Apostila de Antropologia 1

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A EDUCAÇÃO YANOMAMI E A ÉTICA DA ALTERIDADE O presente capítulo olha pelo prisma yanomami, cujo ethos é ainda pouco conhecido. Mesmo assim, as pesquisas revelam versões. O motivo vem embutido na premissa que abre esta dissertação: A palavra se descola da coisa sem testemunha ocular. Se as conclusões antropológicas não são enquadráveis como teste de DNA, então o discurso subseqüente é razoável. A intenção primordial desta reflexão tem por base a questão: a cultura Yanomami concebe a natureza como organismo vivo, subjetividade ou alteridade? A construção da resposta tem como suporte a ilimitação tética e o princípio ana-dialético. Ela se desdobra nos três pontos a seguir apresentados. 1 AS MÚLTIPLAS FACES DA EDUCAÇÃO YANOMAMI 1.1 Contextualização da Pesquisa A Amazônia, espaço geográfico e cultural onde vivem algumas comunidades Yanomami, tanto do lado brasileiro, quanto do venezuelano, vem sendo palco de debates sobre a relação entre desenvolvimento das comunidades indígenas e impacto sobre a floresta tropical. Os estudos mostram: apesar da pobreza de recursos, a ocupação pré-cabraliana da região não quebra o equilíbrio ambiental, porque: Em vez de seqüências culturais curtas e derivadas de ocupações ligeiras, temos agora evidências de uma seqüência longa e complexa, de ocupações substanciais de prolongada duração, de sociedades complexas de larga escala e de consideráveis inovações e influências partindo da Amazônia para outras áreas (ROOSEVELT, 1992, p. 53). A singularidade dos pesquisadores 1 explica as diferentes percepções da realidade autóctone, mas converge na identificação da estrutura organizativa das tribos Yanomami. 1 “Também vão nesta linha as pesquisas efetuadas por Anna Curtenius Roosevelt, Alcida Rita Ramos, Jacques Lizot, Kenneth Good, Giorgio Re, Fabrizio Re, Francisco Laudato, Luiz Laudato, Bruce Albert, Gale Goodwin Gomes, todos igualmente preocupados com as questões amazônicas relativas à arqueologia, à medicina, à antropologia, à lingüística, à genética, à botânica e à zoologia (...). Tais estudos são fonte de apoio para descrever as principais características do povo Yanomami”. BARRADAS, R. op. cit., 2004, p. 62.

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A EDUCAÇÃO YANOMAMI E A ÉTICA DA ALTERIDADE

O presente capítulo olha pelo prisma yanomami, cujo ethos é ainda pouco conhecido. Mesmo assim, as pesquisas revelam versões. O motivo vem embutido na premissa que abre esta dissertação: A palavra se descola da coisa sem testemunha ocular. Se as conclusões antropológicas não são enquadráveis como teste de DNA, então o discurso subseqüente é razoável. A intenção primordial desta reflexão tem por base a questão: a cultura Yanomami concebe a natureza como organismo vivo, subjetividade ou alteridade? A construção da resposta tem como suporte a ilimitação tética e o princípio ana-dialético. Ela se desdobra nos três pontos a seguir apresentados.

1 AS MÚLTIPLAS FACES DA EDUCAÇÃO YANOMAMI

1.1 Contextualização da Pesquisa A Amazônia, espaço geográfico e cultural onde vivem algumas comunidades

Yanomami, tanto do lado brasileiro, quanto do venezuelano, vem sendo palco de debates sobre a relação entre desenvolvimento das comunidades indígenas e impacto sobre a floresta tropical. Os estudos mostram: apesar da pobreza de recursos, a ocupação pré-cabraliana da região não quebra o equilíbrio ambiental, porque:

Em vez de seqüências culturais curtas e derivadas de ocupações ligeiras, temos agora evidências de uma seqüência longa e complexa, de ocupações substanciais de prolongada duração, de sociedades complexas de larga escala e de consideráveis inovações e influências partindo da Amazônia para outras áreas (ROOSEVELT, 1992, p. 53).

A singularidade dos pesquisadores1 explica as diferentes percepções da realidade autóctone, mas converge na identificação da estrutura organizativa das tribos Yanomami.

