Aproximações Entre o Conceito de Rizoma Em Deleuze e Guatarri e o Cinema de Godard

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Aproximações entre o conceito de rizoma em Deleuze e Guattari e o cinema de Godard Mauro César de Castro (mestre em Filosofia PUCRS) GT-Deleuze Resumo: Pretende investigar aproximações entre a concepção filosófica de rizoma conforme Deleuze e Guattari e o cinema de Godard a partir do filme Notre musique. Para tanto, retoma as análises de Deleuze sobre o cinema moderno e a obra de Godard, e propõe o conceito de imagem-rizoma como expressão do pensamento na obra godardiana. O rizoma se caracteriza pelos princípios de conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignificante, cartografia e decalcomania. Tudo isso pode ser percebido no referido filme: pela narrativa não linear e a multiplicidade de discursos; os cortes irracionais e a ênfase no extracampo; as relações não idênticas entre imagem/som e imagem/texto; as citações e colagens livres etc. Com isso, Notre musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de dissonâncias políticas e éticas. A imagem-rizoma em Godard resulta em uma obra em constante devir entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro. Palavras-chave: Imagem. Rizoma. Cinema. Deleuze. Godard. Introdução Os escritos de Deleuze sobre o cinema ao mesmo tempo que rompem um relativo silêncio dos filósofos acerca do assunto e vão além das leituras reducionistas ou até mesmo pejorativas, despertam também grande interesse no campo da teoria do cinema. Seja entre filósofos ou entre cineastas e cinéfilos, Deleuze tem sido recebido como uma voz pertinente, instigante e inspiradora para se pensar e fazer cinema. Os dois volumes de sua obra dedicada à arte cinematográfica (A imagem-movimento e A imagem-tempo), além de menções recorrentes sobre o assunto em outras obras suas, ou mesmo quando se apropria de exemplos do cinema para tratar de outros temas, instauram um diálogo fértil entre cinema e filosofia. E é notável na obra deleuzeana ele ter proposto pensar o cinema a partir do próprio cinema, ao invés de tentar identificar nele as questões tradicionais da filosofia, isto é, trata-se menos de inquirir o

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Aproximações entre o conceito de rizoma em

Deleuze e Guattari e o cinema de Godard

Mauro César de Castro

(mestre em Filosofia – PUCRS)

GT-Deleuze

Resumo: Pretende investigar aproximações entre a concepção filosófica de rizoma conforme

Deleuze e Guattari e o cinema de Godard a partir do filme Notre musique. Para tanto, retoma

as análises de Deleuze sobre o cinema moderno e a obra de Godard, e propõe o conceito de

imagem-rizoma como expressão do pensamento na obra godardiana. O rizoma se caracteriza

pelos princípios de conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignificante,

cartografia e decalcomania. Tudo isso pode ser percebido no referido filme: pela narrativa não

linear e a multiplicidade de discursos; os cortes irracionais e a ênfase no extracampo; as

relações não idênticas entre imagem/som e imagem/texto; as citações e colagens livres etc.

Com isso, Notre musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de

dissonâncias políticas e éticas. A imagem-rizoma em Godard resulta em uma obra em

constante devir – entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro.

Palavras-chave: Imagem. Rizoma. Cinema. Deleuze. Godard.

Introdução

Os escritos de Deleuze sobre o cinema ao mesmo tempo que rompem um relativo silêncio dos

filósofos acerca do assunto e vão além das leituras reducionistas ou até mesmo pejorativas,

despertam também grande interesse no campo da teoria do cinema. Seja entre filósofos ou

entre cineastas e cinéfilos, Deleuze tem sido recebido como uma voz pertinente, instigante e

inspiradora para se pensar e fazer cinema. Os dois volumes de sua obra dedicada à arte

cinematográfica (A imagem-movimento e A imagem-tempo), além de menções recorrentes

sobre o assunto em outras obras suas, ou mesmo quando se apropria de exemplos do cinema

para tratar de outros temas, instauram um diálogo fértil entre cinema e filosofia. E é notável

na obra deleuzeana ele ter proposto pensar o cinema a partir do próprio cinema, ao invés de

tentar identificar nele as questões tradicionais da filosofia, isto é, trata-se menos de inquirir o

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que pensamos sobre o cinema do que o que pensa o cinema. Como afirma o próprio Deleuze

(1990, p. 331-332), “Uma teoria do cinema não é ‘sobre’ o cinema, mas sobre os conceitos

que o cinema suscita [...]. Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E no entanto, são

conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema”.

