Aproximações Entre o Conceito de Rizoma Em Deleuze e Guatarri e o Cinema de Godard
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Aproximações entre o conceito de rizoma em
Deleuze e Guattari e o cinema de Godard
Mauro César de Castro
(mestre em Filosofia – PUCRS)
GT-Deleuze
Resumo: Pretende investigar aproximações entre a concepção filosófica de rizoma conforme
Deleuze e Guattari e o cinema de Godard a partir do filme Notre musique. Para tanto, retoma
as análises de Deleuze sobre o cinema moderno e a obra de Godard, e propõe o conceito de
imagem-rizoma como expressão do pensamento na obra godardiana. O rizoma se caracteriza
pelos princípios de conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignificante,
cartografia e decalcomania. Tudo isso pode ser percebido no referido filme: pela narrativa não
linear e a multiplicidade de discursos; os cortes irracionais e a ênfase no extracampo; as
relações não idênticas entre imagem/som e imagem/texto; as citações e colagens livres etc.
Com isso, Notre musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de
dissonâncias políticas e éticas. A imagem-rizoma em Godard resulta em uma obra em
constante devir – entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro.
Palavras-chave: Imagem. Rizoma. Cinema. Deleuze. Godard.
Introdução
Os escritos de Deleuze sobre o cinema ao mesmo tempo que rompem um relativo silêncio dos
filósofos acerca do assunto e vão além das leituras reducionistas ou até mesmo pejorativas,
despertam também grande interesse no campo da teoria do cinema. Seja entre filósofos ou
entre cineastas e cinéfilos, Deleuze tem sido recebido como uma voz pertinente, instigante e
inspiradora para se pensar e fazer cinema. Os dois volumes de sua obra dedicada à arte
cinematográfica (A imagem-movimento e A imagem-tempo), além de menções recorrentes
sobre o assunto em outras obras suas, ou mesmo quando se apropria de exemplos do cinema
para tratar de outros temas, instauram um diálogo fértil entre cinema e filosofia. E é notável
na obra deleuzeana ele ter proposto pensar o cinema a partir do próprio cinema, ao invés de
tentar identificar nele as questões tradicionais da filosofia, isto é, trata-se menos de inquirir o
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que pensamos sobre o cinema do que o que pensa o cinema. Como afirma o próprio Deleuze
(1990, p. 331-332), “Uma teoria do cinema não é ‘sobre’ o cinema, mas sobre os conceitos
que o cinema suscita [...]. Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E no entanto, são
conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema”.
Com fôlego de cinéfilo, Deleuze empreende uma vasta leitura da história do cinema sem
pretensão de exaustão (tarefa impossível), mas muito atento a um grande número de
movimentos, cineastas e teóricos. A avalanche de exemplos de filmes é desconcertante até
para os iniciados na área. Entre tantos diretores abordados, alguns nomes como Eisenstein,
Resnais, Welles e Godard se destacam. Este último talvez seja um dos com os quais o filósofo
mais se identifica, tendo-lhe dedicado um bom espaço em sua obra sobre o cinema, sobretudo
nos capítulos conclusivos do segundo volume. Com efeito, Deleuze percebe na obra de
Godard a força do pensamento: “Godard transformou o cinema. O que ele faz não é pensar
sobre o cinema, não coloca um pensamento mais ou menos bom no cinema, mas faz com que
o cinema pense – pela primeira vez, eu creio” (DELEUZE, 2006, p. 182). Cônscios disso,
escolhemos uma das últimas produções de Godard para nossa reflexão: Notre musique (Nossa
música, 2004). Trata-se de uma produção posterior a Deleuze, mas que conserva muito do
estilo de obras anteriores do diretor e, assim, as apreciações do filósofo lhe podem ser
estendidas.
