Arantes, Paulo - Providências de Um Crítico Literário Na Periferia Do Capitalismo

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Otilia Beatriz Fiori Arantes Paulo Eduardo Arantes S entido da F ormação Três estudos sobre Antonio Candido Gilda de M ello e Souza E Lúcio Costa. PAZ E TERRA

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Arantes, Paulo - Providências de Um Crítico Literário Na Periferia Do Capitalismo

Transcript of Arantes, Paulo - Providências de Um Crítico Literário Na Periferia Do Capitalismo

  • Otilia Beatriz Fiori Arantes Paulo Eduardo Arantes

    Sentido da F ormaoT r s e stu d o s so b re A n to n io C an d id o

    G ild a de M e l lo e S o u za E Lcio Costa.

    PAZ E TERRA

  • O tilia Beatriz Fiori Arantes Produo Grfica: Katia Halbe

    Diagram ao: Adra Cristina Martins Garcia Capa: Chico Nunes

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Arantes, Otilia Beatriz Fiori Sentido da formao: trs estudos sobre Antonio Candido,

    Gilda de Mello e Souza e Lcio Costa Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

    ISBN 85-219-0274-3

    1. Cndido, Antonio, 1918 2. Souza, Gilda de Mello e, 1919

    3. Costa, Lcio, 1902 .I. Arantes, Paulo Eduardo

    II. Ttulo

    9 7 -1 1 1 4 C D D -8 6 9 .9 0 9C D U -8 6 9 .0 (8 1 ) .0 9

    0 0 3 5 4 5

    E D IT O R A PAZ E T E R R A S.A. Rua do Triunfo, 177

    01212-010 So Paulo-SP Tel.: (011) 223-6522

    Rua Dias Ferreira n. 417 Loja Parte 22431-050 Rio de Janeiro-RJ

    T e l.:(0 2 1 ) 259-8946

    1997Impresso no Brasil / Printed in B razil

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r io

    n a P e r if e r ia d o C a pit a l ism o

    Pcmlo Eduardo Arantes

  • Ento, em sntese, o tema este: quais as providncias que toma um escritor na periferia do capitalismo, num lugar adverso,

    digamos, para se tornar um romancista de mesma importncia que os maiores de seu tempo.

    R oberto Schwarz, entrevista ao J o rn a l do B rasil,

    17/6/1989

  • (Salvo em casos flagrantes de auto-engano deliberado, todo intelectual brasileiro minimamente atento s singularidades de um quadro social que lhe rouba o flego especulativo sabe o quanto pesa a ausencia de linhas evolutivas mais ou menos continuas a que se costuma dar o nome de formao} Que se trata de verdadeira obsesso nacional d testemunho a insistente recorrncia do termo nos principais ttulos da en- sastica de explicao do caso brasileiro: Fmmao do Brasil contemporneo; Formao poltica do Brasil; Formao econmica do Brasil; Formao do patronato poltico brasileiro etc. sem contar que a mesma palavra emblemtica designa igualmente o assunto real dos clssicos que no a trazem enfatizada no ttulo, como Casa-grande e senzala e Razes do Brasil. Tamanha proliferao de expresses, ttulos e subttulos aparentados2 no se pode deixar de encarar como a^ifra de uma experincia intelectual bsica, em linhas gerais mais ou menos a seguinte: na forma de grandes esquemas interpretativos em que se registram tendncias reais na sociedade, tendncias s voltas, no

  • S e n t id o da F o r m a o

    obstante, com uma espcie de atrofia congnita que teima em

    abort-las, apanhava-se naquele corpus de ensaios sobretudo o propsito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatu

    ra moderna que lhe sustentasse a evoluo. Noo a um tem

    po descritiva e normativa, compreende-se alm do mais que o

    horizonte descortinado pela idia de formao corresse na di

    reo do ideal europeu de civilizao relativamente integrada

    ponto de fuga de todo esprito brasileiro bem formado.

    Quando em 1959 Antonio Candido finalmente publicou

    a Formao da literatura brasileira cuja concepo original remonta segunda metade dos anos 40 , no houve dvi

    das quanto ao lugar que lhe cabia na estante, exatamente ao

    lado das obras clssicas de Gilberto Freyre, Srgio Buarque de

    Holanda e Caio Prado Jr., como ainda recentemente recordou

    Roberto Schwarz: maneira daqueles mestres do ensaio de

    interpretao do Brasil, que haviam repassado a gnese de nos

    sos irregulares padres de sociabilidade e vida econmica, An

    tonio Candido, identificando dinamismos especficos da vida

    cultural brasileira, expunha a constituio de uma tradio li-o

    terria nacional relativamente estvel. Caberia ento rever as

    implicaes daquele estudo verdadeiramente fundador luz

    do seu trao fisionmico mais saliente e original, uma certa

    idia de formao, por assim dizer, transcorrida em famlia.X

    Ao reconstituir a Chistria dos brasileiros no seu desejo de ter

    uma literatura, adotando, alis, com mal disfarada porm

    nem sempre bem compreendida ironia, o ponto de vista dos

    nossos primeiros romnticos, Velha concepo cheia de equ

    vocos, que mesmo assim achara interessante experimentar, An-

    ------------ 1 2 ---------------

  • f A} / y C A ' . ' L ' a . ' ' ^ " : y ;c

    1 P r o v i d n c i a s d e u m C r t i c o L i t e r a r i oV . ;;

    tonio Candido parecia sem dvida se alinhar por historiainterposta de um desejo que de fato existiu com essa/aspi

    rao coletiva de construo nacional\Com uma diferena crucial, ligeira dissonncia a ser resolvida, para a qual o mesmo Roberto Schwarz me chamou a ateno certa vez. Se entendi

    bem, formularia o problema como segue.Ocorre que, tendo se restringido formao de um siste

    ma cultural que se completara j no sculo passado, com a entrada em cena de Machado de Assis, o autor da Formao da literatura brasileira no precisou associar a fortuna do juzo crtico acerca daquela linha evolutiva ao sucesso histrico das expectativas sociais que sempre acompanharam as anatomias clssicas da malformao brasileira. Tirante o modernismo retro- verso do primeiro Gilberto Freyre, de costas para o horizonte

    prximo do pas real, sabe-se que tais prognsticos favorveis falharam em toda linha: ao invs de extirp-la, a modernizao do pas agravou ainda mais a dependncia herdada do complexo colonial. Numa palavra, o Brasil no dera certo, ia mesmo muito mal, porm sem comprometer a Formao de Antonio Candido, pois nosso sistema literrio no s se formara como at funcionava razoavelmente bem. Vantagens de uma dimenso que goza de relativa independncia? Sem dvida, e por isso mesmo/pas errado e cultura viva podem at certo ponto conviver sem danos mtuos irreparveis. Mas a dvida retorna quando notamos que a realizao do desejo dos brasileiros de ter uma literatura, caso esta no se resuma a mais um melhoramento da vida moderna, em princpio no poderia dispensar inteiramente o desenlace positivo do processo material de formao nacional, a que bem ou mal atrelara seu destino

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  • S e n t id o d a F o r m a o

    sendo por certo bvia para Antonio Candidc/a continuidade

    social do vnculo das letras^estreitado pela progressiva articu

    lao do sistema.\Se no for presumir demais, o Sentido da Formao obra, ideal e n social objetivo emergir em grande parte desse balano.

    D e s c o n h e c e m o s o S i l o g i s m o O c i d e n t a l

    Falta-nos um certo aprumo, um certo mtodo de esprito, uma certa lgica.

    Desconhecemos o silogismo ocidental [...] As melhores idias,

    por falta de razo e seguimento, ficam paralisadas em nossos crebros.

    Tchadaaev, C a r t a F i l o s f i c a , 1836.

    Vem de longe esse sentimento acabrunhador da posio

    em falso de tudo o que concerne cultura brasileira, a bem

    dizer tem a idade de nossa vida mental e com ela se confunde

    bem como as metamorfoses do desejo sempre renovado de corrigi-la mediante alguma sublimao descalibrada. Mas nao

    ser preciso remontar ^dupla fidelidade dos rcades^ no

    por acaso identificada e estudada por Antonio Candido , nem referir a instabilidade de Nabuco sentimento brasilei

    ro, imaginao europia , que, ao anunciarem a dialtica rarefeita entre o no-ser e o ser-outro na qual Paulo Emlio

    reconhecer a lgica infeliz da penosa construo de ns mesmos, atestam pelo menos a permanncia variada d^/sensaao

    de vida intelectual prejudicada,^no caso, justamente pela ausncia da fora formativa que lhe assegure alguma fibra diante

    das inevitveis flutuaes do malfadado influxo externo, at segunda ordem, predominante.

  • ) y-'lr r j u i V v. ' ' ^ -r t /M A ^ ' / l ,
  • S e n t i d o d a F o r m a o

    rito nacional reccnseadas apenas para melhor encarecer a condi

    o excepcionai de um Tobias Barreto, filsofo entre outras

    tantas veleidades exercidas com talento e despropsito, mas

    nem por isso deixavam de compor um quadro mais amplo

    dos constrangimentos que deprimiam o homem culto, forosa

    e ambiguamente solidrio dos t(povos sistematicamente atrasados,

    como o nosso. Deste lado do mundo, curiosidades intelectuais

    avulsas, sem passado nem futuro, do outro, a continuao

    progressiva que plasma uma tradio: sendo alem a mania

    do momento, na msica Slvio lembrava que Haydn, Mozart

    e Beethoven sucediam-se por necessidade do desenvolvimento

    da arte de compor, assim como no plano da evoluo filosfi

    ca Fichte sara de Kant como Hegel de Schelling etc. Porm,

    boa observao seguia o inevitvel disparate. Nada disso con

    figurava um prejuzo, antes uma vantagem. Mas no um gol

    pe de vista novo propiciado por alguma reviravolta do desen

    volvimento desigual que nos atribura um lugar de segunda

    classe na ordem moderna, mas uma bem-vinda exceo lei

    da ao do meio social, que no caso era atrasado e sufocante:

    atropelada a tradio local, tolhida na sua formao, os esp

    ritos vivazes das naes toscas e preteridas pelo esprito do

    mundo, no se sabe como dando as costas para os ptrios

    prejuzos que os oprimiam, poderiam enfim alar a fronte

    acima do amesquinhamento geral, deixando-se ento arreba

    tar pelo cosmopolitismo contemporneo. Portanto, um lugar

    ao sol para si mesmo e para Tobias Barreto. Assegurado, no

    entanto, s avessas, anulando o vislumbre do problema da mal

    formao nacional: ao invs da desejada organizao do influ

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  • P r o v id n c ia s d e um C r t ic o L it e r r io

    xo interno, penhor de autonomia mental, a fuga para a frente,o propsito descabido de emancipar-se sob a tutela das novas idias, entretanto revogadas nem bem desembarcadas. Acresce que, conscincia confusa e intermitente do nosso mal su-

    falta de seriao nas idias noutras palavras, a ausncia de

    vida cultural orgnica devia-se de fato a uma espcie de indiferenciaao social de fundo. Assim como ainda no hava

    mos conseguido cformar [grifo meu] um povo devidamente organizado, assim como nos faltava o encadeamento das clas

    ses,5 as cogitaes de nossos espritos vivazes acabavam se

    tornando apenas Tolhas perdidas no torvelinho de nossa indi

    ferena sendo indiferena, ou indiferentismo, uma ou

    tra expresso de poca para designar a sndrome em questo,

    para a qual se buscava remdio no ideal cumulativo de forma

    o, formao a um tempo mental e social. Quem contribus

    se para ordenar a primeira tambm ajudava na construo da

    segunda. Essa a ptica no difcil adivinhar , alis, pe

    dida pelo objeto, imagem nervosa do pas, da justia que

    Antonio Candido far aos graves erros de julgamento literrio

    cometidos por Slvio Romero: ele tinha a desconfiana per

    manente dos que s aceitam a palavra literria quando justifi

    cada por um empenho tico, religioso, poltico ou disfarado

    de outra coisa: cincia, filosofia, sociologia. Mas quem sabe

    isso foi at certo ponto condio para ele compreender to

    bem a literatura como fato social e, no caso brasileiro, o seu papel na formao da conscincia do pasVy (grifo meu).6 Em suma, num ambiente social amorfo e dissolvido, para falar como o