Com fôlego de cinéfilo, Deleuze empreende uma vasta leitura da história do cinema sem

pretensão de exaustão (tarefa impossível), mas muito atento a um grande número de

movimentos, cineastas e teóricos. A avalanche de exemplos de filmes é desconcertante até

para os iniciados na área. Entre tantos diretores abordados, alguns nomes como Eisenstein,

Resnais, Welles e Godard se destacam. Este último talvez seja um dos com os quais o filósofo

mais se identifica, tendo-lhe dedicado um bom espaço em sua obra sobre o cinema, sobretudo

nos capítulos conclusivos do segundo volume. Com efeito, Deleuze percebe na obra de

Godard a força do pensamento: “Godard transformou o cinema. O que ele faz não é pensar

sobre o cinema, não coloca um pensamento mais ou menos bom no cinema, mas faz com que

o cinema pense – pela primeira vez, eu creio” (DELEUZE, 2006, p. 182). Cônscios disso,

escolhemos uma das últimas produções de Godard para nossa reflexão: Notre musique (Nossa

música, 2004). Trata-se de uma produção posterior a Deleuze, mas que conserva muito do

estilo de obras anteriores do diretor e, assim, as apreciações do filósofo lhe podem ser

estendidas.

Não obstante, o que aqui nos propomos não é demonstrar como Notre musique exemplifica o

cinema moderno conforme as análises de Deleuze no segundo volume de sua obra sobre

cinema, ainda que a ela recorramos constantemente. Nosso objetivo é trazer para a cena

cinematográfica o conceito de rizoma (conforme Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs) a

partir do referido filme e, em consonância com a taxionomia das imagens no cinema moderno

realizada por Deleuze (na obra A imagem-tempo), propor o conceito de imagem-rizoma.

Nossa leitura também não consiste em aplicar o conceito de rizoma ao filme Notre musique, e

sim em perceber como o rizoma emana do próprio filme. Não se trata de uma associação

arbitrária ou mera ilustração; conforme pretendemos demonstrar, há pontos em comum entre

Deleuze e Godard que nos permitem dizer que este também pensa de modo rizomático. Se

filosofar consiste em criar conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 13), a imagem-

rizoma seria um conceito que, não tendo sido explicitado nem por Deleuze nem por Godard,

nos provoca a pensar.

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Cinema moderno e rizoma

Deleuze descreve o surgimento do cinema moderno como resultante da crise do cinema

clássico. Segundo Deleuze, esta ruptura teria se dado com o neorrealismo italiano, mas é a

nouvelle vague que teria consagrado a modernidade no cinema, entre cujos representantes

encontramos Godard. No cinema clássico vigora a imagem-movimento e no moderno, a

imagem-tempo. O que marca a irrupção da imagem-tempo é o fato de que o tempo deixa de

ser algo representado na tela (uma imagem do tempo) para se apresentar por si mesmo (a

imagem-tempo). No primeiro caso, temos o tempo deduzido indiretamente através do

movimento, um cinema de ação com situações sensório-motoras que falam do tempo; no

segundo, um cinema do tempo, abordado de modo direto em imagens que apresentam

situações óticas e sonoras puras. Não que o cinema clássico tenha menos mérito por isso,

Deleuze destaca como o cinema foi capaz de captar a imagem-movimento enquanto as outras

artes, assim como a filosofia, apenas tateavam o movimento. Contudo, o advento do cinema

moderno significa uma libertação do próprio cinema que, tendo tornado possível o

movimento na imagem e nisso afirmado a peculiaridade desse novo gênero de arte, chega à

sua maturidade.