Não obstante, o que aqui nos propomos não é demonstrar como Notre musique exemplifica o
cinema moderno conforme as análises de Deleuze no segundo volume de sua obra sobre
cinema, ainda que a ela recorramos constantemente. Nosso objetivo é trazer para a cena
cinematográfica o conceito de rizoma (conforme Deleuze e Guattari na obra Mil Platôs) a
partir do referido filme e, em consonância com a taxionomia das imagens no cinema moderno
realizada por Deleuze (na obra A imagem-tempo), propor o conceito de imagem-rizoma.
Nossa leitura também não consiste em aplicar o conceito de rizoma ao filme Notre musique, e
sim em perceber como o rizoma emana do próprio filme. Não se trata de uma associação
arbitrária ou mera ilustração; conforme pretendemos demonstrar, há pontos em comum entre
Deleuze e Godard que nos permitem dizer que este também pensa de modo rizomático. Se
filosofar consiste em criar conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 13), a imagem-
rizoma seria um conceito que, não tendo sido explicitado nem por Deleuze nem por Godard,
nos provoca a pensar.
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Cinema moderno e rizoma
Deleuze descreve o surgimento do cinema moderno como resultante da crise do cinema
clássico. Segundo Deleuze, esta ruptura teria se dado com o neorrealismo italiano, mas é a
nouvelle vague que teria consagrado a modernidade no cinema, entre cujos representantes
encontramos Godard. No cinema clássico vigora a imagem-movimento e no moderno, a
imagem-tempo. O que marca a irrupção da imagem-tempo é o fato de que o tempo deixa de
ser algo representado na tela (uma imagem do tempo) para se apresentar por si mesmo (a
imagem-tempo). No primeiro caso, temos o tempo deduzido indiretamente através do
movimento, um cinema de ação com situações sensório-motoras que falam do tempo; no
segundo, um cinema do tempo, abordado de modo direto em imagens que apresentam
situações óticas e sonoras puras. Não que o cinema clássico tenha menos mérito por isso,
Deleuze destaca como o cinema foi capaz de captar a imagem-movimento enquanto as outras
artes, assim como a filosofia, apenas tateavam o movimento. Contudo, o advento do cinema
moderno significa uma libertação do próprio cinema que, tendo tornado possível o
movimento na imagem e nisso afirmado a peculiaridade desse novo gênero de arte, chega à
sua maturidade.
Clássico e moderno como dois momentos da história do cinema, ou melhor, como duas
diferentes formas de se fazer cinema, remetem também à ideia de duas concepções de
pensamento: à primeira corresponde o paradigma da representação e à segunda, o da
diferença. Em outros termos, trata-se da contraposição entre o pensamento arborescente e o
rizomático. Rizoma é um termo tomado da botânica e transmutado em conceito filosófico por
Deleuze e Guattari como forma de conceber a realidade, o pensamento, a linguagem etc. Ele
se opõe ao conceito de árvore. A árvore indica um sistema fechado, totalizante e
hierarquizante; já o rizoma, um sistema aberto, heterogêneo e múltiplo. Nesse sentido é que
podemos dizer que o cinema moderno nos apresenta uma imagem-rizoma.
Deleuze não utiliza o conceito de rizoma ao analisar a obra de Godard, ou em qualquer outro
momento nas obras dedicadas ao cinema, mas em Mil Platôs a relação é sugerida. No final do
platô “Introdução: Rizoma”, eis que surge, subitamente e em tom exortativo, o exemplo de
Godard como o que seja fazer rizoma: “Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans:
faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo,
seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha!
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Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite
um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard)” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 48).
Imagem-rizoma e Notre musique
Deleuze e Guattari enumeram alguns princípios que caracterizam o rizoma: conexão e
heterogeneidade; multiplicidade; ruptura assignificante; cartografia e decalcomania. Seguindo
esses mesmos passos, vejamos como se apresenta a imagem-rizoma em Notre musique.
Princípios de conexão e heterogeneidade
[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.
[...] não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de
dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p. 22-23).
O filme Notre musique é dividido em três partes, iniciadas pelos seguintes títulos grafados
sobre a tela preta: “REINO 1 INFERNO”; “REINO 2 PURGATÓRIO”; “REINO 3
PARAÍSO”.
