APOSTILA Antropologia Escolástica

45
TRANSCRIÇÃO 1 DA AULA DO PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO FEITA NO DIA 25 DE MARÇO DE 2006. INTRODUÇÃO METODOLÓGICA “Professor: Hoje é 25 de março de 2006. Estamos aqui no apartamento do Gilberto Zancopé. Então é a primeira reunião e nós vamos delinear o que vamos fazer. Eu conversei com o Gilberto e o Ricardo. Eles sentiam uma lacuna depois da viagem do meu pai para os Estados Unidos. Eles se encontravam regularmente e discutiam uma variedade de assuntos. Eu iria ou esclarecer aqueles assuntos pessoalmente ou indicar alguma bibliografia, a qual vocês leriam e discutiriam comigo. Então a idéia seria fazer alguma coisa para compensar, pelo menos em parte, esta ausência. Eu perguntei a eles qual seria o tema de interesse do pessoal. E surgiram vários temas: um pouco de teoria política, um pouco de análise da situação política atual, um pouco de ética, religiões comparadas, etc. A diversidade dos temas não permite que eu faça um curso formal sobre algum assunto e desenvolva algo do começo ao fim. Certo? O que a gente pode fazer é tentar colocar todos estes temas dentro de um núcleo central. Este núcleo central, a gente pode desenvolver de modo mais ou menos sistemático e os outros esquemas, o que mais vocês quiserem saber ou lhe interessarem, vocês vão levantando e colocando-os aqui e a gente abre e desenvolve aquele tema se ele atrair a atenção de todos; esquece o tema que estava desenvolvendo antes e trata daquilo. Certo? E outros temas, a gente vai seguindo; a gente sugere: “isso aí, a gente vai ver depois” ou agente passa um filme ou um livro e depois a gente estuda aquele assunto. Está claro isso aí? Não é possível desenvolver temas tão vastos, amplamente e de modo sistemático, ok? Mas a gente tem um pézinho na última aula de ética que meu pai deu na PUC, antes de viajar. Nesta aula, ele se propôs unir a origem humana das preocupações éticas. Ele fala: “toda atividade humana é dominada pela idéia de um 1 Transcrição e títulos feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em abril de 2006. Versão não revista pelo autor da aula. 1

Transcript of APOSTILA Antropologia Escolástica

  • TRANSCRIO1 DA AULA DO PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE

    CARVALHO NETO FEITA NO DIA 25 DE MARO DE 2006.

    INTRODUO METODOLGICA

    Professor: Hoje 25 de maro de 2006. Estamos aqui no apartamento do

    Gilberto Zancop. Ento a primeira reunio e ns vamos delinear o que vamos

    fazer. Eu conversei com o Gilberto e o Ricardo. Eles sentiam uma lacuna depois da

    viagem do meu pai para os Estados Unidos. Eles se encontravam regularmente e

    discutiam uma variedade de assuntos. Eu iria ou esclarecer aqueles assuntos

    pessoalmente ou indicar alguma bibliografia, a qual vocs leriam e discutiriam

    comigo. Ento a idia seria fazer alguma coisa para compensar, pelo menos em

    parte, esta ausncia. Eu perguntei a eles qual seria o tema de interesse do pessoal. E

    surgiram vrios temas: um pouco de teoria poltica, um pouco de anlise da situao

    poltica atual, um pouco de tica, religies comparadas, etc. A diversidade dos temas

    no permite que eu faa um curso formal sobre algum assunto e desenvolva algo do

    comeo ao fim. Certo? O que a gente pode fazer tentar colocar todos estes temas

    dentro de um ncleo central. Este ncleo central, a gente pode desenvolver de modo

    mais ou menos sistemtico e os outros esquemas, o que mais vocs quiserem saber

    ou lhe interessarem, vocs vo levantando e colocando-os aqui e a gente abre e

    desenvolve aquele tema se ele atrair a ateno de todos; esquece o tema que estava

    desenvolvendo antes e trata daquilo. Certo? E outros temas, a gente vai seguindo; a

    gente sugere: isso a, a gente vai ver depois ou agente passa um filme ou um livro

    e depois a gente estuda aquele assunto. Est claro isso a?

    No possvel desenvolver temas to vastos, amplamente e de modo

    sistemtico, ok? Mas a gente tem um pzinho na ltima aula de tica que meu pai

    deu na PUC, antes de viajar. Nesta aula, ele se props unir a origem humana das

    preocupaes ticas. Ele fala: toda atividade humana dominada pela idia de um 1 Transcrio e ttulos feitos por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas em abril de 2006. Verso no revista pelo autor da aula.

    1

  • melhor. Tudo que voc faz, voc faz porque achou melhor fazer daquele jeito do

    que fazer de outro. Cada um de ns est sentado aqui e agora, por que acha que isso

    melhor do que alguma outra coisa que ele poderia estar fazendo nesse mesmo

    momento. Quer dizer, como essa idia do melhor a raz da atividade humana, essa

    idia est presente em todas as cincias humanas. Portanto, se voc quer entender

    tica, voc tem que entender essa idia do melhor; se voc quer entender poltica,

    voc precisa entender essa idia do melhor; se voc quer entender religio, voc

    precisa entender essa idia do melhor. Essa poderia ser uma maneira da gente

    comear. Por que uma ao humana melhor do que outra?

    [Dois alunos perguntam sobre essa delimitao do assunto feita pelo

    professor.]

    A CONCEPO ANTROPOLGICA DOS ESCOLSTICOS

    E depois a gente passa para outros assuntos. Para a gente entender essa

    idia do melhor, a gente primeiro precisa entender a idia de ser humano, que est

    necessariamente contido nessa idia do melhor. A gente precisa ter uma idia da

    estrutura que antecede a ao humana e que possibilita essa existenciao humana.

    Est claro isso a?

    Esse assunto foi muito desenvolvido na Idade Mdia europia. Os

    escolsticos dedicaram vrios tratados a esse tema. Ento, a primeira coisa que a

    gente vai dizer isso: o que um ser humano? O que diferencia o ser humano das

    outras coisas que no so humanas? Est claro isso a? Ento a gente vai usar um

    mtodo que eu sempre uso em grupos pequenos: eu pergunto o que um ser humano

    e vocs comearo a listar notas acerca do ser humano. As notas so as primeiras

    coisas que a gente precisa para formular um conceito. Para captar o ser humano, a

    gente vai comear a notar o que a gente repara no ser humano. Est claro isso a?

    COLETANDO NOTAS SOBRE O SER HUMANO

    2

  • A idia destas reunies que a gente siga nelas um mtodo que habitue

    cada uma dos que esto aqui atividade da pesquisa autnoma; que crie em cada um

    de vocs hbitos que facilitem o hbito da pesquisa de qualquer assunto, que

    facilitem o hbito da arte dialtica. Ento, o mtodo usado aqui ser usado para que

    estes hbitos acabem ficando em vocs. Est claro isso a? Ento, vamos l: o que

    vocs notam no ser humano?

    Aluno: Racional.

    Aluno: Livre arbtrio.

    Professor: O que mais?

    Aluno: Histria.

    Professor: Histria; o que significa histria quando combinado idia de

    indivduo humano?

    Aluno: Ele histrico porque o nico dos animais que vive em uma

    ordem cultural.

    Professor: Cultural, exatamente; isto , o ser humano pode cultivar em si

    habilidades que no lhe so inatas. Os animais no. Toda gerao de lees vai se

    comportar mais ou menos como a gerao anterior.

    Aluno: A conscincia da prpria morte, professor?

    Professor: A conscincia da prpria morte! Quer dizer que o ser humano

    capaz de perceber que em certo momento o mundo no estar diante dele e ele no

    estar mais diante do mundo.

    Aluno: Capacidade de transcendncia.

    Aluno: Linguagem.

    Professor: Que mais? Olha s, esse um lado do ser humano, mas esse

    s um lado do ser humano. De fato, um lado que o diferencia dos animais. Mas

    isso s metade do que ser humano. Quase todas essas notas que vocs disseram

    so aplicadas aos anjos. O nico trao a que o anjo no tem cultura, porque o anjo

    no morre. No h uma gerao de anjos anterior a ele qual ele tenha que recuar.

    3

  • Ento, a cultura deriva por um lado da espiritualidade, mas, por outro, justamente da

    animalidade, de onde deriva da mortalidade. Est claro isso a? Essas notas so

    suficientes para definir o que o ser humano?

    Aluno: Tambm precisa da parte animal da orgnica e bioqumica.

    OS LIMITES ONTOLGICOS DADOS PELA DEFINIO

    Professor: Definir significa delimitar uma idia de modo que a gente saiba

    que o que est dentro daquele limite pertence quela idia. Certo? Ento, por

    exemplo, quando eu digo racional. A palavra racional tem uma inteno

    significativa que define um limite. Existem coisas racionais e coisas que no so

    racionais. Mas nesse limite no existe s o ser humano. Isso no o suficiente para

    definir ser humano. Existe uma definio clssica do que o ser humano, que ns

    podemos admitir: o ser humano o animal racional. O homem o animal

    racional. O que significa dizer que o homem o animal racional? Isto significa que

    ele vive no mundo a partir da sua estrutura animal. Ele capaz de entender o mundo

    a partir da sua estrutura animal. Quando o ser humano comea a vida, ele

    minimamente racional. No isso? Voc no tem a plenitude da racionalidade em

    um beb recm-nascido. E voc no tem a plenitude da racionalidade em muitos

    adultos tambm.

    COLETANDO NOTAS SOBRE A ANIMALIDADE

    Ento vamos comear a entender. Para entender o que o ser humano, voc

    percebe que a racionalidade aparece no ser humano no meio da sua animalidade,

    aparece durante o processo da sua animalidade; ela no aparece antes de voc

    nascer, nem depois. Ela aparece durante a sua existncia biolgica. A realidade

    que ela aparece durante esse processo. Ento, primeiro a gente tem que entender

    justamente a animalidade, em que consiste a animalidade. Ento, vamos mudar o

    4

  • nosso foco para o que um animal. O que voc nota em um animal que voc no

    nota em nada mais?

    [Alunos apresentam algumas notas dos animais.]

    Professor: Ele [o animal] tem instinto de sobrevivncia, ele tem desejo

    de preservar um negocio. H uma coisa que lhe agradvel e que ele tem desejo de

    preservar. algo a que ele est inclinado a preservar, de uma forma diferente dos

    vegetais e dos minerais. Os vegetais no operam por desejo, mas os animais operam.

    Mas para que haja desejo preciso que haja uma outra coisa. O animal pode desejar

    algo que ele nunca percebeu, que ele nem sabe que existe?

    Aluno: No.

    Professor: Ento, eles nem podem desejar algo que eles no sabem que

    existe. antes que ele deseje preciso uma outra coisa. Antes de desejar alguma

    coisa, eles tm que perceber o objeto de desejo. No isso? Se ele no perceber o

    objeto de desejo, no h desejo nenhum. Sem percepo no h objeto de desejo. Ele

    deseja o qu? Est claro isso a? Como ele percebe o objeto de desejo? Em primeiro

    lugar, pelos sentidos. Todo e qualquer animal tm alguma espcie de sentido,

    sentido corporal. Todo animal capaz de alguma sensao. Est claro isso a?