Clássico e moderno como dois momentos da história do cinema, ou melhor, como duas

diferentes formas de se fazer cinema, remetem também à ideia de duas concepções de

pensamento: à primeira corresponde o paradigma da representação e à segunda, o da

diferença. Em outros termos, trata-se da contraposição entre o pensamento arborescente e o

rizomático. Rizoma é um termo tomado da botânica e transmutado em conceito filosófico por

Deleuze e Guattari como forma de conceber a realidade, o pensamento, a linguagem etc. Ele

se opõe ao conceito de árvore. A árvore indica um sistema fechado, totalizante e

hierarquizante; já o rizoma, um sistema aberto, heterogêneo e múltiplo. Nesse sentido é que

podemos dizer que o cinema moderno nos apresenta uma imagem-rizoma.

Deleuze não utiliza o conceito de rizoma ao analisar a obra de Godard, ou em qualquer outro

momento nas obras dedicadas ao cinema, mas em Mil Platôs a relação é sugerida. No final do

platô “Introdução: Rizoma”, eis que surge, subitamente e em tom exortativo, o exemplo de

Godard como o que seja fazer rizoma: “Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans:

faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo,

seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha!

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Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite

um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard)” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 48).

Imagem-rizoma e Notre musique

Deleuze e Guattari enumeram alguns princípios que caracterizam o rizoma: conexão e

heterogeneidade; multiplicidade; ruptura assignificante; cartografia e decalcomania. Seguindo

esses mesmos passos, vejamos como se apresenta a imagem-rizoma em Notre musique.

Princípios de conexão e heterogeneidade

[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.

[...] não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de

dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,

p. 22-23).

O filme Notre musique é dividido em três partes, iniciadas pelos seguintes títulos grafados

sobre a tela preta: “REINO 1 INFERNO”; “REINO 2 PURGATÓRIO”; “REINO 3

PARAÍSO”.

O “Inferno” consiste em uma sequência de rápidos e numerosos fragmentos de imagens de

arquivo e da história do cinema, a maioria delas mostrando a guerra e a violência. São cerca

de oito minutos de encadeamento de imagens nada gratuitas ou casuais, às vezes intercaladas

com a tela preta. Aqui se pode reconhecer bem o diretor de Histoire(s) du cinéma (1997-

1998) ou de De l'origine du XXIe siècle (2000), pela variedade e argúcia na escolha das

imagens e na montagem.

O “Purgatório” corresponde à trama do filme propriamente dita. Diferentemente da primeira

parte, acompanhada constantemente pela música, agora esta será pouco ouvida. É o momento

dos diálogos e da apresentação dos personagens, entre os quais se destacam o próprio Godard

(interpretando ele mesmo) e as jovens Judith Lerner (uma jornalista israelense) e Olga

Brodsky (francesa judia de origem russa). Eles estão em Sarajevo por ocasião do Encontro

Europeu do Livro, no qual Godard irá proferir uma palestra. Judith é o ponto de conexão com

a primeira parte do filme. Ela entrevista intelectuais a respeito das guerras do passado e do

presente, de Tróia à Palestina, e eles problematizam a questão da memória, do testemunho, da

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legitimidade do relato dos vencedores e da necessidade de poesia para a sobrevivência das

culturas. Olga, por sua vez, é quem permitirá a entrada na terceira parte do filme após a sua

morte. Ela é uma ativista que perdeu a confiança nos discursos, mas acredita que ainda vale a

pena lutar por uma revolução em nome da paz. Acaba sendo assassinada em Jerusalém ao

anunciar um atentado à bomba dentro de um cinema, quando, na realidade, apenas portava

livros em sua mochila.

A sequência do “Paraíso” é breve e bastante silenciosa. Mostra Olga caminhando pela floresta

à beira de um rio. A área é estranhamente guardada por soldados americanos, e após ela ser

autorizada por um deles a cruzar uma cerca, encontra outros jovens descansando, lendo ou

brincando. O título do livro que um deles lê anuncia: Sans espoir de retour (Street of no

return, de David Goodis, 1954). Em seguida um outro oferece uma maçã a Olga e ela come –

um clichê claramente assumido em referência ao Gênesis. Não há redenção final, apesar do

sacrifício de Olga. Esta última cena parece sugerir uma reversão do paraíso, pois se Olga

come da maçã, o que lhe aguarda depois? A tríade dantesca inferno-purgatório-paraíso seria

reiniciada? Ou seja, o final aponta para o início do filme?