Os traços comuns e a diversidade interpretativa, decorrentes da observação sistemática de cada tipo de estudo, justificam-se, porque – além do descolar palavra-coisa – “as reações dos indivíduos às pessoas e coisas se formam pela maneira como vêem através do seu universo cognitivo” (BALLACHEY, 1969, p. 21). Aliás, é isto que possibilita a constituição das ciências sociais. Ou seja, os resultados obtidos a partir da observação dos fenômenos são construídos subjetivamente, de acordo com o universo interior do pesquisador. Todavia, o fato de cada imagem interpretativa corresponder à experiência e compreensão individuais não deve invalidar o legítimo propósito da objetividade científica2, sem esquecer os seus limites3.

Os dados subsequentes são frutos de uma testemunha ocular esclarecedora:

Para realizar este estudo tive o privilégio de, mais uma vez, ter sido acolhido pelos Yanomami Xamathari de Maturacá para observar in loco a vida daquela comunidade,

1 “Também vão nesta linha as pesquisas efetuadas por Anna Curtenius Roosevelt, Alcida Rita Ramos, Jacques Lizot, Kenneth Good, Giorgio Re, Fabrizio Re, Francisco Laudato, Luiz Laudato, Bruce Albert, Gale Goodwin Gomes, todos igualmente preocupados com as questões amazônicas relativas à arqueologia, à medicina, à antropologia, à lingüística, à genética, à botânica e à zoologia (...). Tais estudos são fonte de apoio para descrever as principais características do povo Yanomami”. BARRADAS, R. op. cit., 2004, p. 62. 2 SAGAN, Carl. op. cit., 1996, p. 89. O autor ratifica a meta científica citando Huxley (1825-1895): Só confie numa testemunha quando ela fala de questões em que não se acham envolvidos nem o seu interesse próprio , nem as suas paixões, nem os seus preconceitos, nem o amor pelo maravilhoso. No caso de haver este envolvimento, requeira evidência corroborativa em proporção exata à violação da probabilidade provocada pelo seu testemunho.3 Ibid., p. 17: O astrônomo norte-americano também não hesita em recorrer a Einstein para mostrar os limites da ciência: “Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”.

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participar da vivência cotidiana da aldeia e poder entrevistar líderes, professores, missionários, alunos e todos os membros da comunidade que me pudessem dar informações e me comunicarem seu jeito de ser e viver. Tive também o cuidado de averiguar a literatura e selecionar textos diferentes de autores reconhecidos pela comunidade acadêmica. Nesse sentido executei uma seleção criteriosa dos dados para o propósito deste trabalho. Assim, apesar da diversidade, atentei para o elo comum, a coincidência dos aspectos sistêmicos e organizativos da vida sócio ambiental nas aldeias e analisei tudo sob diferentes enfoques. Ciente destas considerações, percebi a existência de uma lógica responsável pela organização da cultura Yanomami. Qual o resultado? A interpretação das freqüências, ou seja, os aspectos comuns identificam os grupos como uma cultura autônoma, como um povo (BARRADAS, 20004, p. 63).

1.2 A Singularidade Etimológico Cultural

Yanomae, Yanomama, Yanomami querem dizer gente, construtores de casa, devido ao seminomadismo e à rapidez com que, nestas circunstâncias, erguem as malocas (RAMOS, 1992, p. 19). A antropóloga Ramos, de 1989 a 1994, exerce a função de educadora bilíngüe: Yanomama e Português. Ela reconhece quatro variantes na família lingüística4 Yanomami.

As mais próximas são yanomam e Yanomami, as mais distantes, sanumá e yanam. Existem notáveis variações socioculturais que se relacionam, em grande medida, com essas diferenças lingüísticas. Mas, por trás das distinções subgrupais, está um inquestionável ar de família que permite identificar todos eles como pertencentes a uma etnia comum, que nós, brancos, convencionamos chamar Yanomami (Ibid., p. 26).

Os estudos revelam: os contatos dos yanomami com outras famílias lingüísticas sul americanas são raros. Tal isolamento fortalece a unidade cultural e a autonomia. Uma das causas do isolamento é a característica da floresta amazônica. Só quem a conhece é capaz de conviver e dialogar com ela, ouvi-la e refugiar-se nela.