    Romero tambm juntou a percepo de que a

  • Se n t id o d a F o r m a o

    Tobias Barreto do Discurso em mangas de camisa, tudo conspirava para o desnimo dos espritos, uma espcie de enerva- mento ressentido por todos, um convite ao veleitarismo, deriva da curiosidade bruxuleante, to desfibrada quanto era mole, excessivamente plstica e dctil a matria de um corpo social desconforme. A ausncia da formao, de que tanto carecamos, de fato roubava-nos o flego em todos os sentidos, inclusive no mais drstico deles, assinalado pelo mesmo Slvio Romero: o trabalho intelectual no Brasil um martrio: por isso pouco produ- zimos: cedo nos cansamos, envelhecemos e morremos depressa.

    Quando os modernistas redescobriram o Brasil, passada

    a libertinagem do mundo sem culpa, da barafunda nacional

    festejada, reencontraram exposta a mesma fratura. Recm-inau-

    gurado o decnio construtivo de 30, Mrio de Andrade logo

    atinava com o nome pelo qual atenderia o problema nos cls

    sicos publicados a partir de ento. Nossa formao nacional

    no natural, no espontnea, no , por assim dizer, lgi-o / ^

    ca, escrevia em 1931. Eramos uma tal imundcie de con

    trastes que os fenmenos culturais, de to desencontrados,

    proibiam qualquer sntese interpretativa, pois nada lhe corres

    pondia na vida real do esprito, ainda desconjuntada. Da as

    providncias que passaria a tomar sendo o nosso problema um problema de formao , no sentido coletivo do alto

    nivelamento artesanal da inteligncia brasileira em processo

    de atualizao acelerada. Balanos de poca, poemas meditati

    vos, programas de estudos ou instituies culturais bem pla

    nejadas, tudo convergia, solicitado por uma tcformao ainda

    mal resolvida, como parecia demonstrar o recomeo moder-

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r a r i o

    nista da capo. Entroncando na tradio ensastica clssica, Antonio Candido no s respondia a um problema que de fato

    existira, como tambm poderia ajudar a desatar um n hist

    rico que ainda no se desfizera.

    Q u e s t o d e M t o d o

    Quando em 1989 a Formao da literatura brasileira completou trinta anos, um grupo de ex-alunos e antigos assisten

    tes, aos quais se juntaram alguns admiradores avulsos daquela

    obra clssica, reuniu-se na Universidade de Campinas para ou

    vir Antonio Candido reconstituir, a pedidos, as circunstncias

    que o levaram concepo original do livro. Conforme j lem

    brara no Prefcio da primeira edio, o livreiro e editor Jos

    de Barros Martins lhe encomendara uma histria da literatu

    ra brasileira, das origens aos nossos dias, em dois volumes

    breves, entre a divulgao sria e o compndio, mas acabou

    recebendo, com dez anos de atraso, apenas o estudo de dois perodos, verdade que decisivos e apresentados em estreita so

    lidariedade, a Arcdia e o romantismo. Para uma histria ge

    ral, comeava muito tarde e terminava cedo demais e, de

    fato, at hoje desconcerta muito leitor de boa-f, sem falar na

    confusa teimosia de um ou outro terico mais prolixo. Em

    lugar do panorama esperado, as etapas da formao de um sistema literrio no Brasil, percorridas, entretanto, atravs do exame

    exclusivo das obras. Estava armado um quadro interpretativo

    indito, cujo entrelaamento singular de perspectiva histrica e juzo crtico dirigiria os passos de uma gerao (por enquan

  • S e n t id o d a F o r m a o

    to). Ficara no ar, todavia, a legtima curiosidade pelas razes

    que ditaram tamanha alterao no plano inicial do livro, afinal

    responsvel por uma radical mudana de rumo nos estudos

    literrios brasileiros. Contou ento Antonio Candido que a

    idia de escrever uma Formao s lhe ocorreu depois de um bom tempo de muita anotao sem destino certo. Discreta

    mente insatisfeito com o destempero dos antecessores, mesmo

    os mais ilustres, que antepunham a resenhas histricas conven

    cionais introdues metodolgicas mirabolantes, ainda no sa

    bia bem o que pr no lugar. Como lidar com a literatura bra

    sileira galho secundrio da portuguesa, por sua vez

    arbusto de segunda ordem no jardim das Musas... de uma

    maneira que satisfizesse inteiramente os requisitos de uma vi

    so histrica e os requisitos de uma viso esttica, descartada a

    sada fcil porm equivocada de uma srie de estudos crticos

    sem vnculo histrico estruturador? Decidida a virada do livro

    que no seria mais uma histria da literatura brasileira,

    nem mesmo maneira esquemtica insupervel de um Thi-

    baudet , passam-se os anos sem que Antonio Candido atine

    com a chave do quebra-cabea que estava montando. A certa

    altura ccno me lembro bem quando nem como chegou

    enfim concluso de que um critrio interessante seria acom

    panhar a articulao das obras e dos escritores, um campo

    histrico de influncias artsticas cruzadas, ao longo do qual se

    poderia discernir a continuidade de uma tradio. A seu ver

    dera finalmente com a idia terica fundamental do livro, a de

    Sistema Literrio, que exporia na Introduo, prudentemen

    te apresentada como dispensvel, temendo com razo a con-

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  • P r o v id n c ia s d e u m C r it ic o L it e r r i o

    trovrsia arrevesada e bem brasileira do tipo doutrina-contra-

    doutrina, quando a fora discreta do mtodo deveria irradiar

    : apenas na anlise das obras em seu encadeamento histrico.

    O depoimento comemorativo trouxera baila um pu-

    3 nhado de episdios significativos relacionados com os tateios

    do ensasta estudioso do Brasil procura de um ponto de

    vista. Passando adiante no balano de contribuies e omisses,

    depois de lastimar o ttulo infeliz que despistava o leitor, An

    tonio Candido acabaria, no entanto, deixando passar sem co

    mentrios, quem sabe por julg-lo decorrncia natural do que

    dissera a respeito da noo de Sistema Literrio, o ponto cru

    cial daquela virada fundadora, a apropriao original pelo racio-I

    cnio literrio da idia de formao. Nisso, pelo menos, o ttulo do livro era exato. Mesmo assim no cogitou de passar or

    dem do dia, no caso, aos momentos decisivos da formao da

    Formao. Preferiu, ao contrrio, transform-la numa questo de mtodo, o que no deixa de ser um achado, alm do mais

    igualmente despistador.

    Ao distinguir entre manifestaes literrias avulsas a cifra \ mesma da tenuidade brasileira e literatura propriamente

    dita, encarada no livro como um sistema de obras ligadas por denominadores comuns que fazem dela um aspecto orgnico

    I da civilizao, um fato de cultura que no surge pronto e aca

    bado, antes se configura ao longo de um processo cumulativo de articulao com a sociedade e adensamento artstico, ao rever

    nesses termos a constituio de uma continuidade literria no

    Brasil, Antonio Candido dava enfim forma metdica ao con

    tedo bsico da experincia intelectual brasileira. Mais exata-

    21

  • S e n t id o d a F o r m a o

    mente, pondo em evidncia elementos da assim chamada for

    mao nacional, que alimentavam as escolhas estticas dos es

    critores, acabava desentranhando do fato bruto, a que se resu

    mia a referida formao nacional, o fio condutor de uma

    outra linha de fora formativa, vir-a-ser de um sistema cultural

    que na sua trajetria ia aos poucos convertendo surtos desgar

    rados em vida literria efetiva. O livro dava tambm um outro

    passo adiante, como a seu tempo veremos: aquela histria de

    formao, que refundia de alto a baixo a interpretao de nos

    so passado literrio, incorporava-se em termos atuais a um

    processo intelectual formativo de mltiplas dimenses (do

    teatro ao cinema, passando pela teoria social para dar uma

    idia de sua abrangncia), ao qual deu enfim formulao defi

    nitiva, sem dvida por mrito prprio do Autor que primeiro

    compreendeu o significado do lugar central ocupado pela lite

    ratura na reconstruo mental do pas. Noutros termos, cui

    dando apenas de literatura, Antonio Candido deu com a equao geral do problema da formao, um apenas que entre ns, durante muito tempo, foi tudo, ilustrando alm do mais com

    matria local o vnculo moderno entre Formao e Representao

    literria da realidade.

    U m P r ec u r so r

    Se ainda fosse necessrio comprovar o modo pelo qual

    Antonio Candido extraiu o princpio da Formao do movi

    mento mesmo do seu material, reordenando os dados da ex

    perincia brasileira, um nico exemplo bastaria, proveniente,

    22

  • alis, da mesma constelao em que vimos exposta por Slvio

    Romero a aspirao nacional por uma vida intelectual organi

    zada: nos termos da reconstituio empreendida por nosso

    Autor, a 'Vontade de fazer literatura brasileira, definida por

    uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase

    sempre de integrarem um processo de formao literria.

    Na virada do sculo, pode-se dizer que Jos Verssimo,

    batendo na mesma tecla no se poder falar de literatura

    brasileira na ausncia de um sistema vivo de obras, autores e

    pblico , e descontada a dose habitual de mal-entendidos

    quanto real dimenso das idiossincrasias nacionais, acabara

    entrevendo o ponto sensvel no qual nossa formao girava

    em falso. Mas o que falta ento nossa literatura!1 Mal formu

    lada a pergunta, Jos Verssimo tomava o cuidado de lembrar

    que ela continuava ramo da portuguesa55, ramo no qual se

    enxertaram outros elementos, mas no de modo que pri

    meira vista se no perceba que a mesma rvore apenas modi

    ficada pela transplantao a outros climas. Como se sabe, An

    tonio Candido aproveitou a deixa a nossa literatura galho

    secundrio da portuguesa...55 , mas para efeito de ducha fria,

    novamente para ressaltar e prevenir outro vezo de malforma

    o, a falta do senso de propores55, muito familiarmente

    reconhecvel nos que se nutrem apenas delas, sendo a portu

    guesa por sua vez, como lembrado ato contnuo, arbusto de

    segunda ordem no jardim das Musas55. (Tratando-se de adver

    tncia com endereo certo, compreende-se que tenha sido biso-

    nhamente acusado de plagiar Jos Verssimo, por sobre ser mau

    brasileiro, denegrindo de quebra as letras da antiga metrpole.)