Melhor do que isso, inferno-purgatório-paraíso não constituem uma linearidade narrativa,

uma cronologia, e sim um fluxo temporal ao modo bergsoniano. Inferno, purgatório e paraíso

são desdobramentos do presente que se lança em direção ao futuro ao mesmo tempo que

retoma o passado. Conforme explica Deleuze (1990, p. 103), “As teses de Bergson sobre o

tempo apresentam-se assim: o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se

conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada

instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva”. Como

imagem-rizoma, inferno-purgatório-paraíso se conectam de diferentes formas. A destruição

mostrada no “Inferno” não está ausente do “Purgatório”, pelo contrário, estão lá suas marcas:

as ruínas de Sarajevo, as fotografias, as lembranças, o testemunho dos sobreviventes e o temor

da censura. O “Paraíso”, por sua vez, já é anunciado no “Purgatório”, como indicam as frases

que aparecem na cena da palestra de Godard: “E a libertação?”, “E a vitória?”, “Esta noite

estarei no paraíso”. E o “Paraíso” guardado por homens armados se conecta ao “Inferno”: a

paz expressa pelo cenário bucólico do final do filme é apenas aparente, pois a ameaça da

guerra e a necessidade da força armada permanecem.

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Notre musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de

dissonâncias políticas e éticas. Godard cita Rimbaud: “Eu é um outro”. É a última fala da

primeira parte do filme, introduzindo o que será mostrado em seguida. Há diferentes etnias e

idiomas no filme, falado em francês, inglês, árabe, hebraico, sérvio e espanhol. Por que não

fazer um filme todo em francês? Podemos dizer que é uma forma de conservar o princípio de

heterogeneidade, sem tentar reduzir as vozes a uma fala de identidade. O outro é talvez o

grande protagonista de Notre musique. Olga lendo o livro Entre nous (1991), de Levinas (o

filósofo da alteridade), é muito sugestivo a esse respeito. É certo que a notável semelhança

física entre as atrizes que interpretam Judith Lerner (Sarah Adler) e Olga Brodsky (Nade

Dieu) pode gerar a impressão equívoca de indiferenciação, entretanto a dificuldade de uma

identificação rápida das personagens mantém até certo ponto no espectador a sensação de

estar diante de um outro desconhecido. E ao se distinguirem, tornam-se marcantes suas

diferenças: Judith é israelense, Olga é francesa judia; Judith aposta na palavra, Olga adere ao

silêncio; Judith está escavando o passado, Olga lança-se no desconhecido da morte. Olga e

Judith também são imagens marcantes da diferença no filme. Ou ainda, interpretando-se de

outra forma, elas parecem sugerir um duplo de uma mesma personagem, no devir de uma

subjetividade cindida, fazendo jus à máxima rimbaudiana.

Princípio de multiplicidade

Inexistência, pois, de unidade [...]. As multiplicidades se definem pelo fora: pela

linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização [...]. (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 23.25).

Na segunda parte de Notre musique, Godard profere uma palestra sobre “o texto e a imagem”

– esta relação perpassa todo o filme e é discutida por Godard tanto enquanto diretor, quanto

enquanto ator-personagem. Sua fala oferece algumas pistas para compreensão da trama, mas

não chega a ser a fala reveladora, e sim um discurso entre muitos outros proferidos por

diferentes personagens, os quais têm sempre um forte conteúdo político e por vezes

perpassam aquele mesmo tema. Godard dá uma aula de cinema explicando o uso da técnica

do campo/contracampo. Para exemplificar, ele mostra dois fotogramas do filme His girl

friday (Jejum de amor, 1940), de Howard Hawks, em uma decupagem clássica: um homem e

uma mulher (Rosalind Russell e Cary Grant) conversam ao telefone e são mostrados

alternadamente em primeiro plano e em ângulo inverso. Godard critica esse uso, porque,

segundo ele, não considera a diferença entre um homem e uma mulher, eles são tomados

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como uma imagem só. É justamente o inverso do que faz Godard enquanto diretor nesta

mesma cena, em que o palestrante e os ouvintes são mostrados em vários planos e ângulos

diferentes com um jogo de sobreenquadramentos e desenquadramentos que privilegiam não

uma visão do todo ou uma síntese da situação, mas a proliferação de pontos de vista. Isso

demonstra a pedagogia da imagem godardiana, para retomar uma expressão de Deleuze. Há

um discurso e uma leitura das imagens, uma relação entre texto e imagem que não é de

significado e significante. Diz Deleuze (1990, p. 293): “O que define o cinema moderno é um

‘vaivém entre a palavra e a imagem’, que deverá inventar a nova relação delas [...]”. As

imagens no cinema não são apenas vistas, são lidas, e quando intervém o texto dito ou escrito,

este não vem decodificar ou confirmar a imagem. O texto desterritorializa a imagem e vice-

versa.