Cada comunidade se considera econômica e politicamente autônoma. Seus membros preferem casar-se entre si. Mas isso não os impede de estabelecer relações:

Troca matrimonial, cerimonial e econômica com grupos locais e vizinhos, considerados aliados frente aos outros conjuntos multicomunitários da mesma natureza. Estes conjuntos se superpõem parcialmente para formar uma malha sócio-política complexa que liga a totalidade das aldeias Yanomami de um lado ao outro do território indígena (ALBERT; GÓMEZ, 1996, p. 29).

O movimento de dispersão do povoamento ocorre de forma singular:

A partir da Serra Parima em direção às terras baixas, ocorre por causa de um grande crescimento demográfico. O período da expansão territorial se efetiva entre o século XIX e o começo do XX. A causa? Os Yanomami adquirem ferramentas metálicas e adotam novas técnicas de plantio e cultivo. Como? Eles trocam seus produtos com grupos de indígenas vizinhos, os Karib e os Arawak que, por sua vez, mantém contato com os brancos, mas são dizimados em razão deste contato. Assim, em virtude da extinção, os Yanomami expandem seu território ocupando as terras vazias dos Karib e Arawak (Ibid., p. 30).

4 BARRADAS, R. op. cit., p. 64: O subgrupo Sanumá prepondera na Venezuela e no alto dos Auaris, no Brasil; os Yanam ocupam a região norte oriental da área Yanomami, seja na Venezuela, seja no Brasil; os Yanomam têm suas aldeias na região sul-oriental da área Yanomami brasileira; e os Yanomami ocupam a região sul-ocidental venezuelana e brasileira.

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Assim, os estudiosos concluem que os Yanomami não possuem afinidade genética ou antropométrica5 com outros povos do local. Isso confirma o isolamento e explica o aparecimento de línguas e dialetos distintos dos demais indígenas da região amazônica. Os mesmos estudos sugerem que o grupo Yanomami ocupa, há mais de um milênio, a área entre os rios Orinoco na Venezuela e o Parima, no Brasil6.

1.3 O Paradigma

A ocupação do espaço florestal tem segue uma cosmovisão.

Este paradigma se exprime mediante uma série de círculos concêntricos ao redor da aldeia. Tal procedimento delimita e estabelece as relações com as áreas vitais. Ou seja: o primeiro círculo, num raio de cinco quilômetros, circunscreve a área de uso imediato da aldeia: pequena coleta feminina, pesca individual ou, no verão, pesca coletiva com timbó, caça ocasional de curta duração (ao amanhecer ou entardecer), atividades agrícolas. O segundo círculo, num raio de cinco a dez quilômetros, é a área da caça individual (rama huu) e da coleta familiar do dia-a-dia. O terceiro círculo, num raio de dez quilômetros, é a área de expedições de caça coletiva de uma a duas semanas (henimou). As expedições precedem os ritos de cremação funerária e os grandes encontros cerimoniais intercomunitários (reahu). O mesmo ocorre com as grandes expedições plurifamiliares de coleta e caça (três a seis semanas) durante a fase de maturação das novas plantações (waima huu). Tais expedições, em geral, têm por alvo áreas onde se encontram colônias de apreciadas árvores frutíferas ou áreas selecionadas por sua riqueza em caça (BARRADAS, 2004, p. 65-66).

1.4 O Estado de Guerra, o Banquete Fúnebre e o Papel do Xamã

Os Yanomami reservam as estações das águas baixas para efetuar visitas, festas e guerras. Motivo? O solo seco e firme facilita a caminhada, a pesca e a colheita de bananas. Cada atividade sucede a um ritual específico, adequado para favorecer o seu bom desempenho. Por exemplo, os Yanomami costumam convidar aldeias vizinhas para festas cuja finalidade é ingerir as cinzas de seus mortos.