  • S e n t id o d a F o r m a o

    Passemos ento resposta do ctprecursor pergunta por

    ele mesmo formulada:

    Esta nossa literatura que, como ramo da portuguesa, tem j perto de

    quatro sculos de existncia, no possui a continuidade perfeita, a

    coeso, a unidade das grandes literaturas [...] Faltou-lhe sempre a

    comunicabilidade, isto , os seus escritores [...] ficaram estranhos

    uns aos outros. E no me retiro s comunicaes pessoais, de valor

    secundrio, seno s intelectuais, estabelecidas pelas obras. As diver

    sas influncias que se podem notar em nossos mais notveis movi

    mentos literrios so todas exteriores [...] Como se diz em ttica

    militar, o contacto jamais se estabelece entre os escritores ou entre o

    seu pensamento. Esta falta de contacto continua ainda hoje [...] Fal

    tou sempre o elemento transmissor, o mediador plstico do pensa

    mento nacional, um povo suficientemente culto [...] Na constituio

    de uma literatura o povo tem simultaneamente um papel passivo e

    ativo: dele que parte e a ele que volta a inspirao do poeta ou do

    pensador.9

    Como se v, estamos a meio caminho da seriao nas

    idias reclamada por Slvio Romero luz do modelo europeu

    de cultura integrada alis, por ele mesmo alegremente des

    respeitado na nsia civilizadora de cumpri-lo , e da articula

    o do sistema literrio posta em perspectiva pela idia de for

    mao em Antonio Candido.

    Mesmo tropeando, ou, por outra, sobretudo quando es

    correga, Jos Verssimo no deixa de dar livre curso obses

    so com que perseguimos durante mais de sculo o ideal euro

    peu de cultura orgnica. Veja-se o que lhe ocorre a propsito da

    coeso, apangio das grandes literaturas. Slvio Romero, de

    tal modo oprimido pelo estado de arremedo permanente em

    24

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L i t e r r i o

    que vivamos, chegou a elogiar certa vez os bons tempos colo

    niais em que a tchbil poltica da segregao, afastando-nos dos

    estrangeiros, manteve-nos um certo esprito de coeso.10 Jos

    Verssimo beira uma enormidade de mesmo calibre ao encare

    cer, em nome das influncias cruzadas que consolidam a con

    tinuidade perfeita de uma literatura auto-suficiente, o pero

    do romntico, a seu ver nosso nico momento literrio orgnico,

    por existir, selado pelo destino do pas novo e independente,

    um nexo sentimental entre os escritores e Cum pblico simp

    tico, que instintivamente sentia na sua obra uma expresso dessa

    nacionalidade. Entre parnteses: pelo sim, pelo no, no custa

    lembrar que ao dizer certa vez que o escritor brasileiro se ha

    bituara a produzir para pblicos simpticos, Antonio Candi

    do tinha em vista justamente o efeito contrrio da comunica-

    bilidade desejada por Verssimo, a saber, o acanhamento daquela

    simpatia, rodeada por uma esmagadora maioria de iletrados cujo

    alheamento forado repercutia na aprovao incondicional da

    queles pblicos restritos, contaminados pela mesma indign

    cia cultural que acabou reduzindo as chances de produo de

    uma literatura verdadeiramente complexa entre ns. Uma outra

    falha de formao, alis, registrada no mesmo esprito das consi

    deraes anteriores por Mrio de Andrade, quando, na Elegia de abril, queixava-se da inexistncia na literatura brasileira de alguma obra em que pudssemos seguir uma linha de pensa

    mento, muito menos a evoluo de um corpo orgnico de

    idias. Voltando coeso de Jos Verssimo, unidade literria

    que edifica na dupla acepo brasileira do termo tanto su

    blimao esttica quanto construo nacional , o crtico com

  • S e n t id o d a F o r m a o

    pletava o elogio do perodo romntico observando que, passa

    da aquela breve idade de ouro em termos de vida literria,

    desnacionalizvamo-nos intelectualmente, o verniz cosmopo

    lita da hora presente tornava impensvel um sucesso literrio

    como o da Moreninha. Tudo se passava como se a modernizao cultural do pblico prejudicasse nossa evoluo liter

    ria. Vale a pena reler a explicao que o crtico dava para o

    paradoxo que observava, quando mais no seja pela curiosa

    semelhana com as reflexes que inspirava a Paulo Emlio a

    situao colonial vivida pelo cinema brasileiro, uma harmonia

    perversa entre os produtores e o pblico dos filmes brasileiros

    que prolongavam a tradio de espetculos populares para

    ambos, cinema mesmo o de fora, e outra coisa aquilo que

    os primeiros fazem e o segundo aprecia. Veja-se ento o que

    dizia Jos Verssimo acerca da pr-histria da mesma alienao:

    Defeituosa e falha, essa cultura foi ainda assim bastante para revelar

    ao publico ledor a inferioridade dos nossos escritores, no mais con

    trabalanceando esse sentimento pelo ardor patritico do perodo de/

    formao da nacionalidade. E, pois, a deficincia da cultura geral de

    todo o gnero, no Brasil, uma das falhas de nossa literatura. No

    fazendo seno repetir servilmente o estrangeiro, sem nenhuma origi

    nalidade de pensamento e de forma, sem idias prprias, com imen

    sas lacunas de erudio, e no menores deficincias da instruo co

    mum hoje aos homens de mediana cultura nos pases que pretendemos

    imitar e seguir, ns no podemos competir diante dos nossos leitores

    com o que eles de l recebem em primeira mo, oferecendo-lhes um

    produto similar em segunda.

    Estava delineado o drama da Vera Cruz, prenunciada a dbia valorizao da chanchada, e, se no foramos demais a

    26

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r io

    nota, demarcado o futuro lugar do Cinema Novo no processo formativo de nossa cultura cinematogrfica.

    T r a d i o e T a l e n t o I n d i v i d u a l

    Tudo isso no obstante, voz corrente entre os discpulos que a idia de literatura como sistema em Antonio Candido est muito prxima da noo de tradio em T. S. Eliot, segundo a qual, como sabido, no se pode apreciar devidamente o significado de um escritor a no ser por comparao e contraste, situando-o idealmente entre os autores mortos, de tal sorte que a ordem constituda pelos monumentos literriosse modificaria toda vez que entrasse em cena uma obra verda-

    11 ^deiramente nova. No serei eu a dizer que no. E bem possvel que na sala de aula Antonio Candido tenha referido aquela verso clebre da presena ativa do passado literrio e da existncia simultnea da literatura de um pas, para ilustrao didtica e apoio do seu argumento em favor do ponto de vista da formao. Mas essa ltima, que antes de tudo um processo, evaporaria nas mos de Eliot, cuja viso cordata e afirmativa. Sob o aspecto da exigncia mxima, pois se trata nada menos que de literatura universal apanhada no seu conjunto, ressalta a quase afabilidade mundana de um mestre-de- cerimnias que, para acolher um recm-chegado de mrito reconhecido, muda a disposio das personagens ilustres que ornamentam o panteo das letras: no todo reajustado, reina sempre a harmonia entre o antigo e o novo. A continuidade nunca de problemas, nem se constri dando forma aos impasses histricos a que se referem a tradio sempre ines-

  • S e n t id o d a F o r m a o

    pecfica e de universalidade mxima. verdade que a imagem

    de transmisso da tocha entre corredores, utilizada por Anto

    nio Candido para evocar a tradio viva sem a qual no h

    literatura como fenmeno de civilizao, contribui para a im

    presso da convergncia em questo.

    Seja como for, o mais provvel que se tenha estendido

    a Antonio Candido uma observao de Lcia Miguel-Pereira a

    respeito da publicao das Memrias pstumas de Brs Cubas, um acontecimento de tal modo decisivo no nosso panorama

    literrio, exigindo a reviso de valores, transformando por com

    pleto a viso do passado bem como o juzo da atualidade pr

    xima, que no lhe ocorreu melhor maneira de realar o imen

    so alcance daquela irrupo do que ajust-la ao famoso paradigma

    de Eliot: aplicando ao restrito patrimnio das letras brasilei

    ras a frmula empregada num plano muito mais vasto pelo

    crtico ingls, podemos dizer que o aparecimento do Brs Cubas modificou a ordem estabelecida: as posies de Jos de Alencar, de Manuel Antnio de Almeida, de Taunay, de Mace

    do at ento os grandes nomes da nossa fico tiveram

    que ser sensivelmente alteradas. " Convenhamos que a mera

    especificao histrica j desmente a frmula prestigiosa ao

    reduzi-la sua nica dimenso formal nisso to indiscutvel

    quanto inaproveitvel. Isso no tudo. Afastamo-nos ainda

    mais da chave apenas formal a que se resume a tradio aco

    lhedora de Eliot, se considerarmos agora o ngulo caractersti

    co segundo o qual Antonio Candido recapitulou aquela mesma

    redistribuio geral de posies provocada pelo aparecimento

    do segundo Machado, cuja maturao consistiu num modo

  • P r o v i d n c i a s d e u m C r t i c o L i t e r r i o

    peculiar de fixar e sublimar os achados modestos dos prede

    cessores, como diz nosso Autor, numa das frmulas definido

    ras do sentido da Formao. Como o livro tambm foi escrito

    para ser lido como uma introduo ao estudo de Machado de

    Assis, cabe a citao por extenso:

    Sc voltarmos porm as vistas para Machado de Assis, veremos que

    este mestre admirvel se embebeu meticulosamente da obra dos pre

    decessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente cons

    ciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orienta

    o de Macedo para a descrio dos costumes, no realismo sadio e

    colorido de Manuel Antnio, na vocao analtica de Jos de Alen

    car. Ele pressupe a existncia dos predecessores, e esta uma das

    razes da sua grandeza: numa literatura em que, a cada gerao, os

    melhores comeam da capo e s os medocres condnuam o passado,

    ele aplicou o seu gnio em assimilar, aprofundai; fecundar o que

    havia de ceito nas experincias anteriores. Este o segredo da sua

    independncia em relao aos contemporneos europeus, do seu alhea-13mento s modas de Portugal e Frana.