O curioso é que os fotogramas do filme de Hawks foram manipulados, já que eles não

aparecem no original tal como mostrados por Godard. Nas duas cenas de Hawks que mais se

aproximam do que Godard fala, os atores são enquadrados em plano médio e não em primeiro

plano. Isso não invalida o argumento de Godard, mas não deve passar despercebido que

usando as imagens em primeiro plano a crítica da indiferenciação entre homem e mulher

resulta mais contundente, pois gera a impressão de que a câmera de Hawks, mesmo próxima,

não vê a diferença. Podemos dizer que esse uso das imagens por Godard estabelece também

uma relação de campo/contracampo entre Notre musique e His girl friday no sentido discutido

por ele no decorrer de sua palestra. Através do exemplo do campo/contracampo, ele

problematiza as contraposições (imaginário/real, certeza/incerteza, imagem/texto etc.) que

marcam a relação cinema/realidade. Podemos identificar aqui o princípio de multiplicidade,

contra a ideia de uma unidade entre os pares contrapostos.

Com efeito, o cinema não se propõe como discurso verdadeiro, mas como discurso indireto

livre. Antes, é o lugar da potência do falso, como potência artística e criadora, potência de

vida, como dirá Deleuze (1990, p. 163) a respeito do cinema moderno e especialmente de

Godard: “contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante [...] a potência do falso não é

separável de uma irredutível multiplicidade [...]”. Godard tira disso todo proveito em Notre

musique, principalmente ao por lado a lado imagens de ficção e documentais, assim como

personagens fictícios e reais. Ele mesmo revela, ainda em sua palestra: “Por exemplo, duas

fotografias da atualidade representando um só momento da história. Vemos que, na realidade,

a verdade tem duas faces”. Esta última afirmação será repetida também por outros

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personagens. O poeta palestino Mahmoud Darwich, em uma entrevista, defende a importância

da poesia para um povo e diz: “A verdade sempre tem duas faces. Nós ouvimos a voz da

vítima troiana pela boca do grego Eurípedes. Tróia não contou sua história. [...] a vitória ou a

derrota não se medem em termos militares”. Em outro momento, um homem reflete acerca da

ponte de Mostar (construída sobre o rio Neretva no século XVI, destruída em 1993 na guerra

da Bósnia e que estava sendo reconstruída à época das filmagens): “É preciso restaurar o

passado e tornar possível o futuro. Combinar o sofrimento com a culpa. Duas faces. Duas

faces e uma verdade: a ponte”.

Vale ainda comentar a relação entre som e imagem como marca da multiplicidade. Em

Godard, a voz não conduz a imagem, assim como a música não conduz a cena. Em um filme

que se intitula “nossa música”, a música é um dos elementos mais difíceis de serem

analisados. A música do filme é composta por extratos vários de compositores do século XX

(à exceção do último): Jean Sibelius, Alexander Knaifel, Hans Otte, Ketil Bjørnstad, Meredith

Monk, Komitas, Gyorgy Kurtág, Valentin Silvestrov, Trygve Seim, Arvo Pärt, Anouar

Brahem, David Darling, Peter Tchaikovsky. O título não é nada óbvio, é mencionado apenas

em uma fala um pouco enigmático de Godard ao final da cena da referida palestra: “O

princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música”. Enquanto ele

diz isso, vemos na tela apenas um ponto de luz em movimento, depois a tela totalmente preta,

e à voz sucede uma música suave, que será pouco depois bruscamente interrompida pela

pergunta de uma ouvinte. Não vemos seu rosto, apenas a silhueta de Godard em primeiro

plano, de frente contra a luz. Ele nada responde, ouvimos apenas ruídos. É uma sequência de

rupturas visuais e sonoras, em que cada elemento se expressa por si mesmo, contrapondo

luz/sombra, som/silêncio, som/imagem. A técnica cinematográfica clássica buscaria uma

composição harmônica dos elementos para dar unidade à cena. Godard, ao contrário, trabalha

com a dissociação dos elementos e das percepções. Temos, então, uma imagem sonora pura,

pela qual o som se projeta para fora, para o extracampo.