Via de regra, segundo as interpretações xamânicas, as causas das mortes são: espíritos maléficos – enviados por outras aldeias inimigas que vêm roubar-lhes a alma – disputas entre grupos de guerreiros e desentendimentos entre os indivíduos. Quando prevalece a primeira interpretação, ou seja, a morte enviada pelos inimigos através de espíritos vingadores, a aldeia convidada alia-se ao anfitrião. “Depois das festividades, dos rituais e do banquete funerário, todos os homens saudáveis, juntos, lançam uma expedição para vingar o morto” (LIZOT, 1988, p. 165). Caracteriza-se, deste modo, o estado de guerra. A guerra entre os grupos rivais geralmente radica em desavenças pretéritas: posse ou rapto de mulheres, guerra latente no espírito do povo, guerra por feitiçaria ou guerra abertamente declarada. Assim, a qualquer instante pode deflagrar o “ciclo fatídico das represálias, dos ataques e contra-ataques” (Ibid., p. 166).

A hostilidade resulta em mortes numerosas por enfrentamentos físicos, ou então porque os xamãs decidem fomentar as tensões entre os grupos e enviar espíritos malfeitores à aldeia inimiga para promover-lhe desgraças e aborrecimentos. Os xamãs centralizam o controle sobre o mundo espiritual e material de suas respectivas aldeias. Eles constituem uma hierarquia de autoridade entre homens adultos, cujo critério determinante é a maior ou menor facilidade em contatar os espíritos e ajudar o grupo a resolver seus mais variados problemas.

A maioria dos homens Yanomami é iniciada à vida xamânica e costuma testar seus poderes para solucionar questões como o controle das chuvas, da seca, das doenças, dos maus espíritos. Desta forma, surge naturalmente um líder respeitado, ouvido e seguido pelos demais componentes do grupo. O processo de formação segue as

5 A antropometria é o processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes.6 Outros dados sobre a área geográfica, a população yanomami e os grupos lingüísticos.

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etapas dos rituais de iniciação a líder xamã. Primeiro o candidato recebe os espíritos menores; em seguida, os grandes hekuras, seres sobrenaturais, que “fazem parte do mundo imaginário dos xamãs. Espírito de planta, animal ou elemento natural, os hekuras vão morar no peito dos xamãs, a quem comunicam seus poderes” (Ibid., p. 224). O ritual de passagem começa quando o candidato consome alucinógenos para poder participar de "uma realidade superior, até então oculta, que se revela através da mensagem dos xamãs, cheia de cores fortes, formas insólitas, seres estranhos e terríveis, que devoram as almas mas que, se o candidato souber domesticá-los, eles irão recebê-lo com docilidade" (Ibid., p. 104).

Assim, para alcançar a condição de xamã, o iniciado segue rigorosamente todas as etapas do ensinamento, toma certos cuidados com o corpo, até atingir a comunicação definitiva com os espíritos.

1.5 A Presença Feminina na Educação Raramente se admite a existência de xamãs ou espíritos femininos. Lizot (1988,

p. 151) registra uma exceção envolta em mistério e surpresa e a reproduz no seguinte diálogo entre o pai Kaõmawe e seu filho Hebewe:

- Você ouviu falar da mulher que se tornou xamã em Suimiwei?- Não.- Um visitante contou.- É possível. As mulheres não podem ser iniciadas, mas algumas delas são grandes videntes, e às vezes são a revelação dos hekuras. Há uma mulher hekura nos Waika, se chama Weikayoma. Não sei onde ela está morando.- As mulheres xamãs cuidam dos doentes?- Elas tomam alucinógenos, cantam pelos espíritos e são capazes de procurar a alma de um doente. Weikayoma mata as crianças e come suas almas. Ela está sempre de sobreaviso: quando um xamã vem atacá-la, o vê imediatamente, defende-se de seus golpes e o persegue.

O exercício de liderança ou da autoridade entre as comunidades Yanomami é função essencialmente masculina. As mulheres possuem funções participativas na comunidade, conservam grande parte da memória coletiva. Elas “não participam das conversas dos homens durante um ritual, mas se aproximam dos maridos, filhos e pais para lembrar-lhes os assuntos a serem tratados” (BRITO, 1996, p. 26).

Assim, a atividade feminina, em momentos rituais, resume-se a uma participação indireta. As mulheres recebem mensagens ou presságios via sonhos. Os maus presságios são afastados através de simpatias.

1.6 Os Rituais de Caça e a Festa da Fraternidade: o Reahu

Os hekuras regem as cerimônias ou rituais para: as caçadas grupais na floresta; a cura de doenças; a boa coleta de plantas.

