Aproximações entre Bíblia e psicanálise

9
APROXIMAÇÕES ENTRE LEITURA DA BÍBLIA E PSICANÁLISE: UM ESBOÇO DE DIÁLOGO 1 Karin Kepler Wondracek 2 Talvez soe estranho aos ouvidos de ambos, psicanalistas e teólogos, a aproximação que pretendemos aqui. Pois há mais sensações de afastamento que de aproximação, em todos estes anos de embates e debates. 3 Por isso, é prudente começar por colocar as possíveis aproximações. Num primeiro momento, falar de caminhos comuns, e depois da relação entre o texto escrito e a sessão analítica. Para começar, resgatemos a herança judaica de Freud, leitor da Biblia. 1. Freud, filho do Talmud Freud foi então buscar nos sonhos, nos mitos e nas histórias sagradas uma confirmação do que é da ordem da incoerência, do indizível e do invisível. Construir um edifício teórico como se fosse um tecelão, esta foi a estratégia de Freud. Em seu tear, a matéria prima a palavra do paciente era cerzida com os fios do pensamento grego, e os da ética judaica, e bordada com metáforas retiradas do drama e da poesia ocidentais. Betty B. Fuks 4 A psicanálise, diz ele, talvez não seja concebível como nascida fora dessa tradição [hebraica]. Freud nasceu nela e, como sublinhei, insiste em que só tem propriamente confiança, para fazer avançar as coisas no campo que descobriu, nesses judeus que sabem ler há muitíssimo tempo, e que vive, é o Talmude da referência a um texto. Jacques Lacan 5 Se a frase de Betty Fuks resume o percurso freudiano e o aproxima da ética judaica, a de Lacan quer indicar que esta ética é alicerçada na referência ao Talmude o Livro, o texto por excelência. Para isso nos embasamos na tese de doutorado da psicanalista Betty B. Fuks, Freud e a judeidade: a vocação do exílio. No seu último grande escrito, Moisés e o monoteísmo 6 , Freud analisa a herança que a religião judaica trouxe a seu povo; o destaque é dado às repercussões psíquicas e culturais do Segundo Mandamento: “não farás para ti imagem”, lado a lado com a grafia do tetragrama impronunciável YHVH. Freud pondera que a invenção do monoteísmo com tais atributos impõe 1 Texto primeiramente elaborado para a abertura do Grupo de Estudos Psicanálise-Biblia, em 2005, no Círculo Psicanalítico de Porto Alegre, sob coordenação de Natal Fachini e nossa; mais tarde complementado com a pesquisa de doutorado. 2 Psicóloga e psicanalista, membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. Contatos: [email protected] 3 Especialmente em O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre a religião. Petrópolis: Vozes, 2003, organizado pela autora. Cf também O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e psicanálise (Sinodal, 2005), dissertação de mestrado da autora. 4 FUKS, Betty B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 58. Os próximos parágrafos são retirados da tese de doutorado Ser nascido na Vida: a fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. São Leopoldo: PPG EST, 2010. 5 LACAN apud FUKS, 2000, p. 139. 6 FREUD, Moisés e o monoteísmo (1939). OC v. XXIII, 1977, p. 19-167.

Transcript of Aproximações entre Bíblia e psicanálise

Page 1: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

APROXIMAÇÕES ENTRE LEITURA DA BÍBLIA E PSICANÁLISE:

UM ESBOÇO DE DIÁLOGO1

Karin Kepler Wondracek2

Talvez soe estranho aos ouvidos de ambos, psicanalistas e teólogos, a aproximação que pretendemos aqui. Pois

há mais sensações de afastamento que de aproximação, em todos estes anos de embates e debates.3 Por isso, é prudente começar por colocar as possíveis aproximações. Num primeiro momento, falar de caminhos comuns, e depois da relação entre o texto escrito e a sessão analítica. Para começar, resgatemos a herança judaica de Freud, leitor da Biblia.

1. Freud, filho do Talmud

Freud foi então buscar nos sonhos, nos mitos e nas histórias sagradas uma confirmação do que é da ordem da incoerência, do indizível e do invisível.