    Por onde se v que o novo inquilino, ao contrrio do que

    presumia Eliot, no nasce feito, e a sua formao que alte

    ra o sentido da tradio. V-se tambm, por outro lado, que,

    mesmo com a frmula de Eliot muito presente, Antonio Can

    dido ajustou-se antes de tudo pela lio de Slvio Romero e

    Jos Verssimo, naturalmente revista e corrigida, como se de

    preende dessa reconstituio da carreira de Machado de Assis,

    que finalmente cumpria o programa de continuidade cultural

    por canalizao do influxo interno, e correspondente despro-

    vincianizao da conscincia literria, traado pelos dois crti

    cos nas linhas tortas que se viram. Numa palavra, formado na

  • escola de Machado de Assis, de fato Antonio Candido aprendeu mesmo foi com as falhas de formao dos predecessores, cujos achados modestos tambm soube fixar e sublimar. Poderia ento citar Eliot vontade, quem sabe at para se fazer entender.

    F o r m a o e D e p e n d n c i a ( I )

    Um estgio fundamental na superao da dependncia a capacidade de

    produzir obras de primeira ordem, influenciadas, no por modelos estrangeiros

    imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento

    do que se podea chamar um pouco mecanicamente de causalidade intema, que

    toma inclusive mais fecundos os emprstimos tomados s outras culturas.

    Antonio Candido, L it e r a t u r a e S u b d e s e n v o l v i m e n t o

    Isso posto, no ser demais afirmar que a meditao sobre a carreira exemplar de Machado de Assis ter sido decisiva para a virada que deu origem composio original do livro. Poderemos tom-la inclusive como um modelo reduzido da idia de formao, alis, em tudo o mais exato possvel, pois se trata da trajetria intelectual bem-sucedida da parte de um escritor que soube cumpri-la revelia do pas real: um caso muito peculiar de nimo construtivo infatigvel por tdio controvrsia. Daremos ento mais um passo na demarcao de nosso assunto se acompanharmos por um momento o que diz Roberto Schwarz acerca dessa mesma carreira, lembrando de resto que os dois trechos citados h pouco no por acaso lhe servem de mote e epgrafe para a ltima parte do ensaio

    sobre o segundo Machado.14

    30

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L i t e r r i o

    Na recapitulao que encerra o estudo em questo, desen

    volvendo em nova chave o resumo de Machado delineado por

    Antonio Candido, a formao que nos concerne vem delimitada

    no sentido mais tangvel de uma acumulao literaria realizada na mais ingrata das situaes, pois afinal periferia e envergadura

    intelectual no costumam andar juntas. Como pde se formar

    um escritor de verdade em condies to adversas? Esta a per

    gunta que interessa a todos, enunciada e respondida por Ro

    berto, sem exagero, pela primeira vez. Para comear, passa a

    ordenar as providncias tomadas por Machado de Assis no sentido de se tornar o primeiro escritor brasileiro a dispensar a

    simpatia que lhe seria devida por contribuir tambm, como

    seus acanhados antecessores, para a construo do novo pas.

    No posso decerto enumer-las todas nem por extenso, muito

    menos abordar de frente o ncleo em torno do qual gira o

    argumento, a transformao, por imitao em profundidade

    de singularidades de nossa lgica social, da matria literria da

    primeira fase acomodaticia em procedimento narrativo, uma

    traio de classe que no mesmo golpe conseguia conferir al

    cance mundial, no a generalidades catadas no lixo ideolgico

    internacional, mas ao ponto de vista prejudicado da periferia.

    Numa palavra, um estudo enfim conclusivo da curva literria

    ascendente de Machado de Assis veio revelar a matriz prti

    ca na qual se entroncam, se alteram e confirmam mutua

    mente experincia social, material esttico e esforo de estruturao da linha intelectual evolutiva a que estamos dandoo nome de formao, no caso, um arco abrangendo meio sculo de acertos e despropsitos da confusa conscincia liter-

    31

  • S e n t id o d a F o r m a o

    ria nacional. Para encurtai; digamos que a principal providn

    cia formativa tomada por Machado de Assis registrada por

    Antonio Candido e explorada por Roberto Schwarz na dire

    o assinalada tenha sido a um tempo comparatista (por assim dizer) e cumulativa. Tratou assim, em primeiro lugar, de contornar os dilemas da dupla fidelidade nos quais sempre se

    debateu todo escritor brasileiro, por exemplo e principalmen

    te: atualizar-se a ponto de perder de vista a implantao local

    e girar no vazio como um europeu postio, ou alinhar com a

    posio em falso do pas, porm a nica real, e dar as costas ao

    mundo contemporneo? Machado simplesmente submeteu

    crtica recproca e sem resto os termos da comparao, que,

    alis, sempre nos foi desfavorvel. Juntando os dois plos, re-

    lativizava-os e assim acabou mostrando que era possvel opi

    nar sobre os grandes assuntos ao chamar pelo nome as contra

    dies locais, ao mesmo tempo em que especificava a hora

    histrica daqueles mesmos assuntos ditos universais. Encarada

    desse modo com independncia a norma europia indescart-

    vel, pde dar vez, sem a correspondente perda de tenso,

    causalidade interna, tornando possvel experincia intelec

    tual brasileira finalmente formar-se, na acepo especfica que

    se est dando ao termo: pela primeira vez um escritor conse

    guia escapar danao do recomeo solitrio, merc das

    escolas literrias sem continuidade com os resultados acumu

    lados pela experimentao literria no pas, realando-lhe in

    clusive a dimenso coletiva da produo.

    Ocorre ainda (para adiantar uma observao a ser reto

    mada adiante) que, ao tirar as devidas conseqncias do rotei-

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r a r i o

    ro traado por Antonio Candido, reapresentando o problema

    da formao como uma questo material de acumulao da

    experiencia intelectual nas condies francamente proibitivas

    da dependencia, Roberto Schwarz no s lhe deu formulao

    geral como indicou-lhe o horizonte no Brasil contemporneo,

    o que a seu tempo Antonio Candido tambm fizera, e mais

    para a frente veremos como. Refiro ento a observao am

    pliada aos dias de hoje para devolver a idia de formao sua

    dimenso mais polmica. Estudando no faz muito o atual

    eclipse da mais arraigada de nossas sensaes, o permanente sentimento de inadequao que desde a origem vem alimen

    tando o mal-estar definidor de nosso trato enviesado com as idias, desafogo apoiado na nfase da dimenso internacional

    da cultura (to mitolgica quanto a autarquia nacional de antes), Roberto volta a ponderar, como nos tempos da Formao, os estragos provocados pela preterio do vnculo local, o fenmeno familiar, porm no por acaso negligenciado pelos principais interessados, de que no Brasil a cada gerao a vida intelectual parece recomear de zero. O que significa o desinteresse pelo trabalho da gerao anterior e o que se segue da conseqente descontinuidade da reflexo que o apetite descontrolado pela produo metropolitana recente traz consigo? No preciso ser adepto da tradio, muito menos nacionalista, responde Roberto Schwarz,

    para reconhecer os inconvenientes desta praxe, a que taita no s a

    convico das teorias, logo trocadas, mas tambm de suas implicaes

    menos prximas, de sua relao com o movimento social conjunto, e

    ao fim e ao cabo, da relevncia do prprio trabalho e dos assuntos estudados. Percepes e teses notveis a respeito da cultura do pas

    33

  • S e n t id o d a F o r m a o

    so decapitadas periodicamente, e problemas a muito custo identifi

    cados e assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia

    corresponder [...] No se trata da continuidade pela continuidade,

    mas da constituio de um campo de problemas reais, particulares,

    com insero e durao histrica prprias, que recolha as foras em

    presena e solicite o passo adiante.

    Como se acabou de ver, foi assim com Machado de Assis, ao

    qual no faltou ccinformao e abertura para a atualidade e que, entretanto, soube ccretomar criticamente e em larga escala o tra

    balho dos predecessores, entendido no como peso morto, mas como elemento dinmico e irresolvido, subjacente s contradies contemporneas. Tambm este o caso, mais prximo de ns,

    de Antonio Candido, como, alis, recorda o mesmo Roberto Schwarz. Desnecessrio acrescentar que a idia de Formao retira sua fora justamente da pertincia na constituio do campo de problemas referido linhas acima, que sua ndole caracterstica se define pelo antdoto correndo na via contrria dos prejuzos causados pela mencionada preterio do influxo interno para nos atermos ainda terminologia especfica com que Roberto Schwarz nomeou de vez esses impasses atvicos.

    C a p t u l o d a s P r o v i d n c i a s

    Se tudo isso fato, como acreditamos, poderemos dizer que o sentido da Formao, exemplarmente estabelecido por Antonio Candido, especifica-se em primeiro lugar numa srie de providncias destinadas antes de tudo a ampliar a noo corrente de Crtica. Mais exatamente, quem dispuser de elementos para enumerar e coordenar um conjunto significativo

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L i t e r r i o

    delas, estar em condies de finalmente retraar a formao

    da Formao, e tudo mais que da segue no plano da organizao da cultura num pas dependente. Nem de longe o caso

    do autor da presente aproximao. Como tambm se trata aqui

    de um Mestre na periferia do capitalismo, com o qual precisa

    mos e queremos aprender, no custa arriscar algumas observa

    es, no intuito de atinar com a natureza muito bem constru

    da de um at hoje inigualado sexto sentido para tudo o que

    respeita 'formao de um intelectual na atmosfera opressiva

    do subdesenvolvimento, barreira afinal transposta na forma de

    problema e ponto de vista.

    Teoria pela porta dos fundos

    J topamos, alis, com um desses cuidados formativos

    em ato, por ocasio da virada de concepo que deu origem

    ao livro conclusivo que est nos servindo de apoio e refern

    cia. O caminho crtico que levava histria dos brasileiros no

    seu desejo de ter uma literatura era o mesmo que permitia

    contornar a mania metodolgica nacional e a recepo tor

    ta do livro confirmava o nosso mundo letrado desconforme,

    onde ainda se falava mais da maneira de fazer crtica do que

    propriamente se cuidava de faz-la. Retrocedendo tese de

    1945, O mtodo crtico de Slvio Romero, reencontraremos o primeiro grande exemplo da estratgia formativa discreta porm

    calculadamente adotada desde ento. Fazia alguns anos que Antonio Candido exercia a atividade de crtico, e no s de

    literatura, primeiro na revista Clima, depois tambm nos ro-

    35

  • S e n t i d o da F o r m a o

    daps semanais de dois jornais paulistanos. No passo seguinte,

    dado na forma de uma tese universitria, embora oportuna

    mente acadmico na composio do argumento, procedia de

    tato a um primeiro balano da publicstica em curso, apanhan

    do-a pelo mbito mais geral das relaes entre configurao

    esttica e processo social.16 Acompanharemos mais uma vez a

    lio de Roberto Schwarz:

    em lugar de debater a alternativa abstrata entre os estudos de contex

    to e de forma, diretamente nos termos da discusso e da bibliografia

    internacional a respeito, Antonio Candido prefere colher o problema

    na sua feio local, exposta nos impasses metodolgicos do predeces

    sor. Deste ngulo, a verso universalista da questo pareceria acad

    mica no mau sentido, deixando escapar os tpicos relevantes, sempre

    ligados a uma histria particular. [...] Ao insistir na relevncia do

    trabalho de Slvio Romero, mas sem lhe desconhecer o aspecto re-

    barbativo, Antonio Candido assume como condio prpria, que cum

    pre reconhecer e superar, o desequilbrio e a precariedade de nossa

    herana cultural. Para escrever a respeito, o crtico desenvolve um

    estilo que combina a seriedade e o senso amistoso do ridculo, estilo

    que registra e reequilibra nos termos devidos a importncia que tem

    para ns no h como saltar por sobre a prpria sombra a, . 17

    nossa formao cultural defeituosa.