Cada planta tem um uso específico: uma é para caçar inambu, outra para o mutum, uma para o tucano, uma para o tatu e os pássaros. Como se parecem, é necessário o olho experiente dos proprietários para distingui-las. Os rapazes, ao passarem, notam os afrodisíacos, as folhas cheirosas para as mulheres, a planta para fazer crescer as crianças, a que dá força para trabalhar na roça, a que permite que um incesto dê certo (LIZOT, 1988, p. 126).

O destaque cultural é a festa da fraternidade denominada Reahu. Seu ritual inclui: convidar as aldeias vizinhas, trocar bens e promover casamentos. O Reahu

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estabelece aliança interaldeias e envolve respeito às formalidades. Por exemplo, os parentes que aceitam o convite para a hospedagem na aldeia vizinha enviam mensageiros para agradecê-lo e concretizá-lo com a oferta de objetos do tipo “lanças lanceoladas, curare, novelo de algodão fiado recentemente, afrodisíacos e manaká, planta que torna as mulheres estéreis” (Ibid., p. 166). A partir deste sinal, os anfitriões iniciam os preparativos para receber os convidados na data estabelecida. Os anfitriões têm destacado papel econômico, pois devem dispor de excedente alimentar suficiente para abastecer a festa e garantir prestígio perante as demais comunidades. Para atingir ou manter esse patamar, dividem o trabalho por sexo e iniciam árdua produção de alimentos e objetos. Os homens providenciam carne através de caça e pesca. As mulheres coletam frutas, raízes e fabricam objetos interessantes para a troca.

Os convidados, por sua vez, preparam um acampamento provisório, próximo à aldeia dos anfitriões, onde aguardam o convite oficial para entrar e, a partir de então, iniciar a festa e os rituais. A confirmação do convite compete aos jovens, que se enfeitam com traje a rigor: pinturas de urucum para a ocasião, braçadeiras de penas, colares de contas e facão (se possuem). Deste modo, dirigem-se ao acampamento, onde são recebidos com assobios e ovações frenéticas. Então, declaram breves frases cortadas, ritmadas, logo replicadas por um velho. Terminada esta etapa, todos formam uma longa fila até alcançar a aldeia anfitriã. Mas, antes de adentrá-la, os convidados também enviam seus jovens interlocutores para ratificar o chamado. Finalmente, se dirigem ao local dos festejos: a praça do xabono, e ali anunciam sua chegada.

"Assim que se fica sabendo da presença dos hóspedes, um concerto ensurdecedor de gritos e assobios de saudação ecoa dentro da casa. Então começa o rito braiai, dança de apresentação executada pelos hóspedes em torno do perímetro da praça central" (Ibid., p. 192).

Homens e mulheres participam do rito, porém, cada qual desenvolve os próprios passos, conforme as diferenças sexuais. Depois da dança de apresentação, os convidados posicionam-se no centro da praça. Ali, “numa atitude desafiadora, aguardam o convite formal para irem até a fogueira indicada, onde já se encontram as mães e esposas”. (Ibid., p. 195). Por algum tempo a praça permanece vazia, porque quando se juntam com suas famílias, os convidados recebem tabaco, compota de banana e outros alimentos. Todos “comem gulosamente, soltando arrotos, para mostrar que estão satisfeitos”. (Ibid., p. 197). Ao final da refeição, principia um tipo de intercâmbio verbal onde, tal como um jornal cantado, os visitantes contam suas histórias e, ao mesmo tempo, dizem o que esperam dos anfitriões. Enquanto isso, os anfitriões permanecem audientes, limitando-se a repetir, com respeito, a última palavra.

A seguir invertem-se os papéis e os anfitriões passam a responder às indagações dos visitantes. Normalmente, este tipo de diálogo começa com os jovens, mas depois os mais velhos também participam.

Esta cerimônia ancestral é praticada em festas e encontros, como no ritual Reahu, quando se trocam bens e notícias. As frases ritmadas são construídas silabicamente, utilizando figuras de retórica. Assim, “um ponto brilhante sob o sol” significa facão. Argila é “coisa colocada sob o sol” (BARRADAS, 2004, p. 71). Segundo Davi Kopenawa Yanomami, os diálogos são interpretados de maneira cordial e visam estreitar os laços entre os povos.