O “Inferno” consiste em uma sequência de rápidos e numerosos fragmentos de imagens de
arquivo e da história do cinema, a maioria delas mostrando a guerra e a violência. São cerca
de oito minutos de encadeamento de imagens nada gratuitas ou casuais, às vezes intercaladas
com a tela preta. Aqui se pode reconhecer bem o diretor de Histoire(s) du cinéma (1997-
1998) ou de De l'origine du XXIe siècle (2000), pela variedade e argúcia na escolha das
imagens e na montagem.
O “Purgatório” corresponde à trama do filme propriamente dita. Diferentemente da primeira
parte, acompanhada constantemente pela música, agora esta será pouco ouvida. É o momento
dos diálogos e da apresentação dos personagens, entre os quais se destacam o próprio Godard
(interpretando ele mesmo) e as jovens Judith Lerner (uma jornalista israelense) e Olga
Brodsky (francesa judia de origem russa). Eles estão em Sarajevo por ocasião do Encontro
Europeu do Livro, no qual Godard irá proferir uma palestra. Judith é o ponto de conexão com
a primeira parte do filme. Ela entrevista intelectuais a respeito das guerras do passado e do
presente, de Tróia à Palestina, e eles problematizam a questão da memória, do testemunho, da
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legitimidade do relato dos vencedores e da necessidade de poesia para a sobrevivência das
culturas. Olga, por sua vez, é quem permitirá a entrada na terceira parte do filme após a sua
morte. Ela é uma ativista que perdeu a confiança nos discursos, mas acredita que ainda vale a
pena lutar por uma revolução em nome da paz. Acaba sendo assassinada em Jerusalém ao
anunciar um atentado à bomba dentro de um cinema, quando, na realidade, apenas portava
livros em sua mochila.
A sequência do “Paraíso” é breve e bastante silenciosa. Mostra Olga caminhando pela floresta
à beira de um rio. A área é estranhamente guardada por soldados americanos, e após ela ser
autorizada por um deles a cruzar uma cerca, encontra outros jovens descansando, lendo ou
brincando. O título do livro que um deles lê anuncia: Sans espoir de retour (Street of no
return, de David Goodis, 1954). Em seguida um outro oferece uma maçã a Olga e ela come –
um clichê claramente assumido em referência ao Gênesis. Não há redenção final, apesar do
sacrifício de Olga. Esta última cena parece sugerir uma reversão do paraíso, pois se Olga
come da maçã, o que lhe aguarda depois? A tríade dantesca inferno-purgatório-paraíso seria
reiniciada? Ou seja, o final aponta para o início do filme?
Melhor do que isso, inferno-purgatório-paraíso não constituem uma linearidade narrativa,
uma cronologia, e sim um fluxo temporal ao modo bergsoniano. Inferno, purgatório e paraíso
são desdobramentos do presente que se lança em direção ao futuro ao mesmo tempo que
retoma o passado. Conforme explica Deleuze (1990, p. 103), “As teses de Bergson sobre o
tempo apresentam-se assim: o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se
conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada
instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva”. Como
imagem-rizoma, inferno-purgatório-paraíso se conectam de diferentes formas. A destruição
mostrada no “Inferno” não está ausente do “Purgatório”, pelo contrário, estão lá suas marcas:
as ruínas de Sarajevo, as fotografias, as lembranças, o testemunho dos sobreviventes e o temor
da censura. O “Paraíso”, por sua vez, já é anunciado no “Purgatório”, como indicam as frases
que aparecem na cena da palestra de Godard: “E a libertação?”, “E a vitória?”, “Esta noite
estarei no paraíso”. E o “Paraíso” guardado por homens armados se conecta ao “Inferno”: a
paz expressa pelo cenário bucólico do final do filme é apenas aparente, pois a ameaça da
guerra e a necessidade da força armada permanecem.