Construir um edifício teórico como se fosse um tecelão, esta foi a estratégia de Freud. Em seu tear, a matéria prima – a palavra do paciente – era cerzida com os fios do pensamento grego, e os da ética

judaica, e bordada com metáforas retiradas do drama e da poesia ocidentais. Betty B. Fuks4

A psicanálise, diz ele, talvez não seja concebível como nascida fora dessa tradição [hebraica]. Freud nasceu nela e, como sublinhei, insiste em que só tem propriamente confiança, para fazer avançar as coisas no campo que descobriu, nesses judeus que sabem ler há muitíssimo tempo, e que vive, – é o

Talmude – da referência a um texto. Jacques Lacan5

Se a frase de Betty Fuks resume o percurso freudiano e o aproxima da ética judaica, a de Lacan quer indicar que esta ética é alicerçada na referência ao Talmude – o Livro, o texto por excelência. Para isso nos embasamos na tese de doutorado da psicanalista Betty B. Fuks, Freud e a judeidade: a vocação do exílio.

No seu último grande escrito, Moisés e o monoteísmo6, Freud analisa a herança que a religião judaica trouxe a seu povo; o destaque é dado às repercussões psíquicas e culturais do Segundo Mandamento: “não farás para ti imagem”, lado a lado com a grafia do tetragrama impronunciável YHVH. Freud pondera que a invenção do monoteísmo com tais atributos impõe

1 Texto primeiramente elaborado para a abertura do Grupo de Estudos Psicanálise-Biblia, em 2005, no Círculo Psicanalítico de Porto Alegre, sob coordenação de Natal Fachini e nossa; mais tarde complementado com a pesquisa de doutorado.

2 Psicóloga e psicanalista, membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. Contatos: [email protected] 3 Especialmente em O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre a religião. Petrópolis: Vozes, 2003, organizado pela autora. Cf também O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e psicanálise (Sinodal, 2005), dissertação de mestrado da autora. 4 FUKS, Betty B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.

58. Os próximos parágrafos são retirados da tese de doutorado Ser nascido na Vida: a fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. São Leopoldo: PPG EST, 2010. 5 LACAN apud FUKS, 2000, p. 139. 6 FREUD, Moisés e o monoteísmo (1939). OC v. XXIII, 1977, p. 19-167.

Page 2: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

2

[Digite texto]

uma ausência de representação ao espírito humano que lhe traz conflitos, pois esse “não se cansa de procurar organizar-se no sentido das imagens e da presença figurada”7.

Fuks ressalta como essa concepção traz o escândalo da alteridade radical: um Deus feito de nada, sem conteúdo, sem nomeação e sem essência. Essa seria uma das razões do ódio dos demais povos aos representantes de tal ausência radical. Freud interpreta o efeito dessa interdição de representabilidade no seu povo:

Uma vez aceita, porém, esta proibição teve um efeito profundo sobre os hebreus: significava um retrocesso da percepção sensorial diante do que se poderia ser chamado de idéia abstrata – um triunfo do espírito sobre a sensualidade, ou, a rigor, uma renúncia ao pulsional, com todas as suas

consequências psicológicas necessárias8.

A interpretação freudiana vai no sentido de atestar a evolução intelectual e espiritual com o distanciamento do corpóreo e a busca do abstrato. O corpo é relacionado ao continente materno, lugar dos afetos primários e também das religiões primitivas. A passagem para o mundo das ideias é ligada ao território do pai e da sua presença mediante a palavra. O Deus dos hebreus revela-se pela palavra, tal qual o pai, e pelo sopro invisível infunde seu espírito ao ser humano, que vive a partir deste.

1. Para começar, a história do povo é marcada pelo exílio, pelo deserto, pelo nomadismo e pelo contato pemanente com o estrangeiro, o que faz com que em todo tempo se tenha presente “o estranho”, também remetendo a um “estranho” dentro do psiquismo, um estranho dentro dos textos.

2. Em relação a seu Deus, este é representado por um tetragrama – IHVH –, cuja pronúncia foi esquecida, remetendo a que sempre está além da representação que se fará dele, e assim seu Deus é alteridade absoluta, inquietante estranheza e por isso presença de angústia.