    OS SENTIDOS SENSORIAIS

    Ento vamos analisar os sentidos de que so capazes os animais da nossa

    espcie. A gente capta o mundo corpreo por diversos sentidos. Ento, vamos l.

    Vocs que listam. Vocs que me dizem como que a gente capta o mundo

    corpreo. Quais so os sentidos?

    Aluno: Viso, tato, olfato, paladar, audio.

    Professor: Cinco sentidos. Agora, veja bem, o que que a viso capta? A

    viso capta o amargo? alguma coisa do mundo exterior. O amargo tambm algo

    do mundo exterior, mas que no captado pela viso.

    Aluno: Cores, formas, ...

    5

  • O RGO DO SENTIDO COMUM NO O CREBRO

    Professor: Exatamente: cores, formas e o movimento. No isso? A viso

    capaz de nos informar que existe entre o verde e o vermelho. preciso algum

    outro sentido para captar a diferena entre o verde e o vermelho? Precisa de

    paladar? No precisa. A audio pode, por exemplo, nos informar a diferena entre o

    agudo e o grave, mas tambm dos movimentos, da sucesso. O paladar pode, por

    exemplo, nos informar, por exemplo,a diferena entre o amargo e o doce. Mas qual

    o sentido que nos informa a diferena entre, por exemplo, o verde e o amargo?

    Aluno: O paladar.

    Professor: o paladar? Mas como o paladar sabe que existe verde? O

    paladar no capta verde. Ele no percebe o verde. Assim como h sentidos

    particulares, preciso que haja outro sentido que capaz de todos os objetos dos

    sentidos. Ento essa a primeira potncia ou faculdade psquica listada pelos

    escolsticos: o sentido comum. Alm dos cinco sentidos particulares, tambm h o

    sentido comum. E todos os animais so dotados do sentido comum, que permite a

    comparao entre o objetos de um sentido e os objetos de outro sentidos. Vamos

    deixar um pouquinho mais claro isso da. Vamos l! Voc capta o verde e o

    vermelho por meio da viso. Existe um rgo, os olhos. Mas os olhos no captam o

    amargo. Quem capta o amargo a lngua. Quem capta o agudo o ouvido E assim

    por diante. Se o olho no serve para, vamos dizer, ouvir o agudo ou captar o amargo,

    voc deve ter uma outra potncia que no est localizada na viso, mas que capte

    tambm o objeto da viso e os objetos dos outros rgos. Essa potncia no se

    localiza em nenhum dos rgos dos sentidos particulares. Ou ela est em alguma

    outra parte do corpo e ela tem um instrumento em alguma parte do corpo ou ela est

    presente simultaneamente em todos os rgos. No isso?

    Aluno: uma coordenao geral.

    Professor: Exatamente! Ela faz uma coordenao geral. Todos aqui sabem

    6

  • a diferena entre o doce e o azul. Ningum nunca aqui confundiu o doce com o azul,

    acho que ningum aqui faz essa confuso. Certo? Ento preciso ter uma potncia

    que compare o que percebido pelos olhos e pela lngua. No pode ser nem o olho,

    nem a lngua. Est claro isso a? Ento, isso levanta o seguinte problema sobre a

    vida animal. Esse rgo que capta os objetos dos diversos sentidos particulares, ele

    corporal ou espiritual? Ele uma outra parte do corpo, como, por exemplo, o

    crebro ou o corao ou o pulmo, ou ele uma coisa no-corpora que est

    presente nos diversos rgos? Est claro esse problema? Ento como que se

    resolve esse problema?

    Hoje em dia comum a gente pensar e,. inclusive na Idade Mdia se

    levantou esta hiptese, que o rgo do sentido comum o crebro. Por qu? Porque

    parece existir ligaes entre ele e todos os rgos dos sentidos. No isso? Existe

    ligao entre ele e os olhos, entre ele e os ouvidos, entre ele e a lngua, entre ele e a

    pele, certo? No isso? Mas tem um problema. Essa hiptese do crebro como

    rgo do sentido comum tem um problema, que : o objeto prprio de cada um dos

    sentidos nunca chega ao crebro. Ento, por exemplo: qual a cor da lajota do piso?

    Aluno: Bege.

    Professor: Todo mundo concorda que bege? Deve ter um nome para essa

    nuance especfica, mas, de um modo geral, a gente pode encaixar no bege. Vamos

    dar para ela o nome de bege, certo? A nossa hiptese que uma luz bateu a e que

    uma parte dessa luz refletiu para os nosso olhos, certo? Essa luz refletida que a

    cor do piso. Est claro isso a? Essa luz nos olhos causou um determinado estmulo

    de outra natureza na ligao entre os olhos e o crebro. E a gente diz: a sensao de

    bege vem dessa sensao no crebro. Essa hiptese implica em uma troca: o bege

    que antes a gente pensava como uma propriedade da lajota virou uma propriedade

    do crebro, porque a luz que refletiu no piso no chega at o crebro. Chega uma

    outra coisa. Essa outra coisa significa as propriedades estabelecidas na lajota. Agora,

    como eu sei que ela significa as propriedades da lajota? Como eu posso saber que

    uma coisa significa outra? Comparao: para dizer uma coisa significa outra

    7

  • preciso ter alguma experincia do signo e alguma experincia do significado. Est

    claro isso a? Se eu no tiver a experincia dos dois, no d pra dizer que o signo

    significa o significado. Agora, se o crebro que o rgo do sentido comum, eu

    nunca recebi o significado; eu s recebi o signo. Ento eu no posso dizer, com essa

    percepo, essa modificao do crebro, eu no posso dizer nada acerca da lajota.

    No a lajota que bege, bege uma qualidade do meu crebro. Veja, a palavra

    bege, a, sofreu uma mutao de significado. Antes ela significava uma propriedade

    da luz que existia na lajota, agora ela significa outra coisa completamente diferente.

    Agora, ela no significa luz, mas, sei l, um impulso eletroqumico.

    Agora, vamos l. Essa teoria tem um outro problema. Ela contrrio

    linguagem como teoria dos sinais. Se eu perguntar: o que bege? A lajota ou

    crebro? A lajota! Para saber a cor do crebro, no d para olhar a lajota. Tem que

    abrir o crnio do sujeito e olhar l. Est claro isso a?

    Esse problema vai impr a primeira tomada de deciso dos escolsticos. O

    que o escolstico vai dizer o seguinte: que quando voc olha a cor da lajota, voc

    imediatamente intui que esse um modo de ser da lajota e no do seu crebro. E

    por isso que bege significa uma cor do objeto e no uma modificao eletroqumica.

    Claro que vocs intuem isso imediatamente. O que essa intuio? Isso a gente vai

    discutir adiante. Mas o importante vocs perceberem que bege se refere ao ser da

    lajota, no ao crebro. Se bege se refere ao ser da lajota, o crebro no pode ser o

    rgo do sentido comum. Porque o crebro nunca capta um sinal direto da lajota, ele

    capta um sinal de um sinal, o signo do signo. Como ele no capta o signo primeiro,

    ele no tem referncia comparativa. Est claro isso a? Isso quer mais ou menos o

    seguinte. Vamos supor que do outro lado h uma sala mais ou menos igual a essa. E,

    nesta outra sala, eu comeo a dar essa aula. E voc esto aqui. Vocs esto vendo a

    aula? No esto. Suponha que eu estivesse dando essa aula em uma lngua

    completamente desconhecida para vocs. Suponha que tivesse uma mquina que

    ligasse essa sala com a outra. E cada vez que eu fale uma palavra l, a mquina faa

    um outro sinal aqui. Ela no fala a mesma palavra. Ela d um outro sinal. Ela faz, sei

    8

  • l, por exemplo, um conjunto de luzes, algo incoerente. Quanto tempo demoraria

    para vocs descobrirem o que estou falando l?

    Aluno: Mil anos!

    [risos]

    Professor: Provavelmente! A verdade que nunca descobriria. Porque para

    descobrir, seria preciso verificar. Teramos que analisar o que essa mquina est

    fazendo aqui durante anos e anos. Se no tiver nenhum sinal direto do que est

    acontecendo na outra sala, eu no teria nunca como traduzir.

    Aluno: Falta a mediao do signo!

    Professor: Exatamente! Quer dizer, se h um conjunto de significados aqui,

    eu precisaria ter pelo menos um sinal captado, no mnimo um. Suponha, ento, que

    voc tivesse uma das palavras usadas l e soubesse o significado dela; para que voc

    pudesse descobrir que a um dos sinais dessa mquina corresponde a palavra ser. Isso

    facilitaria o trabalho imensamente. Suponha que para cada sinal, voc tivesse j o

    significado. Voc aprenderia aquela lngua muito mais rpido. D para perceber por

    que o crebro no pode ser o rgo do sentido comum? Ele no pode ser o rgo do

    sentido comum porque ele s capta sinais e nunca o significado; ele no sabe a que

    se refere os sinais. Voc no teria nem como saber que esses sinais significam

    alguma outra coisa porque voc no captaria sequer a existncia desse significado.

    Se for s pelo crebro que se percebe o mundo exterior, voc no capta nem mesmo

    a existncia dele. Voc nem saberia que existe esse referencial ou alguma coisa a

    que esse sinal se refere.

    Ento a primeira concluso dos escolsticos sobre a vida animal que a

    vida animal uma modalidade de vida espiritual. E o que significa espiritual? At

    agora significa simplesmente o seguinte: espiritual um tipo de realidade que

    implica um modo de ser que pode estar no mesmo lugar que outro corpo. Veja bem,

    um corpo no pode estar no mesmo lugar que outro. Mas um esprito pode estar no

    mesmo lugar que um outro. Isso significa que o rgo do sentido comum

    espiritual. E porque ele est presente no mesmo lugar que os rgos dos sentidos

    9

  • particulares, ele pode captar os mesmos objetos. Est claro isso a? Desde que tenha

    a mediao do crebro, desde que o crebro tenha algum papel instrumental. Ele

    pode ter algum papel instrumental. E os rgos dos sentidos particulares

    evidentemente tambm tem algum papel instrumental. Mas esse papel s pode ser

    instrumental, se no voc no sabe que a cor da lajota. Voc imediatamente diria:

    crebro uma modalidade do meu ser. Est claro isso a?

    [Aluno pergunta sobre esse processo.]

    Professor: As etapas desse processo so simples. A gente sabe que a luz

    afeta algumas partes do corpo de maneira particular. E existem algumas partes do

    corpo que no so capazes de serem afetadas pela luz do mesmo jeito. Isso a gente

    sabe. Certo? E o eixo que move a capacidade do olho o instrumento da viso. Isso

    a gente tambm sabe porque uma pessoa sem olhos no v. O olho seria suficiente

    pra gente comparar a diferena entre verde e azul ou verde e vermelho porque ele

    afetado tanto pelo verde como pelo vermelho. Certo? Mas ele nunca vai sentir o

    amargo. Ento, eu, como indivduo, sinto tanto o amargo como o verde. Est claro

    isso a? Ento, o eu que percebe ou uma outra parte do corpo que percebe as duas

    coisas percebidas no olho e na lngua, ou uma parte incorprea que est presente

    no olho e na lngua. Est claro isso a?