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Notre musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de
dissonâncias políticas e éticas. Godard cita Rimbaud: “Eu é um outro”. É a última fala da
primeira parte do filme, introduzindo o que será mostrado em seguida. Há diferentes etnias e
idiomas no filme, falado em francês, inglês, árabe, hebraico, sérvio e espanhol. Por que não
fazer um filme todo em francês? Podemos dizer que é uma forma de conservar o princípio de
heterogeneidade, sem tentar reduzir as vozes a uma fala de identidade. O outro é talvez o
grande protagonista de Notre musique. Olga lendo o livro Entre nous (1991), de Levinas (o
filósofo da alteridade), é muito sugestivo a esse respeito. É certo que a notável semelhança
física entre as atrizes que interpretam Judith Lerner (Sarah Adler) e Olga Brodsky (Nade
Dieu) pode gerar a impressão equívoca de indiferenciação, entretanto a dificuldade de uma
identificação rápida das personagens mantém até certo ponto no espectador a sensação de
estar diante de um outro desconhecido. E ao se distinguirem, tornam-se marcantes suas
diferenças: Judith é israelense, Olga é francesa judia; Judith aposta na palavra, Olga adere ao
silêncio; Judith está escavando o passado, Olga lança-se no desconhecido da morte. Olga e
Judith também são imagens marcantes da diferença no filme. Ou ainda, interpretando-se de
outra forma, elas parecem sugerir um duplo de uma mesma personagem, no devir de uma
subjetividade cindida, fazendo jus à máxima rimbaudiana.
Princípio de multiplicidade
Inexistência, pois, de unidade [...]. As multiplicidades se definem pelo fora: pela
linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização [...]. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 23.25).
Na segunda parte de Notre musique, Godard profere uma palestra sobre “o texto e a imagem”
– esta relação perpassa todo o filme e é discutida por Godard tanto enquanto diretor, quanto
enquanto ator-personagem. Sua fala oferece algumas pistas para compreensão da trama, mas
não chega a ser a fala reveladora, e sim um discurso entre muitos outros proferidos por
diferentes personagens, os quais têm sempre um forte conteúdo político e por vezes
perpassam aquele mesmo tema. Godard dá uma aula de cinema explicando o uso da técnica
do campo/contracampo. Para exemplificar, ele mostra dois fotogramas do filme His girl
friday (Jejum de amor, 1940), de Howard Hawks, em uma decupagem clássica: um homem e
uma mulher (Rosalind Russell e Cary Grant) conversam ao telefone e são mostrados
alternadamente em primeiro plano e em ângulo inverso. Godard critica esse uso, porque,
segundo ele, não considera a diferença entre um homem e uma mulher, eles são tomados
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como uma imagem só. É justamente o inverso do que faz Godard enquanto diretor nesta
mesma cena, em que o palestrante e os ouvintes são mostrados em vários planos e ângulos
diferentes com um jogo de sobreenquadramentos e desenquadramentos que privilegiam não
uma visão do todo ou uma síntese da situação, mas a proliferação de pontos de vista. Isso
demonstra a pedagogia da imagem godardiana, para retomar uma expressão de Deleuze. Há
um discurso e uma leitura das imagens, uma relação entre texto e imagem que não é de
significado e significante. Diz Deleuze (1990, p. 293): “O que define o cinema moderno é um
‘vaivém entre a palavra e a imagem’, que deverá inventar a nova relação delas [...]”. As
imagens no cinema não são apenas vistas, são lidas, e quando intervém o texto dito ou escrito,
este não vem decodificar ou confirmar a imagem. O texto desterritorializa a imagem e vice-
versa.