A angústia, o ensurdecedor barulho do silêncio, surge diante deste abismo de onde reverbera o som ininteligível que subjaz à lembrança que é de todos: a passagem pelo deserto, o exílio inexorável a que se está destinado desde o nascimento. YHVH não pode exercer a função de espelho porque é

alteridade radical, avesso a qualquer forma de representação.9

3. As letras do hebraico comportam uma polissemia de interpretações, sem que uma negue a veracidade da outra. O texto é aproximado da obra de arte, com sentido inesgotável, “está ancorado no mais além do simbólico: tecido de diferenças é criação ex-nihilo”10. As consoantes indicativas que fornecem indícios à pronúncia são significativamente chamadas de “mães de leitura”; e as interpontuações vocálicas juntadas para poder pronunciar e interpretar são a “alma das letras”11. Mães e alma... dão corpo e sopro de vida à letra. As palavras são lidas e interpretadas levando em conta o branco do papel que as circunda – sempre outro, sempre diferente do já sabido, tal como seu Deus. “Quando se imprime alma às letras, como diziam os antigos escribas, o sentido de uma palavra pode revelar significações inteiramente insólitas.”

Os exegetas hebreus acreditavam que cada versículo da Biblia comportava 60 possibilidades diferentes de interpretação, complementares e não excludentes, por isso inesgotáveis.12 Por isso a hermenêutica psicanalítica é tão prenha de sentidos, sempre criativos e novos.

4. O tetragrama YHVH é a analogia tomada por Freud para a interpretação do sonho: as imagens do sonho devem ser lidas como as letras do tetragrama, remetendo à polissemia e à impossibilidade de decifrá-lo plenamente, pois ele resiste a todas elas. Interpretar ou ler psicanaliticamente um sonho é "deixar um lugar nas sombras... o umbigo do sonho, o lugar em que ele se assenta no não conhecido”13. Em outras palavras, compreender o texto bíblico pela hermenêutica psicanalítica é fazê-lo voltar ao modo originário de interpretação – polissêmico tal

7 FUKS, 2000, p. 99. 8 FREUD (1939), 1977. p. 139. 9 FUKS, 2000, p. 108. 10 FUKS, 2000, p. 122. 11 FUKS, 2000, p. 127. A próxima também. 12 CHOURAQUI, André. Louvores II, p. # 13 FREUD apud FUKS, 2000, p. 126, também p. 107.

Page 3: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

3

[Digite texto]

qual o sonho. Do texto sagrado à psicanálise, da psicanálise de volta ao texto sagrado, mantendo o modo original de interpretação.

5. Se Deus é irrepresentável, assim também o humano, feito à imagem de Deus, em certa medida o é. Este é o conceito de Kadosh [santo, separado]: o humano para além da representação. Eis o paradoxo da condição humana: ser feito à imagem e semelhança desse Deus que não admite imagem.

Essa antinomia – identificação à ausência de imagem – estabelece que o homem, sendo santo e separado, é também irredutível a qualquer representação fixa e imutável (Levítico 19.2). Há sempre algo que escapa a seu próprio espelho; a epifania do rosto, o que está para além do idêntico que não

se transformar em conteúdo14

.

Compreender o texto sagrado, portanto, também é compreender parcialmente e fragmentariamente o mistério do humano feito à imagem desse divino irrepresentável, sempre

para além do texto, mas no entanto, se revelando através dele.

6. Se a palavra se constitui na revelação do Deus Único e Ausente, é Palavra infinita que não se sincroniza com os signos que a captam – inscreve-se numa narrativa e numa lei. Essa inscrição será o traço de uma palavra primeira, primordial, de um dizer que já está retirado do dito”15.

Numa narrativa e numa lei – numa história dos encontros de afetos e numa sistematização para a memória, mas que deve ser “re-cordada” em todos os momentos do viver, ou seja, tornar-se memória do corpo nas diferentes posturas do vivido, algo que a herança galileana16 também ameaçou varrer dos estudos dessa Palavra.

No judaísmo, a palavra-representação não abarca o todo, isso sempre referido pelo esquecimento da pronúncia do nome do pai – impronunciável, irrepresentável, mas presente. “A palavra é portanto o fio infinito que tece o tecido que recobre o vazio insuperável entre Deus e os homens, entre homem e homem kadosh e kedushim”17.

Também a Palavra, a Bíblia, tem esse sentido de tecer o fio que recobre o vazio da proibição da representação que fixaria idolatricamente a imagem. Assim abre-se possibilidades múltiplas de ler, associar, reler, associar novamente, sempre sabendo que não supera completamente o vazio da ausência, mas apenas conseque circunscrevê-la.