    Reconheamos nesse aproveitamento ctmoderno dos acer

    tos e desacertos da tradio crtica brasileira mais uma providn

    cia formativa que viria dar igualmente numa outra iniciativa

    de mesmo teor, a saber, o projeto de um conjunto de estudos

    sobre a crtica literria brasileira, planejado por Antonio Candido no mbito da disciplina de teoria literria da Universida

    de de So Paulo, uma outra histria dos brasileiros cultivados de, no seu desejo de ter uma crtica literria, tambm contri-

  • PROVIDNCIAS DE UM C R TICO LITERA RIO

    buir para formar a cultura nacional c assim como havia i\ lugar para o substantivo e vulnervel Slvio Romero, haveria j igualmente para quantos justos e ingenuos Nestor Vtor se

    ; pudessem apurar.18o

    Voltando. No preceito formativo segundo o qual se deve

    comear colhendo um problema na sua feio local, est clara

    mente pressuposta a convico de que se pode alcanar a real

    universalidade do problema em questo (por isso mesmo sem

    pre determinada) mediante o aprofundamento das sugestes

    locais, que so parte da evoluo mundial do conjunto. Como

    se h de recordar, convico prtica da prosa machadiana, apon

    tada por Antonio Candido e desenvolvida em termos prprios

    por Roberto Schwarz, nos quais englobou o nexo formativo

    de particularidade local e alcance geral articulado pelo autor

    da Formao lembremos, para retomar mais tarde esse ponto capital, muito conhecido e pouco estudado (salvo pelo mes

    mo Roberto Schwarz que estamos acompanhando), que o pro

    cesso formativo em questo foi exposto tambm como uma

    | sntese de tendncias universalistas e particularistas. Convico na qual se exprime por sua vez o sentimento da ameaa do passo em falso que paira sobre todos, sentimento de implicao que vimos h pouco Roberto destacar na hora exata da sua primeira e muito indireta formulao (de acordo, alis, com a urbanidade intelectual do Autor) e evocado em mais de uma ocasio pelo prprio Antonio Candido, para governo dos compatriotas recalcitrantes. Por exemplo, quando em 1969, discutindo as relaes entre literatura e subdesenvolvimento, relembra o quanto a penria cultural caracterstica do nosso

  • S e n t id o d a F o r m a o

    atraso no faz excees e de fato produz uma debilidade muito

    mais penetrante e insidiosa do que pensam nossos letrados

    bem envernizados.Estrear na Teoria entrando pela porta dos fundos, reven

    do, no caso, o mtodo crtico de Slvio Romero, configurava

    ento um ato de independncia, um modo de reavaliar posi

    es em contraponto com a prata da casa, e portanto a manei

    ra mais produtiva de purgar a miragem que se viu, iluso com

    pensatria do brasileiro cultivado porm deprimido pelos ptrios

    prejuzos. Em suma, como no h mesmo como saltar por

    sobre a prpria sombra, melhor comear estudando os atrope

    los de um Brasil errado mas vivo (como Cruz Costa se referiu

    certa vez figura desconjuntada de Tobias Barreto) do que

    bisonhamente reexportar poticas confeccionadas com as so

    bras de uma cultura de enclave, alis, remontadas reprisando

    justamente o lado mais desfrutvel do velho crtico, do qual

    fazemos pouco simplesmente porque continuamos a substituir

    um decalque por outro. Podemos ento incluir nesse plano

    das providncias formativas a notria averso de Antonio Can

    dido pela Teoria, em particular pelo que no Brasil passa por

    teoria, a rigor tudo o que acessrio em literatura.19 Nosso

    Autor sempre alegou os acasos de um curso universitrio ain

    da sem grandes especializaes, a ascendncia de alguns pro

    fessores que puxavam um pouco para o ensasmo, ou pelo

    menos no o censuravam, mais a primeira distribuio de ta

    refas na revista Clima, sem falar no senso da assim chamada realidade brasileira, despertado pelos modernistas, apurado pelas

    exigncias do dia a partir de 30 e educado pela nova disciplina

    38

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r a r i o

    representada pela iniciao nas ciencias sociais propiciada pela

    recrn-fundada Faculdade de Filosofa fatores que o teriam

    confirmado de vez na vocao exclusiva de crtico. O que

    fato, sem, contudo, anular o lado obliquamente polmico da

    mencionada alergia, uma deliberada quebra de nfase especu

    lativa, uma inequvoca maneira de denunciar em tom menor

    um certo modo muito superlativo de dar aparncia monu

    mental a idias inexistentes. Por isso, nunca temeu a teoria, temia apenas o ridculo local de confundi-la com resenha bibliogrfica (boa divulgao no melhor dos casos) e a habitual colcha de citaes a esmo, no conjunto, involuntariamente pardica. Nessa mesma linha bom notar que as exposies ostensivamente tericas do Autor costumam ter cunho didtico ou aparentado, no que tambm costuma ser exemplar, sobretudo por prevenir o mpeto teorizante dos mais jovens. H sem dvida convices em jogo nisso tudo (com perdo da lapalissada), porm difceis de explicitar, alm de configurarem o tpico bsico (pela negativa) da plataforma de uma gerao, para no falar em razes intrnsecas quanto ao momento histrico da convergncia entre raciocnio esttico e teoria social no Brasil. Seja como for, no ser demais continuar sublinhando o vis formativo.

    Um exemplo. Quando a mar estruturalista inundava nossos departamentos de letras, Antonio Candido, como sempre em sala de aula, apresentava cordialmente o novo mtodo, ao lado dos demais, antigos e recm-chegados a serem testados, de certo modo designando polidamente o lugar que lhe cabia entre as especialidades acadmicas, ao passo que reservava a

  • S e n t id o d a F o r m a o

    sondagem da cultura viva reflexo autnoma do ensaio crti

    co, do qual, por princpio, estariam banidas questes de mto

    do tratadas em separado. No que faltasse ao gnero praticado

    por Antonio Candido complexidade terica, pelo contrrio,

    porm raramente visvel a olho nu, salvo na exceo notvel

    do ensaio sobre o Cortio, didaticamente apresentado como uma contribuio para o estudo das mediaes na anlise lite

    rria, e com razo considerado por muitos o momento mais

    alto da teoria literria no Brasil. Se juntarmos a esse escrito

    o estudo sobre o Sargento de milcias (cujos pressupostos foram analisados por Roberto Schwarz), depararemos a seguin

    te situao da teoria: mais uma vez colhida em sua feio

    local, a discusso conduzida em surdina, culminando num

    retrato original do Brasil. Segundo Roberto Schwarz, os dois

    ensaios, de caso pensado ou no, poderiam ser considerados

    os primeiros captulos de uma histria da representao da

    realidade na literatura brasileira, tomando-se o tempo Darstellung na acepo enriquecida que lhe deu Auerbach, isto , no sentido de exposio, descoberta e apropriao, ao qual nosso

    Autor teria acrescentado a funo estruturadora da forma, pre

    sente naturalmente no mbito da configurao artstica, cuja

    generalidade se poderia, entretanto, alcanar graas quela mes

    ma estruturao atuante no sistema das mediaes sociais, tram

    polim paradoxal para a anlise interna, na medida em que tais

    mediaes podem ser tratadas como se fossem categorias ex

    plicativas desentranhadas da prpria obra. Observemos por fim

    que este cenrio, no qual a teoria volta a fazer sentido na exata

    medida em que se constri o alcance geral da rebaixada realidade

    40

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L i t e r a r i o

    brasileira, obedeceria inteiramente lgica da Formao, a comeai' pelo seu trao mais saliente, a figurao paulatina de uma sociedade deprimida pela prpria imagem.

    Formao da rotina

    Uma outra providncia decisiva concerne formao da rotina. Com este ttulo Antonio Candido consagrou-lhe um captulo primoroso do livro, em que trata, nele e tambm nos dois seguintes, dos efeitos duradouros, por um perodo que se estende de fins dos setecentos at a consagrao da sensibilidade romntica, da aceitao e consolidao da disciplina arc- dica no gosto mdio, em cuja esfera por certo se degrada, porm estabilizada com flego suficiente para sobreviver sculo afora no s no mbito estagnado da subliteratura, mas na subconscincia dos bons autores, que deslizam para aquela vala comum sempre que a inspirao lhes falece. Para nosso Autor, tal fase de estabelecimento da rotina importa, sob vrios aspectos, como ele mesmo o diz, em sugestiva dubiedade, que se pode igualmente resumir nos seguintes termos: "Vista literariamente, a formao de uma rotina um descenso. No que interessa o conjunto do processo cultural, todavia, ela tem mritos, e o menor deles no foi certamente a constituio dos primeiros pblicos regulares no pas e com eles um primeiro momento orgnico de vida literria20. No difcil, portanto, atinar com a principal razo do apreo de Antonio Candidopor momentos como este, cuja primeira manifestao deve-

    /mos ao perodo em questo. E que a consolidao da mediania que tal estabilizao do gosto consagra, os hbitos mentais

  • Se n t id o d a F o r m a o

    que num certo sentido cultiva e se tornam tradio, fazem da rotina um dos raros atalhos de que dispomos para alcanar algo semelhante organicidade da cultura, at segunda ordem um ideal civilizatrio que um corao bem posto no pode desprezar.

    Uma comparao ajudar a medir o alcance dessa valorizao da rotina, entendida como uma mediania de carter coletivo, providencial no sentido da formao. possvel que tal compreenso, moderna e esclarecida, da rotina lhe tenha sido sugerida em parte pelo argumento sociolgico de Max Weber acerca da rotinizaao do carisma, ao qual se refere de passagem num balano das relaes entre cultura e sociedade no decnio de 30, de cuja atmosfera de fervor esttico-social nosso Autor se considera produto e agora recapitula sob o signo formativo da rotina bem entendida, no seu aspecto de socializao do gosto e equipamentos culturais afins, coletivizao por certo muito restrita numa sociedade to dividida e espo- liadora como a nossa. Quem viveu nos anos 30, recorda Antonio Candido, sabe que eles representam um eixo em torno do qual girou de certo modo a cultura brasileira, catalisando elementos dispersos para disp-los numa configurao nova. Boa parte desses elementos aspiraes, inovaes, pressentimentos foram liberados no decnio anterior pelo degelo modernista. As novas condies do perodo que se abria simbolicamente com o movimento de outubro acabaro normalizando, na acepo sugerida acima, o gosto modernista, antes visto com desconfiana pela maioria da opinio. Reconheamos ento nessa rotinizao da cultura moderna a fisionomia familiar de um momento formativo. O que havia antes de

    42

  • 30? Fenmenos avulsos, manifestaes aparentemente arbitrrias, desprovidas de necessidade real. Depois, o que parecia folha morta no torvelinho da nossa indiferena, para voltar afalar como Slvio Romero, o que era pensamento de poucos

    / 21foi se convertendo em estado de esprito coletivo. Onde havia disperso, achados decisivos e muita veleidade, sombra de uma reviravolta social muito desigual nos seus efeitos (quase nulos, lembra Antonio Candido, se pensarmos no povo pobre, significativos, se pensarmos nas camadas intermedi-

    rias e nas chamadas elites, tendo-se em vista o estado de extrema privao cultural do pas), uma nova rotina vai aos poucos integrando, unificando. Aproveitemos para assinalar de passagem a presena da peculiaridade que distingue o raciocnio da Formao, tanto o livro quanto a concepo da marcha das

    1 idias no Brasil, como apontado na introduo do presenteII estudo: evidentemente sem nenhuma iluso quanto ao arranjo

    oligrquico em curso, servindo, contudo, de agente catalisadori no programado, Antonio Candido limita-se a anotar o novo passo na direo do funcionamento da cultura moderna no

    pas. Acresce, todavia para dar mais uma volta em nosso problema , que datam precisamente desse entrecruzamento dos anos 30 os grandes ensaios de interpretao do caso brasileiro que constituem a famlia da obra clssica do Autor.