O curioso é que os fotogramas do filme de Hawks foram manipulados, já que eles não
aparecem no original tal como mostrados por Godard. Nas duas cenas de Hawks que mais se
aproximam do que Godard fala, os atores são enquadrados em plano médio e não em primeiro
plano. Isso não invalida o argumento de Godard, mas não deve passar despercebido que
usando as imagens em primeiro plano a crítica da indiferenciação entre homem e mulher
resulta mais contundente, pois gera a impressão de que a câmera de Hawks, mesmo próxima,
não vê a diferença. Podemos dizer que esse uso das imagens por Godard estabelece também
uma relação de campo/contracampo entre Notre musique e His girl friday no sentido discutido
por ele no decorrer de sua palestra. Através do exemplo do campo/contracampo, ele
problematiza as contraposições (imaginário/real, certeza/incerteza, imagem/texto etc.) que
marcam a relação cinema/realidade. Podemos identificar aqui o princípio de multiplicidade,
contra a ideia de uma unidade entre os pares contrapostos.
Com efeito, o cinema não se propõe como discurso verdadeiro, mas como discurso indireto
livre. Antes, é o lugar da potência do falso, como potência artística e criadora, potência de
vida, como dirá Deleuze (1990, p. 163) a respeito do cinema moderno e especialmente de
Godard: “contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante [...] a potência do falso não é
separável de uma irredutível multiplicidade [...]”. Godard tira disso todo proveito em Notre
musique, principalmente ao por lado a lado imagens de ficção e documentais, assim como
personagens fictícios e reais. Ele mesmo revela, ainda em sua palestra: “Por exemplo, duas
fotografias da atualidade representando um só momento da história. Vemos que, na realidade,
a verdade tem duas faces”. Esta última afirmação será repetida também por outros
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personagens. O poeta palestino Mahmoud Darwich, em uma entrevista, defende a importância
da poesia para um povo e diz: “A verdade sempre tem duas faces. Nós ouvimos a voz da
vítima troiana pela boca do grego Eurípedes. Tróia não contou sua história. [...] a vitória ou a
derrota não se medem em termos militares”. Em outro momento, um homem reflete acerca da
ponte de Mostar (construída sobre o rio Neretva no século XVI, destruída em 1993 na guerra
da Bósnia e que estava sendo reconstruída à época das filmagens): “É preciso restaurar o
passado e tornar possível o futuro. Combinar o sofrimento com a culpa. Duas faces. Duas
faces e uma verdade: a ponte”.
Vale ainda comentar a relação entre som e imagem como marca da multiplicidade. Em
Godard, a voz não conduz a imagem, assim como a música não conduz a cena. Em um filme
que se intitula “nossa música”, a música é um dos elementos mais difíceis de serem
analisados. A música do filme é composta por extratos vários de compositores do século XX
(à exceção do último): Jean Sibelius, Alexander Knaifel, Hans Otte, Ketil Bjørnstad, Meredith
Monk, Komitas, Gyorgy Kurtág, Valentin Silvestrov, Trygve Seim, Arvo Pärt, Anouar
Brahem, David Darling, Peter Tchaikovsky. O título não é nada óbvio, é mencionado apenas
em uma fala um pouco enigmático de Godard ao final da cena da referida palestra: “O
princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música”. Enquanto ele
diz isso, vemos na tela apenas um ponto de luz em movimento, depois a tela totalmente preta,
e à voz sucede uma música suave, que será pouco depois bruscamente interrompida pela
pergunta de uma ouvinte. Não vemos seu rosto, apenas a silhueta de Godard em primeiro
plano, de frente contra a luz. Ele nada responde, ouvimos apenas ruídos. É uma sequência de
rupturas visuais e sonoras, em que cada elemento se expressa por si mesmo, contrapondo
luz/sombra, som/silêncio, som/imagem. A técnica cinematográfica clássica buscaria uma
composição harmônica dos elementos para dar unidade à cena. Godard, ao contrário, trabalha
com a dissociação dos elementos e das percepções. Temos, então, uma imagem sonora pura,
pela qual o som se projeta para fora, para o extracampo.