7. O conceito de pulsão também é iconoclasta – e neste sentido não apenas próximo à Vontade cega de Schopenhauer, mas perto do Segundo Mandamento:

Todas as letras e palavras escritas no corpus teórico psicanalítico não recobrem, seja com figuras, seja com definições, este conceito, cujos fundamentos se enraizam na impossibilidade de fixar-se uma representação para a inesgotável melodia pulsional, assim determinando um vazio presente em sua estrutura: a pulsão se traduz apenas como uma potência que se presentifica em representações

efêmeras e transitórias18.

Assim como a Palavra revela e encobre IHVH, a representação o faz em relação à pulsão. “Este o esforço que obriga o analista a atravessar os afetos e as idéias como os nômades atravessam o deserto e as cidades.”19 Se o afeto é região desértica, lá a revelação de YHVH se deu como presença em fogo e nuvem. Fuks afirma que, para melhor compreender os paradoxos do

14 FUKS, 2000, p. 105, certamente inspirada em Levinas. 15 BANON apud FUKS, p. 106. 16 Herança galileana é um conceito do filósofo Michel Henry (1922-2002) que assim nomeia a desconfiança do pensamento ocidental, desde Galileu, com os dados apreendidos na subjetividade e a posterior exigência de representabilidade a todo fenômeno no pensamento ocidental. Se esse processo foi benéfico para o avanço das ciências, foi catastrófico para a subjetividade, gerando a desqualificação da dimensão afetiva e das verdades que não são

representáveis, como o são as da Vida. Cf. tese da autora e HENRY, M. Genealogia da psicanálise: o começo perdido. Curitiba: UFPR, 2009. 17 FUKS, 2000, p. 106. 18 FUKS, 2000, p. 104. 19 FUKS, 2000, p. 104.

Page 4: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

4

[Digite texto]

Sinai, é preciso situar YHVH no registro do inconsciente não-recalcado. Essa herança traz a Freud o duplo registro:

Freud reconhece duas formas de registro da pulsão: a ideativa e a afetiva, implicando cada uma delas uma forma distinta de energia psíquica. É fato que uma não pode ser pensada sem a outra; a primeira envolve um representante que já se inscreveu, já se ligou à ordem ideativa; a segunda indica um excesso pulsional irredutível às malhas da simbolização. Nesse último registro, grita a inominável angústia. É no face-a-face com o desconhecido que o sujeito vive o encontro que expressa a extensão da repetição de uma experiência que “não cessa de não se inscrever”, segundo a fórmula de Lacan para falar do registro do real.20

Esta experiência do desconhecido em si também se dá na interpretação do texto: este também deve considerar a mensagem dupla presente nele: o significado explícito e o significado latente. Um não anula o outro, mas se complementam. Este o modo dos exegetas judeus operarem, tal como mostra Abraham Heschel na discussão a respeito da isenção do cego de um olho de peregrinar a Jerusalém. Os exegetas isentam-no pois assim como ele veio para ser visto, ele veio para ver, mas cego de um olho, não consegue ver a grandeza de Deus no seu Templo. Este o sentido manifesto desse texto; mas Heschel como intérprete faz a passagem para o sentido latente, da mesma forma como Freud o faz na interpretação do sonho:

Nessa busca, um olho é o da razão o outro o do coração (místico). Aquele que é espiritualmente cego de um olho, que só consegue ter a experiência religiosa por meio da perspectiva da razão ou da perspectiva da mística, não consegue viver a experiência religiosa na profundidade necessária para estar na presença do Deus vivo. Tendo apenas a visão parcial, ele não consegue fazer a necessária

paralaxe, isto é, sintetizar os dois pontos de vista em uma visão tridimensional.21

Se os exegetas como Heschel expressam que a profundidade do texto só é atingida com os dois olhos, cabe perguntar se as leituras psicanalíticas da Biblia não buscam justamente o “outro olho”, com o qual penetrar na profundidade do texto para, como expressa Tillich, este seja pregação ao inconsciente?22 Por que insistem os psicanalistas leitores da Biblia23, por que insistem os hermeneutas com a psicanálise?

Talvez o próximo ponto possa trazer mais elementos para essas questões.

2. O texto como sessão e a sessão como texto

Para Raguse (1994) tanto na leitura de um texto como para uma sessão analítica, há um espaço por preencher – o escritor não está presente para “explicar-se” ou mostrar-se; da mesma forma, o analisando não está totalmente presente, pois seus dinamismos inconscientes estão recalcados. Deus está ausente e é presentificado pelo texto; as pulsões estão recalcadas e se manifestam na fala do analisando.