As vozes ritmadas desvendam as intenções do interlocutor. São duelos de palavras. Rápidos. Exigem habilidade e domínio da língua. As brincadeiras entre os adolescentes são o começo de tudo. Trata-se de um processo educacional dialógico que perpassa todas as faixas etárias e promove intercâmbio de notícias, informa sobre as possíveis trocas de presentes, formaliza casamentos, enfim, estabelece relações de reciprocidade entre as aldeias. Os autores usam palavras diferenciadas para a mesma

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atividade. Keneth Good e David Chanoff relatam suas experiências como participantes do grupo Hasupuweteri entre os convidados do grupo Nanimabuweteri. Para eles, o diálogo das trocas é denominado Wayamou e, segundo suas anotações, depois do entardecer, quando todos se encontram em suas redes, assobios altos e agudos cortam a noite anunciando o começo do canto.

Outro depoimento diz que o guia Hasupuweteri inicia a melodia ritmada:

O que estou planejando, o que estou planejando dizer Não me pergunte porque, porque vim aqui. Você devia dizer que vai me dar, dar com generosidade. Não me diga não, não, eu não vou lhe dar. Então do outro lado do xabono, no escuro, uma voz respondia, cada vez mais forte: Fale agora, faça-me os seus pedidos (GOOD, 1991, p. 111).

O canto atravessa a noite. Passa de um visitante a outro. Todos têm a oportunidade de fazer pedidos e dar respostas. Ao amanhecer, o chefe Nanimabuweteri deixa sua rede e diz: "Chega. Falamos bastante tempo. Vocês guardaram tudo dentro do ouvido. Basta, basta, isso é tudo. E assim, os assobios rasgaram o ar outra vez, como aconteceu quando o canto começou" (Ibid., p. 112).

Quando enrouquecem, interrompem o diálogo para breve descanso ou refeição leve. Em seguida, aguardam as trocas, que, normalmente, precedem a partida dos convidados. Portanto, “não há aliança sem comércio” (LIZOT, 1988, p. 215). A celebração de pacto político significa firmar ciclos de trocas comerciais e matrimoniais. Caso contrário estabelece-se o estado de guerra entre as partes. Para os Yanomami, só existem amigos ou inimigos. Esta postura cartesiana pode ser ilustrada assim: quem nega um pedido, corre o risco de receber uma bordunada. A recusa do dom é em si uma afronta: sinal de hostilidade. Ou seja, negociar envolve discussão e ameaça de ruptura.

Os Yanomami cultivam o risco do jogo e o gosto pelo desafio. Eles adoram regatear, não tanto pela coisa em si, que, em última análise, só tem uma importância secundária, mas pelo tempero social e espiritual inerente ao intercâmbio. Por isso, logo doam o que recebem. Tal artimanha revela uma lógica singular. No mundo Yanomami, o imperativo da troca inviabiliza a acumulação. Para eliminar a avareza, único vício reconhecido e combatido pela moral Yanomami, um castigo: o fogo. Para eles, o fogo, concebido como algo celeste, consome as almas. Nesse sentido, não há prazer em acumular, mas a satisfação de repartir, de distribuir os bens com os demais (BARRADAS, 2004, p. 72-73).

Assim, quando o Reahu se aproxima do fim, os homens continuam conversando, enquanto as mulheres se põem a caminho, carregando, em seus cestos, todos os pertences do grupo. De repente, um silêncio geral: os convidados, sem palavra, se retiram do xabono em direção à floresta e deixam na grande casa um breve sentimento de vazio. Então, cada um retoma seu afazer cotidiano com a sensação de encerramento de um ciclo que, imediatamente, se reinicia.

1.7 O Significado da Floresta: Morada e Urihi 1.7.1 Morada

A floresta recebe conotações diversas. Por exemplo, a de lar, habitat socioambiental que integra as roças e as aldeias ou grupo de aldeias, acentuando a unidade entre o silvestre (natureza) e o cultivado (cultura). A floresta incorpora os espíritos imateriais, cuja presença instaura um clima de mistério não manipulável, mas ela também propicia a caça e a coleta, meios de sobrevivência dos indígenas. Enfim, a floresta exerce sensações sobre as pessoas: fascínio, desafio, reverência, temor respeitoso.