    O PRECONCEITO ANTI-INTUITIVO NA CINCIA MODERNA

    Aluno: Esse problema foi colocado por quem?

    Professor: Esse problema foi abandonado do sculo XIV at a renovao

    da biologia no sculo XIX. O que acontece? Quando houve um novo impulso de

    investigao biolgica, ele foi motivado pelo sucesso da fsica newtoniana. Ento

    voc tinha um mtodo de investigao completamente diferente desse. Ento, uma

    hora a gente passa para esse esquema: como esses problemas da sensao e da

    percepo foram tratados depois? Por que eles no caram no subjetivismo?

    Aluno: Foi uma deduo lgica?

    10

  • Professor: No, a deduo lgica que o seu referencial primeiro se refere

    ou indica a lajota e no o crebro. Se a gente nunca viu um crebro e algum

    pergunta qual a cor dele, a gente responde: no sei, no tenho a menor idia. Ah,

    que cor a lajota? A lajota bege, no eu.

    Aluno: Foi uma questo de metodologia?

    Professor: Para voc dizer que o sentido comum o crebro ou est l no

    crebro, a voc faz uma interpretao. Certo? Tambm uma interpretao da

    lajota, porque a lajota tambm aparece pra voc. O fato que eu no capto essa

    modificao cerebral.

    Aluno: uma construo mental.

    Professor: Voc percebe os impulsos eletroqumicos que acontecem na sua

    mente?

    Aluno: No.

    Professor: Exatamente! Mas a cor da lajota voc capta, o sabor do caf voc

    capta. Esses que so objetos de percepo mesmo. Os objetos de percepo so

    propriedades das outras coisas, no suas. O amargo uma propriedade do caf. O

    doce uma propriedade do acar. O bege uma propriedade da lajota e assim por

    diante. Certo? O que acontece? O que acontece que os escolsticos no tinham

    nenhum preconceito anti-intuicionista.

    Aluno: E a que est a chave!.

    Professor: a que est a chave! Voc capta isso intuitivamente. Quando

    voc percebe a cor da lajota, imediatamente voc intui que isso um modo de ser da

    lajota. Isso uma caracterstica dela. Voc no precisa provar isso. Ningum precisa

    provar isso pra voc. Isso evidente.

    Aluno: Isso um preconceito contra a capacidade humana!

    Professor: Exatamente, contra a intuio! O que aconteceu que a cincia

    biolgica, depois do sucesso da fsica newtoniana, tinha uma srie de preconceito

    anti-intuicionistas: no basta que voc tenha a intuio, preciso que voc

    demonstre que bege uma propriedade da lajota. Kant ficou tentando provar isso

    11

  • durante anos e no conseguiu. Como ele no conseguiu provar por demonstrao,

    ele concluiu: a verdade que voc no sabe se o bege a cor da lajota ou no.

    Aluno: Mas ele que no sabe.

    Professor: , pois , ele no sabia. Mas isso um mero preconceito. Se

    voc acha que pode estabelecer que agora s existe conhecimento por demonstrao,

    voc no tem como saber se a cor da lajota ou da sua cabea, ou de qualquer outra

    coisa .

    Aluno: Ele j diminuiu a realidade.

    Professor: O sujeito se mutilou! uma automutilao! Se tem alguma

    coisa que o sujeito sabia desde a mais tenra infncia que bege a cor da lajota.

    Ele sempre soube disso. E aquilo que todo mundo sabe no exige prova. No isso?

    Est claro isso a? Ento o seguinte, Aristteles dizia: quem tem preconceito contra

    a intuio no precisa de educao, precisa de punio. Ento se o sujeito no sabe

    se alguma propriedade da lajota ou da mente dele, ele falou, voc faz o seguinte:

    voc prende o sujeito em uma gaiola e coloca um prato de comida l. Deixe-o dois

    dias sem comer e coloca a comida l. Depois diz: no coma, porque isso apenas

    uma propriedade da sua mente. Isso que voc est vendo no comida; no tem um

    prato de comida a, s tem um impulso eletroqumico do seu crebro. No d pra

    voc instruir um sujeito que no admite aquilo que ele percebe.

    Aluno: No tem a base, no se sustenta.

    Professor: No tem como, porque a instruo se refere quilo que no

    evidente.

    Aluno: No tem como comear sem base.

    Professor: Est entendendo? Voc s pode ensinar aquilo que o sujeito no

    sabe.

    Aluno: O sujeito que no admite que sabe o que sabe j bagunou o coreto,

    n?

    Professor: , j bagunou todo o coreto! No d pra ensinar nada!

    12

  • Aluno: Mas veja s: foram 500 anos ou 300 anos dos caras fingindo que

    no sabem o que sabem .

    [Outro aluno fez um comentrio confirmando a idia]

    Professor: A intuio sensvel no exige prova para o sujeito. Porque

    mesmo o sujeito que acha que s um impulso eletroqumico, ele vai agir como se

    no fosse. Por exemplo: no, as propriedades nutritivas dos alimentos tambm so

    s um impulso eletromagntico. um conceito que no nada mais do que um

    impulso eletroqumico do crebro, mas ele vai comer a comida, como se essa

    propriedade nutritiva estivesse na comida, no alimento, e no no crebro dele.

    Ningum pode se comportar como se no tivesse intuio sensvel. Voc pode falar

    que no tem. Est claro isso a? Esse sujeito precisa de punio, no de instruo.

    Voc precisa coloc-lo em uma situao tal que voc mostre para ele: na verdade,

    voc tem a mesma intuio; a intuio tem a mesma evidncia pra voc que tem

    para mim, mas voc s no admite. Mas todo o seu comportamento moldado pela

    evidncia da intuio. Est claro isso a? Ento, a primeira coisa que a gente no vai

    cometer por aqui justamente o preconceito anti-intuio.

    Aluno: A intuio percebe a existncia da coisa?

    Professor: Eu ainda estou clareando o que a idia de intuio. A nica

    pista que a gente tem que a intuio lhe diz que o objeto existe. Ela lhe diz o bege

    ou a cor uma propriedade do objeto e no do sujeito. Certo? A cor est na lajota e

    no no meu crebro. No uma propriedade do meu corpo; uma propriedade do

    corpo da lajota. Est claro isso a?

    Mais adiante, quando a gente avanar para as outras potncias, a gente vai

    perceber que essa intuio o primeiro ato da inteligncia. Certo? Porque ele uma

    captao do ser da lajota. O que ser lajota? No caso, ser lajota ser bege pra mim;

    algo que est na estrutura do ser dela. Est claro isso a? Quer dizer, toda e

    qualquer outra operao intelectual tem como base essa operao.

    A IMAGINAO MEMORATIVA E A FANTASIA

    13

  • Bom, o que mais o animal faz alm de perceber? Bom, alm de perceber os

    objetos, alm do sentido comum, ele capaz de reter as imagens do sentido na

    mente durante algum tempo. No isso? Qualquer um de ns pode fechar os olhos

    agora e lembrar, criar uma imagem mental semelhante em algo ao que est vendo

    aqui. No isso? Evidentemente essa potncia depende da percepo sensvel e do

    sentido comum. Sem uma imagem para reter, voc no vai reter nada. Est claro isso

    a? E, alm de reter a imagem, voc pode fazer outra coisa ainda. Voc pode

    combinar as imagens de modo a produzir uma outra imagem no percebida pelos

    sentidos. No isso?

    Aluno: Inventada?

    Professor: Inventada! Ento eu posso olhar essas pessoas aqui e lembrar da

    praia em que eu fui no ano passado e, ento, colocar essas pessoas na praia. Posso?

    Essa operao tambm depende do sentido comum. Certo? Da minha capacidade do

    sentido comum e da minha capacidade de reter imagens. Se eu no pudesse lembrar

    da imagem que eu vi na praia, eu no poderia combin-la com essa imagem que

    estou vendo agora. So trs operaes distintas da mesma potncia. O senso comum

    tem trs operaes.

    (a) Primeiro, a operao da percepo sensvel;

    (b) Segundo, a operao da imaginao memorativa;

    (c) Terceiro, a operao da imaginao combinatria ou fantasia.

    A POTNCIA ESTIMATIVA

    Est claro isso a? Ento vamos pular para a segunda potncia. Essa j no

    uma operao da potncia do senso comum, mas j uma potncia especfica

    mesmo. Por exemplo: quando voc v um cachorro, voc pode antecipar que o

    cachorro quer lhe morder ou quer lhe lamber. Todo mundo capaz de fazer uma

    certa avaliao da inteno do cachorro. No isso? Se voc v um objeto apoiado

    14

  • bem na beiradinha da mesa, voc pode perceber a possibilidade de cair ou que ele

    est prestes a cair; mais um mnimo estmulo e ele cai. No isso? Voc no pode

    estar percebendo isso com o sentido comum porque isso ainda no aconteceu.

    Aluno: Porque voc ainda no viu.

    Professor: Exatamente. No pela viso. antes da viso. Certo? Quando o

    objeto cair, bom, agora pelo senso comum. Est claro isso a?

    Mais ainda, voc pode fazer essa previso antes de ver o objeto pela

    primeira vez. Voc pode perceber a inteno de um cachorro antes de ser mordido

    por ele pela primeira vez e antes de ver algum ser mordido por um cachorro.

    Como? Quer dizer, voc percebeu uma possibilidade no cachorro, uma possibilidade

    de relao entre um cachorro e um objeto. E voc percebeu que existe no cachorro

    uma tenso em direo daquela possibilidade, que destaca aquela possibilidade em

    relao a outras que ficam virtualizadas. Est claro isso a? Isso uma propriedade

    tambm comum a todos os animais. Por exemplo: um passarinho, quando ele v um

    graveto, ele v no graveto uma tenso para ser aquele componente do ninho. Mesmo

    que ele nunca tenha visto aquele graveto como componente do ninho, ele capaz de

    perceber esta tenso. A ele pega o graveto e pe no ninho. Est claro isso a? A

    ovelha, quando v o lobo, ela percebe a tenso do lobo numa direo hostil a ela.

    Antes do lobo fazer qualquer coisa, ela sai correndo.

    Est claro isso a? Quer dizer, os animais so capazes de perceber relaes

    particulares entre as possibilidades de dois entes, de dois objetos, de perceber como

    os objetos tendem a se relacionar. Est claro isso a? Ento, esta potncia se chama

    estimativa. D pra ver que ela completamente distinta do sentido comum porque

    ela capta possibilidades. um grau anterior. Ela tambm diferente da fantasia

    combinatria. Quando voc fantasia ou combina duas imagens voc no sente

    necessariamente uma tenso para que se realize. Voc pode at combinar imagens

    de uma maneira impossvel. No isso?

    Aluno: Como algo impossvel?

    15

  • Professor: [confirma]. Certo? No uma percepo de possibilidades da

    coisa. Por exemplo: voc pode se imaginar mergulhado no mar e voc se imagina

    respirando no mar e andando ali embaixo. Voc sabe que no est vendo uma

    possibilidade em relao ao ser humano. Isso uma impossibilidade. Voc pode

    imaginar isso. A estimativa no percebe simplesmente combinaes, mas

    possibilidades. E, mais ainda, dessas possibilidades quais tendem a se realizar em

    uma relao particular. Est claro isso a?