A palavra é erigida a símbolo que recria a presença do ausente – isto remete ao texto já citado de Freud “Os progressos da espiritualidade”24.

Deste modo, há um espaço que fica vazio entre o leitor e o texto, como também entre analisando e analista – espaço que é preenchido pela transferência e contratransferência. Segundo o teólogo e psicanalista Hartmuth Raguse, as fantasias tecem uma trama que une ambos – na leitura e na sessão. Foi Winnicott quem mais se ocupou deste fenômeno, ao conceituar o “espaço

20 FUKS, 2000, p. 107. 21 LEONE, Alexandre. Mística e razão: dialética no pensamento judaico. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 141. 22 WONDRACEK, K. A teologia de Tillich e a psicanálise. Correlatio. São Bernardo do Campo, v.6, 2004

23 DOLTO, Françoise e SEVERIN, Gerald. O evangelho segundo a psicanálise. KRISTEVA, Julia:

Ler a Biblia; Marie Balmary, O sacrifício proibido. JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe, para citar alguns. Vide bibliografia no final 24 FREUD (1939). Os progressos da espiritualidade. In: Moisés e o monoteísmo. Obras

completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

Page 5: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

5

[Digite texto]

transicional”, o lugar entre a mãe e seu bebê, onde este preenche a ausência materna com as fantasias e objetos que evocam a presença amada.

O paradoxal é que este espaço de ausência justamente é necessário para que haja esta recriação, esta nova presentificação.

É o espaço da brincadeira e da fantasia ficcionante, através da qual um ambiente limitado é preenchido com um mundo que simultaneamente é objetivo e subjetivo. Através do ler a leitora e o leitor criam um mundo, que por um lado é determinado pelo texto e de modo nenhum surge totalmente do nada. Mas cada leitura do mesmo texto é diferente, e na criação do mundo textual não é possível delimitar qual o elemento que se origina no sujeito e qual no objeto. Ambos sempre estão envolvidos. O que eu cito aqui se refere principalmente à leitura espontânea, mas também o processo científico de interpretação não tem como sua matéria-prima o texto “objetivo”, mas a leitura do texto

através de um intérprete.25

No mínimo, são necessários dois: o texto e o intérprete. Aprofundando o paradoxo, Raguse toma uma cena da Odisséia como figura da leitura – Odisseu está no Vale dos mortos, e para fazê-los falar, necessita dar-lhes sangue de um animal sacrificado. Sob efeito deste sangue os mortos falam, e dizem coisas que surpreendem. Isto é, o leitor precisa dar seu “sangue” para que o texto fale: mas ao mesmo tempo em que o leitor recria o texto pela sua leitura, o texto também mostra sua independência ao falar ao leitor palavras que este não espera:

Um texto que começa a nos falar sempre já é um texto lido, isto é, um texto que nossa subjetividade despertou para a vida. No entanto, ele não é apenas um eco da nossa voz interior. Ele fala como Tirésias a Odisseu, e nos diz coisas que não esperávamos. Pois não fomos nós que o escrevemos, nem fomos nós que criamos a linguagem na qual foi escrito. Ele nos fala apenas dentro da moldura que

criamos para ele, e na qual nós fornecemos vida a ele.”26

Com a psicanalista Françoise Dolto podes perceber a riqueza oculta nos textos da Biblia: eles falam de narrativas comuns a todos os humanos, falam do seu nascer, viver e morrer, dos seus medos e angústias, especialmente aqueles âmbitos que não podem ser expressados em palavras.

Da mesma forma que uma sessão analítica, também o texto desperta resistências. Somos sujeitos com aparelho psíquico constituído por repressões e outras defesas, quer queiramos ou não. Utilizando os conhecimentos psicanalíticos, cabe assinalar, junto com alguns autores, a especial resistência que o texto bíblico despertou no meio psicanalítico, tal como expressa Françoise Dolto em seu diálogo com Gérald Sévérin:

Sévérin: “Muitas vezes, aceitamos a grandeza e a profundidade humana das mitologias grega ou indus, enquanto deixamos de lado, nesse plano, a riqueza dos mitos judaico-cristãos (...) será, talvez um certo medo de ir além ou do transcendente que impede a maioria dos que não crêem de aderirem a elas?