Deleuze (1990, p. 278) acentuou como Godard explora esse recurso com componentes

sonoros que se deslocam e rivalizam, atravessando a imagem visual com tamanha autonomia

que a imagem passa a ser lida como uma partitura – uma partitura atonal, acrescentaríamos. A

voz off como recurso do extracampo, tornando perceptível para o espectador a continuidade

não visível do plano, coaduna com isso. Em Notre musique, ela é explorada denotando

descontinuidade como, por exemplo, quando uma fala se inicia muito antes da imagem visual

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correspondente ou se estende depois dela, e também nos diálogos, quando o ator não é

mostrado enquanto fala ou a câmera é posicionada atrás dele, privilegiando a imagem do

ouvinte.

Princípio de ruptura assignificante

[...] contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que

atravessam uma estrutura. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25).

O princípio de ruptura assignificante é o mais evidente no cinema de Godard. O diretor é

conhecido (e estranhado) justamente por isso, por ter desde sempre transgredido as

convenções cinematográficas e jogado livremente com os planos, cortes, sons e imagens. Em

Notre musique isso se dá também, e com a liberdade que foi se acentuando cada vez mais ao

longo da trajetória do diretor desde À bout de souffle (Acossado, 1960). Podemos começar

observando a narrativa do filme que, apesar da aparente organização indicada pela divisão em

três partes, apresenta-se muito mais como um corpo sem órgãos. Frequentemente os discursos

são fragmentados e os diálogos interrompidos. Os personagens não possuem um elo comum –

o caso extremo é a aparição quase fantasmagórica de três índios americanos no meio do filme.

A sucessão dos fatos é anacrônica, não se preocupa com a relação de causa e efeito e não há

fim e começo. Esses recursos permitem que qualquer ponto se conecte com qualquer outro, de

modo que ruptura e conexão estão diretamente atreladas na imagem-rizoma.

Deleuze interpreta isso como a instauração de um cinema do interstício em Godard: “É o

método do ENTRE, ‘entre duas imagens’, que conjura todo cinema do Um. É o método do E,

‘isso e então aquilo’, que conjura todo cinema do Ser = é. Entre duas ações, entre duas

afecções, entre duas percepções, entre duas imagens visuais, entre duas imagens sonoras,

entre o sonoro e o visual: fazer o indiscernível, quer dizer, a fronteira” (DELEUZE, 1990, p.

217). Cabe, então, retomar a ideia de campo/contracampo discutida acima. Campo e

contracampo, imagem e texto, real e imaginário não são oposições binárias (isso ou aquilo),

assim como não são superáveis numa síntese conciliadora. O “e” é até mais importante do que

as partes, porque no “entre” está a potência da imagem-rizoma, e não nos polos. No “entre” o

ser devém rizoma. A citação acima, de A imagem-tempo, coincide com outra a seguir, de Mil

Platôs, pela qual podemos perceber claramente como os estudos de Deleuze sobre o cinema

herdam a concepção de rizoma: “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre

no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,

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unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a conjunção

‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). Assim, chegamos a uma noção central para nosso

conceito de imagem-rizoma: uma imagem do “e”.

Os cortes irracionais são o principal procedimento para fazer operar a ruptura assignificante

na obra de Godard. Assim como o rizoma contesta os cortes significantes das estruturas,

Godard se opõe aos cortes racionais. Um corte racional se dá quando a passagem de um plano

a outro é feita por um encadeamento articulado de imagens que mantém o ritmo e a

continuidade da narrativa visual. Há, então, o que se denomina raccord. O corte irracional (ou

corte seco), pelo contrário, opera um falso raccord, isto é, a passagem de um plano a outro é

brusca. Na gramática do cinema clássico, o falso raccord é tido como um erro, uma má

articulação, mas na Nouvelle vague se tornou um recurso estético admirado (AUMONT;

MARIE, 2003, p. 116.251). Para Deleuze, os cortes irracionais caracterizam o cinema

moderno e potencializam sua capacidade de pensar por imagens. O falso raccord abre espaço

para o fora, o irracional, o impensado no pensamento – eis “o incomensurável de Godard”

(DELEUZE, 1990, p. 219).