A vida cotidiana é vinculada à floresta, à sua existência, à sua onipresença. Ela perpassa todos os sentimentos dos humanos. Afinal, “são cenas, são sons, são cheiros, são sensações palpáveis ou imprecisas que dão corpo e alma à vivência do dia-a-dia

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imerso pela floresta e que tornam tais experiências irrelatáveis em sua plenitude”. (RAMOS, 1992, p. 33). E a casa7 comunitária pertence a este universo. Nesse sentido, existem demonstrações de que:

As três palavras – yano, xabono, saia – são relacionadas entre si. Nenhuma delas tem seu significado restrito meramente ao prédio, à construção física da casa. Em cada vocábulo está inscrita uma carga semântica muito mais densa, fazendo das casas Yanomami verdadeiro microcosmo social e simbólico (Ibid., p. 43).

Este referente consagra os grandes acontecimentos da vida comunitária: exercícios e curas xamânicas (algo como que a extração de cálculo renal), sessões de alucinógenos (paricá), trocas de bens de consumo ou de cinzas dos mortos. Todas as aldeias, apesar das diferenças arquitetônicas, celebram tais eventos. Estes ocorrem nas casas tipo yano ou xabono – redondas com pátio central apropriado para os rituais – e tipo saia: retangulares, com teto de duas águas, "dispostas de maneira aparentemente aleatória e até displicente, sem uma orientação definida” (Ibid., p. 41) e sem pátio central como nas anteriores.

Assim, os Xamathari do Maraiuá constroem o seu novo xabono com uma determinação básica: ver, do centro da praça do xabono, a Serra do Maraiuá, que representa o ponto de referência espiritual para os seus pajés poderem entrar em contato com os espíritos eternos (LAUDATO, 1998, p. 28).1.7.2 Urihi

O ethos Yanomami tem sua expressão na Urihi, a floresta. Ela se estende do nível superior ao inferior do céu. Dela o sol se levanta e nela torna a imergir, reemerge ao amanhecer, recorrendo o caminho da lua, ao infinito, como nos tempos dos primeiros entes, quando:

Suhirima, o espírito que protege os caçadores,Matou a Lua com sua flecha. Assim vingava sua filha, a mulher estrela,Xitikarinhoma, a esposa do astro lunar,Que ele matara devorando-aAo contato com a terra o sangue do espírito lunar transformou-se em sexo masculino.A maior parte dos Yanomami viventesSão descendentes do espírito lunar, e porque nasceram do sangue,Combatem incessantemente (RE; LAUDATO, 1988, p. 27).

A lua, segundo este mito de origem, é morta para não fugir ao horizonte da Urihi Yanomami. A Urihi é o habitat Yanomami como totalidade de vida. O xabono, a casa comum, é sua expressão micro-cósmica. A importância e o respeito Yanomami pela Urihi são notórios. É a mãe que sustenta e consola: "Ela nos acolhe e nos dá tudo que precisamos"8. É horizonte mitológico-religioso: "[...] é nela que moram os espíritos, que podem morar também no peito dos grandes pajés se eles souberem se aproximar deles" (Ibid., p. 27). É a ela que os pajés se dirigem pedindo proteção e ajuda nas caçadas. Os pajés falam com a Urihi e ouvem-na durante as sessões de pariká.

Assim, a Urihi é o espaço do labor coletivo pela sobrevivência (roças comunitárias); é o lugar oferecente dos utensílios, alimentos, significados e significantes indispensáveis à co-existência na, com e pela pangaia. A Urihi é a razão de ser do

7 BARRADAS, R. op. cit. 2004, p. 67: “Os Yanomami se deslocam com suas habitações, nascimentos, agregações, casamentos e mortes. Ao mesmo tempo, observa-se, nunca abandonam a estrutura cultural básica: a casa comunitária denominada yano ou cônico pelos Yanomam, xabono pelos Yanomami e saia pelos Sanumá”. 8 JOAQUIM, pajé e líder dos Yanomami de Maturacá.

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Yanomami. Com ela "estamos juntos desde os tempos dos primeiros Yanomami. Portanto, a Urihi estabelece, há séculos, uma profunda relação de intercomunhão, co-existência, alteridade.