Françoise Dolto: Sem dúvida. Para mim, não há dúvida de que a ‘Sagrada Família’, como dizem os católicos ou os Evangelhos narrandos a infância de Jesus, exprime-se através de imagens míticas, mas veiculam também um mistério, uma verdade que se revela nesses textos.

Há mito nessas passagens do Evangelho. Não há dúvida. Mas, para mim, cristã e psicanalista, não há só isso. O que sabemos nós, com nossos conhecimentos biológicos, científicos, sobre o amor e seu mistério? O que sabemos da alegria? Como também, o qu sabemos da palavra? Não é ela fecundadora? Não é ela, algumas vezes, portadora de morte?” (1979, p. 21 e 22).

A resistência está em função do mistério que esses textos trazem... mistérios sobre nós, nossas origens, nosso devir. Também Marie Balmary comenta o fenômeno do recalcamento para explicar a relação da nossa cultura com os textos da Bíblia:

Bíblia: uma memória recalcada pela nossa cultura. Seres escravizados e bloqueados por crenças. Minha própria intuição é que esses textos deviam ser ouvidos de forma diferente após a psicanálise; trabalho de outros que abriam, cá e lá, níveis muito mais profundos de interpretação...” (Balmary, 1997)

25

RAGUSE, Der Raum des Textes. Kohlhammer, p. 12.

26 RAGUSE, p. 14

Page 6: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

6

[Digite texto]

Para ilustrar, vai uma pequena amostra de autores psicanalistas que trabalham com a hermenêutica psicanalítica da Biblia:

Julia KRISTEVA: “As “ciências humanas”, dependentes de uma racionalidade que aspira a desvelar a lógica universal depositada num mito, num texto hierático ou num poema, são levadas, ante a Bíblia, a só estudar a lógica ou a retórica do texto. Não levam em conta, inicialmente, seu poder sagrado. Mas esperam descobrir, ao término dessa análise positiva e neutra, o mecanismo, o enigma mesmo, daquilo que é recebido como “santo” e que, implicitamente, opera como tal. (...) A leitura e a interpretação da Bíblia não seriam, em última análise, o rito dominante, o próprio esgotamento do ritual e do sagrado judaicos na linguagem e na lógica?

...Quem fala na Bíblia? Para quem?

Essa pergunta é tão mais importante no momento quanto parece tratar-se de um sujeito que, longe de ser neutro ou indiferente como o das teorias interpretativas modernas, mantém com seu Deus, ao contrário, uma relação específica de crise ou de processo. Se é verdade que todos os textos ditos sagrados falam dos estados-limites da subjetividade, é cabível interrogar-se sobre esses estados particulares que o narrador bíblico conhece. É, portanto, por uma dinâmica intra ou infra-subjetiva que uma tal leitura será levada a interessar-se. Essa dinâmica, claro, se manifesta nas figuras do próprio texto. Mas sua interpretação depende de que se leve em conta um novo espaço, o do sujeito falante. Este, desde então, deixa de ser o ponto opaco que garante a universalidade das operações lógicas, para abri-se em espaços analisáveis. Aqui aludo à teoria freudiana, porque ela pode retomar os resultados das análises bíblicas evocadas acima para desdobrá-las no espaço subjetivo. Uma interpretação que interiorizasse essas descobertas como dispositivos específicos de certos estados do sujeito da enunciação permitiria ultrapassar a visão simplesmente descritiva. Poderia iluminar o impacto bíblico sobre seus destinatários.” (2002, p. 127)

“Não conheço o hebraico, leio a Bíblia como profana e sem competência nem verdadeira assiduidade. Textos literários, porém, me remetem a ela sem cessar, bem como numerosos sonhos, e momentos de análise – insuportáveis ou magníficos...Depreendo disso tudo um destino específico do feminino que compreendo, naqueil oque abriga uma transição desse elemento “maternal” – que o paganismo sacraliza enquanto os politeísmos o cindem e o disseminam – numa construção moral altamente elaborada.” (...)

