,

encontramos apenas 13 casos. O que conseguimos depreender de tal fato é que a

maioria delas foram enjeitadas18

junto às portas das residências localizadas no burgo de

São Vicente. Entre elas destaca-se Castoriana “engeitada recém nascida na casa do

Reverendíssimo Vigário”19

. Ao estudar o abandono de crianças na Paróquia de Nossa

Senhora da Apresentação em Natal, Capitania do Rio Grande do Norte no século

XVIIII, Thiago de Paula percebeu que a igreja matriz era um dos principais pontos onde

as crianças eram deixadas, “pois uma mãe, ou mesmo pais que deixaram seu filho

exposto próximo à igreja matriz, tinham a intenção que alguém o encontrasse, pois

possivelmente era aquele local da freguesia bastante movimentado” (2009, p. 126).

Mas nem todas as crianças foram deixadas em locais visíveis e de grande

movimentação. A recém nascida Júlia foi “abandonada no meio do campo de Urbano

Francisco Galvão” que a acolheu em sua casa20

. Possivelmente estamos diante daquilo

que Renato Pinto Venâncio (2002, p. 130) chamou de abandono selvagem. Essa

situação de abandono em lugares ermos era um dos “adicionais de perigo” que

contribuíam para o elevado número de óbitos entre crianças expostas (SCOTT e

BACELLAR, 2010, p. 52). Cerca de treze dias após ter sido encontrada foi batizada

tendo como pai espiritual o filho de seu bem feitor Alejandro Francisco Galvão. No

caso de crianças expostas o apadrinhamento poderia servir

como um substituto à complicadíssima e burocrática adoção legal. Através do

compadrio, o enjeitado ingressava na família [...] estabelecendo relações de

parentesco espiritual. Para se ter ideia da abrangência do vínculo basta dizer

que todos os parentes do padrinho e da madrinha, colaterais, ascendentes e

descendentes, até o quarto grau, passavam a ter oficialmente algum tipo de

ligação familiar com a criança (VENÂNCIO, 2011, p.15).

Quanto ao rápido intervalo de tempo, entre a descoberta e o batismo daquela

“degradada filha de Eva”, talvez se explique pelo fato de que “o pequeno desvalido

18

Segundo Bluteau (1712, p. 114) “menino engeitado, he o que desamparado de seus pays, e exposto no

adro de huma Igreja, ou deixado no lumiar de um Convento, ou de pessoa particular, ou depositado no

campo a Deos, e à ventura”. 19

AASM. Registro de batismo de Castorina. São Vicente, a. 1880, Liv. 2, ff. 8v., n° 137. 20

AASM. Registro de batismo de Julia. São Vicente, a. 1878, Liv. 1, ff. 44v., n° 62.

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fosse logo batizado tendo em caso de falecimento a alma salva” (MARCILIO, 1998, p.

60). Nesses casos excepcionais, onde pairava a dúvida acerca se a criança havia ou não

sido batizada o padre recorria ao batismo condicional.

Entre as razões que contribuíram para os abandonos conjectura-se que algumas

delas eram oriundas de famílias que haviam constituído tratos legítimos, mas que

naquele momento não dispunham de condições financeiras para criá-las, mas pode-se

imaginar ainda que pudessem ser resultantes de tratos sem o reconhecimento

eclesiástico, nesses casos “abandonar os pequerruchos [...] poderia salvar a honra da

mulher, principalmente se ela fizer parte de uma família abastada” (SILVA, 2012, p.

77). Outro elemento que ia além da moral compartilhada estava atrelado aos interesses

econômicos de “manter a herança dentro da legalidade” (FARIA, 1998, p. 71). Havia

ainda outra situação que envolvia esses “filhos de ninguém” (MARCÍLIO, 1998, p. 103)

a chamada falsa exposição, pois os recém nascidos eram “colocados à porta de parentes

ou compadres daquela que os dera à luz. A mãe salvaguardava assim sua honra e ao

mesmo tempo conhecia o destino da criança, pronta a legitimá-la quando a ocasião fosse

para isso propicia” (SILVA, 1993, p. 85). Não dispomos de informações quanto ao

destino dessas crianças, para quem foram entregues, se contaram com algum tipo de

auxílio de parte da câmara conforme a legislação determinava e até mesmo se

conseguiram sobreviver21

.

Outra faceta encetada pelos assentos prendesse ao aumento significativo do

número de neófitos tendo como genitores pais “unidos só civilmente”. Em termos

percentuais eles representaram 22,39% dos registros feitos entre 1892 a 1912. No que

diz respeito a essas crianças a Revista Semana Religiosa se referiu a eles da seguinte

maneira:

A igreja considerara ilegítimos os filhos que nascem d’esses casamentos

puramente civis, e Deus condenará ao inferno seus pais concubinários, se não

se arrependerem com tempo, e se não se separarem e não contrahirem

21

Explicitando melhor essas questões as câmaras deveriam dispor de uma parte de seu orçamento para

atender a infância desvalida contratando, quando possível, mulheres que assumiam a tarefa de criar os

enjeitados. Essas personagens ficaram conhecidas como criadeiras e deveriam ficar com a criança até os

sete anos (VENÂNCIO, 2002). A seleção dessas mulheres, em muitos casos dava-se pelo “potencial

lactífero”, ou seja, “uma mulher que estava amamentando” (PAULA, 2009, p. 141). No que tange a

sobrevivência “a História do abandono é uma história da morte [...] durante os séculos XVIII e XIX, as

crianças abandonadas conviveram com os mais elevados índices de mortalidade infantil registrados na

sociedade brasileira” (VENÂNCIO, 1999, p. 99).