Além dos exemplos acima, percebemos os cortes irracionais em todo o encadeamento de

imagens da primeira parte do filme, o “Inferno”, inclusive pelo uso da tela preta, que além de

interromper a continuidade com mais força ainda, lança as imagens no abismo.

Princípio de cartografia e de decalcomania

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,

suscetível de receber modificações constantemente. [...] [Ao contrário do] decalque

que volta sempre ao “mesmo”. [...] é preciso sempre projetar o decalque sobre o

mapa. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30-31).

Vejamos, finalmente, outro procedimento característico de Godard, as citações. Já tratamos de

como o diretor se apropria das imagens da história do cinema e também do uso da música,

falta acentuar seu diálogo com a literatura e a filosofia, tão marcante em toda sua obra. Para

Dubois (2004, p. 271), Godard realiza um “Trabalho de palimpsesto cinegráfico”. Ele verifica

que Godard toma a linguagem como matéria e a tela como quadro-negro, sobre o qual escreve

livremente, insere colagens e grafites, escreve e reescreve, compõe e decompõe, rasura. A

imagem deve ser lida, como um texto-imagem, um texto-filme. Em Notre musique, podemos

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perceber isso com o discurso dos livros que aparecem em cena, como é o caso dos já

mencionados Entre Nous e Sans espoir de retour. No primeiro caso, Olga está diante da ponte

de Mostar, ouve a explicação sobre a reconstrução e a religação dos povos enquanto lê um

livro sobre a alteridade: “Entre nós”. No segundo, Olga caminha pela floresta (o paraíso) e

passa por um rapaz que lê um livro ambientado em uma cidade-inferno: “Sem esperança de

retorno”. Essa presença do livro potencializa a leitura da cena e reescreve o discurso dos atos

de fala. A esse respeito, como não se lembrar da cena sensacional de Une femme est une

femme (Uma mulher é uma mulher, 1961), quando Angela e Émile se comunicam por meio

dos títulos dos livros? Olga também se comunica pelos livros, aliás, morre carregando seus

livros, a única arma de que dispõe para seu ato de revolução.

Outrossim, vemos os escritores que são personagens reais dentro de Notre musique: o

palestino Mahmoud Darwich, o espanhol Juan Goytisolo e o francês Pierre Bergounioux.

Suas falas descortinam como algumas questões centrais do filme (a guerra, a alteridade, a

literatura engajada) estão inseridas em uma rede maior de discussão. Temos ainda os filósofos

e escritores, cujos textos são livremente citados na fala dos personagens, sem obrigação de

referenciar sua autoria, porque na realidade os personagens não citam as ideias, eles as

vivenciam. Nos créditos finais Godard assume a autoria somente dos textos de Antonia

Birnbaum, Wolfgang Sofsky, Dostoiévski e Blanchot, mas há ainda Hannah Arendt, Levinas,

Camus, Benjamin, Rimbaud, Balzac, Kafka, Gandhi, entre outros.

Identificamos nestes procedimentos o princípio de cartografia tomando as citações como um

mapa de ideias. Godard não está simplesmente repetindo o dito, reproduzindo histórias e

argumentos, ele recria, reescreve, desterritorializa e reterritorializa os pensadores. Escritores

citados diretamente ou indiretamente, escritores em cena, personagens reais e fictícios,

Godard diretor e Godard ator-personagem se conectam mutuamente, mas de modo aberto e

múltiplo. Uma imagem de decalque seria sobrepor as citações sobre um eixo único de ideias,

um discurso fundamental, uma narrativa fundante. Porém, como imagem-rizoma, o que

encontramos em Notre musique são linhas de fuga. Claro que há elementos de decalque,

estruturas cinematográficas e semióticas, proposições categóricas, todavia desestabilizadas.