Deleuze (1990, p. 278) acentuou como Godard explora esse recurso com componentes
sonoros que se deslocam e rivalizam, atravessando a imagem visual com tamanha autonomia
que a imagem passa a ser lida como uma partitura – uma partitura atonal, acrescentaríamos. A
voz off como recurso do extracampo, tornando perceptível para o espectador a continuidade
não visível do plano, coaduna com isso. Em Notre musique, ela é explorada denotando
descontinuidade como, por exemplo, quando uma fala se inicia muito antes da imagem visual
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correspondente ou se estende depois dela, e também nos diálogos, quando o ator não é
mostrado enquanto fala ou a câmera é posicionada atrás dele, privilegiando a imagem do
ouvinte.
Princípio de ruptura assignificante
[...] contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que
atravessam uma estrutura. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25).
O princípio de ruptura assignificante é o mais evidente no cinema de Godard. O diretor é
conhecido (e estranhado) justamente por isso, por ter desde sempre transgredido as
convenções cinematográficas e jogado livremente com os planos, cortes, sons e imagens. Em
Notre musique isso se dá também, e com a liberdade que foi se acentuando cada vez mais ao
longo da trajetória do diretor desde À bout de souffle (Acossado, 1960). Podemos começar
observando a narrativa do filme que, apesar da aparente organização indicada pela divisão em
três partes, apresenta-se muito mais como um corpo sem órgãos. Frequentemente os discursos
são fragmentados e os diálogos interrompidos. Os personagens não possuem um elo comum –
o caso extremo é a aparição quase fantasmagórica de três índios americanos no meio do filme.
A sucessão dos fatos é anacrônica, não se preocupa com a relação de causa e efeito e não há
fim e começo. Esses recursos permitem que qualquer ponto se conecte com qualquer outro, de
modo que ruptura e conexão estão diretamente atreladas na imagem-rizoma.
Deleuze interpreta isso como a instauração de um cinema do interstício em Godard: “É o
método do ENTRE, ‘entre duas imagens’, que conjura todo cinema do Um. É o método do E,
‘isso e então aquilo’, que conjura todo cinema do Ser = é. Entre duas ações, entre duas
afecções, entre duas percepções, entre duas imagens visuais, entre duas imagens sonoras,
entre o sonoro e o visual: fazer o indiscernível, quer dizer, a fronteira” (DELEUZE, 1990, p.
217). Cabe, então, retomar a ideia de campo/contracampo discutida acima. Campo e
contracampo, imagem e texto, real e imaginário não são oposições binárias (isso ou aquilo),
assim como não são superáveis numa síntese conciliadora. O “e” é até mais importante do que
as partes, porque no “entre” está a potência da imagem-rizoma, e não nos polos. No “entre” o
ser devém rizoma. A citação acima, de A imagem-tempo, coincide com outra a seguir, de Mil
Platôs, pela qual podemos perceber claramente como os estudos de Deleuze sobre o cinema
herdam a concepção de rizoma: “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre
no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,
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unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a conjunção
‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). Assim, chegamos a uma noção central para nosso
conceito de imagem-rizoma: uma imagem do “e”.
Os cortes irracionais são o principal procedimento para fazer operar a ruptura assignificante
na obra de Godard. Assim como o rizoma contesta os cortes significantes das estruturas,
Godard se opõe aos cortes racionais. Um corte racional se dá quando a passagem de um plano
a outro é feita por um encadeamento articulado de imagens que mantém o ritmo e a
continuidade da narrativa visual. Há, então, o que se denomina raccord. O corte irracional (ou
corte seco), pelo contrário, opera um falso raccord, isto é, a passagem de um plano a outro é
brusca. Na gramática do cinema clássico, o falso raccord é tido como um erro, uma má
articulação, mas na Nouvelle vague se tornou um recurso estético admirado (AUMONT;
MARIE, 2003, p. 116.251). Para Deleuze, os cortes irracionais caracterizam o cinema
moderno e potencializam sua capacidade de pensar por imagens. O falso raccord abre espaço
para o fora, o irracional, o impensado no pensamento – eis “o incomensurável de Godard”
(DELEUZE, 1990, p. 219).