    Segundo escalo

    Antes de prosseguir no rol das providncias, convm notar que uma rotina no se forma se no for tocada pelo talento mdio. Deveramos, portanto, incluir neste captulo a notria

    I P r o v id e n c ia s d e u m C r t ic o L it e r a r i o

  • S e n t id o d a F o r m a o

    simpatia do Autor pelo segundo escalo, simpatia esclarecida na qual se revela o olho clnico para os meandros de um ciclo coletivo que no se completaria sem o concurso decisivo dos menores, dos mulos descoloridos, dos epgonos vacilantes. Salvo engano, este o esprito que paira na galeria de pequenos estudos e retratos verdadeiramente notveis expostos ao longo da Formao. Passamos ento a reconhecer as virtudes medianas de um Evaristo da Veiga, ao mesmo tempo em que somos polidamente convidados a evitar o riso muito fcil do modernista Alcntara Machado diante de um Gonalves de Magalhes, sem dvida modestssimo rastilho que se tomou por um cometa, lembra nosso Autor, mas que de fato bom no esquecer quando se cuida de organizar a cultura num pas to mal-acabado como o Brasil durante pelo menos dez anos

    fo i a literatura brasileira. Eis uma amostra desse esprito da Formao, no fundo tambm uma chamada ordem de mesmo teor que a estria na Teoria pelo seu lado mais desfrutvel e desconfortavelrnente prximo Slvio Romero , contraveneno para governo da aristocracia do nada descrita mais tar

    de por Paulo Emilio.

    Bigodes venerveis, cabelos arrumados, culos de aro de ouro,

    pose de escritorio. Homens de ordem e moderao, medianos na

    maioria, que viviam paradoxalmente o incio da grande aventura ro-

    mnticaf...] Foi, portanto, um grupo respeitvel que conduziu o R o

    mantismo inicial para o conformismo, o decoro, a aceitao pblica.

    Nada revolucionrio de temperamento ou de inteno, alm do mais

    sem qualquer eventual antagonismo por parte dos mais velhos, pou

    cos e decadentes, o seu principal trabalho foi oficializar a reforma.

    Amparados pelo Instituto Histrico, instalados nas trs revistas mencio

    nadas I Niteri; Minerva BmsiUense; Guanabara], deram-lhe visibilidade,

  • P r o v id e n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r i o

    aproximando-a do publico c dos figures, aos quais se articularam em

    bem montadas cliques, nelas escudando a sua obra e a sua pessoa. Era

    grande a comunidade de interesses entre os brasileiros cultos de toda

    idade e orientao, voltados para o progresso intelectual como forma de

    desdobramento da Independncia. Por isso, toda produo do esprito

    era bem-vinda c a M iner'a Bmsilieme publica tanto as poesias de Dutra

    e Melo quanto as odes de Alves Branco; acolhe o poema tumular de

    Cadalso e um impagvel ditirambo de Montezuma. Sobre o terreno

    comum do nacionalismo, abraavam-se as boas vontades.

    Este o retrato da primeira gerao romntica linha m-__ /

    dia da coabitao brasileira de Tempestade-e-Impeto de unhas aparadas e empenho patritico em simbiose com a edificao das famlias. Contudo, sem a aplicao com que os menores entronizaram a reforma do gosto, no se poderia compreender o primeiro grande exemplo de romantismo entre ns, a fuso de assunto, estilo e concepo de vida realizada por Gon

    alves Dias. Entre os mineiros e o romantismo, um pequeno exrcito de escritores secundrios, representando, todavia, o

    seu papel, onde o gosto amornado serve de contrapeso a manifestaes que, extravasando o campo das belas-letras, revelam alguma ousadia, naqueles momentos de transio e transao, no mbito mais empenhado do jornalismo e do ensaio poltico-social. Da o paradoxo muito apreciado pelo Autor de uma Formao e que vem a ser o fato estranho de essas geraes esteticamente apagadas, rotineiras ou vacilantes, serem as mesmas que, no terreno poltico e cientfico, mostraram deciso e senso atual da vida.22 Noutras palavras, em tais fases de normalizao dos passos isolados cios antecessores so requeridos outros mritos, raramente encarados como tais, e do observador, uma certa largueza cie esprito ainda muito mais rara (como esta-

  • S e n t id o da F o r m a o

    mos comprovando pelo exemplo notvel da presente exceo), para poder aquilatar o real significado de um fenmeno bifronte como este, o da imprescindvel formao de uma rotina.

    /mpeto planejador

    Aceita a observao, o corolrio igualmente familiar. Sendo o pas aquilo que se sabe, e como no h cultura organizada sem rotina intelectual planejada pelo tirocnio ocasional dos maiores e assegurada pelo esforo descompensado porm regular dos epgonos, essa convergncia no poder caminhar no sentido da Formao desejada se no for devidamente canalizada por instituies, alm do mais inspiradas no similar europeu, como no poderia deixar de ser quando se trata de estabelecer modelos e instrumentos para fazer "funcionar a cultura entre ns. Refiro-me a uma outra providncia formativa que Antonio Candido, como sabido, nunca deixou de tomar na hora apropriada e possvel, a exemplo de Mrio de Andrade em sua fase didtico-construtiva, que em nosso Autor tornou-se vezo permanente, mas no predominante. Na realidade, o exemplo vinha de longe, regularmente destacado e encarecido pelo Autor, comeando inclusive pela lembrana da oportunidade histrica da literatura congregada dos primeiros tempos coloniais. Mas no ser preciso recuar tanto. Novamente a baliza data dos anos 30 e da atitude mental que se exprimia no segundo tempo modernista, cuja rotinizao (no sentido indicado), alargando em movimento amplo o que era surto vanguardista, traduzia uma tentativa consciente de arrancar a cultura dos grupos privilegiados para transform-la

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r io

    em fator de humanizao da maioria, atravs de instituies^ 2 ____

    planejadas. Regra geral lembrada a propsito do Departamento Municipal de Cultura, organizado por Mrio de Andrade. nesses momentos que Antonio Candido tambm costuma pedir justia para alguns raros feitos da burguesia, em particular para certas instituies que a burguesia programou mas que, arrastadas pela dinmica muito peculiar da vida brasileira, acabaram tomando outro rumo, frustrando a expectativa original dos programadores, proceres esclarecidos de um flutuante partido brasileiro da ordem: de sorte que, vem a oligarquia, vem a cultura estrangeira de encomenda, criam-se as coisas com um certo intuito e no entanto brota ao lado uma plantinha incmoda que no estava prevista 24 Teria sidoo caso s para lembrar , ainda na esteira do mpeto planejador deflagrado em 30 (na expresso de Alfredo Bosi), da fundao de institutos de ensino superior como a Universidade de So Paulo e a Escola de Sociologia e Poltica, contemporneos do mencionado Departamento de Cultura, e mais adiante, j no decnio de 40, o Teatro Brasileiro de Comdia. Os exemplos so do prprio Antonio Candido e vm a propsito do episdio Vera Cruz, da o mbito paulista deles e a colorao de poca muito definida, a brecha por onde a oligarquia local imaginava ir ao encontro do esprito do tempo, renovado em 30 um pouco sua revelia. Na falta de culturas paralelas consistentes, era a cultura que podia haver, construin- do-se nos termos em que isso era possvel: em parte pelo menos, essa a lio de Antonio Candido numa hora de balanos estimulados pelo declnio do regime militar, em que na reviso dos principais momentos de instalao da cultura moder-

  • S e n t id o d a F o r m a o

    na no Brasil era praxe desancar aqueles luxos europeus em

    torno dos quais se abraavam as boas-vontades. (No custa

    recordar que o momento era de hegemonia liberal: a esquerda

    imaginava dar o troco traindo segredos de famlia, sugerindo

    nas alianas desfrutveis de antigamente a vocao autoritria

    dos novos liberais.) Voltando: uma lio sem dvida calibrada

    para o instante, o que no impede de inclu-la no repertrio

    das providncias formativas, neste caso, no captulo da organi

    zao institucional da cultura.

    P r o v i d n c i a s d e u m N e o - I l u m i n i s t a >

    Era o que pensava Alfredo Bosi nos idos de 70, referin-

    do-se coerncia axiolgica da bela, rica e complexa trajet

    ria de Antonio Candido/ 5 Como o juzo drstico e procura

    a controvrsia, convm cit-lo por extenso, acrescido da cir

    cunstncia polmica que talvez explique o equvoco muito com

    preensvel. No fundo, providencias tomadas por quem concebe

    a cultura como

    instrumento de modernizao, de emparelhamento do Brasil com os

    centros irradiadores da civilizao ocidental; o valor a ser atingido,

    a, a superao cultural do subdesenvolvimento, a passagem de

    etapas mentais atrasadas, provincianas, que se far mediante a liber

    dade de expresso, o rigor cientfico e o planejamento mais razovel

    das instituies [...] o progresso adviria do exerccio livre, mais es

    crupuloso, de uma cultura sem fronteira, sem cores nacionalistas nem

    sombras folclorizantes.