As repetições (de planos, procedimentos, textos) não se projetam em direção ao mesmo, mas

ao múltiplo, são reassumidas cada vez como um outro modo de serem vistas ou lidas.

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Durante todo o filme Godard trabalha com a conexão de imagens, às vezes até repetindo uma

mesma imagem ou tomadas semelhantes em momentos diferentes, como, por exemplo, as

intermitentes imagens de carros, trens e pedestres em trânsito em Sarajevo, em idas e vindas

sem direção determinada. Com isso, a cidade de Sarajevo – território sobre o qual se inscreve

a parte central do filme – é apresentada como uma cidade aberta com suas vias (avenidas,

ferrovias) como linhas de fuga. Em Mostar, por sua vez, é reconstruída uma via destruída no

passado (a ponte), dada sua importância para a vida da cidade, para a passagem e o encontro

de seus habitantes.

O vermelho também estabelece uma linha de conexão quase obsessiva na tela, presente na

maioria das cenas e bastante acentuado pela fotografia. Nas roupas, letreiros, carros, objetos,

sangue e vários outros elementos, o vermelho acaba conectando as imagens em meio ao caos

da montagem godardiana. Embora a associação ao sangue e à dor possa sugerir uma

interpretação disso, parece-nos que interessa mais ao diretor o vermelho enquanto vermelho, a

cor por si mesma, a imagem ótica pura. Não é um uso novo na trajetória de Godard, e Deleuze

comentou isso mais de uma vez lembrando a fórmula de Week-end (1967): “não é sangue, é

vermelho”. Segundo o filósofo, não é uma metáfora ou figura, nem é puramente pictórica

(DELEUZE, 1990, p. 34.220), “é a potência que se apossa de tudo que passa a seu alcance, ou

a qualidade comum a objetos inteiramente diferentes. Há efetivamente um simbolismo das

cores, mas este não consiste numa correspondência entre uma cor e um afeto (o verde e a

esperança...). Ao contrário, a cor é o próprio afeto, isto é, a conjunção virtual de todos os

objetos que ela capta” (DELEUZE, 1985, p. 151). O vermelho como metáfora seria mero

decalque, mas enquanto cor pura projeta um mapa visual, uma espécie de cartografia da cor.

Considerações finais

Compactuamos com Vasconcellos (2006, p. 170) ao afirmar que com Godard “estamos diante

do devir-cinema que remete à filosofia da diferença de Gilles Deleuze”. De fato, podemos

perceber, ao longo de todo o filme Notre musique, como o diretor transgride o uso clássico

das técnicas cinematográficas e rompe com os parâmetros da representação, afirmando a

diferença na imagem. Godard, com sua linguagem alucinatória, apresenta-nos uma obra em

devir – entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro.

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Ao propormos a criação do conceito de imagem-rizoma, pudemos perceber que os princípios

do rizoma apresentados por Deleuze e Guattari se aproximam muito da tipologia do cinema

moderno tal como elaborada por Deleuze. Acreditamos que com o conceito de imagem-

rizoma pudemos expandir tanto a filosofia da diferença quanto a filosofia do cinema

deleuzeanas. E ao relacioná-lo ao filme analisado, identificamos potencialidades próprias do

cinema em produzir um pensamento da diferença.

Referências

AUMONT, J.; MARIE, M. (2003). Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução Eloisa

Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus.

DELEUZE, G. (1985). A imagem-movimento: Cinema I. Tradução Stella Senra. São Paulo:

Brasiliense.

______. (1990). A imagem-tempo: Cinema II. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo:

Brasiliense.

______. (2006). A ilha deserta: e outros textos. Tradução Luiz Orlandi et al. São Paulo:

Iluminuras.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1992). O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e

Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34.

______. (1995). Mil platôs. Tradução Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia

Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34. vol. 1.

DUBOIS, P. (2004). Cinema, vídeo, Godard. Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo:

Cosac Naify.

NOTRE Musique. (2004). Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Alain Sarde e Ruth

Walburger. Paris: Les Films Alain Sarde/ Périphéria/ France 3 Cinéma/ Canal Plus/ TSR/

Vega Film, 80 min., 35 mm.

VASCONCELLOS, J. (2006). Deleuze e o cinema. Rio de Janeiro: Ciência Moderna.