Além dos exemplos acima, percebemos os cortes irracionais em todo o encadeamento de
imagens da primeira parte do filme, o “Inferno”, inclusive pelo uso da tela preta, que além de
interromper a continuidade com mais força ainda, lança as imagens no abismo.
Princípio de cartografia e de decalcomania
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. [...] [Ao contrário do] decalque
que volta sempre ao “mesmo”. [...] é preciso sempre projetar o decalque sobre o
mapa. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30-31).
Vejamos, finalmente, outro procedimento característico de Godard, as citações. Já tratamos de
como o diretor se apropria das imagens da história do cinema e também do uso da música,
falta acentuar seu diálogo com a literatura e a filosofia, tão marcante em toda sua obra. Para
Dubois (2004, p. 271), Godard realiza um “Trabalho de palimpsesto cinegráfico”. Ele verifica
que Godard toma a linguagem como matéria e a tela como quadro-negro, sobre o qual escreve
livremente, insere colagens e grafites, escreve e reescreve, compõe e decompõe, rasura. A
imagem deve ser lida, como um texto-imagem, um texto-filme. Em Notre musique, podemos
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perceber isso com o discurso dos livros que aparecem em cena, como é o caso dos já
mencionados Entre Nous e Sans espoir de retour. No primeiro caso, Olga está diante da ponte
de Mostar, ouve a explicação sobre a reconstrução e a religação dos povos enquanto lê um
livro sobre a alteridade: “Entre nós”. No segundo, Olga caminha pela floresta (o paraíso) e
passa por um rapaz que lê um livro ambientado em uma cidade-inferno: “Sem esperança de
retorno”. Essa presença do livro potencializa a leitura da cena e reescreve o discurso dos atos
de fala. A esse respeito, como não se lembrar da cena sensacional de Une femme est une
femme (Uma mulher é uma mulher, 1961), quando Angela e Émile se comunicam por meio
dos títulos dos livros? Olga também se comunica pelos livros, aliás, morre carregando seus
livros, a única arma de que dispõe para seu ato de revolução.
Outrossim, vemos os escritores que são personagens reais dentro de Notre musique: o
palestino Mahmoud Darwich, o espanhol Juan Goytisolo e o francês Pierre Bergounioux.
Suas falas descortinam como algumas questões centrais do filme (a guerra, a alteridade, a
literatura engajada) estão inseridas em uma rede maior de discussão. Temos ainda os filósofos
e escritores, cujos textos são livremente citados na fala dos personagens, sem obrigação de
referenciar sua autoria, porque na realidade os personagens não citam as ideias, eles as
vivenciam. Nos créditos finais Godard assume a autoria somente dos textos de Antonia
Birnbaum, Wolfgang Sofsky, Dostoiévski e Blanchot, mas há ainda Hannah Arendt, Levinas,
Camus, Benjamin, Rimbaud, Balzac, Kafka, Gandhi, entre outros.
Identificamos nestes procedimentos o princípio de cartografia tomando as citações como um
mapa de ideias. Godard não está simplesmente repetindo o dito, reproduzindo histórias e
argumentos, ele recria, reescreve, desterritorializa e reterritorializa os pensadores. Escritores
citados diretamente ou indiretamente, escritores em cena, personagens reais e fictícios,
Godard diretor e Godard ator-personagem se conectam mutuamente, mas de modo aberto e
múltiplo. Uma imagem de decalque seria sobrepor as citações sobre um eixo único de ideias,
um discurso fundamental, uma narrativa fundante. Porém, como imagem-rizoma, o que
encontramos em Notre musique são linhas de fuga. Claro que há elementos de decalque,
estruturas cinematográficas e semióticas, proposições categóricas, todavia desestabilizadas.
As repetições (de planos, procedimentos, textos) não se projetam em direção ao mesmo, mas
ao múltiplo, são reassumidas cada vez como um outro modo de serem vistas ou lidas.