    Do mesmo jeito que a gente pode reter imagens do sentido, a gente tambm

    pode reter dados da estimativa. Eu posso guardar na memria. Uma vez que eu vejo

    um cachorro com a inteno de me morder, eu posso guardar isso na memria

    tambm, no posso? E eu posso combinar relaes da estimativa. Certo? Por

    exemplo: um dia estou andando e tropeo em uma pedra afiada e ela corta o meu

    dedo. Ento voc viu a pedra afiada e pensou acho que ela corta o meu dedo,

    acho que ela tem esta possibilidade. A voc v um coco e ao tenta abr-lo. A voc

    lembra: o coco possui uma tendncia, uma tenso, para se manter coeso e a pedra

    tem uma tenso cortante. Voc pode combinar essas possibilidades e concluir: eu

    acho que essa pedra pode cortar esse coco. Todos os animais fazem uso disso.

    Aluno: O macaco.

    Professor: O macaco! Certo? Ento, por exemplo: todos os carnvoros

    fazem uso do vento. Eles sabem: o vento transmite o cheiro; se eu ficar contra o

    vento, eu posso caar o outro; se eu ficar em outra direo, o vento vai levar o meu

    cheiro para a minha presa e ela vai me pegar.

    Aluno: uma questo de sobrevivncia.

    Professor: Exatamente. Ele conclui: ento melhor eu ficar do outro lado.

    Ele est fazendo um uso da estimativa. Est entendendo? O cheiro tende a ser

    carregado pelo vento. E a presa tende a perceber o cheiro. E quando ela percebe o

    cheiro, sai correndo.

    Aluno: Se no, eu vou morrer de fome.

    16

  • Professor: Isso! Se eu no fizer isso, vou morrer de fome. Exatamente! A

    isso se resume a dita inteligncia dos animais, capacidade da avaliao estimativa.

    Cada uma dessas potncias tem trs operaes diferentes.

    O DESEJO CONCUPISCVEL

    Mas essas potncias tem um outro efeito. A gente comeou lembrando a

    percepo, por qu? Porque a gente lembrou: a gente tem desejo e para ter desejo,

    preciso percepo. E esse o mesmo efeito da percepo sensvel, do sentido

    comum e da estimativa. Isto , quando eu capto um objeto pelo sentido comum, eu

    classifico alguns como agradveis e outros como desagradveis. Eu sinto uma

    inclinao a me aproximar de um e uma inclinao a me afastar de outro. Eu gosto

    de umas coisas e desgosto de outras. No isso?

    Aluno: De uma qualidade?

    Professor: Sim, uma qualidade do objeto que gera uma inclinao em

    mim. Quando eu lembro daquilo que eu gosto, eu a desejo, eu quero voltar pra perto

    dela; quando eu lembro da coisa que eu no gosto, quero me afastar dela, ficar longe

    dela. Est claro isso a? Ento, essa a primeira potncia apetitiva. A gente tinha

    comeado pela potncia da percepo. O sentido comum e a estimativa so aspectos

    das coisas que a gente percebe. Agora voc tem uma outra potncia a, cujo fim no

    perceber, mas lhe mover. Est claro isso a? evidente que a funo do desejo

    lhe mover na direo de algumas coisas e lhe afastar de outras. Quais so as

    operaes do apetite? Primeira operao?

    Aluno: a percepo?

    Professor: A percepo uma operao dos sentidos; mas aqui voc j

    separou a primeira operao do apetite. Voc classifica: a simpatia ou antipatia.

    No isso? o gosto e o desgosto. o prazer e o desprazer.

    Aluno: E, depois, o prprio movimento.

    17

  • Professor: Exatamente! E, depois, o prprio movimento. Uma vez sentido o

    prazer e o desprazer, s de voc lembrar do prazer e do desprazer, voc vai sentir

    uma tenso. Ento, a dor, segundo a operao do apetite o desejo ou a averso.

    Est claro isso a?

    Aluno: Pode ser real ou mental, n? O objeto...

    Professor: O que real ou mental?

    Aluno: Voc fantasia a lembrana de uma coisa .

    Professor: E voc pode chegar na coisa e no ter coisa nenhuma. Voc pode

    chegar l e no ser aquilo que voc pensava.

    Aluno: O objeto pode estar pode estar provocando realmente ou voc pode

    estar s pensando.

    Professor: a mesma coisa. Ou a imagem presente no objeto ou a

    imagem na operao imaginativa, voc est lembrando dele ou inventando um outro

    que seja mais interessante ainda. No isso?

    Se algum tiver qualquer dvida sobre o que estou falando, pode se

    expressar. Pode e deve.

    Certo? Primeiro voc tem a simpatia e a antipatia: disso eu gosto ou eu no

    gosto. Da coisa que voc gosta, voc sente desejo, uma inclinao na direo dela.

    Da coisa que voc desgosta, voc sente averso. Certo?

    E depois? E depois do desejo ou da averso? Depois voc sente o qu? O

    gozo da coisa desejada ou o prazer da coisa obtida. No isso? Voc quer continuar:

    gostei, provei e agora fruo ou gosto da coisa. Est claro isso a?

    Agora, ao contrrio do sentido comum e da estimativa, o apetite lhe d uma

    informao sobre voc e no sobre a coisa. Quem sente simpatia? a coisa que eu

    desejo? No, sou eu. Quem deseja? Sou eu. Quem goza dessa coisa? Sou eu! A

    mesma coisa para a antipatia ou averso e para a simpatia e o desejo. Est claro isso

    a? De fato, aqui a informao sobre voc, no sobre o objeto. A informao

    sobre a sua mente e no sobre o objeto. As informaes sobre o objeto so dadas

    pela estimativa e pelo sentido comum.

    18

  • O DESEJO IRASCVEL

    Agora suponha que voc est l no meio da selva africana e voc est

    morrendo de sede. E h o rio ali, na selva, s que voc v, no caminho do rio, um

    leo. Ento, o seu apetite est lhe levando na direo do rio, mas tem um outro

    apetite que est lhe levando na direo contrria, porque tem um leo ali. Porque

    voc sente desejo pela gua do rio e averso pelo leo que vai lhe agredir antes de

    voc chegar no rio. O que voc faz?

    Aluno: Precisa tomar uma deciso.

    Professor: Mas qual deciso tomar? Voc precisa da gua e precisa escapar

    do leo. Voc vai ter que fazer uma avaliao estimativa. No isso? O que vai

    acontecer se eu chegar l? O leo vai me comer ou eu vou escapar do leo e vou

    tomar gua? Quer dizer, nesse momento em que o apetite est em conflito, esse

    conflito s pode ser resolvido por um outro tipo de apetite gerado pela avaliao

    estimativa. Est claro isso a? O apetite at agora dizia para voc: nem v embora e

    saia correndo do leo, nem v no rio. Voc no pode desistir da gua do rio, mas

    voc no pode ir at o rio, mas voc no pode ir at l porque h um leo. Quer

    dizer, o sujeito est travado. Ele no vai conseguir ao nenhuma, porque ele tende a

    duas aes contraditrias. Voc precisa de um supra-apetite que decida a situao

    para voc. Este supra-apetite, ele no vai funcionar com base na percepo do

    sentido comum, mas com base na avaliao estimativa. A voc vai olhar e pensar:

    no, esse leo est meio mirradinho e tenho aqui uma calibre 12.

    Aluno: Melhorou.

    Professor: Melhorou pra caramba, n?

    [Risos]

    Professor: Jogo uma isca pra ele. O que voc concluiu? Concluiu que voc

    pode superar um problema, uma dificuldade, e a alcanar o objeto de desejo. Todo

    mundo entendeu?

    19

  • Quando voc conclui que pode superar uma dificuldade, voc sente uma

    outra coisa, que diferente do prazer, diferente da simpatia, diferente do gozo; voc

    sente esperana. No isso? Que uma atividade pela qual eu percebo que posso

    superar o obstculo com uma certa facilidade. Ento voc tem esperana de superar.

    A esperana gera uma outra inclinao apetitiva em voc. Ela gera a

    audcia, que uma inclinao para ir na direo da dificuldade. Est claro isso a? O

    primeiro tipo de apetite no podia gerar isso. O sentimento nunca lhe levaria na

    direo do leo. Mas esse apetite supera, a audcia lhe leva na direo do obstculo,

    voc supera o obstculo, e a voc sente calma. Voc fica calmo, certo?

    Mas, e se a avaliao estimativa tivesse lhe levado a uma concluso

    contrria? Que aquele leo tem mais fora, voc no tem sequer um estilingue e no

    vai ser possvel. O leo, alm de estar no auge de sua fora, est com fome.

    Aluno: Era melhor ter ficado em casa.

    [Risos]

    Professor: Essa avaliao no vai gerar esperana em voc, mas o contrrio

    dela.

    Aluno: Desespero.

    Professor: Desespero! O desespero vai gerar o temor, que o contrrio da

    audcia, que uma inclinao para fugir do obstculo: ah, no, vou ter que

    procurar gua em outro lugar, vou ter que agentar. O que acontece se a reao do

    temor frustrada? Na hora em que voc sai correndo, o leo lhe avista e vem na sua

    direo e agora no tem escapatria.

    Aluno: Voc tenta fugir.

    Professor: Pois , agora no d mais pra fugir...

    Aluno: Ah, no d mais?

    Professor: No d, o leo j lhe alcanou. E a?

    Aluno: Lutar at o fim!

    20

  • Professor: Lutar at o fim! E a surge a ira. No tem como escapar dessa

    ameaa. Mas talvez eu posso me vingar dela um pouquinho, fazer com que ela sofra

    tambm.

    Aluno: A apenas a ira.

    Professor: Exatamente, a ira pura.

    Aluno: No precisa chegar no limite.

    Professor: Exatamente. A ira existe porque, s vezes, ela resulta na

    superao.

    Aluno: Resolve.

    Professor: Por qu? Porque a avaliao estimativa limitada. De repente, o

    leo chega ali e voc d um soco no focinho dele e ele vai embora. Porque voc

    estava com raiva e no h mais nada a fazer mesmo. Certo? A ira existe como um

    ltimo recurso desse apetite porque a avaliao estimativa limitada, porque ela no

    perfeita. Est claro isso a? A gente vai falar que esse apetite existe como soluo

    do problema levantado pelo apetite anterior. Voc nunca vai na direo de um

    perigo ou de uma dificuldade s porque existe a dificuldade l. Existe um monte de

    coisas que so simplesmente obstculos a ao humana, mas voc no vai na direo

    delas. Voc s vai na direo delas se elas estiverem entre voc e o objeto de

    desejo. Ento, o primeiro tipo de apetite tem essas operaes que so: simpatia e

    antipatia, desejo e averso, dor e prazer ou tristeza e alegria. Ele recebe o nome de

    apetite sensvel. Um nome que derivado s do seu ato mais caracterstico, que a

    concupiscncia ou o desejo ou a cupidez. Tambm h um outro apetite, o apetite que

    gera a esperana e a desesperana, alm da audcia, temor, calma e ira; ele recebe o

    nome de seu ato mais caracterstico; ento vai ser chamado de apetite irascvel.