    Hoje, a nova esquerda brasileira, convertida com muito

    alarde aos imperativos da assim chamada Modernidade e ou-

    48

  • PROVIDNCIAS HE UM CRTICO LITERRIO

    tros paradigmas correlatos, dentre eles a Idia prtica de Humanidade, encarnada pela norma culta europia e suas instituies, no veria mal nenhum naquela falsa atribuio at porque, como se alega, no mundo multipolar de hoje, onde luta de classes e imperialismo teriam ficado para trs, o processo global de modernizao voltou a ser o principal fator de

    democratizao, e a Auflzlvung em escala planetria, um projeto que se pode confessar. H vinte anos, entretanto, simpatias iluministas, reais ou apenas de convenincia, ainda caam muito mal nos meios de esquerda. Ou melhor, nos setores de

    ponta do pensamento de esquerda, o Iluminismo tornara-se o

    alvo preferido da crtica, uma espcie de quinta-essncia do nefasto onde evidentemente cabia de tudo, da razo tecnocr- tica vontade de verdade das vanguardas polticas, de Voltaire

    mdia, da cultura letrada dos vencedores ao crescimento eco

    nmico etc. Esse o ngulo de ataque de Alfredo Bosi, no caso,

    cultura universitria de So Paulo, expresso acabada dos

    ideais ilustrados do humanismo paulista, mito oligrquico-

    liberal de redeno nacional pela escolarizao do povo brasileiro, fabulao que de resto no era de ontem nem apangio

    paulista. Aquele iderio antiiluminista corria o mundo em v

    rias verses, da contracultura americana ao ps-estruturalismo

    francs. Nenhuma delas parece ter comovido o crtico Alfredo

    Bosi, que, no entanto, partilhava o mesmo clima de opinio,

    alinhando com as assim chamadas culturas de resistncia, ani

    madas pelos novos movimentos sociais e demais "Vanguardas

    espirituais, geralmente propensas a encarar a modernizao

    capitalista antes de tudo como um fenmeno cultural de car

    ter predatrio. Bosi apoiou-se ento numa outra grande refe

  • S e n t id o d a F o r m a o

    rncia de poca, Gramsci, relido intensamente na Itlia, redes- coberto na Frana quando caducou a censura althusseriana, e por tabela, para variar, no Brasil, onde cientistas polticos de antiga formao marxista, por exemplo, procuravam encaixar a crise do regime e a reviso do perodo compreendido entre a Revoluo de 30 e o colapso do populismo em 64 em noes tais como bloco histrico, cchegemonia, sociedade civil etc., enquanto outros deixavam-se embalar pela analogia entre a revoluo passiva nos moldes do Risorgimento (ou mesmo nos termos prximos em que se configurara a tvia prussiana) e a nossa Revoluo Burguesa, evidentemente introuvable. Quanto ao nosso Crtico, revisando a trajetria da inteligncia universitria uspiana, e julgando encontrar, como dizia, no seu pendor crtico-liberal, um cuidado excessivo, estudioso porm assptico e bem pensante, com a difuso da cultura letrada, censurou-lhe o alheamento deliberado, a distncia em que sempre se manteve de um projeto mais amplo para o Brasil, um projeto enfim verdadeiramente nacional-popular outra noo gramsciana que dava a volta no pas naquele decnio de 70, dividindo, alis, as opinies. Para resumir, digamos que Bosi contrapunha uma nova tcida ao povo ao cosmopolitismo que a seu ver impregnava a cultura uspiana, ofuscada pelo desejo de integrar o povo mido, composto pelas camadas pobres e rsticas que, no entanto, aqueles scholars sabiam estudar to bem , no sistema racional inclusivo da sociedade moderna, fora do qual tudo resduo, atraso e arcasmo.

    Um contraponto familiar. E, se lembrarmos que durante um sculo ele balizou o debate russo at as portas da revoluo, poderemos facilmente imaginar que no nos livraremos

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r io

    to cedo dessa oscilao caracterstica da condio intelectual na periferia da ordem capitalista internacional, ora procurando o vnculo direto da empatia, no caso com a cultura pr- burguesa, mais particularmente com a dos oprimidos deixados para trs na corrida da modernizao, ora sonhando com uma ocidentalizao acelerada do pas, de outro modo condenado insignificncia. A esse propsito, uma observao de passagem dar a medida do desencontro: tendo encarecido um dos plos da equao, Bosi acabou perdendo de vista o verdadeiro problema de Antonio Candido, tantas vezes enfatizado por nosso Autor, justamente esse balano de localismo e cosmopolitismo que nos momentos de equilbrio define etapas de acumulao. E pelo visto a fortuna crtica de Antonio Candido tambm continuar oscilando entre esses dois extremos sem perdo, ora acusado de nacionalista, ora de eurocntrico. Ainda h mais neste captulo. Como se no bastasse deixar-se induzir pela alergia de Gramsci ao cosmopolitismo dos intelectuais italianos, ostensivo, e desde ento por assim dizer hereditrio, a partir do alheamento caracterstico dos humanistas da Renascena ao qual Gramsci contrapunha o carter popular da Reforma protestante Alfredo Bosi no deu muita ateno ao fato de que, ao centrar em grande parte na Escola sua profecia a respeito de um novo senso comum, Gramsci, nisto filho de uma velha e entorpecida sociedade de procos, bacharis e mestres-escolas, congregados volta das velhas classes proprietrias, no s no rompia, antes reforava, a tradio do antigo socialismo ilustrado, muito confiante nos milagres do saber, tradio que por sua vez Antonio Candido reencontrou ainda viva, estudando-a, porm, com distante simpatia,

  • S e n t id o da F o r m a o

    no modo de ser socialista de urna Teresina Carini Rocchi. Com perdo do atrevimento, alis, duplo, seria o caso de notar que h um pouco de dr. Fernando de Azevedo no Gramsci organizador da cultura. Ter, portanto, a sua graa visar o primeiro nos termos do segundo para melhor enquadrar a desconcertante vocao aparentemente ilustrada de Antonio Candido.

    Pois no era outro o alvo da impacincia nacional-popular de Alfredo Bosi em meados de 70, que na pessoa do organizador do Inqurito sobre a Instruo Pblica em So Paulo divisou sobretudo, nas suas mesmas palavras, as formas en- leantes da boa conscincia ilustrada: cidado prestigiado pela oligarquia e inteligncia reformadora eficiente, no dr. Fernando de Azevedo combinava-se o melhor do passado com o me-

    2 /lhor do presente que mais se poderia desejar? Num pas de reformas pelo alto, a liga de melhoria moderna e confortvel perpetuao do mando tradicional seria sempre bem-vin-

    da. Sem pr em dvida essa rotina do pas de passado colonial e o correspondente fogo morto da mitologia dos sonhadores

    ilustrados, nessas horas que Antonio Candido costuma enca

    recer a obra pioneira de Fernando de Azevedo, para lembrar em seguida que revoluo educacional s mesmo em Cuba a

    partir de 1959. Mais uma providncia caracterstica, que a um

    tempo encaminha e despista, como estrear ressalvando o m

    todo crtico do vulnervel Slvio Romero.

    Como no estou dizendo nada que Alfredo Bosi no saiba e muito melhor do que eu, fica no ar a curiosidade legiti

    mamente insatisfeita: se lembrarmos que Antonio Candido no

    s passou a vida esmiuando o mago de nossa iluso ilustra

    da, como chegou enfim a dat-la, na condio de ideologia

    52

  • P r o v id n c ia s d e u m C r it ic o L i t e r r i o

    da fase que chamou de consciencia amena do atraso, de onde poderia provir a impresso de que ao fim e ao cabo teria sido vtima da miragem redentora cuja presena recorrente na histria dos programas de remodelao da inteligncia brasileira vem sendo registrada pelo menos desde os tempos de Srgio

    7^ / /Buarque? Alis, sempre a propsito daquele malentendido de poca acerca da convergncia ilustrada de modernizao e democracia, seria o caso de recordar que no mesmo ano do juzo crtico em questo e em termos curiosamente aparentados no que concerne ndole derradeira da organizao da cultura num pas subdesenvolvido, Antonio Candido dava-se ao luxo de imaginar um socialismo pobre que, baseado no princpio da igualdade na pobreza, a fim de que todos possam se livrar da misria, e levando em conta a dimenso da natureza, as tradies culturais locais e nossas reais perspectivas cientficas e tecnolgicas, finalmente erradicasse o frenesi do consumo, nele includos todos os gadgets da indstria cultural, imposto s economias reflexas por convenincia do capitalismo central.28 Um projeto de reeducao? Sem dvida, porm na rbita de uma sociedade igualitria cuja mediania realista, encarando com sobriedade a herana colonial do atraso, permitiria enfim renovar o vnculo indescartvel com a norma culta planta

    da pela antiga metrpole. Uma confluncia apenas imaginada, para depois de uma outra formao. At l, mesmo sob pena do mal-entendido, seria o caso de ir socializando os ainda escassos recursos da cultura moderna acumulados a partir de 30 nas poucas instituies planejadas pela boa conscincia ilustrada.

    Voltemos querela russa que lhe moveu Alfredo Bosi num momento de alta das culturas pobres e em sintonia com

  • S e n t id o d a F o r m a o

    o antiuniversalismo das derradeiras vanguardas europias. Desafinando ou no, o fato que o "nacional-popular de Gramsci, cuja rvore genealgica remontava ao navodnosz reinventado pelo radicalismo russo dos oitocentos, gravitava na rbita dos novos regionalismos e demais ideologias da infracomplexida- de. E mais, de novo na berlinda a sempiterna obsesso da situao colonial, denominao imprpria ou no, mas designando impasses objetivos. Assim sendo, no processo de amadurecimento descrito por Antonio Candido em termos de incorporao da norma culta em funo da particularidade local a ser configurada, Bosi viu apenas estilizao cosmopolita do foco de viso colonizador, fechando os olhos para a outra face da medalha, para a ambigidade daquele instrumento de imposio cultural. Abafada a reversibilidade do processo o padro imposto podia virar fermento crtico a relativa maioridade alcanada com a "formao do sistema literrio (mais exatamente, a superao da dependncia pela consolidao de uma causalidade interna, nos termos da formulao citada de Antonio Candido) muda inteiramente de sentido, torna-se quase uma capitulao: vistas as coisas desse ngulo diametralmente oposto, o momento em que a formao se completa coincidiria com a total interiorizao das presses culturais do colonizador, refeitas pelo colonizador bem-formado no instante consagrador em que demonstra ter finalmente condies de compor uma obra nova, altura da civilizao que o determinou. Se pensarmos no fecho machadiano dessa formao rea- presentada s avessas, no deixa de ser picante esse desfecho intempestivo. Sabe-se, todavia, que Alfredo Bosi no cedeu tentao de preferir a revolta sem futuro literrio de um Lima

    54

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r io

    Barreto , por contraste, desfibrada independncia de um Machado. Mesmo assim fica difcil no reparar que na ocasio faltou ao diagnstico nacional-popular de nosso Crtico um certo senso dos contrrios, justamente o nexo segundo o qual Antonio Candido armou sua interpretao de nossa evoluo mental. Resumo brevemente (dispensando aspas) o que a falsa impresso de Aulvung linear deixou escapar. A literatura foi de fato pea eficiente do processo colonizador; celebrao direta da ordem colonial, nunca deixou de servir aos mecanismos de dominao; desfeito o antigo sistema colonial da maneira ultraconservadora que se sabe, a herana cultural portuguesa foi passando para o controle dos novos grupos dirigentes, a ponto de contribuir decisivamente para a ccformao da conscincia das classes dominantes locais. Isso quanto ao primeiro gume, em que a hegemonia era pura coero, cortando pela raiz a expresso possvel das culturas dominadas, quando muito toleradas como apndice pitoresco, sufocadas juntamente com o meio rstico, mantido distncia at o grande desre- calque modernista. Danao da norma, tambm neste caso? Em termos. A mesma disciplina mental que louvou o carter civilizador do jugo colonial, e que j desembarcara no Novo Mundo expurgada da cultura popular medieval, se reprimiu o correspondente local por temor regresso, permitiu inteligncia cultivada resistir aos apelos de uma sociedade embrutecida e s voltas com a perene ameaa de anomia. Este o outro gume: ajustando-se, o padro culto imposto passou tambm a figurar as contradies da ordem social em gestao, cumprindo-se no sentido oposto a vocao realista da referida disciplina mental. Quando expressou essa dimenso cognitiva, nossa litera-