“Todos conhecemos – mas será que conhecemos de verdade? Quem é que lê esses textos além dos crentes? – as muito célebres quatro “mães do Gênesis” e seu poder sobrenatural: belas, rebeldes, guerreiras, elas são ao mesmo tempo estéreis e dotadas de longevidade – como para conjurar a natural fecundidade pagã com um destino totalmente diferente, vindo do Outro, mas ao qual elas também não aderem de corpo e alma.” (2001, p. 121-2)

Marie BALMARY: “Tanto na religião como na análise, é preciso que a figura imaginária do Outro perverso possa ser projetada e desmascarada. Nesses dois casos, recorre-se à interpretação. O analista com seu paciente, interpreta e analisa a memória individual, pode-se dizer que de forma esquemática. Quem interpreta e analisa a memória coletiva a não ser quem está disposto a ouvir e interpretar os materiais que vêm dela e as projeções calcadas nas grandes figuras religiosas para que não fiquem coaguladas, coagulando-se também na custosa manutenção de mecanismos de defesa?

Não é necessário para isso ouvir os textos dos quais nos vieram essas figuras, prodigiosas telas para os nossos cinemas interiores? Se tais textos são , como se diz, reveladores, devem favorecer os dois tempos necessários para toda terapia: a projeção e a leitura da projeção, a alienação e a cura.”(1997, p.94)

A leitura psicanalítica da Biblia se faz nesses dois tempos, baseados na interpretação dos sonhos:

1. Considerar o texto como um sonho, no qual projetamos nossos impulsos e desejos, de uma forma disfarçada. Condensação e deslocamento são os mecanismos de construção do sonho: também no texto nossos impulsos aparecem de forma condensada e deslocada. Todos os elementos do texto podem ser representativos de partes nossas, que se encontram projetadas, cindidas e deslocadas sobre o texto.

Page 7: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

7

[Digite texto]

2. Entrando em contato com os elementos: Na leitura do texto, prestar atenção aos que o texto evoca: sentimentos, associações, recusas, dificuldades, lapsos. Tudo são indicativos de que algo se reflete do nosso interior. Dialogar com estes elementos, interrogá-los, imaginá-los, colocar-se no lugar deles. Deixar que nos revelem sobre nosso interior, nossos desejos reprimidos, nossa vida emocional escondida de nós mesmos.

Até aqui, parece que os textos são considerados puramente projeções de nossa humanidade, e também poderiam ser substituídos por outro texto, mito ou lenda. No entanto, não é assim: consideramos que Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança, estamos descobrindo algo do Seu Ser. É só lembrarmos que Deus amou a humanidade a tal ponto que quer nos revelar quem somos na Sua Palavra, para que possa nos curar por ela: o Espírito de Deus revela a nosso espírito que somos seus filhos amados, convidados para encontros transformativos mediados pela Sua palavra.

Tal como no tempo de Jesus, a cura e a salvação andam juntas. Também precedidas de perguntas como: “Que queres que eu te faça?”

3. Teologia e interpretação psicanalítica da Biblia

Embora a hermenêutica psicanalítica da Biblia já seja bem difundida, desperta muitas resistências. Dominique Stein as analisa27 e mostra suas dificuldades e razões. A crítica de “interpretação reducionista” não cabe, pois a hermenêutica psicanalítica não se propõe como única, antes pelo contrário. Stein entrevê a dificuldade de exegetas com leituras que aproximem o sagrado do sexual. As outras críticas, de que tais interpretações são muito clínicas, demasiado subjetivas e não se relacionam adequadamente ao texto também perdem vigor se é visto seu contexto. Stein comenta que

essas críticas, que surgem sempre depois de um elogio aos métodos historico-críticos, lembram singularmente os anátemas lançados sobre os precursores desses mesmos métodos, hoje tornados

clássicos. Como são medrosos os guardiães da fé!28

A leitura psicanalítica ajudaria a trabalhar o medo do estranho, do novo, do conflitivo, do arcaico, desde que não se ponha como verdade absoluta, nem seja feita defensivamente... mas se esse for o caso, já não é psicanalítica. É preciso guardar espaço para o desconhecido, sempre, e desconfiar da busca de certezas, seja onde se encontrarem. A hermenêutica judaica ajuda a não erigir ídolos, muito menos idolatrar métodos e interpretações totalizantes.

Stein conclui expressando o desejo de que psicanalistas possam seguir lendo e interpretando, e assim co-laborando para compreensão da relação entre humano e divino, suas semelhanças e diferenças. Recordo Pfister, que já apregoava a psicanálise como ‘humilde lavadora dos pébs da verdade”29 – assim também o desejo de que as verdades do recôndito humano, com suas contradições, angústias, conflitos, sejam tocadas pela leitura múltipla da Biblia.