    Veja bem, sem este conjunto de instrumentos, nenhum animal poderia

    viver. As coisas de que um animal deseja e precisa no aparecem sempre de bandeja

    para ele. Entendeu? Entre essas coisas e ele existem obstculos. Ento ele precisa de

    um mecanismo que solucione esse conflito. Est claro isso a?

    Aluno :Ainda estamos falando s do animal?

    21

  • Professor: Ainda estamos falando s do animal! Certo? O animal mais

    simples possvel tem o sentido do tato e tem todos esses mecanismos apetitivos. Se

    no, ele nem pode sobreviver. Est claro isso a? Bom, isso a, essas quatro

    potncias, elas resumem o aparato mental do animal. No necessrio mais nada

    para o animal viver.

    A PERCEPO INTELECTIVA

    S que alm disso, a gente tem uma outra capacidade humana. O ser

    humano tem uma outra capacidade. Veja bem, o ser humano percebe que o lobo

    quer lhe morder e pensa: o lobo quer me comer. Voc percebe que pode morrer

    como os outros animais, at mesmo como a ovelha. Ento voc percebe: o lobo

    come animais, come alimentos, come a ovelha, .... Ele [o ser humano] capaz de

    observar uma srie de relaes particulares do lobo com diversas categorias de

    objeto. E ele percebe: tem alguma categoria de objeto que o lobo no quer comer e

    tem alguns objetos dos quais ele foge: fogo, por exemplo; um urso, ele no vai

    querer comer urso. O ser humano pode coletar diversas relaes particulares e

    compreender qual a coerncia daquelas diversas relaes no lobo. Est claro isso

    a? A ovelha no capaz disso; nem a ovelha, nem o lobo, nem nenhum dos outros

    objetos. A ovelha s concebe o lobo como algo que come. Para ela, o lobo um ser

    que come tudo.

    Aluno: A nica circunstncia do lobo.

    Professor: Exatamente! Essa a nica circunstncia do lobo. Para ela, a

    nica possibilidade, a nica tenso do lobo comer. Certo? Mas o ser humano no;

    ele pode comparar essas tenses em relao aos diversos objetos. Ele pode falar:

    em mim incompreensvel a tenso do lobo para fugir do fogo ou do urso, mas no

    lobo isso perfeitamente coerente. O ser humano capaz de perceber a coerncia

    interna do lobo como ser. Percebendo esta coerncia interna, esta coerncia interna

    o primeiro conceito de lobo.

    22

  • Aluno: Essa uma via pela qual o ser humano pode dominar o animal.

    Professor: Sim, essa uma via pela qual o ser humano pode inverter as

    relaes. Opa, se voc percebe essa coerncia interna, voc pode transformar o lobo

    de predador em presa. A ovelha nunca vai transformar o lobo em presa. Est claro

    isso a? Ento, o que necessrio para que voc capte essa coerncia interna. O que

    essa coerncia interna?

    O objeto prprio da estimativa so as intenes ou tenses particulares.

    Vejam que os escolsticos no usavam a palavra inteno no sentido puramente

    mental. Ento, para eles era o seguinte: esse objeto [aponta para algo na sua mo]

    tem uma inteno em relao ao cho: tem a inteno de ir para l. Ento, a inteno

    uma espcie de tendncia, certo? um tender para. Ento, o objeto da estimativa

    so as intenes particulares. So tenses ou tendncias particulares. Mas,

    combinando as diversas tenses particulares de um objeto, voc capaz de entender

    a inteno universal dele ou a tenso permanente que causa nele todas essas tenses

    particulares. [Por exemplo:] ah, por que o lobo foge disso e corre na direo

    daquilo? Mesmo um sujeito que no seja lobo, um sujeito que nunca experimente

    essas tenses pode ser capaz de dizer por que ele faz uma coisa ou outra.

    Estas intenes universais so captadas pela inteligncia, no pela

    estimativa. Se h diferena, justamente, entre uma inteno particular e uma

    inteno universal, que a inteno universal est sempre presente no objeto. E ela

    a raz das experincias particulares. Est claro isso a? As intenes particulares s

    vezes esto no lobo, mas s vezes no esto; s vezes ele est com fome, s vezes

    no est. Certo? Mas ainda as intenes universais esto sempre nele. A estrutura

    lupina est sempre ali. Certo? essa estrutura que o objeto da inteligncia. Est

    claro isso a?

    Ento, o que acontece? O que acontece que at agora cada tipo de

    percepo ou cada modo de percepo gerou, no ente capaz daquela percepo, um

    modo de apetncia.

    (a) A percepo do sentido comum gerou o apetite concupiscvel.

    23

  • (b) A percepo da estimativa gerou o apetite irascvel.

    (c) E a percepo intelectiva, isto , a percepo das intenes universais?

    Ela gera um outro tipo de apetite.

    Aluno: Gera o conhecimento?

    Professor: O conhecimento est na prpria percepo.

    Aluno: Ento tem mais coisas.

    Aluno: A realizao?

    A VONTADE

    Professor: Repare no seguinte: alguns intenes universais do objeto so

    sempre boas em relao a voc; so sempre desejveis, e outras so sempre

    indesejveis. Est claro isso a? Ento, por exemplo, s vezes voc sente desejo de

    comer e s vezes voc no sente. No isso? Mas voc come com uma certa

    regularidade. s vezes com mais fome, s vezes com menos fome. Por que voc no

    come somente, exatamente, quando voc tem fome? O que lhe move a por uma

    regra ou regularidade no comer no o apetite concupiscvel, quer dizer, no a

    fome; a fome lhe leva a comer s quando voc tem fome e a no comer quando no

    tem. Tem um outro apetite a. Um apetite que percebeu que, simplesmente, voc

    precisa, sempre, de uma certa quantidade de alimentos distribudos em certo

    intervalo de tempo. Voc percebeu que essa uma tenso universal sua. Isso

    verdade quando voc sente fome ou no. Est claro isso a?

    A percepo de intenes universais gera um apetite de tipo universal, que

    existe, que opera independente do estmulo sensorial imediato. Est claro isso a? S

    o ser humano come quando no tem fome e no come quando tem fome. Ele faz isso

    sem ser movido pelo apetite concupiscvel ou pelo [apetite] irascvel, pois a comida

    est l na geladeira; no h dificuldade nenhuma. Ele faz isso movido por um outro

    apetite, que se chama vontade. A vontade um apetite determinado ou criado pelo

    objeto da inteligncia. Se desejo do apetite concupiscvel foi gerado pelo sentido

    24

  • comum, se o apetite irascvel foi gerado pela estimativa, a vontade foi gerada pela

    inteligncia. A vontade estabelece normas para voc porque ela percebe que certas

    relaes so permanentes, independente do que voc est sentindo no momento ou

    no. Est claro isso a? Ento, a vontade diz para voc: bom voc comer todo dia

    com uma certa regularidade porque isso que vai manter o seu corpo; faa isso

    gostando ou no. Est claro isso a?. O animal no, ele s faz o que gosta. Mas

    voc pode perceber que existem coisas mais importantes do que o voc gosta. E

    voc quer que elas aconteam. Voc sente uma inclinao na direo delas, que no

    um desejo comum.

    Aluno: algo superior ao desejo?

    Professor: superior ao desejo. um comando que tem um poder mais

    intenso sobre o corpo. Por que um poder mais eficiente? Porque ele mais

    coerente. A gente j viu que os desejos podem ser contraditrios. Ento, por

    exemplo, se a estimativa de um animal no consegue avaliar se um obstculo

    supervel ou no, ele est simplesmente travado. Quer dizer que a maneira prpria

    de caar animais voc ficar inventando obstculos que ele no concebe, obstculos

    que eles no so capazes de avaliar. E se voc est dentro de um obstculo que voc

    no consegue avaliar? A sua vontade pode escolher entre enfrentar o obstculo ou

    no. Quer dizer, [algum poderia pensar neste caso]: eu prefiro ir de encontro deste

    obstculo porque o objeto que est atrs dele indispensvel para a minha

    coerncia interna. melhor ser derrotado pelo obstculo tentando do que no tentar

    [ultrapass-lo]. Ou, pela vontade, voc tambm poderia dizer: no, esse objeto no

    to importante assim. Pode deixar pra l.

    A vontade pode ir alm da estimativa. A diferena entre essas diversas

    potncias est no alcance delas. Quer dizer, o sentido comum o que tem menor

    alcance: ele s alcana fatos. A estimativa alcana fatos e possibilidades dos fatos. A

    inteligncia alcana fatos, as possibilidades e as estruturas que organizam estas

    possibilidades. esse maior alcance, no qual o objeto da primeira potncia est

    includo no apetite da segunda, que d ao apetite gerado pela segunda poder sobre o

    25

  • apetite da primeira. Ento, como a inteligncia tem maior alcance, o apetite gerado

    pela inteligncia tem poder sobre os outros dois.

    Ento, o que acontece? A vontade, para operar, ela depende de uma nica

    coisa: da percepo de relaes constantes. Sem essas percepes fundamentais, ela

    simplesmente no opera. Quem no pode ver o conceito de uma coisa, no pode ver

    se elas so boas ou ms. Est claro isso a?

    Aluno: Usa todas as anteriores?

    Professor: Usa todas as anteriores! Todas as outras so instrumentais em

    relao inteligncia. Isso quer dizer o qu? Quer dizer que a inteligncia exige

    mais do que exigido pelas outras potncias. O sentido comum , de todas as

    potncias, a que exige menos do seu psiquismo.

    Aluno:Menos esforo.

    Professor: Exatamente! Voc no precisa de esforo nenhum para ouvir o

    que eu estou falando ou para ver esta sala. Isso ocorre quase espontaneamente. O

    prprio fato de fazer uma avaliao estimativa j exige um pouco mais de fora.

    Para comparar as diversas relaes estimativas e chegar a estrutura de um objeto,

    preciso fazer muita fora. Voc precisa usar toda a sua psique, todas as potncias.

    Est claro isso a? Ento, embora a inteligncia e a vontade, que o apetite derivado

    da inteligncia, sejam as caractersticas distintivas do ser humano, elas so as

    operaes mais difceis. Porque elas exigem o emprego de todas as outras. Est claro

    isso a? Ento, a gente pode classificar as potncias em trs campos ou faixas de

    atividade:

    (a) Primeiro, voc tem as potncias afetivas. Certo? As potncias afetivas

    so aquelas que so maximamente passivas. Por exemplo: o senso comum, o apetite

    concupiscvel, a imaginao, todas estas so potncias afetivas, so maximamente

    passivas no ser humano, no exigem muito esforo.

    (b) Segundo, voc tem a esfera ou faixa volitiva. Esta esfera exige, j, um

    esforo.

    26

  • c) E, terceiro, voc tem as potncias intelectivas. Est claro isso a? Estas

    exigem um mximo esforo.

    A vontade exige menos esforo do que a inteligncia embora ela seja

    posterior inteligncia. Uma vez que voc entendeu o objeto, resta pouco para voc

    querer ele ou no. O esforo bem menor. Est claro isso a?

    UM EXERCCIO DIALTICO: A DEFINIO DE LAJOTA

    Ento, vamos dar mais uma pequena distino. No conjunto das potncias

    intelectivas, a inteligncia tem duas operaes. Na inteligncia existem duas

    operaes que a gente chama de inteligncia. Ao simplesmente coletar as relaes

    particulares de um objeto, voc, s pelo esforo de coletar, voc j entende o que

    isso?