  • S e n t i d o d a F o r m a o

    tura chegou a ser de fato tun fator de esclarecimento e, nessas

    condies, formao e ilustrao cedo ou tarde se cruzariam./

    E certo, portanto, que Antonio Candido jamais escon

    deu sua simpatia por nossa acanhadssima Auflzlrung tmpora. Digamos, mais exatamente, que ele no economizou a com

    preenso devida sobretudo da ptica de quem estuda uma

    Fonnao na periferia aos primeiros feitos de nossas classes

    por assim dizer esclarecidas. Eis mais uma amostra da largueza

    de vista e discernimento requeridos nessas circunstncias:

    Foi todavia com a vinda de D. Joo vi que o Brasil conheceu/

    realmente, embora em escala modesta, a sua Epoca das Luzes, como

    entrosamento da iniciativa governamental, do pragmatismo intelec

    tual, da literatura aplicada, que finalmente convergiram na promo

    o c consolidao da Independncia [I, 6 2 J. Muitas das aspiraes

    mais caras aos intelectuais brasileiros da segunda metade do sculo

    XVIII foram aqui realizadas nos primeiros anos do XIX com o apoio

    do prprio governo que as combatera [...] Imprensa, peridicos,

    escolas superiores, debate intelectual, grandes obras pblicas, contac

    to livre com o mundo (numa palavra: a promoo das Luzes) assina

    lam o reinado americano de D. Joo vi, obrigado a criar na Colnia

    pontos de apoio para o funcionamento das instituies. Foi a nossa /

    Epoca das Luzes, acarretando algumas conseqncias importantes

    para o desenvolvimento da cultura f...] Momento decisivo, j se v,

    que despertou nos contemporneos os maiores entusiasmos, as mais

    rasgadas esperanas [...] Os sonhos dos homens cultos pareciam rea

    lizar-se e a adulao se fazia indiscernvel da sinceridade, no vasto

    movimento de gratido ao simptico trnsfuga real, que abria para o

    pas a era do progresso [I, 225].

    Esse o marco zero local e molde duradouro de uma constela

    o ao que parece recorrente nos contextos de defasagem, um

    56

  • P r o v id e n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r i o

    certo ata de mttmpapfe (ele mesmo estimulado por uma ordem internacional que se encarregar de desfigur-lo e frustr-lo),

    em que gravitam o desejo ilustrado de organizar a cultura, via

    de regra politicamente avanado em relao ao meio retrgra

    do ou indiferente, e a complacncia ocasional das elites diri

    gentes, cujas iniciativas podiam inclusive ir ao encontro do

    referido desejo. E mais: em poucos momentos, quanto na

    quele, a inteligncia se identificou to estreitamente aos inte

    resses materiais das camadas dominantes da Colnia (que de

    certa forma eram os interesses reais do Brasil), dando-lhes rou

    pagem ideolgica, e cooperao na luta (I, 236). Haver ou

    tros, sem dvida, mas de igual abrangncia e to decisivo quan

    to o das transformaes joaninas s mesmo, na opinio, alis,

    do prprio Antonio Candido (expressa, por exemplo, no Pre

    fcio do livro de Paulo Duarte sobre Mrio de Andrade),

    quando nos idos de 30 uma gerao embalada pelas ideias

    modernistas de remodelao de nossa vida mental foi chama

    da a servir por uma nova classe poltica tambm procura de

    pontos de apoio para o funcionamento das instituies. Nesse

    outro caso curioso de uma Vanguarda poltico-cultural som

    bra de uma situao oligrquica, que a aceitou e apoiou (ain

    da nas palavras de Antonio Candido), reproduziu-se em nova

    chave no custa repetir aquela matriz ilustrada em que

    uma inteligncia desejosa de criar uma cultura local com os

    ingredientes tomados avidamente aos estrangeiros, homens

    ricos, e no governo, acessveis s manobras do esprito, como

    sonhava Paulo Duarte a respeito de um Fbio Prado, e pro

    gresso conseguem andar juntos sem remorso. Avaliemos en-

    57

  • S e n t id o d a F o r m a o

    to o quanto de tato e tirocnio no ter sido preciso para

    discernir a fora formativa atuante nesses momentos de estado de graa ilustrado e simbiose com os donos da vida.

    Tambm no podemos esquecer as reticncias que sem

    pre provocou em Antonio Candido a musa utilitria que bem

    ou mal inspirou uma literatura empenhada como a brasileira,

    particularmente nos seus momentos de formao de resto,

    como sabido, foi o mesmo Antonio Candido o primeiro a

    enunciar dessa forma o problema. A bem dizer o Autor dar

    esse perodo de formao por encerrado quando, calibrando

    sua vocao aplicada de origem, nossos escritores demonstra

    rem enfim a coragem do gratuito, prova de amadurecimento a

    que se refere logo na introduo da Formao. Por enquanto, bom relembrar, estamos procurando repertoriar as implica

    es desse livro clssico ainda no plano das iniciativas tomadas

    por um crtico literrio na periferia do capitalismo. Mas, em

    continuidade, seu empenho formativo funcionou, entretanto,

    como sexto sentido para divisar o alcance histrico daquele

    realismo mido, primeira vista apenas sinal de imaturidade

    suburbana. Ocorre que o esprito de 30 no qual se formou

    nosso Autor, pondo de quarentena aquelas reticncias do ho

    mem de gosto ainda abstratamente intransigente, veio confir

    mar e reforar em Antonio Candido aquela vocao atvica

    para o autoconhecimento social e a sua comunicao quase

    didtica. Alis, num depoimento, aplicou a si mesmo o racio

    cnio literrio que atribura juventude de uma literatura como

    a nossa, cujo ambguo sentimento de misso mandava botar

    chumbo nas asas da fantasia: confesso que, por toda a minha

    58

  • PROVIDNCIAS DE UM CRTICO LITER RIO

    vida, mesmo nos momentos de mais agudo esteticismo, nunca

    fui capaz de perder a preocupao com os fatores sociais e

    polticos, que obcecaram a minha gerao como urna especie29de memento e quase de remorso.

    Ressalvas e contrapesos parte, o conjunto de providen

    cias que pontuam a carreira de Antonio Candido, invertendo

    0 ceticismo de praxe quanto fora social das Luzes no

    fundo um lugar comum da crtica, que pode assim triunfar

    sem muito esforo , demonstra ao contrrio a inesperada

    fora formativa da atitude esclarecida num pas como o nosso.

    Para encerrar este captulo, reconsiderem-se luz do exposto

    duas iniciativas desse teor. No princpio da carreira, o j men

    cionado ciclo de artigos e rodaps semanais, ccunidos pelo pro

    psito militante de ampliar a compreenso da atualidade, nas palavras do seu melhor intrprete, que lhe define a feio ilus

    trada nos seguintes termos, onde prima o esforo por pensar em conjunto e comparativamente Brasil e Europa: a vizinhana entre a produo local e as grandes tendncias contempor

    neas em arte, poltica e filosofia, provocada pela abertura de esprito dominante nestes rodaps, configura um programa de desprovincianizao e clarificao da cena cultural. Mais adian-

    , te, releia-se nesse esprito um livro como Na sala de aula, pequeno repertrio de anlises exemplares destinado ao profes-

    i sor interessado em ler poesia com os seus alunos, novamente na caracterizao do mesmo Roberto Schwarz citado acima: trata-se da tentativa de socializar, nas precrias condies cul-

    1 turis do pas, sem rebaixar o nvel, a mais requintada e infor-i mada experincia potica. Um esforo modelar de democrati

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  • S e n t i d o d a F o r m a o

    zao da cultura, livre de barateamento, ou, para usar o termo

    poltico, isento de populismo. Embutida nele, como um pro

    grama hipottico, est a converso democracia do que 30a elite culta brasileira elaborou de melhor.' Digamos, uma

    maneira mais depurada, e noutra escala, de reatar com a relati

    va inclinao didtica da segunda fase modernista, sem ilus

    es, todavia, quanto ao poder resolutivo da mera Aufklrung, sobretudo num momento em que a socializao do juzo de

    gosto j poderia confiar o seu destino causa ainda incerta da

    democracia de massa, dispensado o antigo patrocnio da fina

    da oligarquia, nos momentos em que costumava favorecer as

    coisas da inteligncia.

    O J e i t o d e o G r u p o C l i m a s e r M o d e r n o ( I )

    Mas, antes de encerrar de vez este captulo, um derradei

    ro reparo de Alfredo Bosi, como se v, observador atento da

    evoluo da famlia intelectual a que pertence Antonio Candi

    do. Refiro-me ao momento em que, argiiindo em 1972 a tese

    de Paulo Emlio sobre Humberto Mauro, acabou confessando

    o quanto o intrigava o jeito muito especial de o grupo de 3 1 aClima ser moderno, o qual, ato contnuo, tentou definir.'" A

    seu ver, um certo fascnio pela reconstituio da experincia

    que se revela sobretudo no modo a um tempo desenvolto e

    respeitoso de explorar imagens obsedantes do passado brasileiro. Sem dvida, nada que se assemelhe cega complacncia

    de um Gilberto Freyre, extraviado na estilizao de um passado de violncia e opresso at porque, no custa lembrar,

    aquele grupo pioneiro foi dos primeiros a lanar no terreno da

    60

  • P r o v id n c ia s d e u m C r t ic o L it e r r i o

    crtica da cultura alguns resultados do novo esprito uspiano, responsvel, como tem insistido Antonio Candido, pela primeira viso no aristocrtica do Brasil. Mesmo assim, evitando cuidadosamente o amlgama, Alfredo Bosi no consegue deixar de se oferecer o luxo de alguns minutos de hesitao, em que coloca na berlinda a suposta oscilao entre passado e presente de um grupo marcado pela vocao esttica: a crtica do tradicional, que essa gerao capaz de fazer, na medida em que o tradicional representa sistemas de opresso, mistura- se com o enlevo pelo antigo, enquanto este compensa a aridez do presente. Afastada a tentao, qual, entretanto, arrumou um jeito de dar breve porm indisfarvel satisfao, nosso crtico sugere uma das chaves para o enigma daquela ambigidade, que s vezes di como um caso de conscincia: naquela reconstelao do passado no caso, o mundo arcaico e provinciano em que transcorreu a educao da sensibilidade de Humberto