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Durante todo o filme Godard trabalha com a conexão de imagens, às vezes até repetindo uma
mesma imagem ou tomadas semelhantes em momentos diferentes, como, por exemplo, as
intermitentes imagens de carros, trens e pedestres em trânsito em Sarajevo, em idas e vindas
sem direção determinada. Com isso, a cidade de Sarajevo – território sobre o qual se inscreve
a parte central do filme – é apresentada como uma cidade aberta com suas vias (avenidas,
ferrovias) como linhas de fuga. Em Mostar, por sua vez, é reconstruída uma via destruída no
passado (a ponte), dada sua importância para a vida da cidade, para a passagem e o encontro
de seus habitantes.
O vermelho também estabelece uma linha de conexão quase obsessiva na tela, presente na
maioria das cenas e bastante acentuado pela fotografia. Nas roupas, letreiros, carros, objetos,
sangue e vários outros elementos, o vermelho acaba conectando as imagens em meio ao caos
da montagem godardiana. Embora a associação ao sangue e à dor possa sugerir uma
interpretação disso, parece-nos que interessa mais ao diretor o vermelho enquanto vermelho, a
cor por si mesma, a imagem ótica pura. Não é um uso novo na trajetória de Godard, e Deleuze
comentou isso mais de uma vez lembrando a fórmula de Week-end (1967): “não é sangue, é
vermelho”. Segundo o filósofo, não é uma metáfora ou figura, nem é puramente pictórica
(DELEUZE, 1990, p. 34.220), “é a potência que se apossa de tudo que passa a seu alcance, ou
a qualidade comum a objetos inteiramente diferentes. Há efetivamente um simbolismo das
cores, mas este não consiste numa correspondência entre uma cor e um afeto (o verde e a
esperança...). Ao contrário, a cor é o próprio afeto, isto é, a conjunção virtual de todos os
objetos que ela capta” (DELEUZE, 1985, p. 151). O vermelho como metáfora seria mero
decalque, mas enquanto cor pura projeta um mapa visual, uma espécie de cartografia da cor.
Considerações finais
Compactuamos com Vasconcellos (2006, p. 170) ao afirmar que com Godard “estamos diante
do devir-cinema que remete à filosofia da diferença de Gilles Deleuze”. De fato, podemos
perceber, ao longo de todo o filme Notre musique, como o diretor transgride o uso clássico
das técnicas cinematográficas e rompe com os parâmetros da representação, afirmando a
diferença na imagem. Godard, com sua linguagem alucinatória, apresenta-nos uma obra em
devir – entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro.
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Ao propormos a criação do conceito de imagem-rizoma, pudemos perceber que os princípios
do rizoma apresentados por Deleuze e Guattari se aproximam muito da tipologia do cinema
moderno tal como elaborada por Deleuze. Acreditamos que com o conceito de imagem-
rizoma pudemos expandir tanto a filosofia da diferença quanto a filosofia do cinema
deleuzeanas. E ao relacioná-lo ao filme analisado, identificamos potencialidades próprias do
cinema em produzir um pensamento da diferença.
Referências
AUMONT, J.; MARIE, M. (2003). Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução Eloisa
Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus.
DELEUZE, G. (1985). A imagem-movimento: Cinema I. Tradução Stella Senra. São Paulo:
Brasiliense.
______. (1990). A imagem-tempo: Cinema II. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense.
______. (2006). A ilha deserta: e outros textos. Tradução Luiz Orlandi et al. São Paulo:
Iluminuras.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1992). O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e
Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34.
______. (1995). Mil platôs. Tradução Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia
Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34. vol. 1.
DUBOIS, P. (2004). Cinema, vídeo, Godard. Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo:
Cosac Naify.
NOTRE Musique. (2004). Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Alain Sarde e Ruth
Walburger. Paris: Les Films Alain Sarde/ Périphéria/ France 3 Cinéma/ Canal Plus/ TSR/
Vega Film, 80 min., 35 mm.
VASCONCELLOS, J. (2006). Deleuze e o cinema. Rio de Janeiro: Ciência Moderna.