    Aluno: No, voc tem que comparar.

    Professor: No basta s coletar. No basta olhar ou perceber um objeto para

    entend-lo e no basta apenas coletar as diversas relaes particulares dele. Voc

    precisa do qu? Voc precisa comear a separar algumas relaes de outras. Por

    exemplo, a lajota. Suponha que voc queira entender o objeto lajota. Certo? A

    primeira nota que se tem sobre a lajota,a primeira coisa que a gente colocou sobre

    ela, que ela bege. No isso? Uma outra nota que ela quadrada. Que mais?

    dura, lisa, de cermica.

    Professor: Agora, vamos l! Todas as lajotas so beges? No, isso tambm

    falhou. Bege no faz parte da estrutura permanente da lajota. Bege no uma tenso

    universal da lajota, uma tenso particular. Toda lajota dura? Existe uma lajota

    mole?

    Aluno: No.

    Professor: No h nenhuma lajota mole. Opa! Ento, a dureza faz parte da

    tenso universal da lajota. Para ser lajota, tem que ser dura. Quadrada? Toda lajota

    quadrada? No. Toda lajota plana. No ? Tem lajota que esfrica?

    27

  • Aluno: No.

    Professor: No tem!

    Aluno: Seria a lajota mais estranha do mundo!

    [Risos]

    Professor: Ento, o que acontece? Nas relaes particulares que voc vai

    vendo na lajota, voc vai separando algumas como acidentais. Existem algumas

    relaes que podem estar na lajota ou que podem no estar. E outras entendidas

    como essenciais: as quais tm que estar em toda lajota. No isso? Ento, vamos l!

    O que mais h na lajota? A lajota um tipo de qu?

    Aluno: De piso.

    Professor: De piso!

    Aluno: De revestimento.

    Professor: De revestimento! Mas revestimento de piso.

    Aluno: [risos] Como que vai colocar na parede?

    [risos]

    Professor: Ento, um revestimento? Ento a gente tambm j sabe a

    espcie ou gnero da lajota. A lajota no o nico tipo de revestimento que existe.

    Existem outros. Me digam outros tipos de revestimento que existem?

    Aluno: Tinta.

    Professor: Tinta! A diferena entre a tinta e a lajota fcil: a tinta no

    dura. Outro tipo de revestimento?

    Aluno: Cimento.

    Professor: Cimento! Qual a diferena entre o cimento e a lajota?

    Aluno: A lajota vem em pedaos.

    Aluno: A textura.

    Professor: Textura!

    [Alunos discutem entre si sobre as diferenas entre a lajota e as outras

    espcies de revestimento.]

    Aluno: Em alguma [dessas notas descritivas] pra?

    28

  • Professor: Exatamente! Tem uma que deve servir para descrever a lajota

    antes de voc saber ou de conhecer estritamente a estrutura da coisa. Tem alguma

    que capta, alguma que anota tudo que tem na lajota e vai separando. Quando voc

    separa [estas notas], de repente voc percebe que a lajota isso, esse conjunto de

    notas aqui, essas coordenadas definidas aqui. Ento, por exemplo, a gente falou: a

    lajota um revestimento e que o cimento tambm um revestimento, mas existem

    lajotas de cimento. Ah, o cimento no um revestimento, mas um material do

    revestimento, com o qual voc faz revestimento. Voc pode us-lo para fazer

    revestimento ou voc pode us-los para fazer outras coisas tambm, mas a lajota

    no. O cimento tem diversas finalidades. Uma delas o revestimento, mas a lajota

    no; a [finalidade da] lajota sempre revestimento. Se eu falar que a lajota um

    revestimento duro e plano, isso suficiente para distinguir a lajota? Existem outros

    revestimentos dos quais a gente lembra e que so duros e planos?

    Aluno: azulejo.

    Professor: Azulejo! Qual a diferena entre o azulejo e a lajota?

    [Alunos explicam essa diferena.]

    Professor: Ento, quer dizer: lajota o revestimento duro, plano, resistente

    bastante para ser usado como piso? suficiente?

    Aluno: No.

    Professor: No, tem um outro revestimento duro, plano, resistente bastante

    para ser usado como piso.

    Aluno: Pedra.

    Aluno: Granito.

    Professor: Granito. Voc pode usar pedra ou madeira. Qual a diferena

    entre a lajota e a pedra e a madeira? o material de que cada um feito. Se voc

    pegar a pedra e a madeira, voc no poder us-las como material de revestimento.

    Por qu? Porque a pedra e a madeira no aparecem planas. A lajota, a madeira e a

    pedra, todas elas so trabalhadas para serem usadas no piso. A diferena entre elas

    o qu? o material que usado. Qual o material da lajota? Argila ou cimento. J

    29

  • vimos que existem lajotas de argila e existem lajotas de cimento. No isso? Ento

    vamos falar: a lajota o revestimento duro, plano, resistente bastante para ser usado

    como piso feito de argila ou cimento. suficiente?

    [Os alunos confirmam.]

    Professor: Agora acho que a gente chegou l. Agora a gente alcanou a

    estrutura permanente da lajota, que pertence a todas as lajotas e s a elas. Est claro

    isso a? Ou, em outras palavras, a gente entendeu o que a lajota. Ser lajota isso:

    ser revestimento duro, plano, resistente bastante para ser usado como piso e feito de

    argila ou cimento. Est claro isso a?

    AS DUAS POTNCIAS DO INTELECTO

    Ora, a primeira atividade que a gente estava fazendo era ir separando notas

    e comparando a lajota com outros objetos. O ltimo [ato] uma captao da

    estrutura da prpria lajota. Uma percepo clara. Evidentemente, essa captao, essa

    estrutura j havia sido percebida antes, seno no era possvel selecionar as notas. Se

    no, no h nenhum critrio para selecionar as notas. Mas ainda no era de maneira

    clara, ainda no explicava! Ento, essas duas operaes so feitas com potncias

    diferentes:

    (a) a primeira potncia que intui a estrutura do objeto e separa as notas o

    intelecto agente. Ele ativo. Ele precisa de um esforo ativo para fazer esse

    processo.

    (b) E, segundo, a captao da estrutura da lajota. Agora no mais na lajota,

    mas na mente. o intelecto paciente. chamado de paciente ou passivo porque ele

    depende completamente do trabalho do intelecto agente. Sem o trabalho do intelecto

    agente, o intelecto paciente no entende nada. O intelecto paciente, ele s opera

    quando as intenes ou tenses universais ficam separadas de todas as intenes

    particulares e organizadas segundo a estrutura do objeto.

    Aluno: como se fosse a biblioteca do conceito.

    30

  • Professor: Sim. nele que voc vai reunir o conceito. nele que toca o

    conceito. nele que o conceito fica depois que entende.

    Aluno: E quando o filho reconhece a me ao buscar o peito [para mamar]?

    Professor: Pois , mas ele no tem o conceito de me desde o comeo. Ele

    s tem as notas pertencentes me e que a distinguem dos outros seres. claro que

    ele percebe ela. Ele a intui desde o comeo?

    Aluno: Seno a ama de leite tambm seria me para ele.

    Professor: Seno a ama de leite tambm seria a me. Certo? Ento, essa a

    diferena entre um conhecimento como ato da inteligncia e uma avaliao

    estimativa qualquer. Quando termina a atividade da inteligncia, voc termina com

    uma imagem mental que uma reproduo exata da estrutura permanente do objeto.

    E serve de critrio, agora, para voc avaliar qualquer objeto agora e saber se ele

    lajota ou no [por exemplo].

    Vamos fazer uma pequena pausa?

    [Alunos levantam-se e a aula interrompida.]

    31

  • CONTINUAO DA TRANSCRIO2 DA AULA DO PROFESSOR

    LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO FEITA NO DIA 25 DE MARO DE

    2006.

    UMA RECOMENDAO DE LEITURA

    Professor: Ento, para a gente continuar, a vai uma recomendao de

    leitura. do trabalho do intelecto agente coletar notas sobre um objeto e depois

    separ-las. Para levar a uma captao clara da estrutura do objeto, como a gente

    falou, um trabalho muito difcil. Para fazer isso com a lajota, tudo bem, pois a

    lajota est aqui na nossa frente e todo mundo v lajota todo dia. Certo? Mas se a

    gente fizer isso com outros objetos como, vamos dizer: moralidade, mal, bem,

    alma? A a coisa complica imensamente. Existem objetos sobre os quais a gente

    tem poucas notas ou poucas notcias e que so objetos importantes de compreender.

    Ento existe o primeiro manual clssico que ensina a fazer esse trabalho com mais

    eficincia, que o livro de Aristteles chamado Tpicos. A arte da dialtica

    justamente de trabalhar de maneira eficaz com o intelecto agente.

    Aluno: Tem em portugus?

    Professor: Tem em portugus, sim. Eu recomendo a leitura dele para que eu

    possa coment-lo nas outras reunies posteriores.

    Aluno: O livro saiu em portugus como rganon3, incluindo seis livros:

    Categorias, Da Interpretao, Analticos anteriores, Analticos posteriores,

    Tpicos e Refutaes sofsticas.

    [Os alunos trocam informaes e referncias sobre as edies do rganon

    em portugus.]

    2 Transcrio feita por Carlos Eduardo de Carvalho Vargas. 3 ARISTTELES. rganon: categorias, da interpretao, analticos anteriores, analticos posteriores, tpicos, refutaes sofsticas. Trad. Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2005. 608p.

    32

  • Professor: Por enquanto, ser assim. Vocs podem ler qualquer um dos

    outros livros do rganon, mas o que importa mesmo para o que a gente vai fazer

    aqui a leitura do Tpicos. Por que o que que a gente quer fazer em cada uma

    dessas reunies? Exerccios dialticos!

    A DISTINO ENTRE O INTELECTO E A ESTIMATIVA

    Ento, por exemplo, o que distingue os animais do ser humano justamente

    o intelecto. Quando eu fui separando as notas [do ser humano], eu j sabia que eram

    notas indispensveis para a gente entender a estrutura de um animal ou do ser

    humano. Dentre as vrias notas, separei o que indispensvel para conhecer a

    estrutura permanente do animal: o senso comum indispensvel, a estimativa

    indispensvel, os apetites so indispensveis. Esto sempre presentes em qualquer

    animal. Certo? Eu j fiz uma seleo prvia das notas, mas toda vez que vocs forem

    investigar a estrutura permanente de um objeto, vocs no vo encontrar esta seleo

    prvia. Vocs vo ter que anotar tudo e, depois, ir separando. Ento, justamente nos

    Tpicos, Aristteles vai dar ou ele est dando uma srie de macetes que vo nos

    ajudar a perceber as notas e a separ-las. Certo? Ele comea com macetes prticos e

    termina explicando por que esses macetes funcionam de uma forma mais ou menos

    coerente na arte dialtica.

    Agora vamos voltar um pouquinho para uma das potncias da qual a gente

    no falou muito: a vontade.

    [Um aluno faz uma pergunta sobre a Arte Retrica.]