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matrimonio na presença do parocho e de duas testemunhas. ... O contrato

civil que se faz só na presença do funcionário publico, ainda que esteja

cercado de todos os moradores da parochia, se faltar parocho, é nullo perante

Deus e a Igreja (apud CANCELA, 2011, p. 155).

O discurso presente na Revista publicada na capital do estado do Pará na

verdade fazia parte das orientações repassadas pela Igreja Católica para as diferentes

paróquias do país. Contudo parece que as ameaças de “arder nas labaredas do fogo do

inferno” não surtiram muito efeito, pois em visita pastoral a São Vicente no ano de 1908

o bispo diocesano constatou uma realidade que ele classificou como lamentável, pois “o

povo ainda tem fé, mas desconhece a natureza, valor e necessidade dos sacramentos,

não sendo assim para admirar que se constituem quase todos, com o casamento civil e

que as familias se constituam sem a graça e a benção de Deus”22

.

Corria o mês de novembro do ano de 1912 quando após alguns meses de enfermidade

ocorreu o fenecimento de Boaventura. O inventário dele atingiu o montante partível de

54:825$375 réis (£ 3.700,71). Desse total cinco contos de réis foram repassados para seus

herdeiros de sangue, Maria, Fellipa e Gabriel, condicionado a pedidos de missas que

deveriam ser celebradas por ocasião do aniversário de morte do religioso. O restante dos

bens foram deixados para Pedro, Fulgencio e Julia. A eles foi dada a incumbência de

todos os anos, quando por ocasião do aniversário de nascimento do vigário, mandarem

rezar missas em intenção de seu benfeitor. A maior parte do patrimônio foi representada

pelos bens de raiz (50,31%) onde constavam três casas, uma delas localizada na sede do

povoado e as outras duas situadas no interior do município, sendo que a localizada junto a Rua

20 de Setembro ficou em poder de Maria dos Santos Figueiredo, conforme visto uma das

vontades testadas do pároco, as outras duas couberam aos herdeiros Pedro e Fulgencio que já

eram moradores nelas. Cabe dizer que por parte de seus parentes legítimos não houve qualquer

tipo de contestação em relação à forma como os bens foram repartidos.

Considerações finais

Ao ser interpelado pelo promotor público em maio de 1913, acerca da referida

missiva que fazia parte do testamento do vigário, o advogado Antonio de Vasconcelos,

que desempenhou o papel de testamenteiro e inventariante do falecido Boaventura

22

AASM, Livro de casamentos... op. cit.

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Garcia, respondeu que a carta de consciência que seu amigo havia deixado, na qual fazia

disposições em segredo, não tinha razão de vir a público, deveria ser liquidada com a

vida do falecido. Tendo em vista que se tratava de coisa antiga e que todas as suas

vontades haviam sido cumpridas. Qual era o segredo de Boaventura? Nunca saberemos.

Assim como não podemos ir muito além do campo hipotético para configurar o amor

sacrílego entre a serventa e o pároco que a havia aberto a porta de sua casa para ela e

sua prole. As especulações passam pelo fato de que os três filhos de Maria ao atingirem

a vida adulta incorporaram o sobrenome do religioso, talvez como uma forma de

gratidão. E talvez seja essa mesma palavra que explique o fato dele tê-los convertido em

seus principais herdeiros.

Mas nem só de disposições secretas e mistérios ficou marcada a vida do

religioso, pois no decorrer do período analisado o religioso remiu do pecado original

6.527 rebentos sendo que mais de 50% figuraram como “degradamos filhos das Evas”.

Entre eles os neófitos citados na condição de naturais alcançaram os maiores índices,

seguidos por aqueles descritos como filhos de pais que haviam se unidos pelo contrato

civil. Todavia não nos furtamos de trazer a cena os números pouco expressivos ligados

a batizandos de pais incógnitos, adulterinos e a crianças expostas junto à casa de

moradia do religioso localizada ao lado da igreja matriz.

Por fim não deixamos de mencionar o lado “capitalista” do vigário,

apresentando uma sequência de negócios por ele engendrada que lhe possibilitou

amealhar um patrimônio mediano que foi dividido conforme suas vontades testadas e

legadas entre seus herdeiros, tanto entre seus irmãos de sangue quanto entre aqueles que

ao longo de suas andanças se constituíram na sua “outra família”.

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