Concluo com Françoise Dolto:

Ao ler os Evangelhos, eu descubro um psicodrama. As próprias palavras com que são narrados, a seleção das frases, a escolha de certos temas podem ser compreendidos, repito, de uma outra maneira, a partir da descoberta do inconsciente e de suas leis, por Freud. As descobertas atuais da psicanálise, dialética e dinâmica do inconsciente, de acordo com a leitura que faço, são ilustradas por esse psicodrama que nos contam.

Presidem à elaboração do Evangelho, entre outras, as leis do inconsciente de Jesus, dos redatores e dos primeiros ouvintes. Essas leis são parte integrante da estrutura desses relatos. Por que não

abordar sua leitura com esse novo instrumento, a psicanálise? 30

27 STEIN, Dominique. Pode-se fazer uma leitura psicanalítica da Biblia? Concilium 158.8, 1980, p. 31-42. 28 STEIN, 1980, p. 39. 29 Pfister apud WONDRACEK, 2005. 30 DOLTO, F.; SEVERIN, G., 1979, p. 14.

Page 8: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

8

[Digite texto]

Este o convite, para ir às fontes profundas...

O LIVRO

Uns o carregam debaixo das axilas,

outros o beijam como à melhor das amantes,

outros o farejam, semelhantes a cães

amestrados para drogas. Ele resiste,

materializado em mil, ou duas mil páginas,

em trens, ônibus, hotéis, bordéis,

táxis, ruas, ares, mares,

manipulado por estranhos dedos,

lido por estranhos olhos.

Suas páginas, que Gutenberg arrancou

às unhas da escuridão, fulguram

com nova luz, quando anônimos

resolvem lê-lo como foi escrito:

com sangue, cuspe, e ternura.

Armindo Trevisan, A serpente na grama. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001.

Bibliografia de estudo

BALMARY, Marie – O sacrifício proibido: Freud e a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1997. BALMARY, Marie – La divine origine: Dieu n’a pás créé l’homme. Paris: Grassett & Fasquelle, 1993. BIBLIA CONSELHEIRA. Karl KEPLER (ed). Barueri: SBB, 2011. CLEMENT, Catherine & KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. São Paulo: Rocco, 2001. DOLTO, Françoise. O evangelho à luz da psicanálise. Rio de Janeiro, Imago: 1979. FUKS, Betty B. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000. KRISTEVA, Julia. Ler a Biblia. In: As novas doenças da alma. São Paulo: Rocco, 2002. LACOCQUE, Andre & RICOEUR, Paul. Pensar la Biblia. Barcelona: Herder, 2001. LEBRUN, Jean-Pierre; WÉNIN, André. Des lois por être humain. Toulouse: Eres, 2008. LEONE, Alexandre. Mística e razão: dialética no pensamento judaico. De speculis Heschel. São Paulo: Perspectiva, 2011. RAGUSE, Hartmuth. Der Raum des Textes. Stuttgart: Kohlhammer. RAGUSE, Hartmut. “Die Bibel zwischen Literaturinterpretation und analytischem Prozess. In: ROHDE-DACHSER, Christa (Hg.) Verknüpfungen. Göttingen, Vandehoeck, 1998.

Mais textos nossos:

WONDRACEK, Karin. Caminhos da graça: identidade, crescimento e direção nos textos da Biblia. Viçosa, Ultimato, 2006. _______ O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre teologia e psicanálise. São Leopoldo : Sinodal, 2005. ______ Ser nascido da Vida – A Fenomenologia da Vida de Michel Henry e sua contribuição para a clínica. Tese de doutorado. São Leopoldo: PPG-EST, 2010.

Page 9: Aproximações entre Bíblia e psicanálise

9

[Digite texto]

______Do Gênesis à gênese do sujeito psíquico: um ensaio metafórico. Trabalho apresentado na Jornada do NESF, 2004. ______ Aproximação psicanalítica da culpa e da graça – Disponível na Internet – www.cppc.org.br/psicoteologia ______ Como Jesus cuidava das pessoas. Psicoteologia: XXI, n. 46, 2010. ______ A criança como chave hermenêutica. In: FASSONI; DIAS; PEREIRA. Uma criança os guiará. Viçosa: Ultimato, 2010, p. 211-222.