    Professor: Porque a Retrica demanda do sujeito apenas a estimativa. Ela

    exige que voc ponha para trabalhar somente a estimativa. Para convencer algum a

    fazer uma ao, voc no precisa nem saber a definio desse algum, nem a saber a

    definio da ao. Voc precisa simplesmente que seus argumentos funcionem. E a

    estimativa permite fazer com que uma coisa funcione mesmo quando voc no sabe

    o que ela . Por exemplo: a ovelha no sabe o que lobo ou o que lobo, mas ela

    33

  • sabe mais ou menos como ele funciona. Ela sabe alguma coisa sobre o

    funcionamento dele. Certo?

    O PAPEL DA ESTIMATIVA NA CINCIA MODERNA OU O

    ABANDONO DO INTELECTO

    Em uma reunio posterior a gente pode fazer uma histria, isto , um

    resumo das principais etapas dessa regresso, de como ela aconteceu e como hoje

    em dia, em qualquer ambiente educado, voc precisa comear com essa distino

    bsica porque quase ningum sabe a diferena entre perceber uma estrutura

    fenomnica e perceber uma coletnea de relaes particulares que existem. algo

    que as pessoas no percebem. Somente para dar uma idia disso a. A gente sabe

    perfeitamente como funcionam as rbitas dos planetas. Existe uma srie de frmulas

    matemticas pelas quais pode-se pode prever a posio dos planetas daqui um ano,

    mil ou dois mil anos. Como que a gente conseguiu uma descrio matemtica

    precisa e simples dessas rbitas planetrias? Foi com a fsica newtoniana. Antes

    voc tinha uma descrio matemtica precisa, mas inteiramente complexa. Certo? O

    que hoje em dia fundamental. Foi Newton que sintetizou essa a percepo

    matemtica em uma expresso simples. Quando eu digo simples, o seguinte: olha,

    para voc explicar as rbitas dos planetas basta voc imaginar que existe uma fora,

    que toda matria tem uma fora pela qual ela atrai matria assim, assim, assim. Se

    voc imaginar uma fora assim, voc pode descrev-la matematicamente assim e

    assim voc sabe como ser a trajetria amanh. Quando ele faz isso, qual a

    primeira impresso que voc tem?

    (a) Primeiro, que voc pode realmente prever a posio dos planetas; logo,

    essa fora existe. Mas, ora, dizer que essa fora existe apenas uma opinio

    razovel. Voc no apreendeu essa fora, no intuiu essa fora no movimento

    planetrio, a coletou as notas dos movimentos planetrios, separou as acidentais das

    essenciais e, a, definiu. Voc no sabe o que o movimento planetrio, voc no

    34

  • conhece cientificamente o que o movimento planetrio; mas voc tem uma opinio

    razovel, apenas, da causa dele. Essa concepo do Newton fez tanto sucesso que a

    representao matemtica de um fenmeno, que lhe conduz a uma opinio razovel

    acerca de alguma dessas opinies, passou a valer como cincia. O que se tem como

    demonstrao matemtica [na fsica moderna], na verdade, uma representao

    matemtica. Ele no provou que essa fora [gravitacional] existia na matria mesmo.

    Entendeu? [Ele disse que:] se existir uma fora assim, os planetas vo ter que se

    comportar exatamente como se comportam. Mas voc tambm pode conceder

    outras causas possveis, que se existissem, tambm causariam o mesmo movimento.

    Aluno: E olha que essa explicao [de Newton] s para a manuteno do

    movimento. Ele explica como o planeta se mantm girando, mas no explica como

    comeou.

    Professor: Vocs no sabem, vocs no conhecem o ser daquele

    movimento. Vocs conhecem a acidncia dele: o conjunto de acidentes que o

    descrevem. Exatamente! Voc pode colecionar as notas dos acidentes da lajota e

    voc no sabe o que a lajota, mas como ela se apresenta a voc. Para voc entender

    o que , vai ter que pegar como ela se apresenta para voc, como ela se apresenta

    para os outros e ver o que nessa apresentao permanente e o que no . O que

    precisa estar ali e o que no precisa. Est claro isso a? E isso a Newton no faz.

    Certo? Ento, a partir dessa poca considera-se como cincia qualquer conjunto de

    opinies razoveis que permita ou descreva um fenmeno tal e qual ele se apresenta.

    Aluno: Mas s isso mesmo!

    Professor: s! Isso um exerccio da estimativa. Voc pegou uma srie

    de relaes entre as posies dos planetas e as comparou com relaes matemticas

    ou frmulas. E voc criou frmulas que tm uma relao estruturalmente semelhante

    com a posio dos planetas. Voc criou um smbolo matemtico do movimento

    planetrio. Mas s um smbolo, no um conceito. Est claro isso a? Quer dizer,

    o smbolo matemtico pode-lhe permitir um monte de coisas. Ele permite, por

    exemplo, prever o movimento do objeto simbolizado. Assim, como, sei l, os

    35

  • smbolos astrolgicos tambm permitem prever o comportamento dos objetos, mas

    no lhe dizem nada acerca do ser deles. O ser deles [do movimento planetrio, nessa

    teoria] a fora da gravidade. claro que isso um salto mgico.

    Aluno: com Newton que fica assim.

    Professor: Voc apresenta um smbolo e afirma que aquilo um conceito.

    Isso a mesma coisa que um astrlogo faz quando acontece alguma coisa e ele diz:

    ah, isso Saturno na casa V ou isso Sol em Peixes. Ele te deu um smbolo e

    falou que o smbolo a coisa. A nica diferena que o smbolo do astrlogo no

    matemtico.

    [Um aluno oferece mais um exemplo de descrio simblica.]

    Professor: a mesma coisa: ele te deu um smbolo e disse que o

    simbolizado o smbolo. Quando, o simbolizado e o smbolo so semelhantes. Voc

    pode atribuir uma relao smbolo-simbolizado, mas uma coisa no a outra. O que

    acontece? Todo smbolo implica em fazer um recorte no objeto. S que esse recorte

    no baseado na estrutura intrnseca do objeto, mas em um determinado interesse

    especfico que voc tem. Ento, Newton olhava para o cu, via o movimento

    planetrio e ele fazia um recorte do objeto. Esse recorte no era baseado no ser do

    cu, em o que o cu; era baseado no interesse dele, que era entender

    matematicamente as rbitas dos planetas. O astrlogo vai l, olha o cu e faz outro

    recorte, que tambm no baseado no ser do cu. Quando o poeta olha o cu, faz

    outro recorte ainda. O casal de namorados olha o cu e faz outro [recorte] ainda.

    Todos esses recortes so smbolos do cu. Eles dizem alguma coisa sobre o cu, mas

    no lhe diz o que o cu. Est claro isso a? Eles so notcias organizadas acerca do

    cu. Certo? Mas eles no so inteligncias do cu ou compreenses do cu.

    claro que quanto mais conjuntos de notcias organizadas se tiver sobre um

    objeto, mais fcil vai ser a compreenso do que ele . Certo? Mas, e se eu fao um

    recorte e digo que o ser do cu isso, o que representado por esse recorte?

    Imediatamente eu reduzi todos os outros recortes fantasia. Quer dizer, o que o

    poeta v no cu a imaginao dele, no o cu. O que o astrlogo v no cu a

    36

  • imaginao dele, no o cu. O que o casal de namorados v no cu tambm

    imaginao, no o cu. E s o que Newton v no cu o cu. Quer dizer, esse

    recorte, essa atitude, indica, implica no somente um recorte, mas uma escolha

    arbitrria. Voc no tem nenhuma prova de que o recorte de que Newton faz mais

    relevante do que o recorte que o casal de namorados faz, de que o recorte dele diz

    mais sobre a realidade do cu do que o recorte feito pelo casal de namorados.

    Newton faz esse recorte desde o comeo. Para ele assim: o objeto do

    conhecimento cientfico somente o recorte matematizvel do cosmos.

    Aluno: Do comportamento do cosmos?

    Professor: De tudo, tudo, tudo. Se no matematizvel no real - um

    mero epifenmeno subjetivo do matematizvel. Assim, se o casal de namorados v o

    cu e vem ali um motivo para estarem juntos ou uma causa de alegria, isso a

    ocorre simplesmente porque existe uma frmula matemtica que rege o crebro de

    vocs e que faz com que vocs reajam ao cu assim. Por qu? Porque, desde o

    comeo, eu escolhi: s real o que matematizvel. Quer dizer, o recorte inicial, se

    acompanhado de uma escolha arbitrria, ele passa a se tornar um limite para a

    compreenso do objeto porque ele vai ter que explicar qualquer outro recorte como

    uma modalidade secundria do primeiro. a mesma coisa quando voc olha o bege

    e diz que ele simplesmente uma freqncia tal da luz. Ora, o bege no apenas um

    recorte matemtico da luz; se o piso for dessa cor bege fica bonito e se for de uma

    outra cor fica feio: isso tambm uma leitura sobre o bege, to real quanto a

    freqncia matemtica. Se eu quero entender o que bege, eu no posso, antes de

    entender, descartar uma nota, fazer um recorte. Est claro isso a? Isso vale para

    qualquer cincia e para qualquer objeto. Quer dizer, para saber o que cu, preciso

    saber o recorte que o astrlogo faz, o recorte que Newton faz, o recorte que o poeta

    faz, o recorte que o casal de namorados faz, os recortes de todos eles. Porque, ento,

    a , por trs desses recortes, h um objeto capaz de causar todos essas possibilidades.

    Est claro isso a?

    37

  • DUAS OPERAES DA VONTADE

    Ento vamos voltar para a vontade. Assim como todas as outras operaes

    tem diversos atos, a vontade tambm tem diversos atos como operaes. Certo?

    (1) O primeiro ato da vontade : uma vez que uma relao universal

    entendida como boa, a vontade se sente empenhada a ter aquela inteno universal.

    A partir do momento em que voc percebe que comer um bem, a vontade

    inclinada. Isto um ato chamado de volio. Ou o outro nome disso querer,

    como algo mais forte que desejar. A volio pode causar uma outra operao que a

    inteno.

    (2) A inteno consiste em pr as outras faculdades a servio da volio.

    Por exemplo: agora eu quero um caf. Ento, o que eu fao? Agora eu tenho a

    volio do caf. A inteno move os meus msculos e o meu aparato corpreo para

    l. Quer dizer, o movimento mesmo no essa vontade, mas o resultado dessa

    inteno. A inteno j lhe pe a caminho. Certo?

    (3) E o terceiro ato da vontade a escolha. A escolha consiste no qu? Eu

    posso ir at l e pedir para voc esperarem um pouquinho. Posso pedir para a Ully

    pegar um caf para mim. Certo? Eu tenho vrios meios para alcanar o mesmo fim.

    Aluno: Voc quer que eu pegue um cafzinho?

    [O professor confirma.]

    Aluno: Voc fez uma tima escolha!

    [risos]

    Professor: O terceiro ato a escolha. A escolha se refere aos meios.

    Aluno: Para satisfazer a vontade.

    Professor: Para satisfazer a vontade. Antes que viesse o desejo caf e o

    comando da vontade, se eu decidisse que agora no devia tomar caf, eu no

    tomaria. Mesmo que eu tivesse desejo. No isso? Mas s vezes o desejo predomina

    sobre a vontade. Por que o desejo s vezes predomina sobre a vontade? Isso tem

    duas causas:

    38

  • (a) A primeira causa que pode no ser claro para voc por que bom no

    satisfazer aquele desejo. Voc pode ter esquecido a razo e a vontade perdeu a fora.

    Porque a vontade se origina justamente da inteligncia. Esse foi o primeiro motivo.

    (b) O segundo motivo que aquele desejo pode corresponder ainda e

    apenas simbolicamente a uma necessidade subjetiva que voc desconhece.

    Aluno: Nos dois casos por falta de informao.

    Professor: Por falta de informao, nos dois casos!

    Aluno: Por uma falha de cognio.

    A RELAO ENTRE A VONTADE E O DESEJO

    Professor: Tanto que depois que voc satisfaz um desejo, que a sua vontade

    indicava o contrrio, o que voc sente? O mesmo prazer?

    Aluno: Sim.

    Professor: No, durante, a realizao do desejo voc sente prazer, mas,

    imediatamente depois, quando acaba a sensao de prazer, o que acontece

    imediatamente depois? Voc sente uma espcie de frustrao. Voc pensa: eu

    consegui alguma coisa com isso, mas teve alguma coisa que eu no alcancei.

    Alguma inclinao natural foi frustrada nesse processo. Est claro isso a?

    Aluno: Como se a escolha no fosse livre a?

    Professor: Exatamente! Quer dizer, a liberdade de escolha depende da

    clareza objetiva e subjetiva. Depende de voc compreender claramente o objeto, por

    que voc deve fazer aquilo, e, claramente, quais foram as suas motivaes reais. A a

    escolha livre. A a vontade sempre predomina sobre o desejo. por isso que os

    escolsticos diziam que: se voc, na hora, no segurou o desejo, se o seu desejo

    superou a vontade ou a sua vontade no segurou o desejo, em um momento que ela

    deveria segurar, no fique arrancando os cabelos por isso. No precisa ficar triste,

    no adianta nada. Voc tem que ver qual foi a raz da fora o desejo e a raz da

    39

  • fraqueza da vontade. Se no, isso vai voltar a acontecer do mesmo jeito. s isso

    que vai acontecer.

    Por que acontece isso? Voc vai ver que acontece isso porque o desejo ou

    apetite concupiscvel funciona baseado na analogia. Quer dizer, o sentido comum

    no sabe o que a coisa desejada. Ele s sabe como ela aparece. E quando voc

    nasce, voc j sabe tudo o que voc precisa para a vida? No, ainda tem um monte

    de necessidades que voc desconhece. E a o que que acontece? A voc v um

    objeto de desejo que parecido com essa necessidade. A essa necessidade surge e

    refora o desejo. A voc alcana o objeto, mas isso no traz a satisfao, porque ele

    era s um objeto anlogo a algum objeto de que voc necessitava. Enquanto no

    descobrir qual essa necessidade (e, s vezes, isso pode demorar vinte ou trinta

    anos), enquanto voc no descobre, a sua vontade vai falhar algumas vezes. E ainda

    vai demorar muito tempo para voc descobrir. s vezes voc s vai descobrir depois

    da morte. s vezes passa a vida inteira e voc no vai descobrir. sempre possvel

    que alguns pecados continuem com a gente a vida toda. Essa uma informao

    importantssima sobre a vida humana. Deus vai perdoar alguns pecados justamente

    porque alguns desses pecados so insuperveis por esse indivduo concreto.

    Aluno: Nessa situao necessria a humildade.

    Professor: Exatamente! Quer dizer, embora, em princpio, na ordem

    estrutural geral, a vontade est acima do desejo, na prtica nem sempre vai acontecer

    assim. Pode ser uma deficincia educativa. Pode ser uma deficincia muito simples

    de satisfazer, mas at voc descobrir vai passar um ano. Certo? Ento preciso que

    a informao intelectual acerca do objeto seja suficiente para que a sua vontade

    possa segurar aquele desejo, mas pode ser que no [acontea assim]. Est claro isso

    a?

    OS EXEMPLOS DOS SANTOS

    40

  • Para a pessoa ser moral, ela precisa saber que sempre haver alguma

    incoerncia moral nela. Se voc perguntar l se So Francisco [de Assis] vai ter

    alguma incoerncia moral, ele vai falar que vai. Mas ele s vai ter aquelas

    incoerncias [morais] sobre as quais ele realmente no tem domnio. S tem aquelas

    que um conjunto de acidentes [dele] tornou impossvel de superar. Agora, a gente s

    descobre essas a mantendo uma tenso permanente na direo da moralidade. Se o

    sujeito tentar entender suas motivaes e assumir: tenho alguns defeitos porque no

    consigo entender a que necessidades e a que objetos meus desejos correspondem,

    no estou entendendo porque sou muito burro, ento ele ter menos culpa e mais

    mrito [moral]. Ficar apenas com os defeitos que forem desvios ao limite da mente

    dele. Est claro isso a?

    Aluno: Voc pode dar um exemplo de um pecado insupervel em um

    homem santo?

    Professor: Um exemplo de pecado insupervel em um homem santo?

    Aluno: Um exemplo dessa dificuldade do homem santo para perceber uma

    necessidade.

    Professor: Vou dar um exemplo no caso no prprio So Francisco de Assis.

    Certo? So Francisco tinha dois defeitos permanentes que ele tentava e no

    conseguia superar. Um deles era a incapacidade de percepo de quando o outro

    estava tendo um sofrimento insuportvel. Como ele tinha muita capacidade de

    suportar o sofrimento, ele no tinha essa percepo espontnea do que o outro podia

    suportar. Ento, muitas vezes ele era insensvel. s vezes ele colocava um fardo nos

    ombros do outro que iria fazer este sujeito cair e coloc-lo em crise, mas no

    precisava; era s pedir para outra pessoa fazer isso.

    Aluno: Ele no percebia a gradao.

    [34:52]

    Professor: Ele no via a gradao. No percebia espontaneamente. Esse era

    um dos defeitos. Outro defeito? Ele mesmo fala: eu no soube organizar a minha

    ordem de modo que as pessoas fiquem mais santas nela. Ao entrar na Ordem

    41

  • Franciscana, alguns ficam santos e outro no. Tanto assim que antes da morte dele,

    ele foi deposto como chefe da ordem. Foi um dos casos em que depuseram o

    fundador. No entanto, eu tive um desejo intenso de organizar uma ordem, de criar

    uma ordem religiosa, mas eu fao isso mal feito e, com isso, acabo prejudicando

    outras pessoas.

    [Alunos fazem algumas perguntas e comentrios sobre a histria da ordem

    franciscana.]

    Professor: Mas o problema da ordem dele no era a falta de rigor. Ele podia

    dizer: aqui tem uma ordem rigorosa, mas eu no sei como fazer as pessoas

    agentarem esse rigor ou o melhorar o suficiente para viver esse rigor. Um sujeito

    de ndole mais ou menos semelhante a ele ou do grupo que se formava mais ou

    menos prximo a ele podia se tornar santo.

    Aluno: Mas no era para qualquer um.

    Professor: Mas no era para qualquer um! At porque a ordem cresceu

    muito rpido.

    Aluno: Mas talvez o problema no fosse de organizao, mas de seleo.

    Professor: De seleo na entrada e organizao. Ele no sabia como instruir

    o outro a ficar santo. S alguns tipos humanos muito especficos ele sabia instruir.

    Claro, se o sujeito tenta fazer algo e no consegue, isso uma falha moral. Ele era

    perfeitamente consciente de que tinha essa falha moral e de que ia morrer com ela

    porque ele tentava todo dia super-la e no conseguia. No tem nenhum santo que

    falou da vida dele e que no mostrou isso a: tenho dois ou trs defeitos e vou

    continuar tendo. Quando o sujeito fez tudo que podia, a Graa compensa de modo

    super-abundante essa deficincia dele. A Ordem Franciscana gerou centenas de

    santos. Mas foi mais por efeito da Graa do que pela organizao que So Francisco

    deu a ela. J no aconteceu o mesmo com a ordem beneditina. So Bento organizou

    sua ordem de tal modo que a imensa maioria que entra na ordem beneditina vai

    melhorando, melhorando e melhorando. E ela tem uma estabilidade no decorrer dos

    sculos, como forma de organizao da vida monstica, que a ordem franciscana

    42

  • nunca teve. Se voc pegar a histria da ordem franciscana, uma histria de altos e

    baixos. Se voc pegar a histria da ordem beneditina, ela mantm uma constncia.

    A capacidade de organizao da vida religiosa era muito maior no So Bento que no

    So Francisco.

    Quer dizer, a sua vontade tem um poder sobre o desejo, mas ela no tem um

    poder absoluto. Esse poder pode chegar a quase total, mas total ele no vai se tornar.

    Est claro isso a? No tem nenhum santo que no passou por isso.

    Sempre existe tambm a possibilidade de distrao. Em um determinado

    momento, voc no lembra qual era o motivo para fazer alguma coisa e, a, a

    vontade perde a fora. s vezes voc est forando para lembrar, mas na hora voc

    no lembra.

    Aluno: Faz tudo certo, mas no d certo.

    Professor: Mas isso no uma deficincia da prpria vontade.

    Aluno: Mas das circunstncias externas.

    Professor: No d pra confiar s na vontade. s vezes se faz toda a

    avaliao que possvel para a situao, mas faltou uma informao crucial que era

    impossvel obter. Isso no imoral. E isso pode at gerar uma preocupao

    tremenda, pode at mudar a sua vida completamente. Por exemplo, houve o caso de

    um santo, que passou a se preocupar com a moral por causa disso, foi Santo Afonso

    de Ligrio. Ele era advogado e antes de pegar qualquer caso, ele examinava tudo

    para saber se a defesa daquele lado era moral. Olhava tudo, tudo, tudo. Ento ele s

    pegava um caso depois de olhar toda a situao, analisar todas as informaes, e, a,

    defendia o lado que ele achava bom. E chegou um caso l, que ele examinou todos

    os documentos, todos os depoimentos, e concluiu a favor de um lado. Foi l,

    defendeu a causa e arruinou o outro lado. A, alguns meses depois, chegou a ele um

    documento que invertia o significado de tudo o mais. Ele no foi imoral. Pelo

    contrrio! Ele foi um dos santos mais morais que j existiu. . Certo? Mas esse

    desfecho foi muito estranho.

    Aluno: Essa situao muito comum nas tragdias da literatura e da arte.

    43

  • Professor: uma tragdia, mas no imoral, no h imoralidade nenhuma

    nisso a. Est claro isso a?

    CONCLUSO OU EPLOGO

    Ento, vamos ver se na prxima reunio, se vocs no tiverem nenhum

    outro tema para apresentar na hora, vamos comear a investigao sobre essa idia

    de moral: quando um ato moral ou imoral? O que moral?

    Aluno: J superamos a animalidade, para chegar no humano!

    [risos]

    Aluno: J samos da ameba e fomos para o PT!

    [risos]

    [Professor e alunos comentam sobre o envio do arquivo e da transcrio da

    aula ao professor Olavo. Em seguida, os alunos combinam a da ta da prxima aula,

    marcada para o dia do aniversrio do professor Olavo de Carvalho, 29 de maio.]

    44

  • -

    45